Democracia Corinthiana e o Futebol Moderno

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Colégio Equipe

VITOR DOMINGUES SALLUM

DEMOCRACIA CORINTHIANA E O FUTEBOL MODERNO:


UMA DISPUTA DE GIGANTES

São Paulo
2020

1
SUMÁRIO

RESUMO.............................................................................................3

INTRODUÇÃO.....................................................................................5

A DITADURA, VICENTE MATHEUS E AS COPAS.............................7

DEMOCRACIA CORINTHIANA..........................................................16

“O FUTEBOL MODERNO”..................................................................42

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................47

APÊNDICE..........................................................................................49

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................56

2
RESUMO

A monografia “Democracia Coríntia e o Futebol Moderno - Uma disputa


de gigantes” produz uma análise do cenário vivido durante o regime militar
brasileiro de 1964 sob a ótica do futebol como fenômeno cultural e político. A
Democracia Corinthiana é o principal objeto de estudo e é a partir dele que se
desdobram reflexões sobre as mudanças estruturais e temporais do esporte,
cujas caracteristicas passam a ser um espelho da sociedade. Na perspectiva
conservadora do futebol moderno, a Democracia Corinthiana é atropelada, e o
esporte funciona como um instrumento comercial e mercantilista, além de ser
extremamente burocrático e opressor. Com isso em mente, o movimento
alvinegro dos anos 1980 é de fato uma exceção.

O método utilizado para a realização desta pesquisa foi o levantamento


bibliográfico, com referências literárias e científicas. Além disso, o uso de
materiais audiovisuais foi importante para a construção da obra. Foi realizada
uma entrevista com o jornalista e pesquisador Mario Alcântara, cujas respostas
enriqueceram as discussões com experiências vividas.

ABSTRACT

The monograph “Corinthian Democracy and the Modern Football – A


dispute of gigants” produces an analysis of the scenario experienced during the
1964 Brazilian military regimen from the perspective of football as a cultural and
political phenomenon. Democracia Corinthiana (Corinthian Democracy) is the
main object of study and it is from it that reflections about structural and
temporal changes in sport are thougth to be a mirror of society. In the
conservative perspective of modern football, Democracia Corinthiana is
disconsidered, and the sport functions as a commercial and mercantilist
instrument, in addition to being extremely bureaucratic and oppressive. With
this in mind, the alvinegro (black and white) movement of the 1980s is indeed
na exception.

The method used to carry out this research was the bibliographic survey,
with literary and scientific references. In addition, the use of audiovisual

3
materials was important for the construction of the work. An interview was
carried out with a journalist and researcher, Mario Alcântara, whose answers
enriched the arguments with lived experiences.

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INTRODUÇÃO

O futebol como conhecemos teve sua origem no final do século XIX, na


Inglaterra. Apesar disso, ainda no século II Acc. se praticava um esporte na
China chamado Cuju, cujas características eram bastante parecidas com o
esporte inglês. Na Grécia e na Roma Antiga também realizavam práticas que
se assemelham ao futebol. Na Inglaterra o esporte era praticado nas escolas
onde se realizavam campeonatos entre as instituições. Nas fábricas, o esporte
era uma das principais diversões dos operários, que formavam times e
competiam. O esporte era bastante diferente do que o praticado hoje em dia.
Menos teórico e mais criativo, o futebol do século XIX era divertido. Os
placares eram sempre muito dilatados. Hoje, demos lugar às táticas e ao
condicionamento físico.

A Democracia Corinthiana, tema desta pesquisa, foi um movimento


organizado por jogadores e diretores de futebol no Sport Clube Corinthians, de
1982 a 1985, durante o final da ditadura militar. O movimento revolucionou o
modelo de vestiário da época, e instalou uma verdadeira democracia alvinegra.
As decisões eram tomadas pelos jogadores, técnicos e dirigentes através do
voto e de discussões. Coletivamente os profissionais eram responsáveis pelo
desempenho em campo e ao mesmo tempo possuíam liberdade fora dele.
Liberdade inclusive para se posicionar politicamente contra a ditadura, como o
caso de Sócrates, Casagrande, Wladimir, Adilson Monteiro, entre outros. O
movimento também rompeu com o ideal autoritário do papel do técnico e teve
papel importante na redemocratização do país.

Nesta pesquisa, o objetivo é analisar a Democracia Corinthiana no


contexto da ditadura militar, e posteriormente relacionar o movimento com o
que chamo de “futebol moderno”, pensando nas mudanças e permanências de
características estruturais do esporte desde sua origem até hoje em dia. O
questionamento passa por entender a Democracia Corintiana como fenômeno
atípico, para então buscar a fundo o que está enraizado no modelo atual de
esporte mercantil. Para isso realizei uma série de levantamentos bibliográficos,
desde pesquisas cientificas acadêmicas até reportagens e documentários

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produzidos sobre o tema, além da realização de uma entrevista por e-mail com
o jornalista e pesquisador Hélio Alcantara, que está no processo de produção
da biografia do ex-jogador Wladimir, lateral esquerdo atuante na Democracia
Corinthiana.

Esta monografia representa para mim um desejo inquietante de buscar


entender a história do meu time de coração, e uma curiosidade pelo fenômeno
que foi a Democracia Corinthiana, despertada também pelo momento
conturbado e de retrocesso político que estamos passando no momento.
Estudar o movimento democrático alvinegro é uma forma de estudar o que está
acontecendo agora.

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A DITADURA, VICENTE MATHEUS E AS COPAS

São constantes as reflexões em torno do período chamado de Ditadura


Militar, que teve início no ano de 1964 com o golpe de estado aplicado pelos
militares e que se encerrou por volta de 85. É preciso levar em conta que há
um extenso cardápio de possibilidades quando pensamos em discorrer sobre
este fenômeno brasileiro, mas a separação dos fatos é puramente analítica e
não funcionaria na prática. Para analisar a Democracia Corintiana, não é
relevante dissertar sobre os crimes cometidos contra os direitos humanos,
sobre a violência ou sobre a produção musical da época, porém, não será
possível verificar o papel que cumpre o futebol sem que se considere também
esses fatores, levando em conta que o aprofundamento será feito em relação
ao esporte e suas relações midiáticas e políticas.

O golpe militar instaurado no Brasil dá nome ao que chamamos de


Ditadura Militar. Dizendo-se “ameaçado” por uma revolução comunista, o Brasil
sofre um golpe de estado. Em 64, logo após a retirada de João Goulart da
presidência, Marechal Castelo Branco assume o poder dando início ao período
comandado pelas forças armadas. No futebol encontraremos marcas das
mudanças no projeto de país que se instalava a partir daquele ano.

Seguido da tomada de poder pelos militares é estabelecido o AI-1, ato


inconstitucional que dava a eles a possibilidade de modificar a constituição, de
reprimir qualquer expressão contraria à “segurança do povo”, além da
determinação de eleições indiretas no Brasil. Essas mudanças significaram a
centralização dos poderes do estado que teve por resultado a manipulação e o
controle da situação durante este período. Conflitos de interesse não estavam
em jogo para os militares e todos os direitos humanos eram violados. A tortura,
assim como a censura, foram instrumentos usados para controle das revoltas.
A música como qualquer outra arte era vista como ameaça ao governo, quando
supostamente continham em suas letras signos de revolta. As letras das
músicas passavam por uma censura prévia antes de serem lançadas.

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É possível dividir a ditadura em duas etapas. Do seu início até metade
dos anos 70, quando a sociedade, em sua maioria, prestava apoio e
reverenciava o trabalho realizado pelos militares. Eram poucos aqueles que se
atreviam a contrariar as forças militares, e os que se arriscavam, geralmente
“sumiam” rapidamente. A partir da segunda metade dessa década, o cenário
muda. A ditadura perde força e as manifestações de insatisfação são
constantes. A Democracia Corintiana surge já na década de 80, no fim da
ditadura, e se aproveita do período em que as ideias democráticas tomam a
população.

Mas voltemos ao início dos anos 70, na época da copa do mundo no


México. Início da era da televisão, surgem os primeiros eletrodomésticos
capazes de transmitir imagens coloridas. Apesar disso, eram poucos os que se
davam ao luxo de ter uma dessas em sua residência. Antes mesmo do maior
evento futebolístico acontecer, a seleção brasileira passou por um processo de
intervenção militar que ficou conhecido como “Projeto México”. Cargos de
preparador físico, dirigentes e até mesmo de técnico foram ocupados por
soldados. O técnico João Saldanha foi dispensado nas vésperas da copa
porque possuía características que combinavam com os ideais comunistas. Em
entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, João Saldanha releva o lado
artístico do futebol: “O futebol é um ramo da arte popular. O Brasil é um país
eminentemente pobre. Para o futebol, basta uma bola. O menino descalço pode jogar.

Uma rua, uma bola de pano ou de borracha, uma bola qualquer e pronto: o menino joga.

Como esporte de pobre, é evidente que o futebol tem uma transa bem maior com o Brasil

do que com a Dinamarca. É uma expressão da arte popular. Todo mundo tem necessidade

de expandir a vocação artística em qualquer coisa. Há cantor de banheiro às dúzias e

jogador de futebol aos milhões. Poucos, entretanto, conseguem atingir o estrelato”.

Neste momento o técnico Zagalo é o escolhido para assumir o cargo de


treinador, escolha feita pelo atual presidente Emilio Garrastazu Médici, um
militar. Este ficou conhecido também pela ocasião na qual compareceu a uma
concentração da equipe brasileira durante as tratativas para a copa, e foi
reafirmar a importância da conquista do título e da competência que o esporte
adquiria quanto ao sucesso do milagre econômico, como incentivo aos
jogadores.

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Para além dos profissionais, se instituiu uma nova forma de preparação
dos atletas que os tornavam “soldados-jogadores”, disciplinados e
militarizados. A partir deste planejamento se instala uma nova modalidade de
atleta ideal. Já não se valoriza o drible, a imprevisibilidade e a plástica, o
jogador precisa ser forte, rápido e preciso. Fato é que os jogadores pareceram
ignorar a nova filosofia, pois como vimos na seleção de 70, Pelé, Tostão,
Rivellino, Gerson e Jairzinho deram “show” nos gramados mexicanos. O futebol
é um espelho da sociedade. Nele estão todas as relações hierárquicas de
poder que encontramos no Brasil. O jogador é uma peça da máquina eficiente
e ajustada, que faz funcionar o planejamento. Ele precisa ser comandado e
orientado, e está sendo monitorado por um preparador físico para que atinja o
máximo que seu corpo permite. Quando é capaz de entender e obedecer às
ordens do treinador e realizá-las bem, lhe é reconhecida a qualidade. Mesmo
as questões pessoais são colocadas nas mãos de especialistas para que o
jogador se mantenha focado no trabalho. Durante a década de 70 é revelado
que um dos valores atribuídos ao esporte é a expropriação do saber do
jogador, e dele é afastada cada vez mais a atividade do pensamento. Mesmo
os craques que eram valorizados pelo poder de improvisação e de inteligência
dentro das quatro linhas são trocados pela força física e pela disciplina. Esta
peça comandada é um mero executante do plano traçado pela cadeia de
comando. Este processo é um reflexo das relações de trabalho da sociedade
capitalista, que expõe a vulnerabilidade do jogador de futebol durante a
ditadura e que persiste até hoje. A Democracia Corintiana é apenas um deslize
onde os papéis foram invertidos e a lógica mercantilista não reinou no esporte.

Em meio à crise da liberdade do jogador de futebol, a copa do mundo no


México surge como instrumento alienante da sociedade. Constrói-se a imagem
do futebol como o “Ópio do povo”, todos se reuniam para aliviar os conflitos das
relações de trabalho e também por isso, gera-se uma grande expectativa pela
vinda do título. Músicas foram criadas e suas letras estimulavam a torcida a
vibrar e se unir pela seleção, como observamos a seguir nos versos de “Pra
Frente Brasil”:

Noventa milhões em ação


Pra frente Brasil, no meu coração
Todos juntos, vamos pra frente Brasil

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Salve a seleção!!!
De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão!
Todos ligados na mesma emoção, tudo é um só coração!
Todos juntos vamos pra frente Brasil!
Salve a seleção!
Todos juntos vamos pra frente Brasil!
Salve a seleção!

Na verdade, a taça de 70 foi uma afirmação dos militares no poder. A


luta dentro das quatro linhas era também uma luta política e vencida pela
ditadura militar. O filme “O ano em que meus pais saíram de férias” mostra bem
a relação entre o esporte e a manutenção do poder dos militares. No primeiro
jogo do Brasil contra a Tchecoslováquia, o sentimento era da luta entre a força
militar brasileira contra o socialismo Tcheco, e o filme mostra os revolucionários
assistindo ao jogo em um núcleo de resistência brasileira. Se contradisseram -
comemoraram o primeiro gol Tcheco, mas celebraram ainda mais a vitória
brasileira deixando-se levar pelo amor ao esporte e ao país. É possível através
da análise afirmar que os militares transformaram a copa em um instrumento
de alienação da sociedade, e o título premiou os soldados brasileiros. Vale
ressaltar também que a mídia cumpre um papel importante durante este
período. O surgimento da rede Globo em 1965 esteve associado ao estímulo
do governo norte-americano para que empresas midiáticas americanas
controlassem a comunicação em toda América do Sul. A empresa Time-Life
realizou primeiro uma sondagem com o jornal Estado de São Paulo, mas Júlio
de Mesquita, dono do jornal, rejeitou prestar esse papel. Já Roberto Marinho,
dono do até então pequeno Jornal Globo, aceitou a proposta. A emissora
sempre simpatizou com o regime ditatorial, foi um objeto utilizado pelo governo
para manter a ordem, e usou o futebol e as transmissões para isso. O futebol
era o momento onde todos se reuniam por uma mesma causa e esqueciam
das mazelas que a ditadura deixava.

Porém, é preciso ressaltar que não só de disparidades vive o esporte.


No livro “A Democracia Corinthiana – práticas de liberdade no futebol brasileiro”
o autor, José Paulo Florenzano, discute esses valores alienantes associados
ao esporte. Ele aponta que apesar de possuir um potencial alienante e ser um
espelho da sociedade brasileira, cometemos um equívoco ao afirmar que este
é um objeto de despolitização e conformismo das massas sem considerar o

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valor artístico que a atividade possui, assemelhando-se às ideais trazidos por
João Saldanha. O futebol é também uma atividade cultural que reúne a beleza,
o amor e a felicidade. Não se restringe a “Ópio do povo” e objeto alienante, é
encantador.

Nesse mesmo início dos anos 70, reinava no Sport Clube Corinthians
Paulista, um dos presidentes mais famosos de um clube. Vicente Matheus
nasceu em 28 de maio de 1908, na pequena cidade de Toro na Espanha,
mudou-se para o Brasil em 1914, foi criado na zona leste de São Paulo, e se
naturalizou brasileiro. Seu interesse pelo futebol se dá em Ribeirão Pires e
Pilar, onde sua família se sustentava através da exploração de pedreiras.
Jogava na posição de meio campo no time de Pilar, e foi onde acabou se
apaixonando pelo Corinthians, inspirado pelos craques Neco, Grané e Tatu.
Vicente se torna proprietário da pavimentadora “Matheus” quando atinge sua
maioridade, coordenando as finanças da família. Sua proximidade ao clube
aumentou quando se tornou concorrente para pavimentar a rua São Jorge, e a
partir daí se instalou nas proximidades do Parque São Jorge, onde aconteciam
os jogos e treinos do seu time do coração. Ficou conhecido por suas frases
engraçadas e emblemáticas como: “O Sócrates é invendável, imprestável e
inegociável”, “O jogador tem de ser flexível como o pato, que é um bicho
aquático e gramático” ou até mesmo “O Corinthians será campeão comigo ou
sem migo” entre outros dizeres. Curioso o fato de que foi em uma de suas
candidaturas que surgiram os primeiros esboços para a construção de um
estádio próprio do Corinthians, que na época havia sido especulado no bairro
de Itaquera, onde fica hoje a Arena Corinthians, construída em 2014. Apesar
de ser motivo de risadas, Vicente sempre foi um dirigente que simpatizou com
ideais militares, foi sempre muito político e bastante conservador. Além disso,
foi reconhecido por fazer vários pactos com políticos e ser bastante próximo
dos governantes do estado.

Foi com o fim de seu mandato por obrigação judicial, já que havia
completado os anos limites de tempo seguido na presidência, que surgiu o
movimento da Democracia Corintiana. Vicente Matheus tentara burlar as leis,
como já havia feito antes para se reeleger, e montou uma chapa sendo o vice
de Waldemar Pires. A chapa venceu as eleições, porém Waldemar não se

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conformou em ser apenas o meio pelo qual Vicente encontrara de governar o
clube, e acabou afastando-o da vice presidência. Waldemar acaba sendo peça
chave para que os atletas pudessem estabelecer o regime democrático tomada
de decisões no Corinthians, ele dá abertura e escolhe como diretor de futebol
Adílson Monteiro Alves, um sociólogo que pouco conhecia de futebol, mas era
apaixonado pelo Corinthians e pela Democracia. Assim podemos concluir que
Vicente Matheus acabou fazendo a escolha errada e que, provavelmente, se
não elegesse Waldemar Pires para o cargo ainda reinaria politicamente no
clube.

Vicente Matheus compactuava com o poder dos militares e foi


responsável pela introdução dos novos conceitos de futebol no Corinthians.
Seu jeito totalitário e grosso de ser, como um bom espanhol da época, marcava
a figura do personagem bruto que foi construída ao decorrer de suas
campanhas. Durante o período que se instalou o regime democrático no clube,
responsável por distorcer os papéis dos funcionários e horizontalizar as
decisões políticas, Vicente tentou com unhas e dentes aplicar um golpe para
impitimar Waldemar e assumir o cargo. Corroborou com a imagem que a mídia
vinha construindo da existência de uma Anarquia Corintiana e considerava
vagabundos aqueles que participavam do movimento democrático.

Vicente Matheus sempre se mostrou uma figura apaixonada pelo clube,


até demais. Seu período de poder no clube esteve recheado de corrupções e
tropeços. Vicente era acima de tudo, a figura de soldado militar. Sua forma de
se pronunciar e sua relação com os jogares do elenco corintiano estava
associada ao regime ditatorial, ao autoritarismo e ao conservadorismo. Porém,
foi sua mulher a primeira figura feminina a ocupar o cargo da presidência de
um clube de futebol. Talvez por interesses financeiros e políticos, Vicente se
permitia deixar de lado alguns valores machistas para ver sua mulher, também
espanhola, no comando. Marlene Matheus era durona assim como seu marido.
Assumiu o mandado em 1991, ano em que a figura da mulher estava longe de
ocupar cargos políticos públicos, logo após seu marido terminar o reinado de
dezoito anos. Porém ela durou apenas uma eleição e acabou não se
reelegendo dois anos depois. A família Matheus encerrou sua passagem pelo
Sport Clube Corinthians Paulista no ano de 1993, quando o cenário político já

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era outro e as relações que o futebol estabelecia com a política também já não
se baseavam no regime ditatorial militar, mas nem por isso as ideias
democráticas implantadas nos anos 80 faziam parte do cotidiano corintiano.
Vicente vem a falecer em 97, pouco tempo depois de encerrar seu ciclo na
diretoria do Corinthians.

Já na copa do mundo de 1978, a Argentina vivia o seu maior período


ditatorial sobre o comando do general Jorge Rafael Videla. Como retrata muito
bem o autor de crônicas futebolísticas Chico Bicudo, enquanto os torcedores
argentinos cantavam no estádio Monumental de Nuñez em comemoração ao
título conquistado pela sua seleção, gritos de dor e tortura ecoavam nos porões
da Escola de Mecânica da Armada, centro de tortura de Buenos Aires, espaço
que hoje agrupa uma série de representações do período ditatorial em
lembrança aos mortos e desaparecidos. A copa sediada na Argentina é até
hoje motivo de polêmicas. Em parte, assemelha-se ao título de 70 conquistado
pela seleção brasileira, já que o título está rodeado de interesses políticos e foi
considerado como uma vitória do conservadorismo militar. A argentina sofria
com crises internas, já que os resultados do golpe civil militar não estavam
agradando a população, porém a maior preocupação para os generais estava
nas críticas que vinham das autoridades europeias e norte-americanas, e na
tentativa destas de boicotar a Copa. Portanto, o evento assumiu o papel de
exibir e difundir os valores que a ditadura aspirava estimular na sociedade,
utilizando do apelo à contemplação passiva que o jogo oferecia. As condições
financeiras não favoreciam a realização da copa no país, e o risco poderia
fortalecer os críticos, porém os benefícios que o fenômeno mundial traria aos
governantes falou mais alto. A copa acabou por servir o estado, teve papel
agrupador e desviou a atenção dos crimes cometidos fora das quatro linhas. A
vitória trouxe a comemoração e a felicidade às ruas, e a copa tornou-se o
sucesso numa sociedade “pacificada”. O governo de Videla não hesitou em
relacionar a vitória nos gramados ao sucesso de seu projeto nacional, o que
permitiu renovar sua imagem externa e temporariamente estabelecer um
consenso no país.

Apesar disso, a copa de 78 deixou-se ser invadida pela violência


cotidiana de seu país sede - um episódio ocorrido durante a última rodada da

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segunda fase de grupos que encaminharia o primeiro colocado de cada grupo
para a final da competição. A seleção portenha só viria a se classificar caso
goleasse a seleção peruana por uma diferença de quatro gols, já que além dos
pontos pela vitória, seria preciso do saldo de gols para ultrapassar o Brasil e
assim passar para a final eliminando a invicta equipe de Zico, Rivellino, Leão e
Roberto Dinamite. O primeiro tempo do jogo foi bastante brigado, mas a
qualidade da seleção argentina prevalecia e as equipes foram para o vestiário
com o placar de dois a zero para o time da casa. Vale lembrar que o Peru
também era governado por militares, trazendo ainda mais tensão ao embate.
Há relatos de que os jogadores e a comissão técnica peruana receberam uma
inesperada visita no vestiário. Eram soldados argentinos. Pouco se sabe do
diálogo estabelecido durante os quinze minutos, nem mesmo se houve algum
tipo de violência. Porém na volta do intervalo, amedrontados, os peruanos
sofreram mais quatro gols e a partida se encerrou com o placar de seis a zero,
consagrando a vaga argentina na final da copa do mundo. Alguns contam que
parte da torcida ficou sabendo, ainda no estádio, do fato ocorrido e protestava
contra as forças armadas. O que se pode constatar é que funcionários da
manutenção do estádio que presenciaram o atentado colocaram fitas pretas
nas traves, como forma de luto, para que as redes televisoras que transmitiam
a partida reportassem o que ocorrera nos corredores do vestiário. A política se
misturou com o futebol e permitiu que valores fossem estabelecidos aos atletas
presentes no campo. Os jogadores argentinos foram acusados por apoiar os
soldados, quando na verdade estavam subordinados ao poder opressor da
ditadura militar.

Em 73, através de um golpe civil militar, as forças armadas lideradas por


Augusto Pinochet assumem o poder no Chile. Em menos de uma semana, o
estádio Nacional do Chile foi transformado em palco de tortura e prisão dos
perseguidos pela ditadura. Estes presos ocupavam as arquibancadas e eram
levados aos vestiários quando as coisas pioravam. Os corpos dos
assassinados saiam pelos portões dos fundos e eram levados em grandes
caminhões para despejo em rios clandestinos. Meses depois aconteciam as
eliminatórias para a copa de 74, tendo como sede a Alemanha. A equipe
chilena não se classificou direto, foi para a repescagem enfrentando a equipe

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da União Soviética. No primeiro jogo o Chile havia viajado para empatar em
zero a zero com os soviéticos. O jogo da volta estava marcado para o estádio
Nacional do Chile, e a União Soviética se recusou a entrar em campo, como
protesto e resistência ao regime fascista chileno. Apesar disso, Pinochet
obrigou os jogadores chilenos a entrarem em campo, encheu a arquibancada
de torcedores e, assim que foi dado o apito inicial do juiz, os atletas
caminharam com a bola até o gol vazio, celebrando a classificação que para
muitos aconteceu de uma forma vergonhosa. Hoje, algumas cadeiras da
arquibancada estão preservadas e nunca são ocupadas em dias de jogo, como
memoria àqueles que resistiram e aos que se foram na ditadura.

Esses fatos nos permitem afirmar que se tornou cada vez mais difícil
separar o futebol da política. O futebol como um evento cultural tem um
potencial alienante, e serviu durante o período conservador na América Latina
como instrumento de propagação do nacionalismo na sociedade e também
como artefato de distração. Apesar das características de entrega e paixão
incondicional, o esporte não funciona apenas como espetáculo. Os militares
entenderam isso e rapidamente se ocuparam em liderar as decisões
esportivas, sem deixar lacunas para que fosse possível atribuir ao evento
espaços revolucionários de ameaça ao poder.

A Democracia Corintiana, como veremos a seguir, foi um movimento


revolucionário pois mudou a percepção estabelecida das hierarquias de poder
no esporte e desestabilizou mecanismos que enfraqueciam o proletariado nas
relações de trabalho. O poder do voto e da tomada de decisões, o diálogo
igualitário entre as partes, a politização dos jogadores e o exercício da
atividade intelectual foram rupturas com os parâmetros antidemocráticos e
classicistas presentes na sociedade e no esporte. Além disso, essas rupturas
confrontaram os valores que estavam sendo estabelecidos através da
militarização do futebol durante os regimes ditatoriais.

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A DEMOCRACIA CORINTHIANA

Não é tarefa fácil descrever o movimento que ficou conhecido como


Democracia Corintiana. Alguns preferiram chamar de anarquia ou até mesmo
de bagunça. Fato é que esse período deu no que falar - desde Sócrates,
Casagrande e Wladimir, até Vicente Matheus – que figuraram neste quadro
democrático. Nesse capítulo pretendo dissertar, de forma cronológica, sobre o
movimento democrático, identificando os principais atores e as relações que se
estabeleceram entre o esporte, o meio midiático e a luta pela democratização
do país através do movimento das Diretas Já!

É importante que se faça uma contextualização focando o período


anterior às primeiras mudanças quanto à consolidação do movimento
democrático no Corinthians. Do ano de 1954, quando a equipe corintiana
comemorou o título do campeonato paulista conquistado através de um empate
sobre a equipe do seu rival Palmeiras, até o ano de 1977, o clube alvinegro
sofreu com um jejum de longos vinte e três anos sem nenhum título de maior
expressividade. Em 77, o gol de Basílio sobre a Ponte Preta, consagra o novo
campeão paulista e acaba com a fome corintiana. Esse período coincide com
as adaptações que se seguiram à revolução industrial no Brasil, o crescimento
da migração e as mudanças nas relações de trabalho que, juntos, carregavam
o caráter de exploração do proletariado. Sem desconsiderar as coincidências e
as particularidades dos eventos, ocorreu um crescimento significativo no
número de torcedores fiéis ao alvinegro paulista. A formação da identidade de
“Time do Povo” está estritamente ligada a representatividade que o clube
ganha nas massas, dentre essas, os migrantes que chegavam para trabalhar
nas fábricas, os trabalhadores mais explorados e em geral as classes
populares. Ocorre um processo de identificação da classe proletária, de certa
maneira conscientes das suas poucas condições de sobrevivência, com o
clube que sofria durante décadas pela falta de conquistas, como que se
compartilhassem do mesmo sofrimento. É também uma maneira dessa
população mais periférica criar uma identidade comum que a representasse
como grupo, e de alguma forma transpusesse através do esporte, sua luta
diária por direitos básicos comuns entre os torcedores. Vale ressaltar que em

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meados de 69 é oficializada a Gaviões da Fiel, composta por torcedores que
enxergavam a necessidade de mudar os parâmetros de atuação de uma
torcida organizada, intervindo diretamente nas decisões políticas do clube. O
principal alvo era o então presidente da cúpula corintiana Wadih Helu, filiado ao
partido de extrema direita conhecido como Arena, partido este que foi criado
em 65 para dar sustentação política ao regime totalitário. Não por acaso, os
gaviões, desde seu surgimento, levantavam a bandeira democrática fazendo
oposição à ditadura militar instalada em 64, além de se tornarem fator
importante para a sustentação da Democracia Corintiana, prestando apoio aos
jogadores e à diretoria do clube. Ainda nos dias de hoje os gaviões projetam
sobre o futebol lutas políticas bastante importantes. Quando se trata da defesa
da democracia, os alvinegros paulistas estão sempre presentes, seja para
reivindicar merenda nas escolas (2016) ou repudiar manifestações fascistas
(2020). A Democracia Corintiana encontrou um cenário favorável na sua torcida
e obteve apoio fundamental para sua sobrevivência, superando os ataques
realizados pelos meios de comunicação majoritariamente conservadores.

Após a queda do tabu de títulos em 77, algumas contratações foram


feitas para reforçar o elenco, peças como o zagueiro Amaral e o famoso doutor
Sócrates, que vinha se destacando pela equipe do Botafogo de Ribeirão Preto.
É bastante curiosa a transação entre os clubes para a chegada de Sócrates ao
Parque São Jorge. O meio campista que era formado na base do Botafogo
estava sendo especulado para ser transferido para o São Paulo, rival da equipe
alvinegra. Acontece que o São Paulo precisava da quantia que o Corinthians
pagaria por adquirir o Chicão, jogador pertencente à equipe são-paulina. Dias
antes do tricolor paulista comprar o passe do então formado em medicina
Sócrates, dois grandes torcedores corintianos chegavam em São Paulo, vindos
de Ribeirão, para uma reunião com Vicente Matheus. Nesta conversa, “eles
contaram ao Vicente que o São Paulo contrataria o Sócrates no dia seguinte e
disseram que gostariam muito que o jogador viesse para o Corinthians. Se o
senhor não se apressar, eles vão levá-lo”, contou Marlene Matheus, esposa do
presidente. Vicente era bastante desconfiado das informações, porém quando
descobriu a veracidade dos fatos narrados, imediatamente ordenou que seu
irmão Isidoro convocasse uma reunião com o então presidente do tricolor

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paulista Antônio Leme Nunes Galvão para tratar sobre a negociação
envolvendo o jogador Chicão. Para os são-paulinos tratava-se do possível
dinheiro para oficializar a contratação de Sócrates e por isso não titubearam ao
confirmar presença na reunião. Enquanto Isidoro tratava de enrolar a diretoria
rival, Vicente viajou até Ribeirão Preto e, com dinheiro em mãos, contratou o
doutor Sócrates. Ali se concretizava a maior das contratações corintianas, uma
tacada certeira de Vicente Matheus. Acho até que, se imaginasse as
reviravoltas no clube e em sua direção que o meio campista causaria, o então
presidente faria questão de presentear seu rival, São Paulo, com a contratação
do jogador.

Esperava-se então que a equipe corintiana retomasse o respeito


adquirido durante tantos anos de sua história. Apesar da grande festa na noite
do dia treze de outubro de 77 no estádio do Morumbi, nos anos seguintes o
alvinegro paulista acabaria por adentrar numa crise não menos importante que
o longo jejum. Acontece que ficaram para trás as forças maiores que moviam o
time em busca dos resultados, e então se observou uma turbulência quanto às
questões identitárias da equipe com seus torcedores. Wladimir, ex-jogador
corintiano e que teve participação direta na Democracia Corintiana, diz que
com a conquista do título, os jogadores haviam perdido o tesão. A adrenalina
gerada durante as mais de duas décadas acabou por anestesiar os atletas.
Mas se engana quem pensa que a situação se expandia para as
arquibancadas. Através de manifestações públicas, a torcida organizada
Gaviões da Fiel buscava derrubar a qualquer custo o então presidente Vicente
Matheus. E motivos não lhes faltavam para tanto, já que Vicente, além de
completo incompetente, era figura temida pelos que lutavam pela democracia
no país. Como o próprio descrevia, “O Corinthians é uma ditadura mole”.
Desde sua primeira candidatura, o presidente conquistou suas reeleições
através de manobras jurídicas. O cenário, porém, não lhe dava outra alternativa
senão eleger alguém de confiança para que, como vice, pudesse controlar
todas as decisões e realizar as ordens finais. Sua escolha não há de ter
surpreendido quase nenhum crítico, visto que Waldemar Pires tinha sido vice
nas últimas duas candidaturas de Matheus. Quinta feira, dia nove de abril de
1981, Waldemar Pires é eleito. Ninguém questionava quem viria a exercer

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efetivamente o cargo na presidência do clube. No jornal Folha de São Paulo,
dois dias após as eleições, uma matéria conta que “Vicente veio ao Parque
São Jorge e estacionou sua Mercedes Benz na vaga reservada para o
presidente”. Quanto aos jogadores, se acostumaram a encontra-lo na sala da
presidência, sentado na poltrona destinada a Waldemar, que, por diversas
vezes, assistia às tratativas de transferências com jogadores e seus
empresários. A situação era pública e bastante vergonhosa. Waldemar tinha
sua figura exposta e rebaixada, era fantoche nas mãos do ditador. Ele não
deixava de se incomodar, mas temia se tornar inimigo de um dos mais
respeitados presidentes no meio futebolístico. Custava-lhe então decidir por
algum caminho. Ou renunciava a seu cargo, ou impunha seus valores e
assumia de forma efetiva a presidência do clube para a qual foi eleito. A
insatisfação vinda das arquibancadas, os péssimos resultados, as críticas da
imprensa esportiva e a articulação com alguns pilares do clube, o encorajaram
a escolher a segunda opção. Assim sendo, em julho de 81, eram noticiados os
afastamentos de Vicente Matheus e de Osvaldo Brandão, o então técnico da
equipe. Foi motivo de festa para aqueles que necessitavam respirar novos
ares, era a vitória pela liberdade. Apesar disso, a alegria durou pouco.
Waldemar Pires convocou João Mendonça Falcão para o cargo de diretor de
futebol. João era carta velha no cenário do futebol, havia sido presidente da
FPF (Federação Paulista de Futebol) de 55 a 69, e foi descrito como político
matreiro pela revista Placar do mesmo ano. A escolha não favorecia a
mudança de rota no clube, e isso refletiu no campo. Os resultados não eram
melhores, o que tornou curta a passagem de João Mendonça pelo alvinegro
paulista. Em um bagunçado campeonato brasileiro, o Corinthians acabou
caindo para a Taça de Prata, semelhante à segunda divisão do campeonato
atual. Enquanto os resultados não eram os esperados, o clube sofreu pressão
da torcida e desconfiança por parte da diretoria. A ditadura já caminhava para o
fim, e existia uma certa abertura para desconstrução do regime ditatorial. É
nesse momento que começam a surgir traços do movimento que chamamos de
Democracia Corintiana. O novo diretor de futebol, Adílson Monteiro Alves, era
recém formado em sociologia na universidade de São Paulo, e assumia o
cargo a convite de seu pai, à época vice-presidente de futebol. A contagem era
regressiva para que ele não suportasse a pressão e tivesse o mesmo fim de

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João Mendonça. Contudo, conseguiu se sustentar no cargo através da sua boa
relação com os companheiros de clube, jogadores e diretoria. Ele relata que “a
minha apresentação aos jogadores na concentração, antes do jogo com o
Guarani, que deveria durar no máximo dez minutos, acabou durando seis
horas”. Como sociólogo, ele se apresentava como um bom diretor de futebol.
De alguma forma, seus estudos colaboraram para que mantivesse proximidade
ao elenco de profissionais, e em decorrência disto, para que se tornasse um
dos pilares da implantação do regime democrático dentro do clube. O jovem
diretor propunha-se a quebrar a distância entre dirigentes e dirigidos, valorizava
as conversas e debates, e esboçava junto aos jogadores uma nova pintura
para o cenário ultrapassado. A identificação foi instantânea por parte do elenco.
Junto do novo diretor, surge também a figura de Mário Travaglini. Para a sorte
do projeto alvinegro, o novo técnico não era “linha-dura”, e gostava de discutir
com os jogadores sobre os esquemas, suas posições, entre outras decisões
que se tomava no cotidiano do clube. Travaglini chegou no Corinthians depois
de comandar a equipe da Portuguesa, de São Paulo. Foi, inclusive, em uma
derrota para a equipe alvinegra que ele se despediu da Lusa. Wladimir lembra
bem do momento em que se anunciou a chegada do novo comandante – foi a
união da “fome com a vontade de comer”. O grupo sabia exatamente o que
queria – e fica claro que a participação dessas duas figuras atendia ou
satisfazia a vontade do elenco de profissionais, e ampliavam o campo de
atuação dos jogadores, seja dentro ou fora das quatro linhas; foi a união da
“fome com a vontade de comer”.. Apesar disso, esses não se tornaram os
arquitetos nem tão pouco líderes do movimento. Tiveram papel coadjuvante, e
abriram as portas para o que viria em seguida, como aponta Sócrates em
depoimento para seu livro:

“Como não tinha experiência no ramo, o novo diretor de futebol começou


a ouvir as opiniões dos jogadores e as mudanças foram começando aos
poucos”

É possível afirmar então que a mudança de rota deu seu primeiro passo
com a chegada desses dois novos componentes, que assumiram um papel
bastante perigoso para a época. Mas foram os jogadores, que com alas
abertas, tomaram a rédea e construíram novos parâmetros na constituição dos

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papéis dentro e fora do campo. Há quem diga que não foi tarefa difícil assumir
tais posicionamentos a frente de um elenco excepcional como o do Corinthians
no início dos anos 80. Mas a pressão não vinha apenas de dentro do vestiário -
os meios de comunicação e até mesmo a torcida viam como parâmetro
fundamental para sustentação da nova organização a chegada dos resultados,
fossem eles títulos ou melhores desempenhos em campo. No caso de novas
derrotas, a pressão aumentaria e a Democracia Corintiana seria a bagunça que
afundaria ainda mais a equipe alvinegra.

Adílson Monteiro Alves encarou isso diariamente e não permitiu que as


conjunturas cotidianas abalassem a democratização. Ele não só permitia como
instigava os jogadores a questionar as formas como as relações eram
estabelecidas, e lhes ensinava que não deveriam aceitar a vida como ela era
apresentada. A base de sua reformulação estava no ato do exercício crítico por
parte dos jogadores, da construção de uma identidade própria. Até mesmo a
Gaviões da Fiel, torcida jovem e politicamente ativa, chegou a questionar os
posicionamentos, e convocaram protestos em frente ao Parque São Jorge
pedindo o afastamento de Adílson. Não estava claro, ainda, que fazia parte dos
planos a participação direta da torcida corintiana. Nada faria sentido se
privassem as decisões do público fiel que comparecia aos estádios todos os
jogos e se desdobravam pelo Corinthians. Ao mesmo tempo que o
rebaixamento pode ser considerado um momento excelente para a tentativa de
mudar as coisas, ele também gera expectativas e maiores apreensões quanto
aos resultados imediatos. Em meio ao caos do rebaixamento de 81, Paulo
César Caju, o Caju, resolve não jogar a segunda divisão pelo Corinthians, o
que significava uma perda para a Democracia Corintiana. Caju tinha bastante
importância quando se tratava da luta racial dentro do esporte, e também da
resistência ao projeto que assumia a supremacia das características físicas dos
atletas, em contraposição à sua forma de se firmar em campo como jogador
técnico. Alguns jogadores faziam ameaças quanto a sua manutenção na
equipe, outros afirmavam que devia ficar justamente por conta da mudança de
mentalidade dentro do clube. Enquanto isso, boatos de uma transferência de
Sócrates para a Espanha circulava nos jornais, e a torcida cobrava
incessantemente algum posicionamento. Estava claro que o movimento tentava

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se afirmar através das mudanças, sejam elas do estilo de jogo ou no uso da
racionalidade acima da exploração do corpo do atleta. Apesar disso, foi neste
momento que se construiu uma identidade para o clube que persiste até hoje,
em que a raça e entrega pelo time deve estar presente em campo. No
Corinthians da década de 80 encontra-se o equilíbrio entre o uso do corpo do
atleta e do exercício da crítica e razão. Tratou-se então de criar um novo
vínculo com a torcida, que passou a reconhecer o esforço da equipe de uma
outra maneira. Os jogadores deixaram de se submeter ao modelo tradicional de
concepção de jogador, e passaram a se destacar por suas individualidades.
Neste período, surgem craques criativos, como Sócrates e até mesmo o lateral
Wladimir, que já não se limitava aos desarmes. A ânsia pela liberdade era o
combustível que todos os jogadores compartilhavam. A separação entre
exercício da profissão e condição de cidadão era intolerável e inapropriada.
Wladimir relata de forma bastante objetiva:

“Todo jogador sabe o que é bom para si. Ele é quem sabe o que lhe
falta: conhecer o corpo, conhecer as próprias deficiências, os próprios limites.
Os próprios atletas têm que conhecer a sua realidade. Agora dão muito poder
para treinador, para médico, para dirigente, supervisor, quando na verdade
quem tem que decidir são os atletas, que na maioria das vezes são
manipulados, subservientes”

A reflexão que o atleta faz sobre o uso do próprio corpo toca na questão
do imaginário capitalista, no qual todos os limites são revestidos de um valor
negativo e, portanto, devem ser superados. O atleta deve negar seu próprio
corpo, seus limites e suas vontades para que desempenhe o melhor dentro de
campo. O esporte levava, com sucesso, o jogador a superar constantemente
as barreiras da força física, da resistência, do rendimento durante uma partida.
A repetição mecanizada de certos movimentos e exercícios acabam por se
assemelhar ao fordismo, e a produção de trabalhadores amestrados. Enquanto
a lógica mercantilista e capitalista do esporte ia de encontro com a hipertrofia
do corpo do atleta ou então deixavam marcas permanentes, Wladimir
reestabelece uma relação equilibrada e de autocontrole entre as características
físicas e a atividade do pensamento. Querendo ou não, foi o equilíbrio entre o
exercício do corpo e da alma que o tornou um símbolo para os corintianos.

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A Democracia Corintiana caminhava a passos largos, restava a chegada
de títulos para que se coroasse o futebol alvinegro. Por uma série de confusões
nas regras do campeonato brasileiro, de alguma forma o Corinthians poderia,
ainda no ano de 82, subir para a Taça de Ouro, equivalente a primeira divisão.
Sócrates havia se machucado e estaria fora dos primeiros jogos que poderiam
garantir à equipe alvinegra o retorno ao alto escalão. O time começou bem com
uma vitória sobre o América – RJ. Ao contrário do que se imaginava, o caminho
não continuou fácil como na estreia. No jogo seguinte apenas empatou com o
fraco time da Colatina, do Espírito Santo. Na terceira partida, mais um empate,
dessa vez contra a Catuense. Nesse momento já se especulava a possibilidade
da equipe corintiana fracassar mais uma vez, e permanecer na segunda
divisão do principal campeonato nacional. Para a partida final da primeira fase,
ainda com Sócrates lesionado, e desta vez acompanhado de Mário, atacante
artilheiro da equipe, Travaglini escolheu escalar Casagrande, que ainda não
havia estreado pelo alvinegro. O atacante era cria da base, havia tido alguns
conflitos com o técnico Osvaldo Brandão, e quase foi negociado com o América
– RJ, mas para sorte dos corintianos, a tratativa fracassou na última hora. E
não podia ter sido melhor. Casagrande estreou fazendo quatro dos cinco gols
da equipe sobre o Guará – DF e manteve viva a possibilidade de ascender à
Taça de Ouro. Como se não bastasse, o maior rival, Palmeiras, perdia mais
uma partida e estava eliminado da Taça de Prata, adentrando num poço sem
fundo.

A Democracia começava a mostrar ao que veio. Na verdade, há de se


espantar que muitos torcedores de times rivais paulistas comemoravam a
vitória corintiana. A luta pela liberdade atravessava o fanatismo. Na última
partida desta primeira fase, o Corinthians precisava da vitória para seguir em
busca da passagem, e assim o fez. Com a vitória, a equipe paulista se
encontrou com Fortaleza e Campinense na fase seguinte, em que apenas o
primeiro do grupo subia à tão cobiçada Taça de Ouro. Com Sócrates de volta,
fazendo parceria com Casagrande e Zenon, o time do povo conquistou a
primeira vitória com o placar de quatro a dois sobre o Fortaleza. Já com menos
pressão, o time de Travaglini venceu a Campinense por dois a zero e voltou à
elite do futebol.

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A questão agora era, até onde poderia chegar a Democracia Corintiana?
Vale ressaltar que a democracia se deparou com problemas dentro do clube.
Dois jogadores, Paulo César Lima (Caju) e Rondinelli tampouco começaram a
campanha no campeonato brasileiro de 82, rescindiram com a equipe e
deixaram o elenco. Eles não se adaptaram ao estilo de relacionamento
estabelecido, não conseguiram se juntar ao grupo. Nesse aspecto é
interessante observar que, para alguns, aquele não parecia ser um regime tão
democrático assim. Apesar das novas modalidades de relação dentro dos
vestiários, onde todos deviam se posicionar, as decisões deveriam ser tomadas
em conjunto com os atletas através da votação, todos votos tinham o mesmo
valor e deveriam ser respeitados, alguns não se sentiam acolhidos, escutados
ou até mesmo não se adaptaram à liberdade imposta a eles. É um fenômeno
facilmente observável, os jogadores de futebol, em sua maioria, gostam da falta
de liberdade - é cômodo não se posicionar e não se comprometer. A liberdade
tem um custo e isso chega a incomodar alguns, como os casos de Rondinelli e
Paulo César Caju. Além disso tudo, há quem diga que eram excluídos aqueles
que, de alguma forma, discordassem da forma como as coisas eram
organizadas. O próprio Wladimir diz em uma frase: “Estamos fechados dentro
do grupo. É como definimos a união que existe aqui. Um pacto que fizemos.
Havia uma ou duas “ovelhas desgarradas”, agora não há mais. Time que quer
ser campeão tem que se fechar. Nós conseguimos e agora eu acredito outra
vez no Corinthians”

O voto foi a forma encontrada pelos jogadores e dirigentes para que as


decisões fossem decididas pela vontade da maioria e para que todos tivessem
o mesmo poder de intervenção nas mudanças. Enquanto no país o regime era
fascista, totalitário, militares chegando ao poder através de um golpe de
estado, e a população tão pouco podia escolher seus representantes, no
Corinthians nascia um movimento democrático que quebrava com todos limites
estabelecidos pela relação estrutural de trabalho, exploratória e alienante, de
um futebol mercantilista. Foi através do voto que se decidiu, por exemplo, que
não seriam obrigatórias as concentrações dias antes dos jogos, reconhecendo
que os jogadores conseguiam estabelecer suas regras e seu autocontrole. A
Democracia Corintiana fortalece a ideia de liberdade com responsabilidade. Ela

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retira o jogador do lugar comum que ele está encaixado. O jogador sempre
teve um médico ou um treinador ao seu lado o tempo inteiro, dizendo o que
deveria ou não fazer e como fazer. Dele estava desassociada por completo a
noção de privacidade. O atleta não conseguia mais estabelecer um limite para
aquilo que se resumia a sua vida publica ou privada, ele aparecia como figura
pública o tempo inteiro. E isso fica exposto, principalmente, quando este não
está acompanhado dos resultados esperados. Se o clube está mal, a primeira
manifestação de insatisfação é com aquele jogador que, por algum motivo, deu
uma festa em sua casa no final de semana ou então chegou atrasado ao treino.

O movimento democrático corintiano reconstrói o jogador de futebol. Lhe


são garantidos direitos como a privacidade, a tomada de decisões que estão
relacionadas ao seu corpo e preparo, e principalmente o poder do voto, que
torna as decisões representativas e democráticas, com igualdade de poder
entre todos profissionais. A democracia, mais precisamente o voto, independe
da posição ocupada pelo individuo dentro da cadeia hierárquica de dirigido e
dirigente, e traz a ideia de jogadores com autonomia e responsabilidade.
Inverte, por assim dizer, as funções na ordem social. O dirigente já não dirige
mais da mesma forma, e o dirigido agora decide quando e como vai trabalhar.
As relações de trabalho deixam de ser verticais e passam a ser horizontais.

Ainda em 82, agora na Taça de Ouro, a equipe corintiana avançava até


as semifinais, onde mediria esforços com o forte time do Grêmio. Foi no
primeiro jogo, no Morumbi, em uma derrota por dois a um, que a carreira do até
então goleiro do alvinegro paulista, César, sofreu uma mudança drástica. O
goleiro foi o grande vilão dos paulistas e sofreu diversas críticas pelo gol
tomado em um chute despretensioso do lateral Paulo Roberto, nos minutos
iniciais. Do outro lado, Leão, goleiro experiente que chegou a vestir a camisa
da seleção brasileira, se afirmava pelas defesas feitas nos chutes de Sócrates,
que apenas conseguiu diminuir a vantagem gremista no placar. No jogo de
volta, em Porto Alegre, as coisas não melhoraram. Desfalcado, o Corinthians
sofreu mais uma derrota e abandou a competição. Rafael, goleiro reserva da
equipe alvinegra nesse ano, deu depoimentos no ano de 2001. Ele comenta as
atuações polemicas do goleiro César da seguinte forma:

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“Ele jogou com três dedos luxados para não me dar a posição de volta.
E o pessoal da Democracia se reuniu, isso aí eu soube depois, soube por
outras pessoas, se me pusesse para jogar eu iria fazer sacanagem com o
clube. Peraí! Eu puto no banco, magoado, querendo jogar, os caras botam um
cara machucado para jogar. Ele fez tratamento a noite toda com a mão dentro
do balde. Eles se reuniram, eu não sei quem participou dessa reunião, eles se
reuniram com a comissão técnica e disseram que se eu jogasse iria fazer
sacanagem com os caras que estavam jogando”

Segundo o próprio jogador, isso se deu pelo fato dele ser um dos que
apoiavam a candidatura de Vicente Matheus, e que não se adequava ao certo
ao movimento democrático nos vestiários. A revista Placar, na época próxima
às partidas contra a equipe gaúcha, já noticiava alguns dos rachas do elenco.
“Dois goleiros, uma guerra”, foi a manchete responsável por publicar o fim das
relações entre os goleiros, César e Rafael, após um desentendimento em uma
excursão da equipe pela América. Contudo, é questionável a veracidade dos
fatos narrados por Rafael. O goleiro era titular e foi afastado por um
estiramento. Mesmo após sua recuperação, se manteve no banco de reservas.
Isso lhe gerava bastante incomodo, e o atleta chegou a cobrar o treinador, visto
que se achava mais bem preparado que seu substituto, César. Esses fatores,
junto com depoimentos de outros atletas presentes nas polemicas derrotas,
parecem conturbar a versão contada pelo goleiro. Zé Maria coloca – César
tinha um problema, mas ele acabou passando pela avaliação médica, e, para a
gente, o que mais valia era a avaliação médica – assim como Zenon, que
afirma ter ficado preocupado com César pela contusão, mas o mesmo parecia
se sentir seguro para jogar. Entretanto, é perceptível que, como qualquer outra
agremiação, mesmo as mais democráticas, pressupõem conflitos de
interesses. É inimaginável um cenário em que todos sejam completamente
contemplados, inclusive nos vestiários corintianos. Qualquer conflito como
esse, não invalida nenhum dos legados ou valores deixados pela Democracia
Corintiana, nem seu poder revolucionário.

Ano de copa do mundo, 1982 foi para a maioria uma grande decepção.
Sócrates viajara com a comissão brasileira e era uma das grandes esperanças
para conquista do tetra brasileiro. A seleção fez uma ótima primeira fase,

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ganhando os três jogos e passando para a etapa seguinte. Em grupos com três
equipes, o Brasil enfrentou a argentina e conquistou a vitória. Bastava ganhar
ou empatar com a seleção italiana para passar para as semifinais. Mas o time
que, até hoje, ficou marcado pela qualidade técnica e artística na forma de
jogar, esbarrou nos italianos e não avançou para a próxima fase. Foi uma das
maiores derrotas brasileiras, e teve uma passagem pouco coroada pelo belo
futebol e pelos tantos talentos presentes naquela campanha. Na volta, alguns
dias após o encerramento da copa, deu-se início ao campeonato paulista. De
fato, a eliminação precoce havia anestesiado todos brasileiros, e na estreia
corintiana, o estádio do Morumbi estava vazio. O alvinegro paulista acabou
vencendo. Apesar do cenário horrendo que a copa acabou trazendo para a
continuação dos campeonatos estaduais, Sócrates parecia encarar os fatos de
outra perspectiva. Carregado de bagagem e com muitos aprendizados novos, o
meio campista se sentia ansioso por ensinar as novas táticas aprendidas para
seus companheiros. Além disso, estava sedento por respirar os ares
democráticos que se encontravam nos vestiários corintianos. Era
extremamente animador, para o doutor, exercer a atividade do pensamento no
decorrer da partida, as intervenções quanto à maneira como a equipe se
comportava dentro das quatro linhas, e até mesmo nos planos físicos dos
atletas. O lugar de Sócrates parecia ser mesmo nos braços dos corintianos.
Nesse ano, a equipe corintiana se consagraria campeã paulista, fato que
coroava a democracia e, aos poucos, acabava com a desconfiança sobre o
movimento.

No ano seguinte, se instalou no Brasil uma crise econômica profunda.


Os clubes brasileiros perdiam renda e precisavam equilibrar as contas através
de patrocinadores, principalmente. Contudo, o interesse de investidores estava
associado estritamente aos resultados obtidos em campo, tendo em vista que,
com conquistas, maior era a exposição da marca. O Corinthians esteve
bastante próximo de fechar contrato com bancos privados, como o Bradesco.
Porém, como é de se esperar, não eram poucos aqueles que se afirmavam
contrários a implementação dos patrocinadores, e nesse sentido, a recusa era
ainda maior quando se tratava de bancos privados. Apesar disso, algumas
figuras como Wladimir se pronunciavam em favor da transformação da camisa

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em marketing e fonte de renda. Segundo ele, na Europa isso já era fato
consolidado, e tal fenômeno poderia resultar em melhores condições
contratuais. Mesmo Wladimir, se via frustrado quando se tratava de sua
remuneração, parece que o jogador havia cedido várias condições para que
sua permanência no clube fosse possível, esforço realizado principalmente por
conta de sua identificação com o clube, torcida e com o elenco. O marketing
era, portanto, bom para todos. Bom para quase todos, na verdade. O fato foi
utilizado por Vicente Matheus para mais uma investida na tentativa de impitimar
Waldemar. Vicente se aproveitava da sequência adversa de resultados, e
evocava todas as figuras que se opunham à modernização do futebol, e a
transformação da camisa de futebol em publicidade. A investida falhou, e
durante uma partida no Pacaembu, contra o Juventus da Mooca, a Gaviões da
Fiel protestava contra a volta do antigo presidente. Não existia, portanto,
estratégias que pudessem contornar sua rejeição pública, e até mesmo os
jornais queimavam por completo sua reputação. As ações do vice presidente
acabaram por encerrar de vez sua participação no clube alvinegro, e também
afastou o interesse do banco Bradesco no patrocínio. Estabeleceu-se então
outras maneiras de produzir novas fontes de renda. Especulou-se transformar
a figura de Sócrates como um grande marketing, misturando sua qualidade
técnica como jogador com sua figura de doutor. Projetou-se até camisas
especiais para o jogador, que mesclassem a manto alvinegro com o uniforme
médico. Mas a ideia não era simpatizada pelo próprio jogador. Não queria ser
consumido como mercadoria, tornar-se fonte de renda do clube através de sua
figura pública.

É interessante observar que é neste momento que se oficializa o título


de Democracia Corintiana. Em uma roda de debate, com Sócrates, Adílson e
Juca Kfouri, o jornalista faz a seguinte afirmação:

“Se os jogadores continuarem a participar das decisões no clube, se os


dirigentes não atrapalharem e se a imprensa esclarecida apoiar, veremos que
aqui se vive uma democracia, uma democracia corintiana”

Na verdade, o nome só é realmente oficializado, reconhecido pelos


canais midiáticos, nas eleições presidenciais no Parque São Jorge, em março
de 83, encabeçada pelo líder democrático Waldemar Pires. Ela só será
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estampada na camisa utilizada pelos jogadores no campo no dia 13 de março,
em uma partida contra o Vasco, pela segunda fase da Taça de Ouro. No início,
o título esteve associado diretamente à reeleição da chapa de Waldemar. É
lento o processo para que se relacione o sucesso apenas à forma de trabalho
implantado no Parque São Jorge. O nome trazia consigo um fato inédito e de
ressignificação da palavra Democracia, inserida no cenário futebolístico. Além
disso, era símbolo de uma luta por liberdade que se estendia pelo cenário
vivido fora dos campos, em um país que começava a respirar outros ares.
Movimentos sociais políticos e culturais se movimentavam em busca de
liberdade, mas ainda limitados pela violência do regime militar. Neste momento
ocorre um fenômeno de produção artística riquíssimo do ponto de vista
qualitativo e quantitativo. São inúmeras as músicas escritas e interpretadas por
artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, ou
mesmo a música “Inútil”, da banda Ultraje a Rigor, que se tornou símbolo
durante a luta pelas Diretas Já! Há um episódio emblemático em que Sócrates,
Wladimir e Casagrande comparecem ao show de Rita Lee no Ginásio do
Ibirapuera. No filme “Democracia Corinthiana”, Casagrande conta que os
jogadores compareceram ao show e esqueceram de levar uma camisa do
Corinthians para Rita, que era declaradamente corintiana e lutava pela
democracia e pela liberdade. Quando perceberam, no caminho para o palco,
pediram para um espectador que estava usando uma camisa alvinegra. Ele
deu, e então subiram no palco e a cantora vestiu o manto. Aquele encontro
simbolizou, de alguma forma, o papel que acabaram exercendo as figuras de
Sócrates, Casa e Wlad durante a luta pela democracia no Brasil. A Democracia
Corinthiana se estendeu para fora dos campos, dos vestiários, dos clubes de
futebol, e se juntou a uma série de movimentos de resistência, se alinhando
junto à luta pelo poder do voto. Voto esse que já era do conhecimento dos
atletas alvinegros, que tomavam partido das decisões coletivas através das
votações.

Foi ainda Adílson que inovou e trouxe ao futebol a presença de um


profissional da psicologia - Flávio Gikovate era o nome escolhido. Para ele – se
o futebol é jogado com os pés e com a cabeça, é preciso, além de um
ortopedista, um psicólogo – referindo-se inclusive à renovação da ideia de que

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o atleta deve exercer a atividade do pensamento, seja ela dentro ou fora de
campo. Deve-se questionar também até que ponto o papel exercido por
Gikovate não ultrapassava os limites do controle da vida pessoal, visto que
naquele elenco existiam figuras polemicas como a de Casagrande, conhecido
por sua rebeldia, seu gosto pelo Rock e sua proximidade com as drogas. Até
mesmo o doutor Sócrates, era fumante e gostava de sair para beber. Um
psicólogo poderia ser uma das formas de assumir o controle das mentes
pensantes no clube e também de garantir que, dentro de campo, essas mentes
não falhassem. Mesmo no anúncio da contratação de Gikovate no Corinthians,
Adílson afirma que “Nós achamos que já é tempo da ciência e o esporte
caminharem lado a lado”. Parece que mesmo a Democracia Corintiana
caminhava rumo à modernidade e acabava ofuscando, aos poucos, a
autonomia que antes era permitida aos jogadores. Os interesses financeiros e
as encruzilhadas pela qual esbarravam o clube, direcionavam a equipe para o
modelo tradicional, no sentido que era cada vez mais difícil de sustentar os
valores estabelecidos, e as contradições vinham à tona.

No ano de 83, em fevereiro, aconteceriam novas eleições no Parque


São Jorge. Como bem observa o jornalista Juca Kfouri, pouco antes da
votação: “As eleições corintianas do próximo dia 6 não se resumem ao Parque
São Jorge. Elas interessam ao país inteiro não só pela grandeza do alvinegro
paulista como, e principalmente, pelo que podem significar para o futebol
brasileiro” - se referindo à possibilidade de Vicente Matheus retomar o poder, e
o clube retroceder no que diz respeito à prática democrática. Já a manutenção
da chapa de Waldemar Pires, intitulada de Democracia Corintiana, seria uma
resposta significativa ao que parecia ser o surgimento de revoltas quanto à
autonomia dos jogadores. Casagrande, por exemplo, saiu vaiado em um jogo
contra a equipe do Fluminense, e caminhou para os vestiários ouvindo dizeres
como: “é maconheiro, é maconheiro”. Os jogadores eram cobrados
cotidianamente, e os resultados já não eram mais os mesmos dos anos
anteriores. No final das contas, a chapa Democracia Corintiana derrotou o
autoritarismo de Vicente, e se reelegeu com o dobro de votos em relação ao
seu adversário. Nos bastidores da eleição, correu pelos canais de comunicação
uma foto de Waldemar Pires em um aperto de mão com Wadih Helu e o

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malufista José Maria Marin. Ao certo, as coisas pareciam estar mudando de
rumo. Dois anos depois, seria Wadih o responsável por sacramentar o fim da
gestão de Waldemar, e consequentemente dar fim à Democracia Corintiana.
Outro fato que há de se destacar foram os depoimentos das figuras mais
importantes dentro do clube, como Sócrates, Wladimir e Casagrande, que
atrelaram a permanência no clube exclusivamente a reeleição de Waldemar.
Caso contrário, saíram em uma grande barca, e o elenco perderia seus
principais ídolos. Para sorte de toda torcida alvinegra, tal fato não se fez
necessário naquele momento.

Em março, após alguns tropeços na Taça de Ouro, Mário Travaglini


acabou se demitindo. Na época ninguém entendeu direito o ocorrido. Mário
parecia ser o técnico feito sob medida para o movimento democrático, já que
era mestre em escutar os jogadores e exercia o diálogo direto com todo o
elenco. Foi mesmo um mistério. Apesar da fase não ser das melhores, estava
longe de ser uma crise interna. A equipe, inclusive, começava a se recuperar
com uma vitória sobre o Bahia, no Nordeste, por dois a zero. Segundo Casão,
Travaglini não suportou o que os jornais chamavam de “liberdade excessiva”,
mesmo sendo bastante aberto a conversas e decisões coletivas. Chegou um
momento em que o técnico se sentiu incomodado com a falta completa das
noções de dirigente e dirigido, no sentido da impossibilidade de exercer seu
papel de comandante da forma como gostaria. Ao que me parece, as noções
atribuídas ao técnico não eram exatamente assertivas. Dessa forma, as coisas
pareciam piorar para o lado dos jogadores corintianos. Anarquia Corintiana era
o nome dado ao movimento que via, aos poucos, fracassar em meio ao cenário
insustentável do crescimento do futebol moderno.

Ainda na noite da vitória sobre o tricolor baiano, realizou-se uma grande


reunião para decidir as medidas a serem tomadas. A questão principal era
quanto à reposição do cargo de técnico. Foram colocadas em jogo duas
alternativas, trazer alguém de fora cuja personalidade estivesse sincronizada
com a percepção que os jogadores tinham sobre a organização do clube, ou
então eleger alguém de dentro para a vaga aberta. Foi dessa forma que Zé
Maria foi eleito, e se tornou o novo técnico do alvinegro paulista. Ao que me
parece, a equipe corintiana mais uma vez reafirmava seus valores e se

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aproximavam do modelo de autogestão nunca visto antes no futebol brasileiro.
A escolha também estava mergulhada na luta pela democracia racial, e Zé
Maria se tornou um dos poucos, se não o único técnico negro na época. A
equipe sofreu com alguns obstáculos, consequentes da escolha de Zé Maria.
Primeiro, o próprio jogador encontrou dificuldades em, repentinamente, ter que
conciliar as funções de comandante e ao mesmo tempo não se desprender de
suas características como jogador, afinal ele não havia se aposentado dos
gramados. Para além dos problemas encontrados por Zé, Sócrates relata a
dificuldade para que não se perdesse por completo uma figura de técnico
comandante, no sentido de não permitir que aquilo se tornasse uma verdadeira
Anarquia Corintiana. Não era esse o objetivo dos atletas. Vivenciavam então
uma grande gangorra, que ora pendia para um lado, ora para o outro. Ao
mesmo tempo que tudo deveria ser decidido através do voto, os personagens
da história deveriam exercer suas funções, sejam elas de técnico, preparador
físico, ou de jogador. As escalações não eram votadas, isso era papel
exclusivo da comissão técnica. Apesar disso, as contratações e dispensas
eram todas votadas. E a dificuldade era inclusive em encontrar critérios
plausíveis para tais decisões. Não era possível assegurar que as decisões
fossem tomadas racionalmente, afinal qual deveria ser o critério para demitir
um jogador? A má conduta, sua falta de técnica ou falta de higiene? Ninguém
possuía essas respostas. A equipe corintiana acabou respondendo dentro dos
gramados, e a insegurança de Zé Maria foi se perdendo conforme o time
apresentava bons resultados durante os jogos.

Enquanto as coisas pareciam caminhar para o reequilíbrio na


organização do clube, o país estava mergulhado em um clima de tensão e
medo. Manifestações no país inteiro estavam sendo marcadas em função da
grave crise econômica enfrentada pelos brasileiros. O alto índice de
desemprego parecia expor a ferida que a ditadura vinha deixando na
sociedade. Em resposta, almejando reestabelecer a ordem pública, a
repressão foi tamanha e cenas violentas foram veiculadas pelas transmissoras
televisivas. A elite se via apreensiva quanto às greves de trabalhadores e
desempregados. Em meio a tal movimentação, a Democracia Corintiana
acabou se tronando um símbolo da luta pela liberdade e também alvo da

32
maioria dos jornais conservadores, como o Estado de São Paulo. A equipe
mostrou-se bastante nervosa com tal situação. Cada jogo possuía,
simbolicamente, o valor de vida ou morte para a autogestão corintiana. A
imprensa cobrava cada vez mais o desempenho e duvidava da seriedade do
trabalho realizado no Parque São Jorge. Os jogadores conflitavam durante os
jogos e isso parecia destruir a imagem construída em relação ao ambiente
amigável dentro dos vestiários. Parecia que o universo conspirava contra o
alvinegro e não media forças para afundar de vez a equipe. Jogadores
importantes como Biro-Biro e Casagrande desfalcaram o elenco durante
algumas partidas, Biro por conta de um estiramento na coxa e Casão pela
suspeita de traumatismo craniano causado por um choque de cabeça. Foi
nesse momento que a Democracia Corintiana sofreu sua maior goleada, cinco
a um para o Flamengo de Zico. Derrota atribuída, claro, ao desgoverno no
clube. Tal derrota serviu, de fato, para desacreditar a experiência alvinegra.
Canais de comunicação sugeriam a intervenção do temido ex-presidente
Vicente Matheus. Depois disso, a equipe ainda conseguiu uma vitória para se
manter vivo na competição, mas tal sobrevivência não durou muito e terminou
em uma vitória do Goiás sobre o Guarani, em Campinas, que eliminou
matematicamente a equipe do Corinthians da Taça de Ouro. Ali também foi se
encerrando a autogestão no clube, e de fato o regime democrático haveria de
retroceder, afinal o futebol não havia aceitado de fato a nova modalidade de
organização. Em maio, contrata-se Jorge Vieira como técnico, que já havia
passado pelo Corinthians, encerrando a curta gestão de Zé Maria. Jorge
significou a retomada do regime de concentração, decisão que satisfazia, em
parte, os críticos. Jorge encontrou, ao chegar no clube, jogadores
completamente diferentes do que em sua primeira passagem. Já os jogadores
não tiveram a mesma felicidade, e pareceram infelizes quanto ao trabalho do
técnico. Também nesse período foi retirada da camisa corintiana a inscrição
“Democracia Corintiana”, fato atribuído ao então técnico, mas que na verdade
se resumia em um problema com relação à mudança no estatuto da FPF
quanto aos dizeres das camisetas. Não eram permitidos, de maneira alguma,
palavras de “ordem religiosa e política”.

33
Em julho de 83 deu-se início ao campeonato paulista. Antes ainda, no
início do ano, a equipe corintiana se reforçou em busca de novos títulos. A
chegada polêmica do goleiro Leão mexeu com a equipe. O método para
contratação não foi o acostumado por todos, já que Adílson acabou ouvindo
apenas algumas peças que já haviam jogado junto com o goleiro como
Sócrates, Wladimir e Zé Maria. O dirigente sabia da personalidade forte do
goleiro, e por isso achou que a contratação seria vetada caso sugerisse ao
grupo todo. Leão chegou ao alvinegro paulista para trazer à equipe títulos
ainda mais importantes no cenário nacional. Restaria observar então se a
qualidade do goleiro falaria mais alto que sua personalidade individualista e
desagregadora. O Corinthians teve sua estreia do paulistão no estádio do
Morumbi, contra o rival Palmeiras. Com o placar de cinco a um, a equipe
corintiana afundava de vez o palestra e conquistava um resultado que vinha na
hora certa, de forma que permitia à Democracia Corinthiana sobreviver à
expectativa pelos resultados. A sequência do campeonato não foi muito
diferente. Com vitórias sobre seus principais rivais, São Paulo e Santos, a
equipe da zona leste foi campeã do primeiro turno e ninguém podia detê-la.
Leão foi peça importantíssima para que o Corinthians conquistasse o
bicampeonato paulista no ano de 83. Na final deste campeonato, em que o
time entrou em campo para disputar a taça novamente com a equipe são-
paulina, os jogadores estenderam uma grande faixa com os dizeres “Ganhar ou
Perder, mas sempre com Democracia”. Faixa esta que virou um dos símbolos
do movimento democrático no Corinthians. Foi uma forma de reafirmar a
importância dos valores democráticos acima de qualquer resultado, assunto
que vinha tomando maiores proporções no clube, principalmente com o
investimento em contratações polemicas como a do Leão. Fato é que os
resultados serviriam também para aliviar a pressão sobre os jogadores, que já
sofriam com especulações sobre possíveis substitutos para suas posições.
Antes da estreia com a goleada sobre o Palmeiras, especulou-se fortemente a
chegada de um centroavante para assumir a vaga de Casagrande, o que
acabou ficando para trás com a sequência impressionante de bons resultados.
Nesse ano, nos meses seguintes, um dia Casagrande e alguns outros
companheiros de clube resolveram acampar no gramado do Parque Ibirapuera,
junto do movimento dos desempregados, em frente à Assembleia Legislativa,

34
colocando em foco os problemas sociais. Um ano antes, ele, junto também de
alguns outros companheiros como Wladimir, se filiaram ao Partido dos
Trabalhadores (PT). Os jogadores que em campo resolviam, fora dele não
deixavam de figurar no cenário político e social, lutando por valores
democráticos, de liberdade e de combate à desigualdade. Essas ações
simbolizavam a tomada da consciência política por parte dos atletas. Eles
passaram a participar constantemente de debates, e viraram figuras
procuradas pelos canais de comunicação. Já não era mais possível separar a
figura de atleta com a de cidadão, as coisas se misturavam. E em campo não
era diferente. Em 1982, por exemplo, a equipe corintiana entrou em campo
com camisas trazendo o informe “Dia 15, Vote”. Era o incentivo para que a
população participasse da primeira votação direta para governo estadual,
depois do golpe de 64, que aconteceria dia 15 de novembro. O objetivo era
trazer a população para as decisões políticas, para escolher seu representante,
participar das decisões do país.

Infelizmente, a chegada do goleiro Leão foi o começo da


desestruturação da Democracia Corinthiana. Sua contratação foi um verdadeiro
divisor de águas, colocou em evidência o racha do elenco e deixou em xeque
os ideais e as práticas desenvolvidas ao longo dos anos. Apesar disso, o
motivo de sua contratação foi nobre. Adílson almejava ser campeão do mundo,
transformar Sócrates no melhor do mundo, e para isso precisava de um nome
internacional, de um jogador de peso. A ideia era seguir os passos do
Flamengo, que construía uma verdadeira seleção em seu elenco. A seleção de
Zico foi bicampeã brasileira nos anos de 82 e 83, ganhou uma libertadores em
81 e foi campeã do mundo nesse mesmo ano. Fato é que a crise vivida pelo
clube, e os planos frustrados com o Bradesco, dificultaram as possiblidades de
crescimento. Leão, que estava cortando relações com o elenco gremista, seu
antigo clube, parecia peça bastante sedutora para elevar o patamar corintiano.
Apesar disso, já era de conhecimento de toda imprensa que sua personalidade
acabaria por dificultar o interesse da maioria dos clubes brasileiros. É estranho
pensar que, um goleiro de seleção como ele não tenha sido disputado no
mercado nacional após o racha com os gremistas, afinal os corintianos o
contrataram sem disputar com nenhum outro grande clube, e quase não mediu

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esforços para tal. Acima de tudo, um dos grandes problemas na transação foi
como tudo ocorreu. Adílson descumpriu com as regras estabelecidas, e não
consultou todos os atletas quanto à chegada do goleiro, o que causou ainda
mais desconfiança quanto à sua índole. Fato que também fortaleceu a ideia,
que já circulava pelas redondezas do clube, de que a Democracia Corinthiana,
era “democracia dos quatro”. Alguns jogadores, como Sócrates, negam a
informação. Ele afirma:

“Alguns companheiros afirmam que não houve, dessa vez, votação para
a contratação de um jogador como fazíamos regularmente. Não me lembro que
tenha se processado assim. Para mim, dentro das limitações de minha
memória, houve a consulta popular”

Não há ao certo nenhuma verdade absoluta. Mas caso as coisas tenham


sido feitas debaixo do tapete, parece que o Corinthians decretou nesta
transferência, o fim de sua democracia. Manter o discurso simétrico à prática é
extremamente difícil em alguns casos, e neste pareceu ser insuportável.
Adilson viu em Leão uma oportunidade única de crescer, e sua fome acabou se
sobressaindo ao discurso democrático pregado durante os anos. Ele vivia um
grande dilema entre desenvolver-se junto do modelo empresarial ou afirmar o
exercício da democracia direta. Ao que parece, talvez pela pressão externa, ele
cedeu aos interesses capitalistas. O tal erro cometido dava fim aos argumentos
daqueles que defendiam a possibilidade de conciliação entre as duas partes.
Democracia andando junto dos valores econômicos do futebol-empresa é um
cenário utópico. Mesmo Sócrates foi cumplice do que se tratou de um ato não
democrático. Ele se viu no conflito de interesses que pensou estar resolvido. O
doutor apoiou as investidas do Bradesco. Ele tinha a percepção de que os
investimentos levariam a Democracia Corinthiana a outro patamar. Mas caiu na
contradição e observou de perto o fim do movimento. Leão foi integrado ao
elenco em fevereiro, e apesar do título paulista em 83, com o tempo o goleiro
revelou o que todos temiam. Ele estava de fato disposto a minar a liderança de
Sócrates, tinha ciúmes do poder. Fez de tudo para substitui-lo por uma nova
autoridade, que na verdade acabou sendo ocupada pelo goleiro. Articulador
político dotado de bastante habilidade, com muita bagagem nas costas, ele
acabou utilizando dos mecanismos democráticos instituídos pelo movimento

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para destruí-lo. Não lhe restavam alternativas se não entrar na briga
democrática e conquistar a maioria para revogar a ordem estabelecida. Aos
poucos, o goleiro conquistou vários adeptos, por exemplo, ao regime de
concentração, fato que se tornou mais simbólico do que pode parecer, dado
que seu extermínio foi um dos pilares das mudanças significativas na
instalação da democracia no clube. Com o passar do tempo, foi se desenhando
duas turmas completamente opostas, a de Sócrates e a de Leão, fato que
rachou o elenco que antes se fortalecia pelo forte laço entre os atletas. E tal
fato parecia cada vez mais insustentável. Leão, ainda no início de 84, acaba se
transferindo para o rival Palmeiras. Nesse mesmo momento, Sócrates se
aproxima de vez do movimento pelas Diretas Já!, acompanhado de alguns
companheiros de clube. Na verdade Sócrates estava acompanhado de milhões
de gaviões apaixonados pelo clube e sedentos por liberdade, essa que esteve
o tempo inteiro se confundindo com a dos jogadores. O nexo entre as lutas
fortaleceu o processo de democratização no alvinegro, mas também gerou
conflitos e cobranças desgastantes.

Em janeiro de 84, enquanto o elenco corintiano viajava para a Ásia onde


realizaria alguns amistosos, em busca de retorno financeiro, uma multidão se
reunia na Praça da Sé, reivindicando o fim da ditadura militar e o
estabelecimento da votação direta para presidente, movimento conhecido
como Diretas Já!. Os dias eram contados para que uma grande nuvem de
liberdade cobrisse o Brasil. Na volta da viagem, a equipe logo estreou no
campeonato brasileiro, cumprindo com os jogos atrasados. A profunda crise
econômica se refletia, aos poucos, no campo esportivo. Atletas como Zico e
Falcão haviam se transferido para a Itália já que seus clubes não possuíam
condições de mantê-los. O mesmo se encaminhava para Sócrates. Nesse
momento, o doutor se viu fazendo de tudo para possibilitar sua renovação na
equipe alvinegra. Participou de propagandas, promoveu venda de produtos em
lojas, e se transformou de vez em um recurso de capitação financeira para o
clube. Caiu em uma de suas principais contradições e passou a ceder, cada
vez mais, ao futebol-empresa.

Já em campo, a Democracia Corinthiana não evitou mostrar apoio às


movimentações pelo voto direto, e durante um confronto contra a equipe do

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Joinville, os atletas entraram em campo com faixas amarelas no tornozelo,
braço, chuteira, em menção à luta do povo pela democracia. Fato é que o
elenco corintiano esteve só, em meio à omissão dos outros clubes paulistas.
Vale ressaltar que as condições não eram as mesmas. Atletas que
mencionavam desejo de aderir à faixa amarela eram imediatamente proibidos
em clubes como Atlético Paranaense. Alguns jogos depois, a equipe corintiana
viria a reclamar intensamente de um possível roubo proposital da arbitragem,
fato atribuído às manifestações publicas em apoio ao movimento das diretas.
Enquanto isso, Magrão (Sócrates) vivia um impasse que desenharia seu
destino próximo. Em parte, se via convencido de que seu lugar era no
Corinthians, e que a luta pela liberdade fazia parte de seu sangue. Porém, os
dólares o faziam balançar. Nesse momento que o atleta vivia, provavelmente, o
maior dos dilemas de sua carreira, durante uma das passeatas, o jogador subiu
no palanque junto dos companheiros Casagrande, Wladimir e Juninho, e
proclamou a seguinte frase:

“Se a emenda Dante de Oliveira for aprovada na Câmara e no Senado,


não vou embora do meu país”. No auge de sua forma técnica, ele lançava um
desafio que superava as cifras em troca dos ideais políticos. Nesse momento, o
atleta se tornou um ponto de intersecção do futebol com a política, no elo entre
o trabalho e a atividade política. Sua permanência tornou-se devidamente uma
luta não só corintiana, mas uma luta democrática. Tal fato permitia à
Democracia Corintiana se nutrir da energia revolucionária projetada no maior
dos movimentos de massa da história brasileira, cujas conquistas agora
estavam entrelaçadas.

Momentos depois, Sócrates acabou se contundindo em uma partida


recreativa de futebol de salão. Tal contusão deu a ele vinte dias sem jogos,
desfalcando a equipe corintiana para o primeiro jogo da segunda fase do
campeonato brasileiro, contra um Flamengo que havia negociado seu principal
craque, Zico, com os italianos. Apesar disso, o time carioca possuía prestígio e
era considerado favorito, mesmo com a presença de Magrão no campo.
Machucado, o doutor foi julgado irresponsável e parecia ter-se desenhado o
grande vilão da equipe alvinegra de uma hora para outra. Para completar tal
desastre, a emenda de Dante de Oliveira perdeu na votação, e não teve o

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número de votos necessários para a implementação da votação direta para a
presidência. Por conta de vinte e três votos, Sócrates tinha desenhado o fim de
sua passagem pelo alvinegro. Para o azar dos cariocas, a despedida não foi
imediata. Depois de perder o primeiro jogo, no Rio de Janeiro, por dois a zero,
a equipe corintiana desempenhou um belo futebol com os craques Sócrates e
Zenon no estádio do Morumbi. Com os dizeres – Corinthians, Já! – no placar
eletrônico do estádio, a equipe alvinegra embalou um quatro a um no forte
adversário, mostrando o quão interligadas estavam as lutas da Democracia
Corintiana e das Diretas Já!, e deu um forte golpe no autoritarismo da imprensa
esportiva que já previa sua eliminação precoce. Nos vestiários, Adílson
afirmava em tom de desabafo: “Já estamos fartos de sermos cobrados em
função de resultados dos jogos e não pelo nosso trabalho. Não vamos
responder mais a esses setores e isto está decidido pelo grupo. Chega de
colocar a democracia na parede toda vez que ocorre um situação
momentaneamente adversa”.

Não por isso a pressão sobre Sócrates diminuíra. Nas semifinais, contra
o Fluminense, os jornais tratavam de sacramentar a vitória corintiana, assim
como havia acontecido com o rubro-negro carioca. Sócrates, ainda não
recuperado, via sua lesão piorar depois da goleada em cima do Flamengo. A
equipe corintiana vai ao jogo com o que tem de melhor. Com Magrão jogando
no sacrifício, o alvinegro sofre um gol no fim do primeiro tempo. Vai para o
intervalo em desvantagem no placar. Contrariando a expectativa dos
torcedores, a equipe adota uma postura ainda mais defensiva, apostando todas
as fichas no segundo jogo e reconhecendo a falta de recursos para a
recuperação durante aquela partida. Apesar disso, acaba sofrendo mais um gol
em um contra-ataque e a partida acaba com um placar de dois a zero. Neste
momento, as críticas são incontáveis. A indignação pela escolha defensiva, a
falta de entrega e o resultado quase irreversível acabam por recair sobre os
ombros do principal personagem corintiano, Sócrates. Não é surpresa para
ninguém que as decisões fossem tomadas conjuntamente, inclusive do padrão
de organização tática. Nesse momento, tal fato é responsável por incendiar os
bastidores de Magrão, e a situação parece ser insustentável. Relatos de
companheiros reafirmam sua escolha pelo modo defensivo de jogo, e sua

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confissão parece cavar sua sepultura. O jogador de fato canalizava para si as
críticas e cobranças, e parecia perder aos poucos a imagem construída através
de sua luta pelos direitos de igualdade, liberdade e democracia. As imagens se
confundiam com a Democracia Corintiana, e o cenário parecia desestruturar
qualquer posição conquistada pelo movimento e por Sócrates. Neste momento,
o jogador tem sua transferência para a Itália selada, e acaba reforçando a
equipe da Fiorentina. Depois de um empate em zero a zero na partida de volta,
no Maracanã, Sócrates se despede do Corinthians. Ali, leva consigo a
Democracia Corintiana, que passa a ficar cada vez mais insustentável sem sua
presença, seja ela em campo, ou fora dele.

Após a despedida do doutor, o grupo se dividiu por completo. Dessa vez


o técnico, Jorge Vieira, foi o responsável por representar a oposição a
Waldemar Pires, junto de homens como Vicente Matheus e Wadih Helu. Dentre
os planos dos conservadores estava o afastamento de Casagrande do clube, e
a reconstituição dos poderes de decisão considerados determinantes para a
função dos dirigentes e técnicos. Ocorreu que Waldemar, com apoio das duas
principais torcidas organizadas do Corinthians, Gaviões da Fiel e Camisa 12, e
também de alguns outros diretores e jogadores do elenco, venceu a briga e,
inevitavelmente, anunciou o afastamento do técnico Jorge Vieira. O apoio não
se limitou às relações dentro do clube, vieram de diversos segmentos da
sociedade civil. Artistas conhecidos como Fernanda Montenegro prestaram
apoio à democracia de Adilson. O autor do livro “A Democracia Corinthiana –
práticas de liberdade no futebol brasileiro” faz uma analogia bastante
interessante da Democracia Corintiana como uma espécie de Canudos do
futebol. Representavam uma resistência completamente deslocada do cenário
federal, no sentido que os valores estabelecidos eram impensáveis quanto às
conjunturas momentâneas. De um lado temos uma comunidade independente,
que nega as prestações de contas ao estado e auto sobrevive. Do outro, uma
ditadura militar que sofre com o surgimento de um regime democrático em
meio ao cenário do futebol, que sempre esteve carregado de totalitarismo e
conservadorismo.

No ano de 85, já com o elenco um tanto quanto rachado, Adilson


Monteiro Alves não aguentou a pressão de seus adversários políticos e acabou

40
renunciando ao cargo. Casagrande foi negociado com o tricolor paulista, e a
Democracia Corintiana foi, aos poucos, se despedindo do futebol. Fato é que,
como bem afirma Sócrates, “sem os títulos, certamente a Democracia
Corintiana não teria a mesma longevidade. Era um movimento revolucionário,
isolado, num meio totalmente reacionário chamado futebol”. A derrota das
Diretas Já! assinalou as características mais inflexíveis quanto às práticas de
liberdade no futebol brasileiro. Ao invés dos jogadores decidirem cada vez mais
as intervenções que remetiam ao seu campo de atuação, foi dado ao técnico o
poder de decisão, respeitando as exigências da ordem hierárquica. A partir dos
anos 80 é perceptível a ascensão do movimento dos Atletas de Cristo, e então
hoje em dia observamos o fenômeno por completo. Deus se tornou o maior
artilheiro do futebol mundial. Além disso, o crescimento econômico dos
europeus na esfera do esporte dificultou, e muito, a permanência de
referencias como Sócrates no Brasil. O futebol brasileiro é enfim, uma máquina
provedora de promessas. A competição econômica e o sonho de ascensão
social afastaram os jogadores dos valores sociais e políticos. Hoje, o jogador
valoriza apenas seu capital e a conservação do mesmo, fato que ocasiona o
direcionamento do apoio a figuras políticas como Jair Bolsonaro.

Apesar da descontinuidade do movimento democrático, a Democracia


Corintiana carrega uma bagagem histórica e cultural, de significados que não
se desmancham em meio à modernidade. O atleta cidadão, o autogoverno e o
exercício crítico do jogador permanecem como legado e símbolo da luta pela
reunião da ética com a prática esportiva, como prática de liberdade e de
coletividade.

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“O FUTEBOL MODERNO”
Assim como outras estruturas sociais, o futebol vem sofrendo
diversas alterações em sua composição e organização. A partir dos anos 80 se
observou no mundo o crescimento de um movimento pela globalização em
todos os âmbitos, que se deu através de novos valores sociais e econômicos.
O futebol como campo cultural parece ter se adaptado de forma que, hoje em
dia, pouco podemos reconhecer suas características mais essenciais. É
necessário realizar uma separação entre o que chamamos de futebol de
várzea, ou então de futebol lúdico, do esporte que assistimos e consumimos
nos canais televisivos. A “industrialização” do futebol como fenômeno
sociocultural e econômico, marcou a perda de identidade do “futebol artístico”,
como costumávamos chamar a prática brasileira. Dele se tentou alijar o espírito
criativo e espontâneo, e hoje se encontra afastado do processo cultural,
dessacralizado e desconectado da estrutura social na qual se encontra. Apesar
disso, o futebol sempre foi um ambiente bastante conservador em sua forma de
organização. As concepções em relação ao progresso do futebol brasileiro, nas
décadas de 70 e 80, esteve embasada na reeducação dos atletas e na
exploração de seu desempenho físico dentro de campo. A disciplina tornou-se
uma característica essencial para o sucesso de um jogador, mudança que foi
instituída no período inicial da ditadura militar do Brasil, em 64. A Democracia
Corintiana teria sido de fato um ponto fora da curva nessa história. Como
explica o jornalista Hélio Alcantara em entrevista realizada no dia 18 de
setembro de 2020 para o aprofundamento dos conceitos dessa tese, cuja
íntegra estará disponível em um apêndice – “O futebol é um espaço
democrático no campo de jogo – se for bom de bola, joga preto, branco,
amarelo. No entanto, a estrutura que o organiza/comanda continua sendo
autoritária e, portanto, retrógrada (...)”. Em relação ao movimento democrático
corintiano, Hélio afirma - “A Democracia Corinthiana precisava apenas de
ajustes, mas, no cerne, foi muito bem sucedida, embora tenha se limitado ao
Corinthians.”. Para o jornalista, o movimento foi extremamente feliz em sua
causa, mas não se alastrou por conta das limitações de um futebol cujos
valores são majoritariamente autoritários e conservadores.

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Já ficou claro que o futebol em sua essência não é o “Ópio do Povo”,
apesar de existirem ocorrências em que se usou de seus instrumentos para
alienação do público. Fato é que, nos dias de hoje o esporte parece ser cada
vez mais excludente. Consequência das mudanças estruturais e fruto de
escolhas racionais, como por exemplo o surgimento de “clubes-empresa”, o
esporte é caro e elitista. Principalmente nos polos comerciais e econômicos do
trecho Rio-São Paulo, os ingressos são comercializados a preços altíssimos e
inacessíveis para suma maioria da população. A mercantilização do espetáculo
como fenômeno social provocou diversas mudanças no produto observado
dentro das quatro linhas. O princípio de rendimento físico e de superação
incorporados no comportamento dos atletas faz parte da introdução de valores
de uma sociedade industrializada e alienada. O esporte cada vez mais
burocrático é representativo de um comportamento social observável.

A inclusão do futebol pela indústria cultural como instrumento de


comercialização trouxe novas condições aos atletas. Se por um lado buscou-se
profissionalizar a categoria, tal exercício se afastou da naturalidade do corpo
físico e passou a ser vendido como bem de consumo. A Lei Pelé, por exemplo,
que marcou também a ruptura com a Lei do Passe, veio para libertar o grupo
de profissionais do esporte que se viam escravizados por seus clubes, cujo
controle exercido sobre a carreira dos atletas era abusivo. Apesar disso, a
regulamentação estava embasada em um discurso bastante integrado aos
interesses capitalistas, liberalistas e que visava a competitividade internacional.
Com o fim da Lei do Passe se esperava que, no Brasil, os atletas buscassem
lutar por seus direitos básicos e que exercessem seu papel político. Além
disso, a lei passou a exigir maior profissionalismo no que diz respeito às
tratativas e negociações entre os clubes e atletas, tornando público detalhes
que antes não eram considerados. Os clubes que até então não davam
qualquer satisfação quanto à situação de seus cofres bancários, passaram a
lidar com mais seriedade no âmbito político administrativo. No final, é possível
entender que a Lei Pelé foi importante para algumas mudanças básicas que
precisavam ocorrer no âmbito jurídico do esporte. Os jogadores que se
encontravam desamparados nesse sentido, passaram a cobrar seus direitos
contratuais. Apesar disso, a nova Lei também tinha em sua construção signos

43
da nova concepção do esporte, e já enxergava o futebol através de uma visão
liberalista e conservadora.

Podemos pensar que a Democracia Corinthiana era uma utopia em jogo.


O cenário que encontramos hoje não tem qualquer semelhança com os valores
democráticos instalados no clube do Parque São Jorge nos anos 80. O futebol
se tornou um espaço cuja resistência democrática é extinta em todas as
ocupações. Hélio explica em sua entrevista que – “Wladimir tentou usar o
Sindicato dos Atletas Profissionais para alastrar o projeto, mas encontrou muita
resistência dentro da própria classe. O medo de perder o emprego imperava e
continua imperando. Os atletas não são capazes de compreender a força que
têm. Na Argentina, os jogadores fazem greve; aqui, eles olham para o céu e
dizem que foi “Deus” quem marcou o gol. Infelizmente, não vejo resquícios da
Democracia Corinthiana nos dias de hoje. Talvez, sinais aqui e ali, como um
diálogo mais aberto com esse ou aquele técnico – mas, isso, apenas porque o
técnico é mais benevolente ou inteligente, e não por causa de uma ideia.” Seu
depoimento presume que não foi pela falta de tentativa ou de oposição. Mesmo
a Democracia Corinthiana foi responsável por formar uma geração de
jogadores e dirigentes politizados e críticos, que enxergavam no exercício
pensante a melhor forma de agir politicamente. Apesar disso, ao que nos
parece, a sociedade não acompanhou tais mudanças, pelo contrário, tentou
reprimi-la ao máximo.

Hélio também introduz a questão religiosa que tem ganhado cada vez
mais espaço no esporte. Não só no futebol, as igrejas têm ganhado um espaço
significante na política e colocando representantes em muitos espaços antes
pouco alcançados. Nos anos 80 surge um movimento organizado cujo nome
era “Atletas de Cristo”. Formado por um grupo de atletas que enxergavam no
esporte a forma melhor de expressar sua fé, teve bastante impacto nos anos
de origem. Hoje em dia o movimento organizado não conta com muitos
integrantes, apesar de não parecer. É possível observar um movimento
paralelo e não organizado que comtempla o crescimento do discurso religioso
em espaços variados da sociedade. É comum que nos deparemos com
camisas de afirmação e propagação da fé, comemorações alusivas a
comportamentos cristãos e até mesmo entrevistas consistentes com o discurso

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religioso. Fato é que enxergamos um cenário em que os atletas se despolitizam
em massa e cresce o número de adeptos da religiosidade, em sua maioria
cristã. Sobre isso, Hélio afirma – “Os “Atletas de Cristo” (com esse nome,
inclusive) surgiram para a mídia/sociedade nos anos 1980. O goleiro João
Leite (Atlético Mineiro) foi quem mais falou e fez propaganda na época. Já era
uma coisa imbecil porque completamente distante de qualquer ação política –
na verdade, era o contrário, uma postura apática, de aceitação e de
conformismo (de modo geral, era tida como “ingênua”). Passados quase meio
século, o que aconteceu no futebol acompanhou o crescimento dos
evangélicos verificado na sociedade brasileira (ao mesmo tempo em que a
educação formal do povo brasileiro se deteriorou)”. Em contrapartida, os
movimentos de luta nas torcidas organizadas vêm crescendo conforme o
futebol parece retroceder. A luta antifascista e antirracista é resultado de um
processo de afirmação dessas torcidas, que ainda em 2016 já se mostravam
bastante incomodadas com o cenário político, como as merendas nas escolas
públicas, tema de protesto da Gaviões dentro e fora dos estádios.

Mesmo em meio à pandemia, os atletas quase não se pronunciam em


relação à volta às atividades, e acabam responsáveis por infecções em massa.
O que assistimos ultimamente, na verdade, são posicionamentos vindos de
atletas e dirigentes em apoio a governantes como Jair Bolsonaro. Isso parece
ser de fato um fenômeno social. Temos clareza de que a grande maioria dos
jogadores ascendeu socialmente e mudaram suas vidas e de suas famílias
através do esporte. Tal fato justifica também seu olhar conservador quando se
trata da segurança de seu patrimônio. Bolsonaro foi eleito justamente por
defender o armamento e fortalecimento do exército, o que atrai aqueles que se
sentem ameaçados quanto à manutenção de seu extenso patrimônio
econômico. Hélio comenta este fato da seguinte maneira: “A eleição de
Bolsonaro só confirmou isso, e, certamente, influenciou no aumento de
“adeptos” no universo do futebol. A pandemia concedeu aos atletas
profissionais a oportunidade de se manifestarem publicamente. Um bom
exemplo são os jogadores do Flamengo, que concordaram em disputar uma
partida – se não estou enganado, pelo falido Campeonato Carioca – no
Maracanã, a poucos metros de distância de um hospital de campanha montado

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no Conjunto Célio de Barros, onde pessoas estavam morrendo, derrotadas
pela Covid-19. Não só jogaram, como não disseram uma só palavra a respeito.
Vai demorar”. Para acrescentar, ao ser perguntado em relação às semelhanças
entre a Democracia Corinthiana e a luta antifascista e antirracista que
presenciamos recentemente, Hélio comentou – “São momentos históricos
diferentes. Hoje eu vejo uma mediocrização da visão crítica de modo geral e
uma pauperização na discussão ideológica, excessivamente emocional, o que
impede uma compreensão precisa da realidade. Não há mais esquerda, direita
ou centro. A discussão hoje é mais centrada em atacar a corrupção e em
garantir os direitos previstos na Constituição e um mínimo de condições para
que as pessoas possam viver, e não apenas sobreviver. Do outro lado, o
populismo voltou com força. Na primeira metade dos anos 1980, a luta era
mais pelo enterro do regime militar, autoritário, e a busca pela instituição do
regime democrático. Hoje, apesar de toda essa estupidez macabra, há um
regime democrático (de péssima qualidade) – as instituições estão aí; o
problema são as pessoas que as integram...”. No fim das contas, tanto a
Democracia Corinthiana quanto as afirmações políticas por parte das torcidas
organizadas, representam resistência em relação ao cenário que se encontram,
sejam elas de momentos distintos ou não.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho de pesquisa teve como objetivo a análise do contexto


histórico durante o período da Democracia Corinthiana, podendo assim
entender o fenômeno como acontecimento sociocultural e sua relação com o
regime ditatorial de 64. Além disso, a partir das análises feitas no decorrer do
trabalho, podemos relacionar a Democracia Corinthiana com as mudanças
estruturais no esporte a partir da perspectiva das conjunturas atuais do
“Futebol Moderno”, e especialmente da passagem do esporte artístico para o
espetáculo comercial.

O futebol é um esporte cujo potencial é enorme. Encantador na sua


forma mais pura, é emocionante, agregador e às vezes democrático. Conforme
observamos nesta pesquisa, o esporte foi sendo moldado conforme se deu os
avanços no cenário mundial. O Brasil como potência acabou sendo atropelado
pela máquina econômica europeia e nossos craques passaram a deixar o país
nos primeiros anos de carreira para ir jogar em outro continente. Na Europa, o
interesse por jovens brasileiros passa pela noção de condicionamento desses
atletas aos moldes do futebol europeu, seja dentro de campo ou no
comportamento fora dele. Mundialmente, o esporte se tornou um objeto
comercial de enorme valor e atualmente envolve cifras altíssimas, super
inflacionadas. A revolução industrial e posteriormente o neoliberalismo agregou
ao esporte um sentido diferente do qual se via por exemplo na Democracia
Corinthiana. Apesar disso, o movimento democrático alvinegro já era, na
década de 80, um ponto fora da curva. Influenciado pela insatisfação
populacional com a ditadura militar, o clube alvinegro juntou a fome com a
vontade de comer, e por isso obteve sucesso. Na verdade, a equipe se
manteve nos moldes democráticos por esses quase quatro anos, dada a
conquistas de resultados. Houve uma conciliação entre desempenho e
liberdade. E este ponto é bastante determinante para entender o novo futebol.

O fator determinante para a não sobrevivência do movimento corintiano


está no novo formato do esporte. Desde o “Projeto México” a concepção do
perfil de atleta ideal é diferente da imaginada no vestiário alvinegro. A

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exploração da condição física do atleta e a ideia de superação dos limites do
corpo desse profissional, que hoje conduzem o desempenho dos clubes dentro
de campo, impossibilitaram qualquer incentivo ao exercício crítico. A
comercialização trouxe para o espetáculo uma série de cobranças por
desempenho, obrigando então o atleta a desempenhar em alto nível durante
todo o tempo, inclusive fora de campo. O controle sobre as ações desses
profissionais fora do tempo de trabalho aumentou, e este passou a ser
controlado em todos os níveis. Hoje o atleta é regrado por sua profissão, e ele
se encontra subordinado a negar seu próprio corpo, já que este é o seu objeto
de trabalho. A ideia de democracia, de exercício crítico ou de qualquer outra
intervenção política dos atletas no esporte se encontra asfixiada pelo sistema
conservador que é o “futebol moderno”. O crescimento do número de jogadores
adeptos da religião cristã também é reflexo de uma sociedade regrada pelos
valores de Deus. A religiosidade no futebol também assume um papel
importante no que diz respeito à despolitização dos atletas, e na forma como
esses enxergam o campo de jogo.

Talvez seja por todos esses fatores que não encontramos nenhum
resquício da Democracia Corinthiana, e também por isso não existem mais
figuras como o doutor Sócrates, Wladimir, Casagrande, Adilson Monteiro Alves,
entre outros que conseguiam exercer seus papéis políticos na sociedade e
praticar o esporte profissionalmente.

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APÊNDICE

Entrevista com o jornalista e pesquisador Hélio Alcântara, realizada no


dia 18 de Setembro de 2020, pela plataforma do e-mail.

DEMOCRACIA CORINTHIANA

1) Para você, qual o significado da Democracia Corinthiana para o futebol


brasileiro?

Foi um evento solitário que durou 41 meses (Nov/81 a Mar/85), ou três


anos e cinco meses. Infelizmente, não deixou sementes – se deixou, ninguém
as plantou na sequência. Acho que o único legado foi mostrar ao “mundo do
futebol” e ao país que é possível se trabalhar e alcançar alta produtividade com
liberdade, apresentando a própria opinião, discutindo e fazendo autocrítica. O
problema é que o projeto não se alastrou, especialmente por se encontrar no
meio de uma estrutura retrógrada sólida, baseada no autoritarismo (dos
dirigentes) e no medo (dos atletas). A Democracia Corinthiana (atenção, ela
ganhou esse nome apenas no 2º semestre de 1982, por uma visão de
Washington Olivetto, um dos grandes publicitários do país, depois que ele
pescou uma frase dita pelo jornalista Juca Kfouri, num debate realizado na
PUC-SP) foi importante porque escancarou essa estrutura vigente e propôs
uma nova maneira de trabalho. Mas não foi algo do tipo “vamos fazer uma
democracia aqui dentro, assim, assado, etc.” – a coisa se desenvolveu
naturalmente, na medida em que as situações se apresentavam e o grupo
tinha de decidir sobre elas.

O projeto enfrentou todo tipo de preconceito, a começar pela própria mídia


jornalística (apenas alguns jornalistas, de órgãos de imprensa poderosos, se
posicionaram a favor), que bombardeava o movimento a cada derrota. O país
já era profundamente conservador naquela época... rs

Uma das contribuições da Democracia Corinthiana, a meu ver, foi na


questão da Lei do Passe, que escravizava o jogador (este só se “livrava do
clube” aos 32 anos). A discussão já se desenrolava antes mesmo do projeto
surgir no Parque São Jorge, mas ganhou mais corpo com ele.

49
2) O que a contratação do goleiro Leão representou para o clube? A forma
como a contratação foi feita pode ter desencadeado a ruptura no grupo?

Começo por responder à segunda pergunta. Sim, o então diretor de futebol


Adílson Monteiro Alves decidiu sozinho fazer daquela maneira, ou seja, escutar
apenas os que já haviam trabalhado com Leão (Wladimir, Sócrates, Zé Maria,
Mario Travaglini e Hélio Maffia). Não avisou os demais, que se sentiram
traídos, incluindo o psicanalista Flávio Gikovate – irritado, se afastou do clube e
do diretor por alguns meses. A ação de Adílson criou um clima de
desconfiança no elenco. Acho que, a partir daquele momento, Wladimir e
Sócrates ficaram “levemente carimbados” (se é que isso é possível) por alguns
jogadores como “amigos do diretor”, criando uma diferenciação na relação
entre os atletas (“são eles que mandam”) e com a direção de futebol.

Leão, com seu currículo, nome pesado e a fama de


personalista/individualista, tentou se impor pela confrontação. De cara, recebeu
um “chega pra lá” das lideranças (“aqui se vota tudo”). Ao perceber que o jogo
eram as votações (sobre quase tudo), “jogou o jogo”. E atraiu os atletas mais
novos, aqueles que estavam descontentes com a reserva ou, ainda, os que
não queriam saber dessa história de “se responsabilizar pelos próprios atos”.
Não se esqueça de que jogador de futebol gostava (ainda gosta?) de um
técnico-pai protegendo-o e dando ordens. Juntando tudo isso, a atuação de
Leão criou, sim, uma divisão no elenco. Mas, em minha opinião, ela foi
importante para que as lideranças se posicionassem e vencessem as
discussões por meio dos argumentos. Leão era individualista, antidemocrático
e líder praticamente em todos os times que defendeu – ver a liderança nas
mãos de um quarteto (Wladimir, Sócrates, Zé Maria e Casagrande) do qual
não fazia parte o incomodava profundamente.

3) Para você, qual a importância do movimento em relação à


redemocratização do país? Como se dava a junção da luta corintiana com
a briga pelas diretas já!? Ambas as lutas se fortaleceram dessa “mistura”
saudável?

No final de outubro de 81 (chegada de Travaglini e de Adílson ao


Corinthians), o Brasil atravessava uma crise econômica profunda. A inflação

50
galopava, o país buscava mais dinheiro do Fundo Monetário Internacional
(FMI), e greves e manifestações pululavam em vários cantos, mais
notadamente em São Paulo e Rio de Janeiro. Afora isso, a ditadura militar já se
mostrava enfraquecida, e a população brasileira (trabalhadores comandados
por Lula, líder operário; e classe média e classe média-alta influenciadas por
uma elite de esquerda, que pensava) nutria o desejo de voltar a escolher seus
governantes. Então, na verdade, quando o Adílson propôs aos jogadores
trabalhar de um modo diferente, as condições para isso ocorrer já existiam,
mas não estavam à mostra. Mesmo assim, foi curioso ver o surgimento de um
movimento libertário em plena ditadura. E, mais curioso ainda, dentro de um
clube de futebol de massa (o segundo brasileiro em número de torcedores e
um dos maiores do planeta).

Houve uma confluência na luta pelas “Diretas Já!”. A energia que rolava
no país era de uma onda democrática, tanto que a filosofia de trabalho dentro
do Corinthians ganhou apoio de inúmeros setores da sociedade civil (artistas,
filósofos, publicitários, jornalistas de outras áreas). O projeto desenvolvido no
Parque São Jorge vinha desde outubro/81 (o movimento pelas “diretas”
explodiu nos primeiros quatro meses de 1984) e já havia “conquistado” o
bicampeonato paulista e também o pensamento progressista de modo geral.
Dessa forma, contribuiu para a redemocratização do país.

4) Às vezes nos deparamos com depoimentos que falam da “democracia


dos quatro” para representar a insatisfação com o movimento. Qual sua
visão em relação aos que se opuseram a tal organização?

Parte dessa pergunta foi respondida anteriormente. Os atletas que só


queriam “jogar futebol” não sabiam como trabalhar em meio a tanta liberdade –
não estavam acostumados a debater e a fazer escolhas na vida, muito menos
na profissão. Não se esqueça de que a esmagadora maioria dos jogadores não
conseguia concluir os estudos (muitos sequer passavam do antigo Primário –
atual Fundamental 1), comprometendo sua visão crítica sobre o mundo e a
própria realidade. E, desde o nascimento, viveram sob um regime repressivo.

51
Wladimir, Sócrates, Zé Maria e, mais tarde, Casagrande, tinham um
nível intelectual melhor. O primeiro gostava de ler, tinha estudado em duas
escolas progressistas (GEPE e Colégio de Aplicação) e se expressava bem; o
segundo era médico formado e, a bordo de muitas contradições, dizia o que
pensava; o lateral Zé Maria era extremamente centrado; e, afinal, Casagrande
era um garoto incendiário, que dizia/fazia o que queria e não se importava com
as consequências (me arrisco a dizer que ele não tinha consciência delas).

Na verdade, essa expressão “democracia dos quatro” variou muito


especialmente no ano de 82. Ela podia ser dos quatro jogadores, podia ser dos
cinco (os quatro mais Adílson), dos oito (os cinco, mais Gomes, Eduardo e
Daniel Gonzalez)... Em outras palavras, é um carimbo pejorativo que esconde
eventualmente um ciúme em relação à aproximação desses atletas com a
direção do clube. O que ocorre é que esses jogadores (os quatro primeiros)
eram os mais atuantes e mais bem articulados, procurados pela imprensa, etc..
Eram os líderes, de fato.

No entanto, não posso deixar de observar que houve escorregões, fruto


das contradições inerentes a uma democracia, tanto que a atuação de Leão
incomodou. Em alguns questionamentos, o goleiro tinha razão.

5) Como se davam as relações entre clubes e seus patrocinadores


naquela época? Existe uma linha tênue entre a organização democrática
dentro do clube e o assédio financeiro, ou tais aspectos eram
conciliáveis?

As primeiras ações de marketing ou de patrocínio nas camisas dos


jogadores aqui no Brasil ocorreram em 1982, exatamente no primeiro ano da
Democracia Corinthiana. Era algo novo e combatido pelos mais “românticos”
ou conservadores, que não aceitavam “manchar” a camisa das equipes. As
bilheterias dos jogos eram a principal fonte de renda dos clubes (o Corinthians
costumava levar média de 30 mil torcedores contra times pequenos e de 100
mil nos clássicos) – grande parte dos salários dos jogadores era paga com
essa grana.

52
A proposta de se trabalhar abertamente, feita por Adílson Monteiro e
encampada por Wladimir, Sócrates e Zé Maria, com a anuência do técnico
Mario Travaglini, não surgiu atrelada a qualquer preocupação de ordem
financeira. O objetivo inicial era fazer o time voltar à Taça de Ouro (havia caído
para a Taça de Prata, 2ª divisão do nosso futebol) e disputar os títulos, mas
trabalhando coletivamente, na base do debate e da autocrítica. A primeira
instituição a aparecer para fazer um grande aporte de dinheiro foi um banco –
a coisa não se concretizou apenas porque os dirigentes (situação x oposição)
quebraram o pau e a “contenda” foi parar nos jornais. O banco desistiu. Não
quis atrelar sua imagem a uma balbúrdia política. Mas não teve nada a ver com
ser democrático ou não, e sim com vencer e aparecer na mídia.

6) Você acha que existem semelhanças nas narrativas da Democracia


Corinthiana e na luta Antifascista e Antirracista vista nos últimos meses?

São momentos históricos diferentes. Hoje eu vejo uma mediocrização da


visão crítica de modo geral e uma pauperização na discussão ideológica,
excessivamente emocional, o que impede uma compreensão precisa da
realidade. Não há mais esquerda, direita ou centro. A discussão hoje é mais
centrada em atacar a corrupção e em garantir os direitos previstos na
Constituição e um mínimo de condições para que as pessoas possam viver, e
não apenas sobreviver. Do outro lado, o populismo voltou com força. Na
primeira metade dos anos 1980, a luta era mais pelo enterro do regime militar,
autoritário (redundância? rs), e a busca pela instituição do regime democrático.
Hoje, apesar de toda essa estupidez macabra, há um regime democrático (de
péssima qualidade) – as instituições estão aí; o problema são as pessoas que
as integram...

7) Na década de 70 e 80 vivemos o ápice da luta política, fosse ela pela


liberdade ou pela democracia. Hoje observamos um movimento crescente
em relação aos “Atletas de Cristo”, cujo papel político se resume na
expressão do discurso religioso. Qual sua visão sobre essa
transformação do perfil de atleta? Será que teria alguma relação dessas
mudanças com a eleição de Jair Bolsonaro?

53
Os “Atletas de Cristo” (com esse nome, inclusive) surgiram para a
mídia/sociedade nos anos 1970. O goleiro João Leite (Atlético Mineiro) foi
quem mais falou e fez propaganda na época. Já era uma coisa imbecil porque
completamente distante de qualquer ação política – na verdade, era o
contrário, uma postura apática, de aceitação e de conformismo (de modo geral,
era tida como “ingênua”). Passado quase meio século, o que aconteceu no
futebol acompanhou o crescimento dos evangélicos verificado na sociedade
brasileira (ao mesmo tempo em que a educação formal do povo brasileiro se
deteriorou). A eleição de Bolsonaro só confirmou isso, e, certamente,
influenciou no aumento de “adeptos” no universo do futebol.

8) A volta do futebol durante a pandemia está completamente ligada a


grave crise financeira do futebol brasileiro. Qual sua visão em relação a
comercialização do esporte e o cenário precário no qual os atletas se
encontram?

É absurda a volta do futebol sem a rigidez nos protocolos de proteção aos


atletas e a todos os personagens desse universo. A CBF continua sendo
comandada por gente ligada a Marco Polo Del Nero (Rogério Caboclo), da
mesma estirpe de João Havelange, Ricardo Teixeira, José Maria Marin e
outros. Não podemos esquecer que no sistema capitalista manda o “deus
capital”, e não o ser humano.

Quanto à situação financeira precária dos clubes, enquanto os sucessivos


governos passarem a mão na cabeça dos dirigentes (perdoando dívidas
gigantescas), estes continuarão a roubar (vide Cruzeiro, de Belo Horizonte) ou,
no mínimo, a protelar o saneamento das dívidas. Os clubes têm de se
transformar em empresas, e seus dirigentes devem ser remunerados, como
qualquer profissional.

9) Por fim, você enxerga, hoje em dia, alguma característica remanescente


da Democracia Corinthiana? O futebol é um espaço democrático?

O futebol é um espaço democrático no campo de jogo – se for bom de bola,


joga preto, branco, amarelo. No entanto, a estrutura que o organiza/comanda
continua sendo autoritária – portanto, retrógrada, já que tivemos um modelo (a
própria Democracia Corinthiana) que se mostrou positivo há quase 40 anos. A

54
Democracia Corinthiana precisava apenas de ajustes, mas, no cerne, foi muito
bem sucedida, embora tenha se limitado ao Corinthians.

Wladimir tentou usar o Sindicato dos Atletas Profissionais para alastrar o


projeto, mas encontrou muita resistência dentro da própria classe. O medo de
perder o emprego imperava e continua imperando. Os atletas não são capazes
de compreender a força que têm. Na Argentina, os jogadores fazem greve;
aqui, eles olham para o céu e dizem que foi “Deus” quem marcou o gol.
Infelizmente, não vejo resquícios da Democracia Corinthiana nos dias de hoje.
Talvez, sinais aqui e ali, como um diálogo mais aberto com esse ou aquele
técnico – mas, isso, apenas porque o técnico é mais benevolente ou
inteligente, e não por causa de uma ideia.

A pandemia concedeu aos atletas profissionais a oportunidade de se


manifestarem publicamente. Um bom exemplo são os jogadores do Flamengo,
que concordaram em disputar uma partida – se não estou enganado, pelo
falido Campeonato Carioca – no Maracanã, a poucos metros de distância de
um hospital de campanha montado no Conjunto Célio de Barros, onde pessoas
estavam morrendo, derrotadas pela Covid-19. Não só jogaram, como não
disseram uma só palavra a respeito. Vai demorar... rs

Vitor, espero tê-lo ajudado. Caso algo não tenha ficado claro, me ligue.

Um esclarecimento: mantive a grafia “Democracia Corinthiana” porque foi


assim que a expressão foi parar na camisa dos atletas e ficou conhecida. Mas
o correto, gramaticalmente, é “democracia corintiana”.

“WLADIMIR – O Capitão da Democracia Corinthiana” deve sair até o fim do


ano. Quando for o momento, conto também com você para divulgá-lo. Abraço!

Hélio

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