Calligaris C O Inconsciente em Lacan em Knobloch F 1991 O Inconsciente Várias Leituras

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O INCONSCIENTE EM LACAN

Contardo Calligaris
O ensino de Lacan, como vocês sabem, se estende por 25
anos ou mais, segundo a data que se escolhe para começar a con-
tar, e é certo que, se tivéssemos que responder ao título "O In-
consciente em Lacan" de um jeito mais orgânico, precisaria falar,
talvez, de um primeiro, de um segundo e de um terceiro Lacan.
Além disso, de fato teria preferido o título "Lacan no Inconscien
te", talvez isso se explique depois.
Enfim, vou falar do "Inconsciente em Lacan" no momento
no qual Lacan fala mais do inconsciente. Vou escolher uma época
importante no ensino de Lacan, o começo dos anos 60. Se é que a
clínica lacaniana é diferente do que seria uma clínica propriamen-
te freudiana, e eu acredito que é, isso pode ser entendido como
implicando concepçócs distintas do inconsciente. Daqui a im-
portância deste começo dos anos 60. Para dar uma referência tex-
tual à qual vocês possam facilmente voltar, se quizerem, trata-se
dos primeiros capítulos do Seminário XI, "Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise" e do texto "Posição do inconscien-
te", que está nos Escritos. Este texto, "Posição do inconsciente",
tem uma relação com o que 1oi lalado ontem, particularmente
sobre Merleau-Ponty, pois ele resume a intervenção de Lacan no
mesmo de Bonneval, que foi mencionado.
colóquio
Vou introduzir, então, o que náo deixará de ser uma certa
vocës certamentee já notaram, se já tivee
simplificação deste jeito:
170 O INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

ram uma rclação de leitura com o texto freudiano c com o texto


lacaniano, que esses textos participam de estilos difcrentcs; isso,
acredito, uma evidncia para todos. Esta observação é tanto
mais relevante aqui, quc um dos raros momentos nos quais Lacan
explica porque o seu ensino se dá neste estilo que conhecemos e
que faz com que a leitura seja aparentemente difícil, um dos raros
momentos é justamente em "Posição do inconsciente". E a expli-
cação que cle dá do cstilo que cle escolheu para o seu ensino, e
quc foi escolhendo, de uma certa forma, cada vez mais, desse es-
tilo que poderíamos chamar de aforismático, embora não seja
bem disso que se trata, a explicação é queo que se espera de um
ensino são efeitos. Freud teria acredito justificado o seu
próprio estilo com a idéia queo que se espera de um ensino seria
a transmissäo de um saber (sem deixar de
por isso observar
que,
como se expressa Goethe, "o que podes saber de melhor, não vai
pode-lo transmitir"). Não é por acaso - parece-me - que Lacan

justifica o seu estilo justamente no texto onde ele resume a po-


sição do inconsciente, pois, esta diferença entre estilo freudiano e
estilo lacaniano de ensino é relativa a uma diferença de posições
do inconsciente.
Se tivéssemos que resumir, quanto mais brevemente possível,
então caricaturalmente, a diferença entre uma prática freudiana e
uma prática lacaniana, acredito que o caminho mais breve seria
dizer que o próprio de uma prâtica ireudiana e pensar que a ver-

dade do sujeito, averdade inconsciente, é suscetível de ser


sua
convertida em um saber, e que esse saber pode ser, evidentemen-
te, formulado e devolvido ao sujeito, que não sabia, ou que sabia
sem saber. O essencial é a idéia que a verdade possa vir a ser um
saber (ou o saber que já era). E certo que as coisas em Freud
cstão bem mais complicadas do que isso. E certo que a partir dos
Escritos sobre a técnica, Freud volta sobre esta questão, a sua pra-
tica muda, se torna mais silenciosa e ele pára de comunicar aos

pacientes o saber psicanalítico. Vocês se lembram deste texto im-


portante do fim da vida de Freud, que é "Construções em anal-
se" onde aparece quanto o estatuto do que é comunicado ao pa
cicnte é particular c problemático,
mas, a
enfim, grosso modo,
acredito que se possa dizer que é algo próprio da prática freudia-
o INCONSCIENTE EM LACAN 171

na pensar que a verdade do sujcito seja suscetívcl de ser trans-


formada cm um saber.
Desse ponto de vista existe uma oposição da prática freudia-
na com a prática lacaniana, porque para a prática lacaniana tra-
ta-se justamente do contrário, eu diria: de separar verdade e sa-
ber, pois a verdade nãq é suscetível de transformar-se em um sa-
ber. Que não pare de tentar transformar-se cm um saber, é um
cfeito da neurose; por quê? Vou explicar-me. De onde surgiria
essa idéia que a verdade inconsciente do sujeito poderia ser um
saber? E uma idéia que surge na constituição mesma do sujeito
neurótico, porque a constituição edípica, então neurótica do sujei-
to, implica que ele aposte num pai ou, em outras palavras, que ele
suponha um pai como sujeito de um saber. A idéia mesma que a
sua verdade possa ser um saber é uma idéia sustentada pela po-
sição paterna. E um ponto extremamente importante, porque se a
prática freudiana é fundada nessa idéia, que a verdade pode con-
verter-se em um saber, isso nos explica a constatação decepcio-
nada de Freud ao fim de sua vida, quando neste texto magistral
que é "Análise finita e análise infinita'", ele constata que a psi-
canálise, de uma certa forma, irremediavelmente, não consegue
levar um sujeito além da confrontação com a rocha da castração.
E desta decepção que surge a aposta lacaniana a partir dos
anos 60, quando Lacan comcça a pensar, a partir de sua experién-
cia, em um fim de análise que seja um pouco outra coisa, um
além da rocha da castração, mas por isso precisa, evidentemente,
que a verdade e o saber se divorciem. Por que precisa isso? Por-
que se na prática mesma é sustentada a idéia que a verdade pode
chegar a transformar-se em um saber, essa prática só pode forta-
lecer a função paterna que justifica a suposição que a verdade se-
ja um saber.
Retomemos. Não é uma idéia natural que a verdade seja um
saber. Porque a verdade teria que ser um saber? Não é nada na-
tural que a verdade tenha que ser um saber. Os psicanalistas

acham, às vezes, normal que um sujeito se apresente em psicaná-


demanda como: "eu quero analisar-me para saber
lise, com uma

mais sobre mim". E uma coisa absolutamente extravagante, sin-


tomática: normalmente, se está numa queixa, ele deveria apresen

tar-se dizendo que ele quer que algo mude. Ninguém apresenta-
172 OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS
se a médico dizcndo que tem uma dor, e portanto qucr saber
um

a explicação anatomo-patológica desta dor; ele quer que a dor


parc. Então, como e que o
sujeito quc solre, produz uma qucixa,
chega em análise e pergunta: "eu gostaria de saber algo sobre
porque cstou assim", e csquece de pedir que a coisa mude. E
algo
freqüente e altamente sintomático: o que é sintomático é que o
ssencial para o sujeito em questão seja a sua relação com um sa-
r possível sobre a sua verdade.
Este saber suposto sobre a sua verdade é justamente anima-
pela instância paterna: por que? Quando um sujeito constitui-
no Edipo, ele supõeo paiquem deteria um saber sobre,
como
igamos assim para simplificar, o gozo materno, como quem po-
leria defendê-lo cuidando desta demanda
apavorante. A partir
Hesta suposição, o sujeito vai apostar na necessidade, para se
manter, de sustentar um saber (com o seu depositário) que o de-
fende. Então, a sua verdade aparece ao sujeito como sendo
possi-
velmente um saber suposto, só à medida na qual o sujeito está
tomado numa perspectiva propriamente neurótica. Por con-
seqüência, há uma grande diferença entre, por um lado, uma prá-
tica que acredita nisso, que é a posição neurótica mesma do
sujei-
to: uma prática que se propõe a transformar a verdade em um
saber vai fornecendo tudo que precisa para que o sujeito acredite
na suposiç o paterna; isso é inevitável em uma análise, mas só
pode deixar o sujcito confrontando ao seu destino edípico, à ro-
cha da castração, como fala Freud. E, por outro lado, uma
prática
que, muito pelo contrário, tenta justamente separar saber e ver-
dade, quer dizer, confrontar o sujeito à sua verdade inconsciente,
mas sem que por isso ele tenha necessariamente que supor que
essa verdade é ou poderia ser um saber. Em outras palavras, mais
freudianas, dissolver o complexu, deixando do Edipo o que ées-
truturante, poderia se dizer assim: levar a uma experiência da
Verdade na qual a função paterna se revele nua, não precisando
do manto de um saber.
Mas a questão que resta é: o que seria uma verdade que nao
seria suscetível de ser um saber, de transformar-se em um saber?
E um problema sério até
porque para nós, enquanto neuróticos,
pensar isso é complicado. Para poder avançar um pouco nesse as-
sunto, vou abrir um parentêse: vocês certamente conhecem esse
O INCONSCIENTE EM LACAN 173

aforisma lacaniano "o inconsciente é estruturado como uma lin-


guagem". Ese atorisma é problemático pois, juntando-se ao que
foi na claboração do ensino lacaniano o impacto da leitura de
Saussure c geralmente da lingüística estrutural, esse aforisma
acabou autorizando uma leitura extremamente simplificada do
que seria o inconsciente para Lacan. Vale a pena assinalar isso,
pois geralmente acontece que, quando quer pedagógico, se
se ser
acaba nessa leitura simplificada que não é para acreditar. Vocês
conhecem certamente alguns elementos básicos da lingüística
saussuriana, como a distinção língua/palavra que é uma oposição
que se sobrepõe a distinções como compctência/performância,
paradigma/sintagma, diacronia/sincronia e código/produção.
O código sendo a língua num cixo vertical, a competëncia de
quem fala, e a produção sendo o eixo horizontal da palavra. Em
outros termos, uma idéia básica da lingüística estrutural é que,
para poder produzir uma fala, é necessário uma presença perma-
nente do código, enquanto ele permite que os elementos falados
sejam diferenciados e que esses elementos sejam organizados de
forma a produzir um sintagma significativo. O que importa para
nós é a leitura pedagógica que foi dada do aforisma "o incons-
ciente é estruturado como uma inguagem, particularmente
quando se começa a explicar o que é inconsciente em Lacan pe-
gando o lapsus sempre o mesm0, aliás, o de Signorelli -como
exemplo princeps. O que se tenta mostrar com esse lapsus e que
a verdade inconsciente seria da ordem do código, da língua; em
outras palavras, quer-se mostrar o seguinte: que o sujeito estaria
falando, produzindo uma fala e normalmente haveria, a cada
momento da sua produção, um eixo vertical que seria o código
que permite que o que ele produz na fala sejam elementos dife-
renciados. Só que, por exemplo, haveria uma parte desse código
que seria de uma natureza qualitativamente diferente do código
propriamente lingüístico, seria um código inconsciente. Então,
desde que tivesse alguma falha no discurso do sujeito, elementos
desse código inconsciente precipita-se-iam porque, como cada
simplificação se-
natureza a horror do vazio. Então, a
um sabe, a estruturado co-
pegar o aforisma lacaniano, "o inconsciente é
mo uma linguagem" para pensar o inconsciente como sendo uma
parte singular do código lingüístico. Vocês vêem bem que, se va
174 OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS
mos por este lado, de repente o inconsciente em Lacan é
"alguma
coisa". Ir por este lado signilica dar ao inconsciente de Lacan um
estatuto ôntico: cle seria alguma coisa, um pedaço da memória,
scriam alguns significantes na memória do sujeito que se
organi-
zariam num código alternativo que atrapalha o código normal e
que se manifesta então em lapsus, sintomas e companhia. Além
das qucstões que surgiriam imediatamente
(por que diabo esse
código alternativo interviria? Em quais falhas e como essas falhas
se
produziriam?), o
problema é o seguinte: Lacan nunca falou
que o inconsciente é estruturado como uma língua, ele falou que
o inconsciente é estruturado como uma
linguagem, é muito dife-
rente. Lacan geralmente
pesa suas e sabia palavras perfeitamente
que emSaussure linguagem quer dizer língua e
e fala. E se Lacan
palavra, código
propöc inconsciente estruturado como uma
o
linguagem, a primeira coisa que isso quer dizer é que o incons-
ciente fala, não que o inconsciente
seja um pedaço do código,
mas que ele fala. Quer dizer o
quê, que ele fala? Que o incons-
ciente é a moradia, do
a casa
sujeito, do sujeito que fala: em ou-
tras palavras, o inconsciente é o lugar de uma
enunciaçãq.
E isso que quer dizer "o inconsciente é
estruturado como
uma
linguagem", só que isso que acabo de enunciar, evidentemen-
te, é também problemático, porque, se vocês
de lingüística, vão conhecem um pouco
perguntar-me: em que sentido você entende o
"sujeito da enunciação"? O sujeito da enunciação, vocês sabemo
que é: é o sujeito que fala, que produz o
do sujeito gramatical ou enunciado, distinto então
lógico enunciado. Se falo "estamos
do
aqui reunidos", "nós" é sujeito do meu enunciado, mas o
da enunciação sou "eu". O sujeito
so pelo
sujeito da enunciaço não é só
expres-
pronome pessoal da primeira mas também pessoa, por
uma série de elementos da
ciação, comutadores, shifters. Benvéniste,
linguagem que são índices da enun-

Ihou com Lacan, escreveu um texto


um lingüista que traba
famoso sobre os
pronomes de
pessoas e sobre os
shifters,
istas. Um shifter é
um texto
importante
para os psicana
um elemento na linguagem
que faz referëncia
ao sujeito da enunciação. Por cxemplo, se eu falo
que "agora" denota uma "agora" é
certo
vamente ao momento no
temporalidade que só se entende relati-
qual estou falando, então
shifter, porque denota, indica o tempo da minha "agora"
é um
própria fala.
O INCONSCIENTE EM LACAN
175
Mas scrá que é desse sujeito da enunciação que Lacan está
falando, quando ele insiste, tanto no começo do Seminário XI ou
em "Posição do
inconsciente", sobre laço indissociávcl
o entre o
inconsciente e o
ujeito do
inconsciente como sujeito da enun-
ciação? Acho que ele fala de algo difcrente do que se reconhece
como sujeito da enunciação do ponto de vista lingüístico. Há um
exemplo bonito que Lacan nos dá, no Seminário XI, acredito no
segundo capítulo, esta frase: "eu tenho três irmãos Paulo, Rober-
to c Eu". E uma frase muito intcressante do ponto de vista do su
jeito da enunciaço. Outro exemplo do que seria um shifter da
enunciação inconsciente são algumas construções bem específi-
cas, que foram explicitadas numa monumental gramática da lín-
gua francesa que Lacan menciona, uma gramática admirável es-
crita por um lingüista e um psicólogo que chamam-se Damouret-
te e Pichon. Trata-se do fenômeno seguinte: quando se fala em
francês "je crains qu'il ne vienne", a tradução é "receio que ele
venha". Se quisesse dizer "receio que ele não venha", seria "je
crains qu'il ne vienne pas", só que quando vocé afirma isso no po-
sitivo, "receio que venha" (je crains qu'il ne vienne) a primeira
parte da negação francesa (o ne da negação "ne.. pas") perma-
nece, como se falássemos algo parecido a "receio que não venha"
para querer dizer "receio que venha'". Um francês entende per-
feitamente do que se trata, pois fica aí, na frase, um indicador de
algo que talvez seja uma realização fantasmada antecipada do
que a gente está querendo (que ele não venha). Lacan assinala is-
so como sendo um tipo de shifier, de ndice da enunciação da qual
ele está falando.
A questão que coloca a idéia de um sujeito inconsciente da
enunciação aquém do sujeito lingüístico da enunciação, para um
analista lacaniano, está constantemente presente. Se de uma certa
1orma, caricaturalmente, um analista freudiano estaria se pergun-
tando sobre o que o paciente está dizendo, um analista lacaniano
estaria constantemente se perguntando de onde ele está falando.
ror isso, embora eu esteja viajando e morando no Brasil há al-
de
sempre parece-me
gum tempo, quem
terrivelmente brutal o tato
que
Justamente liga pergunte: "De onde fala?". E uma coisa
que dexavä-me num estado de afanise subjetiva, porque, de re-

desconhecido parecia perguntar-me a coisa mais ínti-


pente, um
176 O
INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS
ma da minha pessoa: de onde quc eu talo? As
respostas agressivas do primeiras vezes da-
va

voce quem está


lipo: "Mas de onde fala você? Mas é
igando". E um fato cultural
ropa ningum pergunta isso. A primeira coisainteressante;
na Eu-
que alguém que li-
ga fala: "Aqui é fulano. Eu queria falar com
ao contrário: "Quem fala?" sicrano". No Brasil é
"De onde fala?". As minhas res-
ou
postas produziam um efeito
entender, então, por exemplo,estranhíssimo, porque eu não queria
eu estava em Porto
ligava-me: "De onde fala?", eu respondia: "De Alegre,
Porto
alguém
Era cômico, mas me defendia de
uma pergunta violenta.
Alegre".
Então de que sujeito trata-se nesse
consciente? sujeito da enunciação in-
Infelizmente, não
dispõe, por um mistério que eu
se
não me
explico,tradução
na dos Escritos de
capital no ensino lacaniano que é o texto sobreLacan,
de um texto
"O estado do es-
pelho como mecanismo formador do 'eu' ". Assinalo o
trata-se do estado do seguinte:
espelho como mecanismo formador do
"eu", que não tem nada a ver com o "eu" no sentido de
Em francês o que
nós chamamos de "eu'", no sentido de
"ego".
designado pelo pronome complemento "moi", e Lacan fala no"ego", é
tado do espelho como mecanismo formador do Je, do "eu" graes
matical, do "eu" como sujeito da enunciação, não do "eu" como
"moi", como ego. Freud fala, como vocês sabem, Ich
"je" quanto "moi"), com a diferença que em alemão o(que neu-
é tanto
artigo
tro permite imediatamente diferenciar o ego como elemento tó-
pico, que para Freud é das Ich, neutro, e Ich pronome
pessoal da
primeira pessoa. Não quero retomar a história do espelho que 6
bem conhecida. Mas vocês se lembram do
na página 53 dos Escritos em
esquema L, que está
francês, representado na página ao
lado.
Queria chamar sua atenção sobre a direção das flechas. O
que é diagramatizado nesse esquema é, como se sabe, o seguinte:
que o sujeito aquém da subjetividade encontra a imagem de um
semelhante (i (a) )e
ta
que essa imagem antecipa para ele uma cer
intuição do corpo próprio, o que funda a sua alienação
seu

imaginária. Quer dizer que nós temos uma intuição do nosso


po próprio só como cfeito de uma antecipação especular que cor
nos
Outorgou o encontro com um semelhante. Mas o esquema não
pára aí, há uma flecha embaixo que vem de "A" que é o Outr0,
O INCONsCIENTE EM LACAN 177

S i(a)

m
A

quer dizer, falando geralmente, que vem do campo da linguagem


e cuja flecha é justamente o que abre, prepara, falando um pouco
imaginariamente, um espaço que é a casa da qual estava falando
antes, um espaço necessário no simbólico para que a antecipação
da imagem surja como embrionária constituição do sujeito.
Incito vocês a retomarem particularmente as últimas páginas
do texto que chama-se "Subversão do sujeito e dialetica do dese-
jo" nos Escritos. Nestas páginas, Lacan fala de algo que ele chama
de nome próprio, e que não se reduz ao nome próprio como Con-
tardo, Felícia etc., trata-se do nome próprio como o que designa
o sujeito enquanto a significação desse sujeito é absolutamente
incalculável. Lacan produz, aliás, um cálculo simples no qual con-
Segue mostrar que a significação do sujeito¬oprimeiro numero
imaginário, quer dizer, V-1(a definição de um número imaginá-
rio, e que é um númcro incalculável, pode ser escrito, mas não
pode ser calculado, por exemplo a raiz de um número negativo).
Trata-se de algo disso nessa flecha embaixo no esquema L que
Vem constituir uma casa para o sujeito do qual estamos falando,
para o sujeito da enunciação. Algo da ordem de um nome próprio
gue abre um espaço cuja significação é incalculável, ou seja, cuja
verdade não é suscetível de um saber, embora na sua história edí-
178
O INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

pica o sujeito não pare nunca dc procurar transtormar a sua ver-

dade num saber.


Nesse lugar primeiro, nesta casa do sujeito, é que estaria o
que é fundamentalmcnte o inconsciente para Lacan, quer dizer, o
sujeito inconsciente da enunciação. Mas estamos bem longe de
ter respondido a nossa pergunta: o que é este sujeito inconsciente
da enunciação? Para explicar um pouco mais, vamos tomar um
caminho que vai parecer estranho, porque vai levar-nos, aparen-
temente, a acreditar em uma tese quase filosófica e talvez bem
próxima das posições fenomenológicas; só depois veremos que as
coisas não estão bem assim. A idéia é que esse sujeito inconscien-
te da enunciação é sempre ele quem fala, não só na fala de um di-
to discurso inconsciente. Só tem fala porque tem sujeito incons-
ciente da enunciaç o; ele é constantemente presente e, se não ti
vesse esse sujeito da enunciação, a gente não falaria. Este sujeito
não é que esteja falando algo, ele é a condição para que qualquer
um fale algo. Se eu não fosse animado pelo meu sujeito do in-
consciente, pelo meu sujeito da enunciação, não conseguiria talar
agora; não é só quando eu vou acabar fazendo um lapsus, que é
inevitável, não é só aí que este sujeito falaria por cima de mim: 6
medida na qual eu falo, que esse sujeito está falando em mim,
está mesmo, diria, sustentando a minha fala, e na minha fala a
significação que eu estou produzindo é justamente o que oculta o

lugar do qual eu falo, de onde estou falando.


Esta hipótese tem uma série de conseqüências clínicas e éti-
cas importantes, assinalo-as imediatamente. Se o sujeito do qual
estou falando, que faz com que eu fale, se este sujeito também é o
sujeito do desejo, este sujeito deseja, mas não descja algo; sabe-se
que em "lacaniano", aliás, desejar é um verbo intransitivo. Quer
dizer que se estou pedindo cerejas, o problema não é que, pedin-
do isso, eu esteja pedindo outra coisa, pois o desejo inconsciente
não é desejo de algo esquecido, de algo proibido, recalcado, sobre
a mentira manifesta do meu desejo de cere
o qual eu produziria
jas. Nada disso: se eu desejo cerejas, é cerejas mesmo; não por
que o meu desejo inconsciente esteja querendo cerejas, mas por
esta
que, se desejo cerejas, é porque o meu desejo inconsciente
sustentando este desejo. E um fato importante do ponto de vista
clínico. A distinção latente/manifesto é uma distinção pouco la-
O INCONSCIENTE EM LACAN 179

caniana. Lacan, nas suas supervisões, quando alguém chcgava e


comentava: "o paciente disse assim c certamente qucria dizer as
sado", respondia geralmente que a únicá coisa certa é quc não
era assado que o paciente falara. Então, o desejo enquanto tal é o
que cxpressa-se em todas as minhas demandas, seja o que for o
que vou procurando na vida, de qualquer forma o desejo anima a
metonímia dos meus objetos. Desse ponto de vista, querer a
transformação do mundo, ou um carro novo, não é diferente. O
problema é querer, e se existe uma ética do desejo, não é uma
ética do desejo de carro novo e de cerejas, é uma ética do querer.
Odificil não é querer alguma coisa, o difícil é querer. Isso faz jus-
tamente com que a ética da psicanálise não seja de jeito nenhum
redutível a uma forma qualquer de moral, pois é uma ética do de
sejo, não de tal desejo.
Se evoca freqüentemente que a ética psicanalítica, segundo
Lacan, se enunciaria "precisa náão desistir do próprio desejo". Se
a ética da psicanálise se formulasse assim, seria um imperativo
super egóico, ou seja, a última coisa que a psicanálise pode pro-
duzir como ética. O que Lacan fala é que "a única culpa que a
psicanálise reconhece seria ter desistido do próprio desejo". Isso
não quer dizer que é culpa se resignar a não ter um carro novo ou
a cama materna ou outra coisa ainda que, quem sabe, ao fim de
uma análise eu finalmente saberia o que é, nada disso: talvez ao
fim da análise eu possa me permitir desejar (intransitivamente).
Voltando às considerações clínicas que fazia antes, sabemos per-
fcitamente quanto este pedido de análise que começa com um:
"eu gostaria de saber algo mais sobre mim", se completa assim:
uma vez que eu soubesse, eu poderia tomar algumas decisões",
sabemos quanto este começo de análise promete as piores ini-
bições. Esta posição, saber o que se deseja para depois poder
fazê-lo, só dificulta desejar. Porque o desejo não é algo suscetível
saber. O desejo é um exercício sem saber e o difícil é con-
de um

seguir desejar.
Posso acrescentar uma fique mais
coisa para que isso apenas
dos
claro. Vocês se lembram, certamente, que em A interpretação
sonhos Freud escreve que qualquer sonho sempre seria
uma rea

se consideram os so-
lização do desejo. Isso parece fácil quando
está com fome
nhos alucinatórios das crianças, nos quais quem
180 O
INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS
alucina um sorvete de cocoe da cert0, um sonho realiza um
io. Mas fica muito mais complicado quando um dese-
sonho não é des-
sC tipo, não é alucinatório do objeto querido, o
que é extrema-
mente freqüente.
Mas Freud mantem até o
fim essa idéia do so-
nho comosempre sendo a realização de um desejo. Como então
o sonho seria
sempre a realização de um desejo? Se a
do descjo é poder desejar, que o realização
desejo poSsa enunciar-se, é já o
que o realiza.
Ainda tenho que acrescentar duas coisas. A
primeira é a se-
guinte: não dá para conceber este sujeito do inconsciente do qual
estou falando como uma entidade
ontológica, tanto menos que é
um
sujeito evanescente. Por que? Se consegui fazer-me entender
até aqui, esse sujeito é
algo que só existe à medida em que o sig-
nificante o representa, à medida na
qual fala, e é justamente à
medida na qual fala que ele já
não é mais ele, é o
desapareceu. Porque de repente
significante que o representa, então este sujei-
to é uma
pulsação.
O segundo ponto, mais importante talvez, é uma
que esse sujeito inconsciente seria diferente de um sujeito trans-
questão: no

cendental do ponto de vista da fenomenologia? Pois o que falei


até aqui, acredito que seja compatível reescritura das
com uma
Meditações cartesianas que foram justamente citadas ontem. A di-
ferença se entende talvez passando por um outro leit-motivo la-
caniano: "um significante representa um sujeito para um outro
significante". Um outro significante, o que é? Um outro signifi-
cante é um outro sujeito. Em outras
palavras, o sujeito do incons-
ciente é certamente o lugar de onde Isso fala,
quer dizer, esse lu-
gar de onde o sujeito enuncia, mas este sujeito não está falando
sozinho, ele está falando em uma rede com outros sujeitos. Sa-
be-se que para Lacan o inconsciente é
dito que,
"transubjetivo". Até acre-
numatradução portuguesa, deveríamos dizer que é
transa-subjetivo, tradução quc o próprio Lacan teria gostado, cer-
tamente. O sujeito do inconsciente do
"de onde fala", mas isso fala
qual falamos é bem o lugar
para alguém e com alguém. A enun-
ciação inconsciente não é só um lugar de proveniência ocultado
pela signilficação produzida. A medida mesma na qual isso fala,
imediatamente desenha uma rede de lugares de interlocução,
quer dizer, de lugares com os quais se está falando, rede que é
o INCONSCIENTE EM LACAN 181

propriamente uma estrutura inconsciente. Daf as questões clíni-


cas são várias, não só: "de onde fala", mas também "com quem
e "para quem", "contra quem" etc. Desde que Isso fala, imedia-
tamente um mapa desenha-se, um mapa no qual o sujeito está fa-
lando numa transasubjetividade com e em uma rede de outros su-
jeitos (também inconscientes).
O inconscicnte de repente não seria só o sujeito que fala a
sua enunciação - mas o grafo de subjetividade com o qual ele

está organizado. Esta estrutura é o que poderíamos considerar


como sendo o inconsciente do sujeito. Será que é alguma coisa,
algum "ser", será que tem um estatuto ontológico? Se poderia di-
zer com efeito que o inconsciente lacaniano assim concebido tem
um estatuto ontológico, é uma certa forma de memória: seria
uma enunciação - a do desejo - que se produz num grafo de in-

terlocução transasubjetiva diferente do grafo consciente; por


exemplo, pensar que estou falando com vocês, e de fato a minha
enunciação está falando com e no Outro, autorizando-me de tal
traço do meu avo paterno, endereçando-me ao pai, e assim em
Seguida.
Acredito, com Lacan, que o "estatuto ôntico do inconsciente
6 frágil", pois o inconsciente, assim definido como grafo de uma
transasubjetividade onde aparece o sujeito, é algo para ser reali
zado. O que isso quer dizer? E uma posição que nos afasta da
idéia da estrutura lévi-straussiana, e também não é uma posição
fenomenológica, pois "para ser realizado" não tem nada de eidé-
tico. Este "para ser realizado" é uma questão ética e clínica.
Quando Lacan aponta, no mesmo texto, "Posições do incons-
ciente", que o analista faz parte do conceito do inconsciente, ele
nos indica que o inconsciente se realiza na cura, Nada aqui de
difícil: é certo que sem a escuta freudiana, o lapsus, por exemplo,
nunca teria deixado o seu estatuto de acidente para existir como
formação do inconsciente.
Em outras palavras, é a escuta e a fala do analista que carre-
gam a responsabilidade de devolver o paciente ao lugar transa-

subjetivo de sua enunciação inconsciente (onde isso estava, eu te-


nho que advir). Por sinal, esta devolução é a chance de uma
possível intervenção terapêutica eficiente, pois o mapa da transa-
182 OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS
Subjetividade não poderia ser modificado, por marginalmente que
scja, a não ser na sua realização.
Talvez entenda-se agora porque o titulo "Lacan no incons-
ciente" teria me parecido mais adequado, se é verdade quc,
mesmo no seu ensino, Lacan nunca deixou de procurar mais os
efcitos possíveis desta realização, do que a transmissão de uma
doutrina.

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