Extrativismo Bacuri

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Extrativismo

história, ecologia,
economia e domesticação

Vegetal na Amazônia
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Embrapa Amazônia Oriental
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

Embrapa
Brasília, DF
2014
Introdução1
Algumas frutas da Amazônia, como guaraná, açaí e cupuaçu, já são
conhecidas em outras partes do país e até no exterior, mas outras
são consumidas apenas pela população local. Entre as que começam
a ganhar mercado fora da região está o bacuri, do qual é extraída
uma polpa usada para fazer sorvetes, doces, sucos e outros produtos.
A maior procura por essa fruta já está superando a capacidade de
produção atual, essencialmente extrativa, mas estudos

Foto: Antônio José Elias Amorim de Menezes.


mostram que essa situação pode ser modiicada com
a adoção do cultivo e do manejo de plantas oriundas
de regeneração natural, que geraria renda e emprego e
permitiria uma regeneração parcial de extensas áreas
desmatadas e abandonadas.

O bacuri é uma das frutas mais populares da região


amazônica. Essa fruta, pouco maior que uma laranja,
contém polpa agridoce, rica em potássio, fósforo e
cálcio, sendo consumida diretamente ou utilizada na
produção de doces, sorvetes, sucos, geleias, licores e
outras iguarias. Sua casca também é aproveitada na
culinária regional e o óleo extraído de suas sementes
é usado como anti-inlamatório e cicatrizante na
medicina popular e na indústria de cosméticos. O
bacurizeiro (Platonia insignis) pode atingir mais de
30 m de altura, com tronco de até 2 m de diâmetro
nos indivíduos mais desenvolvidos (Figura 1). Sua
madeira, considerada nobre, também tem variadas
aplicações. Essa árvore ocorre naturalmente desde a Ilha de Marajó, Figura 1. Bacurizeiros
na foz do Rio Amazonas, até o Piauí, seguindo a costa do Pará e do nativos existentes na
natureza são árvores
Maranhão. frondosas que atingem
até 40 m de altura e
diâmetro de 2 m.
1
Homma et al. (2010a).
260 Extrativismo Vegetal na Amazônia: história, ecologia, economia e domesticação

O bacurizeiro é uma das poucas espécies arbóreas da Amazônia que se


reproduzem de modo tanto sexuado (por meio de sementes) quanto
assexuado (por brotações oriundas de raízes). Em áreas de ocorrência
natural, com vegetação aberta, a densidade de indivíduos em início de
regeneração pode chegar a 40 mil por hectare (1 ha equivale a uma área
de 100 m x 100 m), por causa das brotações (Figura 2). Por esse motivo,
o caboclo amazônico diz que o “bacurizeiro nasce até dentro de casa”.

Esse fenômeno é semelhante ao que ocorre com Populus tremuloides,


vulgarmente conhecido como choupos-tremedores, que em uma
colônia clonal no Estado de Utah, Estados Unidos, ocupa 43 ha, com
peso estimado de mais de 6 mil toneladas que a converte no organismo
vivo mais pesado da Terra que se conhece, com 40 milhares de troncos,
cujas raízes têm 80 mil anos e o contínuo vigor na reprodução está
despertando o interesse dos cientistas (QUAL ..., 2014).

Foto: Antônio José Elias Amorim de Menezes.


Figura 2. Os
rebrotamentos de
bacurizeiros nas áreas
de ocorrência chegam
a atingir mais de 40 mil
plantas por hectare, que
seria possível aproveitar
sem necessidade de
fazer mudas.

A produção atual de polpa de bacuri tem origem basicamente na coleta


dos frutos de árvores oriundas de regeneração natural, que escaparam
da expansão de povoados, do avanço da agricultura e da pecuária e
da extração madeireira no litoral do Pará e do Maranhão nos últimos
quatro séculos. No passado, o bacurizeiro foi mais importante como
espécie madeireira que como planta frutífera. Sua madeira resistente
e de coloração bege-amarelada era muito utilizada na construção de
embarcações e de casas, o que ainda é observado em muitas áreas de
ocorrência natural.

O mercado de frutas amazônicas tinha, até recentemente, consumo


local e restrito ao período da safra, mas a crescente exposição da região
nos meios de comunicação, no País e no exterior, sobretudo após o
assassinato do ambientalista Chico Mendes (1944–1988), chamou a
atenção para esses produtos (Figura 3). O aumento da procura pela
polpa de bacuri elevou seu valor (o preço por quilo era R$ 10,00 em
2005 e passou para até R$ 20,00 atualmente) e indicou que a produção
CAPÍTULO 19 - Bacuri: fruta amazônica em ascensão 261

extrativa não tem condições de atender sequer o mercado local. Essa


maior pressão de demanda teve relexos nas áreas de ocorrência,
induzindo o manejo dos rebrotamentos naturais e o estabelecimento
de pomares por agricultores do Pará, em especial da colônia nipo-
-brasileira no estado. O bacuri, que era uma das “comidas do mato” de
Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter” do romance modernista
(1928) de Mário de Andrade (1893–1945), prepara-se para seguir o
caminho de castanha-do-brasil, guaraná, açaí, cupuaçu e pupunha,
ganhando dimensão nacional e internacional.
Foto: José Edmar Urano de Carvalho.

Figura 3. Frutos de
bacuri maduros para
serem comercializados.

O bacurizeiro na História
O primeiro relato conhecido sobre o bacuri está no livro História da
missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão, escrito pelo frade
francês Claude d’Abbeville (?–1632), publicado em 1614. Sua descrição
da espécie, grafada como “pacuri”, é a seguinte:
O pacuri é uma árvore muito alta e grossa, suas folhas parecem-se com as
da macieira e a flor é esbranquiçada. O fruto tem o tamanho de dois pu-
nhos, com uma casca de meia polegada muito boa de comer como doce, tal
qual a pera. A polpa desse fruto é branca, parecida com a da maçã, de gosto
suave; encontram-se dentro quatro nozes comestíveis.

Outro religioso, o padre jesuíta João Daniel (1722–1776), que viveu


na Amazônia entre 1741 e 1757, descreveu o bacuri. A partir de 1757
e até sua morte, o padre icou preso em Portugal – no período da
caça aos jesuítas promovida por Sebastião José de Carvalho e Melo, o
Marquês do Pombal (1699–1782) – e, na prisão, escreveu um enorme
tratado sobre a região amazônica, Tesouro descoberto no máximo Rio
Amazonas, no qual fez detalhadas observações:
A fruta bacuri, posto que tenha seus senões, também merece sua menção,
pelo seu excelente gosto. A sua árvore é famosa de grande, e também o fruto
é de bom tamanho... Tem a casca grossa, e para dar a casca, e se abrir a fruta,
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quer maço, ou requer se dar com ela em uma pedra, ou pau; ... porque tudo
são caroços vestidos ou revestidos de uma felpa por modo de algodão muito
alva... É esta uns gomos da mesma massa, que serve de divisão aos caroços.
(...) Costumam pois os moradores, quebrada a fruta, separar com um garfo
esses gomos intermédios para um prato, e se o querem cheio é necessário
quebrar mais fruta; mas no seu superlativo gosto pagam muito bem o tra-
balho em as quebrar, e suprem a sua pouquidade: falo das doces, em que
sempre há algum tal ou qual ácido; e tão tenros os gomos, que parecem
nata, ou manteiga (DANIEL, 2004, v. 1, p.450)

O Ensaio corográico sobre a província do Pará, livro em que o militar


e geógrafo português Antônio Ladislau Monteiro Baena (1782–1850)
descrevia a geograia, os recursos naturais e a população paraenses,
publicado em 1839, também destacou a importância do bacurizeiro,
“árvore que dá fruta agridoce”. Segundo Baena, a espécie “tem casca
acitrinada e semelhante à do piquiá” e seu lenho “serve na construção
náutica”. Um fato curioso sobre a fruta é relatado pelo escritor paraense
Osvaldo Orico (1900–1981) em seu livro Cozinha amazônica: uma
autobiograia do paladar, de 1972: o diplomata José Maria da Silva
Paranhos Júnior (1845–1912), o barão do Rio Branco, famoso pela
solução dos problemas de fronteira do Brasil com os países vizinhos,
adotou o bacuri como sobremesa nos grandes banquetes oiciais do
palácio do Itamarati, no Rio de Janeiro, em sua gestão (1902 a 1912)
como ministro das Relações Exteriores. Sabe-se ainda que, em 1968,
em visita ao Brasil, a rainha Elizabeth II, da Grã-Bretanha, icou
encantada com o sorvete de bacuri preparado por uma confeitaria do
Rio de Janeiro, razão de diversas encomendas posteriores.

Extrativismo, manejo e plantio


A coleta dos frutos é feita principalmente em bacurizeiros que crescem
naturalmente ou em áreas com brotações espontâneas manejadas.
Mais recentemente, a espécie começou a ser cultivada por meio
de mudas. Em lorestas primárias, o bacurizeiro ocorre em baixa
densidade, em geral inferior a 1 indivíduo/ha. É uma árvore social, que
forma agrupamentos de seis a oito indivíduos, distantes cerca de 30 m
a 40 m entre si. Na vegetação secundária de terra irme podem ocorrer
maciços quase homogêneos, com mais de 200 indivíduos adultos/ha, o
que sugere que em tempos passados algum tipo de manejo foi efetuado
para favorecer o estabelecimento e o crescimento dos bacurizeiros.

O manejo consiste em selecionar as brotações mais vigorosas que


nascem em áreas agrícolas abandonadas (Figura 4), mantendo
distância de 10 m entre elas e eliminando as demais. Os únicos
cuidados posteriores são roçagens nos primeiros anos de crescimento
(para evitar a competição com o mato) e depois em torno de árvores
adultas, na época de frutiicação (para facilitar a coleta dos frutos).
A primeira produção de frutos ocorre de 5 a 7 anos após o início
do manejo. É necessário, nas áreas manejadas, evitar que queimadas
efetuadas em terrenos próximos cheguem ao bacurizal, pois a espécie
é bastante sensível ao fogo.
CAPÍTULO 19 - Bacuri: fruta amazônica em ascensão 263
Foto: Grimoaldo Bandeira Matos.

Figura 4. Selecionando-
-se as brotações mais
vigorosas, depois de
10 a 20 anos ter-se-á
frondosas árvores,
promovendo a
regeneração das áreas
degradadas, gerando
renda e emprego.

Avaliações efetuadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa


Agropecuária (Embrapa) no nordeste do Pará e na Ilha de Marajó
evidenciaram que muitos agricultores têm feito o manejo de maneira
inadequada, deixando as árvores muito próximas uma das outras, o
que implica baixa produção de frutos. Não é raro encontrar bacurizais
manejados com número de árvores/ha quatro a cinco vezes superior
ao recomendado (de 100 a 120 plantas/ha). Essa elevada densidade é
um dos fatores responsáveis pela baixa produtividade de frutos, pois as
árvores crescem muito em altura, sem alargar a copa.

A notável capacidade de reprodução do bacurizeiro por brotações


oriundas de raízes facilita o manejo, mas pode trazer um problema:
todos os indivíduos de uma área de 1 ha, por exemplo, podem se
originar da mesma planta-mãe, não havendo variabilidade genética.
Isso é prejudicial porque o bacurizeiro, como outras espécies arbóreas
amazônicas (entre elas o cupuaçuzeiro e a castanheira-do-brasil),
apresenta autoincompatibilidade genética, ou seja, as lores não se
convertem em frutos quando a lor que fornece o pólen é da mesma
planta que a lor que o recebe (Figura 5). Assim, os clones rebrotados da
mesma planta-mãe também seriam incompatíveis, o que inviabilizaria
a produção de frutos ou tornaria-os dependentes de pólen vindo de
longe. Os polinizadores principais são pássaros de diferentes espécies,
e o principal atrativo para eles é o néctar produzido em abundância
(até 5 mL de néctar por dia) pela lor do bacurizeiro. Uma estratégia
recomendada para assegurar a variabilidade genética em bacurizais
manejados é a de introduzir diferentes clones na área, o que pode ser
feito por meio de enxertos (de outra origem) em indivíduos locais ou
do plantio de mudas trazidas de outras regiões.
264 Extrativismo Vegetal na Amazônia: história, ecologia, economia e domesticação

Fotos: Antônio José Elias Amorim de Menezes .


Figura 5. Diferentes
padrões de cor das lores
dos bacurizeiros.

O crescimento do mercado de bacuri está expandindo o plantio com


plantas obtidas de sementes. Essas plantas demoram, em média, 10
anos para produzir os primeiros frutos, mas crescem mais rápido que
mudas enxertadas e têm, quando adultas, tronco retilíneo, permitindo
o aproveitamento da madeira. Mudas enxertadas, ao contrário,
diicultam o uso da madeira, mas começam a produzir mais cedo,
entre 4 e 5 anos (Figura 6). É importante, porém, escolher (para os
enxertos) espécimes com frutos de qualidade superior, em especial
quanto à proporção de polpa, que deve ser de no mínimo 18% do peso
do fruto.
CAPÍTULO 19 - Bacuri: fruta amazônica em ascensão 265
Foto: Antônio José Elias Amorim de Menezes.

Figura 6. Com a
enxertia, os bacurizeiros
iniciam a frutiicação
com 4 a 5 anos,
reduzindo o tamanho
das árvores.

Os desaios do bacuri
Para obter a polpa, os agricultores partem a casca com um porrete
(Figura 7). Retirada a casca, encontram os “ilhotes” ou “línguas”, como
chamam a porção da polpa que não está aderida às sementes, e as
“mães”, nome dado à parte da polpa que envolve as sementes (caroços).
As sementes devem ser separadas cuidadosamente, com o uso de
tesouras, porque qualquer ferimento no caroço libera uma resina
que mancha a polpa. Por isso, os produtores de bacuri não utilizam
as máquinas despolpadoras existentes no mercado, mas esse problema
poderia ser evitado com o desenvolvimento de um equipamento
especíico para extração da polpa dessa fruta.
Foto: José Edmar Urano de Carvalho.

Figura 7. Corte
transversal de um fruto
de bacuri mostrando a
polpa.
266 Extrativismo Vegetal na Amazônia: história, ecologia, economia e domesticação

As comunidades que produzem o bacuri também precisam ser


conscientizadas sobre práticas equivocadas de coleta fortuita. Os
agricultores provocam a queda de frutos subindo nos bacurizeiros e
sacudindo os galhos, mesmo à noite. Em geral, isso acontece no início
da safra, quando os preços estão elevados. Essa prática leva à queda
de frutos maduros e semimaduros, mas também de frutos ainda em
fase de crescimento, que são abandonados no chão, causando a perda
de 5% a 10% da safra, segundo estimativas. Os frutos imaturos são
enterrados no chão com sal e carbureto de cálcio (produto usado
para induzir loração no abacaxizeiro e em outras plantas), visando
seu amadurecimento forçado e venda posterior, prática que engana os
consumidores.

Muitas áreas de vegetação onde ocorrem bacurizeiros continuam


sendo derrubadas para formar pastagens e culturas agrícolas (soja,
feijão-caupi, abacaxi e outras), obter lenha para olarias, produzir
carvão ou extrair madeira para construção civil. A baixa lucratividade,
decorrente da densidade reduzida de bacurizeiros na vegetação nativa,
torna a opção de curto prazo mais atraente para os agricultores. Isso
pode ser alterado com técnicas de manejo (desbaste dos rebrotamentos
espontâneos ou plantio de mudas).

O manejo é simples: a densidade de bacurizeiros deve ser corrigida


para 100 a 120 indivíduos/ha, ordenados de tal forma que formem
uma malha quadrangular de 10 m por 10 m. Isso pode ser feito nos
rebrotamentos naturais pela seleção de plantas vigorosas distantes 10 m
umas das outras, ou por meio do plantio de mudas em áreas com
menor densidade da espécie. A formação de pomares manejados de
bacuri representa importante alternativa para recuperar mais de 50 mil
hectares de áreas degradadas dos estados do Pará, Maranhão e Piauí
e para recompor áreas de Reserva Legal (RL) e Áreas de Preservação
Permanente (APP).

Como o bacurizeiro é uma planta de fecundação cruzada, polinizada


principalmente por pássaros, a produção dos frutos depende da
presença destes. Assim, também é importante um “manejo” da
população humana local, para evitar a captura e venda desses pássaros
e a destruição das matas próximas onde vivem, ações que podem
causar sérios prejuízos à produção de bacuri.

Um cálculo simples mostra como o bacuri pode trazer grande benefício


para a região amazônica. Caso seja possível, por exemplo, adicionar
20 mil hectares à atual área de produção, com uma produtividade média
de 200 frutos por ano em cada planta (Figura 8), a produção anual
aumentaria em 400 milhões de frutos, quantidade que corresponde a
cerca de 120 mil toneladas de frutos e 12 a 15 mil toneladas de polpa. Isso
implicaria em receita extra de R$ 200 milhões anuais (a preços atuais)
para a região, sem contar com possíveis aumentos na produtividade
por árvore e no percentual de polpa por fruto (decorrentes de técnicas
CAPÍTULO 19 - Bacuri: fruta amazônica em ascensão 267

e pesquisas de melhoramento da espécie) e com a agregação de valor


pela industrialização. A cultura manejada do bacuri – aproveitando os
rebrotamentos ou com plantios racionais – constitui, portanto, uma
solução local capaz de gerar renda e emprego, além de contribuir para
a redução dos problemas ambientais globais.
Fotos: Antônio José Elias Amorim de Menezes.

Figura 8. Diferentes
padrões de frutos,
mostrando a grande
diversidade existente.

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