GOMES Nilma Lino. O Combate Ao Racismo e A Descolonizao Das Prticas Educativ

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http://doi.org/10.7213/1980-5934.33.059.

DS06
ISSN 1980-5934

O combate ao racismo e a descolonização das


práticas educativas e acadêmicas
The fight against racism and the decolonization of
educational and academic practices

NILMA LINO GOMES a

Resumo
O processo de descolonização das mentes e das práticas como ação de combate ao
racismo nas sociedades é tenso e conflituoso. A educação talvez seja o espaço em que
essa tensão é mais visível. Há apagamentos históricos e epistemológicos presentes nos
currículos, nas propostas e nas práticas educacionais, tanto na Educação Básica quanto
no Ensino Superior que só serão superados se o campo educacional e a produção
científica compreenderem-se como espaços que precisam descolonizar-se. Esse artigo
discute o desafio da Educação Básica e do Ensino Superior na realização de práticas
pedagógicas e epistemológicas que combatem o racismo e a desigualdade racial na
escola e na universidade. Compreende esse processo como parte da descolonização das
mentes, do conhecimento e dos currículos, tão necessários em países com histórico
colonial e estruturalmente desiguais como é o caso do Brasil. Dialoga com o contexto
político antidemocrático, instaurado no país após as eleições de 2018, com a ascensão
da extrema direita ao poder e o seu processo de desmonte das políticas sociais e de
igualdade racial implementadas pelos governos anteriores de cunho progressista.
Questiona até que ponto o antirracismo se faz presente na sociedade e na educação
brasileira, revelando um movimento contraditório presente nas ações e no imaginário
social diante do racismo: as pessoas se mostram indignadas, porém, tendem a
permanecer imóveis diante de um fenômeno tão perverso. Discute, ainda, que o
combate e a superação ao racismo parecem uma boa proposta para colocar a
descolonização em ação, tanto na sociedade quanto na educação, desde que não se
invisibilize e silencie as negras, os negros e o Movimento Negro – suas lutas, memórias
propostas políticas alternativas –, enquanto os principais sujeitos sociais e coletivos que
nos reeducam nesse processo e com os quais temos muito ainda a aprender.

a
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Doutora em Antropologia
Social/USP, e-mail: [email protected]

Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 33, n. 59, p. 435-454, mai./ago. 2021


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Palavras-chave: Racismo. Descolonização. Currículos. Educação básica. Ensino


superior.

Abstract
The process of decolonizing minds and practices as an action to combat racism in
societies is tense and conflicting. Education, perhaps, is the space where this tension is
most visible. There are historical and epistemological erasures present in curricula,
proposals and educational practices, both in Basic Education and in Higher Education
that will only be overcome if the educational field and scientific production are
understood as spaces that need to be decolonized. This article discusses the challenge
of Basic Education and Higher Education in carrying out pedagogical and epistemological
practices that combat racism and racial inequality at school and university. It
understands this process as part of the decolonization of minds, knowledge and curricula,
which are so necessary in countries with colonial and structurally unequal backgrounds,
such as Brazil. It dialogues with the anti-democratic political context, established in the
country after the 2018 elections, with the rise of the extreme right to power and its
process of dismantling the social and racial equality policies implemented by previous
progressive governments. He questions the extent to which anti-racism is present in
Brazilian society and education, revealing a contradictory movement present in actions
and in the social imaginary in the face of racism: people are indignant, however, they
tend to remain immobile in the face of such a perverse phenomenon. It also argues that
combating and overcoming racism seems to be a good proposal to put decolonization
into action, both in society and in education, as long as black women, blacks and the
Black Movement are not made invisible and silent - their struggles, memories of
alternative political proposals - while the main social and collective subjects that re-
educate us in this process and with which we still have a lot to learn.
Keywords: Racism. Decolonization. Curricula. Basic education. Higher education.

Introdução

O processo de descolonização das mentes e das práticas como ação de


combate ao racismo nas sociedades é tenso e conflituoso. A educação talvez seja o
espaço em que essa tensão é mais visível. Há apagamentos históricos e
epistemológicos presentes nos currículos, nas propostas e nas práticas educacionais,
tanto na Educação Básica quanto no Ensino Superior, que só serão superados se o

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campo educacional e a produção científica compreenderem-se como espaços que


precisam descolonizar-se1.
Quando a educação insiste em reforçar a ideia de civilização como algo próprio
do mundo Ocidental; quando trabalha com a lógica de que a ciência ocidental é a
única forma de conhecimento legítimo e validado; quando subjuga os conhecimentos
produzidos no eixo Sul do mundo a meros saberes rudimentares; quando reforça
valores, idiomas, padrões estéticos e culturas ocidentais e urbanas, apagando a
diversidade de formas de ser e de constituição linguística, de formas de Estado, de
processos culturais e políticos; quando despreza os conhecimentos locais, não
ocidentais, as culturas produzidas pelos setores populares, as religiões que não se
baseiam na visão cristã de mundo e a diversidade de heranças e memórias, ela atua de
forma excludente e violenta. E ao fazer isso, organiza-se, reproduz e perpetua
a colonialidade.
Segundo Grosfoguel (2019, p. 59):

[...] Contrário ao pensamento de que o racismo é uma ideologia ou uma superestrutura


derivada das relações econômicas, a ideia de ‘colonialidade’ estabelece que o racismo é
um princípio organizador ou uma lógica estruturante de todas as configurações sociais e
relações de dominação da modernidade. O racismo é um princípio constitutivo que
organiza, a partir de dentro, todas as relações de dominação da modernidade, desde a
divisão internacional do trabalho até as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero,
religiosas, pedagógicas, médicas, junto com as identidades e subjetividades de tal
maneira que divide tudo entre as formas e o seres superiores (civilizados, hiper-
humanizados, etc, acima da linha do humano) e outras formas de seres inferiores
(selvagens, bárbaros, desumanizados, etc., abaixo da linha do humano).

Entender o racismo como um princípio organizador, na perspectiva apontada


por Grosfoguel (2019), é construir um processo de descolonização na educação. Mas
estamos muito mais próximos de uma indagação discursiva do processo de
descolonização na sociedade e na educação do que realmente de sua efetivação como
políticas sociais e educacionais, currículos e práticas. O combate e a superação ao
racismo parecem uma boa proposta para colocar a descolonização em ação, tanto na
sociedade quanto na educação, desde que não se invisibilize e silencie as negras, os

1As reflexões desse artigo fazem parte do projeto de pesquisa: “Por uma pedagogia pós-abissal:
movimento negro e conhecimentos emancipatórios” (Bolsa de Produtividade em Pesquisa, CNPQ,
2018-2021).

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negros e o Movimento Negro — suas lutas, memórias propostas políticas alternativas


—, enquanto os principais sujeitos sociais e coletivos que nos reeducam nesse
processo e com os quais temos muito ainda a aprender.
Como nos alerta Meneses (2009, p. 12), “se aceitamos que a descolonização é
o questionar do impacto das relações de violência e exploração, as nossas heranças e
memórias estão ainda muito aquém de sua descolonização”.
A descolonização das mentes insta-nos a construir práticas pedagógicas e
epistemológicas antirracistas. Consiste em uma tomada de posição emancipatória
diante de si mesmo e do outro, bem como na desconstrução da lógica racista presente
na nossa socialização e nos processos formativos construídos na vida privada
e pública.
Indago se hoje, principalmente, após a sanção da Lei nº 10.639/03, que alterou
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e introduziu a obrigatoriedade do
ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas da Educação Básica,
a formação inicial e continuada de professoras e professores tem proporcionado aos
docentes maior consistência pedagógica, didática e teórica no trato com a questão
racial e às situações de racismo na escola.
Indago se a maior presença de estudantes e docentes negras e negros nos
cursos de licenciatura, com uma consciência racial e política afirmativa do seu próprio
pertencimento racial, tem contribuído para a descolonização das práticas educativas.
Questiono, também, se os currículos da escola básica e da universidade, nesse século
XXI, têm avançado na inclusão do antirracismo como princípio pedagógico e político
das suas bases teóricas, das práticas e da gestão.
As mudanças que poderão advir de uma tomada de posição, na formação de
professoras e professores sobre a questão racial e o combate ao racismo, fazem parte
do processo de descolonização das mentes e do currículo, tão necessário à escola
básica e à universidade em que cada vez mais vem crescendo o número de estudantes,
docentes e familiares que se orientam pelo fundamentalismo religioso e o
conservadorismo político.
Um dos avanços da educação, ao compreender e se posicionar contra o
racismo e seu enraizamento nas sociedades capitalistas no mundo, em especial no
Brasil, está na paulatina compreensão de que é contraproducente estabelecer

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hierarquias entre raça, gênero e classe. Assim, é urgente entender a imbricação


dessa tríade.
Os estudos de feministas negras, tais como Crenshaw (2002), Collins (2019) e
Akotirene (2019), ajudam a compreender a interseccionalidade de raça, gênero e classe
e como ela afeta, com contornos e formas diferenciadas, a vida das mulheres negras
e não negras e da classe trabalhadora. A interseccionalidade nos permite partir da
avenida estruturada pelo racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, em seus
múltiplos trânsitos, para revelar quais são as pessoas realmente acidentadas pela matriz
de opressões (AKOTIRENE, 2019, p. 47).
Ao compreendermos o racismo e seus efeitos nesse cruzamento interseccional,
damos mais um passo na descolonização das mentes, do conhecimento e
dos currículos.

Indignados, porém, imóveis

Não há como negar que, frente à exclusão e desigualdades sociais que atingem
a maioria da população brasileira, muitas brasileiras e brasileiros têm manifestado um
sentimento de indignação crescente. Isso também acontece no campo da educação,
porém, por mais contraditório que possa parecer, essa indignação não é a mesma
quando nos referimos à perpetuação do racismo.
Situações como o genocídio da juventude negra; o feminicídio que assola a
vida das mulheres negras; as balas perdidas que só encontram os corpos negros das
vilas e favelas; a violência policial, que historicamente marca a vida da população negra
são noticiadas cotidianamente pela mídia, denunciadas pelos movimentos sociais,
discutidas pelas influenciadoras e pelos influenciadores digitais negros e não negros
comprometidos com a luta antirracista. Muitas pessoas interagem nas redes sociais
escrevendo comentários de espanto, de solidariedade, de indignação, mas nada muda
na realidade dura de violência vivida pelas negras e negros no Brasil.
De acordo com Bueno e Lima (2020), coordenadores do 14º Anuário
Brasileiro de Segurança Pública pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em
parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Brasil, quando
comparado a outros países, é o que mais mata crianças. Em 2019, segundo dados do

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Anuário, quase 5 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta e


intencional e quase 26 mil sofreram estupro. Chama a atenção quando os dados são
desagregados por cor/raça: do total das quase 5 mil crianças e adolescentes, 75% que
representavam os negros de 0 a 19 anos (o anuário segue o limite de idade
recomendado pela Organização Mundial de Saúde) foram vítimas de mortes violentas
intencionais. Além disso, em todas as faixas etárias, o número de vítimas negras é
maior que o número de vítimas brancas.
Em artigo publicado em conjunto com a professora Cristina Teodoro é
afirmado, enfaticamente, que:

As crianças negras são consideradas fora do padrão que privilegia uma concepção
universal de infância. Por isso, a sua morte violenta não choca, não causa indignação
social e política! Como bem diz a filósofa Judith Butler, é necessário recuperar a
capacidade HUMANA, de não apenas não “deixar morrer”, mas, de se indignar pela morte
do outro, entrar em luto por aqueles que não conhecemos, por aqueles que não têm os
nomes nas mídias. Um luto coletivo, político, que reconhece que todas as vidas são
viáveis e importantes, por isso, devem ser choradas, igualmente.
É necessário chorar e se indignar pelas crianças que tiveram suas vidas ceifadas pelo
racismo e pela insegurança pública. Choramos e nos indignamos por todas elas. Um choro
político que mistura dor, indignação, denúncia e resistência (GOMES; TEODORO, 2020,
p. 2).

O que essa situação alarmante revela? Que as desigualdades raciais fazem parte
da estrutura desigual da sociedade brasileira e foram naturalizadas pelo racismo e pelo
capitalismo, além de estarem imersas nas relações de poder. As pessoas negras não
são marcadas somente pelo seu lugar na desigualdade de classe, mas são consideradas
e tratadas como inferiores e não humanas devido ao peso do racismo. Isso as torna
muito mais do que vulneráveis: são tratadas e consideradas como não humanas e, por
isso, passíveis de violência e extermínio.
Descolonizar a naturalização da violência implica compreender como ela opera
de forma mais pesada e cruel sobre os sujeitos negros, ou seja, aquelas e aqueles que
mais necessitam de proteção do Estado, em especial, as crianças, os adolescentes e
jovens negros.
De acordo com o Atlas da Violência 2020, coordenado por Cerqueira e Bueno
(2020), os casos de homicídio de pessoas negras (pretas e pardas) aumentaram em
11,5% de 2008 a 2018, enquanto a de não negros caiu 12%, no mesmo período. Ainda
segundo a pesquisa, ao todo, os negros somam 75,9% dos brasileiros assassinados no

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período analisado, em um cenário em que mortes de mulheres negras e jovens negros


e negras lideram os casos. Tais dados apenas reforçam e deixam transparecer o
racismo estrutural que ainda perdura no país.
A pesquisa analisou, ainda, os efeitos da desigualdade de raça no Brasil e
concluiu que o país precisa avançar, destacando que os homicídios de adolescentes e
jovens atingem, especialmente, os moradores homens de periferia e áreas
metropolitanas dos centros urbanos.
Segundo Cerqueira e Bueno (2020, p. 31):
de acordo com o Atlas da Violência de 2019, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídio
eram pretas ou pardas. Entre os adolescentes e jovens de 15 a 19 anos do sexo
masculino, os homicídios foram responsáveis por 59,1% dos óbitos.

Cerqueira e Bueno (2020, p. 48) afirmam: “quando o assunto é vulnerabilidade


à violência, negros e não negros vivem realidades completamente distintas e opostas
dentro de um mesmo território”.
Quando se articula racismo, LGBTfobia e violência, os resultados são também
assustadores. A publicação da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do
Brasil (ANTRA, 2018, p. 72) traz um dado alarmante: “82% dos casos foram
identificados como pessoas afrodescendentes. Esse dado revela o quanto a
branquitude, associada à cisgeneridade, permite a morte de determinadas vidas
quando não correspondentes ao padrão cis-branco-heteronormativo”. O estudo, que
reúne dados consolidados sobre transfobia no Brasil e entrevista vítimas da violência
transfóbica, ressalta que além do preconceito de identidade de gênero, a população
LGBTQIA+ no Brasil sofre com o fator racismo.
No mês de maio de 2020, muitas pessoas foram às ruas do Brasil entoando o
lema “vidas negras importam”. Indignadas com as cenas de violência do assassinato
de George Floyd, entidades do Movimento Negro e partícipes da luta antirracista no
Brasil manifestaram, à época, estranheza diante do fato de que essa mesma comoção
e indignação pública não são manifestadas pela nossa sociedade diante do genocídio
da juventude negra, da violência policial em relação às pessoas negras e do racismo
no mercado de trabalho, situações que fazem parte do cotidiano de negros e negras
em nosso país.

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Por mais que o discurso antirracista tenha aumentado nas redes sociais entre
políticos, artistas, escritores, religiosos e em manifestações públicas nas ruas, ainda é
só comoção, com poucas reações efetivas de mudança em relação à vida, saúde,
trabalho e segurança da população negra.
Reconheço que esse sentimento sinaliza algo diferente. Mas a comoção não é
suficiente para alterar estruturalmente a situação de violência, exclusão e abandono
historicamente vivida pela população negra brasileira.
A expectativa (e esperança) é que estejamos diante de uma crescente reação
antirracista na sociedade que envolva muitos sujeitos, negros e não negros,
organizações progressistas, mídias alternativas, movimentos sociais e instituições
democráticas. E que esse processo ajude a desencadear, tanto no público quanto no
privado, um maior compromisso do país com o combate ao racismo estrutural e
institucional alicerçado na construção de alternativas políticas, sociais, econômicas,
culturais e educacionais para a sua superação. Talvez os tempos antidemocráticos que
vivemos ajudem a despertar nas pessoas e nas organizações progressistas que não é
possível reconstruir a democracia e implementar políticas antirracistas e de igualdade
racial sem lutar contra o racismo.
Os avanços que fizemos na construção das políticas de igualdade racial, tais
como, Lei nº 10.639/03 (alteração da LDB ao introduzir a obrigatoriedade e história
e cultura afro-brasileira e africana nas escolas da Educação Básica); Decreto nº
4887/03 (regularização dos processos de reconhecimento e titulação dos territórios
quilombolas); Lei nº 12.288/10 (Estatuto da Igualdade Racial); Lei nº 12.711/12 (Lei
de cotas sociais e raciais nas Instituições Públicas de Ensino Superior); Lei nº
12.990/14 (Lei de cotas raciais nos concursos públicos federais); Política Nacional de
Saúde Integral da População Negra, dentre outros) são extremamente relevantes, pois
ajudaram a introduzir a questão racial no campo dos direitos e a pautar politicamente
o combate ao racismo como um dever do Estado. Todas essas ações do governo
brasileiro contribuíram para implementar uma série de leis e projetos de ações
afirmativas para a população negra que jamais deveriam ter retrocedido2. Estamos

2
Desde meados de 2016, com o impeachment da presidenta legitimamente eleita, Dilma
Rousseff, por meio de uma articulação escusa (golpe parlamentar) entre setores conservadores
e de extrema direita do Congresso Nacional, empresários, mídia hegemônica, igrejas cristãs

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desafiados a lutar contra os retrocessos e desmonte das políticas de igualdade racial


desencadeados pelas forças conservadoras, fundamentalistas e de extrema direita.
As políticas de igualdade racial, juntamente com as demais políticas sociais,
causaram impactos importantes na vida da população negra. Elas produziram uma
melhoria parcial na vida de parte da população negra na educação, no acesso a bens
de consumo e no direito à moradia digna. Segundo Campello (2017):

O Brasil, a partir de 2003, ainda que mantendo níveis profundos de desigualdade,


começou a reverter um ciclo histórico de injustiça social, marcado pela crescente exclusão
dos mais pobres e pela concentração de privilégios nos setores mais ricos da sociedade.
O aumento real do salário mínimo, a crescente formalização do mercado de trabalho, a
incorporação dos mais pobres ao orçamento federal, através de políticas de inclusão
social e distribuição efetiva de renda, e a promoção de uma política social integrada,
explicam, em boa medida, essa transformação (CAMPELLO, 2017, p. 11).

Campello (2017, p. 13) também destaca que:

Estamos falando de milhões e milhões de pessoas. Entre 2002 e 2015 foram 12 milhões
de famílias negras cujos pais e mães passaram a ter ensino fundamental completo, 22
milhões de lares a ter acesso a água de qualidade, 24 milhões de domicílios a possuir
geladeira. Não tinham e passaram a ter.

Contudo, todos esses esforços não foram capazes de transformar


estruturalmente a sociedade desigual em que vivemos. E nem de superar o racismo e
a desigualdade racial que imperam historicamente sobre esse segmento étnico-racial.
Se tal mudança acontecesse, teríamos chegado ao fim desses fenômenos perversos e
não conviveríamos com a contradição entre a melhoria parcial das condições de vida
da população negra e, ao mesmo tempo, uma intensa violência e desigualdades raciais
como os dados estatísticos atestam.
Os dados sobre a violência racial, aqui registrados, mostram o quanto ainda se
faz urgente e necessária a continuidade da luta do Movimento Negro contra o
racismo, a desigualdade e a discriminação racial. Desvelam que o projeto de sociedade

fundamentalistas, setores do judiciário, entre outros, houve um tremendo retrocesso nas políticas
de igualdade racial. A iniciar com a extinção da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial, o esvaziamento da Fundação Palmares, a desautorização do Conselho Nacional de
Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), o descaso com a política para povos e comunidades
quilombolas e povos e comunidades de religião de matriz africana. O retrocesso ficou ainda maior
após as eleições de 2018 que mantiveram o desmonte das políticas de igualdade racial e não
mais lhes destinaram recursos do orçamento público.

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e de poder construído pelas elites econômicas, políticas e intelectuais em nosso país


está pautado na perpetuação dos excludentes padrões de poder, de trabalho, de saúde
e de conhecimento que possibilitam uma série de injustiças. Estas recaem, com mais
contundência, sobre os coletivos diversos com maior histórico de exclusão.
A recusa ao racismo é um dos elementos que contribui para a sua
naturalização. Resulta em uma reação perversa que atinge o cotidiano do nosso país:
as desigualdades raciais, misturadas com a perseverança do mito da democracia racial,
vão se naturalizando e sedimentando de tal forma, que são capazes de produzir inércia
e indiferença raciais. O racismo e as desigualdades raciais são capazes de provocar a
indignação nas pessoas, mesmo quando são percebidos ou reconhecidos, mas não
promovem uma mudança radical de postura. Em contextos reacionários e
conservadores, como o que vivemos desde as eleições de 2018, a imobilidade pode
ser ainda maior.
Na educação, a naturalização do racismo e das desigualdades raciais
contribuem para negar ou omitir o fato de que esses fenômenos perversos foram
construídos nos processos sociais, históricos e políticos de dominação colonial, cuja
colonialidade perdura até hoje. Esse jogo complexo, que se dá imerso em complexas
relações de poder, não contribui em nada na construção de uma pedagogia da
diversidade e acaba reforçando os seculares preconceitos contra as pessoas negras.
Não faz a educação avançar em uma perspectiva emancipatória, antirracista
e descolonizadora.
Sendo assim, torna-se comum, no Brasil, especialmente na educação escolar
básica, julgar e tratar uma situação de discriminação racial como questão de ordem
socioeconômica, emocional, dificuldade de aprendizagem, intolerância ou como
resultado de uma família “desestruturada”. É comum, ainda, no Ensino Superior o
pensamento de que estudantes negros e cotistas tenham desempenho acadêmico
baixo e rebaixem o nível da propalada excelência acadêmica.
Por isso, as professoras e os professores que desejem sair do lugar do
imobilismo frente à questão racial, desnaturalizando as desigualdades raciais,
descolonizando as mentes, o conhecimento e os currículos, e construir-se como
sujeitos que se indignam perante as práticas discriminatórias devem mover-se para
sair da inércia racial. Deverão, portanto, partir para a ação concreta, construindo

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práticas pedagógicas, acadêmicas e epistemológicas emancipatórias e antirracistas.


Trata-se de uma postura pessoal, profissional, política e epistemológica, que recusa
toda e qualquer forma de racismo e discriminação, e que produz mudanças efetivas
na vida dos sujeitos com o rompimento das hierarquias raciais.
A indignação, seguida de ações efetivas, poderá nos orientar à explicitação de
que as práticas racistas e discriminatórias na sociedade, na Educação Básica e no
Ensino Superior são insuportáveis, inadmissíveis e revoltantes.
A aplicação da criminalização do racismo aprovada constitucionalmente e a
realização de mudanças na gestão escolar e acadêmica, nos currículos, na pesquisa, na
extensão, na internacionalização e na relação com a comunidade precisam ser
resolvidas mediante a pressão sobre o Estado para a implementação e a continuidade
de ações afirmativas já garantidas por lei. Além disso, a construção de novas políticas
e práticas antirracistas terá ainda que manter diálogo e parceria com o Movimento
Negro na construção de novos caminhos.
A realidade de desigualdade e da violência racial evidenciada pelas estatísticas
estão presentes em nossas práticas mais cotidianas; e a inércia racial também está.
Nesse âmbito, muitos de nós, professoras e professores, pesquisadoras e
pesquisadores, lemos e discutimos essas mesmas estatísticas sobre a situação do negro
em nossa sociedade. Também nos sentimos ultrajados diante desse histórico de
exclusão e de racismo, principalmente no momento de democracia em risco que
vivemos, mas, continuamos imóveis e cômodos em nossa casa ou apartamento,
vivendo em condomínios fechados, comprando casas de campo ou de praia
confortáveis construídas em contato direto com o meio ambiente. E assim
continuamos, imóveis nas escolas, universidades públicas e particulares, atrás de
computadores, smartfones ou tabletes e, nos tempos de isolamento social, devido à
pandemia da Covid-19, escrevemos belas crônicas, lemos o jornal e pagamos o salário
da trabalhadora doméstica negra, que coloca o lixo para ser recolhido todos os dias
pelos lixeiros — todos negros —, os quais, em sua maioria, moram na periferia, não
concluíram o ensino fundamental e lutam para terminar de construir sua casa.
Em nosso dia a dia estamos tão acostumados com a cena violenta de pessoas
negras nos lugares subalternizados, que não compreendemos essa situação como
resultante do processo de perpetuação do racismo nem como reprodução das

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O combate ao racismo e a descolonização das práticas educativas e acadêmicas 446

desigualdades racial e social. Mesmo que as demandas históricas do Movimento


Negro sejam, hoje, comprovadas pelas pesquisas oficiais e acadêmicas, ainda existem
docentes na Educação Básica e no Ensino Superior que insistem em afirmar que tal
situação é exclusivamente um produto da exploração capitalista. Sequer tocam no fato
de que a configuração das classes, no Brasil, tem também como base a exploração
racial. Não pontuam que a formação da classe trabalhadora em nosso país, assim
como o processo de exclusão social, implantado pelo capitalismo, estão intimamente
ligados à escravidão, e nem analisam que a economia brasileira e o enriquecimento
das elites se construíram sob a exploração do trabalho escravo. Nem mesmo falam
sobre a resistência negra durante e após a escravidão. Não reconhecem o
protagonismo do Movimento Negro, de Mulheres Negras, Quilombolas e da
Juventude Negra. E menos ainda, reconhecem que se o Brasil avançou nos últimos
anos, rumo ao antirracismo, isso se deve, primeiramente, às lutas sociais travadas pela
população negra, quer seja como Movimento Negro ou de negras e negros em
movimento. Em segundo lugar, deve-se aos governos democráticos que, no período
de 2003 a 2016, cumpriram com o seu compromisso de implementação de ações
afirmativas, firmado com o Movimento Negro e seguindo as orientações
internacionais, tais como o Plano de Ação de Durban.
Se é de consenso que a inércia racial e social não é aceitável para qualquer
cidadã e cidadão brasileira(o) que acredita na construção de uma sociedade
democrática e com justiça social, mais evidente é para nós, educadoras e educadores
da Educação Básica e do Ensino Superior, profissionais responsáveis pelo processo
de socialização do conhecimento, de formação e humanização.
Precisamos superar a postura de “indignados, porém, imóveis” frente ao
racismo na sociedade, na Educação Básica e no Ensino Superior. Se acreditamos,
escrevemos e apregoamos que a educação é um direito de todas e todos; se falamos
em alto e bom som que nos colocamos contra o neoliberalismo, contra o capitalismo,
o patriarcado, a LGBTQIA+fobia, contra a privatização, contra a injustiça social,
também teremos que nos colocar publicamente contra o racismo. E, com isso, partir
para ações antirracistas, de fato, saindo da inércia.

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Descolonizar as práticas pedagógicas e acadêmicas

Inserir o tratamento da questão racial como uma tarefa da educação escolar


básica e superior pode ir mais além. Significa, também, assumir que estamos em um
país racista e que precisamos nos posicionar contra essa realidade. Mas só isso não
basta! É preciso entender o racismo ambíguo que aqui se desenvolve, e se afirma por
meio da sua própria negação. Essa armadilha do racismo brasileiro possibilita a sua
diluição nas questões sociais e econômicas. É muito comum encontrarmos entre nós
afirmações do tipo: “o negro no Brasil é discriminado porque é pobre” ou “a questão
do negro é social e não racial”.

Para a esquerda ocidentalizada, primeiro vem a economia e segundo o racismo, como


epifenômeno da primeira. Ao contrário, na perspectiva decolonial o racismo é um princípio
organizador, o que não significa que seja um fator determinante em última instância, que
substituiria a determinação da classe pela racial. Na perspectiva decolonial, o racismo
organiza as relações de dominação da modernidade, mantendo a existência de cada
hierarquia de dominação sem reduzir uma às outras, porém, ao mesmo tempo sem poder
entender uma sem as outas. O princípio de complexidade é o seguinte: não se pode
reduzir como epifenômeno hierarquia de dominação à outra que determine em ‘última
instância’, porém tampouco pode entender uma hierarquia de dominação sem as outras.
Esse princípio de complexidade é o que Anibal Pinho (1976) chamou de ‘heterogeneidade
histórico estrutural’, Kyriakos Kontopoulos (1993) chamou de ‘heteraquia’ e as feministas
negras chamam de ‘interseccionalidade’ (GROSFOQUEL, 2019, p. 59-60).

Juntamente com essa compreensão mais ampla e complexa do que é o racismo


e os seus efeitos, precisaremos entender também o mito da democracia racial, a
ideologia do branqueamento, a diferença entre manifestações de preconceito e de
práticas discriminatórias. Devemos entendê-los não só como temas das nossas aulas
na escola básica ou das pesquisas na graduação e pós-graduação, mas como práticas
sociais que se expressam na sociedade, na escola, na universidade, no currículo, no
material didático e nas relações estabelecidas entre os sujeitos da educação.
Assim, poderemos avançar no entendimento do racismo, impregnado em
nossa formação social, econômica, cultural, histórica e política, e veremos que de
cordial ele não tem nada.
Não é nada cordial constatar que 90% da população de rua dos grandes centros
urbanos é negra (preta e parda) ou entrar na sala da Educação Básica e ver que as
crianças e os adolescentes chamados de “multirrepetentes” são, na sua maioria, negras

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O combate ao racismo e a descolonização das práticas educativas e acadêmicas 448

(pretas e pardas). Também não é nada cordial para uma criança negra praticante do
candomblé ou da umbanda ser discriminada pela professora em sala de aula e ver a
sua religião e de sua família ser considerada como demoníaca. Não é nada cordial o
estilo de cabelo black power ou rastafari, de adolescentes e jovens negros, ser motivo
de chacota pelos colegas de escola diante de um corpo docente inerte à
discriminação racial.
Também não é cordial que a juventude negra cotista de universidades públicas
ouça de professoras e professores renomados e Phd’s nas suas áreas que, após a
implementação das ações afirmativas no Ensino Superior as instituições passaram a
contar, nas suas turmas, com estudantes “sem mérito” acadêmico. E não é nada
cordial, após a divulgação da cena bárbara de violência racial praticada por seguranças
privados de uma importante rede internacional de supermercados, nas redes sociais e
na mídia hegemônica, ouvir o Vice-Presidente da República, em cadeia nacional, dizer
aos repórteres que não há racismo no Brasil.
Não é nada cordial um músico negro, no Rio de Janeiro, indo com a sua família
para um chá de bebê, no dia de domingo, ser assassinado por forças do exército com
80 tiros de fuzil ao ser “confundido” com um assaltante, e nenhuma punição exemplar
acontecer com os responsáveis pelos disparos.
Como diz a música do conjunto Legião Urbana:3

Nas favelas, no Senado


Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

Quando a escola básica e a universidade não explicitam a questão racial


existente em nossa sociedade, com seus conflitos, complexidades, politização,
tensões, negociações, positividades e dilemas, elas reforçam práticas racistas,
discriminatórias e o preconceito e não fortalecem o sentimento de responsabilidade e
solidariedade entre os sujeitos pertencentes aos diferentes grupos étnicos e raciais. E

3
Música: Que país é esse?, do Conjunto Legião Urbana. Composição: Renato Russo.

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449 GOMES, N. L.

mais: negam às pessoas negras o direito de serem quem são. E mais: o direito de
viverem a vida com dignidade.
Há professoras e professores não negros que escamoteiam o seu preconceito,
adotando diferentes estratégias para negar o racismo e não se posicionar diante de
práticas discriminatórias na escola e na universidade. Existem, também, professoras e
professores negros que, para evitar o confronto diante de situações de discriminação
racial, mostram-se temerosos, escolhem não se expor, diluindo os conflitos raciais,
fingindo não os enxergar, fugindo do debate quando são chamados para falar do seu
lugar como professor (a) ou pesquisador (a) negro (a). E, há docentes negros e não
negros que indagam, questionam, partem para a ação, realizam projetos pedagógicos,
pesquisa, extensão, internacionalização e reconhecem o protagonismo do Movimento
Negro, atuando em uma perspectiva antirracista e emancipatória.
Tratar a questão racial e realizar o combate ao racismo na sociedade, na escola
básica e na universidade não é uma tarefa fácil. Mexe com as nossas subjetividades,
valores, histórias de vida, crenças, posicionamentos políticos e epistemológicos. Insta-
nos a sermos corajosas e corajosos diante das relações e hierarquias de poder.
Também fazem brotar sentimentos de justa ira, nos dizeres de Paulo Freire.
Trata-se de um processo no qual estão em jogo a formação das identidades
raciais, desde a infância, construídas no contexto do racismo. Mexemos com os
processos complexos de formação das identidades sociais, raciais, com as hierarquias
de poder, com o racismo estrutural e epistêmico e as desigualdades raciais e
econômicas. Tudo isso indaga a nossa identidade profissional como docentes e
pesquisadores (as): Como capacitar-nos para uma tarefa pedagógica, política e
acadêmica tão complexa?
Mas, as mudanças estão em curso. À exemplo, tem-se as cotas raciais,
garantidas como direito nas Instituições Públicas de Ensino Superior, elas têm
possibilitado a formação intelectual e política de uma parcela de jovens negras e
negros que chega ao Ensino Superior, principalmente o público, comprometida com
a luta antirracista. Alguns jovens negros que entram na universidade pelas cotas raciais
passam a vivenciar um processo de afirmação da sua identidade negra por meio do
contato com outros colegas cotistas, construção de coletivos de estudantes negros,
apoio de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros, aprendizado de participar da política

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O combate ao racismo e a descolonização das práticas educativas e acadêmicas 450

estudantil com recorte racial, enfrentamento do racismo epistêmico e mediante o


apoio e solidariedade de colegas negros e não negros antirracistas.
Uma nova geração de negras e negros vem se formando. Uma geração que
interage intensamente com as redes sociais e o mundo on-line e que sabe aproveitar
as vantagens das novas tecnologias e das mídias alternativas, não somente para se
divertir, mas, também, para fazer política e realizar formação política. Blogs, Instagram,
Facebook, Twitter, Youtube e as mais diversas plataformas virtuais são hoje instrumentos
de luta política e acadêmica da juventude negra. Essas estratégias também são
realizadas por uma parcela da juventude negra na Educação Básica, que reeduca e
enfrenta, muitas vezes de forma tensa, as suas famílias, as igrejas, a mídia e os
docentes. São mais do que formadores e formadoras de opinião: são novos militantes
negras e negros formados nos tempos das ações afirmativas. E, assim, têm
reconfigurado o próprio Movimento Negro e o ajudado a repensar estratégias de
resistências e de formação em tempos antidemocráticos.
Esses processos formadores e políticos, principalmente os vivenciados pela
juventude negra com consciência racial, poderão ajudar a sociedade brasileira na luta
contra o racismo. A expectativa e esperança é que esses sujeitos e as mudanças por
eles/elas produzidas contribuam na construção e na formação de outras crianças,
adolescentes e jovens negros mais orgulhosos da sua raça e das suas diferenças. E
possibilitem às crianças, adolescentes e jovens não negros a oportunidade de
vivenciarem uma educação democrática e voltada para as relações raciais que se
contraponha ao racismo. Para que nenhuma criança negra tenha que ouvir
xingamentos racistas sobre sua cor, corporeidade, sinais diacráticos ou então, tenha
que viver a cena que vivi na minha infância, de ter o cabelo crespo chamado de
bombril. E, caso isso aconteça, que possa reagir com segurança e veemência e tenha
professoras e professores competentes e com formação adequada para que saibam
intervir positivamente reeducando não somente ao estudante que cometeu o ato
racista, mas toda a sala de aula.
O crescimento do debate racial e a maior presença de negras e negros, por
direito, na graduação e na pós graduação, o crescente número de egressos das cotas
raciais que já estão na disputa por um lugar no mercado de trabalho, o crescimento
do número de intelectuais negros e negras e a paulatina presença de negras e negros

Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 33, n. 59, p. 435-454, mai./ago. 2021


451 GOMES, N. L.

nos pleitos eleitorais com vitórias significativas nas eleições municipais de 2020, entre
outros fatores, têm proporcionado uma situação interessante: tem indagado
a branquitude.
A pergunta é: diante de tantas mudanças, mesmo em tempos de aumento das
desigualdades, da pobreza e da opressão que passamos a viver após a ascensão da
extrema direita nas eleições de 2018 e a sua escancarada opção pelo neoliberalismo e
pelo fundamentalismo religioso de mercado, que mudanças teremos na construção da
identidade racial das pessoas brancas em nosso país? Teremos mais
brancos antirracistas?
Relembro as sábias análises de Fanon (1983, p. 11): “O branco é escravo da
sua brancura”. Será que as pessoas brancas, no Brasil, que têm se autointitulado
antirracistas estão dispostas a deixar de ser escravas da sua brancura?
O combate ao racismo na sociedade e, em especial na Educação Básica e no
Ensino Superior não depende apenas de um processo de transformação ou afirmação
identitária das pessoas negras. Ele passa, também, pela reconstrução da identidade
racial do branco. Conforme Bento (2003), o reconhecimento do privilégio simbólico
da brancura, o comprometimento com a superação das desigualdades raciais, a luta
por uma sociedade mais justa para todas e todos, com destaque para a compreensão
de como o racismo ainda tem colocado a maioria de negras e negros nos escalões
mais baixos da sociedade são pontos importantes no repensar a branquitude4. Uma
postura política e pessoal antirracista é o mínimo que se exige de uma pessoa branca
que revê o seu lugar na hierarquia de poder e no imaginário social.
Em suma, descolonizar as mentes, a educação, o conhecimento e os currículos
não é olhar somente para nós, negras e negros, mas focar também nas pessoas brancas
e a reprodução histórica do confortável lugar da branquitude. É ver essas pessoas sair
da inércia racial e abdicar do seu lugar de colonizador. Será que estão
realmente dispostas?

4
[...] fenômeno histórico, de caráter interseccional e relacional em sociedades marcadas por
desigualdades raciais e sociais advindas do colonialismo ou do imperialismo (FRANKENBERG,
1993). A branquitude seria, ainda, um lugar estrutural de vantagem e de privilégios “raciais”
baseados em práticas e identidades culturais, não necessariamente marcadas ou fixas, mas nas
quais a brancura é estabelecida como valor simbólico e material. Ela agiria através e nas relações
de poder, produzindo dessa forma violências sociais e epistemológicas (FRANKENBERG, 1993;
CONCEIÇÃO, 2017, p. 24).

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O combate ao racismo e a descolonização das práticas educativas e acadêmicas 452

Conclusão

O trato das semelhanças e diferenças com dignidade deveria ser o eixo


orientador de todos os currículos, da formação, das práticas e da competência
pedagógica e acadêmica de todas e todos que se dedicam à educação e à pesquisa no
Brasil. Reconhecer e respeitar o outro é mais do que um discurso moral: é um desafio
e um dever político e ético de todas e todos que lutam por democracia e justiça social.
O combate5 e a superação do racismo na sociedade e na educação é tarefa para
todos nós, negros e não negros. Se concordamos que a escola é um direito social,
temos que avaliar seriamente se ela de fato tem se realizado dessa forma para negros
e brancos. Lamentavelmente, não é o que os dados da pesquisa do IBGE, do IPEA e
dos Atlas da Violência mostram. Ainda falta muito para revertermos esse quadro,
embora se reconheça que muitas educadoras e educadores, pesquisadoras e
pesquisadores, ainda na maioria negra, já estão desenvolvendo trabalhos pedagógicos,
pesquisas e projetos significativos com a questão racial (SANTANA, 2001; GOMES,
2001; GOMES, 2012). É preciso apoiá-los, dar visibilidade a essas práticas que
contribuem para a mudança de mentalidade da escola, retirando-as do anonimato e
da marginalidade.
Importante citar o intenso trabalho da Associação Brasileira de Pesquisadoras
e Pesquisadores Negros (ABPN)6 e dos vários Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e

5
Durante algum tempo resisti usar a expressão “combate ao racismo”, adotada por várias
organizações do Movimento Negro, devido ao seu caráter bélico preferindo adotar “superação do
racismo”, tendo em vista que a partir de 2003, o Brasil passou a implementar importantes políticas
de igualdade racial. No entanto, os acontecimentos de recrudescimento do racismo dos últimos
tempos, principalmente após as eleições de 2018, com a ascensão da extrema direita ao poder,
a configuração conservadora do Congresso Nacional, o retrocesso das políticas sociais e o
empoderamento simbólico e real da parcela da população brasileira adepta às ideias fascistas,
bem como o aumento da intolerância religiosa, do feminicídio negro, da violência policial e do
genocídio da juventude negra me fizeram rever a minha posição. Todos os dados estatísticos que
mostram a alarmante desigualdade racial e a violência que incide sobre a população negra
brasileira me levam a crer que vivemos um estado de guerra, no qual tombam cotidianamente
corpos negros atingidos por balas perdidas, pelas batidas policiais, cenas de linchamento de
pessoas negras consideradas como bandidos, mesmo sem provas, e pelo encarceramento da
população negra. E se estamos em guerra simbólica e literal, temos que combater o racismo para
superá-lo. Por isso, nesse artigo, adoto as duas expressões e formas de nomeação: combate ao
racismo e superação do racismo. Quanto mais vivo, mais aprendo com a sabedoria e perspicácia
do Movimento Negro ao nomear as formas por meio dos quais a luta antirracista se dá.
6
Cf. http//www.abpn.org.br.

Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 33, n. 59, p. 435-454, mai./ago. 2021


453 GOMES, N. L.

grupos correlatos existentes nas universidades públicas e privadas, nos Institutos


Federais de Educação e CEFETs. Todos desenvolvem ações, projetos e pesquisas
antirracistas com a Educação Básica.
Já é passada a hora de se corrigir as desigualdades históricas, sociais,
econômicas, pedagógicas e acadêmicas que incidem sobre o povo negro. Por isso, a
implementação de políticas públicas de igualdade racial deverá sempre fazer parte da
luta por democracia.
Se não for combatido e superado, junto com a nossa luta anticolonial,
anticapitalista, antineoliberal, antifascista, antipatriarcal e antiLGBTQIA+fóbica, o
racismo continuará estruturando a nossa vida social, alimentando as relações de poder
e produzindo ainda mais desigualdades raciais e educacionais. Por fim, continuaremos
vivendo a contradição de lutar pela democracia e permitir a existência desse fenômeno
perverso incrustrado em nós e nas estruturas sociais e na educação, inviabilizando a
efetivação radical da própria democracia e colonizando as nossas mentes e ações.

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RECEBIDO: 07/03/2021 RECEIVED: 03/07/2021


APROVADO: 10/07/2021 APPROVED: 07/10/2021

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