Relato de Mães de Gestantes Adolescentes. Análise Temática

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REVISTA DE

PSICOLOGIA DA IMED

O Relato de Mães de Gestantes


Adolescentes: Um Olhar Sistêmico

The Report of Mothers of Teenage Pregnant


Women: A Systemic Look

El Relato de Madres de Gestantes


Adolescentes: Una Mirada Sistémica

Daiane Wiltgen Tissot(1); Denise Falcke(2)


1 Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4746-0891 | E-mail: [email protected]
2 Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4653-1216 | E-mail: [email protected]

Revista de Psicologia da IMED, Passo Fundo, vol. 10, n. 1, p. 90-107, Jan.-Jun., 2018 - ISSN 2175-5027
[Recebido: Mar. 29, 2018; Aceito: Mai. 10, 2018]
DOI: https://doi.org/10.18256/2175-5027.2018.v10i1.2574

Endereço correspondente / Correspondence address


Sistema de Avaliação: Double Blind Review
Daiane Wiltgen Tissot
Editor: Ludgleydson Fernandes de Araújo
Rua Garibaldi, 308, sala 206. Centro - Gramado/RS. Brasil

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Revista de Psicologia da IMED, Passo Fundo, vol. 10, n. 1, p. 90-107, Jan.-Jun., 2018 - ISSN 2175-5027

Resumo
A pesquisa intentou investigar o fenômeno da gravidez na adolescência a partir da percepção
das mães de jovens gestantes, considerando, por meio da perspectiva teórica sistêmica,
aspectos relacionais familiares. Teve caráter transversal, trazendo dados qualitativos oriundos
de um estudo de casos múltiplos com três mulheres cujas filhas adolescentes engravidaram
de forma planejada. Os instrumentos utilizados foram o questionário sociodemográfico
e a entrevista semiestruturada, aplicados nas residências das participantes. Os principais
resultados da análise temática e síntese de casos cruzados foram: presença de estereótipos
de gênero com ausência significativa da função paterna, estilos parentais disfuncionais,
ocorrências transgeracionais em termos de padrões de relacionamento, desamparo, violência
e da própria gravidez na adolescência, além de estruturas familiares com patologias de
fronteiras. Concluiu-se que o planejamento da gravidez nesse período do ciclo vital carrega
importantes aspectos familiares que precisam ser considerados em processos preventivos e
interventivos, de modo a interromper ciclos viciosos de disfuncionalidade familiar.
Palavras-chave: gravidez na adolescência, família, relações familiares, gênero

Abstract
The research attempted to investigate the phenomenon of pregnancy in adolescence from the
perception of the mothers of pregnant adolescents, considering family relational aspects in a
systemic approach. It had a transversal character, bringing qualitative data from the study of
multiple cases with three women who have a pregnant adolescent daughter. The instruments
used were the sociodemographic questionnaire and the semistructured interview, applied in
the residences of the participants. The main results of the thematic analysis and cross-case
synthesis were: the presence of gender stereotypes with significant absence of paternal function,
dysfunctional parent styles, transgenerational occurrences in terms of patterns of relationship,
helplessness, violence and pregnancy in adolescence itself, as well as family structures with
borders’s pathologies. It was concluded that the planning of the pregnancy in this period of
the life cycle carries important family aspects that need to be considered in preventive and
interventional processes, in order to interrupt vicious dysfunction family’s cycles.
Keywords: pregnancy in adolescence, family, family relations, gender

Resumen
La investigación intentó investigar el fenómeno del embarazo en la adolescencia a partir de
la percepción de las madres de jóvenes gestantes, considerando, por medio de la perspectiva
teórica sistémica, aspectos relacionales familiares. Se tuvo un carácter transversal, trayendo
datos cualitativos oriundos de un estudio de casos múltiples con tres mujeres cuyas hijas
adolescentes se embarazaron de forma planificada. Los instrumentos utilizados fueron el
cuestionario sociodemográfico y la entrevista semiestructurada, aplicados en las residencias
de las participantes. Los principales resultados del análisis temático y síntesis de casos
cruzados fueron: presencia de estereotipos de género con ausencia significativa de la función
paterna, estilos parentales disfuncionales, ocurrencias transgeneracionales en términos de
patrones de relación, desamparo, violencia y del propio embarazo en la adolescencia, además
de estructuras familiares con patologías de fronteras. Se concluyó que la planificación del
embarazo en ese período del ciclo vital lleva importantes aspectos familiares que necesitan ser
considerados en procesos preventivos e interventivos, de modo a interrumpir ciclos viciosos de
disfuncionalidad familiar.
Palabras clave: embarazo en adolescencia, familia, relaciones familiares género

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Introdução

Ao entrarem em contato com a temática da gravidez na adolescência, muitos


profissionais da área da saúde, educação e assistência social percebem que o fenômeno
nem sempre está relacionado com desinformação ou ocorrência acidental, pois
notam, no contato com as adolescentes, um assumido desejo na reprodução, sendo
esta vista como um projeto de vida (Presado, Cardoso, & Carmona, 2015). Dentre os
motivos para tal anseio nas jovens, destacam-se necessidades psicológicas de afeto;
presença de baixa autoestima e vivências negativas, como exposição à violência
doméstica; desejo de chegada à vida adulta e alcance da autonomia; busca de maior
valorização do companheiro, da família e da sociedade (Presado et al., 2015). Além
dos fatores mencionados, a fase da adolescência, por si só, é considerada crítica no
desenvolvimento humano, por ser um marco significativo de transição entre a infância
e a vida adulta e carregar muitas transformações, não só para o adolescente, mas para
toda a família (Carter & McGoldrick, 2007). Por essas características, seja por decisão
ou acidente, uma gravidez na adolescência repercute em todo grupo familiar, que se
torna implicado na sequência do evento, sendo demandado em auxílio nos âmbitos
emocional, informacional e material (Fernandes, Júnior, & Gualda, 2012).
Apesar de garantido o direito fundamental do ser humano de nascer livre, e
assim manter-se por toda sua vida (Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948),
subjetivamente, essa conquista é árdua: ao nascer em um ambiente familiar
preexistente há gerações, todo sujeito é exposto a processos potentes, cultivados
nesse grupo por anos e transmitidos automaticamente às gerações subsequentes. Esse
conceito de transgeracionalidade representa uma herança de padrões de lealdades,
conexões que marcam o pertencimento ao grupo em sentido moral, político ou
psicológico; crenças, o que é considerado certo ou errado, a identidade do grupo
familiar; valores, ideologia presente no sistema familiar; mitos, conjunto de crenças
organizadoras do sistema familiar; segredos, tabus mantidos por gerações; ritos ou
rituais, atos simbólicos que são codificados na família para repetição e aprendizagem
das regras do sistema; e legados, transmissões a respeito da essência familiar. Referidos
fenômenos auxiliam na manutenção das características da família ao longo dos anos e
são internalizados durante a vida do indivíduo, fazendo parte de seu próprio repertório
comportamental, podendo implicar em algum grau de aprisionamento, geralmente não
consciente (Falcke & Wagner, 2005).
Isso significa dizer que as influências familiares vão além da família nuclear,
englobando a extensa, já que o núcleo reage emocionalmente ao que se construiu no
passado da família. Esses processos têm a função de protege-la de possíveis ameaças
externas, mantendo a coesão e a identidade familiar (Penso, Costa, & Ribeiro, 2008).
Para acessar referidos conteúdos transgeracionais, é importante a investigação sobre

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como as relações familiares se estabelecem, atentando para sua dinâmica de interação


(Falcke & Wagner, 2005). Nessa direção, a transgeracionalidade da gravidez na
adolescência foi pesquisada em um estudo no qual, diante da fala de mães e filhas,
percebeu-se o conceito perpassando todo o fenômeno (Cunha & Wendling, 2011).
Os relatos das mães, agora avós, sobre a própria gravidez na adolescência, mostram
vivências familiares desfavoráveis emocionalmente na sua geração, sendo estas
citadas como propulsoras da gravidez naquele período, como uma forma de fuga. As
mães/avós trouxeram esses conteúdos sobre a própria gravidez como resolução de
conflitos familiares, ao passo que as filhas referiram uma visão mais positiva sobre
suas mães como exemplos de maternidade a serem seguidos, demonstrando melhor
resolução emocional na atual geração. Também, a gravidez atuou como uma forma de
reconciliação entre mães e filhas, que passaram a se sentir em igualdade de papéis.
Apesar dos progressos em relação a gerações anteriores, as autoras perceberam
que a comunicação entre elas ainda não é adequada, pois a maior liberdade familiar
desenvolvida nessa geração, em oposição à rigidez da anterior, também não impediu
a gravidez na adolescência, dando sequência às repetições, ainda que por motivos
diferentes (Cunha & Wendling, 2011). Esse movimento é o que Falcke e Wagner
(2005, p. 27) denominaram como “o outro lado da mesma moeda”, já que o ponto de
referência a que se está reagindo é ainda o mesmo, um padrão familiar de origem.
Outro estudo sobre o tema, realizado em Minas Gerais, encontrou dados sobre
mulheres que também passaram pela experiência de engravidar na adolescência e
agora vivenciavam o papel de avós. Elas mostraram pouca intimidade para falar com
suas filhas adolescentes sobre sexualidade antes da iniciação sexual delas, achando-as
novas para isso ou o fizeram de modo superficial, representando o desafio do diálogo
emocional voltado para significados. Após o estabelecimento da gravidez, porém, a
própria vivência pareceu contribuir para o sentimento de identificação que esteve
envolvido no apoio à filha gestante, mesmo não comemorando a notícia nessa fase, por
saberem de fato tudo que envolve tornar-se mãe nesse período da vida (Pereira, Silva,
Barbosa, & Correio, 2017).
Em cada pessoa estão presentes noções particulares sobre ser família e sobre os
papéis de cada um no todo, aspectos herdados do núcleo familiar de origem e também
do contexto social. Na literatura sobre a temática (Botton et al., 2015; Borsa & Nunes,
2011), encontram-se discussões sobre a desigualdade de gênero ainda presente na
cultura brasileira e também internacional e, consequentemente, nas famílias, gerando
a dicotomia homem opressor x mulher oprimida, ainda que nem sempre de forma
explícita. Essas noções estendem-se também a como é ser mãe e pai, em consonância
com o que é socialmente esperado, havendo estereótipos de gênero nessa construção.
Apesar de tal visão vir se transformando ao longo da história da humanidade, alguns
resquícios se mostram vivos na ainda presente visão de homem como provedor e de

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mulher como cuidadora da prole, gerando a perpetuação do estigma dos significados


da maternidade e da paternidade. A assunção do papel parental, independente do
gênero, é envolta em características e atitudes pessoais, que determinarão os estilos
parentais, amplamente estudados na literatura (Silva, 2017). Na revisão da autora,
os estilos parentais propostos por Baumrind (1966/1971) são classificados como a
combinação entre a demonstração de afeto e a imposição de limites na educação dos
filhos, visando proporcionar a autonomia e segurança emocional da criança.
Quando há o equilíbrio entre esses dois fatores, tem-se o estilo participativo ou
autoritativo, no qual o filho percebe tanto o investimento afetivo dos cuidadores quanto
a interdição por meio de regras, aspectos necessários à sua estruturação emocional.
É considerado o estilo parental mais adequado e promotor de um desenvolvimento
humano saudável. Quando a imposição de limites se torna rígida por não vir
acompanhada de responsividade, apresenta-se o estilo autoritário, que pode resultar
em diminuição da autonomia e prejuízos nas habilidades sociais. Se, ao contrário,
os cuidadores mostram pouca autoridade e muita complacência com os desejos das
crianças, são classificados no estilo permissivo e suscitam nelas o desenvolvimento de
insegurança e baixa tolerância à frustração (Silva, 2017). Esse modelo foi adaptado em
1983 por Maccoby e Martin (Weber, Prado, Viezzer, & Brandernburg, 2004), dividindo
o estilo permissivo em indulgente e negligente. No estilo indulgente, há afeto, mas
pouco limite, enquanto que no negligente há ausência de investimento afetivo e a
ausência de controle e estabelecimento de regras, associando-se a uma imensa gama
de sintomas comportamentais e afetivos (Silva, 2017; Weber et al., 2004). Os três estilos
parentais disfuncionais (autoritário, indulgente ou negligente) estão relacionados à
incidência da gravidez na adolescência (Silva, 2017).
A família, independente de configuração, é caracterizada como o ambiente
onde os hábitos mais primários são desenvolvidos, como a construção da identidade,
autoestima e a aprendizagem de valores que norteiam o comportamento nas interações,
possibilitando, assim, com que os secundários, como a percepção de aspectos como
gênero, por exemplo, se tornem possíveis em outros contextos, já com a base introjetada
(Botton, Cúnico, Barcinski, & Strey, 2015). Sendo assim, o desempenho da função
parental recebe influência da transgeracionalidade, ao passo que cada indivíduo
carrega sua herança sem, muitas vezes, percebê-la. Isso significa uma continuidade
de estilos educativos ao longo das gerações. Entretanto, cabe ressaltar a importância
de considerar nessa avaliação as características de cada criança, já que, do ponto de
vista sistêmico, a relação é dinâmica e circular (Marin, Martins, Freitas, Silva, Lopes,
& Piccinini, 2013). Segundo Bowen (1991), a investigação dos processos familiares
propicia o autoconhecimento individual e a possibilidade de alcançar a diferenciação de
self, processo caracterizado por um nível saudável de pertencimento ao grupo familiar,
porém com a necessária separação para o desenvolvimento autônomo.

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Essa caminhada em busca da história familiar fica dificultada nas famílias


brasileiras que se encontram em contextos de pobreza, pelas frequentes rupturas entre
gerações devido às constantes migrações em prol de melhores condições de vida (Penso
et al., 2008). Nessas populações, percebe-se claramente a predominância da mulher
como referência familiar, representando cerca de 90% da titularidade do Programa
Bolsa Família e sendo consideradas as representantes principais de suas famílias
(Villela, 2016). Esse formato é, de certa forma, fomentado pelo governo federal, a partir
da orientação para o cadastro da família através de um “responsável pela unidade
familiar, que deve ter pelo menos 16 anos e, preferencialmente, ser mulher” (Brasil,
2015). A visão de mulher mais presente e disponível para os filhos povoa o imaginário
social, sendo o homem concebido como mais distante na relação com os filhos,
fenômeno que pode ser visualizado também na literatura nacional e internacional,
que traz uma quantidade muito maior de pesquisas sobre a maternidade do que a
paternidade (Borsa & Nunes, 2011). Para as autoras, a psicologia, especialmente a
psicanálise, contribuiu para que a mulher ficasse como personagem principal na
vida dos filhos, dificultando o acesso do homem ao papel parental. Para o filho, é
importante perceber a parceria parental de seus pais, para desenvolver uma noção
positiva sobre as interrelações afetivas e sociais, vendo em ambas as figuras um lugar de
afeto e autoridade.
As questões socioculturais citadas apresentam-se diante da gravidez na
adolescência como uma tendência à ausência paterna, sendo predominante o suporte
da família de origem da gestante, principalmente nas figuras femininas, como as mães,
avós e irmãs (Levandowski, Munhós, Rödde, & Wendland, 2012). Com base nessas
informações, o presente trabalho buscou ouvir mulheres cujas filhas vivenciavam uma
gravidez na adolescência, a fim de compreender suas percepções sobre os aspectos
relacionais familiares envolvidos no fenômeno e, assim, contemplar uma lacuna da
literatura brasileira de investigação sistêmica do tema. A partir desses relatos, intentou-
se investigar representações de família, visões sobre o funcionamento e a dinâmica
familiar, lembranças de aspectos transgeracionais, desempenho da parentalidade e
estilos parentais, assim como sentimentos acerca da gravidez planejada da filha nesse
momento do ciclo vital.

Método

Delineamento

O presente estudo é qualitativo, com delineamento exploratório e corte


transversal, de casos múltiplos, sendo três um número suficiente para replicações
literais (Yin, 2015).

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Participantes

As participantes foram três mães que vivenciavam a gestação de uma filha


adolescente. A seleção foi por conveniência a partir de indicações de Unidades Básicas
de Saúde e Centros de Atenção Psicossocial de duas cidades da Serra Gaúcha.

Tabela 1. Caracterização das participantes


Nomes Idade da filha Gestação Idade da 1º
Idade Total de filhos Profissão
fictícios gestante da filha gestação
16, 12 e 11 anos (como mãe
35
Maria 16 anos Planejada solteira); 19 anos Faxineira
anos
6 anos (companheiro atual)
26 e 23 anos (primeiro
companheiro);
47 Dona de
Rita 14 anos Planejada 14 anos (como mãe solteira); 21 anos
anos casa
11 anos (último
companheiro falecido)
26 anos (como mãe solteira),
41 22 (falecida aos 2 meses), Dona de
Ângela 15 anos Planejada 15 anos
anos 20, 19, 15 e 7 anos (marido casa
atual)

Instrumentos

Os instrumentos utilizados para a coleta dos dados foram elaborados pelas


autoras e consistiram em um questionário sociodemográfico, para caracterização das
participantes, com informações sobre características pessoais, contextuais e familiares;
e uma entrevista semiestruturada com as mulheres, visando explorar questões relativas
à história familiar, envolvendo questionamentos sobre como avaliam as relações na
família de origem e na atual, comunicação sobre sexo e gravidez, a que atribuem a
ocorrência da gestação da filha nessa idade, quais os sentimentos sobre a situação,
significados, planos para o futuro, dentre outros, sendo que outras questões foram
sendo formuladas no momento da conversa, de modo a explorar em profundidade as
percepções trazidas por essas mães.

Procedimentos Éticos e de Coleta de Dados

As mães foram selecionadas a partir da indicação de suas filhas gestantes por


instituições de saúde e assistência social de duas cidades da Serra Gaúcha, após
anuência dos responsáveis pelas respectivas secretarias municipais e aprovação do
Comitê de Ética em Pesquisa da Unisinos, sob parecer CAAE 62563216.0.0000.5344.

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Inicialmente, houve apresentação e assinatura do TCLE pelas participantes e, na


sequência, os instrumentos foram aplicados na residência das mesmas. Os dados e o
anonimato das participantes foram preservados, bem como as demais recomendações
éticas para a realização de estudos com seres humanos, de acordo com as Resoluções
466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde. Foi solicitado às participantes sua
autorização para gravação em áudio das entrevistas, para posterior transcrição e
análise dos dados.

Análise de Dados

A análise de dados foi qualitativa, a partir da perspectiva teórica sistêmica. Os


dados obtidos nas entrevistas semiestruturadas foram avaliados através de análise
temática, a partir dos passos: 1) Familiarização com os dados, através de transcrição,
leitura e releitura dos mesmos; 2) codificação inicial do material, de forma sistemática;
3) identificação dos temas, com agrupamento das informações; 4) revisão dos temas,
com refinamento e geração de mapa temático; 5) definição e nomeação dos temas de
acordo com suas especificidades; e 6) análise final e produção do relatório (Braun &
Clarke, 2006). Como temas principais foram considerados a história pessoal da mulher
e suas influências familiares de origem, dinâmica familiar atual e relacionamento
com a filha gestante e percepção sobre a gravidez da filha na adolescência, sendo
apresentados em texto único em cada caso, seguidos de uma discussão particular.
Após, é apresentada a síntese de casos cruzados (Yin, 2015), na qual convergências e
divergências entre os casos são discutidas.

Resultados

Caso Maria

Maria foi entrevistada sozinha em sua casa; vivenciava uma separação temporária
de seu companheiro havia três semanas, porém em vias de reestabelecer a relação,
principalmente por questões financeiras, já que ele representa uma segurança nesse
quesito: “eu descobri que ele posou com outra mulher, foi pras farras por aí [...] ele é
mulherengo [...] eu tô tentando me ajeitar com ele, porque eu sei que eu não vou dar
conta de bancar todo mundo”. Sobre a gravidez da filha, aos 16 anos, Maria mostrou sua
contrariedade, relatando os inúmeros avisos que ela deu ao casal. Revelou uma relação
complicada com a adolescente: “ela não é nada obediente comigo! Ela é bem rebelde
comigo e o que eu posso fazer? Eu tentei dar conselho, tudo... [...] eu falei pro bem dela,
mas a minha mãe nunca falou isso pra mim, nem pelo meu bem nem pelo meu mal”.
Ainda sobre a adolescente, a mãe destaca: “ela faz o que ela acha que dá na telha, ela não
me obedece porque eu sou mãe solteira e ela morou com a minha mãe, pra mim trabalhar,

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daí depois eu casei e ela não quis ir junto, tipo assim, botaram ela contra mim, muito
tempo, então ela vem e fala pra mim que eu abandonei ela, que não sei o que... [...] eu não
tenho autoridade com ela [...] ela me chama de cadela, me chama de tudo que é nome,
entendeu?”. A filha é agressiva com Maria não somente de modo verbal e psicológico,
mas também físico: “Se ela chegar aqui braba e eu falar alguma coisa ela já me dá de tapa
na cara e eu não ergo nem um dedo pra ela”. Além disso, Maria revela uma preocupação
sobre a relação da filha com o pai da criança: “ele pauseia (bate, surra) ela de vez em
quando, briga com ela, já pauseou na minha frente, dentro da minha casa, entendeu? Ela
não obedece a mãe e obedece ele, daí eu não posso fazer nada”.
O vínculo precário entre mãe e filha se fundamenta no fato de a adolescente
ter sido criada pela avó materna, com quem Maria sempre teve muitos problemas de
comunicação, mostrando-se ressentida e desamparada não somente com ela, mas em
relação à toda a sua família de origem: “eu apanhava muito de uma irmã minha e de
um irmão meu, tive que sair de casa corrida... isso tem até testemunha, a pedrada, e
no momento eu não tinha onde ficar... [...] daí eu me juntei com esse cara e quando eu
vi que eu tava mais ou menos eu tentei buscar ela, mas daí a minha mãe não deixou
mais ela ir, a minha mãe já tinha... sei lá feito o que... daí ela ficou morando com a mãe.
Daí com uns 15 anos ela começou a namorar por aí... e ela e a mãe começaram numa
brigaceira dentro de casa, daí ela resolveu escolher a minha casa, porque ela faz o que ela
bem acha, daí ela foi morar comigo”. Acrescenta: “eu tenho depressão, diabetes, pressão
alta, tenho um monte de problema de saúde, se eu vou pro hospital, eu chamo a minha
família ninguém aparece lá... [...] eu sou tipo rejeitada pela família inteira”. Se ressente
pela invalidação que a mãe fez de sua maternagem; trabalhava para enviar dinheiro aos
filhos e os via apenas uma vez por semana devido a sua carga de trabalho e desamparo,
já que com os três primeiros filhos não teve o pai que lhe ajudasse.
Maria também se preocupa com a reputação da filha: “Ah, eu dizia pra ela assim,
ó cuida pra não engravidar, porque depois tu vai ficar que nem eu, e eu sou muito
humilhada por ter três filhos como mãe solteira... as pessoas pisando, chamando de
um monte de coisa, de puta, até inclusive ela hoje me chama de vagabunda, então... eu
tentei botar na cabeça dela que é difícil tu ter um filho e acontecer isso aí né?”. A mulher
expressa uma competição entre mães e filhas nas duas gerações: “o meu marido me
ajudava (financeiramente), né? A gente tinha uma vida melhor, ela acha errado, mas
ela não acha errado ela estar com o dela. Tanto ela que nem minha mãe parece que eles
só querem que eu fico mal, porque se eu comprar uma coisa, a minha mãe fica louca [...]
eles querem que eu sempre fique menos que todo mundo”. Conclui, sobre a menina: “ela
acha que eu tô sempre abandonando ela [...] ela chama muito a atenção por isso, chora
bastante, ela quer ter a liberdade dela e eu... É como se ela fosse a minha mãe e eu a filha
dela, é assim que ela quer”.

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Discussão Caso Maria

Maria releva importantes questões familiares de estrutura e interação


disfuncional. Ao mesmo tempo em que transmite sentimentos muito negativos em
relação à sua própria mãe, esta participou ativamente da criação de seus quatro
filhos. Esse movimento mostra emaranhamento, conceito sistêmico que consiste em
um funcionamento familiar sem delimitação de hierarquia e papéis, havendo uma
mistura de funções sem clareza e, por vezes, com invalidações (Nichols & Schwartz,
2007). A mãe de Maria, pelo modo como conduziu a situação, a partir das próprias
vivências, conceitos e sentimentos, assumiu os cuidados com os netos, desautorizando
a filha e não auxiliando no desenvolvimento de sua maternagem (SmithBattle &
Leonard, 2014). Ao contrário, suscitou sentimentos de incapacidade da mesma em
relação à filha adolescente, agora grávida e, nesta, sentimentos de abandono pela
mãe. Esse comportamento, parece trazer uma “competição” transgeracional, já que
a mãe de Maria, segundo a percepção desta, parece querer ser mais admirada pela
neta, denegrindo a filha diante dela, e também não gosta que ela tenha mais coisas
ou sucesso na vida. Esse movimento é também visualizado na adolescente que, por
necessidade de atenção, interpela a relação conjugal da mãe e, ao mesmo tempo, não
escuta seus conselhos sobre a própria relação amorosa. Assim, percebe-se que Maria
e sua filha agem mais como irmãs, não havendo o papel de autoridade necessário à
parentalidade adequada, o que resulta em permissividade/indulgência e sentimento de
desamparo (Silva, 2017; Weber et al., 2004).
A ausência da necessária contenção emocional na adolescente por meio de um
estilo parental adequado é representada pela agressividade, já que ela reage de modo
violento quando contrariada e quando percebe alguma situação como indício de
abandono ou não investimento emocional. Ao mesmo tempo, Maria não consegue
exercer o papel parental, possivelmente, pelo seu próprio desamparo, demonstrando
ter as mesmas necessidades dos filhos e não conseguindo assumir o papel de mãe.
Assim, a permissividade presente na criação da adolescente resulta na referida baixa
tolerância à frustração, constituída pela falta de limites. O déficit no contato com
figuras masculinas e a experiência com figuras femininas sem autoridade pode ser vista
como um fator de risco para a vivência de violência na relação conjugal da gestante,
que acaba se tornando submissa ao companheiro quando este torna-se opressivo. Da
mesma forma ocorre com Maria, que, diante do desamparo na família de origem e
baixa autoestima, vive uma vinculação disfuncional com o marido, submetendo-se a
uma relação conjugal sem respeito por dependência financeira e emocional.
A gravidez da filha é vista por Maria como parte de sua característica
desobediência, já que todos a alertavam e não foram ouvidos. A falta de vínculo das
duas parece estar relacionada a essa dificuldade de comunicação emocional, onde

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a mãe se preocupa em não ver a filha tendo as mesmas experiências negativas dela,
buscando aconselhá-la, ao passo que a mensagem não é recebida pela adolescente em
função do conflito de acusação por abandono que perpassa a relação. Assim, segue o
padrão familiar de não satisfação das necessidades afetivas, bem como de busca por
elaboração, nas novas gerações, por meio da gestação.

Caso Rita

Rita foi entrevistada em sua casa, na presença da filha adolescente gestante e


seu companheiro e um filho adulto. Enquanto falava, amassava pão, representando
seu papel matriarcal para a família. Relata ter criado os quatro filhos praticamente
sozinha, já que o primeiro companheiro, pai dos dois filhos mais velhos, “me trocou por
outra, né, foi embora com outra mulher” quando eram pequenos. O pai da adolescente
gestante nunca foi seu companheiro: “Nós nem vivemos nunca juntos, só tive ela
mesmo”. O último companheiro, pai da filha mais nova, foi uma figura paterna para a
adolescente até seus 3 anos de idade, quando faleceu: “eu tava grávida da outra [...] ela
chamava até ele de pai [...] eu fiquei com ele quando ela tinha um aninho e dois meses
mais ou menos, e daí ela considerava ele como pai. Só que daí ele faleceu e daí ela ficou
revoltada, né? Ele era como pai dela, fazia tudo que o pai dela não fazia pra ela”. Sobre
a experiência de criar os filhos sem parceria, relata: “Todos sem pai, pai não tem muita
presença né, não tem muita... por isso que é mais difícil... é difícil, que nem assim, acho
que com o pai as gurias, principalmente, a mulher, porque os guris não incomodaram
nada, sabe... as gurias também não incomodaram, mas assim de tu ter ‘não, não vai’,
sabe? Os guris não, porque os guris foram muito calmos, mas daí as meninas já é mais
difícil, né? Que nem ela foi difícil depois que ficou adolescente, e a outra já tá ficando
adolescente, daí também é difícil. Daí tu não tem aquele ‘não!’, tu não tem aquele
pulso firme do ‘não’, né, daí fica já diferente”. O pai de Rita auxiliou a filha com itens
materiais, porém a família de origem dela foi pouco citada.
A gestação da filha, iniciada aos 13 anos, se mostrou ambivalente para Rita.
De um lado, aconselhava para que a menina se cuidasse, porém com permissividade
e inabilidade para contenção emocional: “ela queria o bebê, né, ela queria. Não foi
falta de dizer assim ó... porque eu converso né, mas ela ‘ai mãe, eu quero, eu quero’, ‘ai
filha tu é tão nova, tão nova...’, mas ela dizia ‘ai mãe, eu quero um bebê, eu quero, eu
quero...’ daí eu disse ‘então tá! Vamos ver o que vai dar, né?’. Até que foi que... agora
ela vai ter um bebê”. Por outro lado, a mãe também revela que a gestação trouxe certo
alívio para suas preocupações com a segurança e bem-estar da filha: “É que ela tava
muito revoltada esses tempo, que nem agora ela se acalmou... ela queria andar, sabe, na
rua, assim, criança né, e daí agora não, agora não sai, fica aí dentro de casa tranquila,
agora ela tá bem [...] porque antes ela não tinha cabeça nenhuma, e daí agora ela tá bem
comportada, ela fica comigo que é bom, porque eu tinha medo que saísse assim... Ela

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andava com umas más companhias [...] mãe é assim, né, quando eles tão em casa, tudo
dormindo, pra mim é bom, tão tudo dentro de casa...”.
Apesar das dificuldades, Rita revela uma família que se ajuda mutuamente: “a
gente é pobre, nós ganhamos pouco, mas o que está ao nosso alcance nós vamos se ajudar.
Eles me ajudam, eu ajudo eles, nós somos tudo uma família unida, os meus guris ajudam,
comida cada um dá um pouco, compramos sabe... não é assim ‘esse é meu!’, não, tudo
compartilhado, nada de ‘é meu, é meu, não é teu’, sabe?”, havendo harmonia na casa.

Discussão Caso Rita

A parentalidade desempenhada por Rita demonstra afeto, mas com poucos


limites, indicando um estilo permissivo/indulgente (Silva, 2017; Weber et al.,
2004), pelas condições de dar conta sozinha da família e as próprias dificuldades
de amparar as necessidades afetivas das filhas, principalmente, não conseguindo
interditar comportamentos inadequados e fazer a demandada contenção emocional.
A adolescente, manifestando um comportamento infantilizado que lembra uma
birra, “eu quero, eu quero, eu quero” não foi contida e, ao contrário, foi autorizada a
conseguir seu desejo, como se estivesse falando de um objeto que estaria reivindicando
até a mãe conceder. Como consequência de seu desamparo e falta de apoio social,
a família buscou o recurso do que Rita chamou de união, porém que pode ser visto
como emaranhamento (Nichols & Schwartz, 2007), já que é difícil para os membros,
especialmente os filhos mais velhos, “abandonarem” esse núcleo frágil para seguirem
suas vidas com autonomia e individualidade, pois estariam deixando grande
vulnerabilidade para trás. O comportamento de risco da adolescente é significativo
nesse caso, pois para a mãe a gravidez é melhor aceita por tirar a filha da rua e das
más companhias, sendo vista como um fator de proteção, assim como Hoga, Borges e
Reberte (2010) identificaram em suas análises, já que ela não conseguia conter a menina
sozinha. Rita falou pouco sobre sua história pessoal prévia à maternidade, bem como
sobre relacionamentos com a família de origem, para que fronteiras pudessem ser
avaliadas e compreendidas na família atual.

Caso Ângela

Ângela foi entrevistada em sua residência, na presença da filha gestante e de


outra filha adulta jovem. Foi criada sem a mãe por perto, apenas o pai, que bebia muito
e trabalhava direto, tendo criado os quatro filhos sozinho, porém sem muito tempo
para eles. A mãe foi embora, deixando-os pequenos e nunca mais os procurou. O pai
é referido como herói, apesar de todas as dificuldades vivenciadas. Ângela está casada
desde os 16 anos de idade com o pai de suas quatro últimas filhas, com quem tem
uma relação distante emocionalmente, sem diálogo ou interações em termos de vida

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afetiva: “o pai dela, como que eu vou dizer, o pai dela é daquele tempo dos antigo sabe?
O pai dela é muito brabo, muito... [...] quietão, na dele. Ele não é de conversar, a gente
não conversa muito. Tipo, ele é fechado. Mas se tu perguntar uma coisa ele te responde
normal e tudo, mas ele não dá, ele não continua o assunto...”. Acrescenta, sobre o
marido: “ele foi uma pessoa que, nunca foi de deixar faltar nada, mas foi uma pessoa que
me aprontou muito. Muito mesmo”. Ângela justifica o jeito de ser do marido: “ele perdeu
o pai dele ele tinha seis anos né, a mãe dele matou o pai dele ele tinha seis aninhos. Com
dez anos por aí ele saiu de casa, então ele sempre diz que o pai que ele teve foi o meu pai,
que foi onde ele conheceu e que aconselhava ele como pai”. Quando questionada sobre o
seu jeito de ser nas relações, reflete: “Ah, eu sou mais fechada. Não do... Eu tenho cinco
filha mulher, e eu não sei dizer assim, nem pra essa de sete anos, chegar e dizer assim ‘ah
eu te amo, eu gosto de ti’. Não sei, não consigo dar carinho mesmo”. O início da relação
do casal teve episódios de violência física, tapas do marido nela, mas depois cessou.
Atualmente, os conflitos são resolvidos assim: “Eu mando ele calar a boca, daí daqui a
pouco eu brigo, já mando ele sair, ir embora, daí ele pega e vai pra rua, andar, daí daqui
a pouco ele volta de novo pra dentro. Daí ele deixa eu batendo boca sozinha”.
Sobre a gravidez da menina, Ângela demonstra reviver a própria história,
referindo: “Olha, moça, vou ser bem sincera, não gostei muito... porque uma que é muito
nova, não quis terminar os estudos, eu acho assim, pra tu pensar em ter um filho tu tem
que planejar bem, porque a crise que a gente anda não é fácil ter um filho agora. Eu fui
mãe nova, não nego, fui nova com a idade dela, mas se eu pudesse voltar atrás eu pensava
muito... [...] voltou tudo aquele tempo que eu engravidei, moça. Porque eu sei que não é
fácil”. A respeito da própria gravidez na adolescência, relembra: “Eu e a minha irmã mais
velha começamos a sair e se divertir, sair pra baile e essas coisas e foi onde que eu... mas
quando eu descobri que eu tava grávida, eu tava de nove meses já... de nove meses quando
eu descobri...”. A primeira filha foi criada pelo avô materno, que continuou auxiliando
com as outras meninas até sua morte, o que representou uma perda extremamente
significativa para Ângela. A relação com o pai é citada como muito próxima, sendo
que ele, por vezes, excedia os limites da nova família, se envolvendo além do necessário
na relação da filha com o marido e desta com as netas: “uma vez nós tava querendo, se
separando, e ele deu conselho até pra gente não se separar”.
A gestante adolescente é referida como “a filha que me deu dor de cabeça”, já
que “ foi uma guria assim que ela ‘locou’ de andar na rua, daí ela saiu três dias e eu
dei parte, pode ir no Conselho que tá lá, eu fui na delegacia e dei parte dela [...] tinha
sumido três dias, daí ela apareceu, daí voltou a estudar, depois resolveu não ir mais, daí
ficou mais um tempo fora de casa com o outro rapaz antes de ela casar com o pai do filho
dela, e daí nós ia no CREAS lá com a psicóloga, daí de lá ela encaminhou nós aqui pro
CAPS, com o outro psicólogo, que acho que ela quis meio se envolver em droga e coisa.
Daí ela saiu de casa, e daí quando ela apareceu com esse rapaz, o pai do filho dela, que

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daí ela trouxe pra nós conhecer”. O despreparo de Ângela, sua dificuldade de exercer
a maternagem com diálogo, principalmente sobre sexo e gravidez, transparece, além
do fato de ter descoberto a primeira gravidez aos 9 meses de gestação, no seguinte
comentário: “A minha mãe não me explicou isso, quando eu fiquei mocinha quem me
explicou foi a minha falecida tia, que daí eu fiquei lá e não sabia. Tava tomando banho e
desceu e eu saí correndo lá na casa da minha tia apavorada, achei que tinha me cortado
guria, e daí a minha tia sentou e me explicou direitinho, e daí naquele tempo não tinha
esses coiso que a gente usa agora, daí ela cortou uns paninho fininho, me explicou como
é que usava, daí eu nunca falei disso. Sou bem sincera pra te falar. Se aprenderam,
aprenderam sozinha, eu nunca...”. A dinâmica mostra uma família com ausência de
demonstração de afeto, comunicação pobre, casal distante. Ajudam no sentido de apoio
material, porém o suporte emocional é deficiente.

Discussão Caso Ângela

Na família atual de Ângela percebe-se transgeracionalidade (Falcke & Wagner,


2005) no que tange à vinculação afetiva. Tanto ela quanto seu marido foram crianças
desamparadas, tendo vivido traumas importantes como o abandono materno e
o homicídio passional no casal parental, respectivamente. Assim, Ângela cresceu
sem a presença da mãe e o marido cresceu sem os pais, não tendo referências, ou as
tendo de modo negativo, sobre esses papéis na família e o que é esperado que façam.
Ambos refletem, diante das filhas, a própria necessidade afetiva, não conseguindo
desempenhar uma parentalidade adequada por conta de seu embotamento afetivo e
inabilidade para o diálogo. Nesse caso, observa-se um estilo parental mais próximo da
negligência (Silva, 2017; Weber et al., 2004), pois não há clareza nem na manifestação
afetiva e no cuidado, apesar de significarem suporte financeiro, e nem presença de
regras ou limites, representados na fala de a filha ter ficado sumida três dias e terem ido
buscar o limite em instâncias externas à família, como delegacia e conselho tutelar.
Além da herança afetiva, esse caso trouxe também a transgeracionalidade da
gravidez na adolescência, tendo Ângela sido mãe de sua primeira filha na mesma
idade que a filha adolescente tem atualmente. Em termos de estrutura, essa família
demonstra fronteiras rígidas, cuja característica é a ausência de trocas entre os
subsistemas (Nichols & Schwartz, 2007), marcadamente, nesse caso, entre pais e
filhas, entre irmãs e entre o próprio casal. A comunicação é truncada, não acessando
conteúdos emocionais e necessidades afetivas nem em subgrupos e nem no sistema
familiar como um todo.

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Discussão

Síntese de Casos Cruzados

Nos três casos, percebeu-se a presença de estilos parentais disfuncionais (Silva,


2017; Weber et al., 2004), por não contemplarem as necessidades dos filhos como
um todo, faltando o equilíbrio entre afeto e regras, o que traz sentido e segurança à
relação familiar. Tal constatação se mostra vinculada a características transgeracionais
(Marin et al., 2013), de padrões familiares com problemas em termos de comunicação,
acolhimento, amparo e sem bons exemplos de família. É marcante nesse estudo o
déficit da figura paterna, sendo que em dois casos ela não existiu e no terceiro ela não
cumpriu seu papel. A visão estereotipada de homem apenas como provedor (Botton et
al., 2015; Borsa & Nunes, 2011) foi percebida nas vozes dessas mulheres, que mostraram
sentimentos de desamparo e impotência para o exercício de tantos papéis na família,
tendo vivências nas famílias de origem que não as prepararam para tal. Além disso, nos
dois primeiros casos, a função paterna de interdição e de força para dizer “não” quando
necessário foi exposta como vinculada ao homem, não sendo percebida como uma
característica necessária às mães também (Borsa & Nunes, 2011).
Patologias de fronteiras puderam ser vislumbradas, tanto de fusão
(emaranhamento), quanto de desligamento afetivo por rigidez e falta de comunicação
(Nichols & Schwartz, 2007), funcionamento também herdado de outras gerações
e vinculado à dificuldade de estabelecer um nível adequado de pertencimento
e diferenciação da família de origem (Bowen 1991). Desse modo, a gravidez na
adolescência pode ser discutida não apenas enquanto um “desejo individual”, mas
também como consequência de uma construção social e familiar com ruídos, que
precisa ser revista de modo igualmente complexo ao invés de reduzir o fenômeno ao
micro contexto da mente adolescente e sua problemática.
Características dos sistemas familiares, como patologias de fronteiras, estilos
parentais disfuncionais e experiências de desamparo e violência no contexto familiar
e social podem estar subjacentes às motivações para a gestação, em especial nesses
três casos estudados em que as adolescentes planejaram a gravidez. A experiência da
maternidade parece significar um desejo de mudança de perspectiva, buscando dar
ou ganhar do filho o que não lhe foi proporcionado. Para as mães das adolescentes
grávidas, a decisão das filhas é vista como mais um ato de desobediência, “não me
ouviu”, sem que em nenhum momento seja questionado o lugar e as demandas
do bebê. Aposta-se no desejo de mudança, mas, na prática, mostra-se forte a
tendência à repetição dos mesmos padrões familiares, como se buscassem um final
diferente trilhando o mesmo caminho. Nesse sentido, fica evidente o fenômeno da
transgeracionalidade e a necessidade do planejamento de intervenções que promovam
o rompimento do ciclo de repetições dos padrões disfuncionais.

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Considerações Finais

As percepções apontadas pelas mães, em termos psicossociais, familiares e


culturais, e também na literatura, precisam ser consideradas diante de projetos de
educação sexual e planejamento familiar, buscando auxiliar as jovens na elaboração de
suas conflitivas de forma realista e não via idealização de alguém ou uma relação que
possa ser a solução. Para os casos como os do presente estudo, no qual a gestação já é
uma realidade, também propõe-se pensar intervenções psicológicas no vínculo precoce
das adolescentes com seus bebês, já que as mulheres desse estudo demonstraram que
sua fragilidade emocional reverberou nas filhas, transgeracionalmente, o que tende a
continuar acontecendo nas próximas gerações. Percebe-se a importância e relevância
de retomar com as jovens suas vivências de desamparo, remontando à dificuldade de
ser continente quando não se teve essa experiência. Para isso, convida-se os setores
públicos nos âmbitos de saúde, educação e assistência social a se articularem para
promover espaços terapêuticos familiares, que atuem de forma eficaz na interrupção de
vinculações afetivas desajustadas. Também sugere-se a realização de futuras pesquisas
sobre o tema, com outros enfoques e métodos, para ampliar o debate, considerando
também os estressores externos que impactam no modo como as famílias funcionam.

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