Tesegabrielab Lio
Tesegabrielab Lio
Tesegabrielab Lio
Belo Horizonte
2018
Gabriel Abílio de Lima Oliveira
Belo Horizonte
2018
981.04
L732d
2018 Lima Oliveira, Gabriel Abílio de.
Diogo Antônio Feijó e Romualdo Antônio de Seixas
[manuscrito]: regalistas e romanizados na formação do
Estado nacional (1820-1840) / Gabriel Abílio de Lima
Oliveira. - 2018.
268 f.
Orientador: Luiz Carlos Villalta.
Paying attention to the historical heterogeneity of intellectual formation and to the political
action of the ecclesiastical hierarchy’s representatives and their partners, this work will
privilege the study of two political and ecclesiological tendencies that began to draft in the First
Kingdom and intensified their disputes during the Regencies. Each of these trends had priests
at its leadership in the public sphere, namely, Regent Diogo Antônio Feijó, regent of the
Brazilian Empire, and Archbishop Romualdo Antônio de Seixas. Feijó and Romualdo produced
a vast intellectual repertoire and projected themselves on the coeval political scene. Concerning
the chronological beacons of this work, the first two decades of the formation of the Brazilian
national State are considered fundamental. That period witnessed the rise of the regalist clergy
led by Feijó, along with the moderate liberal political group and also the dissension within this
group. Between the two wings formed within the moderates, uncontrollable divergences
became evident and nourished the conservative Regress. This movement had the leadership of
Bernardo Pereira de Vasconcelos, having at his side D. Romualdo Seixas and other personalities
linked to a counterrevolutionary, orthodox and Romanized clergy. Vasconcelos and Romualdo
were among the protagonists of the fierce opposition undertaken to the regency of Diogo
Antônio Feijó. Subsequent to the reforms of the Additional Act of 1834, the regressive
offensive was fundamental to the creation of the Saquarema’s political nucleus and to the
genesis of the Conservative Party.
Keywords: Diogo Antônio Feijó. Romualdo Antônio de Seixas. Regalists. Romanized. Nation-
States.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 14
CONCLUSÃO 243
INTRODUÇÃO
1
Uma análise profícua sobre a relação entre as instituições do Estado absolutista português e a Igreja é a de Caio
Boschi: BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986. Sobre os trabalhos mais recentes que
abordam a história da Igreja no Brasil Colônia, ver: FEITLER, Bruno & SOUZA, Evergton Sales (Orgs.). A Igreja
no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo:
Editora Unifesp, 2011.
2
AZEVEDO, Tales de. Igreja e Estado em tensão e crise: a conquista espiritual e o padroado na Bahia. São Paulo:
Ática, 1978, pp. 11-14.
3
Ibidem, p. 26.
4
DORNAS FILHO, João; AZEVEDO, Fernando de. O padroado e a Igreja brasileira. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1938, p. 17.
5
Roger Bastide comparou o catolicismo na Espanha e em Portugal, considerando o culto luso “mais flexível e
humano”. Para Bastide, era uma religião influenciada pelos “Mouros” e “atenuada pela sensualidade Norte-
Africana e pela voluptuosidade Muçulmana”, mas que ao mesmo tempo “plasmou o lugar dos santos da
Reconquista”. Nos engenhos brasileiros, entre a capela e o capelão, formou-se um “Catolicismo familiar”
desprovido da “inflexibilidade do dogma” e do “puritanismo da conduta”. A própria Igreja católica foi permeada
pelo “Catolicismo privado” que não se limitou aos rincões do “sertão” e alcançou as cidades do litoral. Ver:
BASTIDE, Roger. Religion and the Church in Brazil. In: SMITH, T. Lynn. Brazil portrait of half a continent.
New York, USA: The Dryden, 1951, pp. 334-336 e 340. (Tradução nossa).
15
6
Apesar das ainda hoje evidentes heterodoxias gestadas a partir catolicismo colonial luso-brasileiro, cumpre
sopesar a perspectiva de um vazio no que dizia respeito ao apelo às ortodoxias doutrinais e disciplinares da religião
católica apostólica romana. Desde o século XVI, sobretudo pela ação da Companhia de Jesus, a diáspora
missionária capitaneada pelo clero regular implicou esforços no sentido de ventilar os valores da Contrarreforma.
No início do século XVIII, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas pelo arcebispo D.
Sebastião Monteiro da Vide (1643-1722), deram novo fôlego à aplicação dos dispositivos disciplinares do Concílio
de Trento. Dentre as principais iniciativas controladas pelas normas tridentinas e sinodais estariam o provimento
de cargos eclesiásticos, a administração dos sacramentos, além do controle do clero e dos fiéis através das visitas
pastorais. Com efeito, havia barreiras, algumas delas interiores à própria hierarquia eclesiástica, à aplicação e
manutenção de um catolicismo cioso das prerrogativas da Sé romana, mas havia também uma estrutura política,
administrativa, pedagógica, econômica e jurídica formada com o imprescindível auxílio das ordens regulares e da
Santa Sé. Ver: FEITLER, Bruno. Quando chegou Trento ao Brasil? GOUVEIA, Antônio Camões, BARBOSA,
David Sampaio, PAIVA, José Pedro (coord.). O Concílio de Trento em Portugal e nas suas Conquistas: Olhares
Novos. 1 ed. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa, 2014, pp. 157-173; LIMA, Lana Lage da Gama. As
constituições da Bahia e a reforma tridentina no clero no Brasil. In: FEITLER, Bruno & SOUZA, Evergton Sales
(Orgs.). A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011, pp. 147-178.
7
CASTRO, Zília Osório de. Antecedentes do regalismo pombalino: O padre José Clemente. Estudos em
homenagem a João Francisco Marques. Porto, vol. 1, pp. 323-331, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
2001, p. 323.
16
da Idade Média, herdeira da visão aristotélica segundo a qual o sacerdócio era parte constituinte
do exercício da cidadania em uma societas perfecta, “uma corporação independente e
autônoma”. A tese central do conciliarismo consistia na busca da legitimidade do poder pelas
“mãos do concílio geral” que, por sua vez, seria “a assembleia representativa dos fieis”.8 A
partir do questionamento de certa natureza despótica do poder papal, as bases seculares da
matriz constitucionalista eram lançadas.
A referência conciliarista estaria ligada à própria gênese da Reforma protestante,
movimento que também teria entre as principais questões de fundo a demanda pela autonomia
do poder civil perante o poder religioso. Desse modo, o catolicismo enfrentaria diferentes focos
de resistência à expansão de seu poder. Diante de tais afrontas, na Contrarreforma cresceu a
preocupação da Cúria romana em relação ao espaço que as novas heresias haviam conquistado
na Europa e, por conseguinte, nos territórios que viriam a ser dominados, por exemplo, pela
Inglaterra, que consolidava o anglicanismo. Entretanto, os esforços engendrados pelo Concílio
de Trento (1545-1563), resgatando o tomismo em contraposição às teses luteranas,9 não
impediram o recrudescimento do amplo espectro de oposições à noção de plenitudo potestatis
papal nos territórios onde a religião católica apostólica romana figurava como a crença oficial.
Na França do século XVII, a afirmação das teses postulantes da insubmissão ao poderio
da Igreja romana foi sintetizada no galicanismo, cujo principal expoente foi o bispo de Meaux,
Jacques Bossuet (1627-1704). Em face de um precedente de tensões entre a Igreja e o Estado
monárquico francês e diante das querelas entre Luís XIV (1643-1715) e o papa Inocêncio XI
(1676-1689), Bossuet redigiu a Declaração dos Quatro Artigos (1682). Tais diretrizes
reafirmavam a supremacia do poder do soberano perante o eclesiástico, formando a “Carta do
8
A defesa do domínio do sagrado como parte integrante do poder civil remontava a uma concepção sócio-política
e jurídica da própria Grécia Antiga. Aristóteles, em seu clássico A Política, insere os ministros e o sacerdócio entre
os “Elementos necessários à existência da cidade”, demarcando a proeminência do político sobre o religioso, do
civil sobre o eclesiástico. Aristóteles teve recepção e apropriação entre os precursores do conciliarismo, que
chegariam a conceber a própria Igreja como dotada de um mecanismo constitucional mais legítimo que a vontade
do Sumo Pontífice. Desse modo, Marsilio de Pádua (1280-1343?) defendeu a superioridade do Concílio sobre o
papa. Guilherme de Occam (1285-1347) postulava a descentralização do poder no interior da Igreja, concebendo-
a como congregatio fidelium e, no limite, questionava a consubstanciação entre as esferas civil e eclesiástica.
Contudo, o principal nome da tradição conciliarista foi o pensador, educador, reformador e poeta Jean Gerson
(1363-1429), o qual protagonizou oposição aos defensores da plenitudo potestatis papal, no contexto do Grande
Cisma do Ocidente (1374-1417). Ver: ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 95-102;
AMES, José Luiz. Marsílio de Pádua, precursor do Estado moderno. In: LOPES, Marcos Antônio (Org.). Grandes
nomes da História Intelectual. São Paulo: Contexto, 2003, pp. 194-203. CULLETON, Alfredo. A filosofia política
de João Gerson e o debate sobre a autonomia e os limites dos poderes. Veritas. Porto Alegre, v. 59, n. 3, set.-dez.,
pp. 469-488, 2014; SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996, pp. 394-403.
9
SKINNER, Quentin. Op. cit., pp. 422-425.
17
10
BOBBIO, Norberto. Dicionário de politica. Brasília: UnB, 1986, p. 533.
11
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo:
Ática, 1982, p. 340.
12
AZZI, Riolando. A crise da cristandade e o projeto liberal. São Paulo: Edições Paulinas, 1991, p. 138.
13
BOXER, Charles. O Império marítimo português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1969, p. 229; VILLALTA,
Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo
Horizonte: Fino Traço, 2015.
14
O episcopalismo consistia fundamentalmente na noção de que episcopado não deveria estar sob a jurisdição do
Sumo Pontífice, possuindo os bispos autonomia em matéria de exercício do seu poder sem a anuência da Sé
romana. Ver: CASTRO, Zília Osório de. Op. Cit., p. 328; PAIVA, José Pedro. Os bispos de Portugal e do Império,
1495-1777. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 171-213; SANTIROCCHI, Ítalo
Domingos. Questão de Consciência: os ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889).
Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 50.
15
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 13.
16
VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822). Rio de Janeiro: FGV
Editora, 2016, pp. 45-95.
18
17
VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa contra a Igreja: da razão ao ser supremo. Rio de Janeiro: Zahar,
1989, p. 25.
18
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Op. cit., p. 68.
19
Cumpre lembrar que em 1822, ainda durante a Regência de D. Pedro I, a lei eleitoral atribuía aos párocos a
função de realizar o censo dos indivíduos detentores dos direitos eleitorais. A partir de 1824, as próprias eleições
passaram a ser realizadas dentro da Igreja. A Assembleia Eleitoral de cada freguesia seria presidida pelo juiz de
fora ou ordinário com assistência do pároco, os quais comporiam a mesa eleitoral. O presidente e o pároco
indicariam dois secretários e dois escrutinadores a serem aprovados por aclamação. Ver: SANTIROCCHI, Ítalo
Domingos. Op. cit., pp. 86-90.
19
20
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade
Imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005.
21
SILVA, Wlamir. Ser ou não ser liberal, eis a questão: a cisão da moderação mineira no contexto do Regresso
(1834-1837). Anais eletrônicos XVI encontro regional de história ANPUH-MG. Belo Horizonte, 2008, p. 1.
22
LIMA OLIVEIRA, G. A. de. Chronistas e Atlantes: Justiniano José da Rocha, Firmino Rodrigues Silva e o
Regresso Conservador (1836-1839). 2013 (Dissertação de Mestrado em História) – UFSJ/DECIS. São João del-
Rei: 2013, pp. 84-109.
23
Sobre a direção política do grupo Saquarema, ver: MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo:
Hucitec, 2004, pp. 143-204. Sobre a questão da centralização, em detrimento da descentralização, a partir da figura
de um dos seus principais defensores e artífices, o visconde de Uruguai, ver: FERREIRA, Gabriela Nunes.
Centralização e descentralização no império: o debate entre Tavares Bastos e Visconde de Uruguai. São Paulo:
Editora 34, 1999, pp. 65-122.
24
HAUCK, João Fagundes. História da Igreja no Brasil: a Igreja no Brasil no século XIX – segunda época.
Petropolis: Vozes, 1992, p. 14.
25
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo (Org.) Reformismo da Igreja no Brasil Império: do celibato à caixa eclesiástica.
São Paulo: Loyola, 1985, p. 10.
20
26
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo (Org.). Op. cit., p. 10.
27
MARTINS, Karla Denise. O sol e a lua em tempo de eclipse: a reforma católica e as questões políticas na
Província do Grão-Pará (1863-1878). 2001. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de
Campinas/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 2001, pp. 49-54.
28
Joseph de Maistre (1753-1821) e Louis de Bonald (1754-1840) foram duas referências fundamentais da
contrarrevolução que se ergueu diante dos conturbados ventos de 1789, ambos “doutrinadores” do “partido
ultramonarquista” que sustentou a restauração dos Bourbon iniciada na França em 1815. Félicité de Lamennais
(1782-1854) fez parte deste círculo de reação e da causa dos “ultras” durante um bom tempo, porém, foi
protagonista de uma trajetória política e intelectual conturbada. Após as jornadas de 1830 e a destituição dos
Bourbon, Lamennais incorporaria a defesa do liberalismo à sua visão de mundo, passando a advogar pela soberania
dos povos, ao mesmo tempo em que recusava a primazia do poder espiritual sobre o temporal. Suscitou a oposição
do governo francês e do papa Gregório XVI, que condenou por encíclica a obra Palavras de um crente, lançada
pelo filósofo em 1834. Sua tentativa de conciliar a teologia cristã com as liberdades revolucionárias rendeu-lhe
muitos inimigos, mas também uma obra de grande influência sobre a intelligentsia oitocentista na Europa e na
América. Sobre os autores em questão, ver: WINOCK, Michel. As vozes da liberdade: os escritores engajados do
século XIX. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2006, pp. 62-66 e pp. 173-191.
29
ROMANO, Roberto. Apresentação. In: LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Política e Igreja: o partido católico
no Brasil, mito ou realidade? São Paulo: Edições Paulinas, 1982, p. 6.
21
ortodoxia romana também seriam apropriados. Para Roger Bastide, as primeiras ações efetivas
com vistas à ruptura da consubstanciação entre o culto católico e a sociedade formada sob o
signo do sincretismo afro-luso-brasileiro ocorreram durante o Império, no bojo da referida vaga
contrarrevolucionária.30 Segundo Kátia Matttoso, entre 1822 e 1840, iniciou-se a aproximação
entre Roma e a hierarquia da Igreja brasileira, que buscou “libertar-se da presença de um Estado
demasiadamente opressor, começou a preparar melhor seu clero para sua missão, reformou seus
costumes e, enfim, procurou assegurar para si a direção das numerosas funções que ela havia
abandonado aos leigos.”31 Especificamente sobre a divisão do clero a partir da década de 1820,
a autora se utilizou dos termos “regalistas radicais” e “regalistas moderados”: “os moderados
colocavam os poderes espiritual e temporal em pé de igualdade, ao passo que os radicais
subordinavam o espiritual ao temporal.”32
Diante desse intricado debate historiográfico, para fins de categorização da referida
frente que se formou em contraposição ao clero regalista liderado por Feijó, na análise que ora
se propõe do momento específico escolhido, utilizar-se-á a expressão “romanizados”.33 A
referência a um clero romanizado evita o termo “ultramontano” e permite melhor situar dois
momentos distintos.34 Na sequência da Independência brasileira, “a Igreja lançou os
fundamentos de sua ação futura” e, a partir década de 1840, sobretudo com o papado de Pio IX
30
BASTIDE, Roger. Religion and the Church in Brazil. In: Op. cit., p. 340.
31
Ao fazer uma abordagem da historiografia sobre os modelos cronológicos que balizaram o estudo da História
da Igreja no Brasil, Kátia Mattoso salientou duas divisões tripartites. A primeira abarcaria os séculos XVI-XIX,
com o primeiro período de conversão (1500-1759), o segundo período de predominância do regalismo (1759-
1873) e o terceiro período de independência da Igreja (1872-1891). A segunda divisão dizia respeito apenas ao
Império brasileiro, destacando o papel da Igreja no processo de emancipação (1808-1840), no processo de
formação do Estado liberal (1840-1875) e durante a crise final do Império (1875-1888). Para o Império, a autora
propôs um modelo de interpretação cuja divisão estaria assentada em dois momentos. Entre 1822 e 1840, a
reorganização da Igreja diante da Independência e da formação do novo Estado nacional. Entre 1840 e 1888, o
desfecho do processo de reformas. Ver: MATTOSO, Katia M. de Queiros. Bahia, século XIX: uma província no
império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, pp. 299-300.
32
MATTOSO, Katia M. de Queiros. Op. cit., p. 307.
33
A perspectiva de “romanização” foi utilizada por Roger Bastide para caracterizar os momentos finais do século
XIX e o início do século XX, quando, segundo o autor, a Igreja no Brasil teria superado em grande parte a herança
do “catolicismo familiar” colonial. Essa “romanização” da Igreja brasileira teria implicado, portanto, em sua
“desnacionalização”, na medida em que resultou no afastamento das ideias e práticas gestadas no peculiar contexto
colonial luso-brasileiro e na aproximação da ortodoxia universalista romana. Ver: BASTIDE, Roger. Religion and
the Church in Brazil. In: Op. cit., p. 343.
34
Essa situação não impede a utilização do termo, sobretudo porque ela é longeva e também pelas análises feitas
pelos autores das próprias fontes primárias e da historiografia pertinente.
22
Aspirando a glória de reformador da Igreja do seu País, ele pretendeu não só dotá-la
com as Doutrinas da Constituição Civil do Clero de França, mas ainda mimosear os
35
O esboço dos valores ultramontanos tomou força sob o pontificado de Gregório XVI (1831-1846), sendo
reafirmado, sobremaneira, por Pio IX (1846 -1878) a partir do ano de 1848, após um papado de início liberalizante.
O ultramontanismo teve sua expressão máxima com a promulgação do Sillabus Errorum e da encíclica Quanta
Cura – ambos em 1864 – e seria caracterizado pela “velha ideia segundo a qual cabe ao poder temporal,
impregnado da fé católica, pôr toda a sua força na propagação e no triunfo dela. Estando para a Igreja como a Lua
está para o Sol, o Estado, daquela recebendo sua luz, não é senão o seu instrumento temporal”. Ver: BARROS,
Roque S. M. de. BARROS, Roque S. M. de. Vida religiosa. In: HOLANDA, Sergio Buarque de Holanda (Dir.). O
Brasil monárquico: V.4 - Declínio e queda do império. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1971, p. 326.
36
MATTOSO, Katia M. de Queiros. Op. cit., pp. 299-300.
37
Segundo Ítalo Santirocchi, os porta-vozes dos preceitos tridentinos e da ortodoxia romana no período de
formação do Estado nacional mantinham fidelidade “às autoridades civis constituídas (...) não tendo como projeto
o combate ao regalismo, como aconteceria posteriormente com o ultramontanismo”. Talvez fosse o caso de
reforçar que não houve, entre 1820 e 1840, uma contestação integral e organizada à supremacia do poder temporal
sobre determinadas prerrogativas eclesiásticas. O próprio Romualdo Antônio de Seixas, por vezes, ponderou o
peso da autoridade régia e defendeu a fórmula do Padroado disposto da Constituição de 1824. Entretanto, no que
se referia aos avanços sobre os temas da disciplina e da nacionalização da religião, o arcebispo primaz foi crítico
mordaz do reformismo regalista. Ver: SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Op. cit., p. 75.
38
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 43.
39
Ibidem, p. 43.
23
nossos Padres com a permissão do casamento, sua mania predileta, e que sustentou com
todo o calor possível. Inimigo de sua classe, ele procurou despojá-la de sua
independência e antigos privilégios, e nunca se serviu do poder e influência, que
granjeou, para prestar-lhe o menor auxílio ou favor.40
40
SEIXAS, D. Romualdo Antônio de. Memórias do Marquez de Santa Cruz. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional,
1861, pp. 43-44.
41
Cumpre ressaltar que o alegado do anticlericalismo, característico aos radicalismos da Ilustração, tornou-se
difuso e manifestou-se, no mundo luso-brasileiro, sobretudo nas primeiras décadas do século XIX, em forma de
anticongregacionismo. Os membros do clero secular, a exemplo de Feijó, se esforçavam por combater o
corporativismo das ordens religiosas sob o jugo romano e não necessariamente o protagonismo do clero nas esferas
pública e privada. Sobre a questão do anticlericalismo e anticongregacionismo no contexto português, ver:
GARNEL, Maria Rita Lino. A polêmica sobre o celibato eclesiástico (1820-1911). PENÉLOPE, nº 22, pp.93-116,
2000, pp. 93-97.
42
MOREL, Marco. Op. cit., p. 49.
43
O Justiceiro, nº 6, 11/12/1834.
44
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale). São Paulo: Editorial
Grijalbo, 1967, p. 45.
45
CHARTIER, Roger. Origens culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 53.
24
Mesmo antes de a “opinião pública” vir a ser consagrada como uma expressão
normativa em áreas de língua alemã, a ideia de uma esfera pública burguesa alcançou
sua forma teórica plenamente desenvolvida com a elaboração de Kant do princípio da
publicidade em sua filosofia do direito e filosofia da história.47
Kant tornou-se, desse modo, uma das principais referências das Luzes ao delimitar a
importância da distinção entre as dimensões de privado e de público, sendo este último um
domínio de “indivíduos que têm os mesmos direitos, que pensam por si próprios e que falam
em seu próprio nome, e que se comunicam escrevendo para seus pares”. 48 No início do século
XIX, a noção kantiana de uma esfera pública que abrigava embates e confrontos opinativos já
vinha sendo desenvolvida, mesmo que de modo incipiente, no mundo luso-brasileiro.49
Seguindo tal dinâmica argumentativa, em seus Cadernos, no capítulo sobre a “Crítica da
Razão”, Diogo Antônio Feijó reiteraria seu apreço por uma abordagem embebida no apelo a
uma individualidade metódica, própria à herança kantiana:
46
HECK, José N. O princípio kantiano da publicidade na moral e no direito. Síntese, Belo Horizonte, v. 36, n. 115,
pp. 285-300, 2009, p. 286.
47
HBERMAS, Jürgen. The Structural Transformation of the Public Sphere: an Inquiry into a Category of
Bourgeois Society. Cambridge: The MIT Press, 1991, p. 102. (Tradução nossa).
48
CHARTIER, Roger. Op. cit., pp. 55-56.
49
VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822). Op. cit., pp. 46-51.
50
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., p. 115.
25
51
HABERMAS, Jürgen. Op. cit., p. 104. (Tradução nossa).
52
Ibidem, p. 104. (Tradução nossa).
53
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro:
EDUERJ: Contraponto, 1999, p. 108.
54
WERNET, Augustin. A Igreja paulista no século XIX: a reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861).
São Paulo: Ática, 1987, pp. 27-54.
55
ANDRADE, Mario de. Obras completas de Mario de Andrade: Padre Jesuíno do Monte Carmelo. São Paulo:
Martins, 1963.
56
SOUZA, Otávio Tarquínio. História dos fundadores do Império do Brasil (volume V): Diogo Antônio Feijó.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2015, p. 46.
57
REALE, Miguel. Feijó e o Kantismo (A propósito de uma crítica imatura). Revista da Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 45, p. 330-351, dec. 1949, ISSN 2318-8235, p. 344. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66132/68742>. Acesso em: 12 jan. 2017.
doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-8235.v45i0p330-351.
58
PINHEIRO, Cônego J. C. Fernandes Pinheiro. Os Padres do Patrocínio. Revista do IHGB, tomo 33, parte II, pp.
237-248.
59
SOUZA, Otávio Tarquínio. Op. cit., p. 16.
26
Romualdo Antônio de Seixas. O primeiro arcebispo primaz brasileiro também teve sua
formação influenciada pelos círculos sacerdotais, porém em ambiente intelectual diverso. Seu
tio, padre Romualdo de Souza Coelho (1762-1841), era próximo ao bispo do Grão-Pará, Manuel
de Almeida Carvalho (1747-1818), e estava inserido na alta hierarquia dos quadros eclesiásticos
marianos. No início de sua trajetória, o futuro primaz do Brasil esteve no Seminário Episcopal
da diocese do Grão-Pará e no Convento de Santo Antônio,60 continuando seus estudos na casa
da Congregação do Oratório de Lisboa.61 Logo no início de suas Memórias, justificou a razão
pela qual seu tio escolhera a referida Congregação, em detrimento da opção por Coimbra:
meu protetor, entendeu que convinha mandar-me a Portugal, a fim de concluir meus
estudos. Não julgou, porém, acertado que eu fosse para a Universidade de Coimbra,
onde, com quanto filho da mesma, pois era Bacharel em Cânones, persuadiu-se que um
menino de 15 anos sem nenhuma experiência do mundo, e entregue a si mesmo, no
meio das contagiosas impressões do vício e da impiedade, que são como inevitáveis
nesses grandes estabelecimentos científicos, não teria força para resistir à sedução dos
maus exemplos e doutrinas.62
60
SANTOS, Israel Silva dos. D. Romualdo Antônio de Seixas e a reforma da Igreja Católica na Bahia (1828-
1860). 2014. 290 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia/Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. Salvador: 2014, pp. 28-35. SEIXAS, D. Romualdo Antônio de. Memórias do Marquês de Santa
Cruz. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1861, p.3;
61
A Congregação do Oratório teve origem na Itália, foi difundida na França e estabeleceu-se em Lisboa em 1668,
constituindo uma sociedade de clérigos e “não propriamente uma ordem religiosa”. Os oratorianos protagonizaram
a vida intelectual de Portugal no século XVIII, fazendo oposição à perspectiva pedagógica, filosófica e teológica
inaciana. Ver: VILLALTA, Luiz Carlos; MORAIS, Christianni Cardoso; MARTINS, João Paulo. As reformas
ilustradas e a instrução no mundo luso-brasileiro. In: LUZ, Guilherme Amaral; ABREU, Jean Luiz Neves;
NASCIMENTO, Mara Regina do. Ordem crítica: a América portuguesa nas 'fronteira' do século XVIII. Belo
Horizonte: Fino Traço, 2013, pp. 36-37.
62
SEIXAS, D. Romualdo Antônio de. Memórias do Marquês de Santa Cruz. Op. cit., pp. 3-4.
63
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras: a política
imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 37.
64
SEIXAS, D. Romualdo Antônio de. Memórias do Marquês de Santa Cruz. Op. cit., p. 5.
65
CARRATO, Jose Ferreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais: notas sobre a decadência da cultura
mineira setecentista. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, p. 125.
27
66
CARRATO, Jose Ferreira. Op. cit., p, 140.
67
PEREIRA, Magnus Roberto de Mello; CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. Ciência e Memória: aspectos da
reforma da universidade de Coimbra de 1772. Revista de História Regional 14(1): 7-48, Verão, 2009; VILLALTA,
Luiz Carlos. A Universidade de Coimbra sob o reformismo ilustrado português. In: FONSECA, Thaís Nívia de
Lima e. As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2015, pp. 157-202.
68
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. cit., p. 127.
69
SIRINELLI, Jean–François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 242.
70
HBERMAS, Jürgen. Op. cit., p. 103.
28
Não duvido também que a opinião do Direito Divino dos Legítimos Soberanos, que o
Redator chama de fétida Doutrina, desagrade a muitos espíritos imbuídos nos princípios
de Grócio, e Puffendorf: mas, sem adotar o prejuízo, de que as coisas mais antigas são
sempre as melhores, e mais verdadeiras, eu estou intimamente convencido, de que
aquela Doutrina é a mais conforme à Razão, autorizada por muitos lugares dos Livros
Santos, sustentada pelos maiores Publicistas de todas as Nações, e ultimamente
proclamada no seio da mesma França pelo Presidente Seguier, no Discurso, com que
abriu a Primeira Sessão da Câmara dos Pares, e que ela só começou a cair no desprezo,
depois que a vertigem das Revoluções dos Povos contra os Reis alucinou por tal forma
os espíritos, que ao verdadeiro Código das Nações se substituiu um Direito ruinoso, e
subversivo de todas as Monarquias.71
A crítica era direcionada ao periódico O Português, cujo redator era tido por “sedicioso
Monarcômaco”.72 Para tanto, estabelecia a contraposição entre a perspectiva do direito divino
e do jusnaturalismo contratualista de Hugo Grotius (1583-1645) e Samuel Puffendorf (1632-
1694).73 Grotius e Puffendorf estavam entre os autores que embasaram as reformas pombalinas
instituídas em Coimbra no campo do direito.74 Por mais que a razão consistisse em um dos
centros da argumentação, do mesmo modo que no texto de Feijó, seu uso era feito de maneira
oposta. O recurso à razão servia para reforçar a legitimidade do direito divino, evocando a
Câmara dos Pares, cujos membros teriam sua nomeação como atribuição privativa do monarca.
Ademais, aparecia o nome de Pierre Seguier (1588-1672), que chegaria a ser ministro da justiça
e chanceler francês sob o reinado de Luiz XIV (1643-1715).75 Romualdo Seixas se opunha à
perspectiva de uma soberania constitucional, cara ao liberalismo, a partir de uma leitura
específica do absolutismo galicano francês.
71
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Diálogo entre um mestre, e seu discípulo, ou catecismo político para servir de
antídoto contra a impiedade, e sediciosa doutrina do jornal denominado O Português e oferecido à mocidade
brasiliense. Por um amigo da religião, e da pátria, natural da província do Pará. Lisboa: Impressão Régia, 1818,
pp. 5-6.
72
O Português ou Mercúrio, Político, Comercial e Literário foi editado em Londres e circulou entre 1814-1822 e
1823-1826. Seu redator, João Bernardo da Rocha Loureiro, era bacharel pela Universidade de Coimbra e
empreendeu cerrada oposição ao Governo de Lisboa até 1820, pugnando pela Revolução Liberal e pelas Cortes
Constituintes. Ver: SANTOS, Maria Helena C. dos. Imprensa periódica clandestina no século XIX: ‘O Português’
e a Constituição. Análise Social, volume XVI (61-62), 429-445, 1980, -1º -2º, pp. 429-433.
73
BOBBIO, Norberto. Op. cit., pp. 272-283.
74
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. Cit., pp. 134-135.
75
BOSSUET, Jacques; FLÉCHIER, Esprit et al. Oraisons funèbres de Bossuet, Fléchier et autres orateurs; avec
un discours préliminaire et des notices Par M. Dussault. Paris: Chez Louis Janet Libraire, 1822, pp. 99-106.
Disponível em:
https://books.google.com.br/books?id=JXbGPDHlM4sC&pg=PA99&lpg=PA99&dq=discours+pierre+s%C3%A
9guier&source=bl&ots=T5mwDs0kOS&sig=3ZycGhVQpJV_5TjiSfKqjrVlvb4&hl=pt-
BR&sa=X&ved=0ahUKEwi4q6aazvnRAhVJhZAKHSUbDugQ6AEIOzAF#v=onepage&q&f=false Consultado
em 05/02/2017.
29
76
Na esteira da experiência doceañista e gaditana, durante o Triênio Liberal (1820-1823), em que pese o apego ao
aspecto confessional por parte do clero, foram recorrentes os conflitos político-eclesiásticos entre os representantes
do governo e da Santa Sé. Os porta-vozes de Roma encontraram um regalismo acentuado por parte do episcopado,
que engendrava um amplo espectro de tendências sob influência dos valores liberais. O anticlericalismo, de início
tímido, porém latente, fomentou uma secularização lenta e gradual ao longo do século XIX, ao mesmo tempo em
que o conflito clericalismo/anticlericalismo influenciava o debate sobre as bases fundamentais do Estado nacional.
Ver: CHÉLIZ, Maria Pilar Salomón. Costruir la identidad nacional desde el anticlericalismo. In: SOLIS, Yves y
SAVARINO, Franco. El anticlericalismo en Europa y América Latina: una visión transatlántica. Córdoba:
Instituto Nacional de Antropología e Historia, 2011, pp. 99-111; LOPEZ, Emilio la Parra. El primer liberalismo
español y la Iglesia: las Cortes de Cádiz. Alicante: Instituto de Estudios Juan Gil-Albert, 1985, pp. 16-28, 50-54;
TERUEL, Manuel. Obispos liberales: la utopía de un proyecto (1820-1823). Lleida: Milenio, 1996, pp. 27-37,
145-168.
77
GUERRA, François-Xavier. A nação moderna: nova legitimidade e velhas identidades. In: JANCSÓ, István
(Org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec, 2003, p. 56.
78
AGULHON. Maurice. El circulo Burgues. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, Argentina, 2009.
79
A polêmica da nomeação de Antônio Maria Moura para o comando da diocese do Rio de Janeiro estendeu-se
de 1833 a 1839 e teve grande repercussão. Escolhido pelo governo brasileiro, o prelado enfrentou a resistência do
papa Gregório XVI. A contenda teve seu ápice durante a regência de Feijó, alimentando as desavenças entre o
padre de Itu e a Santa Sé. O Sumo Pontífice chegaria a propor que Feijó assumisse o bispado no lugar de Maria
30
liberal moderado mineiro;80 Frei Caneca, o radical das revoluções de 1817 e 1824 em
Pernambuco;81 e Evaristo da Veiga, o redator do principal periódico moderado, Aurora
Fluminense.82 Com exceção de Caneca, esses atores eram parte integrante de um importante
núcleo político sediado nas províncias de Minas Gerais e São Paulo, do qual Feijó era um dos
mais importantes articuladores.83 No que se refere aos romanizados, serão nomes importantes
os de Luiz Gonsalves dos Santos (1767-1844), o Padre Perereca; de José da Silva Lisboa (1756-
1835), o Visconde de Cairu; e de Bernardo Pereira de Vasconcelos, o líder do Regresso
conservador.84
No que tange ao domínio dos círculos políticos e intelectuais, dentro e fora das
corporações eclesiásticas, Max Weber, em Sociologia das Religiões, atentou para a importância
de se considerar a influência do clero a partir de uma “intensidade muito diversa, variando
conforme as camadas não sacerdotais, com que ele se deparava, e conforme seu próprio
poderio”.85 Segundo Pierre Bourdieu, um dos maiores méritos de Weber em seus estudos sobre
o “campo religioso” foi salientar a importância da “urbanização” para a “racionalização” e
“moralização” da religião, “na medida em que a religião favorece o desenvolvimento de um
corpo de especialistas incumbidos da gestação dos bens da salvação.”86 A partir dessa
perspectiva de “sistematização” de “crenças e práticas religiosas”, em seu capítulo intitulado
“Ordens, classes e religião”, Weber lançou luz sobre a intricada trama intelectual que envolveu
os gestores da fé, destacando:
Moura, proposta que foi recusada. Por fim, Antônio Maria Moura não se tornou bispo e a questão foi encerrada
com a nomeação do padre Manoel do Monte Rodrigues de Araújo. Ver: DORNAS FILHO, João; AZEVEDO,
Fernando de. O padroado e a Igreja brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 94;
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Op. cit., pp. 81-82.
80
PASCOAL, Isaías. José Bento Leite Ferreira de Melo, padre e político: o Liberalismo moderado no extremo sul
de Minas Gerais. VARIA HISTÓRIA, Belo Horizonte, vol. 23, nº 37: p.208-222, Jan/Jun 2007.
81
MELLO, Evaldo Cabral de (Org.). Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Ed. 34, 2001, pp. 11-46.
82
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro (Vol. 2). Rio de Janeiro:
Conselho Federal de Cultura, 1970, pp. 311-314.
83
OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Construtores do Império, defensores da Província: São Paulo e Minas
Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais, 1823-1834. 2014. Tese (Doutorado) – Universidade
de São Paulo/Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas. São Paulo: 2014, p. 36.
84
CARVALHO, José Murilo de (Org.). Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: 34, 1999, pp. 9-34.
85
WEBER, Max; FILIPE, Rafael Gomes. Sociologia das religiões e consideração intermediária. Lisboa: Relógio
D'Água, 2006, p. 163.
86
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 35.
87
WEBER, Max; FILIPE, Rafael Gomes. Op. cit., p. 164.
31
Atentando para estes acurados apontamentos, será possível aventar uma abordagem de
múltiplas possibilidades no bojo das discussões atinentes à História Intelectual, que “oscila, por
um lado, entre uma Sociologia, uma História e até mesmo uma biografia dos intelectuais, e por
outro, entre uma análise das obras e das ideias como, por exemplo, uma possível versão da
história da filosofia”.88 Há de se considerar, portanto, a trajetória, a formação e a produção
política, filosófica e intelectual dos atores elencados na reflexão que ora se intenta. Com efeito,
sacerdotes e leigos forjavam múltiplas sociabilidades na dinâmica de uma esfera pública
transatlântica, organizando-se coletivamente sob a ordem imperial que, em termos sócio-
institucionais, legitimou-se pelas variantes da interseção entre heranças simbólicas e materiais
da monarquia e do catolicismo.
Durante as duas primeiras décadas do Estado nacional independente, os atores da
hierarquia político-eclesiástica no Brasil compunham um espectro de perfis intelectuais que, de
acordo com a síntese de Ivan Domingues, ao longo dos primeiros séculos da Filosofia no Brasil,
dividiram-se em duas grandes matrizes, os escolásticos e os estrangeirados.89 Ainda no período
colonial, o clérigo tornou-se uma espécie de “intelectual orgânico da Igreja”, o Homo
scolasticus, gestado, principalmente, sob o signo da ação missionária da Companhia de Jesus.
A partir da segunda metade do século XVIII e durante o Império, com a intensificação do fluxo
de estudantes no mundo luso-brasileiro, sobretudo em direção à Universidade de Coimbra, o
filósofo/intelectual tornou-se menos hermético e mais cosmopolita, em contato com a
multifacetada Ilustração euroamericana. Embora essa tipificação seja eficiente e, para o
presente trabalho, sintetize as principais matrizes filosóficas evocadas pelos indivíduos
estudados, a dinâmica entre escolásticos e estrangeirados envolveu:
88
SILVA, Helenice Rodrigues da. A História Intelectual em questão. In: LOPES, Marcos Antônio (Org.). Op. cit.,
p. 16.
89
O autor definiu cinco “modelos ou tipos intelectuais”: o “clérigo colonial”, “Homo scolasticus” em terminologia
derivada do “Homo academicus” de Pierre Bourdieu e “intelectual orgânico da Igreja” sob a perspectiva de
Antônio Gramsci; o “estrangeirado”, já formado na tradição bacharelesca e ilustrada, cujas origens remontavam à
Universidade de Coimbra, com ampliação e nacionalização dos quadros a partir das Escolas de Direito de Recife
e São Paulo; o “intelectual público engajado nas causas nacionais”, formado a partir da década de 1930, na
dinâmica de consolidação das Universidades no Brasil; o “scholar” ou “erudito”, que surgiu após a primeira vaga
de superação do déficit institucional e no bojo da implantação dos sistemas de pós-graduação a partir da década
de 1960; por fim, o “intelectual cosmopolita globalizado”, superando o apego quase unilateral às referências
internacionais do “estrangeirado” e as restrições da agenda nacional e local do intelectual público. Ver:
DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 2017, pp. 10-13 e 39-
42.
32
90
DOMINGUES, Ivan. Op. cit., p. 42.
91
ISRAEL, Jonataham I. Iluminismo radical: a filosofia e a construção da modernidade, 1650-1750. São Paulo:
Madras, 2009, p. 38.
92
Ibidem, p. 38.
93
BASILE, Marcello. O Império em construção: projetos de Brasil e ação política na Corte regencial. 2004. (Tese
de doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. UFRJ, Rio de Janeiro, p. 15.
33
94
Trata-se de metáforas, cujas referências foram os clássicos seminais de Gilberto Freyre que, em Sobrados e
Mocambos, chamou a atenção para a constituição, durante o século XIX, “de uma Igreja também mais
independente das oligarquias regionais e mais pura na vida dos seus padres. De uma Igreja que começou a falar
mais alto e forte do que outrora pela voz dos seus bispos, até clamar, pela de D. Vital, contra os excessos do próprio
Governo de Sua Majestade e não apenas contra os de irmandades e confrarias: expressão do poder dos ricos, dos
letrados, dos próprios mecânicos.” Ver: FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2004; FREYRE, Gilberto. Sobrados e
Mocambos: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2013, p. 78.
95
ISRAEL, Jonataham I. Op. cit., p. 38.
96
VINCENT, Andrew. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p. 36.
97
Ibidem, p. 36.
98
PEIXOTO, Antonio Carlos (org.). O liberalismo no Brasil imperial: origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro:
Revan, 2001, pp. 24-25.
99
MERQUIOR, Jose Guilherme. O liberalismo: antigo e moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
100
PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Os projetos liberais no Brasil Império. Passagens. Revista Internacional de
História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro: vol. 2 no.4, pp. 130-152, maio-agosto 2010, p. 134.
34
101
PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Op. cit., p. 134.
102
Ibidem, p. 134.
103
FERREIRA, Gabriela Nunes. Op. cit., pp. 23-49.
104
MOREL, Marco. Op. cit., pp. 99-147.
105
BASILE, Marcelo. Op. cit., pp. 168-172.
106
ROCHA, Justiniano José da. Ação; Reação; Transação. Duas palavras acerca da atualidade política no Brasil.
In: MAGALHÃES JR., R. Três panfletários do segundo reinado. São Paulo: Nacional, 1956, p. 163.
107
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Política e Igreja: o partido católico no Brasil, mito ou realidade? São Paulo:
Edições Paulinas, 1982, p.26. (Grifos do autor).
108
A Aurora Fluminense, nº 449, 27/06/1831.
35
3º Que o mesmo bispo informe como a administração daquele Seminário passou a ser
privativa de sua autoridade.
4º Que informe igualmente qual o numero de seminaristas, que ordinariamente costuma
ter aquele seminário, quanto paga cada um de pensão anual para o mesmo, e assim mais
quanto se exige deles a título de matrículas e outras despesas.109
109
A Aurora Fluminense, nº 449, 27/06/1831.
110
O Seminário de Mariana foi centro de crises e conflitos desde os bispados que sucederam sua fundação em
1750, sendo o período de Dom Frei José um dos mais conturbados do século XIX. Ver: ALMEIDA, Gabriela
Berthou de. Jogos de poder: disputas em torno da administração do Seminário de Mariana, 1829-1835. Anais do
XXVII Simpósio Nacional de História. Natal: 2013, pp. 2-3.
111
Ibidem, p. 4.
112
SILVA, Wlamir. Liberais e povo: a construção da hegemonia liberal-moderada na província de Minas Gerais
(1830-1834). São Paulo: Hucitec, 2009, pp. 110-114.
113
Correio Oficial, nº 46, 26/08/1834.
36
114
CLEMENTE, Manuel. Igreja e Sociedade Portuguesa – Do Liberalismo à República. Porto: Assírio & Alvim,
2012, p. 52.
115
WINOCK, Michel. Op. cit., p. 174.
116
HOBSBAWM, E. J. The Age of Revolution, 1789-1848. New York: Vintage Books, 1996, p. 222. (Tradução
nossa).
117
Ibidem, p. 222. (Tradução nossa).
118
WINOCK, Michel. Op. cit., pp. 182-186.
119
José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, nasceu em Salvador em 1756. Filho de um arquiteto português,
frequentou a Universidade de Coimbra, destacando-se no estudo do grego e do hebraico e obtendo o bacharelado
em Direito Canônico e Filosofia. Lecionou na Bahia, além de exercer funções nos quadros da administração régia.
Leitor de Adam Smith, Silva Lisboa foi pioneiro na introdução dos princípios da economia clássica no contexto
luso-brasileiro, publicando em 1804 sua obra Princípios de Economia Política. Pugnando pela adesão ao
liberalismo econômico no território luso-brasileiro, destacou-se como um dos idealizadores da abertura dos portos
brasileiros. Entretanto, a defesa desse liberalismo econômico nas duas primeiras décadas do século XIX não
implicou em um posicionamento de vanguarda no que se referia aos costumes religiosos e à política. Em 1828, o
Visconde de Cairu escreveria uma obra defendendo a tese do celibato clerical, em resposta a Diogo Antônio Feijó.
Ver: ROCHA, Antônio Penalves (Org.). Visconde de Cairu (1756-1835). São Paulo: Ed. 34, 2001, pp. 9-24.
120
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Op. cit., p. 30.
37
fossem afastados do cenário político os elementos de certa tendência mais radical, incluindo
Feijó e seu círculo regalista e liberal.
O Regresso conservador teve sua origem ligada à fragmentação do heteróclito grupo
liberal moderado.121 Passou a ser frequente o apelo aos liberais doutrinários da Restauração
francesa,122 dentre eles Benjamim Constant (1767-1830) e François Guizot (1787-1874), além
dos filósofos de tradição inglesa, caso de Thomas Hobbes (1588-1689) e Jeremy Bentham
(1748-1832).123 Tais autores, ao fim e ao cabo, colaboravam para fundamentar um apelo ao
caráter restritivo das leis, com vistas à restauração da ordem, em meio ao “caos” político que
se instaurara. O principal articulador do Regresso foi o político mineiro por Bernardo Pereira
de Vasconcelos, que, no parlamento e na imprensa, empreendeu dura campanha de ataque a
Diogo Antônio Feijó, contando com o auxílio de Romualdo Seixas.124 A aproximação entre
Vasconcelos e D. Romualdo teve como um de seus projetos a ideia de elevar a irmã do futuro
Pedro II, d. Januária, à regência do Império, campanha que ocorreu durante o tempo em que o
padre de Itu esteve à frente do governo regencial.125
Na esteira dessas reflexões, ressalta-se que o debate sobre política e religião não ficou
circunscrito aos grupos formados no interior do clero, tampouco às alianças políticas tecidas a
partir destes e em seu entorno. Foi justamente durante o Regresso que se intentou a “cruzada
moralizadora com caráter religioso de nossos primeiros românticos”.126 Tal perspectiva foi
elaborada em um momento efervescente, caracterizado, no Brasil e na Europa, pela “retomada
dos valores religiosos, entendidos (...) como meio de estabilização social e condição para um
governo livre”.127 Essa retomada dos valores religiosos, coetânea ao Regresso conservador,
acabou por sintetizar uma oposição ao radicalismo revolucionário de 1789, cuja chama fora
reavivada nas jornadas europeias de 1830 e em algumas revoltas do período regencial
121
SILVA, Wlamir. Ser ou não ser liberal, eis a questão: a cisão da moderação mineira no contexto do Regresso
(1834-1837). Anais eletrônicos XVI encontro regional de história ANPUH-MG. Belo Horizonte, 2008, pp. 1-8.
122
Os doutrinários não deixariam de abordar a religião em suas obras, sendo, aliás, importantes referências no
sentido de uma apropriação liberal da religião, de um “sacerdócio moral”, de uma secularização espiritualizada.
Ver: BARROSO, Marco Antônio. Benjamin Constant de Rebecque, Schleiermacher e a epistemologia da
experiência religiosa. Sacrilegens, Juiz de Fora, v.7, n.1, p.33-44, 2010, pp. 34-37. BÉNICHOU, Paul. El tiempo
de los profetas: Doctrinas de La época romántica. Mexico, CEHILA/ Fondo de Cultura Económica, 2001, pp. 15-
70; FERRETTI, Danilo José Zioni. Gonçalves de Magalhães e o sacerdócio moral do poeta romântico em tempos
de guerra civil. Almanack, v. 02, p. 66-86, 2011, p. 82.
123
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Op. cit., pp. 158-160.
124
CASTRO, Paulo Pereira de. A experiência Republicana, 1831-1840. In: HOLANDA, Sergio Buarque de(dir.)
e CAMPOS, Pedro Moacyr (assist.). História Geral da Civilização Brasileira, t. II, O Brasil Monárquico, v. 2,
Dispersão e Unidade. 5ª ed., São Paulo: Difel, 1985, pp. 44-45.
125
LIMA OLIVEIRA, G. A. de. Op. cit., pp. 152 e segs.
126
FERRETTI, Danilo José Zioni. Op. cit., p. 68.
127
Ibidem, p. 78.
38
128
PAULA, Alexandre Marciano de. O regresso em Minas Gerais: “Déspotas e republicanos” na imprensa mineira
(1837-1840). 2013. 162 f. Dissertação (Mestrado) – UFSJ/DECIS. São João del-Rei: 2013, pp. 91-95.
129
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002, pp. 71-91.
39
algumas referências que foram centrais para o pensamento regalista e liberal de Feijó. Os
primeiros anos de sua formação em Itu, no círculo dos padres do Patrocínio, servirão de base
para se identificarem diretrizes que guiavam a visão de mundo e a ação de Diogo Antônio Feijó,
com destaque para os autores da Ilustração e para os movimentos católicos de questionamento
à autoridade papal. Os escritos na imprensa, as falas no parlamento e os Cadernos de Filosofia
estarão entre as principais fontes para um esforço mais acurado de compreensão dos
posicionamentos do padre regente sobre os polêmicos pontos do reformismo que capitaneava.
O celibato, o dízimo, a administração financeira da Igreja, a presença das ordens religiosas no
Brasil e a possibilidade de uma missão protestante são algumas das questões que surgirão na
interseção entre referências intelectuais seculares e projetos políticos gestados no bojo do
liberalismo constitucional.
O capítulo 3, Romualdo Antônio de Seixas: padroado, regalismo e ortodoxia,
focalizará o pensamento do primaz do Brasil dentro das principais correntes de oposição às
liberdades revolucionárias que caracterizaram a contrarrevolução. Atentando para a formação
de d. Romualdo, na Congregação do Oratório de Lisboa, bem como para sua ação de sacerdote
e homem de Estado, buscar-se-á um aprofundamento na percepção do apelo à natureza de poder
típica do Antigo Regime para legitimar o lócus da soberania na figura sacralizada do monarca.
Para uma percepção mais nítida do espectro de valores defendidos por d. Romualdo, serão
importantes fontes variadas, a exemplo das Memórias do Marquês de Santa Cruz, dos diálogos,
sermões, panfletos e dos discursos no parlamento. A partir desses diferentes lugares de fala,
surgirão os liames entre a ação política no interior das instituições e o apelo a distintas tradições
intelectuais.
Para a ampliação de uma análise, à primeira vista, mais centrada nos indivíduos, nos
seus lugares de formação e em suas referências políticas e filosóficas, será enfatizado o
protagonismo exercido por Feijó e D. Romualdo no interior de dois grupos políticos específicos,
a saber, moderados e regressistas. Para tanto, os debates travados na imprensa serão as fontes
privilegiadas. No capítulo 4, Os regalistas liberais e a moderação, o foco central recairá sobre
o periódico Aurora Fluminense, mapeando os debates em torno do exercício das competências
eclesiásticas por parte do Estado brasileiro e da Santa Sé e também os principais argumentos
evocados para a legitimação de um posicionamento no qual convergiam as pautas do
liberalismo constitucional com uma percepção regalista do contrato Estado-Igreja. A ideia de
secularização surgirá, em grande parte, fundamentada pelo clero regalista e liberal, lócus de
importantes lideranças do heteróclito grupo liberal moderado. A afirmação da hegemonia
40
moderada passava pela afirmação da soberania do Estado sobre as questões religiosas, tocando
em delicadas questões institucionais e, no limite, doutrinárias. Essa perspectiva de
nacionalização emanava da pena de Evaristo da Veiga, capitaneada por Feijó, José Bento
Ferreira Leite de Melo, José Antônio Marinho e outros. Tais autores também aparecerão na
análise, que buscará esboçar sociabilidades políticas, além de produção, apropriação e
circulação de ideias no âmbito da esfera pública.
No capítulo 5, Regressistas e romanizados: reação e restauração, o percurso da
reflexão será traçado a partir da campanha do grupo regressista contra Diogo Antônio Feijó.
Evocavam-se as rusgas do regente com a Santa Sé e também suas opiniões de verve regalista
como a personificação de um espírito anárquico e revolucionário. O Sete de Abril, de Bernardo
Pereira de Vasconcelos, será o periódico de maior ênfase, sobretudo, por ter dado espaço às
demandas de D. Romualdo Seixas e sua defesa de uma soberania que resgatava a importância
do monarca constitucional, sob o manto de um catolicismo restaurado e expurgado das
abomináveis radicalidades do reformismo regalista de Feijó. Portanto, a defesa do Regresso e
da contenção das demandas revolucionárias passava pelo resgate e reformulação do cariz
sagrado da monarquia. Assim, o Regresso conservador apropriou-se das vertentes políticas que
tenderam a afirmar a importância do catolicismo romano. Mais do que a questão do espírito e
das consciências, e em diálogo com essas representações, a tendência ortodoxa, romana e
tridentina, reforçava o próprio projeto político e institucional dos regressistas, trazendo para
seu seio a influência de uma Igreja que reagia aos espíritos considerados revolucionários. Entre
o trono, o altar e a constituição, eram construídas as identidades políticas e esboçados os
projetos de poder para o Estado nacional brasileiro. Tal complexidade exigirá, por fim, uma
análise da realidade que busque o diálogo entre uma história intelectual do político e uma
sociologia política dos intelectuais.
Em seguida, a tese trará sua Conclusão. Por fim, serão apresentadas a as fontes
documentais e as referências bibliográficas.
41
Capítulo 1
ENTRE O ANTIGO REGIME E A REVOLUÇÃO: A NACIONALIZAÇÃO DA
RELIGIÃO E A SACRALIZAÇÃO DO ESTADO NACIONAL
Imersa nas estruturas do Padroado e nas práticas regalistas, a relação entre a Igreja e os
Estados nacionais católicos do Ocidente euroamericano, após a Revolução Francesa, manteve
os ares de evidente complexidade. Nesse cenário de tensão e síntese, ganhou força o avanço de
um processo de secularização dos espíritos e consciências, permeado por “limiares de
laicização”,1 já esboçado pela afirmação das prerrogativas do poder temporal sob os auspícios
do absolutismo monárquico, cujo regalismo fora uma das expressões mais evidentes. Sobre os
referidos processos de secularização e laicização, Fernando Catroga destacou sua intrínseca
relação, ao mesmo tempo em que ponderou suas diferenças. Nas “sociedades modernas
ocidentalizadas”, a secularização seria a perda de protagonismo da “religião institucionalizada
(...) na produção e na reprodução do elo social e na atribuição de sentido. O que se não implicou
o desaparecimento do sagrado, provocou uma maior eufemização das fronteiras entre o
religioso e o não-religioso.”2 Já a laicização “consistiu na libertação do Estado dos seus nexos
com as Igrejas e confissões religiosas, a fim de ser possível instituir, mediante um sistema de
ensino obrigatório, gratuito e laico, uma orientação comum a todo o láos, ou melhor, a toda a
cidade.”3
No alvorecer do século XIX, o poderio material e simbólico da Igreja católica
encontrava-se deveras abalado pelo ímpeto secular, porém, seus porta-vozes mostraram-se
resistentes aos imperativos de laicização que, por vezes, sustentavam-se a partir da referência
aos valores mais radicais da Ilustração. Assim, a estruturação institucional e constitucional dos
Estados nacionais pós-revolucionários não prescindiu da sua “fusão e osmose” com a estrutura
1
O termo foi utilizado por Jean Baubérot e Séverine Mathieu, em análise sobre o caso francês, para delimitar os
primeiros impulsos de laicização, caracterizados por certa fragmentação institucional e autonomização das esferas
educacional, médica, jurídica e política, além do reconhecimento de outros cultos religiosos. No caso do Brasil, o
espírito secular que caracterizou o projeto regalista e liberal não chegou a questionar integralmente a religião
oficial do Estado e a importância social, política, jurídica e institucional do catolicismo, embora tenha engendrado
a defesa do casamento civil e, por conseguinte, a maior tolerância com relação a outros cultos. Mesmo na França,
a consolidação de um Estado laico foi um processo longevo, com “avanços” e “recuos”, que perpassou todo o
século XIX e estendeu-se até o início do século XX. Ver: BAUBÉROT, Jean; MATHIEU, Séverine. Religion,
modernité et culture au Royaume-Uni et en France (1800-1914). Paris: Seuil, 2002, pp. 142-143.
2
CATROGA, Fernando. Entre deuses e Césares: secularização, laicidade e religião Civil: uma perspectiva
histórica. Coimbra: Edições Almedina, 2010, p. 62.
3
Em suma, para Catroga, “se toda a laicidade é uma secularização, nem toda a secularização é (ou foi) uma
laicidade e, sobretudo, um laicismo.” O autor distinguiu laicidade, “neutralidade” ou “indiferença” com relação
aos valores religiosos, de laicismo, homogeneização da “mundividência” protagonizada por um “Estado-
pedagogo” ou “Estado-reitor”. Ver: CATROGA, Fernando. Op. cit., pp. 273, 301-303. (Grifos do autor).
42
Os dilemas da filosofia liberal decorrem de sua difícil posição entre duas tradições
consagradas. Em um polo, a Igreja e a ingerência teocrática na sociedade; em outro, os
filósofos da objetividade, e o perigo da desumanização em seu ensinamento. O
liberalismo devia necessariamente buscar seu caminho fora destas duas influências e
4
HAUPT, Heinz-Gerherd. Religião e nação na Europa no século XIX: algumas notas comparativas. Estudos
Avançados, São Paulo, v. 22, n. 62, p. 77-94. 2008, p. 79. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em
17/04/2018.
5
TOCQUEVILLE, Alexis de; MAYER, J. P. O antigo regime e a revolução. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2009, p. 14.
6
Ibidem, p. 14-15.
7
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 36.
43
contra elas. Porém, para rechaçar de vez as duas doutrinas, a filosofia liberal, em certo
sentido, admitiu ambas.8
8
BÉNICHOU, Paul. Op. cit., pp. 31-32. (tradução nossa).
9
HAUPT, Heinz-Gerherd. Op. cit.
10
BLOCH, Ernst. Héritage de ce temps. Paris: Payot, 1978, p. 8.
44
11
CHAPPEY. Jean-Luc. «Catholiques et sciences au début du XIXe siècle». Cahiers d'histoire. Revue d'histoire
critique [En ligne], 87 | 2002, mis en ligne le 01 avril 2005, consulté le 17 avril 2013, p. 1. URL :
http://chrhc.revues.org/1653. (Tradução nossa).
12
Edmund Burke, irlandês radicado em Paris, é considerado pai do conservadorismo e responsável pela síntese de
um pensamento contrarrevolucionário em sua obra Reflexões sobre a Revolução na França, na qual defendeu a
monarquia constitucional inglesa e se opôs aos clamores revolucionários jacobinos. Ver: SOUZA, Jamerson
Murillo Anunciação de. Edmund Burke e a gênese do conservadorismo. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 126, p. 360-
377, maio/ago. 2016, pp. 362-374.
13
CHARTIER, Roger. Origens culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Editora UNESP, 2009, pp. 147-170
14
BAUBÉROT, Jean; MATHIEU, Séverine. Op. cit., p. 125;VOVELLE, Michel. Op. cit., pp. 44-45.
15
CHAPPEY. Jean-Luc. Op. cit., pp. 6-8.
16
BAUBÉROT, Jean; MATHIEU, Séverine. Op. cit., p. 124. (Tradução nossa).
17
WEILL, Georges. Historia de la idea laica en Francia en el siglo XIX. Sevilla: Comunicación Social Ediciones
y Publicaciones, 2006, p. 16.
45
18
François-Augustin Lèclere (176? –18..) protagonizou a reconquista católica na França, especializando-se na
venda de livros religiosos, reunindo autores católicos em torno de si e disponibilizando seus serviços de livreiro e
editor à causa do catolicismo. Ver: CHAPPEY. Jean-Luc. Op. Cit., p. 2.
19
Église d’Espagne. Annales philosophiques, morales et littéraires ou suite des annales catholiques (tome second).
Paris, p. 193, 1800. Disponível em:
http://www.europeana.eu/portal/pt/record/9200143/BibliographicResource_2000069511467.html Acesso em
08/02/2017.
20
Jean-François de Bourgoing nasceu em Nevers. Estudou direito público em Estrasburgo, servindo na carreira
militar e, depois, como diplomata, sob Luiz XVI, em Hamburgo e Madrid. No período do Terror (1793-1794),
salvou-se das perseguições e chegou a trabalhar na área administrativa de sua terra natal. Durante o Império de
Bonaparte (1801-1815), serviu em Estocolmo e Dresden. In: OLIVA, Antonio et al. Dicionario historico ó
biografia universal compendiada. Barcelona: libreria del editor Narcoiso Oliva, 1831, pp. 57-58. Disponível em:
https://books.google.es/books?pg=PA60&dq=diccionario&id=nCIIAAAAQAAJ&hl=es#v=onepage&q&f=false
Acesso em 30/01/2017. (Grifos do autor).
21
Église d’Espagne. Annales philosophiques, morales et littéraires ou suite des annales catholiques (tome second).
(grifos do autor) Paris, p. 196.
22
BÉNICHOU, Paul. Op. cit., p. 99. (Tradução nossa).
46
Tal quadro passaria a sofrer uma modificação a partir da queda do Império napoleônico e da
subsequente Restauração monárquica empreendida pelos muitos inimigos do general
Bonaparte.
O Congresso de Viena (1814-1815), em resposta às rupturas e redefinições das
identidades políticas causadas pelas Guerras Napoleônicas (1803-1815), combateu alguns
princípios liberais e os nacionalismos, que pareciam surgir e agravar ainda mais a instabilidade
instaurada.23 Em 1815, a assinatura do Tratado da Santa Aliança evocava o peso da religião no
contrato entre a maioria das monarquias europeias, no sentido de conferir legitimidade ao
documento. No ano de 1819, na França, onde a Constituição de 1814 havia reforçado a aliança
entre o Trono e o Altar, Joseph de Maistre publicaria sua obra Du pape, dando “beneplácito ao
pensamento teocrático e ao ultramontanismo, isto é, a submissão à autoridade do Papa e o
primado da Igreja romana”.24 Quanto ao próprio núcleo da Santa Sé, fora da Santa Aliança,
ainda afetado pelo dano dos desmandos napoleônicos e por três sucessões papais em menos de
dez anos (1823-1831), o protagonismo no combate aos anseios liberais seria intensificado
imediatamente após os levantes de 1830, sob o papado de Gregório XVI (1831-1846). Em 1832,
a encíclica Mirari Vos condenaria a liberdade de consciência, a liberdade de imprensa e as vozes
que se erguiam contra o Padroado, em especial a de Lamennais e seu periódico L’Avenir:
Apesar de não citar nominalmente Lamennais, a encíclica Mirari Vos foi apresentada
no calor das contendas envolvendo o referido filósofo e a Santa Sé. As condenações do Sumo
Pontífice atacavam diretamente as pretensões de separação entre os poderes civil e eclesiástico,
uma das mais caras pretensões daquele que passaria de ultracatólico a defensor de uma
secularização espiritualizada, fundamentada “no desejo de reconciliar Deus e a liberdade”. 26
Verdadeiro libelo acusatório contra as ameaças seculares aos valores religiosos e políticos do
catolicismo, o documento de Gregório XVI atentaria ainda para problemas no interior da
23
HOBSBAWN, Eric. Op. cit., p. 100. (Tradução nossa).
24
WINOCK, Michel. Op. cit., p. 63.
25
GREGÓRIO XVI. Mirari vos. 15/08/1832, p.8. Disponível em http://w2.vatican.va/content/gregorius-
xvi/it/documents/encyclica-mirari-vos-15-augusti-1832.html Consultado em 07/02/2017. (Tradução nossa).
26
WINOCK, Michel. Op. cit., p. 186.
47
própria Igreja, caso da “imunda conspiração contra o celibato clerical”. 27 Um ano depois, em
1833, começariam as rusgas entre o Papa e o Estado brasileiro sobre a indicação de Maria
Moura para o bispado do Rio de Janeiro. Essas brigas se intensificariam durante a regência de
Feijó (1835-1837) que, como já salientado, advogava arduamente pelo fim do impedimento ao
matrimônio para os clérigos.
Essas transformações no cenário político e religioso pós-revolucionário foram sentidas
de maneira profunda na América Latina, tendo influenciado as nações que se formavam em
diálogo e tensão com as outroras metrópoles católicas, suas heranças e movimentações
políticas. Nos antigos domínios espanhóis, o impacto do republicanismo acabou por acentuar
as clivagens entre a Igreja e os Estados, resultando em uma relação “fortemente marcada pelo
conflito político em torno do Padroado e pelo conflito social em torno das leis secularizantes”.28
A nova perspectiva liberal traria um questionamento ao poder da Sé romana, em uma conjuntura
marcada pela recorrente vacância de dioceses, situação em que “a posição intelectual da Igreja
foi abalada. As mesmas pessoas de razão que repudiaram a monarquia absolutista também
contestaram a religião revelada, ou pelo menos pareceram fazê-lo”.29 Ademais, dentre os mais
aguerridos defensores das demandas do nacionalismo e do liberalismo, estariam os membros
do clero, sobretudo do baixo clero secular, o qual enfrentou resistência da alta hierarquia
eclesiástica representada pelos bispos alinhados ao ideal realista da coroa espanhola.30
A perspectiva secular, com forte apelo ao monopólio das competências eclesiásticas
pelo poder civil, teve uma das mais contundentes defesas na ação do líder Simón Bolívar (1783-
1830). Tal posicionamento revelou-se no Discurso ante o Congresso Constituinte da Bolívia
(1825), texto que sintetizava as principais ideias de Bolívar sobre seu projeto de Constituição
para a Bolívia. Na ocasião, Bolívar defendeu que os senadores dariam “forma aos códigos e
regulamentos eclesiásticos” e velariam “pelos tribunais e pelo culto”. 31 Já as principais
autoridades da Igreja – arcebispos, bispos, dignidades e cônegos – seriam indicadas pelo Senado
27
GREGÓRIO XVI. Op. cit., p. 4 Disponível em http://w2.vatican.va/content/gregorius-
xvi/it/documents/encyclica-mirari-vos-15-augusti-1832.html Consultado em 07/02/2017. (Tradução nossa).
28
COUSIÑO, Carlos. La formación de los Estados nacionales y su relación con la iglesia y la sociedade. In:
HÜNERFELD, Peter; SCANNONE, Juan Carlos; ECKHOLT, Margit. América Latina y la doctrina social de la
Iglesia: diálogo latinoamericano-alemán. Buenos Aires, Argentina: Ediciones Paulinas, 1992, p. 145. (Tradução
nossa).
29
BETHELL, Leslie. A Igreja e a Independência da América Latina. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da
América Latina: Da Independência a 1870, volume III. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília,
DF – Fundação Alexandre Gusmão, 2009, p. 269.
30
Ibidem, p. 267.
31
BOLÍVAR, Simón. Discurso ante o Congresso Constituinte da Bolívia. In: BOLÍVAR, Simón. Escritos
políticos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992, p. 111.
48
32
A Câmara de Censores consistia em uma terceira câmara, no âmbito do poder Legislativo da república boliviana.
Suas atribuições eram múltiplas: “além de ter em suas mãos a defesa da Constituição, dos tratados públicos, da
boa administração, da moral, das ciências, das artes e da educação, deveria contribuir para o estabelecimento de
um saudável equilíbrio e impedir conflitos entre as duas câmaras clássicas”. In: SORIANO, Graciela. Introdução.
In: BOLÍVAR, Simón. Op. cit., p. 29.
33
BOLÍVAR, Simón. Op. cit., p. 111.
34
MARX, Karl. Simón Bolívar por Karl Marx. São Paulo: Martins, 2008, p. 52.
35
ARICÓ, José M. Marx y América Latina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010, pp. 166-169.
36
BETHEL, Leslie. Op. cit., p. 271.
37
ARZE, José Roberto (Org.). Antología de documentos fundamentales de la historia de Bolivia. La Paz:
Biblioteca del Bicentenario de Bolivia, 2015, p. 182-184.
49
38
LOFSTROM, William L. La Presidencia de Sucre en Bolivia. La Paz: Fundación Cultural Banco Central de
Bolivia y el Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, 2015, pp. 147- 214.
39
BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão em 10/10/1827. Brasília: Câmara dos Deputados. Disponível
em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 07/02/2017.
40
El Condor de Bolivia, nº 120, 20/03/1828.
41
LEMA, Ana M. L. Construyendo la nación desde el océano hasta la selva. In: ROMANO, Rossana B.; GARRET,
Ana M.; PARADA, Pilar Mendieta. Bolivia, su Historia (Tomo IV): Los primeros cien años de la República (1825-
1925). La Paz: Coordinadora de Historia, 2015, p. 119.
42
KLAIBER, Jeffrey. Religion y revolucion en el Peru, 1824-1988. Lima: Centro de Investigación de la
Universidad del Pacífico, 1988, pp. 20-37.
43
BONILLA, Heráclito. O impacto da Revolução francesa nos movimentos de Independência da América Latina.
In: COGGIOLA, Osvaldo. A Revolução francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Nova Stella, 1990,
pp. 151-157.
44
MONTEIRO, Nuno Gonçalo (1999/2000). Relações de Portugal com a Santa Sé no reinado de D. João V. Janus
– Espaço online de Relações Exteriores. Vol. 4. Lisboa: 1999-2000. Disponível em:
http://janusonline.pt/1999_2000/1999_2000_1_18.html#dados
50
45
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. cit., p. 123.
46
FRANCO, José Eduardo. Relações entre a Igreja e o Estado em Portugal. Tempos e modos: Casamento,
Divórcio e União de facto. Lisboa: CLEPUL, 2011, p. 21.
47
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. cit., p. 183.
48
CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 68.
49
VILLALTA, Luiz Carlos; MORAIS, Christianni Cardoso; MARTINS, João Paulo. As reformas ilustradas e a
instrução no mundo luso-brasileiro... Op. cit., p. 33.
51
50
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Aspectos da ilustração no Brasil. In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A
interiorização da metrópole e outros ensaios. São Paulo: Alameda, 2005, p. 53.
51
José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho nasceu em 1743 na vila de Campos, Rio de Janeiro. Estudou
direito canônico em Coimbra, logo após as reformas de Pombal. Esteve à frente dos bispados de Pernambuco, Beja
e Elvas. Nomeado deputado do Santo Ofício, foi o último inquisidor-mor do referido tribunal. Exerceu o posto de
governador interino da capitania de Pernambuco e foi eleito deputado às Cortes de Lisboa. Além do exercício
intelectual sobre o tema da religião, Azeredo Coutinho publicou obras sobre economia política e ciência, além de
defender o tráfico e a escravidão. Encarnava a herança do reformismo ilustrado português do século XVIII,
defendendo a ideia de império luso-brasileiro. Faleceu em Lisboa em 1821. Ver: BLAKE, Augusto Victorino
Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. 4), pp. 475-480; CANTARINO, Nelson Mendes. A razão e a ordem: o bispo
Joaquim José da Cunha de Azeredo Coutinho e a defesa ilustrada do Antigo Regime Português. 2012. Tese
(Doutorado) – Universidade de São Paulo/FFLCH. São Paulo, pp. 21-30.
52
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Op. cit., p. 53.
53
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Op. cit., p. 93.
54
COSTA, Emília Viotti da. Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil. In: MOTA, Carlos Guilherme
(org.). Brasil em perspectiva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 93.
55
Ibidem, pp. 92-93.
52
56
MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-
1821). São Paulo: Cia Das Letras, 2000, p. 208.
57
ALMEIDA, Luis Castanho de. O sacerdote Diogo Antonio Feijó. Rio de Janeiro: Vozes, 1951, p. 96.
58
CARVALHO, Manuel Emílio Gomes de. Os deputados brasileiros nas Cortes Gerais de 1821. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 311.
53
59
Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, nº 66, Indicação de 25/04/1822, p. 953.
60
Ibidem, p. 953.
61
CARVALHO, Manuel Emílio Gomes de. Op. Cit., p 210.
62
BERBEL, Márcia. Deputados do Brasil nas Cortes portuguesas de 1821-22. Novos Estudos CEBRAP, nº 51,
pp. 189-202, julho de 1998, pp. 192-193.
63
Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, nº 44, Decreto de 01/01/1821, p. 369.
Disponível em: http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821.
64
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Proclamação da famosa Velha Amazonas a seus netos, luso-americanos que
habitam o norte do Brasil animando-os na firme adesão a Portugal, contra as malignas influências do fatal cometa
que assombra os horizontes do sul. Lisboa: Tipografia Patriótica, 1822. In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES,
Lúcia Maria Bastos Pereira das; BASILE, Marcelo Otávio Neri de Campos (Orgs.). Guerra literária: panfletos da
Independência (1820-1823). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, v. 3. Sermões, Diálogos, Manifestos, p. 675.
65
CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcelo Otávio Neri de Campos (Orgs.). Op. Cit., p.
676.
66
Ibidem, p. 676.
54
presença do herdeiro do trono português no Brasil não era vista com bons olhos e, por
conseguinte, a imposição de sua autoridade não seria desejável, pois:
67
CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcelo Otávio Neri de Campos (Orgs.). Op. Cit., p.
677.
68
CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 14.
69
CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcelo Otávio Neri de Campos (Orgs.). Op. Cit.,
pp. 677-678. (Grifo nosso).
70
MACHADO, André Roberto de A. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do Antigo Regime
Português na Província do Grão-Pará. São Paulo: Hucitec, 2010, pp. 34-35.
71
JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico: ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira. Revista de História das Ideias, vol. 21, 2000, pp. 389-390.
55
diferentes níveis de exercício do poder e, por conseguinte, das possibilidades de alianças:72 “nos
discursos proferidos em Lisboa é possível identificar divergências entre deputados de Portugal
e do Brasil e, também, entre bancadas do mesmo reino”.73
Para além das opiniões proferidas pelos dois atores destacados, as Cortes, essenciais
para que se revelassem as principais demandas dos nascentes Estados liberais de Brasil e
Portugal,74 foram espaço privilegiado para o surgimento de polêmicas no tocante à religião
oficial, sendo que muitas delas ecoariam no império brasileiro. Dentre importantes mudanças,
destacou-se a extinção do Tribunal da Inquisição, alegando-se simplesmente que “sua
existência era contrária ao sistema Constitucional”.75 Por mais que mantida a referência na
religião católica, os ares liberais do século XIX erguiam barreiras a instituições e práticas típicas
do Antigo Regime, fato que também ocorreu no que se referia à proposta de secularização das
corporações regulares.76 Sobre este assunto, a Comissão Eclesiástica propôs que se obtivesse
bula da Santa Sé:
Para se poderem secularizar todos os religiosos que tiverem justas causas para não
continuar a vida clausural, cometendo-se o conhecimento destas causas, e a expedição
das respectivas secularizações aos ordinários da naturalidade, ou residência dos
religiosos, ou aos ordinários das dioceses, em que existirem os patrimônios, benefícios,
ou títulos dos mesmos secularizados, como mais oportuno lhes for; ficando os religiosos
pelo fato da secularização habilitados para todos os ministérios, e benefícios
eclesiásticos como quaisquer outros clérigos seculares.77
72
Para a porcentagem de sacerdotes entre os brasileiros nas Cortes de Lisboa, ver: NEVES, Lúcia Maria Bastos
Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura e política da independência (1820-1822). Rio de Janeiro:
Revan : FAPERJ, 2003, pp. 63-66.
73
BERBEL, Márcia. Op. cit., pp. 191-194.
74
Ibidem, pp. 189-202.
75
Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, nº 47, Decreto de 31/03/1821, p. 404.
Disponível em: http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821
76
GÉRSON, Brasil. O Regalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília, 1978, p. 44.
77
Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, nº 229, Parecer de 19/11/1821, p. 3144.
56
educação, caridade pública, e capelanias das repartições do serviço do Estado (...)”. 78 Longos
debates ocorreram, versando sobre diferentes prismas da questão, tais quais as maneiras de se
angariar recursos para sustentar os egressos das ordens regulares e se eles teriam o direito de
ocupar lugares devidos aos seculares nas fileiras do Estado, além dos caminhos políticos,
jurídicos e diplomáticos possíveis para uma resolução de pontos nodais junto à Santa Sé.
Sendo um tema que envolvia uma delicada estrutura material e simbólica, divisor de
opiniões, o polêmico mote das ordens religiosas não se restringiu às acaloradas contendas em
Lisboa, chegando aos panfletos que circulavam durante o início da década de 1820 no mundo
luso-brasileiro: “No caso português, o custo dos privilégios para o erário público é denunciado
na ampla discussão sobre as ordens religiosas.”79 Em outubro de 1822, ainda no âmbito das
Cortes, algumas dezenas de artigos iriam dispor no sentido de fortalecer o jugo da monarquia
constitucional sobre muitas questões eclesiásticas.80 Suprimiam-se conventos, mosteiros e
colégios e garantiam-se as secularizações de regulares, com essas decisões, abria-se a
possibilidade de angariar recursos humanos e materiais para o Estado e afirmava-se a verve
liberal sobre os auspícios do Antigo Regime: “A nossa revolução liberal, acentuando as
prerrogativas individuais, foi autonomizando, consequentemente, a sociedade em relação à
religião.”81 Os ventos liberais trazidos pelas Cortes tocavam em um ponto nodal que marcou as
Luzes lusas, a oposição ao poder desmedido da Igreja e do clero, sobretudo do clero regular.
Por outro lado, a veia antirreligiosa que marcou alguns quadros da Ilustração, de modo mais
incisivo na França e chegando às terras ibéricas, havia arrefecido, tomando as cores de uma
secularização sem os laivos de certa perspectiva que chegava a insinuar uma laicização e, no
limite, uma visão de mundo que se aproximava do ateísmo.82
78
Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, nº 229, Parecer de 19/11/1821, p. 3144.
79
CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria Pereira Bastos das; BASILE, Marcelo Otávio Neri de
Campos (Orgs.). Guerra literária: panfletos da Independência (1820-1823). Belo Horizonte: Editora UFMG,
2014, v. 1. Cartas, p. 20.
80
Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, Decreto de 18/10/1822, nº 66, pp. 829-832.
81
CLEMENTE, Manuel. Op. cit., p. 35.
82
VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822). Op. cit., pp. 51-82.
57
foi central o papel das elites políticas e intelectuais, incluindo os agentes do clero, como “porta
vozes” que “expressavam pensamentos que o povo era incapaz de formular”.83 Em meio a um
contexto no qual grande parte da população não dominava a leitura e a escrita,84 era recorrente
o uso da cultura oral, e o vocabulário político liberal-constitucional acabou por incorporar as
representações do sagrado típicas do catolicismo, contribuindo para uma hibridização de seu
repertório de ideias: “o liberalismo é mais anticlerical do que antirreligioso e, se ele pode ser
espiritualista, se pode aceitar o reconhecimento do cristianismo, ele é necessariamente
anticlerical, porque é relativista e, portanto, contra qualquer dogma imposto”.85
Se essa relação de proximidade e tensão apontada por René Rémond evidenciou-se
durante os primeiros anos do Brasil Império, ela não deixou de tocar no aspecto dogmático.
Esse enfoque de contornos prescritivos foi explorado nas páginas do Revérbero Constitucional,
periódico que seria “O órgão doutrinário da Independência brasileira.”86 Seus redatores seriam
Joaquim Gonçalves Ledo (1741-1847) e o cônego Januário da Cunha Barbosa (1780-1846),
protagonistas do processo de emancipação política do Brasil. O primeiro frequentara a
Universidade de Coimbra, sem se formar, sendo ainda deputado às Cortes de Lisboa, e o
segundo, sacerdote de formação em seminários brasileiros, à semelhança de Feijó. 87 Ambos
compunham, no início da década de 1820, juntamente com o futuro padre regente, parte
significativa do grupo denominado brasiliense: “os ideólogos do separatismo brasileiro.”88
O Revérbero estaria entre “as folhas mais radicais” pelos idos de 1821, quando se
proclamou a liberdade de imprensa. O periódico de Januário e Gonçalves Ledo fazia parte,
juntamente com A Malagueta e o Correio do Rio de Janeiro, de um círculo de periódicos “cujos
redatores se deixavam levar por seu imaginário revolucionário”, apropriando-se seletivamente
das “ideias dos filósofos franceses até então proibidos no mundo português, como Voltaire,
Rousseau, Mably, Condorcet, o abade Raynal e De Pradt”.89 Em janeiro de 1822, comentando
83
CHARTIER, Roger. Origens culturais da Revolução Francesa. Op. cit., p. 52.
84
CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., pp. 65-88.
85
RÉMOND, René. Introdução à história do nosso tempo – v. 2. O século XIX: 1815-1914. São Paulo: Cultrix,
1976, p.43.
86
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 53.
87
Joaquim Gonçalves Ledo nasceu no Rio de Janeiro e foi um dos que articularam a permanência de d. Pedro I no
Brasil em 1821. Após a emancipação, entrou em atrito com o Ministério dos Andradas e escapou da prisão e do
exílio quando fugiu para Buenos Aires sob o disfarce de frade. Foi eleito à Constituinte, mas não tomou assento.
Participou ainda da primeira e da segunda legislaturas do Império, além de ser conselheiro de d. Pedro I. Januário
da Cunha Barbosa, também carioca, foi ordenado presbítero secular, destacando-se como pregador da Capela
Imperial e lente de filosofia. Perseguido por Bonifácio, foi preso e exilado, voltando após a queda de seu
perseguidor. Deputado por Minas Gerais à primeira legislatura, Januário foi também diretor da Imprensa Nacional,
da Biblioteca Nacional e membro fundador do IHGB. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op.
cit. (Vol. 3 e 4), pp. 294-300 e 145-146.
88
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. cit., p. 51.
89
Ibidem, p. 37.
58
No estado atual das Coisas, em que o espírito da Constituição faz hoje quase parte da
nossa existência comum; e em que a reforma Social está quase formada uma Nova
Religião, quem podia impedir que o Brasil altamente declarasse que ele não
reconheceria quem o não reconhecesse, nem abriria seu seio diamantino senão a aqueles
que da sua parte abrissem os seus arquivos para neles receberem os títulos indisputáveis
que ele tem de legitimidade social entre as Nações?90
O apelo aos motes religiosos, para fundamentar certa religião nacional e conferir
sacralidade ao liberalismo constitucional, era uma das bases da argumentação, utilizada em
outro número para ressaltar a necessidade da constituição: “O Sistema Constitucional é hoje a
Religião Universal dos povos cultos; o Mundo está em uma fermentação, que só o
estabelecimento geral da Constituição pode acomodar.”91 Em edições posteriores, o Revérbero
iria utilizar ainda os termos “religião política”92 e “nova religião constitucional”,93 aproximando
sua argumentação daquela que Rousseau apresentou no capítulo “Da religião civil”, o
penúltimo da clássica obra Do contrato social. Em breve e acurada análise sobre a relação entre
os poderes religioso e secular, o filósofo de Genebra pontuou os principais dogmas da sua
religião civil: “A existência da Divindade, onipotente, inteligente, benfeitora, previdente e
providente, a vida futura, a felicidade dos justos, o castigos dos maus, a santidade do contrato
social e das leis”.94
Na pista de escritos que conformavam um repertório transatlântico de ideias, um dos
periódicos mais importantes para a opinião pública no decurso do processo de emancipação
política do Brasil utilizava, em seu vocabulário, o termo “religião” como metáfora da
constituição. Os sinônimos do sagrado evocavam representações teológicas de prerrogativas
seculares, em uma esfera pública cuja dimensão sacra deslocava-se, não sem percalços, da
figura do monarca para o texto constitucional, implicando uma ressignificação da liturgia de
poder do Antigo Regime. Tal processo esteve em consonância com as transformações
percebidas, sobretudo, a partir da França de 1789, quando:
o rei já não era mais o único elemento “santificado” na ordem política, uma vez que a
nação, seus representantes e os direitos individuais também eram considerados sacrés.
90
Revérbero: Constitucional Fluminense, nº 11, 22/01/1822. (Grifos nossos).
91
Ibidem, n º 12, 29/01/1822.
92
Ibidem, nº 1 (segundo volume), 12/05/1822.
93
Revérbero: Constitucional Fluminense, nº 2 (segundo volume), 04/06/1822.
94
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2010, p. 116. (Grifos nossos).
59
Outro motivo é que a “sacralidade” real já não era necessariamente de instituição divina,
e amiúde era concebida como conferida pela nação.95
A Igreja, não pode impor, nem pode cobrar Tributos, de nenhuma natureza, ou
qualidade.
No Estado atual das coisas, são os Dízimos um Tributo direto, forçado, pesadíssimo, e
desigual, e o vicioso Sistema do seu lançamento, e atual cobrança ainda o torna mais
pesado.
Para manter o culto, pode a Nação aplicar outra qualquer Contribuição, até mesmo
abolindo os Dízimos.97
Os argumentos do periódico tinham na defesa da ação estatal as suas bases. Não caberia
manter o imposto, mesmo que o titular da sua cobrança fosse o monarca e sua renda nem sempre
se direcionasse à manutenção do culto. Tal ação seria incompatível com as “Luzes do século”,
e fazia-se necessário “motivar a reforma na cobrança dos Dízimos, e vê-los expurgados dos
muitos vícios e defeitos, que uma política tenebrosa lhes tem apenso”. 98 A julgar pelo texto, a
cobrança do dízimo seria oposta a uma perspectiva econômica calcada em princípios liberais.
O argumento se desenvolveria no sentido de combater um ordenamento que personificava a
nociva ingerência da Igreja em questões de ordem econômica, as quais deveriam ser da alçada
do poder civil. Essa incompatibilidade entre o dízimo e as novas perspectivas políticas e
econômicas seria reforçada por uma memória, de um periódico português, O Patriota
Funchalense, transcrita na sequência dos argumentos apresentados pela folha de Gonçalves
Ledo e Januário da Cunha Barbosa.
95
CHARTIER, Roger. Origens culturais da Revolução Francesa. Op. cit., p. 174.
96
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. cit., p. 41.
97
Revérbero: Constitucional Fluminense, n º 24, 23/04/1822.
98
Ibidem, n º 24, 23/04/1822.
60
O político pois, que na Cobrança dos Dízimos igualou as terras todas em o mesmo ponto
de vista exequível, sujeitando todas ao mesmo peso, este cometeu de certo o erro mais
indesculpável em Economia Política. Entre um terreno fecundo, e dadivoso, e um
terreno calaceiro, e preguiçoso, não há uma diferença notabilíssima? Mas que importa,
se o mesmo peso do tributo a todas indistintamente iguala!102
99
SOUSA, Rui Fernando Nunes de. Catolicismo e Liberalismo n'«O Patriota Funchalense» (1821-1823).
Lusitania Sacra. Lisboa. 2ª S. 3, 155-214, 1991.
100
Revérbero: Constitucional Fluminense, n º 24, 23/04/1822.
101
Ibidem, n º 24, 23/04/1822.
102
Revérbero: Constitucional Fluminense, n º 24, 23/04/1822.
103
De acordo com Ângelo Carrara, a dinâmica de cobrança do dízimo permitia aos devedores a negociação de
suas dívidas a partir das “avenças”, que consistiam em um “ajuste entre os produtores e cobradores”, sendo que o
período do contrato correspondente ao imposto não significava necessariamente os momentos nos quais eram
feitos os acordos entre as partes. Geralmente, o acordo de pagamento era feito em datas posteriores ao início da
vigência do contrato, o que dava ao devedor mais tempo para equacionar sua produção à obrigação canônica. Além
do mais, levavam-se em conta a estrutura de produção dos lavradores, as sazonalidades do clima e as flutuações
dos preços dos gêneros. Por fim, havia espaço para interposição de recursos na Justiça contra a cobrança dos
valores ajustados. Ver: CARRARA, Ângelo Alves. Minas e currais: produção rural e mercado interno de Minas
Gerais: 1674-1807. Juiz de Fora: UFJF, 2007, pp. 219-240.
104
ROCHA, A. P. Economia política e política no período joanino. In: SZMRECZÁNYI, Tomás; LAPA, José
Roberto do Amaral. História econômica da independência e do império. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
Coletânea de textos apresentada no I Congresso Brasileiro de História Econômica, p. 38.
61
de ideias e práticas que lidaram com distintos modos de sobrevivência dos resquícios da velha
ordem. Portanto, o ataque ao dízimo carregava um teor retórico de desqualificação que, ao fim
e ao cabo, redundava na contraposição entre uma velha ordem despótica e injusta e um novo
tempo, no qual a isonomia pautaria a produtividade e a economia.
Por mais que a realidade não correspondesse ao argumento apresentado, este acabaria
por reforçar o imperativo de nacionalização da estrutura tributária e, por conseguinte, da
progressiva secularização das questões atinentes ao erário. Essa polêmica em torno do dízimo
não faria parte somente da efervescente cena pública do movimento vintista e da Independência,
cujos substratos argumentativos eram buscados nas Luzes europeias. Constituindo uma questão
importante, que tocava diretamente no orçamento da estrutura eclesiástica, a referida contenda
seria levantada também anos mais tarde, quando Feijó e seus companheiros do clero regalista
propuseram a criação de uma “caixa eclesiástica”, em substituição ao dízimo.105
Os problemas envolvendo a Igreja, o Estado e suas discordâncias em relação aos
recursos materiais e humanos não ocorreriam apenas no tocante ao dízimo, vindo a despertar o
interesse de diferentes personalidades. Em 1823, frei Joaquim do Amor Divino Caneca (1779-
1825) iria abordar o assunto a partir da relação entre o governo brasileiro e as ordens religiosas,
durante o conturbado contexto da Guerra da Independência. Na oitava de suas Cartas de Pítia
a Damão, o revolucionário carmelita tratou do despejo ocorrido no convento do Desterro de
Olinda.106 Encontravam-se, na referida instituição, sacerdotes alcunhados por frei Caneca, na
carta em que destacava a subserviência dos clérigos em questão ao rei de Portugal, “tereseus”:
Porque estando nós em guerra aberta com o rei de Portugal e sua nação, não devíamos
ter entre nós os vassalos daquele rei inimigo, quais os padres, que não só são vassalos
do rei de Portugal por haverem nascido naquele território, como porque na sua profissão
religiosa fazem voto de obedecer aos decretos dos pontífices, e também as ordens e
determinações dos reis de Portugal, e trabalharem com todas as forças para que sejam
filhos obedientes da igreja e súditos fiéis dos reis.107
105
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo (Org.). Op. cit., p. 14.
106
As cartas de Pítia a Damão foram redigidas no ano de 1823 e seu título faz referência à história da amizade
entre dois filósofos pitagóricos de Siracusa, do quarto século a. C. CANECA, Frei. Cartas de Pítia a Damão. In:
MELLO, Evaldo Cabral de. Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Ed. 34, 2001, p. 165.
107
CANECA, Frei. Cartas de Pítia a Damão. (Vol. VIII). In: MELLO, Evaldo Cabral de. Frei Joaquim do Amor
Divino Caneca. São Paulo: Ed. 34, 2001, p. 263.
108
GUMIEIRO, Fábio. As ordens religiosas e a construção sócio-política no Brasil. Tuiuti: Ciência e Cultura, n.
46, p. 63-78, Curitiba, 2013, p 67.
62
apesar de qualquer juramento cívico que eles tenham dado ou hajam de dar (que tudo é
ilusório e insubsistente), são real e indissoluvelmente súditos daquele geral, vassalo de
Portugal; e eles mesmos vassalos de um rei inimigo, obrigados a executarem suas
ordens, determinações e insinuações em tudo que lhes determinarem a prol da sua nação,
e em dano ao Brasil.111
Porque os padres, havendo fundado aquele convento com as esmolas e donativos dos
pernambucanos, tendo-se sempre sustentado a expensas dos mesmos, e conservando
hoje um fundo de 12 contos e 890 mil-réis, que trazem a juros nesta praça, fundo dado
pelos pernambucanos, como consta de seu livro do Tombo, ainda não lhes retribuíram
coisa alguma por tantos benefícios.112
109
LEÓN, Fernando Ponce de. A visita de Tollenare aos Carmelitas Descalços/Terésios de Olinda. CLIO: Revista
de Pesquisa Histórica, n. 18, pp. 63-75, (1998).
110
CANECA, Frei. Cartas de Pítia a Damão. (Vol. VIII). In: Op. cit., p. 264.
111
Ibidem, p. 264.
112
Ibidem, p. 265.
63
terras, escravos e toda a sorte de ativos em propriedade das instituições religiosas. Nesse tom,
a argumentação continuava, referindo-se às tratativas entre os governos de Brasil e Portugal:
A dimensão econômica da questão não estava alijada dos aspectos de cariz político e
social, que desnudavam problemas estruturais, característicos ao período colonial e que
permaneceram centrais em muitos debates nos círculos políticos no Império.114 A catequização
dos povos indígenas e a dimensão pedagógica do trabalho religioso não teriam feito parte das
obrigações contempladas pelos sacerdotes em questão: “pois nunca lhes ensinaram ciência
alguma ou arte, nem catequizaram o gentio, nem fizeram feito de pública utilidade”.115 A partir
do histórico de algumas ordens regulares no Brasil, Frei Caneca contrastava:
Os carmelitas descalços não figuravam entre as outras ordens que, apesar de regulares,
auxiliaram na obra de sedimentação política e administrativa do aparato estatal português
durante a Colônia. Além do mais, representariam, naquele momento específico do século XIX,
valores contrários aos constitucionais e aos interesses brasileiros: “a contrarrevolução de
Portugal e Espanha, feita em grande parte pelos frades contra as Constituições daqueles reinos,
nos adverte o perigo evidente e iminente que corremos, tendo em nosso seio inimigos tão
113
CANECA, Frei. Cartas de Pítia a Damão. (Vol. VIII). In: Op. cit., p. 267.
114
Sobre o problema da catequização dos indígenas e as discussões da política imperial em torno da questão, ver:
SILVA, Natália Moreira da. Papel de Índio: Políticas Indigenistas nas Províncias de Minas Gerais e Bahia na
Primeira Metade do Oitocentos (1808-1845). Rio de janeiro: Editora Multifoco, 2014.
115
CANECA, Frei. Cartas de Pítia a Damão. (Vol. VIII). In: Op. cit., p. 265.
116
Ibidem, p. 265.
64
117
CANECA, Frei. Cartas de Pítia a Damão. (Vol. VIII). In: Op. cit., p. 267.
118
SOUZA, Françoíse Jean de Oliveira. Do altar à tribuna: os padres políticos na formação do Estado Nacional
brasileiro (1823 – 1841). 2010. (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: UERJ/IFCH, p. 166.
119
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira, Op. cit., p. 239.
120
BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil (25 de março de 1824). Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm
121
Ibidem.
65
122
SOUZA, Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo (1780-
1831). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 18.
123
BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil (25 de março de 1824). Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm
124
Com a extinção das referidas instituições, o Supremo Tribunal de Justiça ficaria encarregado das principais
questões eclesiásticas alçadas às instâncias apelativas. Ver: SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Op. cit., p. 63.
125
NEVES, Guilherme Pereira das. E receberá mercê: a mesa da consciência e ordens e o clero secular no Brasil
1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 27.
126
GÉRSON, Brasil. Op. cit., pp. 69-71; SOUZA, Françoíse Jean de Oliveira. Op. cit., p. 333-334.
66
127
ACCIOLLY, Hildebrando. Os primeiros Núncios no Brasil. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949, pp.
225 e sgts.
128
LIMA, Lana Lage da Gama. As constituições da Bahia... In: Op. cit., p. 176.
129
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. cit., p. 27.
130
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa
[Portugal]: Difel, 1990.
67
modos de conceber a relação entre Igreja e Estado, catolicismo e sociedade. Entre a soberania
do poder político civil e a necessidade de sua legitimação a partir do sagrado. Para tanto, teriam
de lidar com um liberalismo constitucional formulado no diálogo a partir das heranças políticas
e filosóficas da ilustração, aqui incluídas, para além da vertente reformista católica, as heresias
e contestações políticas, e das diferentes leituras do ambiente político, filosófico e teológico do
catolicismo.
68
Capítulo 2
DIOGO ANTÔNIO FEIJÓ: JANSENISMO, ILUSTRAÇÃO E DISCIPLINA
ECLESIÁSTICA
Dos grandes nomes que figuram entre os principais estadistas do Brasil Império, Diogo
Antônio Feijó é um dos mais biografados. Os diferentes perfis e leituras sobre Feijó retrataram
um padre secular do interior, arraigado à sua província, mas também um homem de Estado,
engajado nas causas da nação. Os autores que se debruçaram sobre sua trajetória produziram
obras as mais variadas, de artigos a teses, muitas encomiásticas, caso dos panegíricos do IHGB
ou de Novelli Jr, que propôs o panorama de “um conjunto sômato-psicológico” do sacerdote.1
Otávio Tarquínio de Souza incluiu o referido padre ao lado daqueles que denominou
“fundadores do Império”, tais como Bernardo Pereira de Vasconcelos, Evaristo da Veiga, D.
Pedro I e José Bonifácio, desafeto do padre de Itu.2 Magda Ricci reuniu seus múltiplos vultos
e demonstrou de que modo a figura do sacerdote foi trabalhada por seus biógrafos,
aprofundando a análise no sentido de uma reflexão sobre política e sociedade, sobretudo no
momento da formação e consolidação do Estado nacional brasileiro.3 Desse modo, há uma vasta
produção sobre o personagem em questão e também um importante corpus documental
produzido por ele.
No que se refere às influências filosóficas e políticas de Feijó, é de importância
fundamental refletir sobre o modo através do qual foram abordados os assuntos pertinentes às
tensões e interseções entre Estado e Igreja, religião e política, em diapasão próximo ao célebre
aforismo de Napoleão Bonaparte: “A Igreja deve estar dentro do Estado e não o Estado na
Igreja”.4 Em já conhecida fala do trono, na abertura dos trabalhos da Câmara legislativa de
1836, quando regente, Feijó deixaria claro seu posicionamento sobre a questão: “É tão santa a
nossa religião, tão bem calculado o sistema do governo eclesiástico, que, sendo compatível com
toda a casta de governo civil, pode sua disciplina ser modificada pelo interesse do Estado, sem
jamais comprometer-se o essencial da mesma religião.”5 Ao defender suas propostas de
fortalecer o domínio do Estado sobre as questões religiosas, o padre liberal estaria em
1
NOVELLI JUNIOR, Luís Gonzaga. Feijó, um paulista velho. Rio de Janeiro: Edições GRD, p. 8.
2
SOUZA, Otávio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil (volume V): Diogo Antônio Feijó.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2015.
3
RICCI, Magda. Assombrações de um padre regente: Diogo Antônio Feijó (1784-1843). Campinas: UNICAMP,
2001.
4
NAPOLEÃO, I. Como fazer a guerra: máximas e pensamentos de Napoleão/compilados por Honoré de Balzac.
Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 67.
5
BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão Imperial da Abertura da Assembleia Geral Legislativa,
03/05/1836. Brasília: Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 10/05/2017.
69
fizeram-se notáveis pela austeridade dos seus costumes e por uma rigidez de princípios,
que, frisando com os d’Arnauld, Sacy e Pascal, Nicolle, lhes deram alguns longes de
6
Constituição Civil do Clero. UFMG – Fafich – Departamento de História – História Contemporânea. – Prof. Luiz
Arnaut. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/civilclero.pdf Acesso em 25/12/2108.
7
Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro nasceu no Rio de Janeiro, a 25 de junho de 1823. Em 1848 obteve as ordens
de presbítero, viajando à Europa em 1852, onde obteve o título de doutor em teologia. Lecionou história, retórica,
poética e história, em seminários e também no colégio Pedro II. Foi comendador da Ordem de Cristo, sócio e 1º
secretário do IHGB, além de integrante de sociedades científicas e literárias em Paris, Madrid, Lisboa e Nova
York. Foi um nome de peso entre a intelectualidade política, literária e religiosa que se formou durante o Império
brasileiro. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. IV), pp. 107-113.
70
8
FERNANDES PINHEIRO, J. C. Os Padres do Patrocínio ou o Porto Real de Itu. R. I. H. G. B., tomo 33, 2º,
1870, p. 237.
9
Jesuíno Francisco de Paula Gusmão nasceu em Santos, na data de 25/03/1764. Mulato, de origem humilde e “pai
incógnito”, não frequentou instituições. Ainda jovem, prestava serviços aos frades, atuando como pintor e depois
organista. Em 1781, aos dezessete anos, a convite de um frade, mudou-se para Itu, onde adquiriu mais prática nos
ofícios de músico e pintor, decorando as naves e pintando quadros, além de casar-se e ter cinco filhos. Após a
viuvez, recusou-se a casar-se novamente, intensificando sua dedicação aos ofícios e, a convite de um sacerdote,
aos estudos que pudessem habilitá-lo à ordenação, sonho antigo. Em 1797, ordenou-se e escolheu o nome Jesuíno
de Monte Carmelo, em homenagem à Nossa Senhora do Carmo, santa da qual era devoto. O padre Jesuíno liderou
a construção da matriz de Nossa Senhora do Patrocínio em Itu e, no referido espaço, passaram a se reunir os
“padres do Patrocínio”. Ver: ANDRADE, Mário. Padre Jesuíno de Monte Carmelo. São Paulo: Livraria Martins
Editora, 1963, pp. 29-78; FERNANDES PINHEIRO, J. C. Op. cit., p. 239.
10
FEIJÓ, Diogo Antônio. Oração fúnebre ao padre Jesuíno do Monte Carmelo. In: CALDEIRA, Jorge. Diogo
Antonio Feijo. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 274.
11
Antônio Joaquim de Melo nasceu em Itu. Teve o contato com as primeiras letras em Minas Gerais e ali ingressou
na carreira militar, seguindo os passos de seu pai, que para lá fora mandado. Após a morte do pai, seguiu a vocação
eclesiástica, nomeado presbítero em 1814 e, depois anos de trabalho em Itu, bispo da diocese de São Paulo em
1851. Ver: WERNET, Augustin. Op. cit.
12
RICCI, Magda. Op. cit., p. 237.
13
FERNANDES PINHEIRO, J. C. Op. cit., p. 240.
14
Ibidem, P. 240.
71
15
SOUZA, Evergton Sales. Jansénisme et Réforme de l ‘Église dans l’Empire Portugais: 1640 à 1790. Paris:
Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2004, pp. 40-42; SANTOS, Cândido dos. O Jansenismo em Portugal.
Faculdade de Letras da Universidade do Porto: Porto, 2007, pp. 5-10.
16
Luís de Molina nasceu em 1535, em Cuenca, na Espanha. Aos dezoito anos, ingressou na Companhia de Jesus
em Alcalá. Tempos depois, estudou filosofia e teologia na Universidade de Coimbra e lecionou na Universidade
de Évora. Molina, juntamente com o teólogo Leonardo Léssio (1554-1623), combateu Miguel Baio, precursor do
jansenismo, fazendo com que ele fosse condenado pelo papa Pio V (1566-1572). Molina foi o primeiro jesuíta a
escrever um comentário sobre a Suma Teológica de Tomás de Aquino (1225-1274), em sua densa e controversa
obra, Concórdia, cuja tese central consistia na defesa do livre arbítrio, porém, em consonância com a graça divina.
Tal perspectiva combatia a ênfase protestante na predestinação e, baseada em preceitos tridentinos, consistia em
uma reinterpretação da teologia tomista, que enfatizava a graça, sem negar a existência da vontade humana. As
teses de Molina logo sofreriam resistências, em especial por parte do dominicano Domingo Bañez (1528-1604),
que levaria a questão ao papa Clemente VIII (1592-1605). O Sumo Pontífice não se pronunciaria acerca das teses
de Molina, tendo o seu sucessor, o papa Paulo V (1605-1621), feito apenas recomendações para que a contenda
fosse silenciada, sem, no entanto, ratificar uma condenação por bula pontifícia. Ver: HERBERMANN, Charles
George et. al. (1910). The Catholic Encyclopedia: an International Work of Reference on the Constitution,
Doctrine, Discipline, and History of the Catholic Church (v. 10). New York: Universal Knowledge Foundation,
1913, pp. 489-495. Disponível em:
https://archive.org/details/V10CatholicEncyclopediaKOfC Acesso em 10/05/2017.
17
O pelagianismo originou-se das concepções defendidas por Pelágio, nascido provavelmente na Bretanha do
século IV. Pelágio possuía um vasto conhecimento acerca das questões teológicas e das tradições filosóficas da
Antiguidade clássica, sendo influenciado pelo Estoicismo. Em suma, o núcleo central de seu argumento era a
negação do estado de natureza do paraíso e do pecado original, narrativas fundamentais para a afirmação dos
valores cristãos católicos da Santa Sé. As teses de Pelágio foram duramente combatidas por Agostinho de Hipona
e geraram longas controvérsias teológicas nos círculos intelectuais do catolicismo romano durante os papados de
Inocêncio I (401-417) e Zózimo (417-418). No bojo da referida tensão, o pelagianismo foi condenado e figurou
como uma das mais significativas heresias da história da Igreja. Ver: HERBERMANN, Charles George et. al.
(1910). The Catholic Encyclopedia… (v. 11). Op. Cit., pp. 604-608. Disponível em:
https://archive.org/stream/V11CatholicEncyclopediaKOfC#page/n663/mode/2up Acesso em 11/05/2017.
72
entre as duas correntes não se resumiriam a questões de foro religioso, tendo claros
desdobramentos no âmbito político. A partir de sua perspectiva teológica combativa, o
jansenismo contribuiria para o recrudescimento das rusgas entre os poderes monárquico e
pontifício, mantendo constante diálogo e tensão com matrizes intelectuais de natureza
eclesiástica e secular.
Uma das primeiras polêmicas de caráter político, protagonizada pelos jansenistas, teve
lugar na França de Luís XIV. Os jansenistas tinham grande influência sobre seu ilustre defensor,
o filósofo Blaise Pascal (1623-1662), autor das Cartas Provençais, verdadeiro libelo teológico
anti-jesuítico escrito em defesa de Antoine Arnauld (1612-1694).18 Em 1655, Arnauld ficara
incumbido por petição do cardeal Mazarin (1602-1661), de defender o duque de Liancourt
diante dos ataques desferidos pelo teólogo jesuíta François Annat (1590-1670), confessor de
Luís XIV. Segundo Arnauld, ao recusar a confissão do duque e intimá-lo a retirar sua neta de
Port-Royal, Annat estaria violando “normas da Sé Romana, refletindo o desprezo geral dos
Jesuítas pelas tradições estabelecidas da Igreja”.19 Cumpre salientar que, ainda no século XVII,
mesmo em meio a essas tensões, os jansenistas nutriam simpatia por certo “galicanismo
episcopal”, ao mesmo tempo em que compartilhavam os sentimentos ultramontanos de
oposição à razão do Estado.20 Entretanto, com o passar dos anos, os jansenistas estariam cada
vez mais próximos do Estado galicano francês, na medida em que sofriam perseguições por
parte do papado romano, sobretudo após a promulgação da Bula Unigenitus (1713).
A bula Unigenitus, de autoria do papa Clemente XI (1700-1721), teve como principal
objetivo a condenação de 101 proposições contidas na obra Reflexões morais sobre o Novo
Testamento, de autoria do oratoriano Pasquier Quesnel (1634-1719). Quesnel defenderia a
perspectiva da graça divina, evocando, em termos políticos, a importância dos concílios e a
supremacia do poder temporal.21 Diante da ofensiva de tais teses, que contestavam a
preeminência da Santa Sé sobre as competências eclesiásticas, a condenação de Clemente XI
18
Pascal é uma das maiores referências da ciência e da filosofia desenvolvidas na Idade Moderna, tendo publicado
trabalhos elementares nas áreas da física e da matemática, além de reflexões sobre a religião e sobre as contendas
geradas em torno das eventuais contraposições entre o empirismo e o racionalismo. Arnauld, por sua vez, também
teve incontestável protagonismo na história da filosofia e da teologia ocidental, tendo sido um dos comentadores
das Meditações, de René Descartes. Ver: MANTOVANI, Ricardo Vinícius Ibañez. Primeira Carta Provincial de
Blaise Pascal. Cadernos Espinosanos, [S.l.], n. 33, p. 255-270, dec. 2015. ISSN 2447-9012. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/espinosanos/article/view/104486/107242>. Acesso em: 14/12/2016.
doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2015.104486; ROSENFIELD, Denis L. Arnauld: entre a
teologia e a filosofia. Analytica. Vol. 5, número 1-2, 2000, pp. 49-82.
19
KOSTROUN, Daniela. Feminism, Absolutism and Jansenism: Louis XIV and the Port-Royal Nuns. New York:
Cambridge University Press, 2011, p. 92. (Tradução nossa).
20
SOUZA, Evergton Sales. Op. cit., pp. 97-98.
21
Ibidem, pp. 75 e segs.
73
22
SANTOS, Cândido dos. Op. cit., p. 12.
23
Ibidem, pp. 12-13.
24
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Questão de Consciência... Op. cit., pp. 56-58; VILLALTA, Luiz Carlos. Usos
do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. cit., p. 141.
25
SOUZA, Evergton Sales. Op. Cit., pp. 428 e segs.
74
Escolástica, que tiveram ampla divulgação e legitimidade entre os séculos XVII e XVIII,
ganhando fôlego até os idos do século XIX.26 Com efeito, alguns dos valores teológicos,
eclesiológicos e políticos defendidos pelos jansenistas conviveram, em Portugal, com uma
tradição que buscava a legitimação do Estado monárquico em bases doutrinárias agostinianas,
tomistas, platônicas e aristotélicas. Para os tomistas, haveria uma relação derivativa entre a lei
divina, a lei natural e a lei humana, sendo esta última uma manifestação do conhecimento que
o homem possuía em um estado natural iluminado pela graça divina.27 Molina e outros teóricos
neotomistas recorreram a essa chave de entendimento, que encadeava um jusnaturalismo de
inspiração teológica e noções contratualistas, destacando a necessidade de convergência entre
a vontade do soberano e do corpo de súditos.28 Nesse sentido, o poder do rei não derivaria
diretamente de Deus, sendo o Sumo Pontífice o único representante da vontade divina e, ao
mesmo tempo, a comunidade a depositária original do poder advindo da divindade.
Ao evocar o protagonismo político da comunidade e, particularmente, do papa, a
perspectiva neotomista contribuía, de certo modo, para legitimar a limitação do poder dos
soberanos, o que alimentava as rusgas na dinâmica do Padroado régio. Por sua vez, os asseclas
da hegemonia do poder civil sobre as competências eclesiásticas encontrariam distintas vias de
legitimação intelectual e política das suas ideias. Nesse contexto, em Portugal, durante a
segunda metade do século XVIII, o jansenismo se afirmou, ainda que inserido em uma dinâmica
de legitimação do poder político na qual as matrizes filosóficas que questionavam a hegemonia
Escolástica dos jesuítas encontravam resistências múltiplas.29 A partir desse complexo quadro,
a progressiva difusão do jansenismo, em suas variantes teológicas e eclesiológicas, no quadro
das matrizes intelectuais do ocidente euro-americano, acabou por atingir a América portuguesa.
O franciscano Manuel da Ressurreição (1718-1789), à frente da Diocese de São Paulo
entre 1771 e 1789, possuía em sua biblioteca obras de referência do pensamento jansenista,
dentre elas, destacava-se o Catecismo de Montpellier.30 Dom Manuel chegaria a trocar
26
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. cit., p. 46.
27
SKINNER, Quentin. Op. cit., pp. 426-432.
28
TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da
Universidade, 1981, vol. 1, p. 110-112.
29
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. cit., p. 46.
30
O Catecismo de Montpellier foi impresso pela primeira vez em 1702, na diocese homônima. O texto fora
encomendado pelo bispo Joachim Colbert e redigido pelo oratoriano François Aimé Pouget, advogando pela
obediência aos monarcas e pelo pessimismo teológico, marcas do galicanismo e do jansenismo. O texto foi
traduzido para o português durante o reinado de d. José I e contribuiu para a consolidação de uma pedagogia
política e religiosa que reforçava os preceitos regalistas no mundo luso-brasileiro, tendo chegado até o Brasil
Império. Chegou a ser adotado, em seu formato pequeno, no ensino de primeiras letras no mundo lusitano. Ver:
ANJOS, Juarez José Tuchinski dos. O catecismo de Montpellier e a educação da criança no Brasil imperial.
Cadernos de Pesquisa. v.46 n.162 p.1028-1048 out./dez. 2016, pp. 1032-1035.
75
correspondências com Pombal para tratar da situação em que se encontrava a formação dos
sacerdotes paulistas, destacando sua retidão disciplinar e deficiência na formação. 31 A
predileção de dom Manuel por algumas obras jansenistas permite reforçar a hipótese de que
Feijó realmente travara contato com as ideias de Jansênio e seus seguidores. Tendo em vista a
peculiar sedimentação do jansenismo no mundo luso-brasileiro, o paralelo de Fernandes
Pinheiro entre os movimentos ocorridos nos arredores de Paris e no interior de São Paulo não
estaria de todo infundado, apesar de um tanto quanto hiperbólico.
Seguindo suas análises, o presbítero, teólogo e intelectual do império defenderia a
legitimidade das teses galicanas de Bossuet: “Ora ninguém há que ignore que Bossuet e os
outros notáveis teólogos que defenderam as mui célebres liberdades da igreja galicana na
famosa assembleia do clero de 1682 viveram e morreram na comunhão da Igreja católica”.32
Ao mesmo tempo, destacaria o distinto caráter herético do jansenismo, que: “através de suas
multíplices metamorfoses, foi solenemente condenado pela autoridade dos SS. PP. Urbano VIII,
Inocêncio X, Alexandre VII e Clemente XI”.33 Quanto à recepção dos padres brasileiros às teses
heréticas, a justificativa de Fernandes Pinheiro destacava as limitações relativas ao campo
teológico: “A linha divisória entre a verdade e o erro não era mui fácil de ser distinguida pelos
eclesiásticos ituanos, cuja ciência teológica não igualava por certo a piedade e austeras virtudes
que tanto os recomendavam.”34 Já “nas conferências semanais” dos padres do Patrocínio, “que
publicamente celebravam com assistência de numerosíssimo auditório”, ventilavam-se
“algumas proposições mal soantes (...) nas teses dos paladinos da controvérsia.”35
Em seus escritos, Feijó não tratou diretamente sobre os valores e querelas do jansenismo
e, de fato, houve quem negasse veementemente a influência da referida “heresia” sobre Feijó e
os seus coetâneos de Itu, afirmando ser equivocada a comparação de Fernandes Pinheiro.36
Contudo, o padre regente comentou sobre o contexto da França galicana em seu opúsculo
Demonstração da necessidade de abolição do celibato clerical. Nessa obra, destacou o
protagonismo do Estado francês, mantenedor da autonomia de sua Igreja frente aos anseios da
cúpula da Sé romana. A supremacia da Igreja galicana tutelada pelo Estado teria se dado mais
por iniciativa das forças civis do que pela vontade das forças religiosas: “Merece ser observado
que as liberdades da Igreja galicana devem a sua existência mais à proteção do governo do que
31
SOUZA, Evergton Sales. Op. cit., pp. 26-27.
32
PINHEIRO, Fernandes. Op cit., p. 240-241.
33
Ibidem, p. 241.
34
Ibidem, p. 241.
35
Ibidem, p. 241. (Grifos do autor).
36
CAMARGO, Monsenhor Paulo Florêncio da Silveira. Os padres do Patrocínio. R. I. H. G. B., vol. 251, 1961,
pp. 227-232.
76
aos esforços dos eclesiásticos”.37 Esses últimos, pelo contrário, fariam coro às diretrizes
emanadas do núcleo do catolicismo romano, exigindo “a publicação do Concílio Tridentino,
onde os direitos dos bispos são muito pouco atendidos, e onde se pretende indiretamente
inculcar o domínio universal dos papas e sua supremacia aos concílios gerais, ets”.38
Se não tocou diretamente no controverso tema do jansenismo em sua fala sobre a França
galicana, Feijó deixou claro que o enfraquecimento do poder dos bispos e o apelo à supremacia
do poder papal estavam intimamente relacionados. O padre de Itu seria defensor da autonomia
das competências civis do Estado sobre a Igreja romana, o que se tornou claro na questão da
nomeação de Antônio Maria Moura para o bispado do Rio de Janeiro, fazendo apologia ao
regalismo e também ao episcopalismo. Tais aspectos, ligados respectivamente à relação entre
Igreja e Estado e à hierarquia dos poderes eclesiásticos, foram absorvidos de modos distintos
entre os diferentes grupos e agentes históricos identificados ao jansenismo.
É interessante notar que tanto Fernandes Pinheiro quanto Diogo Antônio Feijó
evocariam a legitimidade do galicanismo, se bem que a partir de perspectivas distintas. O
primeiro traria a voz de Bossuet e a suposta indissociabilidade entre o Estado francês e a Santa
Sé, negando que a liberdade da Igreja galicana pudesse ferir as relações com o catolicismo
romano. O segundo, por sua vez, assentaria seu argumento na autonomia do poder temporal e
sua importância na blindagem que o governo francês manteria frente às investidas tridentinas
que advogavam pela plenitude do poder papal. Assim, distintas interpretações do fenômeno
galicano significavam maneiras diversas de conceber a relação entre Estado e Igreja e, no limite,
o desenho político-institucional do próprio Padroado régio no Brasil. Se Fernandes Pinheiro
rechaçava a penetração dos ideais “heréticos” nos domínios do Patrocínio, fazendo apologia
das condenações papais, Feijó seria o porta-voz de alguns dos principais valores que, com o
tempo, fortaleceram-se como pilares do jansenismo.
Fernandes Pinheiro não destacaria apenas embate jansenista liderado por Feijó, mas
também alguns “sacerdotes que, na frase de S. Paulo, prezaram mais a Deus do que aos
homens”, sendo eles “os padres Antônio Pacheco da Silva, fundador do hospício dos
morféticos; Melchior Soares do Amaral, primo e íntimo amigo de Feijó; frei Inácio de Santa
Justina, famoso teólogo que foi mestre de Mont’Alverne, e frei Matheus, tipo do missionário
católico.”39 A oposição dos referidos sacerdotes aos padres do Patrocínio também fora
37
FEIJÓ, Diogo Antônio. Demonstração da necessidade de abolição do celibato clerical In: CALDEIRA, Jorge.
Op. cit., p. 329.
38
Ibidem, p. 329.
39
FERNANDES PINHEIRO, J. C. Op. cit., p. 242.
77
destacada por Mário de Andrade, em seu estudo sobre o padre Jesuíno de Monte Carmelo.
Entretanto, o grande ícone do Modernismo não trouxe informações além daquelas que
Fernandes Pinheiro forneceu, pelo contrário, suas considerações foram muito próximas às do
referido sacerdote. Sobre os padres do Patrocínio, o autor de Macunaíma destacou seus “ardores
místicos exaltadíssimos” e “disciplinas ferozes”, salientando ainda que Feijó era “dos mais
ardentes” e deixava “o chão maculado de sangue pecador”.40 Teria Mário de Andrade traçado
suas impressões a partir do esboço feito por Fernandes Pinheiro? Não há citação que possa
comprovar, mas, se o fez, aditou os floreios de exímio folclorista quando se referiu a Feijó.
Essa contraposição que Fernandes Pinheiro esboçou, entre os padres de Itu e seus
antagonistas, seria nivelada em uma comparação que evocava afamados nomes da história do
catolicismo: “A um Tertuliano, a um Lamennais, oporemos um S. Cypriano, um Fénélon”.41
Ao lado do proscrito Lamennais, um dos maiores “hereges” do século XIX, evocava-se
Tertuliano, cuja teologia ficaria marcada por rigoroso e fiel apelo ao martírio e à superação das
tentações.42 Tertuliano seria um dos precursores da doutrina da graça, aperfeiçoada por aquele
que foi referência fundamental para os jansenistas, santo Agostinho.43 Já Cipriano de Cartago,44
discípulo de Tertuliano, fora colocado ao lado de Francis Fénelon (1651-1715), sacerdote
francês formado entre os jesuítas.45 De fato, Cipriano manteve discordâncias com relação a
40
ANDRADE, Mário. Op. cit., p. 71.
41
FERNANDES PINHEIRO, J. C. Op. cit., p. 243.
42
Filho de um centurião romano, Tertuliano nasceu em Cartago, entre os anos 150 e 160, e notabilizou-se por seu
conhecimento jurídico enquanto advogava pelas cortes do Império Romano. Com o tempo, passou a se dedicar à
Igreja a partir de uma vida ascética e tornou-se sacerdote da Igreja de Cartago. No início do século III, Tertuliano
rompeu com a Igreja e converteu-se ao Montanismo, movimento considerado herético, fundado por Montano
(século II) e difundido pelos domínios de Roma, da Ásia Menor e norte da África. Em que pese seu rompimento
com a instituição cristã, a teologia original e sistemática de Tertuliano figura entre uma das mais incisivas em
termos de apologética. Seus seguidores foram reincorporados à Igreja por iniciativa de Agostinho. Ver:
HERBERMANN, Charles George et. al. (1910). The Catholic Encyclopedia… (v. 14). Op. cit., pp. 520-525.
Disponível em:
https://archive.org/stream/V11CatholicEncyclopediaKOfC#page/n663/mode/2up Acesso em: 30/05/2017.
43
BRAATEN, Carl E. & JENSON, Robert W. (Ed.). Dogmática Cristã (v. 1). São Leopoldo: Sinodal, 2002, p.
52.
44
Cirpiano nasceu em Cartago, em data desconhecida, provavelmente em inícios do século III, tendo sido orador
e advogado e convertendo-se ao cristianismo em meados da sua vida. Foi bispo de Cartago e advogou pela
unificação da cristandade. Por negar a reconhecer a autoridade religiosa do Império Romano, enfatizando sua
devoção aos preceitos da trindade una e santa, Cipriano foi degolado. Sua sentença foi proferida e aplicada em
258, durante a perseguição aos cristãos empreendida pelo imperador Valeriano (253-260). Pela crueza de sua
trágica morte, Cipriano passou a figurar entre os grandes mártires da Igreja de Roma. HERBERMANN, Charles
George et. al. (1910). The Catholic Encyclopedia… (v. 4). Op. cit., pp. 583-589. Disponível em:
https://archive.org/stream/V11CatholicEncyclopediaKOfC#page/n663/mode/2up Acesso em: 31/05/2017.
45
Francis Fenelon nasceu em 1651, na região de Périgord, na França. Desde jovem, travou contato com a filosofia
e a teologia, sendo ordenado no seminário de Saint-Sulpice, chegou a ser arcebispo da diocese de Cambrai.
Notabilizou-se por suas obras de caráter pedagógico e foi preceptor do herdeiro do trono francês, o Duque de
Borgonha. Entretanto, o sacerdote foi condenado por Inocêncio XII (1691-1700) ao escrever uma obra em defesa
de Madame Guyon (1638-1717) e do quietismo, questão sobre a qual já havia revelado discordâncias com relação
às opiniões de Bossuet. Por sua obra Telêmaco, Fénelon foi afastado da preceptoria e banido da Corte. Não voltaria
78
Tertuliano no que se referia ao batismo.46 Fénelon, por sua vez, compôs uma obra que refutava
as teses jansenistas, Refutação do sistema do padre Malebranche sobre a natureza e a graça,
escrita sob influência de Bossuet, em 1684, antes das rusgas que envolveram os dois prelados.47
Se para Fernandes Pinheiro o padre de Itu estaria em sintonia com esses “hereges” que
sacudiram a França de Luís XIV, também faria coro às vozes dos sacerdotes Miguel Hidalgo y
Costilla (1753-1811) e José Maria Morelos (1765-1815), líderes do movimento pela
Independência do México,48 que “hastearam bem alto o estandarte da independência e fizeram
recuar os aguerridos soldados de Fernando VII. Feijó era dessa tempera; e, se as circunstâncias
o tivessem exigido, tê-lo-íamos visto brandindo a espada, ou manejando a escopeta.”49 Apesar
da semelhança apontada, o destino do clérigo paulista surgia ao longe dos arroubos de violência
e mais alinhado aos louros do parlatório: “A marcha natural dos acontecimentos fê-lo porém
homem de tribuna e de governo; podendo aplicar a si o mui conhecido verso de Cícero: Cedant
arma togae, concedant láurea linguae”.50 Clamando pela oratória no lugar das armas,51 a frase
de Cícero parece não ter tido o mesmo efeito atenuante sobre o próprio Feijó que, em
correspondência ao barão de Caxias, afirmou não ter ido às armas tão somente por sua
debilidade no momento da famosa Revolta de 1842: “o vilipêndio que tem o governo feito aos
paulistas e às leis anticonstitucionais da nossa Assembleia me obrigaram a parecer sedicioso.
Eu estaria em campo com a minha espingarda se não estivesse moribundo; mas faço o que
posso”.52
mais a Paris. Ver: BUTLER, Charles. The Life of Fenelon, Archbishop of Cambray. London: Printed for Longman,
Hurst, Rees, and Orme, Paternoster Row, 1810, pp. 11-76.Disponível em:
https://books.google.pt/books?id=cKZhAAAAcAAJ&pg=PA95&lpg=PA95&dq=fenelon&source=bl&ots=z3sy
3d4gpa&sig=P-8lTkBSI0PdyZz8mcJCvP5TUME&hl=pt-PT&sa=X&ved=0ahUKEwjL4-
Hj8ZrUAhUJXhoKHdGeCSUQ6AEIYTAJ#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 31/05/2017
46
BRAATEN, Carl E. & JENSON, Robert W. (Ed.). Op. cit., p. 407.
47
VILLEMAIN, M. (Org.). Oeuvres Philosophiques de Fénelon. Paris: L. Achete Éditeur, 1843, pp. 35-36.
Disponível em:
em:https://books.google.pt/books?id=LvRIAAAAcAAJ&pg=PR35&lpg=PR35&dq=Trait%C3%A9+de+l%27ex
istence+de+Dieu+et+de+la+r%C3%A9futation+du+syst%C3%A8me+de+Malebranche+sur+la+nature+et+sur+l
a+Gr%C3%A2ce&source=bl&ots=2X2s4jaQGI&sig=KiqCKOE1FstD4XKbjdwRc2e_DtU&hl=pt-
PT&sa=X&ved=0ahUKEwjDo4qB JrUAhUIOhoKHYXkDMgQ6AEIKjAA#v=onepage&q&f=false. Acesso
em: 31/05/2017.
48
ANNA, Timothy. “A Independência do México e da América Central.” In: BETHELL, Leslie (Org.). História
da América Latina: Da Independência a 1870, volume III. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo;
Brasília, DF – Fundação Alexandre Gusmão, 2009, pp. 84-91.
49
FERNANDES PINHEIRO, J. C. Op. cit., p. 244.
50
Ibidem, p. 244.
51
CÍCERO, Marcus Tullius. Livro dos ofícios de Marco Tullio Ciceram, o qual tornou em linguagem o Infante D.
Pedro, duque de Coimbra. Edição critica, segundo o MS. de Madrid, prefaciada, anotada e acompanhada de
glossário, por Joseph M. Piel. Coimbra: Por Ordem da Universidade, 1948, p. 47. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?id=M6SLhmxI_t0C&printsec=frontcover&hl=pt-
BR#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 15/12/2016.
52
Jornal do Comércio, nº 181, 14/06/1842.
79
53
FERNANDES PINHEIRO, J. C. Op. cit., p.241.
54
Ibidem, p. 241.
55
WERNET, Augustin. Op. cit., pp. 96-103.
56
Tal argumento baseou-se em um artigo escrito por Fernandes Pinheiro em 1855, intitulado Ensaio sobre os
Jesuítas, no qual é admitida a mudança de opinião de seu autor sobre a Companhia de Jesus, passando de apologia
à crítica. O artigo tem início com uma citação do pensador italiano Vicenzo Gioberti (1801-1852), expoente
intelectual do risorgimento, crítico da instituição inaciana. Ver: FERNANDES PINHEIRO, J. C. Ensaio sobre os
Jesuítas. R. I. H. G. B., tomo XVIII, 1896, p. 71; MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, Vol. III
(1855-1877). São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1977, p. 2; NARITTA, Felipe Ziotti. O
tempo sagrado do Império: história e religião na obra do cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro. 2012. 169
f. Dissertação (Mestrado) – UNESP. Franca, 2012, p. 12.
80
Essa natureza compósita não foi uma exclusividade do pensamento do padre regente ou
de Fernandes Pinheiro, mas uma característica das elites letradas do próprio Brasil imperial.
Entre os sacerdotes, que durante o Império ainda perfaziam boa parte dos círculos letrados, era
comum a convergência entre tradições intelectuais da Eclésia e do século, das teses escolásticas
e da Ilustração (que não necessariamente, ressalte-se, opôs-se à religião e, mais
especificamente, ao catolicismo), cara aos estrangeirados.57 A formação intelectual da
hierarquia eclesiástica carregava a herança das estruturas de um Império ultramarino português
em constante tensão com Roma, favorável ao desenvolvimento do regalismo e vulnerável à
penetração de ideias consideradas “heréticas” pelos mais afinados com o Papado, como foi o
caso do jansenismo. Diogo Antônio Feijó não seria uma exceção ao aspecto multimodal da
intelligentsia do período Imperial. Essa marca tornou-se evidente em seus Cadernos de
Filosofia, confeccionados nos anos de Itu e nos quais estariam expostas suas leituras sui generis
da tradição filosófica luso-brasileira e europeia.
57
DOMINGUES, Ivan. Op. cit., pp. 10-42.
58
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., p.30.
59
DURAN, Maria Renata da Cruz. Ecletismo e retórica na filosofia brasileira: de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-
1846) ao frei Francisco do Monte Alverne (1784-1858). Almanack. Guarulhos, n.09, p.115-135, abril de 2015, p.
117.
81
60
Silvestre Pinheiro Ferreira nasceu em Lisboa, em 31/12/1769. Ingressou na Congregação do Oratório em 1784,
sendo de lá expulso por rusgas com um confrade. Nomeado substituto na Universidade de Coimbra em 1792, dali
também teve que se retirar por acusações que lhe imputavam no Santo Ofício. Durante seu exílio, viajou pela
Inglaterra, Holanda, França e Alemanha, onde travou contato com referências intelectuais diversas, compondo um
vasto repertório de influências. Esteve no Brasil entre os anos de 1809 e 1821, regressando com d. João para
Portugal no momento da Revolução Liberal. Iniciado na maçonaria, exerceu cargos no âmbito da diplomacia e da
administração régia. Compôs uma vasta obra no campo da filosofia, do direito, da administração e da economia,
na qual se destacam as Preleções filosóficas de 1813. Ver: SILVA, M. B. M. N. Silvestre Pinheiro Ferreira:
Ideologia e Teoria. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1975, pp. 9-82.
61
Francisco de Monte Alverne nasceu em 1784, no Rio de Janeiro, onde frequentaria o convento de Santo Antônio
da ordem dos franciscanos. Em São Paulo, recebeu lições de frei Inácio de Santa Justina, um dos sacerdotes que
faziam oposição ao comportamento de Feijó e de seus companheiros do Patrocínio. Em 1816, foi nomeado
pregador régio, construiu uma proeminente carreira nas instituições religiosas e teve, entre seus discípulos,
Gonçalves de Magalhães (1811-1882), literato da primeira geração do Romantismo brasileiro. Ver: BLAKE,
Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. IV), pp. 49-52.
62
Luís Antônio Verney nasceu em Lisboa em 1713. Filho de comerciante, frequentou instituições de ensino dos
jesuítas e oratorianos. Estudou em Évora e doutorou-se em teologia e jurisprudência em Roma. Sua obra mais
afamada, Verdadeiro Método de Estudar (1746), foi uma referência fundamental para a Ilustração luso-brasileira,
na medida em que se opôs aos métodos de ensino dos jesuítas e apresentou uma nova sistematização para o ensino,
tendo influência sobre a implantação das Aulas Régias empreendida pelo marquês de Pombal. Verney combateu,
desse modo, alguns dos pilares políticos, filosóficos, científicos e morais da sociedade portuguesa do Antigo
Regime, contribuindo para a sedimentação do pensamento ilustrado em Portugal e no mundo luso-brasileiro. Ver:
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. cit., pp. 127-131.
63
Sobre a teia de informações e de formação política na Paris do século XVIII, ver: DARNTON, Robert. Os dentes
falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras,
2005, pp. 47-90. Sobre a conjuntura luso-brasileira, durante a crise do Antigo Regime, ver: VILLALTA, Luiz
Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português... Op. cit., pp. 45-95.
82
64
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 298.
65
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Ilustração, história e ecletismo: considerações sobre a forma eclética de se
aprender com a história no século XVIII. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, pp. 75-87, 2010, ppp. 76-
77.
66
Antônio Nunes Ribeiro Sanches nasceu em Penamacor, no seio de uma família de cristãos-novos. Ingressou em
Coimbra e, dali saindo, foi cursar medicina em Salamanca. Exerceu a profissão em Portugal por um tempo, mas,
denunciado à Inquisição, partiu para outras paragens europeias, Inglaterra, França, Itália, Rússia. Dentro dos
limites característicos à Ilustração em Portugal, a obra de Ribeiro Sanches representou uma ruptura com o holismo
das explicações teológicas e marcou um ponto de inflexão no desenvolvimento de um vocabulário médico-
científico. Dentre seus mais famosos escritos, o verbete “L’affections de l’ame” para a Encyclopédie Métdodique
de Charles Joseph Panckoucke (1736-1798). Teodoro de Almeida nasceu em Lisboa, onde frequentou a
Congregação do Oratório. Sua obra foi um expoente do ecletismo filosófico no bojo da Ilustração portuguesa,
buscando uma síntese entre o pensamento cientificista e a teologia. Por se opor aos desígnios regalistas de Pombal,
acabou perseguido e exilado, voltando a Portugal após o término do reinado de D. José I (1750-1777). Foi professor
de Romualdo Antônio de Seixas na Congregação do Oratório. Ver: SILVA, Inocêncio Francisco da. Dicionário
Bibliográfico Português (vol. I). Lisboa: Imprensa Nacional, 1858, pp. 213-214; VILLALTA, Luiz Carlos. Usos
do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. Cit., pp. 129, 137-138. 245-277
67
José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu na Vila de Santos. Filho do Coronel Bonifácio José de Andrada e de
dona Maria Bárbara da Silva, estudou na Universidade de Coimbra, onde obteve os bacharelados em Ciências
Naturais e Direito. Aprofundando ainda mais seus estudos, no continente Europeu, participou de diversas
instituições científicas e viveu o clima da Revolução Francesa quando estudou em Paris, onde conviveu com os
irmãos Humboldt. Em suas pesquisas pela Europa, descobriu e descreveu quatro novos minerais e doze variedades.
Participou de todas as principais academias científicas da época. Além de Intendente Geral das Minas e professor
da Universidade de Coimbra, sua participação nos acontecimentos relativos à Independência em 1822 foi de
importância capital, tendo organizado, à época, o primeiro corpo ministerial brasileiro. Deputado à constituinte foi
exilado do país, acusado de traição. Ao voltar, quando da abdicação de D. Pedro I ao posto de imperador, José
Bonifácio fora nomeado como tutor do futuro imperador Pedro II e de suas irmãs, sendo exonerado da função no
ano de 1833. Morreu a 6 de abril de 1838, em Niterói. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op.
Cit. (Vol. IV), pp. 344-350; CALDEIRA, Jorge (Org.). José Bonifácio. São Paulo: Ed. 34, 2002, pp. 9-40.
83
O método analítico é, sem dúvida, o mais claro, o mais próprio e o mais seguro para
resolver a maior parte das questões. Por ele conduzimos insensivelmente o adversário
aos verdadeiros princípios. É o método de que usava SÓCRATES em suas disputas e
no seu ensino. Ele, com toda a cortesia, ia pedindo ao contrário a explicação dos termos
e proposições, propondo suas dúvidas e oferecendo, ao mesmo tempo, os meios pelos
quais o adversário poderia dissolvê-las e, desta sorte, enfim, se achavam concordes. O
método sintético, ou silogístico é, de ordinário, mais breve, porque supõe o adversário
68
DIAS, J. S. da Silva. O ecletismo em Portugal no século XVIII: génese e destino de uma atitude filosófica.
Coimbra: Instituto de Estudos Psicológicos e Pedagógicos, 1972, p. 5.
69
CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., pp. 65-92; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. cit., pp. 25-53;
70
Antônio Genovesi nasceu em Castiglione, hoje Castiglione de Genovesi. Primogênito, Genovesi foi enviado à
carreira eclesiástica, a partir de uma estratégia por parte de sua decadente família, que buscava recuperar a sólida
condição social e econômica perdida. Sua formação se deu entre os parentes do clero local e foi caracterizada pelo
autodidatismo. Desde cedo, Genovesi refutaria as bases da pedagogia escolástica, travando um intenso contato
com a filosofia de Descartes. Ao longo de seus estudos no campo da filosofia, foi discípulo de Giambattista Vico
(1688-1744). Em Nápoles, Genovesi lecionou metafísica e ética, aprimorando seu “ecletismo programático”, sob
a influência do pensamento newtoniano e do jusnaturalismo de Grotius e Puffendorf, ao mesmo tempo em que
afirmava uma legítima autoridade da Igreja sobre o domínio intelectual. Ver: GHISALBERTI, Alberto M. et al...
(dir.). Dizionario biografico degli italiani (vol. 53). Roma: Istituto della Enciclopedia Italiana, 2000. Disponível
em: http://www.treccani.it/enciclopedia/antonio-genovesi_%28Dizionario-Biografico%29/ Acesso em:
17/07/2017.
71
DURAN, Maria Renata da Cruz. Op. cit., p. 117; VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-
brasileiro sob as luzes... Op. cit., pp. 100-101, 348, 352, 382, 388 e 438-439.
72
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., pp. 23, 33, 69 e 123-124.
84
instruído nos princípios, e toda a sua força consiste na ordem da dedução. Mas, quando
não há concórdia nos princípios e se trata de prová-los, de ordinário é interminável a
questão, por ser necessário retrogradar e sempre por meio de universais. O espírito
exercitado neste método, por sua demasiada abstração, vê-se na precisão de fazer mil
divisões e distinções; acostumado a encontrar tantos recursos no mundo das abstrações,
adquire uma sutileza e perspicácia para a leveza e confusão, se se não sabe guardar a
necessária mediana.73
Duas propensões se observam no homem, bem distintas por seus objetos e por seus
motivos e tão universais que compreendem todas as mais propensões: o desejo da
felicidade e o amor da justiça. A primeira tem por motivos a conservação e bem ser do
Eu; nasce ou é consequência do amor próprio ou amor de si. O interesse é o seu
fundamento. Por esta propensão o homem se concentra e olha o universo como
instrumento de sua felicidade.
A segunda tem por motivo o dever, nasce ou é consequência da estima de si; o homem,
então nobre e desinteressado, não se considera senão como parte do universo, a cujas
leis deve sujeitar-se.77
Eis aqui, pois, a natureza moral do homem: desejo da felicidade, sentimento fundado no
egoísmo, amor da justiça, sentimento nobre e desinteressado, fundado na estima de si;
razão que descobre os fins das mesmas propensões, liberdade pela qual o homem abraça
ou rejeita os objetos indicados por suas propensões ou oferecidos por sua razão.
73
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., pp. 117-118.
74
Ibidem, p. 123 (Nota de rodapé).
75
Ibidem, pp 123-124 (Nota de rodapé).
76
Ibidem, p. 123. (Grifos do autor).
77
Ibidem, p. 123. (Grifos do autor).
85
A observação nos manifesta a natureza moral do homem, ela mesma nos descobrirá a
origem de suas obrigações e a existência de uma legislação moral natural. Origem das
obrigações: existência de uma legislação moral natural.78
o homem tem a consciência de que, escolhendo o bem sem atenção ao justo, fica isolado;
ninguém toma parte na sua ação; torna-se um átomo no universo ou, quando muito, é
um animal. Se ele por causa do bem ofende o justo, além de sentir a vergonha e o
aviltamento, é objeto da censura de todo o ente inteligente: todos o condenam.
Se, pelo contrário, o homem abraça o justo, ele se coloca no lugar distinto e elevado,
para o qual suas faculdades o chamam, se liga aos demais entes inteligentes e põe-se,
de certo modo, a par do Autor da natureza, concorrendo com Ele para os fins da criação.
O homem, pois, conhece que a justiça e seus resultados restringem sua liberdade e o
ligam não por necessidade, mas por convicção. Ei-lo sentindo já a origem de suas
obrigações.79
A consciência caleja, ou não deixa mais ouvir o imperativo de sua voz: a razão se
deprava. Eis quando o homem sente a necessidade da revelação, para o segurar na
prática do que é justo, para o encaminhar direito para a felicidade, objeto igualmente de
seu desejo.80
78
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., p. 126.
79
Ibidem, p. 126.
80
Ibidem, p. 127. (Grifos do autor).
81
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. cit., p. 101.
86
encaminhadas ao fim particular do mesmo ente, mas com relação às propriedades dos outros
entes para algum fim comum.”82 A razão e a revelação compunham um binômio indutivo que
ligava as manifestações materiais aos desígnios da criação: “Desta sorte o observador descobre
ligações e ordem desde o átomo até o Autor da natureza; e conhece que o fim último de todo o
criado é a manifestação da onipotência, sabedoria e bondade do Criador; e nisto a razão está de
acordo com a revelação.”83 Encerrando o capítulo sobre a referida “natureza moral do homem”,
Feijó destacava um encadeamento existencial e cognitivo entre o “homem moral” e a “ordem”,
que, por sua vez, compunha “uma série de entes simultâneos ou sucessivos”:
O homem moral, portanto, será aquele que entender esta ordem, e obrar a respeito de
cada ente, segundo a natureza própria e as relações que encerra, tendo sempre em vista
que da harmonia dos fins particulares com os fins gerais de cada série e desta com o fim
último é que nasce o conhecimento das propriedades de cada ente em toda sua
extensão.84
Em suas anotações sobre moral, Diogo Antônio Feijó explanaria ainda questões ligadas
ao direito, definindo algumas linhas fundamentais de seu pensamento embebido em uma
perspectiva eclética. Quanto às noções de jurisprudência e direito, argumentaria:
Jurisprudência é a ciência que trata do Direito; este pode ser natural, quando é
desentranhado da natureza das coisas; civil, quando trata dos direitos dos cidadãos;
público, quando trata dos deveres do soberano ou dos direitos convencionais entre certas
nações; político, quando trata dos direitos da sociedade reunida ou dos meios de
constituir a sociedade e de aperfeiçoá-la; das gentes, quando trata dos direitos de uma
nação para com outra, independente de convenção etc.
Todos estes direitos, porém, têm o seu princípio no direito natural ou, para melhor dizer,
é o mesmo direito natural desenvolvido e aplicado a diferentes objetos.
Contudo, quando o direito natural é manifestado por uma autoridade externa, toma o
nome de direito positivo, e este é divino ou humano.85
82
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., p. 101.
83
Ibidem, p. 128.
84
Ibidem, p. 129.
85
Ibidem, p. 135. (Grifos do autor).
86
Ibidem, pp. 135-136.
87
deveres do homem, dentre os quais estariam os “deveres do homem para com Deus”. 87 Ainda
que fossem evocados princípios indutivos e empíricos, Feijó apropriava-se seletivamente das
bases filosóficas, jurídicas e teológicas da tradição Escolástica, na medida em que a positivação
de uma lei divina sobrepunha-se à lei natural e à razão limitada. Sob uma perspectiva eclética,
própria à Ilustração luso-brasileira, que concebia certo empirismo em oposição ao racionalismo,
sem no entanto prescindir da tradição aristotélico-tomista, a deontologia desenvolvida por Feijó
pressupunha a divisão entre duas noções de jusnaturalismo, a “legislação natural moral” e o
direito natural abstrato.88 A primeira, inata aos indivíduos, era caracterizada pelas propensões
contrastantes, felicidade e justiça, devendo recair a escolha do homem sobre um imperativo de
justiça revelado pelos sentidos da consciência e reafirmado pela vontade divina. Da segunda, já
em consonância com a vertente jusnaturalista moderna, derivariam as leis positivas humanas e
divinas.
A partir da recorrência a um jusnaturalismo de tipo moderno, seriam desenvolvidos
alguns preceitos caros ao liberalismo constitucional sedimentado na primeira metade do século
XIX. No capítulo intitulado “Dos deveres para com os outros”, alguns direitos fundamentais
seriam destacados: “Todo o homem tem direito de propriedade, de liberdade, de igualdade, de
segurança e defesa.”89 Quanto ao direito à propriedade, pontuava o padre regalista: “As
propriedades são inatas ou adquiridas, por ocupação ou por convenção; são parciais ou comuns.
87
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., pp. 137-138.
88
O jusnaturalismo remonta à Grécia Antiga e sua noção basilar, uma lei universal e imanente, superior e anterior
aos múltiplos positivismos, foi desenvolvida na tragédia, no pensamento político-jurídico e na filosofia da
Antiguidade Clássica grega por autores como Sófocles, Hípias, Platão e, em menor medida, Aristóteles. Cícero,
em seu clássico Da República, resgatou o jusnaturalismo estoicista, para o qual “toda a natureza era governada por
uma lei universal racional e imanente”. O eminente orador e jurisconsulto romano concebeu “uma lei ‘verdadeira’,
conforme à razão, imutável e eterna, que não muda com os países e com os tempos e que o homem não pode violar
sem renegar a própria natureza humana.” Já Ulpiano concebeu o direito natural sob o signo de um ensinamento
instintivo e comum a todos os seres, inclusive os irracionais. Durante o Medievo, a perspectiva ciceroniana foi
amalgamada ao jusnaturalismo de Ulpiano e a uma apropriação de Platão da qual derivava “uma justiça imanente
a todo o universo como princípio da sua harmonia”. Assim, o direito natural passou a ser identificado com uma lei
revelada por Deus. Tomás de Aquino significou um ponto de pacificação do jusnaturalismo católico, na medida
em que “entendeu como ‘lei natural’ aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus, governador do universo,
que se acha presente na razão do homem: uma norma, portanto, racional.” No outono da Idade Média, Guilherme
de Occam contestaria Tomás de Aquino a partir do voluntarismo, no qual “a razão não é senão o meio que notifica
ao homem a vontade de Deus, que pode, por conseguinte, modificar o direito natural a seu arbítrio.” Note-se que
o jusnaturalismo de Feijó aproximava-se mais da perspectiva voluntarista que da perspectiva tomista do
aristotelismo escolástico. Desta última, mais em um resgate do pensamento de Agostinho do que de Tomás de
Aquino propriamente dito, derivou a legitimidade das teorias corporativas de poder da Segunda Escolástica, muito
recorrentes no mundo ibérico durante a Idade Moderna, estendendo-se até o século XIX. Da tentativa de mediação
entre o voluntarismo tardo-medieval e o jusnaturalismo tomista, surgiu o jusnaturalismo moderno, tendo em Hugo
Grotius o seu maior expoente. Em seus Cadernos, Feijó também iria valer-se desta vertente jusnaturalista. Ver:
BOBBIO, Norberto. Op. cit., pp. 655-659; MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: cultura e ideias nas
Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 29; SKINNER, Quentin. Op. cit., pp. 426-432; VILLALTA,
Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. cit., pp. 29 e segs.
89
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., p. 141.
88
Todo o homem tem direito de usar do que é seu e, nas propriedades comuns, tem este direito
aquele que primeiro o puser em exercício.”90 E para fundamentar seu argumento, discorria sobre
o modo através do qual se firmava o contrato relativo ao direito de propriedade:
Todos os homens são filhos do Pai da natureza; (e, como) uma só família, não possuem
senão um só patrimônio, que é o mundo entregue à sua discrição para, pelo uso dele,
conservar-se, e melhorar-se; porém, o erro e as paixões bem depressa destruíram esta
harmonia; e foi necessário, por bem da ordem, permitir a divisão e deixar a cada um o
direito de propriedade exclusiva na parte que lhe apropriou; desde então o homem é
senhor do seu quinhão (com direito) de usar dele, gozando, dividindo, dando ou cedendo
por tempo ou para sempre.91
90
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., p. 141.
91
Ibidem, pp. 141-142.
92
BOBBIO, Norberto. Op. cit., pp. 272-283; MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo
de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 21-115 e 205-273. .
93
BOBBIO, Norberto. Op. cit., 1986, pp. 657-659.
94
Dentre as principais referências para o embasamento de suas teses, Grotius utilizou fontes do direito romano, a
exemplo de Tácito e Justiniano, e também a narrativa do texto bíblico. Ver: GROTIUS, Hugo. On the Law of War
and Peace. Kitchener: Batoche Books, 2001, pp. 72-87.
89
simplicidade ao qual não aderiram por muito tempo”.95 O estado de propriedade surgiria a partir
do momento em que “o modo de vida selvagem foi sucedido por um mais flexível e sensual,
para o qual o uso do vinho foi comprovadamente útil, sendo seguido por todas as malignas
consequências da intoxicação.”96 Contudo, para Grotius, mais que o vinho, a ambição teria sido
a grande responsável pela quebra da harmonia, que caracterizava o estado inicial de posse
comum e propriedade, e que passaria a ser expressa por “acordo expresso”, “divisão”, “tácito
consentimento” e “ocupação”.97 Cumpre destacar que Grotius fundamentou sua obra na
perspectiva do Ius gentium, sendo um dos precursores do direito internacional.
Outra característica do pensamento de Diogo Antônio Feijó, que parecia dialogar com
as teses jusnaturalistas, dizia respeito à importância dada ao trabalho. Feijó, quando ministro da
pasta do Império, em 1835, desenvolveria uma maneira de superar uma suposta subutilização
das terras e da mão de obra no Brasil, propondo a vinda de lavradores suíços e de monges
protestantes para a catequese indígena, no que foi veementemente combatido por d. Romualdo
Seixas na imprensa e no parlamento.98 Com efeito, a perspectiva liberal de Feijó parecia
dialogar com alguns princípios do individualismo possessivo de matriz lockeana.99 Contudo,
tanto Locke quanto Grotius defenderam o recurso à “guerra justa” e à escravidão com relação
aos povos ditos “selvagens”,100 enquanto o padre regente mostrou-se reticente. Em 1829, o
então Secretário do Conselho Geral da província de São Paulo preferiu enfatizar a necessidade
da “civilização”, através do “comércio”, o que poderia trazê-los “ao grêmio da religião e da
sociedade.”101 Em outro despacho, já em 1830, alegava que os “bugres, que vagam a oeste da
estrada pública” eram “tratados como escravos, à sombra da carta régia de 5 de novembro de
1808”.102 Por fim, para suspender a “escravidão” e a “guerra declarada” contra referidos
95
GROTIUS, Hugo. On the Law of War and Peace… Op. cit., p. 73. (Tradução nossa).
96
Ibidem, p. 74. (Tradução nossa).
97
Ibidem, p. 74-75. (Tradução nossa).
98
LIMA OLIVEIRA, G. A. de. Op. cit., pp. 86-89.
99
Em seu Segundo tratado sobre o governo civil, John Locke postulou que o direito à propriedade seria assegurado
tanto em virtude de uma concessão divina, em um estado natural, se bem que frágil, quanto em decorrência da
legitimação da posse através da lei positiva. Decorrência da propriedade inalienável que cada indivíduo guardaria
de si mesmo, o trabalho seria o fator preponderante de legitimidade da posse em um estado de partilha comum,
ainda isento dos efeitos de um contrato estabelecido em âmbito político-jurídico. Por outro lado, a partir das
mudanças na dinâmica das relações socioeconômicas, decorrentes, sobretudo, do aumento da produtividade e da
criação da moeda, fez-se necessária a legitimação constitucional da posse. O argumento sustentado por Locke, que
trazia referências à narrativa bíblica, estaria próximo àquele desenvolvido por Grotius, de quem o filósofo inglês
herdou linhas mestras da sua teoria política. Ver: LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio
sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, pp. 97-112;
PARKER, Kim Ian. The biblical politics of John Locke. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 2004, pp.
132-138.
100
LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006, pp. 33-36.
101
FEIJÓ, Diogo Antônio. Projeto de civilização dos índios. In: Op. cit., p. 237.
102
Ibidem, p. 238.
90
Todo o homem, propendendo para a felicidade e para a justiça, tem direito a procurar
os meios de conseguir estes fins.
Todo o homem é, portanto, obrigado a respeitar este direito e não pode embaraçar o
exercício da liberdade de outrem, senão quando injustamente atentar contra seus
direitos.
O direito da liberdade pode considerar-se como o mesmo direito de propriedade, por
que a liberdade é uma propriedade pessoal, inata, essencial do homem. 104
103
FEIJÓ, Diogo Antônio. Projeto de civilização dos índios. In: Op. cit., pp. 238-239.
104
Ibidem, p. 145.
105
GROTIUS, Hugo. Op. cit., pp. 57, 157 e 162; LOCKE, John. Op. cit., pp. 83-89.
106
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., p. 146.
107
O debate em torno do binômio liberdade/escravidão foi central para os postulados fundamentais do
jusnaturalismo moderno, o qual lançou as bases do liberalismo constitucional que se consolidou ao longo da
primeira metade do século XIX. Ver: LOSURDO, Domenico. Op. cit., pp. 34-35, 47-77.
108
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op. cit., pp. 20-24.
91
tantos males acarreta para a civilização e para a moral, criou no espírito dos brasileiros este
caráter já de independência e soberania, que o observador descobre no homem livre, seja qual
for o seu estado, profissão ou fortuna.”109 A negação da condição de escravo seria um modo de
sedimentar o sentimento de igualdade: “Quando ele percebe desprezo ou ultraje da parte de um
rico ou poderoso desenvolve-se imediatamente o sentimento da igualdade; e se ele não profere,
concebe ao menos no momento este grande argumento: não sou escravo”.110 Por fim, a relação
de subordinação auxiliava no combate à própria insubordinação e no alcance da liberdade:
Estas duas causas unidas, a de ser composta a nossa população de senhores e escravos,
de os proletários serem em número limitado, que não podem servir de cego instrumento
aos ambiciosos, como aconteceu na Europa, são as que nos têm conservado no estado
de tranquilidade em que nos achamos. Assim soubéssemos aproveitar a nossa feliz
situação para consolidar a liberdade, e lançar sólidos alicerces à nossa futura grandeza
e prosperidade.111
109
O Justiceiro, nº 5, 04/12/1834
110
Ibidem, nº 5, 04/12/1834
111
Ibidem, nº 5, 04/12/1834.
112
PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no império do Brasil, 1826-1865. 2010. 288 f. (Dissertação
de mestrado) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas. USP, São Paulo, p. 97.
113
O Justiceiro, nº 8, 25/12/1834; PARRON, Tâmis Peixoto. Op. cit., pp. 97-100.
92
socorrer, de fazer bem a outrem”.114 Em certo sentido, o dever elencado representava uma
síntese do próprio contrato social defendido por Diogo Antônio Feijó:
114
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., p. 148.
115
Ibidem, p. 148
116
Nos comentários dos Cadernos de Filosofia, o autor utiliza o termo “contratualismo moderado”, na edição
consultada de Filosofia do Direito, mais recente que a referenciada nos comentários, o termo utilizado é
“contratualismo parcial”. Ver: FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. Cit., p. 149 (Grifo do autor);
REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 648.
117
REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. Cit., pp. 629 e segs.
118
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op. cit., p. 25.
93
119
DIDEROT, Denis & d’ALEMBERT. Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios.
Volume 4: Política. São Paulo: Editora UNESP, 2015, pp.102-106, 201-203,217-224, 372-374.
120
ELLIS JUNIOR, Alfredo; AZEVEDO, Fernando de. Feijó e a primeira metade do século XIX. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1940, pp. 70-76.
121
Ibidem, p. 76.
94
Mimim, o qual ensinava lógica e metafísica a partir das obras de Genovesi.122 Diante das
limitações estruturais quanto à instrução, sobretudo em quadros formais,123 concebida em meio
aos padres, por vezes de maneira autodidata e na esfera privada, distante da vigilância e da
censura do Estado, Diogo Antônio Feijó teve uma formação compósita. Era dono de um
heterodoxo repertório teológico, filosófico e político típico do clero secular brasileiro.
O método eclético de Feijó, balizado tanto pela razão quanto pelo recurso à figura
divina, estava afinado com o “espírito” de seu tempo. Ao longo das primeiras décadas do século
XIX, algumas vertentes do liberalismo guardaram certa distância do materialismo
predominante em autores radicais da Ilustração setecentista, resgatando a compatibilidade entre
a racionalidade e a fé que tomou fôlego desde o final do século XVII.124 As obras de Constant,
Guizot e Tocqueville foram exemplos da relação intrínseca que os principais nomes do
liberalismo oitocentista buscaram entre Deus, progresso e liberdade.125 Já o espiritualismo
laico, sintetizado no ecletismo de Vitor Cousin (1792-1867),126 e o neocatolicismo estavam
entre as mais proeminentes matrizes de pensamento que buscaram aproximar a doutrina política
liberal e os princípios cristãos.127 Entretanto, essa histórica secularização espiritualizada da
filosofia e da política não resultaria no apaziguamento das tensões sobre as relações entre Igreja,
Estado, catolicismo, política e sociedade,128 o que incluía o tratamento de temas polêmicos, a
exemplo da questão do celibato clerical, em relação à qual Feijó teve inquestionável
protagonismo.
122
FEIJÓ, Diogo Antônio. Cadernos de filosofia... Op. cit., pp. 11-12.
123
FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. Letras, ofícios e bons costumes: Civilidade, ordem e sociabilidade na
América portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, pp. 127-151; VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o
que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura de Mello & NOVAIS, Fernando (orgs.). Historia da vida
privada no Brasil 1: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp.
332-385.
124
De acordo com Jonathan Israel, a tradição de uma “Teologia cristã racionalista” tomou fôlego ainda no final do
século XVII, entre os “iluministas” denominados “moderados”. Este “método “iluminado” de sustentar o
cristianismo” teve o protagonismo de autores de origem protestante, dentre eles o próprio John Locke, um dos
mais proeminentes precursores do pensamento liberal. Ver: ISRAEL, Jonataham I. Op. cit., 513-520.
125
BÉNICHOU, Paul. Op. cit., p. 19.
126
No Brasil, o ecletismo de Vitor Cousin teve significativa ressonância a partir da primeira geração do
Romantismo, nomeadamente através de Gonçalves de Magalhães. Ver: FERRETTI, Danilo José Zioni. Op. cit.,
p. 66-86, 2011.
127
BÉNICHOU, Paul. Op. Cit., pp. 163-206; WEILL, Georges. Op. cit., pp. 18-19, 42-44.
128
De acordo com George Weill, havia, na França da Restauração, quatro tendências na defesa do que conceituou
“caráter laico do Estado”: “católicos sinceros”, “protestantes liberais”, “deístas” e “livres-pensadores”. Ver:
WEILL, Georges. Op. cit., pp. 17-19.
95
Entre o fim do século XVIII e início do XIX, as conexões tecidas no mundo euro-
americano, luso-brasileiro em particular, possibilitavam uma considerável circulação de
autores. Os ventos da Revolução Francesa e dos movimentos liberais da Península Ibérica
dariam eco a um multifacetado espectro de ideias e demandas, intensificando os diálogos entre
os letrados de diferentes conjunturas. Sedimentava-se uma esfera pública transcontinental, na
qual os valores filosóficos, políticos, morais e religiosos eram compartilhados e reelaborados
na dinâmica dos debates e práticas que lastrearam o ordenamento político-jurídico dos Estados
nacionais pós-1789. Ao mesmo tempo, a sociedade via-se diante de mudanças em seu universo
valorativo sociocultural. Nesse contexto, o comportamento do clero perfazia certa referência
moral das sociedades de maioria católica, na medida em que engendrava o estabelecimento de
padrões rígidos de conduta ou mesmo a reiterada transgressão da disciplina que Roma se
esforçava por universalizar entre a hierarquia eclesiástica.
Em seu livro Origens Culturais da Revolução Francesa, Chartier apontou mudanças
que ocorreram com relação aos ritos do catolicismo, que teriam ganhado “regularidade e
universalidade” a partir da Contrarreforma.129 Por outro lado, ao longo do século XVIII,
diminuição dos quadros das congregações e o aumento da adesão à maçonaria fomentaram uma
“dessacralização”, de cariz secularizador, que precedeu a ruptura de 1789 e teve reverberações
posteriores.130 Em meio à sedimentação dos ideais ilustrados, o arrefecimento da crença em
narrativas escatológicas foi um dos sintomas mais agudos, relacionado à urbanização e ao
aumento de leitores e da circulação de textos. O rigorismo jansenista, por sua disciplina e
restrito acesso aos sacramentos, também contribuiria para afastar os fiéis dos cultos. Os
jansenistas, em contraposição aos jesuítas, estiveram no epicentro da politização das questões
doutrinárias e pastorais, o que ampliou o alcance dos conflitos na Igreja, abalou a autoridade
do clero e contribuiu para a divisão entre constitucionais e refratários. Com a Revolução
Francesa, em que pese o evidente abalo sofrido pelo catolicismo e os ataques enfrentado pelo
clero perfilado aos anseios romanos, cresceu o protagonismo do clero nacionalista e secular no
esboço dos distintos projetos sócio-políticos, econômicos e jurídico-institucionais.
As fraturas nas crenças e nas instituições do catolicismo não contavam apenas com
fatores externos, vindo das hostes ilustradas, mas também internos, sobretudo a ambiguidade
129
CHARTIER, Roger. Origens culturais... Op. cit., pp. 147-170.
130
Fernando Catroga destaca a influência da “dessacralização” em Portugal a partir da questão dos cemitérios,
cujos esforços por sua secularização teriam significado um ponto de ruptura no imaginário e nas práticas coletivas
sobre a morte. Ver: CATROGA, Fernando. Descristianização e secularização dos cemitérios em Portugal. In:
COGGIOLA, Osvaldo. A Revolução francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Nova Stella, 1990, pp.
107-131.
96
vivida pelo clero secular, os ataques sofridos pelo clero regular e os movimentos dissidentes.
As questões disciplinares, diretamente relacionadas aos votos de obediência à doutrina romana,
estiveram, assim, no centro das tensões envolvendo diferentes posicionamentos. Um dos pilares
da disciplina clerical católica, o celibato, foi alvo de debates intensos na história da Igreja, e a
conjuntura dos movimentos liberais no mundo luso-brasileiro não constituiu uma exceção. Em
Portugal, durante as Cortes de Lisboa, a questão do celibato e do matrimônio foi abordada a
partir das discussões sobre a secularização dos regulares e a admissão de estrangeiros em
Portugal.
O deputado Manuel Borges Carneiro (1774-1833)131 alegou que os frades secularizados
não permaneceriam alheios ao mundo: “Quanto a dizer-se que os frades morrem para o mundo
isso são histórias da vida: deixemos aos teólogos esses sentidos místicos e tropológicos: o
mundo não se há de governar por figuras.”132 Sobre a questão da preferência pelo ingresso de
estrangeiros casados, o deputado seria incisivo, afirmando que tinha “como máxima política a
necessidade de promover o matrimônio”, além do mais, fazia questão de apontar problemas que
levariam, em seu dizer, a um “grande aperto”: “Há pouco tive uma carta de Braga onde se
mostra que o grande número dos expostos que havia, procedem em última análise, do grande
número de eclesiásticos, pois que me diziam que a cada eclesiástico competiam 13 mulheres
solteiras.”133 Na mesma ocasião, Borges Carneiro evocaria os argumentos do apóstolo Paulo
para legitimar o matrimônio entre os bispos, em contraposição às diretrizes tridentinas, sendo
131
Manuel Borges Carneiro nasceu na região de Lamego. Bacharelou-se em leis em Coimbra e seguiu a carreira
da magistratura. Foi eleito às Cortes de Lisboa e foi deputado também nos anos subsequentes, até ser perseguido,
preso e exonerado da carreira de magistrado durante o regime absolutista de D. Miguel. Ver: SILVA, Inocêncio
Francisco da. Op. cit. (vol. VI), pp. 378-381.
132
Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, nº 216, 03/11/1821, p. 2933. Disponível
em: http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821 Acesso em: 24/08/2017.
133
Ibidem, nº 139, 30/07/1821, p. 1686. Disponível em: http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821 Acesso
em: 24/08/2017.
97
interpelado pelo Bispo de Beja134 e apoiado pelo bispo de Castelo Branco,135 o qual alegava que
na Assembleia tratar-se-iam “apenas dos empregos civis”.136
Mesmo que os debates das Cortes não versassem diretamente sobre a disciplina
eclesiástica, a realidade da transgressão era desnudada em um fórum que empreendeu
iniciativas de evidente cunho regalista e anticongregacionista.137 A transgressão disciplinar,
alegada por Borges Carneiro, remontava ao período medieval, quando foi combatida pela
reforma gregoriana do século XI, e teve na Contrarreforma um ponto de inflexão, na medida
em que a partir de Trento intensificavam-se os esforços de moralização do clero.138 Em que
pese o consenso sobre as deliberações tridentinas na Península Ibérica,139 a formação do clero
português continuava comprometida pela falta de uma efetiva implementação dos seminários.
Assim, por mais que o celibato possuísse certa observância, mesmo entre a população leiga, a
exemplo da região norte durante os séculos XVIII e XIX,140 sua transgressão não seria uma
novidade em terras portuguesas e, no Brasil colonial, as volições carnais do clero constituiriam
algo próximo a uma regra.
Desde o início da vida religiosa lastreada pelo catolicismo romano, não foram poucas
as dificuldades de implementação das reformas tridentinas na América portuguesa. A
idiossincrática vida religiosa no Brasil colonial compôs um dos motes mais instigantes do
clássico Casa Grande e Senzala. Gilberto Freyre destacou a influência “da moral maometana
sobre a moral cristã”, o que teria feito com que o cristianismo português e, por conseguinte,
brasileiro, cultivasse “como nenhum outro cristianismo na Europa o gosto de carne”.141 Em um
134
D. Luís da Cunha de Abreu e Mello foi doutor e lente da Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra e
cônego magistral da Sé coimbrã. De 1819 até sua morte, em 1833, esteve à frente da diocese de Beja e priorizou a
construção do cabido e do seminário, empreitada na qual não obteve êxito. De acordo com Inocêncio Francisco da
Silva, tinha posicionamentos políticos “moderados”, que não agradaram aos liberais vintistas. Ver: AZEVEDO,
Carlos Moreira de (Org.). Dicionário de história religiosa de Portugal (Vol. I). Lisboa: Círculo de Leitores, 2000,
p. 187; SILVA, Inocêncio Francisco da. Op. cit. (vol. V), p. 283.
135
D. José Valério da Cruz, nascido na vila de Covilhã, em 1749. Presbítero da Congregação do Oratório e bispo
de Castelo Branco (diocese de Portalegre-Castelo Branco) entre 1798 e 1826, ano de sua morte. À frente da
diocese, destacou-se pela prática sacramental e pela caridade. Na ocasião do debate sobre o celibato, manteve a
postura de frisar a competência da Igreja sobre a questão, em que pese sua opinião sobre “liberdade de escolha”
concedida pelo apóstolo Paulo. AZEVEDO, Carlos Moreira de (Org.). Op. cit. (Vol. III), pp. 467-468; SILVA,
Inocêncio Francisco da. Op. cit. (vol. V). p. 150.
136
Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, nº 139, 30/07/1821, p. 1687. Disponível
em: http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821 Acesso em: 24/08/2017.
137
OLIVEIRA, José António. A igreja e a instauração do liberalismo em Portugal 1816-1840: D. João de
Magalhães e Avelar e Frei Manuel de Santa Inês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, pp. 90-98.
138
AZEVEDO, Carlos Moreira de (Org.). Op. cit. (Vol. II), pp. 361-369; GARNEL, Maria Rita Lino. A polêmica
sobre o celibato eclesiástico (1820-1911). PENÉLOPE, pp. 93-116, N º 22, pp. 95-96.
139
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes... Op. cit., pp. 172-173.
140
GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A Princesa do Oeste e o Mito da Decadência de Minas Gerais: São
João del-Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002, p. 69.
141
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala... Op. cit., 302.
98
142
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala... Op. cit., pp. 302, 328 e 530; MOTT, Luiz. O sexo proibido:
virgens, gays e escravos nas garras da inquisição. Campinas: Papirus, 1988, pp. 131-186.
143
LAGE, Lana. As constituições da Bahia e a reforma tridentina no clero no Brasil. In: Op. cit., pp. 147-177;
SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja católica no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, pp. 61-64.
144
Em nota de rodapé, Eugênio Egas contrapôs as distintas situações do clero no Brasil e na América espanhola,
com ênfase na situação econômica mais cômoda entre os eclesiásticos dos vice-reinados espanhóis. Tal situação
teria contribuído para a formação de um clero de tendência mais liberal no primeiro caso, ao tempo em que se
consolidava um clero defensor dos valores absolutistas no segundo caso. Ver: ARMITAGE, John. História do
Brasil: Desde o período da chegada da família de Bragança em 1808 até a abdicação de D. Pedro I em 1831. Rio
de Janeiro: Livraria Editora Zelio Valverde, 1943, p. 64.
145
Luiz Gonçalves dos Santos nasceu no Rio de Janeiro em 1767. Estudou filosofia no convento de Santo Antônio,
recebendo também aulas de grego, retórica, poética e geografia. Seus mestres estiveram filiados aos círculos da
intelectualidade luso-brasileira e coimbrã. Foi membro do IHGB e da Academia Real das Ciências de Lisboa.
Contribuiu para o Revérbero Constitucional, defendendo a emancipação política do Brasil. Foi cônego da Capela
Imperial e recebeu a comenda da Ordem de Cristo. Escreveu obras sobre assuntos diversos, sendo algumas das
mais contundentes sobre o tema do celibato clerical. BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol.
5), pp. 412-416.
146
Antônio Ferreira França nasceu na Bahia em 1771. Formou-se em medicina, matemática e filosofia em
Coimbra, onde lhe ofereceram uma cadeira que recusou. No Brasil, além da prática docente, participou da
Constituinte de 1823 e dos conflitos pela Independência em sua terra natal. Teve intensa atuação na Câmara dos
Deputados, propondo um modelo federativo. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol.
99
I), pp.161-162; GONÇALVES, Priscila Soares. Memórias do Rio de Janeiro do início do século XIX. Revista 7
Mares, pp. 28-46, Nº 3, pp. 30-35; SOUZA, Françoíse Jean de Oliveira. Op. cit., pp. 202, 389-397.
147
BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 10/10/1827. Brasília: Câmara dos Deputados, p. 115.
Disponível em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 30/08/2017.
148
José Ricardo da Costa Aguiar de Andrada nasceu em Santos, em 1787. Era sobrinho de José Bonifácio e
formado em Coimbra, tendo viajado pela Europa e Ásia. Nas Cortes, tal qual Feijó, negou-se a assinar a
Constituição. Participou da Constituinte em 1823 e da primeira legislatura, além de seguir carreira como
magistrado. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. I), pp.161-162
149
O brigadeiro Raimundo José da Cunha Matos nasceu em 1776, na cidade de Faro, reino de Algarves. Durante
sua vida formou extensa carreira militar, científica, política e intelectual, sendo deputado por Goiás nas duas
primeiras legislaturas, vice-presidente do IHGB e secretário perpétuo da Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional. Ver: BLAKE, Augusto Vitorino Sacramento. Op. cit. (Vol. VII), pp. 112-115.
150
Apesar de ter se aproximado dos ideais da Reforma luterana, Erasmo se distanciou de tal perspectiva e foi
impelido pelo papa e por Henrique VIII a combater os valores e as reflexões políticas, filosóficas e teológicas de
Lutero. Apesar de sua querela com relação a Lutero, Erasmo foi alvo de contestações durante o Concílio de Trento,
por sua perspectiva de renovação do catolicismo e do cristianismo, perspectiva essa profundamente ligada às
rusgas políticas que se desenvolveram entre a monarquia de Henrique VIII e a Santa Sé. Ver: SKINNER, Quentin.
Op. cit., pp. 250-251, 287 e 418-422.
151
BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 10/10/1827. Brasília: Câmara dos Deputados, p. 120.
Disponível em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 30/08/2017. Sobre a participação do clero na maçonaria,
ver: BARATA, Alexandre Mansur. Maçonaria, sociabilidade ilustrada e independência do Brasil 1790-1822. Juiz
de Fora: UFJF, 2006, pp. 73, 76, 89, 100-104, 141 e 185; COSTA, Emília Viotti da. Introdução ao estudo da
emancipação política do Brasil. In: Op. cit., p. 89.
152
SANTOS, Luis Gonçalvez dos. O celibato clerical, e religioso defendido dos golpes de impiedade, e da
libertinagem dos correspondentes da Astréa. Com um apêndice sobre o voto separado do senhor deputado Feijó.
Rio de Janeiro: Typ. de Torres, 1827, p. 6.
153
Ibidem, p. 14.
154
O Astréa foi um importante periódico da ala moderada. Era redigido por Antônio José do Amaral, da elite
política e intelectual coimbrã, e José Joaquim Vieira Souto, sobre o qual pouco se sabe. Ambos foram deputados
à Assembleia Geral pelo Rio de Janeiro. Ver: BASILE, Marcello. Op. cit., p. 28.
100
qual o autor sustentava o dogma tridentino sobre a obrigatoriedade do celibato e dizia que “seria
extenso em demasia se pretendesse analisar, e refutar ponto por ponto tudo quanto o Senhor
Deputado alega de fatos, e autoridades bebidas nas venenosas fontes de Autores Heterodoxos,
e de Canonistas suspeitos de Jansenismo”.155 Em resposta ao seu adversário, Feijó escreveria
reafirmando a supremacia do poder temporal e “a moralidade do clero protestante”.156 Em
profundo espírito regalista, alegava ainda que o Brasil não deveria temer “cisma” com relação
à Santa sé, pois nem mesmo d. João IV, d. José e d. João VI o haviam temido.157 Defendendo-
se dos ataques, ressaltava seu alinhamento aos autores e concílios da Igreja:
Diga-me, sr. pe., há jansenismo em cânones? Que parvoíce! Os autores citados no meu
voto são hereges! O Evangelho, os apóstolos, concílios, santos padres, escritores
ortodoxos, só porque v. rvma. tem a infelicidade de não os ler, ou não os entender, são
hereges! Que impiedade! E ainda quanto me tivesse servido da autoridade de escritores
hereges (como v. rvma. o fez) segue-se que tudo quanto diz um herege é heresia?
Semelhante modo de raciocinar é privativo do sr. pe., é o suprasummum da
ignorância.158
A contenda entre os dois sacerdotes não parou por aí, pois o padre Perereca ainda faria
sua réplica e nela repudiava o que dizia serem as referências de Feijó. Citava Fortunato
Bartolomeo de Felice (1723-1789), preterido no contexto das perseguições aos livros ilustrados
no mundo luso-brasileiro setecentista;159 a obra Les inconvénients du célibat des prêtres
prouvés par des recherches historiques, do oratoriano Jacques-Maurice Gaudin (1735-1810)160
155
SANTOS, Luis Gonçalvez dos. O celibato clerical, e religioso... Op. cit., p. 52
156
FEIJÓ, Diogo Antônio, Resposta do Deputado Feijó às Parvoíces, Impiedades e Contradições do Padre Luiz
Gonçalves dos Santos, IN: CALDEIRA, Jorge (Org.). Op. cit., p. 352.
157
Ibidem, p. 356.
158
Ibidem, p. 355
159
De Felice nasceu em Roma e foi admitido na ordem dos franciscanos. Lecionou em sua terra natal e em Nápoles.
Os projetos que pretendia desenvolver entre círculos letrados napolitanos incluíam publicações de Antônio
Genovesi. Sofreu perseguição em virtude de sua atração por Agnese Arquato, condessa de Panzutti, e refugiou-se
em Berna, na Suíça. Foi um expoente da Ilustração e, em contato com os círculos protestantes, notabilizou-se por
uma Enciclopédia que rivalizava com a obra de Diderot e d’Alembert. Na obra citada por Luiz Gonçalves dos
Santos, de Felice deixou claro seu repúdio ao celibato clerical, ao mesmo tempo em que entendia ser o matrimônio
um dever. Ver: FDERRARI, Stefano (Org.). Fortunato Bartolomeo de Felice: Un intellettuale cosmopolita
nell’Europa dei Lumi. Milão: Franco Angeli, 20016, pp. 7-34; FELICE, Fortunato Bartolomeo de. Code de
l’Humanité ou la Législation Universelle, Naturelle et Politique, avec l’Histoire Littéraire des Plus Grands
Hommes qui ont Contribué a la Perfection de ce Code. Composé par une Société de Gens de Letters Indiqués à la
Page Suivante. (T. II). Yverdon: dans l’Imprimerie de Felice, 1778, pp.480-512. Disponível em
http://gallica.bnf.fr. Acesso em: 30/08/2017; VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro
sob as luzes... Op. Cit., pp. 272, 287, 296, 370, 380, 382, 388, 45-446
160
Jacques Maurice-Gaudin nasceu na região da Vendeia. Entrou para a Congregação do Oratório e foi vigário
geral do bispado de Mariana, Córsega. Voltando à França, foi nomeado cura em sua terra natal e depois grande
vigário do bispado constitucional de Luçon. Para além de apontar as inconveniências do celibato, Maurice-Gaudin
advogou pela supressão das congregações religiosas, ao melhor estilo do clero constitucional. Após o 18 Brumário,
quando já havia deixado a carreira eclesiástica, foi nomeado juiz em Rochelle. Quando de sua morte, Gaudin era
101
e a “ímpia memória sobre o Celibato Clerical do opositor de Coimbra”.161 Esta última saíra da
pena do vintista José Manuel da Veiga, em 1822, no contexto dos debates nas Cortes de Lisboa,
trazendo o argumento newtoniano para legitimar a atração entre os sexos como uma lei
universal.162 Ao que parece, a campanha contra a obrigatoriedade do celibato clerical no Brasil
Império fundamentava-se na produção intelectual dos círculos ilustrados, revolucionários e
liberais da Europa, produção que também tinha importantes porta-vozes nos territórios de
maioria protestante.
Em 1828, Diogo Antônio Feijó justificaria sua aguerrida postura em favor da abolição
do celibato no texto Demonstração da necessidade de abolição do celibato clerical. Na
primeira proposição do texto, um ponto central dos conflitos entre os poderes do século e da
Eclésia: “É da privativa competência do poder temporal estabelecer impedimentos dirimentes
ao matrimônio, dispensar neles e revogá-los”.163 Para Feijó, o casamento não configurava uma
união de natureza religiosa, mas sim um acordo fundamentado na percepção do “direito
natural”, desenvolvida em seus Cadernos de Filosofia: “A natureza, pois, do matrimônio
convence que ele é um contrato, como outro qualquer, que tem sua base no direito natural; que
está subordinado aos interesses da sociedade, e por isso mesmo sujeito à direção do poder
temporal.”164 O líder do clero regalista ressaltava “a separação do contrato e do sacramento no
matrimônio”, alegando “que entre os mesmos católicos têm existido, e ainda existem, muitos
casados somente por contrato, sem inconveniente algum nem sombra de pecado.”165 Portanto,
os poderes do Estado e da Igreja teriam fronteiras bem definidas entre as suas competências:
Os dois poderes são independentes. Cada um pode legislar nos objetos de sua
competência, mas o poder espiritual por isso mesmo que tem por fim imediato a
salvação das almas, e não a tranquilidade pública, como a tem a autoridade civil, não
pode determinar coisa alguma não necessária àquele fim, que esteja em oposição às leis
do poder temporal, ou por qualquer maneira lhe pertençam, a não admitir-se a máxima
absurda e antissocial da influência de um poder sobre o outro, com recíproca invasão de
atribuições, de cujo conflito têm sempre aparecido funestíssimos resultados.166
bibliotecário. Ver: ROBERT, Adolphe; BOURLOTON, Edgar & COUGNY, Gaston. Dictionnaire des
Parlamentaires Français (Fes-Lav). Paris: Bourloton Éditeur, 1891, pp. 131-132.
161
SANTOS, Luis Gonçalves dos. Réplica Católica à resposta que o reverendo Senhor Deputado Feijó deu ao
Padre Luís Gonçalves dos Santos. Rio de Janeiro: Typographia de Torres, 1827, p. 115.
162
GARNEL, Maria Rita Lino. Op. cit., pp. 101-102.
163
FEIJÓ, Diogo Antônio. Demonstração da necessidade de abolição do celibato clerical. In: Op. cit., p. 282.
164
FEIJÓ, Diogo Antônio. Demonstração da necessidade de abolição do celibato clerical. In: Op. cit., p. 283.
165
Ibidem, p. 286.
166
Ibidem, p. 288.
102
O texto ainda legitimaria a competência exclusiva do poder temporal pelo uso que os
líderes políticos, de Justiniano aos monarcas coevos, teriam feito do matrimônio: “Convertem-
se os imperadores romanos (...) nem os imperadores cedem à Igreja o direito de regular o
matrimônio, nem ela reclama por um tal direito. As leis anteriores são inteiramente observadas,
e a Igreja somente vigia e zela na sua execução.”167 Ao fim dessa primeira proposição, ainda
seria evocada a doutrina dos primeiros séculos da Igreja e o questionamento ao cânone 4, da
24º sessão, do Concílio de Trento. A doutrina dos primeiros séculos da Igreja reforçava a
proeminência do poder temporal sobre a questão do matrimônio, na medida em que os
eclesiásticos teriam legislado sobre o referido contrato em virtude do “consentimento e
aprovação dos soberanos” e também da “ignorância dos mesmos soberanos, que nos séculos
das trevas se entregaram todos à direção dos eclesiásticos”.168 Sobre o estabelecido no cânone
tridentino, que previa a excomunhão dos que negassem os impedimentos impostos pela Igreja
com relação ao matrimônio, Feijó foi taxativo:
167
FEIJÓ, Diogo Antônio. Demonstração da necessidade de abolição do celibato clerical. In: Op. cit., p. 288.
168
Ibidem, p. 292.
169
Ibidem, p. 294.
170
Ibidem, P. 295.
171
Ibidem, p. 296.
103
Nenhuma lei humana tem o caráter de justa sem estar baseada no direito natural. A
sociedade, seja qual for a sua natureza, não tem nem pode ter outro fim que dirigir os
associados a um bem comum. Todas as vezes, pois, que uma lei qualquer priva o homem
de um direito concedido pelo Autor da natureza, sem ser nos casos em que a privação
desse direito seja necessária e indispensável ao bem geral, se reveste de uma injustiça
manifesta. 172
sendo a propensão ao casamento inata, essencial à espécie, por isso mesmo sujeita a
elevar-se à paixão, e em tal caso dificultosíssima e talvez impossível de vencer-se, como
pode o homem sem imprudência, sem uma espécie de culpável orgulho ceder para
sempre dum direito, que muitas vezes importa o mesmo que um dever, e cujo sacrifício
pode trazer de volta a violação de outros muitos deveres?173
Com efeito, tanto o aspecto das paixões individuais quanto o dos deveres coletivos
estariam diretamente ligados à questão do celibato e do matrimônio, na medida em que a
imposição da abstinência sexual seria “a causa principal da imoralidade do clero” que, por sua
vez, teria efeitos deletérios, influindo “de uma maneira particular na imoralidade pública”.174
Tal qual anunciado de modo incisivo no texto, a renúncia aos desejos carnais carregaria certa
mácula seminal: “a incontinência estende e propaga o vício a todas as ações do padre, as quais
ficam necessariamente envenenadas, como nascidas de uma agente criminoso, pois tal é a
doutrina cristã.”175 Neste caso, as perversões seriam comuns ao clero celibatário: “Eis a causa
por que será raríssimo encontrar um padre incontinente que não seja perverso.” 176 Essa
realidade contrastava com o que ocorria entre os círculos cristãos ortodoxos e protestantes: “Eis
a causa por que o clero grego, e o protestante, é tão gabado pela maior parte dos historiadores
imparciais, quando comparam a sua moralidade com a dos padres católicos em geral.”177
172
FEIJÓ, Diogo Antônio. Demonstração da necessidade de abolição do celibato clerical. In: Op. cit., p. 296.
173
Ibidem, p. 297.
174
Ibidem, p. 306.
175
Ibidem, p. 306.
176
Ibidem, p. 306.
177
Ibidem, p. 306.
104
178
Ibidem, p. 308.
179
Na ocasião, Feijó havia dito: “Sendo portanto um contrato natural de instituição divina, seria absurdo no estado
social negar ao poder temporal a autoridade de estabelecer condições e regular a forma de uma convenção, que
mais que nenhuma outra influi na felicidade dos indivíduos, na tranquilidade das famílias, na boa ordem, na
conservação e progresso da sociedade.” Ver: BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 10/10/1827.
Brasília: Câmara dos Deputados, p. 116. Disponível em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 30/08/2017.
180
FEIJÓ, Diogo Antônio. Demonstração da necessidade... Op. cit.,, p. 311.
181
Ibidem, p. 313.
182
Ibidem, pp. 313-343.
183
RICCI, Magda. Op. cit., pp. 246-250.
184
O Justiceiro, nº 8, 25/12/1834.
105
para nós, não seria admiração se algum seu colega da América ou da Europa
desse a público algo que se parecesse com uma resposta racional à
“DEMONSTRAÇÃO DA NECESSIDADE DE ABOLIR O CELIBATO
CLERICAL, FEITA PELO PADRE FEIJÓ”.186
De acordo com Wilson Martins, o texto de Feijó sobre o celibato teria sido impresso e
distribuído alguns anos depois, na Filadélfia, pelo pastor Kidder, fazendo circular pelo norte as
considerações que já haviam ganhado as terras bolivianas ainda na década de 1820, como já
destacado neste trabalho.187 A delicada situação que envolvia o celibato clerical e a natureza
jurídica do matrimônio ganhava contornos internacionais sob a pena de Diogo Antônio Feijó.
A pertinência do tema revelava-se não apenas na conjuntura dos Estados nacionais recém-
independentes das antigas colônias ibero-americanas, mas ainda nos Estados Unidos da
América, em vias de expansão de seu território e consolidação de suas bases socioeconômicas
e político-culturais. Com efeito, a reiterada afirmação da competência civil sobre questões de
histórico cariz religioso revelava a força de um reformismo regalista que buscava fortalecer o
Padroado régio nos moldes de uma secularização das consciências e, no limite, dos liames de
laicização de algumas normas institucionais. Tal esforço contrapunha-se à tentativa de
universalização de regras não condizentes com a realidade dos costumes no território nacional,
em um período de redefinição das próprias bases civilizacionais da sociedade brasileira.
185
KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Sul do Brasil: Rio de Janeiro
e Província de São Paulo: compreendendo noticias históricas e geográficas do império e das diversas províncias.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1980, p. 266.
186
Ibidem, p. 267 (Grifos do autor).
187
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, Vol. II (1794-1855). Op. cit., p. 166.
106
Capítulo 3
D. ROMUALDO ANTÔNIO DE SEIXAS: PADROADO, REGALISMO E ORTODOXIA
1
CERTEAU, Michel. Op. cit., pp. 42-44 (Grifos do autor).
108
qual “nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento”2,
buscar-se-á desenvolver uma análise embasada na trajetória política, intelectual e eclesiástica
de um personagem não tão afamado, porém de significativa produção e não menos importante
para história do Império brasileiro.
2
BLOCH, March. Apologia da História, ou, o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 60.
3
SANTOS, Israel Silva dos. Op. cit., pp. 29-35; ALMEIDA, Anita Correia Lima de. “Aulas régias no Império
colonial português”. In: LIMA, Ivana Stolze & CARMO, Laura do. História Social da Língua Nacional. Rio de
Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2008, p. 72.
109
na Colônia, quanto o clero secular, sobretudo a partir da ação dos bispos, teriam protagonismo
na implementação da nova política educacional.4
A partir do reinado de d. Maria I (1777-1816), os cuidados com relação às aulas régias
foram marcados pela centralização da administração. Empreendeu-se a tentativa de controle e
fiscalização sobre as atividades docentes e sobre o imposto criado por Pombal para cobrir as
despesas com o sistema de ensino, o Subsídio Literário.5 Para além das continuidades que
caracterizaram a política educacional de cariz secular no âmbito do Reformismo Ilustrado
português, algumas medidas sinalizavam que o poder da Igreja, os valores da religião e o clero
voltariam a ter maior apelo intelectual, político e didático-pedagógico nos períodos mariano e
joanino. Em 1789, foi criada a Junta do Exame do Estado atual e Melhoramento Temporal das
Ordens Regulares, com o objetivo de reestruturar as ordens religiosas. 6 Em 1793, os regulares
passaram a ter permissão para frequentar as aulas de Filosofia e Ciências Naturais em Coimbra.
Tal iniciativa representou um movimento de reação aos temores que emanavam da França, na
medida em que os próprios padres entrariam em contato com as ideias e os porta-vozes da
“subversão” revolucionária, criando condições para combatê-los.7 O regalismo de teor
jansenista, característico ao período pombalino, cedeu espaço a um “regalismo eclético”, com
perseguição aos elementos que difundiam “heresias”, tal qual ocorreu com José Anastácio
Cunha (1744-1787), lente de Geometria na Universidade de Coimbra.8
Em termos de participação da Igreja e seus representantes na vida intelectual e
educacional, a ascensão de d. Maria I ao poder resultou também em uma “conventualização”
dos ensinos menores, o que significava o protagonismo das ordens religiosas na ampliação da
oferta de aulas, com atenção especial para as primeiras letras.9 A América portuguesa não
ficaria imune a essa política institucional, que envolvia uma delicada relação entre os
representantes dos poderes temporal e espiritual. Em regimento provisional de 1799, d.
4
FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. Op. cit., pp. 49-61.
5
Ibidem, pp. 68-69.
6
ABREU, Laurinda. Um parecer da Junta do Exame do Estado atual e Melhoramento Temporal das Ordens
Regulares nas vésperas do decreto de 30 de meio de 1834. Estudos em homenagem a Luís Antônio de Oliveira
Ramos. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pp. 117-130.
7
VILLALTA, Luiz Carlos; MORAIS, Christianni Cardoso; MARTINS, João Paulo. As reformas ilustradas e a
instrução no mundo luso-brasileiro. In: Op. Cit., pp. 58-59.
8
Lente de geometria da Universidade Coimbra, preso pela Inquisição por espalhar volições insidiosas entre os
estudantes, inclusive a defesa do sexo sem compromisso matrimonial. Ver: VILLALTA, Luiz Carlos; MORAIS,
Christianni Cardoso; MARTINS, João Paulo. As reformas ilustradas e a instrução no mundo luso-brasileiro. In:
Op. cit., pp. 60-67.
9
VILLALTA, Luiz Carlos; MORAIS, Christianni Cardoso; MARTINS, João Paulo. As reformas ilustradas e a
instrução no mundo luso-brasileiro. In: Op. cit., pp. 78-79 e 88.
110
Pela última vez, que praticou esta devoção, se lembrou de a fazer, em tudo, muito
semelhante a um Sargento de Milícias, chefe de uma família muito honesta, e religiosa,
homem chão, e honrado, que vivia do seu ofício, e de um pequeno rebanho de cabras
que possuía, e com efeito assim sucedeu: exposta a figura os rapazes logo a batizaram
com o nome do Sargento, e a família, atendendo a isto, pois que foi colocada no meio
da rua com a frente para a casa do homem, reconheceram exato o batismo dado pelos
rapazes.12
Diante da afronta, o injuriado recorreu à justiça e o autor do chiste foi indiciado pelo
juiz e condenado pelo vigário geral, o cônego José Ribeiro de Almeida, próximo ao bispo d.
Manuel. O governador, ao saber da condenação de seu protegido, exigiu o livro no qual este
10
Francisco Mauricio de Sousa Coutinho, cavaleiro da Ordem de Malta e almirante da Armada Real, foi
governador da capitania do Grão-Pará entre 1790 e 1803. Era irmão de d. Rodrigo de Sousa Coutinho (1745-1812),
futuro conde de Linhares, representante de Portugal em Turim ao tempo de d. Maria I e proeminente ministro da
regência de D. João VI. Ver: SILVA, Inocêncio Francisco da. Op. cit. (vol. III)., p. 8.
11
ARRIADA, Eduardo & TAMBARA, Elomar Antonio Callegaro. Aulas régias no Brasil: O regimento
provizional para os proffessores de Philosofia, Rhetorica, Grammatica e de Primeiras Letras no Estado do Grão-
Pará (1799). Hist. Educ (Online). Porto Alegre, V. 20, N. 49, pp. 297-303, Maio/Ago., 2016, p. 292. Disponível
em: http://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/article/view/62454/pdf. Acesso em 18/04/2018.
12
PINTO, Antônio Rodrigues de Almeida. O bispado do Pará. In: Anais da Biblioteca e Arquivo Publico do Pará.
Tomo V. Belém: Instituto Lauro Sodré, 1906, p. 145.
111
fora pronunciado para cancelar sua culpa. Não conseguindo a peça, Coutinho destilou sua fúria
sobre o vigário, “mandando-lhe destelhar a casa da sua residência, prendendo-o depois na
cadeia pública, e por fim degradou-o para a Capitania de Mato Grosso.”13 Sem obter o livro
para livrar seu protegido da culpa, d. Francisco foi além:
13
PINTO, Antônio Rodrigues de Almeida. O bispado do Pará. In: Op. cit., p. 147.
14
Ibidem, p. 147.
15
Ibidem, p. 149.
16
SEIXAS, D. Romualdo Antônio de. Memórias do Marquês de Santa Cruz. Op. cit., p. 4.
17
Ibidem, pp. 4-5.
112
cores jansenistas do tempo de Pombal. A partir dos círculos intelectuais, religiosos e políticos
que frequentou, Romualdo Antônio de Seixas entrou em contato com algumas das
personalidades que buscaram fortalecer a influência romana no mundo luso-brasileiro durante
o período mariano e josefino, ao mesmo tempo em que combateram os ventos revolucionários.
Ainda nos anos finais de seu bispado, em tempos de efervescência política, quando fazia
parte da junta governativa da capitania, d. Manuel se envolveria em outro conflito. Corria o ano
de 1815 e, outra vez, haveria uma guerra de competências jurídicas com relação ao processo no
qual era réu um vigário de Cametá, chamado frei Luiz Zagalo, acusado de concubinato e cujas
ordens chegariam a ser suspensas a mando de d. Manuel.18 Em 1807, às vésperas da ofensiva
de d. João sobre a Guiana Francesa,19 frei Zagalo foi nomeado capelão de um brigue que zarpou
rumo à Caiena. O referido Zagalo já era acusado de defender valores políticos afinados com as
“francesias”, ou seja, os ataques à ordem política e religiosa presentes, sobretudo, nos centros
urbanos luso-brasileiros na virada do século XVIII para o XIX.20 Pelos idos de 1813, o frei
herético embarcou do Rio de Janeiro para o Pará, ocasião em que relatos deram conta de que
“havia se amasiado com um rapaz, criado do comandante, com quem, afrontosamente, cometia
atos atentatórios ao pudor”.21 Chegando ao Grão-Pará para assumir o posto designado pelo
governo do Rio de Janeiro, o heterodoxo padre sofreria resistências por parte de d. Manoel que,
temendo represálias, cedeu e permitiu que Zagalo assumisse, mas:
Não tardou, porém, que o Prelado se arrependesse da sua condescendência, por que o
novo pároco não só se tornou uma pedra de escândalo pela sua pública imoralidade,
como também principiou as funções sagradas pela extinção do Cristianismo, fazendo
batismos nulos, negando a imortalidade d’alma, e as penas eternas; assim
dogmatizando, em um sermão que pregou na Capela da fazenda do Limoeiro, impugnou
a perpétua virgindade da Mãe de Deus, e proferiu uma blasfêmia contra o Salvador do
mundo, tão horrorosa, que o Padre, testemunha de ouvir, se retirou confuso, e cheio de
indignação.22
Além das diatribes teológicas, frei Zagalo, que se dizia “pedreiro livre” (isto é, maçom),
ainda chegou a difundir clamores de liberdade entre escravizados, contribuindo para um clima
de apreensão na pequena vila onde estava.23 Pelo comportamento transgressor, o vigário foi
18
PINTO, Antônio Rodrigues de Almeida. Op. cit., p. 154.
19
LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI no Brasil: 1808-1821 (V. I). Rio de Janeiro: Tip. do Jornal do Comércio
de Rodrigues & C. 1908, pp. 437-462.
20
VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime Português (1788-1822)... Op. cit., p. 53.
21
SOUZA JUNIOR, José Alves de. Constituição ou Revolução: os projetos políticos para a emancipação do Grão-
Pará e a atuação política de Filippe Patroni (1820-1823). 279 f. Dissertação (Mestrado) – UNICAMP/IFCH.
Campinas: 1998, pp. 109-110.
22
PINTO, Antônio Rodrigues de Almeida. Op. cit., p.160.
23
Ibidem, p. 161.
113
preso no convento de Santo Antônio, tendo d. Manuel requerido ajuda da justiça secular para
que o réu pudesse ir até Lisboa se explicar perante a Inquisição. Mais uma vez, a justiça
eclesiástica e a justiça secular entrariam em atrito, e a Junta da Coroa acatou um recurso de frei
Zagalo, concedendo-lhe a liberdade e mandando que o bispo entregasse os papéis do processo
que deveria seguir para Lisboa, segundo alvará de 1793.24 O bispo resistiu em acatar a decisão,
foi punido com a suspensão de suas côngruas e, enquanto a questão excitava os ânimos na vila
e na capitania, o vigário herético voltava a delinquir. Zagalo se envolveria em concubinato e
desacato, frequentando bares, casas de jogos e, em plena sexta-feira da Paixão, brigou em praça
pública com uma meretriz, “não só atracando-a, e espancando-a, mas também rasgando-lhe os
vestidos, e isto a vista, e em presença de uma multidão que ali concorreu por curiosidade”.25
As agitações do frei sedicioso só tiveram fim em 1817, com a chegada do novo
governador, Antônio José Severim de Noronha (1792-1860), 7º conde de Vila-Flor, que
remeteria Zagalo para Lisboa.26 Talvez não fosse prudente manter no território um clérigo
sedicioso no momento em que eclodia a Revolução Pernambucana, uma “revolução de padres”,
da qual “os sacerdotes lidos em filosofia revolucionária (...) foram os principais agentes,
propagadores e mártires”.27 No início do século XIX, Pernambuco abrigava um clero de
tendência ilustrada formado no Seminário de Olinda, instituição idealizada por Azeredo
Coutinho. Na esteira da propagação de uma “Teologia da Ilustração”, gestada no período
pombalino, formou-se a consciência revolucionária no interior do clero pernambucano.28
Assim, enquanto o bispo d. Manuel combatia a heterodoxia de frei Zagalo no Pará, o vigário
geral de Pernambuco, Bernardo Luiz Ferreira Portugal, líder do bispado de Olinda à época da
Revolução, fazia coro ao movimento. Bernardo Luiz, o “Patriota Vigário Geral”, pedia aos
“Católicos Patriotas” obediência “ao Governo Constituído e aos seus encarregados”, lembrando
“que a falta deste sagrado dever é um dos maiores atentados que se pode cometer contra Deus
e a Pátria.”29 Da Revolução Pernambucana participaria o regalista, companheiro de Feijó, padre
José Martiniano de Alencar.
24
PINTO, Antônio Rodrigues de Almeida. Op. cit., p. 162.
25
Ibidem, p. pp. 176-177.
26
PINTO, Antônio Rodrigues de Almeida. Op. cit., pp. 162-178.
27
LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI no Brasil: 1808-1821 (V. II)... Op. Cit., pp. 798.
28
SIQUEIRA, Antônio Jorge. Os Padres e a Teologia da Ilustração – Pernambuco 1817. Recife: Editora da
UFPE, 2009. Resenha de: ANDRADE, Breno Gontijo de. A revolução dos padres de 1817. Diálogos, v. 15, n. 1,
pp. 243-248, 2011.
29
PORTUGAL, Bernardo Luiz Ferreira. Proclamação do Bispado de Olinda, assinada pelo Vigário Geral Bernardo
Luiz Ferreira Portugal incentivando o povo a obedecer ao Governo Constituído. In: MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO E DA SAÚDE. Documentos históricos: Revolução de 1817 (Vol. CI). Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional – Divisão de Obras Raras e Publicações, 1953, pp. 12-13.
114
30
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Oração fúnebre recitada pelo Cônego Romualdo Antônio de Seixas, cavaleiro
professo na Ordem de Cristo, nas exéquias do excelentíssimo e reverendíssimo senhor D. Manoel de Almeida
Carvalho, do conselho de sua majestade fidelíssima, e bispo desta província do Pará, que celebrou o
reverendíssimo cabido na respectiva catedral. Lisboa: na oficina de J. F. M. de Campos, 1819, p. 6.
31
Ibidem, p. 7.
32
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Oração fúnebre recitada pelo Cônego Romualdo Antônio de Seixas... Op. cit.,
p. 11.
33
D. Romualdo Antônio de. Memórias do Marquês de Santa Cruz. Op. cit., pp. 3-4.
34
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Oração fúnebre... Op. cit., p. 11.
35
Ibidem, pp. 23-24.
36
Hilário nasceu em Poitiers, na França, no início do século IV. Vindo de família pagã, converteu-se ao catolicismo
e travou polêmicas com os defensores do arianismo, que negavam a noção de santíssima trindade. Denunciado ao
imperador Constâncio II (317-361), Hilário partiu para o exílio na Frígia, onde compôs a obra que lhe daria o título
de doutor da Igreja, A trindade ou a fé. Antes de se reestabelecer definitivamente em Poitiers, onde morreria, ainda
combateu o arianismo em Milão. João Crisóstomo nasceu em Antioquia, também no século IV e recebeu uma
educação clássica sob os cuidados de sua mãe. Sua formação teológica deu-se entre as escolas de Antioquia e os
exílios a que se impunha nos arredores desérticos e montanhosos. Em reconhecimento ao seu talento, Crisóstomo
115
foi nomeado bispo de Constantinopla, combatendo a ostentação da vida mundana, as heresias e consolidando a
liturgia do catolicismo oriental. Pelo rigorismo de seu comportamento, foi deposto do bispado e morreu quando se
encontrava exilado em Cucusa. Ver: HERBERMANN, Charles George et. al. (1910). The Catholic Encyclopedia…
Op. cit., v. 7, pp. 349-350; v. 8, pp. 452-457. Disponível em:
https://archive.org/details/V10CatholicEncyclopediaKOfC Acesso em 29/09/2017.
37
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Oração fúnebre... Op. cit., pp. 23-24. (Nota de rodapé).
38
Ibidem, p. 25.
39
Ibidem, p. 26.
40
Ibidem, p. 29.
116
Já ele Honra a Agricultura, como uma das principais fontes da população, e de felicidade
pública; não só dando as mais vantajosas providências à cultura, e povoação dos
campos; mas também liberalizando privilégios, e prêmios avultados, que consolam o
Lavrador, excitam a emulação, e a indústria natural dos Habitantes: Já promove por
aquele mesmo poderoso estímulo às plantações das mais interessantes Especiarias de
que abunda o Brasil, bem como o estabelecimento das Artes, e das Manufaturas, sem as
quais nenhuma Cidade, diz o Espírito Santo, será edificada, nem habitada: já prospera
o Comércio interior, e exterior pelas mais amplas isenções, e saudáveis medidas, para
vencer os obstáculos, que retardavam o livre giro, e circulação do Comércio, e
facilitando a navegação dos grandes rios, que fertilizam este vasto Continente, onde
parecem encerrar-se todos os tesouros da Criação. Aqui ele multiplica os exemplos da
indústria, chamando, e atraindo toda a sorte de Artistas Estrangeiros; ali ele faz submeter
ao jugo das suas Leis tantas Nações selvagens, e antropófagas, que Graças aos desvelos
de tão grande Príncipe, já gozam das vantagens da vida social com grande proveito da
Religião, e da Monarquia.44
41
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Sermão de ação de graças que no dia 13 de maio celebrou o Senado da Câmara
do Pará pela feliz aclamação do muito alto e poderoso Sr. D. João VI, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1818, p. 9.
42
Ibidem, p. 12.
43
Ibidem, p. 15.
44
Ibidem, p. 18.
45
Ibidem, pp. 18-19.
117
46
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Sermão de ação de graças... Op. cit., p. 21. (Grifos nossos)
47
Apresentado à cadeira episcopal em 1819, confirmado pelo papa Pio VII em 1820 e ordenado no Rio de Janeiro
em 1821. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. VII), pp. 162-163.
48
As Cartas Pastorais derivaram da noção de Pastoral. Esta se fundamentou, desde os primórdios da História do
Catolicismo, nas noções de Igreja e evangelização, incidindo sobre a organização da comunidade eclesial e da
propagação da fé. Com a ampliação dos horizontes de evangelização e os desafios da Reforma Protestante, o
Concílio de Trento conferiu especial atenção à noção de Pastoral, valorizando a ação dos bispos, a catequese e a
liturgia. Assim, segundo o Dicionário de História Religiosa de Portugal, a ampliação da noção de Pastoral ocorreu
pari passu às vagas regalistas e seculares deflagradas na aurora da Idade Moderna. Reforçavam-se, via reformas,
a estrutura organizacional e os dispositivos dogmáticos e disciplinares, na medida em que a ação eclesiástica
reconhecia a centralidade de sua adequação às diferentes realidades encontradas durante a difusão missionária.
Atualmente, no Brasil, a ação Pastoral católica materializa-se em frentes múltiplas, na maioria das vezes, de
natureza sócio-caritativa e mesmo política. Ver: AZEVEDO, Carlos Moreira de (Org.). Op. cit. (Vol. 3), pp.385-
392.
49
COELHO, Romualdo de Sousa. Pastoral do bispo do Pará dom Romualdo de Souza Coelho: Prevenindo os
seus diocesanos contra opiniões abusivas e sediciosas sobre a verdadeira inteligência do sistema constitucional
que a nação tem adoptado, para manter a sua segurança, e prosperidade. Com adimento de um edital análogo.
Lisboa: Tipografia Patriótica, 1822, p. 4. Disponível em: https://archive.org/details/pastoraldobispod00coel.
Acesso em 10/10/2017.
50
Ibidem, p. 4.
51
Ibidem, p. 4.
52
Ibidem, p. 5.
118
Manda El Rei (...) que havendo chegado ao seu conhecimento, não terem até o presente
os Bispos, e mais Prelados Eclesiásticos do Reino do Brasil, e Províncias ultramarinas,
instruído os Povos, que estão confiados à sua vigilância, e Pasto Espiritual, acerca do
Sistema Constitucional, que a Nação tem abraçado, como fonte da sua felicidade, e
prosperidade, e que Sua Majestade há jurado com mais firme adesão; os mesmos Bispos
imediatamente passem a fazer Pastorais, em que mostrem, que o mesmo Sistema em
nada ofende à Religião, que muito pelo contrário, dando ele à dignidade do homem
aquele grau de esplendor, que devidamente lhe compete, e tirando-o das trevas da
ignorância, lhe fará melhor conhecer a pureza da mesma Religião, que professamos .53
Para além do recurso às cartas pastorais, a portaria destacava a importância da ação dos
demais clérigos, e o rei mandava “recomendar a todos os Párocos, e mais Prelados Eclesiásticos,
que nas oportunas ocasiões hajam de pregar, e instruir os Povos pela maneira predita”. 54 Com
efeito, entre 1808 e 1821, durante sua estadia no Brasil, d. João VI (1792-1826) prestigiou a
Capela Imperial e a importância do discurso sacro, reconhecendo o forte apelo que os
pregadores possuíam em meio à esfera pública. Segundo Maria Renata da Cruz Duran, o
principal orador sacro do período era Francisco de Monte Alverne, prelado que mais se destacou
à frente da Capela Imperial.55 Outro importante orador da Capela Imperial foi o cônego Januário
da Cunha Barbosa, já referido partidário da Independência através do periódico Revérbero
Constitucional.56 O púlpito era um polo aglutinador de legitimidades políticas e os sermonistas,
sob diferentes perspectivas, elaboravam as linhas mestras do discurso de formação de uma
identidade sócio-política luso-brasileira e, no limite, brasileira.57
Nos primeiros anos de sua carreira sacerdotal, em meio a turbulências políticas e
demandas revolucionárias, Romualdo Seixas encontrou uma conjuntura peculiar de arranjos e
conflitos entre os poderes civil e eclesiástico. D. Maria I e d. João VI buscaram ampliar a
influência da Igreja e de seus porta-vozes na dinâmica institucional da monarquia portuguesa,
ao intensificar seu protagonismo nas políticas educacionais. Ademais, os membros do clero
tiveram papel fundamental na formação e difusão de certa pedagogia política, em um território
53
COELHO, Romualdo de Sousa. Pastoral do bispo do Pará dom Romualdo de Souza Coelho..., pp. 5-6.
54
Ibidem, p. 6.
55
DURAN, Maria Renata da Cruz. Ecos do púlpito: Oratória sagrada no tempo de D. João VI. São Paulo: Ed.
UNESP, 2010, pp. 127-187.
56
Segundo consta em suas Memórias, pouco antes de sua nomeação para o arcebispado da Bahia, Romualdo Seixas
solicitou a d. Pedro a graça de ser nomeado pregador da Capela Imperial e o imperador deixou no ar a ideia de que
o então deputado seria “elevado a uma grande dignidade” e não deveria se ocupar com o “título de Pregador
Imperial.” Ver: SEIXAS, Romualdo Antônio de. Memórias do Marquês... Op. Cit., p. 46.
57
DURAN, Maria Renata da Cruz. Ecos do púlpito... Op. cit., pp. 75-126.
119
onde a cultura oral era uma das características mais marcantes da esfera pública. No Grão-Pará,
berço de Romualdo Seixas, o bispo d. Manuel Almeida representou o apego à disciplina romana
e a perseguição aos elementos heréticos, revolucionários e subversivos. Seu sucessor,
Romualdo de Sousa Coelho, em consonância com o projeto das Cortes de Lisboa, ressaltou a
compatibilidade entre o catolicismo romano e a monarquia constitucional. Entre o interior do
Pará e a vastidão do Império luso-brasileiro, formava-se um clero contrarrevolucionário, de
tendência disciplinar ortodoxa e inspiração político-intelectual conservadora, em diálogo com
certa tradição ilustrada do catolicismo e com um constitucionalismo de viés escolástico.
58
GODECHOT, Jacques. La contre-révolution: doctrine et action (1789-1804). Paris: Presses Universitaires de
France, 1961, pp. 1-4.
59
LOUSADA, Maria Alexandre & FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo. D. Miguel. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2006, pp. 30 e segs; RODRIGUES, Cândido Moreira. Críticos da Revolução Francesa: conservadores
tradicionalistas e contrarrevolucionários. Revista Brasileira de Ciência Política, no 3. Brasília, janeiro-julho de
2010, pp. 343-367; ROURA, Lluis. La Contre-Révolution en Espagne et la lutte contre la France, 1793-1795 et
1808-1814. In: MARTIN, Jean-Clément (dir.). La Contre-Révolution en Europe: XVIIIe-XIXe siècles. Réalités
politiques et sociales, résonances culturelles et idéologiques [en ligne]. Rennes: Presses universitaires de Rennes,
2001, pp. 1-2. (généré le 19 novembre 2017). Disponible sur Internet: http://books.openedition.org/pur/16574
120
60
GODECHOT, Jacques. Op. cit., p. 7. (Tradução nossa).
61
Ibidem, p. 7-14.
62
Charles-Alexandre de Calonne (1734-1802), abade Gabriel Bonnot de Mably (1709-1785) e Jacques Necker
(1732-1804), formados nos quadros do Antigo Regime francês, vivenciaram os anos finais do absolutismo de Luís
XVI. Integravam a estrutura político-administrativa e eclesiástica da francesa e propuseram reformas, afinadas
com alguns princípios ilustrados, que tocavam em temas sensíveis ao grave momento social, político e econômico
pré-revolucionário. Ver: GODECHOT, Jacques. Op. cit., pp. 14-17.
63
GODECHOT, Jacques. Op. cit., pp. 18-21.
64
MANNHEIM, Karl. Conservative thought. In: MANNHEIM, Karl. Essays on Sociology and Social Psychology.
London: Routledge & Kegan Paul LTD, 1953, p. 102.
65
MANNHEIM, Karl. Op. Cit., pp. 93-98.
121
ligado aos whigs, o conservadorismo agregou agendas reformistas e, nos dizeres de Andrew
Vincent, consolidou-se em um “corpo de ideias com conteúdo prescritivo.”66
Os adeptos da perspectiva conservadora desenvolveram certa “consciência” ao tratar
dos “problemas estruturais comuns a todos os Estados modernos”, a saber: “(I) a consolidação
da unidade nacional, (II) a participação do povo no governo do país, (III) incorporação do
Estado na ordem econômica global, (IV) solução das questões sociais.”67 Eram caros aos
conservadores alguns temas fundamentais cuja difusão pela esfera pública transatlântica foi
cada vez mais intensa durante e após os eventos da última década do setecentos na França. Em
1791, Edmund Burke escreveu suas Reflexões sobre a Revolução na França, texto no qual
tratava das questões apontadas por Mannheim. Burke privilegiou a concretude das experiências
históricas e a ordenação inercial de suas assimetrias socioeconômicas e políticas, em detrimento
dos princípios filosóficos quantitativos e abstratos do universo valorativo liberal e ilustrado.68
As liberdades seriam qualificadas por sua consolidação no âmbito dos históricos códigos
consuetudinários da sociedade inglesa, em um “pedigree” jurídico cujo ponto de inflexão seria
a “mais velha reforma” da Magna Carta (1215).69 Burke atribuiu a Magna Carta ao rei João de
Inglaterra (1199-1215), considerando-a “conectada” a “outra carta positiva de Henrique I”
(1100-1135).70 As liberdades e os direitos eram parte de um legado gestado nos tempos da
consolidação do reino da Inglaterra no medievo tardio e reafirmado no século XVII:
66
VINCENT, Andrew. Ideologias políticas modernas… Op. cit., p. 68.
67
MANNHEIM, Karl. Conservative thought… In: Op. cit., p. 100.
68
RODCRIGUES, Cândido Moreira. Op. cit., pp. 349-351.
69
BURKE, Edmund. Reflections on the Revolution in France (Vol. 1). London: Published by John Sharpe,
Picadilly, 1819-1821, p. 44. (Tradução nossa).
70
Ibidem, p. 44. (Tradução nossa).
71
BURKE, Edmund. Reflections on the Revolution in France… Op. cit., p. 45. (Tradução nossa).
72
ANDERSON, Benedict. Op. cit., p. 32.
73
RODCRIGUES, Cândido Moreira. Op. cit., p. 349.
122
Paine (1737-1809), que buscava identificar um grande ciclo revolucionário, Burke diferenciava
a Revolução Francesa da Revolução Gloriosa de 1688.74 Esta, teria resultado em uma
declaração de direitos construída por “grandes magistrados e grandes estadistas e não por
entusiastas ardorosos e inexperientes”.75 Em 1831, o então arcebispo da Bahia, d. Romualdo
Antônio de Seixas, advertia sobre os “limites da bem entendida liberdade” e as “consequências
de máximas abstratas, absolutas, e mal compreendidas pela multidão”.76 Para justificar sua
posição, o clérigo citava “o eloquente Burke, que pintou com tanta energia os furores da
mencionada Revolução, onde ele não descobria senão o dogmatismo mais presunçoso a par da
mais grosseira barbaridade.”77
Em suas Reflexões, em consonância com a perspectiva de oposição às bruscas e
iconoclastas rupturas revolucionárias, Burke analisou o lugar da religião na dinâmica da
sociedade e destacou “que o homem é por sua constituição um animal religioso; que o ateísmo
é contra, não apenas nossa razão, mas também contra nossos instintos”.78 Para o irlandês de
origem protestante, todas as instituições morais, civis e políticas auxiliariam “os laços naturais
e racionais que conectam as afeições e compreensões humanas ao divino” e seriam necessárias
para fortalecer “aquela maravilhosa estrutura, o Homem”.79 A religião cristã estaria na base da
“consagração do Estado por um estabelecimento religioso oficial” e contribuiria para
desenvolver uma “salutar reverência sobre os cidadãos livres”.80 Burke defendia a importância
do culto público, de uma pedagogia moral e política engendrada pela religião cristã oficial e da
independência econômica da Igreja através da administração autônoma propriedades
eclesiásticas.81 Por fim, em que pese a centralidade atribuída à religião cristã, concebeu a
tolerância com relação a outros cultos.82 Dentre os pensadores que retomaram e desenvolveram
algumas das ideias de Edmund Burke, estariam Joseph de Maistre (1753-1821) e Louis de
Bonald (1754-1840), “os teocratas” nos dizeres de Jacques Godechot.83
74
Burke defendeu ainda uma postura de diálogo e comedimento com relação aos colonos da América do Norte,
incluindo-os no rol de prerrogativas constitucionais garantidas pela lei britânica. Ver: VINCENT, Andrew. Op.
cit., p. 70.
75
BURKE, Edmund. Op. cit., p. 23.
76
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Discurso: recitado no ato de tomar Posse do Cargo de Provedor da Casa Pia
dos Órfãos da Cidade da Bahia, no ano de 1831. In: SEIXAS, Romualdo Antônio de. Coleção das obras do
excelentíssimo e reverendíssimo Dom Romualdo Antônio de Seixas... (Vol. II). Pernambuco: Tipografia de Santos
& Companhia, 1839-1858, pp. 89.
77
Ibidem, p. 95.
78
BURKE, Edmund. Op. cit., p. 126. (Tradução nossa).
79
Ibidem, pp. 128-129. (Tradução nossa).
80
Ibidem, p. 129. (Tradução nossa).
81
Ibidem, (Vol. I e II), pp. 128-168 e 1-50.
82
Ibidem, p. 17.
83
GODECHOT, Jacques. Op. cit., pp. 98-117..
123
84
No início de sua carreira administrativa, Bonald chegou a propor uma estrutura federativa de governo. Em 1810,
aceitou a convocação de Napoleão Bonaparte, que o nomeou para o Conselho Universitário. Em 1814, já sob Luís
XVIII (1814-1815/1815-1830), passou a trabalhar no Conselho Superior de Administração Pública. Após as
jornadas de 1830 e a ascensão de Luís Felipe, demitiu-se do governo, passou a produzir menos e faleceu em 1840.
Ver: GODECHOT, Jacques. Op. cit., pp. 106-112.
85
GODECHOT, Jacques. Op. cit. , pp. 107-108.
86
ROURA, Lluis. Op. cit., p. 3.
87
GODECHOT, Jacques. Op. cit. , pp. 95-106.
124
autor “um dos campeões do ultramontanismo, que, ao longo do século XIX ganhará pouco a
pouco toda a Igreja da França.”88 Na referida obra, de Maistre mostrou-se preocupado com
relação à Constituição que, para seu desapontamento, foi promulgada em 1814 sob o primeiro
reinado de Luís XVIII (1814-1815). Assim, de Maistre representou uma proposta de mudança
regeneradora contras pretensões constitucionais de alguns nomes do juste-milieu liberal e
doutrinário, nomeadamente, Chateaubriand, Constant e Guizot.89 Ao repudiar tanto o
constitucionalismo liberal quanto o galicanismo, que ganhara força com Luís XIV a partir do
século XVII, o advogado de Saboia insistia na centralidade do poder papal para a condução da
vida intelectual, moral e, no limite, política da sociedade.90 Para tanto, evocava a história dos
concílios e as desavenças entre Roma e as regiões do Oriente sob sua influência durante os
estertores da Antiguidade clássica:
Por volta da metade do século quinto, São Leão disse ao Concílio de Calcedônia,91
lembrando-se de sua carta a Flaviano: não se trata mais de discutir audaciosamente,
mas de crer, minha carta a Flaviano, de boa memória, decidiu plenamente e muito
claramente tudo o que existe em matéria de fé sobre o mistério da encarnação.
E Dióscoro, patriarca de Alexandria, tendo sido precedentemente condenado pela Santa
Sé, os núncios não permitiram que tomasse assento entre os bispos, em atenção à decisão
88
GODECHOT, Jacques. Op. cit., p. 106. (Tradução nossa).
89
Porta-vozes do liberalismo constitucional forjado durante a Restauração subsequente à queda de Napoleão,
Constant e Chateaubriand cultivaram o “apego a liberdade”, mas também divergiram, na medida em que o primeiro
mostrava-se mais infenso aos valores aristocráticos restaurados e o segundo cultivava um típico espírito cortesão.
Quando da volta do general Bonaparte para seus últimos cem dias em 1815, o protestante Benjamim Constant
prestou fidelidade ao imperador e o católico convicto René de Chateaubriand reuniu-se a Luís XVIII no exílio.
Guizot, também de origem protestante, empreendeu o esboço institucional e a legitimidade político-filosófica de
uma monarquia moderna e infensa às heranças da aristocracia típica do Antigo Regime. WINOCK, Michel. OP.
cit., pp. 23-61.
90
Cyril Lynch classificou Louis de Bonald como “ultramonárquico reacionário”, em contraposição a
Chateaubriand, que seria um “ultramonárquico de movimento”. Michel Winock, por sua vez, utiliza o termo “ultra
liberal” para se referir a Chateubriand, salientando sua oposição a de Maistre e de Bonald. Ver: CYRIL LYNCH,
Christian Edward. O pensamento conservador ibero-americano na era das Independências. Lua Nova, São Paulo,
74: 59-92, 2008, p. 63; WINOCK, Michel. OP. cit., pp. 62-66.
91
Em 451, quando foi convocado o concílio de Calcedônia, a questão cristológica esteve no centro dos debates
teológicos que se desenvolveram na porção oriental dos domínios pontifícios romanos. As escolas teológicas de
Alexandria e Antioquia opunham-se, a partir de perspectivas distintas quanto à natureza de Jesus Cristo. A
primeira, propagava o monofisismo, para o qual teria Cristo apenas uma natureza divina revelada após a passagem
retratada na mitologia da Encarnação, o corpo físico humano encarnado no verbo sempiterno. A segunda,
propagava o diofisismo nestoriano, que concebia certa dualidade da natureza cristológica sob o ponto de vista da
coexistência entre a forma humana e a forma divina. Na ocasião do Concílio de Calcedônia, foi de fundamental
importância a epístola teológica escrita em 448 por Leão I (440-461), Tomus ad Flavianum. No documento,
endereçado a Flaviano (morto em 449), bispo de Constantinopla, o pontífice reafirmou a autoridade teológica de
Roma e procurou amenizar as dissidências entre as escolas teológicas do Oriente, na medida em que empreendeu
uma síntese cristológica calcada no equilíbrio entre monofisismo e diofisismo. Ver: FRAZÃO JUNIOR,
Valtemario Silva. Abordagem Contemporânea da Cristologia do Concílio de Calcedônia. Tese (doutorado)–
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2015, pp. 47-74.
125
O Sumo Pontífice era o bispo dos bispos e sua autoridade em matéria de fé não deveria
ser contestada. De uma só vez, Joseph de Maistre atacaria o galicanismo, consolidado no ápice
do Antigo Regime francês, e também os intentos de secularização e dessacralização política,
herança revolucionária e ilustrada materializada na Constituição de 1814. Assim, esboçava-se
certa tendência ultramontana, em diálogo com as matrizes intelectuais do conservadorismo e
na base da legitimação da luta contrarrevolucionária. Para de Maistre, os concílios formados
sob o ponto de vista do episcopalismo, em sua pretensão de superioridade com relação à
autoridade papal, resultariam em uma “assembleia irracional”. 93
Do mesmo modo que o
conciliarismo episcopalista do Concílio de Constança (1414-1418) não poderia surtir efeito, as
assembleias de cunho político também não teriam, pois “foi irracional depois, o longo
parlamento da Inglaterra, e a assembleia constituinte, e a assembleia legislativa, e a assembleia
nacional, e as quinhentas, e as duzentas, como todas as assembleias imagináveis, numerosas e
não presididas.”94 O poder do papa seria, portanto, de natureza infalível, incorrigível, e o chefe
de Roma guardaria a função de “árbitro do poder temporal”.95
Entre a publicação das Reflexões (1791), de Edmund Burke e da obra Do papa (1819),
de Joseph de Maistre, o panorama intelectual do ocidente euroamericano seria marcado por uma
organização contrarrevolucionária que mostrou diferentes intensidades. Joseph de Maistre e
Louis de Bonald compunham o núcleo fundamental da ortodoxia romana, no limite
ultramontana, recorrente entre os partidários de um absolutismo mais centralizador, hostil a
alguns princípios ilustrados e liberais. Burke, por sua vez, também era apreciado e usado pelos
círculos comprometidos com um liberalismo constitucional de caráter mais secular. Em suma,
o protagonismo desses autores foi inconteste e teve significativa importância no seio da
contrarrevolução. Para além da França revolucionária e da insular Grã-Bretanha, outras vozes
fariam coro aos inimigos da Revolução. O ambiente intelectual iberoamericano, por vezes
refratário aos princípios da Ilustração, foi propício a um peculiar desenvolvimento de
tendências político-filosóficas que contribuíram para a organização da luta
92
MAISTRE, Joseph de. Du pape. Paris: Charpenter, Libreire-Éditeur, 1841, pp. 37-38. (Grifos do autor e tradução
nossa).
93
Ibidem, p. 78. (Grifos do autor e tradução nossa).
94
Ibidem, p. 78. (Grifos do autor e tradução nossa).
95
RODCRIGUES, Cândido Moreira. Op. cit., 359.
126
96
CANAL, Jordi. La longue survivance du Carlisme en Espagne: proposition pour une interprétation. In: In:
MARTIN, Jean-Clément (dir.). La Contre-Révolution en Europe... Op. Cit., pp. 1-6. (généré le 19 novembre 2017).
Disponible sur Internet: http://books.openedition.org/pur/16574; LOUSADA, Maria Alexandre & FERREIRA,
Maria de Fátima Sá e Melo. Op. cit., pp. 30-66; TENGARRINHA, José. Paysannerie et Contre-Révolution au
Portugal. In: MARTIN, Jean-Clément (dir.). La Contre-Révolution en Europe... Op. Cit., pp. 1-6. (généré le 19
novembre 2017). Disponible sur Internet: http://books.openedition.org/pur/16574
97
Em Thoughts on French Affairs (1791) Burke criticou a debilidade da Espanha, atribuindo-a em grande parte às
omissões da dinastia Bourbon e do Ministério Floridaclanca. Sobre o clero, Burke afirmou ser a única “ordem
independente” e a Inquisição “a única e infeliz fonte de utilidade pública”. Ver: BURKE, Edmund. Thoughts on
French Affairs. In BURKE, Edmund. Three Memorials on French Affairs. London: F. and C. Rivington, 1797, p.
32; SCHUMACHER, Lioba Simon. Burke’s Political and Aesthetic Ideas in Spain: A View from the Right. In:
FITZPATRICK, Martin & JONES, Peter. The Reception of Edmund Burke in Europe. London: Bloomsburry,
2017, pp. 229 e segs.
98
Nascido em Murcia, José Moñino y Redondo formou-se em leis e teve uma carreira de destaque na magistratura
e na diplomacia. No período do reformismo ilustrado de Carlos III (1759-1788), a ação de Moñino em Roma foi
fundamental para a dissolução das atividades dos inacianos nos territórios espanhóis. Entretanto, a timidez das
reformas de Carlos III e a força dos círculos absolutistas contribuíram para um ambiente favorável à
contrarrevolução, defendida com veemência pelo próprio Moñino nos seus anos finais à frente do cargo de primeiro
ministro (1777-1792). Ver: ROURA, Lluis. La Contre-Révolution en Espagne et la lutte contre la France, 1793-
1795 et 1808-1814. In: MARTIN, Jean-Clément (dir.)... Op. Cit., pp.1-2.
99
ROURA, Lluis. La Contre-Révolution en Espagne et la lutte contre la France, 1793-1795 et 1808-1814. In:
MARTIN, Jean-Clément (dir.)... Op. Cit., p. 2.
100
Ibidem, p. 2.
101
A apologética desenvolveu-se de maneira acentuada na Espanha ao longo do século XVIII e dialogou com a
apologética dogmática europeia, tendo na obra do jesuíta francês Claude Adrien Nonnotte (1711-1790) uma das
principais referências: ARBEOLA, Victor Manuel. Clericalismo y anticlericalismo en España (1767-1930): Una
introducción. Madrid: Encuentro, 2009, pp. 40 e 43; AZEVEDO, Carlos Moreira de (Org.). Dicionário de história
religiosa de Portugal (Vol. I). Op. cit., pp. 81-102; ROURA, Lluis. La Contre-Révolution en Espagne et la lutte
contre la France, 1793-1795 et 1808-1814. In: MARTIN, Jean-Clément (dir.)... Op. cit., pp. 2-3.
127
Fernando de Ceballos (1732-1802).102 Entre 1793 e 1795, a ofensiva da Espanha contra a França
ganhou contornos de uma guerra religiosa, arrefecendo após a campanha do Rossilhão.103
Em Portugal, as traduções de Burke, Bonald e Maistre foram tardias, o que não impediu
a produção e circulação de obras que se organizaram sob um forte viés antifrancês e
antinapoleônico.104 Ainda em 1793, sob licença da Real Mesa da Comissão Geral para a
Censura de Livros,105 o folheto A Revolução e estado atual da França inaugurava a difusão de
libelos antirrevolucionários “dirigindo seus ataques à Constituição, à França e à sua política, a
Napoleão e a seus generais.”106 Entre 1808 e 1811, as publicações hostis à herança
revolucionária, encarnada nas investidas de Bonaparte, tiveram um significativo aumento.107
Nesse contexto, um nome proeminente, que circulou nos domínios lusos e no mundo luso-
brasileiro, foi o do jesuíta francês Augustin Barruel (1741-1820), autor das Memórias para
servir à história do jacobinismo.108 Sua obra foi traduzida em 1809 por José Agostinho de
102
Ceballos nasceu em Cádiz, cursou direito civil e canônico na Universidade de Sevilha e tomou o hábito de São
Gerônimo no monastério de San Isidro. Era discípulo de Nonnotte. Durante os anos 1770, sua obra La falsa
filosofia o el ateísmo... desenvolvia “teorias tão restritivas acerca do poder civil, que se proibiu sua publicação
quando se chegava ao tomo VI”. Rechaçado pelo espírito regalista do reinado de Carlos III, Ceballos conseguiria
publicar o sétimo tomo de sua obra no ano de 1800, em Lisboa. Ainda assim, mesmo em um ambiente de
recrudescimento da luta contrarrevolucionária, seria perseguido pelo governo espanhol e morreria em 1802. Ver:
SCHUCH, Luis Vidart. Apuntes sobre la Historia de la Filosofía en la Península Ibérica. Madrid: Imprenta
Europea, 1886, p. 100.
103
Na campanha do Rossilhão, Portugal e Grã-Bretanha auxiliaram a Espanha contra a França. A decapitação de
Luís XVI (1774-1792) soou como uma afronta aos laços que uniam as famílias reais francesa e espanhola. Ao fim
do conflito, a Espanha firmou a Paz de Basileia com a França e, posteriormente, entraria em guerra com a Inglaterra
(1796-1802). Portugal, que havia auxiliado a Espanha em 1793, viu-se em uma situação delicada entre o
ressentimento francês e a pressão inglesa. Ver: SCHEDEL, Madalena Serrão Franco. Guerra na Europa e
interesses de Portugal: as colônias e o comércio ultramarino: a acção política e diplomática de D. João de Melo e
Castro, conde das Galveias, (1792-1814). 198 f. Dissertação (Mestrado). Universidade de Lisboa/ Faculdade de
Letras. Lisboa: 2010, 89-96.
104
VICENTE, Antônio Pedro. Textos contrarrevolucionarios durante las Invasiones Francesas (Eclosión
panfletaria em Portugal y España). In: SERRÃO, Joaquim Veríssimo & MENDOZA, Alfosno Bullón de. La
Contrarrevolución Legitimista (1688-1876). Madrid: Editorial Complutense, 1995, pp. 186-187.
105
Entre 1517 e 1768, a circulação de impressos em Portugal era submetida a uma censura tríplice, gestada no
bojo da Contrarreforma, empreendida por dois tribunais eclesiásticos e um civil, a saber, os Juízos Eclesiásticos,
a Inquisição e o Desembargo do Paço. A Real Mesa Censória foi criada em 1768, em uma dinâmica de
“secularização da censura” característica ao reformismo ilustrado de Pombal. Assim, prezava-se pela centralização
e autonomização de um Índex lusitano, regalista e antijesuítico, em detrimento da influência censora do pontificado
romano. Ao mesmo tempo, a posição da Real Mesa Censória quanto aos autores das Luzes era ambivalente,
repudiando as ideias mais radicais, ao mesmo tempo em que assimilava algumas das diretrizes do pensamento
ilustrado. Em 1787, sob o reinado de d. Maria I, a Real Mesa Censória passou a se chamar Real Mesa da Comissão
Geral para o exame e a censura dos livros. A influência pontifícia na atividade censória foi retomada e foi também
reconhecida a autoridade eclesiástica em matérias doutrinárias não contempladas pelas normas pombalinas. A
partir de 1794, a censura tríplice foi restabelecida, em consonância com um arrefecimento com dos imperativos de
secularização herdados da era pombalina. Ao mesmo tempo, o poder régio também fortalecera o exercício de seu
poder sobre o controle político e intelectual, demarcando distintas esferas de competência entre o os Juízos
Eclesiásticos, a claudicante Inquisição e o Desembargo do Paço. Ver: VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no
mundo luso-brasileiro... Op. cit., pp. 171-222.
106
VICENTE, Antônio Pedro. Op. cit., p. 176.
107
Ibidem, p. 177.
108
BARATA, Alexandre Mansur. Op. cit., p. 48.
128
109
José Agostinho de Macedo era natural de Beja, estudou entre os agostinianos no Convento de N. S. da Graça e
tornou-se frade, sendo expulso da Ordem dos Gracianos em 1792 e tornando-se presbítero secular por breve da
Cúria romana de 1794. Ver: BARATA, Alexandre Mansur. Op. cit., p. 164; SILVA, Inocêncio Francisco da.
Memorias para a Vida Intima de José Agostinho de Macedo. Lisboa, Tipografia da Academia Real das Ciências,
1899, pp. 9-30.
110
BARRUEL, Augustin. Prefácio. In: MACEDO, José Agostinho de. O segredo revelado ou manifestação do
sistema dos pedreiros livres, e iluminados, e sua influencia na fatal Revolução Francesa : obra extraída das
memórias para a História do Jacobismo do Abbade Barruel, e publicada em português para confusão dos ímpios,
e cautela dos verdadeiros amigos da religião, e da pátria. (Parte I). Lisboa: Impressão Régia, 1810.
111
BARATA, Alexandre Mansur. Op. Cit., p. 65 ; CANECA, Frei. Cartas de Pítia a Damão. (v. X.) In: MELLO,
Evaldo Cabral de... Op. cit., p. 296.
112
ROURA, Lluis. La Contre-Révolution en Espagne et la lutte contre la France, 1793-1795 et 1808-1814. In:
MARTIN, Jean-Clément (dir.)... Op. cit., p. 4.
113
DREHER, Martin R. A Igreja Latino-Americana no Contexto Mundial. São Leopoldo: Sinodal, 1999, p. 152.
129
Jesus Cristo disse uma coisa; os filósofos outra: aquele ordena a obediência passiva;
estes a resistência às autoridades estabelecidas: aquele somente examina, se Cesar a
estava exercendo e seus súditos a reconheciam, e eles depreciam esta circunstância, que
consideram inútil: a resposta de Jesus Cristo não autoriza violar a fidelidade prometida;
e a dos filósofos coloca entre as virtudes o faltar a ela. Quanta diferença!
Por fortuna a Igreja e seus ministros pouca dúvida tem deixado sobre as máximas que
lhes corresponde seguir; porque não sendo o sacerdócio obra daqueles [filósofos], estão
dispensado de adotar suas ideias e obrigados a contradizê-las, quando não se conformem
com a de seu Divino Autor. Daqui foi que os prelados e pastores da Nova Espanha
anunciaram à sua Grey que a religião ordenava a submissão e obediência ao nosso
legítimo e atual soberano o Senhor DOM FERNANDO VII, assim como a ela se opôs
o levantamento e a rebelião que contra sua autoridade e seus ministros se intentava: sua
doutrina neste ponto foi o que eu mencionei pregada por nosso Salvador, a que
114
Os jesuítas foram expulsos dos domínios espanhóis no ano de 1767, em virtude da política regalista de Carlos
III. Seu restabelecimento na América hispânica também atingiu o Peru e durou até os idos de 1820, quando houve
uma nova ofensiva secularizadora. Apenas nas décadas de 1840 e 1850 haveria novo esforço pelo retorno dos
inacianos aos territórios do México e do Peru. Ver: HAMNET, Brian R. Revolución y contrarrevolución en México
y el Perú: liberales, realistas y separatistas (1800-1824). México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1978,
pp.188-193.
115
Em 1816, o breve Etsi longissimo seria dirigido a todos os arcebispos, bispos e clero da “América católica
submetida ao Rei da Espanha”. Diante dos “gravíssimos e terríveis danos da rebelião”, estariam as “virtudes
singulares do Nosso egrégio e caríssimo Filho em Cristo, Fernando, Rei Católico da Espanha e Vosso para quem
nada é mais precioso que a Religião e a felicidade de seus súditos.” Assim, Pio VII recomendava ao clero hispano-
americano “maior compromisso com a obediência e fidelidade ao vosso Rei”. O breve Est longissimo encontraria
resistências entre o clero hispano-americano, sobretudo entre os seculares de tendência liberal e de atuação
majoritariamente paroquial. Esta ação intensa do “baixo” clero em torno das demandas liberais também encontrou
eco na alta hierarquia. No Peru, a maioria dos bispos fez oposição às encíclicas de Pio VII e apoiou a causa da
independência e da reestruturação das relações politicas, institucionais e diplomáticas com a Santa Sé. Controlar
a Igreja e obter seu apoio era fundamental para a consolidação dos novos governos, sendo que os atritos com a Sé
romana caracterizaram a sobrevivência do padroado nas repúblicas independentes da antiga América hispânica.
Por volta de 1820, quando do restabelecimento da carta liberal de Cádiz sob Fernando VII (1808/1813-1833), o
próprio governo espanhol esteve às voltas com tensões diplomáticas envolvendo a corte de Roma. Ver: PIO VII.
Est longissimo. 30/01/1816, p.1. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/gregorius-xvi/it/documents/encyclica-mirari-vos-15-augusti-1832.html. Acesso em
17/11/2017. (Tradução nossa); SAFFORD, Frank. Política, ideologia e sociedade na América Espanhola do pós-
Independência. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina... Op. cit., pp. 339-340; TERUEL,
Manuel. Obispos liberales... Op. Cit., pp. 80-88; VILLANUEVA, Carmen. Francisco Xavier de Luna Pizarro.
Lima: Editorial Brasa S. A., 1995, p. 24, 52-62.
116
FONTE, Pedro José de. Carta pastoral, que a continuación de otra del santísimo padre el Señor Pio Vii. dirige
á sus diocesanos el arzobispo de México. México: Impresa en la oficina de dr. Alexandro Valdés, 1816, p. 9.
Disponível em http://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000076204&page=1. Consultado em 17/11/2017.
130
explicaram seus Apóstolos e a que constantemente tem ensinado e ensina nossa Santa
Madre Igreja.117
117
FONTE, Pedro José de. Carta pastoral, que a continuación de otra del santísimo padre... Op. cit., pp. 16-17.
118
NOVAIS, Fernando. Op. cit., p. 33.
119
LIMA, Maurílio César de. Metropolitanismo e Regalismo no Brasil durante da nunciatura de Lourenço Caleppi.
Revista de História, São Paulo, v. 4, n. 10, p. 387-416, 1952. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/35090/37829>. Acesso em: 28 nov. 2017;
120
Caleppi chamou a atenção do então arcebispo da Bahia d. frei José de Santa Escolástica (1804-1814) sobre os
“perigos da repetição de um novo cisma de Utrecht ou da Igreja Constitucional Francesa no Novo Mundo.” Além
do mais, compôs um Memorial, no qual combatia o regalismo e a pretensa autonomia do arcebispo em assuntos
eclesiásticos, a ser entregue ao príncipe regente com a aquiescência do referido arcebispo primaz e apoio de D.
frei Cipriano de São José (1743-1817), bispo de Mariana. Caleppi combateu a nomeação do sucessor de Santa
Escolástica, D. Frei Francisco de São Dâmaso Abreu Vieira (1767-1816), sem as bulas de confirmação de Pio VII,
mas não foi atendido por d. João que alegava entender os motivos do núncio ao mesmo tempo em que nomeava
Abreu Vieira. Por fim, Abreu Vieira chegou a ser admoestado por Pio VII, além de ser alvo de um pedido de
retratação com relação às suas pastorais, de forte teor regalista, por parte da recém-criada Congregação dos
Assuntos Eclesiásticos. Ver: LIMA, Maurílio César de. Op. cit., pp. 398-401, 404, 406, 410 e 412.
121
ACCIOLY, Hildebrando. Op. cit., p. 80.
131
seu Diálogo entre um mestre e seu discípulo. No texto, Romualdo Seixas travaria uma batalha
com O Português, periódico editado em Londres, epicentro de um círculo de publicações
políticas, científicas e literárias luso-brasileiras, tendencialmente liberais, denominado por José
Tengarrinha “jornalismo da primeira emigração”.122
Em 1821, em análise sobre a Junta governativa do Pará, O Português, cujo redator era
o coimbrão João Bernardo da Rocha Loureiro (1778-1853), caracterizava Romualdo Antônio
de Seixas como um “mortal inimigo” e “Clérigo mui ruim e ignorante (à falta d’homens,
Provisor e Vigário Geral do Bispado)”.123 Sobre a peça escrita pelo sacerdote paraense,
afirmava ser um “folhetaço, aonde nos alcunhara de façanhoso jacobino, porque advogávamos
contra a inquisição, e a favor da liberdade de imprensa!”124 Romualdo e os demais membros
do governo interino seriam “Tiranos (...) de posse n’essa administração contra a manifesta
vontade do povo”. Os outros dois componentes da Junta governativa do Pará seriam “o Juiz de
Fora, Joaquim Pereira de Macedo, vil sevandija, que divertia com landum e modinhas o Conde
de Vila-Flor; e também o Coronel Vilaça, que deveria, por seus crimes vergonhosos (...) ter
sido (...) desterrado para Pedras d’Angoxa”.125 A contraposição entre uma tendência política de
cariz liberal-constitucional e outra, perfilada aos anseios do despotismo ilustrado joanino,
materializava-se em anátemas esgrimidos a nível transatlântico.
No Diálogo, o mestre prevenia o seu discípulo quanto ao presumido Português e à
“perniciosa doutrina desse homem, que nada tem de Português, senão a linguagem, e o título, e
que escapando dos Cárceres da Inquisição, tem exalado o seu ressentimento contra o legítimo
Governo”.126 As “produções luciferinas” e a “pena diabólica” d’O Português seriam
responsáveis pelo “eco desses miseráveis Filósofos, que pretendendo mudar todas as ideias
antigas de Governo, e de subordinação, converteram a França, e toda a Europa em um teatro de
carnagem, e de horror, que infelizmente ainda não está de todo acabado.” 127 Diante do trágico
legado revolucionário, urgia regenerar a França arrasada e combater o porta-voz de um pathos
sociopolítico, na medida em que o referido Rocha Loureiro significava a subversão da própria
identidade nacional portuguesa e, por conseguinte, luso-brasileira, uma espécie de corifeu do
caos e “talvez o primeiro Português, que se atreve a ensinar aos Portugueses debaixo do
122
TENGARRINHA, José. Nova História da Imprensa Portuguesa: das Origens a 1865. Lisboa: Temas e Debates
– Círculo de Leitores, 2013, pp. 185-217.
123
O Português ou Mercúrio Político, Comercial e Literário, Vol. XII. Londres: Impresso por L. Thompson, na
Oficina Portuguesa, 1821, p. 413-414.
124
Ibidem, p. 414.
125
O Português ou Mercúrio Político, Comercial e Literário... Op. cit., p. 414.
126
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Diálogo entre um mestre, e seu discípulo... Op. cit., p. 11.
127
Ibidem, p. 12.
132
especioso véu de zelo pelo Soberano, e pela Pátria, os pestíferos Dogmas de Voltaire, de
Mirabeau, de Raynal, e de Condorcet, a fim de ver fundida a Monarquia.”128
Ao mesmo tempo em que atacava as referências ilustradas presentes nas páginas d’O
Português, Romualdo Seixas repudiava o modo através do qual a folha se referia a Fernando
VII e a Luís XVIII e a “todos os Soberanos legítimos, que protegem a Religião, defendem os
Direitos Majestáticos, e reprimem com a severidade das penas a desenfreada licença de
Escritores tão ímpios como o Redator do Português.”129 O “ódio” e o “estilo violento” destilado
contra o monarca espanhol seriam motivados pelo “restabelecimento da Inquisição”, pela
“abolição da liberdade da imprensa” e pela revogação de “outros pontos da famosa
Constituição, que apenas deixava ao Rei uma sombra de Autoridade, sujeitando-o inteiramente
ao poder do Povo.”130 Além de conferir destaque à ofensiva contrarrevolucionária
protagonizada por Fernando VII a partir de 1814, repudiava a “maneira pouco respeitosa, com
que ele [o redator d’O Português] se explica a respeito da Imortal Maria I”.131
Para o mestre que aconselhava seu discípulo nos Diálogos, os ataques contra d. Maria I
ocorriam “sem dúvida porque” a rainha “foi favorável à Religião, que ela sempre amou, e
defendeu.”132 Os valores do catolicismo romano pareciam estar entre os alvos preferidos d’O
Português, pois: “O maior ataque, que ele faz contra a Religião, que sabe muito bem ser o
fundamento de todo o bom Governo, é sem dúvida quando aconselha (...) a liberdade dos
cultos”.133 Especificamente sobre as mudanças de natureza secular ocorridas durante a
Revolução Francesa, questionava retoricamente: “Que mal pode vir ao Comércio, e Agricultura
da Santificação de alguns dias Santos? Que tem a felicidade do Estado com os Terços, e
Confrarias, que entretém a Devoção do Povo, e mantém pela decência o culto externo o
esplendor da Religião?”134 Nesse sentido, aventava a subserviência do poder civil ao poder
religioso em decorrência das investidas revolucionárias contra as tradições do catolicismo
romano: “E se este furioso Cínico tem tanto zelo, de que tudo se reduza à primitiva simplicidade
do Cristianismo, porque não aconselha também a obediência, e submissão aos Soberanos, que
foi a divisa dos primeiros Fiéis?”135
128
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Diálogo entre um mestre, e seu discípulo... Op. cit., p. 12.
129
Ibidem, pp. 13-14.
130
Ibidem, p. 14.
131
Ibidem, p. 16.
132
Ibidem, p. 16.
133
Ibidem, p. 27
134
Ibidem, p. 32.
135
Ibidem, 32.
133
A autoridade real, por sua vez, seria investida de um caráter divino, na medida em que
a “Voz de Deus nos convence, e persuade” acerca da “Suprema Autoridade absolutamente
necessária para o sossego, e conservação do Gênero Humano”.139 Entretanto, a referida
autoridade absoluta não estaria sujeita aos “caprichos, ou à vontade arbitrária dos Soberanos
como acontece nos Governos despóticos da Ásia.”140 Os monarcas do Ocidente euro-americano
estariam então submetidos a limites “que lhe prescrevem a razão, a equidade, a opinião pública,
o interesse pessoal, e sobretudo a Religião, que ameaça um juízo mais severo, e penas mais
acerbas àqueles, que governam os outros”.141 Ao mesmo tempo, os chefes de Estado deveriam
“respeitar as mesmas Leis do Reino, ainda que não estejam sujeitos ao poder coativo, ou às
penas, que elas impõem.”142 Assim, por mais que seu poder fosse de natureza irresponsável, os
reis deveriam também “seguir as Disposições do Direito Civil em todos os atos da sua
Administração, e submeter-se às Leis fundamentais do Reino, e às do Direito das Gentes.”143
136
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Diálogo entre um mestre, e seu discípulo... Op. cit., p. 33.
137
Ibidem, p. 36.
138
Ibidem, pp. 36-37.
139
Ibidem, pp. 36-37.
140
Ibidem, p. 45.
141
Ibidem, p. 45.
142
Ibidem, p. 45.
143
Ibidem, p. 46.
134
144
BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília: Editora UnB, 1988, pp. 107-115.
145
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Diálogo entre um mestre, e seu discípulo... Op. cit., p. 50.
146
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro... Op. cit., pp. 30-34.
147
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Diálogo entre um mestre, e seu discípulo... Op. cit., pp. 51-52.
148
Ibidem, pp. 52-53.
135
De fato, o jurista e filósofo suíço Emer de Vattel (1714-1767), em sua obra O Direito
das Gentes, fundamental para a consolidação do Direito Internacional, concebeu o direito de
resistência, se bem que diferenciando as “injúrias suportáveis” das “injúrias manifestas e
atrozes”.149 Vattel utilizou o exemplo mítico da tolerância de Davi, com relação a Saul, para
justificar a injustiça deste e pregar a tolerância do patriarca judaico, mesmo exemplo utilizado
por Romualdo Seixas, que comentava “a moderação, e a conduta de Davi perseguido por
Saul”.150 O futuro arcebispo primaz negaria o direito de resistência aos povos e às nações,
afirmando a irresponsabilidade do poder emanado a partir da pessoa do monarca. Entretanto,
em uma perspectiva eclética, apropriando-se seletivamente das teses da Segunda Escolástica,
não deixou de qualificar circunscrições à autoridade real, sobretudo a partir do respeito à
religião. Para o sacerdote paraense, não haveria contradição em afirmar um poder político-
religioso absoluto e, ao mesmo tempo, limitado.
Os ataques ao periódico O Português foram além das análises históricas e provocações
teóricas contrarrevolucionárias, de inspiração conservadora, legitimistas e, em certo sentido,
ciosas do alcance dos poderes papais. Ainda recente, a Revolução Pernambucana povoava a
memória de seus espectadores. Sobre o caráter antimonárquico e acentuadamente republicano
do movimento de 1817, perguntava o discípulo a seu mestre: “E porque triste fatalidade
chegaram os Pernambucanos a esquecer-se destes princípios gravados nos corações de todos os
Portugueses”?151 Para o mestre, a subversão dos textos incendiários era um dos mais fortes
elementos que levaram aos eventos revolucionários: “Sem arriscar as minhas conjecturas, posso
afirmar, que os incendiários escritos do Redator contribuíram ainda mais do que a fome, e os
pretendidos vexames do Governo, para seduzir, e arrastar aqueles desgraçados Povos.”152 Em
um estilo deveras inquisidor, desejava os destinos do padre Roma, fuzilado a mando do
governador da Bahia, ao redator d’O Português: “Oxalá tivessem as suas pregações o mesmo
fim, que deu o Excelentíssimo Conde dos Arcos às do Padre, que os Insurgentes enviaram à
Bahia, para pregar a insurreição, e a revolta!”153
Tal qual Pernambuco, os territórios da América hispânica, em vias de emancipação,
inseriam-se na conjuntura de lutas pela independência contra os poderes metropolitanos
149
VATTEL, Emer de. O direito das gentes. Brasília: Editora Universidade de Brasília: Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais, 2004, pp. 42-45.
150
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Diálogo entre um mestre, e seu discípulo... Op. cit., p. 53.
151
Ibidem, p. 54.
152
Ibidem, p. 56.
153
Ibidem, p. 56.
136
instituídos: “Que fruto tem tirado os Espanhóis da América da sua rebelião contra o legítimo
Governo? A guerra, a desolação das famílias, a miséria, e talvez maior opressão, do que essa,
que pretendem evitar com a independência da Metrópole.”154 Essas lutas seriam supostamente
inócuas em termos práticos e seu saldo final, apenas tragédias: “Que ganharam os
Pernambucanos rebeldes, revoltando-se contra o nosso Augusto Soberano? A infância, e a
desonra inseparáveis da traição, a perda dos bens, e da mesma vida.”155 Refutava não apenas os
radicalismos regicidas, mas o próprio imperativo constitucional e secular, que compunha o
cerne do movimentos constitucionais e liberais de caráter emancipacionista:
pois é certo, que as Constituições dos Governos, bem como as dos Corpos se
modificarão de infinitas maneiras, segundo o clima, o gênio, a Religião, e os costumes
de cada Povo. Seria fácil confirmar esta verdade pelo exame das facções, e guerras civis,
que o zelo da liberdade, e o fanatismo de diferentes Seitas excitaram, na Inglaterra até
a Época, em que a Nação, depondo o Rei Jaime II, fixou os seus Direitos, e prescreveu
mais estreitos limites à Autoridade Real, o que aconteceu no ano de 1689; e daqui era
natural concluir, que tendo os Portugueses vivido sempre felizes, e tranquilos debaixo
do Governo dos seus legítimos Soberanos, que os governam como Pais (pois o mesmo
Redator é obrigado a confessar, que a Casa de Bragança não tem dado nenhum Tirano)
devemos contentar-nos da nossa sorte, e não aspirar a uma perfeição ideal, e
quimérica.157
Ainda que fosse forte a defesa de uma lei assentada sobre pilares conservadores,
alegadamente práticos e tradicionais, em oposição aos abstracionismos jurídico-políticos
racionalistas, a apologia da censura aos impressos surgia a partir de um discurso apegado a
alguns traços absolutismo ilustrado. À “liberdade de imprensa”, haveria “justas restrições, que
154
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Diálogo entre um mestre, e seu discípulo... Op. cit., p. 57
155
Ibidem, p. 57.
156
Ibidem, pp. 58-59.
157
Ibidem, pp. 58-60.
137
lhe tem imposto os Soberanos”, pois aquela “não tem outro fim mais que o de atacar a Religião,
e o Governo, como faz o nosso Redator, grande Apologista daquela liberdade, que ele chama
baluarte da liberdade das Nações.”158 As perseguições inquisitoriais do século XVII, a
exemplo do refúgio de Descartes e a pena capital infligida a Galileu Galilei (1564-1642), eram
atribuídas a uma preocupação excessiva por parte das autoridades político-religiosas,
“especialmente depois de S. Tomás de Aquino, que nada se podia saber mais do que Aristóteles
tinha ensinado, cuja autoridade era tão grande nas Escolas, que combater o Peripatetismo, era
atacar a mesma Igreja, e a Doutrina dos Padres”159 Outra vez, a tradição Escolástica tomista e
aristotélica era refutada pelo discípulo do padre Teodoro de Almeida, fazendo coro a um
absolutismo matizado pelas Luzes, pois “a escritura (...) foi dada por Deus para a edificação
dos costumes” e “não (...) devia conter a solução dos mesmos Problemas de Física, e de
Astronomia”.160
A evocada separação entre as esferas política e científica parecia chegar aos limites da
defesa do próprio regalismo galicano afirmado sob o reinado de Luís XIV, quando: “Repeliam-
se com vigor as pretensões da Cúria Romana, e nas mais iluminadas Assembleias do Clero se
fixavam os limites da Autoridade espiritual, e temporal, e as liberdades da Igreja Galicana.”161
Iluminado também seria o reinado josefino, “no qual a Imprensa não teve certamente liberdade,
que quer o Redator, para se provar, que o progresso das luzes não pode ser embaraçado pela
prévia Censura dos Livros, quando esta é dirigida por um Sábio discernimento, e por uma
Crítica judiciosa.”162 Nesse sentido, a censura da imprensa não implicava refutar certas luzes,
que atingiriam o próprio tribunal da Inquisição reformado por d. José I. Essa reforma da
Inquisição ocorrera a partir do “Alvará de 20 de Maio, e [d] a Carta de Lei de 12 de Junho de
1769”, dos quais resultou uma “Sábia Combinação” entre juízes eclesiásticos e seculares para
formar “um Supremo Tribunal ao mesmo tempo Eclesiástico, e Real”.163 Por fim, ironizava que
um “dos mais insignes Poetas Portugueses” delinquia propositalmente para ir aos cárceres
“matar a fome com a abundante ração, que se ministra aos Presos daquele Tribunal”.164
Em síntese, nos Diálogos, Romualdo Seixas atacou um “infame jacobino” e buscou os
fundamentos de seu argumento em uma perspectiva conservadora, sobretudo em termos
jurídico-políticos, declarando-se inimigo da Revolução Francesa, cujo espírito reencarnaria na
158
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Diálogo entre um mestre, e seu discípulo... Op. cit., p. 67. (grifos)
159
Ibidem, pp. 68-69.
160
Ibidem, p. 69.
161
Ibidem, p. 70.
162
Ibidem, p. 71.
163
Ibidem, p. 76.
164
Ibidem, p. 79.
138
165
CYRIL LYNCH, Christian Edward. Op. Cit., p. 66.
166
Ibidem, p. 66.
167
HORÁCIO, Heiberle Hirsgberg. Apontamentos sobre o embate entre os liberais mineiros e o bispo de Mariana
Frei José da Santíssima Trindade no Primeiro Reinado. Sacrilegens, Juiz de Fora,v.6, n.1,p.60-74,2009, pp. 61 e
65-69.
168
SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op. cit., p. 269.
169
Ibidem, p. 69.
170
SANTIROCCHI, Ítalo. Uma questão de revisão de conceitos: Romanização – Ultramontanismo – Reforma.
Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, vol. 2, no 2,
Agosto/Dezembro de 2010, pp. 25-26.
139
171
ACCIOLY, Hildebrando. Op. cit., pp. 249-258; SOUZA, Salmo Caetano de. A Mediação da Santa Sé na
Questão do Canal de Beagle: um conflito de soberania marítima entre Argentina e Chile. Barueri: Minha Editora,
2008; TONDA, Américo A. Rosas, Corrientes y la nunciatura del Brasil. Rosario: Facultad de Humanidades de
Rosario, 1972, pp. 5-7.
172
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Diálogo entre um mestre, e seu discípulo... Op. cit., pp. 58-60.
173
SANTOS, Israel Silva dos. Op. cit., pp. 66-75; SEIXAS, Romualdo Antônio de. Proclamação da famosa Velha
Amazonas... In: Op. cit., p. 677.
140
bragantina para Lisboa em 1821.174 Pelos idos de 1823, o internúncio sediado em Lisboa,
Guiseppe Cherubini, simpatizante da Vilafrancada (1823) e das movimentações absolutistas em
torno de d. Miguel I (1828-1834), escreveria a Roma ponderando sobre a estima dos brasileiros
com relação a d. Pedro I (1822-1831).175
Em julho de 1826, na sequência do reconhecimento da independência brasileira por
parte de Portugal e de Roma, Romualdo Seixas louvaria o imperador constitucional.176 No
mesmo ano, o então arcediago da sé paraense e deputado à primeira legislatura negaria a
infalibilidade papal. Ao mesmo tempo, defenderia a legitimidade da “Igreja Universal”,
endossando certo conciliarismo no tocante à consolidação dos dogmas, dos costumes e da
definição daquilo que não deveria ser insultado pelas liberdades da opinião.177 Aos bispos,
caberia um papel fundamental, inclusive nas práticas de censura e na definição das penas aos
escritos inconvenientes em matéria de religião: “os Bispos são por direito Divino Juízes natos
da Fé, e só a eles cumpre qualificar, e julgar a doutrina, ou seja em ponto de Dogma, ou de
costumes.”178
Na conjuntura em que Romualdo Seixas proferiu seu discurso, o Estado nacional há
pouco independente, ainda possuía um déficit organizacional em algumas de suas instituições
remanescentes da dinâmica político-institucional erigida sob o Império luso-brasileiro. Além
das dioceses vacantes, situação comum face às recorrentes discordâncias entre os poderes do
século e da Eclésia, a arquidiocese da Bahia encontrava-se sem um primaz. O último arcebispo
da sé arquiepiscopal fora o beneditino frei Vicente da Soledade e Castro (1763-1823), formado
em Coimbra, professor na mesma universidade, deputado pelo Minho às Cortes de Lisboa e o
174
ACCIOLY, Hildebrando. Op. cit., p. 193.
175
A Vilafrancada foi gestada a partir da oposição ao movimento liberal-constitucional das Cortes de Lisboa por
parte dos círculos áulicos de Carlota Joaquina (1775-1830), sediados na Quinta do Ramalhão e liderados pelo
infante Miguel, com base em revoltosos em Vila Franca. Esse movimento, que deu vida ao miguelismo, resistiu à
implementação dos dispositivos legais constitucionais das Cortes, contribuindo para a perseguição aos liberais
mais convictos, a exemplo de Borges Carneiro, e para o restabelecimento da censura aos impressos. Dentre os
principais entusiastas da Vilafrancada, estariam os membros do clero absolutista. A partir de então, as conspirações
contra d. João VI tornaram-se cada vez mais frequentes. Em 1824, os absolutistas, liderados pelo infante Miguel,
protagonizaram a Abrilada¸ com o intuito de reorganizar o governo monárquico e, no limite, depor o monarca.
Após a contenção do novo motim, d. Miguel partiria para o exílio em Viena, no qual viveria em certo ostracismo
político, rompido após a morte do pai em 1826 e a posterior luta pela sua afirmação à frente do trono português.
ACCIOLY, Hildebrando. Os movimentos miguelistas em 1823 e 1824. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Vol. 194, 1947, pp. 8-12; ACCIOLY, Hildebrando. Os primeiros núncios no Brasil... Op. cit., p. 196;
LOUSADA, Maria Alexandre & FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo. Op. cit., pp. 39 e segs.
176
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Sermão recitado perante SS. MM. e AA. II. na missa solene que no dia 2 de
janeiro de 1826 fez celebrar em louvor de Nossa Senhora da Glória a respectiva irmandade, depois da cerimônia
da apresentação do sereníssimo príncipe imperial à mesma senhora. Rio de Janeiro: Imprensa imperial e nacional,
1826, pp. 5-6.
177
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Discursos parlamentares... Bahia: Tipografia de J. P. Franco Lima, 1836, pp.
18-19.
178
Ibidem, p. 22.
141
primeiro a presidir seus trabalhos legislativos.179 Ainda em 1826, Romualdo Antônio de Seixas
foi nomeado sucessor de frei Vicente da Soledade, sendo-lhe conferido um incontestável
protagonismo no processo de consolidação da ordem político-institucional típica do regime
monárquico católico e constitucional brasileiro.
João Dornas Filho, baseando-se em Eugenio Egas, atribuiu a nomeação de Romualdo
Seixas à proximidade do sacerdote com os círculos áulicos, nomeadamente, com a marquesa
de Santos (1797-1867) e seu pai, visconde de Castro (1740-1826), os quais Romualdo
conhecera por intermédio do amigo Albino Gomes Guerra.180 O então arcediago da diocese do
Pará contava ainda com estima e consideração de outras importantes figuras do Império, a
exemplo do visconde de Cairu, do cônego Januário da Cunha Barbosa e de Manoel Jacinto
Nogueira da Gama (1765-1847), o visconde de Baependi.181 Para além da consolidação de
significativos círculos de sociabilidade política e intelectual, o primeiro arcebispo primaz
brasileiro também havia galgado importantes postos na hierarquia eclesiástica e na
administração pública.182 Mesmo munido de uma proeminente atuação no âmbito dos poderes
religioso e secular, diante dos boatos que correram sobre sua nomeação, Romualdo Seixas
negou, em suas Memórias, “a mais atroz de todas as calúnias (...) que eu tinha obtido o
Arcebispado por grande soma paga (nunca se disse a quantia) oferecida à Marquesa de Santos,
a cuja alta influência se atribuíam os mais importantes despachos.”183
Ao que parece, a chegada do clérigo paraense ao mais alto posto eclesiástico brasileiro
deu-se a partir de uma arquitetura de poderes típica das monarquias ibéricas sob o regime do
Padroado e incorporada ao sistema constitucional de 1824, sendo prevista no artigo 102 da
179
Segundo Coelho Dias, frei Vicente da Soledade faria parte de círculos político-intelectuais consolidados entre
os beneditinos, comprometidos com a causa liberal-constitucional vintista e herdeiros da Ilustração. O prelado
português nunca esteve na sede metropolitana de Salvador e redigiu apenas uma pastoral, na qual defendia “a
instrução civil e religiosa, que progressivamente aumenta, e faz de um mundo incógnito, e bárbaro, um mundo
civilizado e polido.” Para o frei, a “Santa Religião Cristã (...) Católica, Apostólica, Romana” e o “Soberano, e sua
Augusta Dinastia” formariam “a genuína ideia de uma Constituição liberal de qualquer Nação Católica, sem
contravir ao Dogma e Moral desta Religião Divina”. Da adesão à constituição resultaria uma “saudável
Regeneração” do império luso-brasileiro. Ver: SOLEDADE, D. Frei Vicente da. Pastoral do arcebispo da Bahia
sobre a instrução cristã e constitucional dos seus diocesanos. Lisboa: Na Oficina de Antônio Rodrigues Galhardo,
1821, pp. 17,21-23 Disponível em:
https://archive.org/stream/pastoraldoarcebi00sole#page/20/mode/2up. Acesso em 04/12/2017; DIAS, Geraldo J.
A. Coelho. O liberalismo e os beneditinos portugueses. Atas do congresso internacional D. Pedro imperador do
Brasil, rei de Portugal. Porto: Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1998,
p. 285-299.
180
DORNAS FILHO, João; AZEVEDO, Fernando de. Op. cit., p. 68. (Nota de rodapé).
181
Manoel Jacinto Nogueira da Gama nasceu em São João del-Rei e bacharelou-se em direito pela Universidade
de Coimbra. Fez carreira militar, foi deputado à Constituinte de 1823 e senador por Minas Gerais, além de ministro
da Fazenda. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. VI), pp. 103-105; SANTOS, Israel
Silva dos. Op. cit., pp. 51-66.
182
SANTOS, Israel Silva dos. Op. cit., pp. 51-66.
183
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Memórias do Marquês... Op. cit., p. 48.
142
Constituição do Império a nomeação dos bispos e arcebispos por parte do imperador. O papa
Leão XII (1823-1829) emitiu a bula de confirmação em 1827, aquiescendo diante da escolha
do imperador, ocasião na qual também transferiu os bispados do Pará e do Maranhão, até então
sufragâneos de Lisboa, para a jurisdição da sé metropolitana de Salvador. 184 Assim, em que
pesem as divagações sobre as práticas que levaram Romualdo Antônio de Seixas ao
arcebispado, sua sagração deu-se em um momento de definição das bases a partir das quais se
assentariam as relações diplomáticas e políticas entre Brasil e Roma, “analisadas dentro de
padrões muito próximos dos que se analisavam as relações com as demais nações europeias.”185
Uma das questões mais delicadas no tocante às relações entre o Brasil e a Santa Sé dizia
respeito à nunciatura, inexistente desde 1821. Em 1826, no rescaldo das tensões que permearam
os acordos pós-Independência entre Brasil e Portugal, a Santa Sé cogitou uma representação
diplomática comum entre Rio de Janeiro e Lisboa e, diante do inicial desinteresse brasileiro,
uma representação de segunda classe.186 Após as cogitações do Papa, o governo brasileiro
decidiu-se por exigir um núncio, temendo “uma diminuição no prestígio, inaceitável.” 187 A
decisão sobre a nunciatura viria em 1827, em um momento deveras tenso no que se referia às
tratativas entre Brasil e Roma, quando iniciavam-se as ofensivas regalistas de Feijó e seus
correligionários na Assembleia.188 Em 1829, Pedro Ostini foi nomeado o primeiro núncio
brasileiro, tendo se assustado com a situação do clero brasileiro, sobretudo por seu
“relaxamento de costumes”, elogiando no entanto o “egrégio” e “zeloso” bispo de Mariana e os
“bons princípios” de D. Romualdo.189
Em meio às rusgas políticas e diplomáticas envolvendo a Santa Sé e o Brasil durante a
primeira legislatura, Romualdo Antônio de Seixas defendeu as pretensões papais, sustentando
a tradicional concepção dos direitos do Padroado como concessão papal.190 Sua apologia às
prerrogativas romanas, na dinâmica social, moral, política e institucional do Império brasileiro,
184
SANTOS, Israel Silva dos. Op. cit., p. 62.
185
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira, Op. cit., p. 326.
186
ACCIOLY, Hildebrando. Os primeiros núncios no Brasil... Op. cit., pp. 213-215.
187
Ibidem, p. 214.
188
Ibidem, p. 216.
189
Segundo Accioly, antes de ser confirmado núncio apostólico, Pedro Ostini foi considerado “persona non grata
para o Imperador”. A indisposição ocorria na sequência da votação das Câmaras sobre a “supressão do Tribunal
da Nunciatura, em consequência do novo Sistema Constitucional estabelecido no Brasil.” De fato, houve a
supressão do Tribunal da Legacia, terceira instância no âmbito da jurisdição eclesiástica, precedido pela Câmara
Eclesiástica e pela Relação Eclesiástica do Arcebispado da Bahia. Após a proposta de supressão, defendida por
Feijó e José Bento, foi aprovada pela Câmara e pelo Senado, sendo o Tribunal extinto e as apelações tornadas sem
efeito em 1830. A Câmara dos Deputados recusou ainda ajuda financeira para a manutenção de Ostini, com qual
Feijó iria se indispor ao exigir a apresentação de credenciais da Sé romana. Ver: ACCIOLY, Hildebrando. Os
primeiros núncios no Brasil... Op. cit., pp. 217, 240-241 ; SOUZA, Françoise Jean de Oliveira, Op. cit., pp. 337-
342.
190
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira, Op. cit., p. 333.
143
não se limitou à Assembleia. Durante o período em que esteve à frente do arcebispado da Bahia,
d. Romualdo Antônio de Seixas seria o porta-voz da oposição às reformas de inspiração
regalista e aos imperativos seculares que fundamentavam certas perspectivas liberal-
constitucionalistas. Em sua primeira Carta Pastoral, no ano de 1828, em que saudava seus
diocesanos, o arcebispo exigia o “zelo” e o “exemplo” dos párocos, para fazer “frutificar, e
crescer a semente que o homem inimigo trabalha por sufocar com a cizânia, alterando o
incorruptível Depósito da Doutrina com as profanas novidades de palavras vestidas do falso
nome da ciência, que a muitos tem feito decair a Fé.”191 Ao defender a importância da doutrina
e da unidade católica romana, repudiava o “intolerável pirronismo” e a “infinidade de Seitas
separando-se do centro da unidade”.192
No documento, Romualdo Seixas ainda faria a defesa do imperador, atribuindo-lhe o
rompimento com as “trevas do sistema colonial” e a posição do Brasil “a par dos Povos mais
adiantados em civilização”.193 Assim, teriam sido promovidos “tantos e tão inapreciáveis
benefícios (...) devidos ao Gênio vasto, e Liberal de um Príncipe suscitado por Deus nos
favoráveis momentos da sua Misericórdia para salvar o Brasil, e manter o esplendor da Religião
Católica Apostólica Romana”.194 Apesar de reconhecer certa veia ilustrada na ação do monarca,
o clérigo paraense chamava a atenção para os principais pontos que desenvolveu ao longo de
sua defesa da religião, da monarquia e de seus embates com as matrizes intelectuais de
inspiração secular. Para atacar os abusos da Revolução Francesa com relação ao contrato entre
o trono e o altar, Romualdo Seixas citava Portalis,195 afirmando:
191
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral I: saudando seus diocesanos. Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit.,
p. 5.
192
Ibidem, pp. 10 e 16.
193
Ibidem, p. 28.
194
Ibidem, p. 28.
195
Jean-Étienne-Marie Portalis (1746-1807) nasceu em Bausset. Estudou entre os oratorianos e formou-se em
direito na universidade de Aix-Marseille. Ainda durantes seus primeiros estudos, publicou críticas ao pensamento
de Rousseau em Observações sobre uma obra intitulada Emílio. Portalis foi um dos protagonistas do processo que
levou à permissão do casamento entre protestantes na França. Preso durante o Terror de 1793, o jurista exilou-se
na Suíça após as perseguições do Diretório ao Conselho do qual fazia parte, a saber, Conseil des Cinq-Cents. Com
a chegada de Napoleão ao poder, voltaria à França e seria incumbido pelo general Bonaparte da redação do Código
Civil de 1804. Ver: PORTALIS. J. - E. - M. De l'Usage et de l'abus de l'esprit philosophique durant le XVIIIe
siècle, par J.-E.-M. Portalis,... précédé d'un essai sur l'origine, l'histoire et les progrès de la littérature française
et de la philosophie, par M. le Cte Portalispp. Paris: Moutardier, 1827, 2-37. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6546761g/f17.image. Acesso em 06/12/2017.
196
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral I: Saudando seus diocesanos. In: Coleção das obras... (Tomo I). Op.
cit., p. 31.
144
A obra citada, Dos usos e abusos do espírito Filosófico durante o século XVIII, fora
redigida em 1807. D. Romualdo utilizaria a própria noção de “abusos” para se referir aos
preceitos combatidos pelo “filosofismo” e pelos “[i] novadores”:
Mas quais serão estes abusos, que tanto aguçam o zelo de uma crítica temerária? Ah!
Sabei amados Filhos, que são os atos, e os monumentos mais veneráveis da Disciplina
da Igreja, o jejum, a abstinência, os votos solenes, o celibato Eclesiástico, o Culto das
Imagens, e Relíquias aprovado pela Igreja, o respeito devido ao Primado do Pontífice
Romano, Pai comum de todos os Fiéis; e finalmente tantos outros objetos da religiosa
veneração de todos os Povos Católicos.197
197
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral I: Saudando seus diocesanos. In: Coleção das obras... (Tomo I). Op.
cit., pp. 32-33. (Grifos do autor).
198
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral II: Acerca da residência dos Párocos; abusos na celebração do
sacrifício da Missa, e administração dos Sacramentos; Missa Paroquial; dispensas dos impedimentos matrimoniais;
e exortando os Párocos a cumprirem o dever de explicar o Evangelho. In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit.,
pp. 48-49.
199
Ibidem, pp. 51-60.
200
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral II... In: Op. cit., p. 63; VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições
primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo Ilustríssimo, e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião
Monteiro da Vide: propostas, e aceitas em o Sínodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do ano
de 1707. São Paulo: Na Tip. 2 de Dezembro de Antônio Louzada Antunes, 1853, p. 74.
201
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral II... In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. Cit., p. 64.
145
ano em que Romualdo Seixas redigiu uma representação afirmando que as dispensas “em regra
pertencem aos Juízes Eclesiásticos”.202
É interessante notar que Romualdo Seixas buscava referências nas tendências
ultramontanas da Contrarrevolução, nomeadamente em Louis de Bonald e Félicité de
Lamennais. Este último teria observado a “incoerência” de Mathieu-Mathurin Tabaraud (1744-
1832), teólogo de inspiração jansenista, quando caracterizava “entrepresas, e usurpações os
atos praticados pela Igreja sobre os impedimentos matrimoniais”.203 Cumpre notar que a
opinião sobre Lamennais, a exemplo de outras opiniões de d. Romualdo, mudaria após a
condenação do teólogo francês pela encíclica Mirari Vos de Gregório XVI. Em 1835, o
pontífice enviaria uma carta a d. Romualdo Seixas, cumprimentando-o pelo combate à
“execranda conjuração, que nesse País por muito tempo lavrou contra a lei do Sacro Celibato”
e exaltando seu “zelo verdadeiramente Pastoral, digno de ser imitado, que haveis manifestado
na defesa, e propugnação de um tão salutar ponto de disciplina.”204 A carta de Gregório XVI
parecia reforçar o combate ao projeto reformista do núcleo moderado. Em 1838, após a renúncia
de Feijó e a ascensão do governo regressista, o arcebispo recorreu a Joseph de Maistre para
refutar os “cismáticos”:
202
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Representação: Dirigida à Assembleia Geral Legislativa. Sobre um projeto de
lei, relativo aos impedimentos, e causas matrimoniais. In: Coleção das obras... (Tomo V). Op. Cit., p. 299.
203
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Representação: Dirigida à Assembleia Geral Legislativa. Sobre um projeto de
lei, relativo aos impedimentos, e causas matrimoniais. In: Coleção das obras... (Tomo V). Op. Cit., p. 293.
204
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Carta do papa. In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit., p. 1.
205
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral XXVI: Na qual, recolhendo-se à Capital da Província, depois
d’extinta a revolta, saúda, e felicita os seus Diocesanos. In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit., p. 279-280.
146
206
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral XXXI: Acerca da residência dos Párocos... In: Coleção das obras...
(Tomo II). Op. cit., p. 4
207
GODECHOT, Jacques. Op. cit., pp 7-14 e 18-21.
208
Charles-Maurice de Talleyrand de Périgord (1754-1838) nasceu em uma família aristocrática do Antigo Regime
francês. Estudou teologia no seminário de Saint-Sulpice e na Universidade de Sorbonne, além de cursar direito em
Estrasburgo. Sua expulsão do seminário, por não cumprir o celibato, não o impediu de iniciar sua carreira
eclesiástica ainda sob Luís XVI. Talleyrand foi um proeminente partidário da Revolução e da Constituição Civil
do Clero, falhando nas negociações diplomáticas com a Inglaterra em 1792 e, na sequência, exilando-se nos EUA
durante o Terror jacobino. De volta à França, entre ascensões e quedas, ocupou por várias vezes o cargo de ministro
das Relações Exteriores, sendo também primeiro-ministro em 1815. De grande habilidade política, Talleyrand
inseriu-se nos círculos da sociabilidade liberal e doutrinária, protagonizando a Restauração a partir de 1815 e
apoiando a Monarquia de Julho em 1830. No ano de 1831, na Pastoral de número XI, Talleyrand surgia ao lado
das “doutas fábulas de um Dupuis, ou de um Volney”. Charles-François Dupuis (1742-1809) e Constantine-
François Chasseboeuf (1757-1820), conde de Volney, desenvolveram obras cuja perspectiva filosófico-teológica
caracterizou-se pelo panteísmo. O primeiro escreveu Origine de tous les cultes, ou religion universelle e o segundo
Les ruines, ambas citadas na Pastoral VIII de 1830. Sobre o livro de Volney, Romualdo afirmava que os “ímpios
Sistemas sobre a pretendida antiguidade do nosso Globo, e Culto alegórico de Jesus Cristo tem sido vitoriosamente
refutados por Bonald na Legislação Primitiva”. Ver: MICHAUD, L. G. Histoire politique et privée de Charles-
Maurice de Talleyrand... Paris : Au Bureau de la Biographie Universelle, 1853, pp. 1 e segs ; SEIXAS, Romualdo
Antônio de. Pastoral VIII: Sobre os Estudos do Clero, e estabelecimento das Conferências Eclesiásticas. In:
Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit., p. 117; SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral XI: Sobre a educação
Cristã, oferecendo aos seus Diocesanos um Compêndio de Doutrina...In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. Cit.,
p. 147; SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral XXXI: Acerca da residência dos Párocos... In: Coleção das
obras... (Tomo II). Op. cit., p. 18.
209
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral XXXI: Acerca da residência dos Párocos... In: Coleção das obras...
(Tomo II). Op. cit., p. 18.
210
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral I: Saudando os seus Diocesanos depois de sagrado. In: Coleção das
obras... (Tomo I). Op. cit., p. 19.
147
também a autores de origem germânica, nomeadamente Leibniz (1646-1716), cuja obra fora
referência para de Bonald, e o “Canonista Van Espen, que de certo não é suspeito”.211 Para
fundamentar sua percepção sobre as “obrigações contraídas por ambos os Cônjuges”, afirmava
que “insignes Jurisconsultos, como (...) Durand de Maillanne, e outros, reconheceram, que elas
em regra pertencem aos Juízes Eclesiásticos”.212 Dentre os liberais doutrinários, as “Expressões
de Mr. Guizot na discussão da famosa Lei da Instrução primária”213 e as “considerações sobre
o gênio dos homens, dos tempos e das revoluções, por Chateaubriand”.214
Ao longo de sua produção, reveladora do teor de sua oratória, Romualdo Antônio Seixas
parecia buscar, não sem ambivalências, certo equilíbrio entre os poderes civil e eclesiástico.
Defendeu o Padroado, encarnado no governo de d. João VI e, após a Independência, na
liderança de d. Pedro I. D. Romualdo estava em contato com os autores e práticas do regalismo
de inspiração conciliarista, galicana e jansenista, o que não o impediu de destacar as
insuficiências do poder temporal no âmbito eclesiástico. Assim, se concebeu alguns dos
princípios do regalismo, repudiou os arroubos mais heterodoxos e radicais, além de reconhecer
a proeminência romana no monopólio dos sacramentos e no exercício das prerrogativas
eclesiásticas. A partir do papado de Gregório XVI (1831-1846) e com ascensão do clero
regalista e liberal, dentre os quais estiveram importantes artífices da hegemonia moderada, o
prelado buscou sedimentar seu posicionamento inspirado na ortodoxia romana e tridentina.
211
Ao tratar Van Espen (1646-1728) por insuspeito, Romualdo Seixas reforçava seu argumento sobre os
impedimentos ao matrimônio, alegando uma ortodoxia compartilhada pelo canonista de inspiração conciliarista,
jansenista e galicana. Ver: PRINTY, Michael. Enlightenment and the Creation of German Catholicism. New York:
Cambridge University Press, 2009, pp. 31-35; SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral II: Acerca da residência
dos Párocos; abusos na celebração do sacrifício da Missa... In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit., p. 51;
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Representação: Dirigida à Assembleia Geral Legislativa... In: Coleção das
obras... (Tomo I). Op. cit., p. 290.
212
Pierre-Toussant Durant de Maillanne (1729-1814), nascido em Saint-Rémy, deputado à Constituinte de 1789 e
membro da Convenção. Maillanne foi personagem central na conformação dos dispositivos sobre as prerrogativas
eclesiásticas no calor dos debates parlamentares durante a Revolução Francesa. Membro do Comitê Eclesiástico
da Assembleia Nacional, Maillanne foi relator e coautor da Constituição Civil do Clero e um dos autores do artigo
sobre o casamento civil. Escreveu, dentre outras obras, o Dictionnaire de droit canonique et de pratique
bénéficiale. Tal qual no caso de Van Espen, o arcebispo brasileiro buscava se apropria de um insuspeito para
fundamentar sua opinião. SEIXAS, Romualdo Antônio de. Representação: Dirigida à Assembleia Geral
Legislativa... In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit., p. 299; ROBERT, Adolphe; BOURLOTON, Edgar &
COUGNY, Gaston. Op. cit. (Cay-Fes), pp. 521-522. Disponível em: https://archive.org/stream/bub_gb_D84-
AAAAYAAJ_2/bub_gb_D84-AAAAYAAJ#page/n5/mode/2up. Acesso em 16/04/2018.
213
Precedia-se a seguinte pergunta: “O que profundamente pensava um ilustre Ministro da França, quando emitia
ardentes votos, para que a atmosfera das Escolas, e Casas de educação fosse toda moral e religiosa?” E a resposta
em seguida: “Ele bem sabia, que oferece o Cristianismo, não presidir ao desenvolvimento intelectual, e à formação
dos primeiros hábitos da infância, será difícil, senão impossível, imprimir-lhe o amor da virtude, e preservá-la dos
escolhos da sedução e do vício.” Ver: SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral XVIII: Despedindo-se dos seus
Diocesanos, para ir tomar assento na Câmara dos Deputados, e persuadindo-lhes o respeito, e obediência às
Autoridades. In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit., pp. 219-220. (Grifos do autor).
214
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral XXVI: Na qual, recolhendo-se à Capital da Província, depois
d’extinta a revolta, saúda, e felicita os seus Diocesanos. In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit., p. 282.
148
CAPÍTULO 4
OS REGALISTAS LIBERAIS E A MODERAÇÃO
1
MOREL, Marco. Op. cit., p. 27.
2
CASTRO, Paulo Pereira de. A experiência Republicana, 1831-1840. In: Op. cit., pp.
3
Segundo Paulo Pereira de Castro, a Sociedade Conservadora da Constituição Brasileira e a Sociedade Federal,
núcleos de sociabilidades de caramurus e exaltados, teriam se unido contra os moderados, que passaram a dominar
o governo regencial após o 7 de abril. No periódico A Aurora Fluminense, Evaristo da Veiga caracterizou a união
entre caramurus e exaltados, alegando que: “Os clamores do Caramuru são o melhor desmentido das gritarias do
rusguento, e o que se pode colher de vociferações tão contraditórias e repugnantes, é que a Administração não
protege nenhum nem outro partido”. Ver: Aurora Fluminense, nº 622 (1), 30/04/1832; CASTRO, Paulo Pereira
de. Op. cit., pp. 21-22.
150
4
BASILE, Marcello. Op. Cit.; MOREL, Marco. Op. cit., pp. 99-147.
5
MOREL, Marco.mOp. cit., pp. 45, 120-124; ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Paris: Gallimard,
1985, pp. 26-31; STARZINGER, Vincent. The Politics of the Center: the Juste Milieu in Theory and Practice,
France and England, 1815-1848. London: Transaction Publishers, 1991, pp. 3-13.
6
MOREL, Marco. Op. cit., p. 124.
7
SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op. cit., pp. 19-44.
8
MATTOS, Ilmar Rohloff. Op. cit., 122-141.
9
O Justiceiro, nº 2, 13/11/1834.
10
Ibidem, nº 2, 13/11/1834.
151
turba dos Anarquistas, a que pareciam ligados, mas com quem não podiam fazer inteira causa
comum.”11 Por fim, os moderados encarnavam o próprio Estado nacional:
Os Moderados (...) não são verdadeiramente um partido, são os representantes dos votos
e da Opinião Nacional: são a mesma Nação. A Regência, o Ministério, os Eleitores, a
Câmara dos Deputados, os Conselhos Gerais, as Câmaras Municipais, as Guardas
Nacionais, todos em sua maioria são Moderados: detestam excessos: querem o bem,
mas sem tumulto, com ordem, e com prudência. Ora a Nação não é um partido; partido
é aquele que d’ela separa-se. Não queremos com isto justificar a conduta dos
Moderados. Os que por sua posição dirigem os Negócios públicos, ainda que bem
intencionados, em nossa opinião, não levam a Nau do Estado ao Porto desejado: cumpre
ser mais ativos, mais resolutos, e menos tímidos. Mas porque os Moderados tenham
errado, tenham sido mesmo desleixados, deveria a Nação abandoná-los para lançar-se
nos braços de seus detratores?12
Diante das rusgas internas que enfraqueciam a heteróclita ala moderada, Feijó ligava os
destinos do Império à própria sobrevivência de seu grupo e, no número subsequente d’O
Justiceiro, afirmava que “a Nação não abandonará jamais os Moderados, porque são
verdadeiros Representantes dos seus desejos”.13 De fato, os moderados protagonizaram um
conjunto de ações relativas à consolidação da estrutura jurídico-institucional do Estado nacional
brasileiro, a exemplo da Guarda Nacional, implementada sob os auspícios do próprio Feijó
quando Ministro da Justiça. Por outro lado, ao mesmo tempo em que sucumbiria o domínio dos
moderados sobre a política imperial, as tensões do período regencial aumentariam ainda mais,
sobretudo, a partir da Cabanagem (1835-1840) e da Farroupilha (1835-1845). Em 1835, o
recém-eleito regente Feijó, reconhecendo as dificuldades no horizonte de seu governo que se
iniciava, alertaria: “No caso de separação das províncias do norte, segurar as do sul e dispor os
ânimos para aproveitarem esse momento para as reformas que as necessidades de então
reclamarem.”14 O apelo à unidade entre as províncias do sul não estaria desprovido de lastro na
realidade política, haja vista a centralidade de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais na
composição do grupo liberal moderado e na arquitetura política do Estado nacional durante os
primeiros anos de sua Independência.15
Ao lado de Diogo Antônio Feijó, estariam outras personalidades de grande importância
para a moderação, muitos deles padres, também do centro-sul do Império, compondo um
11
O Justiceiro, nº 2, 13/11/1834.
12
Ibidem, nº 2, 13/11/1834.
13
Ibidem, nº 3, 20/11/1834.
14
FEIJÓ, Diogo Antônio. Declaração de Feijó para aceitar a Regência. In: SILVA, J. M. Pereira da. História do
Brasil de 1831 a 1840. Rio de Janeiro: Tipografia Carioca, 1878, doc. no 10, anexo, p. 15.
15
OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Op. cit., pp. 23-70.
152
importante núcleo reformista, regalista e liberal. Em Minas Gerais, a elite política provincial
era “heterogênea quanto à sua origem social e quanto à sua formação. Magistrados, fazendeiros,
comerciantes, padres, professores, sobretudo, eram os atores dessa elite.”16 Os sacerdotes
mineiros tiveram um papel fundamental na dinâmica política em diferentes conjunturas desde
os idos de 1820.17 Dentre as lideranças mais proeminentes, destacou-se José Custódio Dias,
eleito para as Cortes de Lisboa, ativo no processo de Independência, alçado à Assembleia
Constituinte de 1823.18 Custódio Dias possuía uma ampla rede de contatos e “por vezes
insinuou o republicanismo”.19 Foi ferrenho opositor de d. Pedro I e, às vésperas da abdicação
do imperador, na casa do referido padre, conhecida como Chácara da Floresta, “reuniram-se,
no dia 16 de março, 23 deputados liberais e o Senador Vergueiro, a fim de redigir uma enérgica
representação ao imperador.”20 Algum tempo depois, a Chácara da Floresta seria palco de outra
conspiração, desta vez envolvendo o líder Diogo Antônio Feijó no episódio do Golpe de Estado
de 1832.
A decisão de empreender uma ruptura com relação à ordem vigente após o 7 de abril de
1831 teve a liderança de Feijó, assessorado, sobretudo, por Evaristo, Custódio, Alencar e José
Bento, e com apoio da maioria da Câmara dos Deputados. Primeiramente, no dia 30 de julho,
Feijó e os demais ministros se demitiram, em seguida, a Câmara dos Deputados declarou uma
sessão permanente e destacou uma comissão que, apesar da demora, elaborou um parecer
orientando a instalação de uma Constituinte. Contudo, houve interrupções na suposta sessão
permanente e, à leitura do parecer, seguiu-se um discurso de Honório Hermeto Carneiro Leão,21
no qual buscava arrefecer os ânimos e apresentar à Regência Trina um pedido para que se
conservasse. Carneiro Leão também ponderava que a reforma na Constituição deveria ser feita
dentro dos trâmites já iniciados e não através da aclamação de um novo texto pela Câmara, a
16
SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op. cit., p. 106.
17
Ibidem, p. 122.
18
José Custódio Dias nasceu em 1767, no povoado de Nazaré, freguesia de Nossa Senhora do Pilar, São João del-
Rei. Ordenou-se no Seminário de Mariana, chagando a ser vigário-geral do bispado sediado na mesma cidade.
Eleito deputado durante as três primeiras legislaturas (1826-1829, 1830-1833, 1834-1837), tornou-se senador em
1835. Ver: SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op. cit., p. 110-111.
19
SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op. cit., p
20
Dentre os deputados ali reunidos, estariam outros sacerdotes de tendência liberal, a saber, Henrique de Resende,
Martiniano de Alencar, Francisco de Paula Barros e Manoel Pacheco Pimentel. SOUZA, Françoise Jean de
Oliveira. Op. cit., p. 240.
21
Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856), marquês de Paraná, natural de Jacuí, Minas Gerais. Formou-se
em direito na Universidade de Coimbra. Desembargador da Relação da Corte, senador, presidente do Conselho de
Ministros e ministro da Fazenda. Honório Hermeto foi também diplomata, conselheiro de Estado e deputado por
Minas Gerais por três legislaturas, além de presidente das províncias de Pernambuco e do Rio de Janeiro. BLAKE,
Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. III), p. 247.
153
Constituição de Pouso Alegre.22 Um novo parecer elaborado no dia 31 de julho, a Regência era
convidada a ficar e nomear um novo ministério. Era o malogro do golpe de julho de 1832.23
Dentre os principais envolvidos na manobra capitaneada por Feijó em 1832 estariam
mais dois padres, cognominados “ultraliberais” por Paulo Pereira de Castro, a saber, o cearense
José Martiniano de Alencar24 e o mineiro José Bento Ferreira de Melo.25 José Bento era um dos
políticos mais influentes da província de Minas Gerais e, ao lado de Custódio Dias, compunha
a liderança da frente política formada pelas “tropas da moderação”. 26 Eleito para a primeira
Junta Governativa de Minas Gerais em 1821, “acusada de anárquica e republicana”,27 José
Bento foi também vereador por Campanha e membro do Conselho Geral de Província, espaço
privilegiado de articulação política entre os círculos provinciais e da Corte.28 Quando exerceu
mandato de deputado, durante as duas primeiras legislaturas da Assembleia Geral, o sacerdote
já possuía uma projeção nacional e sua amizade com Feijó materializava a importância do eixo
Rio-Minas-São Paulo para os liberais moderados e para os anseios reformistas do clero
regalista.29 A imprensa foi um espaço privilegiado de atuação do padre José Bento, através dos
periódicos Pregoeiro Constitucional (1830-1831) e O Recompilador Mineiro (1833-1836). Na
primeira folha, além da oposição ao imperador d. Pedro I, evidenciar-se-ia a defesa de algumas
22
Na Constituição de Pouso Alegre, o Estado nacional brasileiro era “monárquico, hereditário, constitucional e
representativo”. A Assembleia Geral seria composta pela Câmara dos Deputados e pelo Senado eletivo não
vitalício. À Assembleia Provincial caberiam várias atribuições, dentre as quais, nomear os vice-presidentes e “criar
e suprimir empregos da província”, sendo-lhes vedadas prerrogativas sobre os “interesses gerais da nação” e sobre
“quaisquer ajustes de umas com outras províncias”. A nomeação dos presidentes de província e dos bispos ficaria
a cargo do imperador, também responsável por “prover os empregos civis, políticos, e os eclesiásticos sob proposta
tríplice dos prelados.” O poder Moderador e o Conselho de Estado seriam suprimidos, proibindo-se também a
concessão de títulos nobiliárquicos. A regência passaria a ser una e nomeada pela Assembleia Geral. Ver: HOMEM
DE MELO, F. I. M. O golpe de Estado de 30 de julho de 1832. In: Ibidem. Escritos históricos e literários. Eduardo
e Henrique Laemmert, 1868, pp. 15-47.
23
SOUSA, Octávio Tarquínio de. Três golpes de Estado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988,
pp. 82-106.
24
José Martiniano de Alencar nasceu no Ceará em 1798. Ainda seminarista, participou ativamente da Revolução
Pernambucana de 1817. Presbítero do hábito de São Pedro e deputado à Constituinte de 1823, Alencar foi
deportado com os Andradas e, após voltar, foi eleito para a segunda legislatura. Em 1832 foi o primeiro senador
eleito pela Regência Trina permanente. Era pai do escritor José de Alencar (1829-1877), autor de A moreninha,
dentre outros clássicos. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. V), pp. 73-74.
25
José Bento Leite Ferreira de Melo nasceu em Campanha, em 1785. Após completar os primeiros estudos em sua
terra natal, foi para São Paulo, onde estudou no convento do Carmo e ordenou-se em 1809. Em 1810, o então
presbítero intercedeu pela elevação do povoado de Capela do Mandu à condição de freguesia do Senhor do Bom
Jesus de Pouso Alegre que, em 1831, também sob a liderança do vigário José Bento, tornar-se-ia a vila de Pouso
Alegre. O padre Bento seria um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento urbanístico e econômico de
pouso Alegre, exercendo ali suas atividades econômicas e políticas. Ver: SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op.
cit., pp. 111-112; SOUZA, Françoise Jean de Oliveira, Op. cit., pp. 36-41.
26
LENAHRO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil. Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1993, p. 25.
27
SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op. cit., p. 112.
28
OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Op. cit., p. 229.
29
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira, Op. cit., p. 39.
154
Convém pois que os ministros da Igreja desde os prelados até os párocos se aproveitem
do poderoso ascendente, que ainda exercem sobre suas ovelhas, principalmente aquelas,
que se acham mais apartadas da gente instruída, inspirando-lhes amor às novas
Instituições mais pelo exemplo, do que por palavras. Quão depressa a civilização se
dilataria por todas as classes, se os curas d’alma tomassem o trabalho de preparar os
ânimos para recebê-la, já em suas práticas, já mesmo no confessionário, já por uma
conduta decididamente liberal? e quanto se tornaria fácil tudo isto, se os bispos fossem
mais circunspectos, e menos condescendentes em admitir às ordens; abuso igualmente
prejudicial ao Estado, e à Religião? Rem difficilem postulasti [Demanda difícil], dir-
nos-ão todos, e com razão; porque os bispos excetuando-se alguns, são os mais inimigos
da perfeição social, e por isso bem pouco lhes importa ordenar, e empregar na direção
das almas homens instruídos, e bem morigerados; uns fazem consistir suas virtudes em
uma vida toda ascética; outros só cuidam de arrecadar as grossas, e pingues rendas do
bispado, e de aumentar a pompa de seu tratamento tão incompatível com o espírito do
Evangelho, entretanto, que gemem na miséria as órfãs, os presos, &c. Porém nossa voz
se dirige principalmente aos párocos atuais, que não esperam o exemplo dos prelados
para cumprirem os deveres que lhe impõem o seu cargo; a eles é que rogamos em nome
da Sociedade, a quem devem servir como cidadãos, e empregados públicos, que não se
esqueçam de empregar todos os meios a seu alcance para inspirar nos corações de seus
fregueses o amor à liberdade, a obediência razoável, e todos os sentimentos do homem
30
A Sociedade Defensora da Liberdade e da Independência Nacional foi criada em 1831, às vésperas da abdicação
de d. Pedro I e as movimentações em torno de sua consolidação deram-se em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
Gerais. A primeira notícia sobre a criação de uma Sociedade dos Defensores remonta a 29 de março na província
de São Paulo. Em Pouso Alegre, o Pregoeiro Constitucional noticiou a criação de uma Sociedade dos Defensores
da Liberdade e da Independência a 02 de abril. Para Alex Lombello Amaral, a decisão sobre a criação da Defensora
teria partido do Rio de Janeiro, pelos idos de 13 de março, após a famigerada Noite das Garrafadas. Ver:
AMARAL, Alex Lombello. O surgimento da Sociedade Defensora e da Guarda Nacional em Pouso Alegre (1831).
Anais da XXXII Semana de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: 2017, pp. 500-510.
31
Pregoeiro Constitucional, no 15, 27/10/1830.
32
Ibidem, no 25, 01/12/1830.
155
livre; então veremos a civilização brilhar em toda a parte, e o jornalismo conseguir cabal
vitória sobre os prejuízos.33
Cumpre notar a crítica mordaz à figura dos bispos, sobretudo por sua aquiescência diante
das ordens regulares, cujo comportamento seria deletério para a vida política e civil do Império.
Em contraposição ao asceticismo e às preocupações materiais dos bispos e de seus protegidos,
José Bento apelava aos párocos. Esses, na condição de agentes do Estado e parte integrante
daquela sociedade, deveriam pregar: “mais que os mandamentos do catolicismo romano, a
liberdade, a civilização e os limites da obediência.”34 Assim, o clérigo ideal esboçado sob a
pena do padre Bento estaria comprometido com o Estado nacional e não com a disciplina
romana, tal qual deixava transparecer ironicamente no ano de 1831, em um artigo sobre a
legitimidade da Regência e a imprudência de seus opositores caramurus: “Ótima coisa se nos
apresenta um rei Constitucional, um ser neutro. Doce é esta ilusão, mas ela é tão real como
padres celibatários, isto é, pais inábeis para ter filhos: são monstros filhos do delírio”.35
Um dos idealizadores da Constituição de Pouso Alegre abordaria a polêmica questão do
celibato clerical também em seu periódico Recompilador Mineiro no ano de 1834. Na ocasião,
reproduzia do periódico O Novo Farol Paulistano36 a proposta, assinada por José Manoel da
Luz, dirigida ao Conselho Geral de Província de São Paulo,37 para que este reivindicasse ao
bispo, Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade, a dispensa da lei do celibato clerical.38 Segundo
Oscar de Figueiredo Lustosa, o Conselho Geral de Província encaminhou uma Representação
ao bispo Gonçalves de Andrade, “bastante afeiçoado aos padres reformistas”.39 O documento
33
Pregoeiro Constitucional, no 25, 01/12/1830.
34
Ibidem, no 25, 01/12/1830.
35
Ibidem, no 15, 27/10/1830.
36
O Novo Farol Paulistano circulou entre 1831 e 1834, na esteira do periodismo insuflado pelos estudantes de
direito, que passaram a frequentar a pequena cidade de São Paulo. Seus redatores eram José Manoel da Fonseca
(1803-1871) e Francisco Bernardino Ribeiro (1815-1837). O primeiro, nascido em São Paulo, bacharelou-se em
leis na Universidade de Coimbra e foi deputado à Assembleia Provincial, à Assembleia Geral e senador do Império
pela província de São Paulo. O segundo, nascido no Rio de Janeiro, bacharelou-se em Ciências Sociais e Jurídicas
pela faculdade de São Paulo, onde chegou a lecionar direito criminal apesar da pouca idade. BLAKE, Augusto
Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vols. II e V), pp. 409-410, 23; SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., p. 176.
37
O Conselho Geral de Província foi uma instituição prevista na Carta de 1824 e, em 1828, foi implementado
tomando para si muitas das atribuições do Conselho da Presidência. O Conselho da Presidência foi criado quando
da Assembleia Constituinte de 1823 e suas atribuições possuíam um alcance infraestrutural, fiscal e jurídico. Ver:
OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Op. cit., pp. 71-85.
38
De acordo com Carlos Eduardo França de Oliveira, José Manoel da Luz fora eleito para o primeiro Conselho
Geral de Província de São Paulo, no ano de 1828, do qual o então bispo Gonçalves de Andrade seria presidente e
Diogo Antônio Feijó, secretário. Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade era natural da ilha da Madeira, estudou
Cânones em Coimbra e foi o último bispo português à frente da diocese de São Paulo. Quando ocupava o cargo
de vice-presidente da província de São Paulo, ocupou o posto de presidente de província por quase dois anos
durante o primeiro reinado. Fazia parte da base de apoio de d. Pedro I e considerado um desafeto pelos moderados.
OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Op. cit., pp. 30, 77-78
39
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. cit., p. 17.
156
fazia parte de um conjunto amplo de ofensivas, do clero regalista e liberal, iniciadas na Câmara
dos Deputados, em 1827, com a proposta de abolição do celibato de Ferreira França. O segundo
momento da trama deu-se em 1831, com a proposta da Comissão Eclesiástica sobre o
presbitério, a caixa eclesiástica e o matrimônio.40 Destarte, a Representação de 1834, que
considerava o celibato “letra morta”, seria um terceiro momento da saga reformista, findada em
1835 com a proposta de uma Constituição Eclesiástica para a diocese de São Paulo.41
A Representação de 1834, bem como os demais projetos de reforma do clero regalista
e liberal, foi engavetada, apesar de endossada por pareceres favoráveis do cabido diocesano de
São Paulo, da Comissão Eclesiástica da Câmara dos Deputados e por um não menos expressivo
número de sacerdotes de São Paulo instados pelo prelado Gonçalves de Andrade a emitir suas
opiniões.42 A maior resistência sofrida pela peça do Conselho Geral ao bispo de São Paulo foi
por parte de d. Romualdo Antônio de Seixas, que escreveu uma resposta aos argumentos da
Representação a pedido do ministro da Justiça, Aureliano de Sousa Coutinho. Em suma, o
arcebispo primaz argumentou que o celibato “ainda não foi ab-rogado em País, algum, sem que
com ele fosse proscrito todo o Culto Católico”.43 O Estado nacional brasileiro teria um
compromisso com o catolicismo romano na condição de religião oficial, aceitando “as Leis, a
Disciplina e os Cânones recebidos”.44 Outro pretexto dos regalistas desconstruído por
Romualdo Seixas dizia respeito à relação entre supressão do celibato e povoamento do
território, pois, “a população de Países Católicos não é menor que a dos Protestantes”. 45 Além
40
Na ocasião, assinaram o documento, na condição de membros da Comissão Eclesiástica, Feijó, José Bento e
Antônio Maria Moura. Ver: LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. cit.,
pp. 19-25.
41
Seguindo o apontamento de Kátia Mattoso, é importante destacar que a retomada da discussão em 1834 foi um
marco no arrefecimento das demandas do clero regalista e liberal, na medida em que: “Não se falou mais em abolir
o celibato, mas em dispensar aqueles que fizessem a solicitação específica nesse sentido.” Ver: LUSTOSA, Oscar
de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. cit., pp. 14-18 e 26; MATTOSO, Kátia. Op. cit., p.
310.
42
Da Comissão Eclesiástica da Câmara dos Deputados, faziam parte dois padres, João de Santa Bárbara e José
Bento. Em São Paulo, dentre os que emitiram pareceres sobre a questão, além de Diogo Antônio Feijó e Antônio
Maria Moura, estariam os seguintes sacerdotes: Manoel Joaquim do Amaral Gurgel, Marcelino Ferreira Bueno,
Idelfonso Xavier Ferreira, Fidélis Álvares Sigmaringa de Moraes, Joaquim Gomes Monteiro, Joaquim Pereira de
Barros, João Paulo Xavier, Anacleto José Ribeiro Coutinho, Antônio de Pina Vasconcelos, Joaquim José
Rodrigues, Francisco de Paula Oliveira, frei José de S. João Crisóstomo, Frei João do Rosário Soares. Apenas este
último sacerdote emitiu parecer contrário à Representação do Conselho Geral de Província. Ver: LUSTOSA,
Oscar de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. Cit., pp.31-59.
43
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Resposta de D. Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo da Bahia, a um aviso
do Excelentíssimo Ministro da Justiça, exigindo o seu parecer sobre a questão do celibato, suscitada em São Paulo.
In: LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. cit., p. 70.
44
Ibidem, p. 71.
45
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Resposta de D. Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo da Bahia, a um aviso
do Excelentíssimo Ministro da Justiça, exigindo o seu parecer sobre a questão do celibato, suscitada em São Paulo.
In: LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. cit., p. 73.
157
do mais, o casamento não seria uma obrigação imposta, e muitos clérigos não se veriam
impelidos a tal empresa haja vista os seus “encargos” e a falta dos “meios de subsistência”. 46
Distanciando-se de seus questionamentos à infalibilidade papal, ventilado em 1826 e
em consonância com certo episcopalismo conciliarista,47 D. Romualdo Seixas citaria a obra
Ensaios sobre a supremacia do Papa, de autoria de José Ignácio Moreno (1767-1841).48 Após
citar a encíclica Mirari Vos, na qual o papa Gregório XVI rechaçava a sanha anticelibatária
vinda das hostes liberais, o arcebispo alegava que: “o Bispo, que na sua Diocese dispensasse a
Lei do Celibato, formaria uma nova Igreja, ou Seita peculiar, e se constituiria cismático,
apóstata, e excomungado.”49 O arcebispo primaz evocaria ainda Bossuet, ao mesmo tempo em
que repudiava as “novidades religiosas” da Revolução Francesa, um tempo em que o “povo
francês (...) fugia de ouvir missa dos Sacerdotes e Bispos que haviam prestado o juramento à
famosa Constituição Civil do Clero.”50 Ao fim da Resposta, uma perspectiva concebida em um
sentido oposto àquele defendido pelo regalista José Bento, à época membro da Comissão
Eclesiástica da Câmara dos Deputados, em seu periódico O Pregoeiro Constitucional:
46
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Resposta de D. Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo da Bahia, a um aviso
do Excelentíssimo Ministro da Justiça, exigindo o seu parecer sobre a questão do celibato, suscitada em São Paulo.
In: Op. cit., p. 73.
47
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Discursos parlamentares... Bahia: Tipografia de J. P. Franco Lima, 1836, pp.
18-22.
48
José Ignacio Moreno nasceu em Guayaquil e participou do processo de emancipação do Peru, ao lado de
Bernardo de Monteagudo (1789-1825), braço direito do libertador San Martín (1778-1850). Influenciado por
Montesquieu, Moreno defendeu, ao lado de Monteagudo, um projeto para que no Peru fosse erigida uma
monarquia constitucional. Em 1831, sob a influência de Joseph de Maistre, o então arcediago da Sé metropolitana
de Lima escreveria sua obra Ensaio sobre a supremacia do papa, reimpressa em Buenos Aires e Paris. A referida
obra foi composta para combater a perspectiva do clero liberal, que defendia a submissão da Igreja ao novo Estado
nacional. Logo na primeira seção de sua obra, Ignacio Moreno afirmava que: “O primado do Papa (...) não depende
dos novos descobrimentos da razão humana, mas sim das antigas e imutáveis doutrinas da palavra divina.” Ver:
GODOY, Scarlett O’Phelean. El proceso de Independencia en el Perú. In: FRASQUET, Ivana & SLEMIAN,
Andrea. De las independencias iberoamericanas a los estados nacionales (1810-1850): 200 años de história.
Madrid: Iberoamericana, 2009, pp. 123-124; MORENO, José Ignacio. Ensaio sobre a supremacia do papa,
especialmente a respeito da instituição dos bispos. Porto: Tipografia Comercial Portuense, 1843, p. 24; RIVERA,
Victor Samuel. José Ignacio Moreno. Un teólogo peruano. Entre Montesquieu y Joseph de Maistre. Araucaria.
Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades, año 15, nº 29. Primer semestre de 2013, pp. 223–
241; SEIXAS, Romualdo Antônio de. Resposta de D. Romualdo Antônio de Seixas... In: LUSTOSA, Oscar de
Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. cit., p. 75;
49
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Resposta de D. Romualdo Antônio de Seixas... In: LUSTOSA, Oscar de
Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. cit., p. 76.
50
Ibidem, p. 79.
158
Ao contrário da opinião do padre Bento, para d. Romualdo a situação dos padres perante
a sociedade seria de precariedade exatamente porque eram eles concebidos sob o estigma de
funcionários públicos da mais baixa consideração e remuneração. No mesmo ano de 1834, o
debate envolvendo a questão continuaria na Câmara dos Deputados, com um parecer da
Comissão Eclesiástica que refutava a necessidade da lei do celibato. José Bento e os demais
membros da Comissão consideravam “tirânica” a referida lei, afirmavam que o clero brasileiro
“não é miserável”, além de provocar o arcebispo primaz alegando que: “Doloroso é à comissão
ver o primeiro bispo do Brasil, privado dos direitos de metropolitano, de que só o nome
conserva como injúria à sua hierarquia e prejuízo dos fiéis que rege, limitando os mesmos
direitos do episcopado”.52 A resposta de Romualdo viria poucos meses depois, firmando o
posicionamento de defesa da lei e refutando críticas fundamentadas na “arma já mui safada das
falsas Decretais e Ultramontanismo, com que muitos se julgam dispensados de provar o que
dizem.”53
As rusgas entre os representantes do clero reformista e os ciosos defensores das
prerrogativas romanas envolveram círculos políticos, eclesiásticos e intelectuais no centro e nas
províncias do Império, a exemplo das contendas entre o padre Antônio José Ribeiro Bhering e
o bispo de Mariana, d. Frei José da Santíssima Trindade (1820-1835). Ribeiro Bhering nasceu
em 1803, em Ouro Preto, estudou no Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, em Mariana,
51
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Resposta de D. Romualdo Antônio de Seixas... In: LUSTOSA, Oscar de
Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. cit., pp. 80-81.
52
Parecer da Comissão Eclesiástica da Câmara dos Deputados acerca da representação do Conselho Geral de São
Paulo sobre a dispensa do celibato e os poderes episcopais nessa matéria. In: LUSTOSA, Oscar de Figueiredo.
Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. cit., pp. 61-62 e 65.
53
As decretais eram formas de ordenanças papais de alcance geral. Em meados do século IX, diante da ofensiva
aristocrática pela hegemonia do poder sobre a Igreja franca, os representantes do poder romano compilaram uma
série de documentos, atribuídos a papas dos primeiros séculos, com o intuito de legitimar os poderes do pontífice
romano perante os intentos dos poderes temporais. Pela questionável legitimidade dos documentos apresentados,
fenômeno comum durante o medievo, ao referido fenômeno deu-se o nome de falsas decretais, sendo tais
documentos de relativa importância para a legitimação da plenitude do poder papal em diferentes momentos da
história da Igreja. Ver: AZEVEDO, Carlos Moreira de (Org.). Dicionário de história religiosa de Portugal
(Vol.II). Op. cit., pp. 75-76; SEIXAS, Romualdo Antônio de Seixas. Reflexões de Dom Romualdo Antônio de
Seixas, Arcebispo da Bahia... In: LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op.
cit., p. 93.
159
concluindo seus estudos em 1826, quando foi ordenado pelo próprio frei José e passou a
lecionar no mesmo seminário.54 D. Frei José nasceu em 1762, no Porto, onde cursou as
primeiras letras no Seminário episcopal e, aos dezesseis anos, foi para Salvador estudar no
Convento de Santo Antônio, consolidando na Bahia sua carreira política e eclesiástica. Preterido
à Sé de Salvador, Santíssima Trindade foi indicado à Sé marianense por d. João VI e sua
sagração ocorreu em 1820.55 A relação entre o padre mineiro e o prelado português não seria
pacífica, e Ribeiro Bhering seria destituído de sua função em 1829 por ordem de Santíssima
Trindade. Assim, desavenças incontornáveis, publicizadas na imprensa e esgrimidas no
Seminário de Mariana, demarcavam as disputas entre regalistas e romanizados.56
Diante das perseguições políticas, pouco tempo após sua demissão, o padre Bhering
passaria a publicar O Novo Argos, periódico que apresentava, dentre seus objetivos, “transmitir
aquelas doutrinas, que forem mais conducentes com a civilização do povo, sem comprometer
o decoro devido à Religião do Império”.57 Já nos primeiros números de seu Novo Argos, Ribeiro
Bhering defendia uma “educação Religiosa expurgada de fanatismo” e, para sustentar seu
posicionamento, apropriava-se do oratoriano Portalis (1746-1807), redator do Código Civil
napoleônico: “as Leis civis, segundo diz, o Cidadão Francês Portalis, suspendem sim o braço,
mas não tem império sobre a Consciência, a Religião porém comanda o coração adoça os
costumes, e os casa com todas as instituições sociais.”58 O padre mineiro fazia referência ao
mesmo autor utilizado por d. Romualdo Seixas para se contrapor aos supostos abusos do
“filosofismo” e aos ataques desferidos contra a lei do celibato.59 Outro nome utilizado por
ambos os clérigos brasileiros foi o de Doufour De Pradt, que aparecia na epígrafe d’O Novo
Argos e na defesa que o arcebispo primaz fazia da rigidez disciplinar católica. 60 Desse modo,
54
ALMEIDA, Gabriela Berthou de. Op. cit., p. 4.
55
TRINDADE, José da Santíssima, Dom Frei. Visitas Pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-
1825). Estudo introdutório Ronald Polito de Oliveira. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1998, pp. 21 e
segs.
56
ALMEIDA, Gabriela Berthou de. Op. cit., pp. 4-5; HORÁCIO, Heiberle Hirsgberg. Op. cit., pp. 64-66;
TRINDADE, José da Santíssima, Dom Frei. Visitas Pastorais... Op. cit., p. 33; SILVA, Wlamir. Liberais e povo...
Op. cit., p. 168.
57
O Novo Argos, no 01, 10/11/1829.
58
Ibidem, no 05, 10/12/1829.
59
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral I: Saudando seus diocesanos. In: Coleção das obras... (Tomo I). Op.
Cit., p. 31; SEIXAS, Romualdo Antônio de. Resposta de D. Romualdo Antônio de Seixas... In: LUSTOSA, Oscar
de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. Cit., p. 78-79.
60
A referida epígrafe continha o seguinte conteúdo atribuído a de Pradt: “O gênero humano está em marcha e nada
o fará retroceder” (tradução nossa). Dominique-Georges-Frédéric de Riom de Prolhiac Dufour De Pradt (1759-
1837) nasceu em Allanches, fez seus primeiros estudos no Seminário de Saint Flour e construiu uma proeminente
carreira política e eclesiástica, sendo eleito por Rouen, onde era vigário, para os Estados Gerais de 1789. Na
Assembleia Constituinte, aliou-se aos porta-vozes da Corte, contrários aos ideais revolucionários e à Constituição
Civil do Clero, tendo aderido posteriormente aos ideais do liberalismo. De Pradt publicou análises sobre o contexto
das Independências ibero-americanas, especificamente sobre as questões envolvendo a Corte luso-brasileira, no
160
que foi contestado por Hipólito da Costa no Correio Braziliense. Segundo Marco Morel, De Pradt teve ampla
recepção positiva no Brasil durante o processo de Independência e “foi um dos principais (senão o principal)
precursores da Independência brasileira no campo das ideias”. Ver: AGUIRRE ELORRIAGA, Manuel. El abate
de Pradt en la emancipación hispanoamericana (1800-1830). Buenos Aires: Editorial Huarpes S. A., 1946, pp. 1
e segs. Disponível em: https://archive.org/details/elabatedepradten00agui Acesso em 03/01/2018; MOREL,
Marco. O caminho incerto das Luzes francesas: o abade De Pradt e a Independência brasileira. Almanack, v.13,
pp.112-129, 2016.
61
O Novo Argos, no 05, 10/12/1829.
62
Ibidem, no 05, 10/12/1829.
63
Charles Irénée Castel de Saint-Pierre (1658-1743) nasceu no seio de uma família da pequena nobreza normanda.
Órfão aos seis anos de idade e inapto à carreira militar, dedicou-se à carreira eclesiástica e diplomática,
participando das negociações que envolveram o tratado de Utrecht (1712). Saint-Pierre foi grande entusiasta do
pacifismo entre os Estados europeus, pacifismo esse baseado na manutenção do status quo político, territorial e
religioso, através de uma espécie de “Santa Aliança” entre os respectivos soberanos. Tal visão foi defendida na
obra Projeto para tornar perpetua a paz na Europa. Ver: SEITENFUS, Ricardo. O Abade de Saint-Pierre e os
fundamentos das instituições internacionais. In: SAINT-PIERRE, Abbé de. Projeto para tornar perpetua a paz na
Europa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 23-35.
64
O Novo Argos, no 05, 10/12/1829.
65
Ibidem, no 05, 10/12/1829.
66
Ibidem, no 7, 26/12/1829.
67
Ibidem, no 8, 31/12/1829.
161
68
SILVA, Wlamir. Liberais e povo... Op. cit., p. 168.
69
O Novo Argos, no 23, 17/04/1830.
70
Ibidem, no 38, 29/07/1830.
71
Ibidem, no 68, 01/03/1831.
72
Ibidem os, no 09, 08/01/1830.
73
Ibidem, no 74, 15/04/1831.
74
Ibidem, no 74, 15/04/1831.
75
Segundo Werneck Sodré, na Corte, o Diário Fluminense estava à frente de uma imprensa “áulica” e depois
“absolutista”. Ver: SODRÉ, Nelson Werneck. Op. Cit., pp. 110-111.
76
O Novo Argos, no 74, 15/04/1831.
162
federação”.77 Diante da acusação, Bhering exigia que o bispo mostrasse “com documentos que
em Minas Gerais existe um Partido Republicano, que tenta destruir a Religião, e a Constituição,
e se o não fizer deve sofrer a pena da Lei, para não ser caluniador.” 78 Além de negar seu
republicanismo, ao longo das publicações no Novo Argos, o padre Bhering defendeu as
reformas encampadas pelos moderados, baseando-se na manutenção de uma monarquia
constitucional com a ampliação das autonomias provinciais. Para tanto, negava também a ideia,
ventilada pelos caramurus, de que a federação implicaria a independência das províncias, pois,
na verdade, haveria “diversas Províncias separadas, sobre cada uma das quais continua o Poder
Central a exercer uma grande autoridade, como é a federação dos Estados Unidos da América
do Norte.”79
Bhering parecia ser adepto da “monarquia federativa”, descrita no “projeto de Reformas
tal qual foi aprovado pela Câmara dos Deputados”, cuja estrutura seria resumida da seguinte
forma: “O mesmo Trono, a mesma Assembleia Geral continuaria a dirigir os nossos destinos
com a única restrição de serem da exclusiva competência das Assembleias Provinciais os
objetos peculiares, em que ainda hoje superintende a Assembleia Geral.” 80 Assim, ficava
evidente a defesa das autonomias provinciais, sem a exclusão das prerrogativas do governo
central. Bhering simpatizava com um arranjo institucional cujo principal ponto de inflexão era
o Ato Adicional de 1834, reforma da qual um dos principais resultados seria a criação das
Assembleias Provinciais. Para Miriam Dolhnikoff, o pacto firmado sob os auspícios do Ato de
1834 teria caracterizado a dinâmica político-administrativa durante todo o período imperial, a
despeito das interpretações empreendidas, sobretudo em âmbito jurídico, em virtude do
Regresso conservador.81
Como atividade relacionada a essa intensa produção na imprensa, o padre Antônio José
Ribeiro Bhering possuía um gabinete de leituras em sua casa, onde desenvolveu um círculo de
sociabilidades intelectuais, com vistas à propagação do ideário liberal, tão caro aos
moderados.82 O referido sacerdote fazia parte de um clero historicamente integrado às
demandas seculares da vida econômica, civil e política brasileira, sobretudo em Minas Gerais,
77
Diário Fluminense, no 56, 11/03/1831.
78
O Novo Argos, no 74, 15/04/1831.
79
Ibidem, no 157, 17/11/132.
80
O Novo Argos, no 157, 17/11/132.
81
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, pp. 11-
22 e 81-154.
82
SILVA, Wlamir. Liberais e povo... Op. cit., p. 137.
163
83
SAINT-HILLAIRE, Auguste de. Viagem pelas Províncias de Rio de Janeiro e Minas Gerais (Tomo I). São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 154.
84
Ibidem, p. 164.
85
SILVA, Wlamir. Liberais e povo... Op. cit., p. 133.
86
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. O Clero no parlamento
brasileiro (Vol. II). Brasília; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 5 v. 1978 – 1980, pp. 39-40.
164
dos moderados foi Evaristo Ferreira da Veiga, nascido no Rio de Janeiro em 1799.87 Seu pai,
Francisco Luís Saturnino da Veiga, viera de Portugal e abriu uma livraria após se afastar das
atividades de professor primário. Evaristo teve aulas com o pai, frequentou o Seminário de São
José, no Rio de Janeiro e, em 1823, fundou a própria livraria em sociedade com o irmão, João
Pedro da Veiga. Sem formação superior, o redator da Aurora acumulou significativo repertório
de conhecimentos em sua livraria, espaço privilegiado das sociabilidades intelectuais de verve
liberal.88 Evaristo da Veiga foi um dos fundadores da Sociedade Defensora da Liberdade e da
Independência Nacional, além de eleito deputado à Assembleia Geral, de 1830 até sua morte
em 1837, pela província de Minas Gerais, onde nunca esteve.89 Em março de 1831, na sequência
da Noite das Garrafadas, foi responsável por redigir uma Representação a d. Pedro I,
“persuadido de que não são os aduladores, que salvam os Impérios, sim aqueles que tem
bastante força d’alma para dizerem aos Príncipes a verdade, ainda que esta os não lisonjeie.”90
Além de uma das principais lideranças do grupo moderado, Evaristo da Veiga seria,
durante praticamente toda a vida, amigo de Diogo Antônio Feijó, com o qual romperia a
amizade dias antes de falecer.91 Assim, na Aurora Fluminense, houve um espaço significativo
para a defesa das demandas reformistas que compunham a agenda do clero regalista e liberal.
Logo no início das publicações, o tema do celibato clerical seria alvo de análises por parte de
um correspondente cognominado “O Experimentado, amigo dos Rifões”, cujo conselho era
“que de modo nenhum, tocassem no sagrado do celibato Clerical, pois se não lavam da nódoa
de – Hereges – Maçons – Libertinos – Pirilampos do Inferno &c., se acaso pretendem mostrar,
87
Segundo Werneck Sodré, o periódico Aurora Fluminense começou a circular por iniciativa de José Apolinário
de Morais, Francisco Valderato e José Francisco Sigaud, aos quais se juntou o personagem que viria a ser o único
responsável pela publicação até 1835, Evaristo da Veiga. Ver: SODRÉ, Nelson Werneck. Op. Cit., pp. 106-108.
88
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. II), pp. 311-313; SOUZA, Octávio Tarquínio de.
História dos fundadores do Império do Brasil (Vol. V): Bernardo Pereira de Vasconcelos e Evaristo da Veiga. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1972.
89
Entre 1824 e 1855, vigorou o voto proporcional, ou provincial. Os votantes escolheriam os eleitores que, por
sua vez, votariam em um número de deputados equivalente aos assentos referentes à província na Câmara dos
Deputados. Assim, havia espaço para a construção de bancadas com nomes que não passariam por um escrutínio
a nível distrital e por isso precisavam se articular em diferentes partes do território. O voto distrital só passou a
vigorar a partir de 1855, com a chamada Lei dos Círculos, sendo revogado em 1875. Ver: DOLHNIKOFF, Miriam.
Op. cit., p. 225.
90
A Representação resultou de uma reunião da Chácara da Floresta, residência do padre José Custódio Dias e uma
espécie de “bunker” dos moderados. Dentre as personalidades que assinaram a representação, estavam, além do
proprietário, os padres José Martiniano de Alencar e Venâncio Henriques de Resende. Ver: VEIGA, Evaristo da.
Representação dirigida ao Senhor D. Pedro I, Imperador do Brasil, por vinte três Deputados e um Senador,
exigindo uma reparação da afronta, que a nacionalidade tinha sofrido nos dias 13 e 14 de Março de 1831. In:
ABREU E LIMA, J. I. Compêndio de História do Brasil (Tomo II). Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert,
1843, p. 158.
91
Segundo Paulo Pereira de Castro, Evaristo e Feijó mantinham uma “diferença irresolúvel” com relação à
“autodeterminação das províncias (...) que para este era o direito inalienável do qual decorria a própria unidade do
Império e para aquele era uma simples delegação da soberania nacional.” Ver: CASTRO, Paulo Pereira de. Op.
Cit., pp. 50-52.
165
que um ponto de disciplina Eclesiástica pode ser alterado.”92 Em outra ocasião, “Um Jovem
Brasileiro” deixava suas reflexões sobre um “folheto intitulado Celibato &c”, concluindo “que
o Rmo Snr L. G. nenhuma razão tem, e que o Clero deve ser casado.”93 A julgar pelo título do
documento, pelas iniciais do nome referido e pela defesa do “Digníssimo Deputado o Sr. Feijó”,
a referência dizia respeito aos escritos de Luís Gonçalves dos Santos, o padre Perereca. Alguns
números depois, uma referência irônica à contenda travada entre Feijó e padre Perereca sobre
o celibato clerical:
Ouvimos a um bom eclesiástico afirmar que o Sr. Deputado Feijó já está condenado ao
Inferno por haver proposto a abolição da Lei do Celibato; espantados de uma asserção
tão intolerante, perguntamos se este reverendo seria o Sr. Padre Luiz Gonçalves dos
Santos, que não temos a honra de conhecer. Soubemos então que não era esse venerável
canonista, mas sim um Vigário da roça, honrado Pai de famílias, que não gosta das
coisas com escândalos.94
Na Câmara dos Deputados do Brasil faz-se uma proposição muito notável; mandou-se-
a imprimir; e algum tempo depois devia ser tomada em consideração. Tem por fim obter
92
A Aurora Fluminense, nº 6, 07/01/1828.
93
Ibidem, nº 14, 04/02/1828.
94
Ibidem, n° 51, 04/06/1828.
95
Ibidem, nº 93, 19/09/1828
96
Ibidem, nº 94, 22/07/1828.
97
O Globe and Traveller resultou de uma fusão entre o periódico Globe, fundado em 1803, e o Traveller, folha de
propriedade do militar, político e economista Robert Torrens (1760-1864), na qual publicou J. S. Mill (1806-1873)
pela primeira vez no ano de 1822. Torrens adquiriu o Globe e fundou, em 1823, o Globe and Traveller, que teve
em sua edição Walter Coulson (1795-1860), ex-secretário de Jeremy Bentham (1748-1832). Ao longo de sua
história, o Globe passou do radicalismo à moderação whig, chegando a estar sob a influência dos tories na década
de 1860.Ver: DEERING, Dorothy. The London "Globe" of the 1840s and 1850s. Victorian Periodicals Newsletter,
no. 11, [Vol. 4, No. 1] (Feb., 1971), pp. 28–29.
166
do Papa a abolição, do canon, que impõe o celibato ao Clero católico, ou no caso de ser
isto recusado, de isentar a sanção civil de toda a censura eclesiástica, que se pudesse
dirigir contra a violação desta regra. Se a Corte de Roma acede a esta proposição, cuja
impressão só foi combatida pelo Arcebispo da Bahia, será isto o começo de uma
reformação no Brasil.98
A agenda encampada por Feijó e pelos moderados ganhou a simpatia dos liberais
ingleses, de inspiração utilitária, os quais não deixariam de abordar a oposição de Romualdo
Seixas ao reformismo regalista e liberal. Assim, a dinâmica de uma esfera pública transnacional
possibilitou que as discussões sobre a obrigatoriedade do celibato no Brasil alcançassem o
mundo euroamericano. Na Europa, o próprio Globe and Traveller daria destaque às tensões
entre Roma e os novos Estados nacionais recém-emancipados do Novo Mundo:
Eis o primeiro sintoma, que ainda não havíamos observador, de uma tendência da parte
dos Novos-Estados da América, a se separar da Corte de Roma, ou a fazerem uma
mudança importante na disciplina eclesiástica. Não deixa de ser provável que, se a Igreja
de Roma vê a opinião do Novo Mundo, decididamente contraria a sua disciplina, ceda
como tem feito muitas vezes, antes de que correr o risco de ver estas Regiões
Americanas renunciarem inteiramente à sua autoridade espiritual.99
98
A Aurora Fluminense, nº 94, 28/03/1828.
99
Ibidem, nº 94, 28/03/1828.
100
KIDDER, Daniel P. Op. cit., p. 267.
101
El Condor de Bolivia, nº 120, 20/03/1828.
102
Ibidem, nº 47, 26/10/1826.
103
Os decretos de Bolívar foram promulgados enquanto o libertador percorria os territórios do sul do Peru e do
Alto Peru, onde seria estabelecida a República da Bolívia. Assim, os decretos dispondo sobre os bens da Igreja e
do clero regular tiveram efeitos nos dois territórios. Ver: MAZILÃO FILHO, Ageu Quintino. A política pública
167
beatas em enfermeiras: “o governo deveria reunir em Santa Rosa as beatas de Santa Catarina,
para que todas, por meio de um regulamento sensível, se ocupassem, em assistir aos enfermos
do hospital.”104
No Brasil, contra as investidas dos setores mais afeitos à hegemonia disciplinar
eclesiástica da Santa Sé, os regalistas liberais incluiriam, em sua agenda de reformas, o
enfraquecimento e, no limite, a extinção das ordens religiosas. O imperativo de secularização
dos regulares surgiu nas páginas da Aurora Fluminense, que reproduzia as notícias de dois
periódicos moderados de Minas Gerais, O Universal e o Astro de Minas.105 O tema abordado
seria a instrução pública em Minas Gerais, cuja influência dos lazaristas deveria ser evitada:
“Que inimigos de todo o bem lhe não preparem já novos Caraças, e recrutamentos
assoladores”.106 A instituição, com sede na região serra do Caraça,107 deveria ser combatida a
partir do desenvolvimento de instituições seculares de ensino: “Nós acreditamos que a fundação
de um Liceu, ou curso de Humanidades no lugar da Província, que se julgar apto, é de muita
necessidade: até para opor barreira ao espírito monacal que os Caraças vão espalhando por entre
os mineiros”.108 Assim, a imprensa moderada, sediada no eixo centro-sul do Império, promovia
educacional de Simón Rodriguez para Peru e Bolívia. 2017. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de
Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, pp. 83-89.
104
El Condor de Bolivia, nº 51,23/ 11/1826.
105
O Universal começou a circular no ano de 1825, em Ouro Preto e, segundo José Pedro Xavier da Veiga, esteve
sob os auspícios de Bernardo Pereira de Vasconcelos até 1836, passando então a um “antagonismo, que tornou-se
hostilidade vigorosa e tenaz, àquele notável chefe político e estadista.” A partir de então O Universal ficaria a
cargo do liberal moderado José Pedro Dias de Carvalho (1808-1881). O Astro de Minas foi publicado em São João
del-Rei, entre os anos de 1827 e 1839, a cargo de Batista Caetano de Almeida (1797-1839), proeminente líder da
moderação mineira. Ver: AMARAL, Alex Lombello. O Astro de Minas contra a correnteza. 2003. (Monografia)
– Departamento de Ciências Sociais. UFSJ, São João del Rei; VEIGA, J. P. Xavier da. A Imprensa em Minas
Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro preto, Ano III, 1898, p. 202 e segs.
106
A Aurora Fluminense, nº 38, 28/04/1828.
107
O Seminário do Caraça foi criado a partir da herança deixada pelo português, irmão terceiro de São Francisco,
Lourenço de Nossa senhora. Em 1774, o referido personagem, envolto nos meandros hierárquicos da sociedade
colonial luso-brasileira, recebeu permissão para construir um templo. Da ermida construída a partir de esmolas e
doações, o lugar agregou um capelão e alguns irmãos da Ordem Terceira de São Francisco. O fundador da capela
dedicada à Nossa Senhora Mãe dos Homes e São Francisco sofreu resistências, por parte da coroa, em suas
investidas no sentido da instalação de irmãos missionários de Ordens Primeiras em seu eremitério. Em 1790,
Lourenço recebeu um breve do papa Pio VI (1775-1799) para abrir uma irmandade. Em 1792, requereu ao
Conselho Ultramarino a criação da “Irmandade de N. Senhora Mãe dos Homens e de São Francisco das Chagas,
da freguesia de Catas Altas”. Em testamento de 1805, o irmão Lourenço manifestou-se no intuito de legar sua obra
para que se tornasse um “hospício de missionários”. Em 1806, Lourenço e os outros membros da confraria, sob a
vigilância desconfiada das autoridades do Seminário de Mariana, requereram a proteção de d. João VI, herdeiro
da sesmaria adquirida por Lourenço. Com a morte do eremita em 1819, o testamento foi aberto por d. João VI, que
mandou instalar no Caraça um “hospício de missionários”. Ali, instalaram-se os lazaristas franceses. Ver:
BORGES, Célia Maia. Os leigos e a administração do sagrado: o irmão Lourenço de N. Sr.ª e a Irmandade Nossa
Senhora Mãe dos Homens – Minas Gerais, século XVIII. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 21, n. 2, p.
397-414, 2015; CARRATO, Jose Ferreira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1963, pp. 258 e segs.
108
A Aurora Fluminense, Nº 145, 23/01/1829.
168
uma agenda reformista, regalista, liberal e ilustrada, em contraposição aos alegados agentes de
hábitos herméticos, típicos do absolutismo monárquico e do catolicismo ortodoxo.
Em Minas Gerais, o periódico O Universal atracaria os lazaristas do Caraça e, após
tomar os jesuítas por “sacerdotes de Baal e de Belphegor”, valia-se de um questionamento:
“Teremos Jesuítas entre nós? Muita gente sensata o afirma. Será certo que os Caraças são
Jesuítas? Indagai, vigiai-os. Eles, como os Jesuítas, apossaram-se do ensino da mocidade, e
estão-se enchendo de bens, prédios e fazendas.”109 Cumpre notar que o Império brasileiro era
esboçado sob certa subserviência aos ditames das ordens regulares, em um quadro de soberania
deficitária, sem precedentes no histórico do período colonial luso-brasileiro: “Em Minas nos
tempos despóticos nunca houveram [sic] frades, e hoje, em tempo de Constituição, vemos
frades em Minas. É motivo para pensar.”110 A presença dos lazaristas no Império soava como
uma ameaça à própria legitimidade do Estado nacional, resquícios de um jesuitismo combatido
por Pombal:
Será certo, que os Caraças tem, ou tiveram na Secretaria d’Estado uma Bula obtida em
Roma, que os isentava de toda a jurisdição temporal e espiritual do Brasil onde residem?
E que pediram o beneplácito Imperial para ela? Ignoramos. E pode haver autoridade
alguma sobre a terra que possa tal conceder, permitir, ou fazer? E haverá ainda quem
tolere um atentado desta natureza, e quem ouse solicitá-lo em Roma? O caso é tão grave
e importante e de tais consequências para a Igreja e para a Nação, que duvidamos tivesse
lugar este absurdo. Se tal houve, eis aí, os Reverendos Caraças Jesuítas de fato
concedendo ao Papa um poder absolutíssimo na Igreja e no Império, uma superioridade
ilimitada em intensão e extensão sobre todas as coisas criadas: os Soberanos e os
Impérios sujeitos aos Papas; os Bispos meros espantalhos, que verão a cada passo seus
súditos iludi-los, zomba-los, e escarnece-los.111
109
O Universal, no 446, 28/05/1830.
110
Ibidem, no 446, 28/05/1830.
111
Ibidem, no 446, 28/05/1830.
112
Ibidem, no 446, 28/05/1830.
113
Ibidem, no 446, 28/05/1830.
169
jesuítas fizeram escola no interior da própria ordem: “Que podem fazer os Jesuítas? Que fizeram
eles com Pascal, Montesquieu, Voltaire, Rainal que beberam suas lições? Nada. Com os
Jesuítas estudaram as doutrinas com que os combateram e profligaram. Não há que temer
Jesuítas com Imprensa Livre”.114
Um dos principais periódicos moderados de Minas Gerais, o Astro de Minas, também
alvejaria os padres do Seminário do Caraça, insinuando sua “afeição ao jesuitismo”.115
Coincidência ou não, o Astro de Minas tinha entre seus colaboradores o padre José Antônio
Marinho, que concluiu seus estudos e lecionou no Seminário do Caraça.116 Um correspondente
cognominado “O Aldeão” questionou a tese da plenitude do poder papal, defendida pelo diretor
do seminário: “Consta-me aqui com certeza, que o P. Mestre Leandro ex Diretor do Colégio do
Caraça, propagou publicamente nessa Vila, onde estivera há poucos dias, a doutrina de que o
Papa era superior ao Concílio geral, e que sem Papa não há Concílio geral.”117 A defesa do
posicionamento conciliarista seria fundamentada em críticas e também na opinião de um dos
nomes mais proeminentes da referida corrente:
114
O Universal, no 446, 28/05/1830.
115
O Astro de Minas, no 30, 26/01/1828.
116
José Antônio Marinho nasceu em 1803, na freguesia do Brejo Salgado, norte de Minas Gerais. Mulato de
origem humilde, Marinho foi apadrinhado por um próspero fazendeiro, que se incumbira de enviá-lo para Coimbra,
o que não foi possível em decorrência dos conflitos pela Independência. Foi então para o Seminário de Olinda e,
em Pernambuco, envolveu-se na Confederação do Equador em 1824. Por este motivo, teve interrompida sua
carreira eclesiástica no nordeste do Império e voltou para Minas, onde se tornou professor primário particular.
Ainda a expensas de seu protetor, José Antônio Marinho concluiu os estudos no Seminário do Caraça, onde
também lecionou filosofia. Na carreira eclesiástica, foi pároco, pregador e cônego honorário da Capela Imperial,
camareiro secreto de Pio IX, cura do Santíssimo Sacramento da Sé do Rio de Janeiro e comendador da Ordem de
Cristo. Trabalhou na área jurídica, lecionou filosofia em Congonhas, Ouro Preto e São João del-Rei. Com a
ascensão da hegemonia Saquarema, abandonou a política e fundou o Colégio Marinho, no Rio de Janeiro. Foi
ainda vereador, juiz de paz, deputado provincial e geral. Na imprensa, colaborou nos seguintes órgãos de tendência
liberal: Jornal da Sociedade Promotora da Instrução Pública e Constitucional, de Ouro Preto; Astro de Minas,
Despertador Mineiro e Americano, de São João del-Rei; Correio Mercantil, do Rio de Janeiro. Ver: SILVA,
Wlamir. Liberais e povo... Op. cit., pp. 112-114.
117
O Astro de Minas, no 34, 05/02/1828. (Grifos do autor).
118
Ibidem, no 34, 05/02/1828. (Grifos do autor).
119
CULLETON, Alfredo. Op. cit., p. 470.
170
Gerson, o Papa estaria “sujeito às leis divina e natural e, em inúmeros aspectos, às leis humanas,
por exemplo, em questões estritamente terrenas e no exercício da jurisdição espiritual e
temporal”.120 Já o direito natural baseava-se na reciprocidade jurídica entre o governante e seus
governados, princípio estendido ao Papa e a toda a Eclésia.121 Desse modo, o Astro de Minas
evocava um representante das teorias corporativas do poder, que tiveram, como já se informou
nesta tese, amplo alcance no ambiente intelectual luso-brasileiro dos séculos XVII e XVIII,
para embasar as críticas dos liberais regalistas aos acólitos da Sé romana:
Para se tirar toda a dificuldade na convocação do Concílio geral, digo que quando se
trata de depor o Papa, de o repreender, de limitar a sua autoridade: de nenhuma sorte
compete ao Papa a convocação do Concílio geral; mas sim aos Prelados, Cardeais,
Bispos, e Príncipes seculares; de entre os quais se devem escolher alguns, que com a
sua autoridade possam ajudar o Concílio.
Mas por ventura este Concílio geral, a que não preside o Papa, não é superior na
autoridade, superior na dignidade, superior no ofício: porque ao tal Concílio está o Papa
obrigado a obedecer em tudo. O tal Concílio pode limitar o poder do Papa: porque ao
tal Concílio que representa a Igreja Universal, é que foram dadas as Chaves para ligar e
absolver. O tal Concílio pode abrogar os Direitos do Papa: e ninguém pode apelar deste
Concílio. O tal Concílio pode eleger o Papa, privá-lo, e depô-lo. O tal Concílio pode
estabelecer novos Direitos, e abolir os antigos. Pode também fazer Constituições,
Estatutos, e Regras, que sejam imutáveis, e em que não possa dispensar pessoa alguma
inferior ao Concílio. Nem o Papa tem, ou teve jamais poder para dispensar contra os
Cânones Santos dos Concílios gerais, senão quando o Concílio especialmente lhe
permitir por grande causa, que para isso haja. Nem o Papa pode mudar os Estatutos do
Concílio, e nem ainda interpretá-los, ou dispensar contra eles. Porque estes Estatutos
são como Evangelhos, que não admitem dispensa, e sobre os quais não tem o Papa
jurisdição alguma.122
120
CULLETON, Alfredo. Op. cit., p. 482
121
Ibidem, p. 483.
122
O Astro de Minas, no 34, 05/02/1828.
123
Ibidem, no 44, 28/02/1828.
124
Ibidem, no 44, 28/02/1828.
171
Maranhão, Marcos Antônio de Sousa (1771-1842),125 por sua vez, sairiam em defesa dos
missionários franceses.126
Ao disseminar a necessidade de combate ao “jesuitismo” dos padres do Caraça, os
periódicos moderados de Minas Gerais e a Aurora Fluminense desestimulavam o crescimento
da adesão às ordens entre os jovens: “Deus permita que passe quanto antes a Lei proposta na
Câmara dos Senhores Deputados, para por um termo à admissão de gente moça nas ordens
religiosas.”127 As ordens religiosas seriam “viveiros de arrependidos” que não convinham ao
“nosso estado de civilização”.128 Entre as ofensivas dos liberais regalistas em relação às ordens
religiosas, estaria a proposta de apropriação de seus bens para sanar dívidas do Estado ou
mesmo erigir espaços de ensino, em um diapasão próximo às iniciativas de Simón Bolívar no
Peru e na Bolívia.129 No Brasil, da transição do Primeiro Reinado para as Regências, de acordo
com Françoise Jean, o desfecho de tais discussões foi “uma legislação que disciplinava a
atividade e os bens das Ordens religiosas vedando-lhes a admissão de noviços e a obediência
aos superiores no estrangeiro.”130
O clero liberal e regalista, mobilizado na dinâmica da imprensa moderada que se
consolidava no centro-sul do Império, esboçou uma agenda ligada diretamente ao papel da
Igreja e de seus representantes no âmbito do contrato coletivo. A defesa da submissão das
ordens religiosas aos poderes seculares relacionava-se a uma articulação de ações, das quais
derivariam uma reestruturação administrativa e financeira do próprio Estado nacional e da
Igreja brasileira.131 Nesse enquadramento, surgia também o já referido projeto, apresentado no
125
Marcos Antônio de Sousa nasceu na cidade da Bahia em 1771. Na mesma capitania em que nasceu, fez seus
estudos secundários e iniciou sua carreira eclesiástica. Em 1820, foi eleito deputado às Cortes de Lisboa,
defendendo a Independência quando da iminente ruptura do Reino Unido. Durante a primeira legislatura, fez coro
a d. Romualdo Seixas na defesa das prerrogativas tridentinas. D. Marcos foi o primeiro bispo indicado por d. Pedro
I, em 1826, e sua confirmação pelo papa Leão XII ocorreu em 1827. SILVA, Joelma Santos da. Entre a Igreja e o
Império: D. Marcos Antônio de Sousa, o primeiro bispo do Brasil independente. SÆCULUM - REVISTA DE
HISTÓRIA [33]; pp. 49-69, João Pessoa, jul./dez. 2015.
126
O Astro de Minas, no 45, 01/03/1828; no 59, 03/04/1828; no 80 22/05/1828; no 88, 10/06/1828.
127
A Aurora Fluminense, nº 48, 28/05/1828.
128
Ibidem, nº 48, 28/05/1828.
129
MAZILÃO FILHO, Ageu Quintino. Op. cit., pp. SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Op. cit., p. A Aurora
Fluminense, nº 66, 11/07/1828.
130
Na década de 1850, o problema das ordens religiosas novamente tomaria fôlego na esfera pública, a partir da
ação de Nabuco de Araújo, cujo resultado foi “cassar as licenças concedidas para a entrada de noviços em todos
os conventos do Império até que fosse assinada uma concordata com a Santa Sé, o que nunca chegou a acontecer.”
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Op. Cit., p. 346.
131
Cumpre sempre lembrar o caráter histórico da indisposição com as ordens regulares no território brasileiro,
sobretudo com relação aos jesuítas. No caso do período posterior à Independência, o debate teve início em
setembro 1827, por iniciativa de Ferreira França, que propôs o fim do celibato e da admissão de noviços. Em
outubro do mesmo ano, Feliciano Nunes Pereira (1785-1840) apresentou uma proposta para proibir a admissão de
frades estrangeiros no Brasil e para fixar em 50 anos a idade mínima para que noviços brasileiros fossem admitidos
nas congregações e conventos. Na ocasião, o deputado Paula Souza (1791-1852) apresentou uma emenda segundo
172
O Exmo Bispo continuava a ser reconhecido patrono do Telégrafo, que cada vez está
mais estúpido. Em uma Pastoral última S. E. R. atribui à desenfreada liberdade dos
nossos tempos o desacato cometido na Igreja de N. S. de Nazareth do Inficionado:
porém nós supomos que esse atentado nada tem com liberdade, e que n’outros, saudosos
tempos eram muito mais comuns semelhantes delitos.138
a qual estariam proibidos frades, congregados, ordens ou corporações estrangeiras de qualquer denominação.
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Op. Cit., pp. 342 e segs.
132
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Op. Cit., pp. 342 e segs.
133
A Aurora Fluminense, nº 63, 04/07/1828.
134
Ibidem, nº 156, 20/02/1829.
135
Na estrutura eclesiástica herdada do período colonial, cujo núcleo central era o arcebispado da Bahia, as capelas
filiais estavam subordinadas às igrejas matrizes das paróquias que, por sua vez, respondiam às dioceses. Ver:
CORBALAN, Cléber Roberto Lopes. A Igreja Católica na Cuiabá Colonial: da primeira Capela à chegada do
primeiro Bispo (1722-1808). 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, pp. 34 e segs.
136
ALMEIDA, Gabriela Berthou. Jogos de poderes: o seminário de Mariana como espaço de disputas políticas,
religiosas e educacionais. 2015. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, pp. 36 e segs; AZZI, Riolando. Igreja e Estado em Minas Gerais: crítica
institucional. Síntese. No 38, pp. 23-52, 1986, pp. 30-31; LUZ, Estevão de Melo Marcondes. Incendiárias folhas:
ação política e periodismo na trajetória do Padre Antônio José Ribeiro Bhering (1829-1849). 2016. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, pp. 34 e
segs; TRINDADE, José da Santíssima, Dom Frei. Op. cit., pp. 26-27.
137
O Universal, no 241, 26/01/1829.
138
A Aurora Fluminense, nº 428, 24/12/1830. (Grifos do autor).
173
139
LUZ, Estevão de Melo Marcondes. Op. cit., pp. 155-156.
140
O Novo Argos, no 137, 03/07/1832.
141
Ibidem, no 137, 03/07/1832.
142
Ibidem. no 137, 03/07/1832.
143
Carneiro da Cunha nasceu em Pernambuco e esteve entre os revoltosos de 1817, o que lhe rendeu uma prisão
até o ano de 1821. Foi eleito à Constituinte de 1823, ocasião em que participou dos debates sobre a instrução
pública e a criação de uma universidade. Ver: FERRONATO, Cristiano. A Instrução Pública na Província da
Parahyba do Norte: A Influência da Família Carneiro da Cunha – 1823-1874. Revista Tempos e Espaços em
Educação, UFS, v. 1, p. 21-32 jul./dez. 2008, pp. 9-10.
144
A Aurora Fluminense, nº 560, 23/11/1831.
145
Antônio Borges da Fonseca nasceu em 1808, na cidade da Paraíba. Estudou no Liceu Pernambucano e no
Seminário de Olinda, graduando-se em direito pela Universidade da Alemanha. Borges da Fonseca teve discreta
participação na Confederação do Equador. Em Pernambuco, fundou a filial da sociedade secreta Jardineira ou
Carpinteiros de São José, que se opunha à associação caramuru Colunas do Trono e do Altar. Entre 1828 e 1869,
redigiu mais de vinte e cinco periódicos na Corte, na Paraíba e em Pernambuco, dentre os quais um dos mais
famosos seria O Repúblico. Em 1848, Antônio Borges da Fonseca perfilou-se aos praieiros, sendo por isso
condenado a uma prisão perpétua anistiada em 1851. Ver: BASILE, Marcelo. Op. Cit., pp. 133-135; FONSECA,
174
Silvia C. P. Brito. O ideário republicano de Antônio Borges da Fonseca. Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História – ANPUH. São Paulo, julho 2011, p. 1.
146
A Sociedade Federal foi organizada pelas forças exaltadas e erigiu-se na esteira do associativismo político
protagonizado pela Sociedade Defensora dos moderados. Tais círculos político-intelectuais contribuíam para a
emergência e a consolidação de “sociabilidades públicas”, em contraste com as “entidades secretas” típicas de uma
esfera pública ainda marcada por práticas do absolutismo. Este era o caso da maçonaria que, mesmo tendo abrigado
as fileiras da Ilustração, originou-se e desenvolveu-se sob o signo de certo hermetismo. A Sociedade Federal surgiu
primeiramente em Pernambuco e Bahia, depois em São Paulo e na Corte, mobilizando os porta-vozes de uma
reforma constitucional com vistas a uma “monarquia federativa”. A defesa de uma maior autonomia em âmbito
provincial e municipal foi o princípio norteador da Sociedade Federal que, no limite, originou-se de certo consenso
exaltado sobre tal necessidade. Ver: BARATA, Alexandre Mansur. Op. cit., pp. 15 e segs; BASILE, Marcello.
Op. Cit., pp. 228-250; SODRÉ, Nelson Werneck. Op. Cit., p. 121-123; SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Op.
Cit., pp. 105-106.
147
SODRÉ, Nelson Werneck. Op. Cit., p. 136.
148
A Aurora Fluminense, nº 560, 23/11/1831.
149
Bússola da Liberdade, no 31, 12/10/1831.
150
Diário de Pernambuco, no 244, 14/11/1831.
151
A Aurora Fluminense, nº 560, 23/11/1831.
175
A julgar pelo texto do deputado Carneiro da Cunha, a reforma concebida pela Câmara
contemplaria uma arquitetura equilibrada dos poderes e incidiria também sobre o
preenchimento dos cargos atinentes à hierarquia eclesiástica. A propalada federação dos
exaltados não traria benefícios ao Império, na medida em que a própria unidade dependeria do
monopólio de algumas escolhas por parte da Corte. Ao poder central caberia conduzir as
“relações exteriores” e, longe de abusos partidários provinciais, controlar os postos hierárquicos
mais altos: “Sobre a necessidade de federação já; que fruto se tiraria daí, e que vantagens (...)?
A nomeação de um Presidente, de um Bispo, e de um chefe da Junta da Fazenda? Conseguir-
se-ia um melhor presidente, do que o já nomeado? Não.”152 A resposta da Bússola da Liberdade
a Carneiro da Cunha viria detalhada, explicitando suas divergências quanto aos aspectos
fundamentais da reforma debatida:
152
A Aurora Fluminense,nº 560, 23/11/1831.
153
Bússola da Liberdade, no 54, 22/01/1832. (Grifos do autor).
154
Ibidem, no 54, 22/01/1832. (Grifos do Autor).
155
Ibidem, no 53, 20/01/1832. (Grifos do autor).
176
156
Bússola da Liberdade, no 54, 22/01/1832. (Grifos do autor).
157
Diário de Pernambuco, no 283, 11/01/1832. (Grifos do autor).
158
Bússola da Liberdade, no 59, 07/02/1832.
159
Ibidem, no 117, 15/08/1832.
160
SEIXAS, Romualdo Antônio de Seixas. Reflexões de Dom Romualdo Antônio de Seixas, Arcebispo da Bahia...
In: LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. Cit., p. 93.
161
Bússola da Liberdade, no 59, 07/02/1832.
177
dentro dos limites de uma sociedade escravocrata e com forte presença dos valores
remanescentes do Antigo Regime. Nas páginas da Aurora Fluminense, sob influência de Feijó,
defendia-se a responsabilização civil do clero, com a supressão de foros privilegiados, 162 além
da secularização do contrato do casamento, o que permitiria estender a cidadania brasileira aos
colonos protestantes.163
Síntese dessa perspectiva de um clero concebido sob a égide de uma cidadania secular,
em certo sentido supra-religiosa, foi dada por Pedro de Alcântara de Cerqueira Leite.164 quando
defendeu seu irmão, padre José Cerqueira Leite, das acusações de “ateu” e “republicano”,
desferidas pelo periódico O Verdadeiro Caramuru.165 Nas páginas da Aurora, Cerqueira Leite
afirmava: “nosso Clero acompanha o espírito do século, que não tem privilégios, nem interesses
diferentes dos da totalidade da Nação, e que constantemente em geral é afeto ao sistema
Liberal.”166 Assim, os regalistas liberais almejavam empreender reformas que fizessem jus à
própria realidade secular do clero no Brasil, adequando o ordenamento jurídico-eclesiástico
vigente às práticas retratadas de modo preciso por Auguste de Saint-Hillaire:
162
A cobertura da Aurora sobre a questão do foro privilegiado foi feita a partir das discussões que dividiram Feijó
e d. Romualdo na Assembleia Geral, nas quais o padre de Itu defenderia que a punição de crimes contra a religião
não poderia ser de natureza secular. Já d. Romualdo defendia que o clero não poderia ser apartado do direito de
impor sanções temporais aos crimes de blasfêmia, sustentando um posicionamento baseado na teoria tridentina da
Igreja como sociedade perfeita e também no princípio, caro ao Antigo Regime, de que à Igreja caberia auxiliar e
legitimar os poderes do Estado monárquico. Ver: SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Op. Cit., pp.355 e segs; A
Aurora Fluminenses, nº 211, 10/07/1829; nº 213, 15/07/1829.
163
O projeto sobre a secularização do contrato matrimonial era do então senador Nicolau Campos Vergueiro (1778-
1859), para quem “ao Poder Temporal tocava regular o contrato, e à Igreja o sacramento”. Em consonância com a
opinião de Feijó, o projeto visava desvincular o contrato civil do sacramento religioso, pois “negar a necessidade
d’uma Lei, que regula o matrimônio dos não-católicos, era entregar esses Cidadãos, e Colonos, que vieram para o
ser, à necessidade do concubinato, à privação de direitos, de que gozam os outros Cidadãos”. Citando a
“imoralidade” e a “desordem social” que resultariam da negação do contrato aos cidadãos-colonos, o periódico
moderado sublinhava ironicamente as informações obtidas através do discurso de Vergueiro, pois, “a sabedoria
do Senado cedeu às observações canônicas do Sr. Conde de Lages, e ao arbítrio um pouco ultramontano do Sr.
Visconde de Cairu.” Ver: A Aurora Fluminense, nº 217, 24/07/1829.
164
Pedro de Alcântara Cerqueira Leite nasceu em 1807, na região de Barbacena. Formou-se em direito em 1833,
foi eleito para cadeiras na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e na Câmara dos Deputados (1838-1848). Juiz
municipal, desembargador e presidente da província de Minas Gerais (1864-1865), perfilou-se aos liberais e
cultivou longeva amizade com Teófilo Otoni (1807-1869). Na ocasião da revolta liberal eclodida em São Paulo e
Minas Gerais, no início da década de 1840, o futuro barão de São João de Nepomuceno posicionou-se contra o
recurso às armas. Segundo Cristiano Otoni (1811-1896), irmão do referido Teófilo Otoni, Cerqueira Leite teria
sido um “Partidário liberal extremado, deixou no parido os mais edificantes exemplos de lealdade e interesse”.
OTTONI, Cristiano Benedito. Um varão justo: Pedro de Alcântara Cerqueira Leite. RIHGB, t. 47, v. 68, pt. 1, p.
147-155, 1884.
165
A Aurora Fluminense, nº 859, 03/01/1834.
166
Ibidem, nº 859, 03/01/1834.
178
167
SAINT-HILLAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 164.
168
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império... Op. Cit., p. 10.
169
Cumpre lembrar que a imprensa moderada na Corte tinha presença marcante já em 1826, com a Astréa e com
a Aurora Fluminense, em 1827. Em sua sétima edição, a Aurora já destacava o “sistema da moderação, que
adotamos, e que no nosso modo de pensar é a verdadeira divisa dos verdadeiros Liberais.” Ver: BASILE, Marcello.
Op. Cit., pp. 24-41; A Aurora Fluminense, nº 07, 11/07/1828.
170
Em seu clássico Mitos e mitologias políticas, Raoul Girardet utilizou o exemplo do “complô jesuítico”, para
tratar do primeiro de seus quatro conjuntos mitológicos, a “conspiração” – os outros três seriam a “idade de ouro”,
o “salvador” e a “unidade”. Ver: GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, pp. 12.
171
A Aurora Fluminense, nº 02, 24/12/1827. (Grifos do autor).
172
HOBSBAWM, Eric. Op.cit., pp. 100 e segs.
173
A Aurora Fluminense nº 02, 24/12/1827.
174
Ibidem, nº 02, 24/12/1827.
175
Ibidem, nº 02, 24/12/1827.
179
176
BAUBÉROT, Jean & MATHIEU, Séverine. Op. cit., pp. 130-131 e 147-149; WEILL, Georges. Op. cit., p. 23.
177
BAUBÉROT, Jean & MATHIEU, Séverine. Op. cit., p. 149.
178
A “famosa Congregação, frequentemente denunciada” foi “fundada em 1801, dissolvida em 1809 e
reconstituída em 1814”. Seu surgimento deu-se na conjuntura específica do Primeiro Império, período no qual
organizaram-se “diversas associações clandestinas ou semiclandestinas consagradas à causa da Contrarrevolução
e da reconquista católica”. A Congregação fomentou a oposição ao “complô jesuítico”, sobretudo nos anos 1820,
no momento da Restauração, quando “a oposição liberal inicia um combate particularmente áspero contra o
ministério Villèle.” Ver: GIRARDET, Raoul. Op. cit., pp. 50-52.
179
A “Lei do Sacrilégio” tratava das violências contra igrejas, templos e sinagogas, punidas com a reclusão. Já a
profanação das hóstias consagradas seria punida com a pena de morte. A lei mantinha o quadro dos cultos
juridicamente reconhecidos, enquanto impunha “como verdade legal uma doutrina católica.” Ver: BAUBÉROT,
Jean & MATHIEU, Séverine. Op. cit., p. 149.
180
A Aurora Fluminense, nº 23, 7/03/1828.
181
Denis Antoine-Luc, conde de Frayssinous, bispo de Hermópolis, cânone de honra da Igreja de Paris, par da
França, comandante da ordem do Espírito Santo, sucessivamente grande mestre da Universidade e ministro dos
Assuntos Eclesiásticos, premier autônomo dos reis Luís XVIII e Carlos X, um dos quarenta da Academia Francesa,
180
nasceu em Curieres, em 9 de maio de 1765. Fez seus primeiros estudos em um antigo noviciato de jesuítas e
desenvolveu sua vocação eclesiástica na comunidade de Laon, dirigida pelos padres de Saint-Sulpice. Sob
Napoleão, entre 1809 e 1814, foi proibido de fazer pregações e exerceu funções no Conselho Universitário.
Durante o reinado de Luís XVIII, tornou-se bispo e rezou a oração fúnebre do referido monarca. Apoiava
corporações de ensino com inspiração de “doutrina cristã e de outras”, sendo acusado de chefiar as pretensões
políticas do cognominado “partido jesuítico”. Ver: HENRION, Mathieu Richard Auguste. Vie de M. Frayssinous,
évêque d'Hermopolis (Tomos I e II). Paris : A. Le Clere : 1844, pp. 181-182, 620 e segs. Disponível em :
https://archive.org/stream/viedemfrayssinou01henr#page/4/mode/2up. Acesso em 15/02/2018 WEILL, Georges.
Op. cit., p. 35.
182
A Aurora Fluminense, nº 25, 14/03/1828.
183
WEILL, Georges. Op. cit., p. 39.
184
LOUSADA, Maria Alexandre & FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo. Op. cit., pp. 39 e segs.
185
LEÃO XII. Quo Graviora. 13/03/1825, p. 1. Disponível em http://w2.vatican.va/content/leo-
xii/it/documents/bolla-quo-graviora-13-marzo-1825.html Acesso em 16/02/2018. (Tradução nossa, grifos do
autor).
181
186
A Aurora Fluminense, nº 02, 24/12/1827.
187
Ibidem, nº 26, 17/03/1828.
188
Ibidem, nº 02, 24/12/1827.
189
LOUSADA, Maria Alexandre & FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo. Op. Cit., p. 82.
190
A Aurora Fluminense, nº 02, 24/12/1827.
191
Ibidem, nº 52, 06/06/1828.
192
Ibidem, nº 52, 06/06/1828.
182
De certo é D. Miguel um Príncipe, que tem sido bem mal inspirado, e que se acha em
uma séria situação, quanto ao presente, e quanto ao futuro. Para sair-se bem de seus
intentos, foi-lhe preciso separar-se de todas as luzes do seu País; as de Portugal
concentram-se em Lisboa e Porto: Coimbra tem alguma ciência escolástica: a massa do
Povo assemelha-se à de Constantinopla, de Calabria, e de Castela. Tanto de uma como
de outra parte a cultura do espírito é feita por Imans e por Frades, com igual sucesso.
Na Espanha todo o litoral, comerciante, comunicando-se com estrangeiros, ocupado
com o comércio, propendendo para a indústria, quer instituições; todo o interior das
terras, sem relações com ninguém, separado do resto do mundo, não recebendo outro
impulso senão o dos Frades, parecendo enfim um grande convento, diz que as
instituições novas são heresias; que os seus apaixonados são pedreiros-livres; Portugal
está no mesmo adiantamento. Na Espanha, e em Portugal os absolutistas apoiam-se na
populaça, dizem que ela é a parte forte da Nação, e que a sorte do Estado deve ser
decidida por homens, que em destes dois países chamam em seu socorro o braço popular
contra a civilização.195
193
A Aurora Fluminense, nº 52, 06/06/1828.
194
Ibidem, nº 52, 06/06/1828.
195
Ibidem, nº 55, 16/06/1828. (Grifos do autor).
196
Ibidem, nº 55, 16/06/1828.
197
TENGARRINHA, José. Paysannerie et Contre-Révolution au Portugal. In: Op. cit., pp. 3-5.
183
198
Antes de ser reconhecido por Espanha (1829) e Santa Sé (1831), o governo de d. Miguel I o fora pelos Estados
Unidos da América e pela Rússia. Ver: PEREIRA, Miriam Halpern. Do Estado Liberal ao Estado-Providência:
um século em Portugal. Bauru: 2012, pp. 82-84; EDUSC A Aurora Fluminense, nº 36, 21/04/1828.
199
Joaquim de Menezes e Ataíde nasceu no Porto, em 1765, professando a regra de Santo Agostinho já em 1781.
Foi reitor do Colégio Santo Agostinho em sua província, bispo de Meliapor (1804), vigário capitular de Funchal
(1811) e bispo de Elvas (1821-1828). Durante o regime liberal, sofreu perseguições por suposta oposição ao
sistema constitucional. Após a outorga da Carta, em 1826, saiu em defesa do liberalismo constitucional, chegando
a ser “arguido de ultra-liberal” e suspeito de participação nos “alvoroços de julho de 1827, que segundo então se
faziam crer, tendiam nada menos que a estabelecer a República em Portugal!!!” Após a subida de d. Miguel ao
trono, temeroso de perseguições, homiziou-se em Gibraltar, onde morreu pela peste em 1828. Ver: SILVA,
Inocêncio Francisco da. Dicionário Bibliográfico Português (vol. IV). Op. Cit., pp. 133-134; A Aurora
Fluminense, nº 36, 21/04/1828.
200
O deão era uma dignidade eclesiástica criada no século VIII para substituir o arcediago, de recorrente ausência,
na chefia do cabido. As colegiadas reuniam dignidades eclesiásticas instituídas e tinham peso no organograma
institucional da Igreja portuguesa, sendo a colegiada de Guimarães a mais famosa. Ver: AZEVEDO, Carlos
Moreira de (Org.). Dicionário de história religiosa de Portugal (Vol. II). Op. Cit., pp. 67-68; A Aurora
Fluminense, nº 63, 04/07/1828.
201
A Aurora Fluminense, nº 83, 25/08/1828.
202
A Aurora Fluminense não deixou de criticar o padre José Agostinho de Macedo, destacando seu “zelo
Monárquico” (Grifos do autor) e seu periódico A Besta Esfolada, editado sob os anseios de “bons amigos
absolutistas” (Grifos do autor). Ver: A Aurora Fluminense, nº 25, 14/03/1828; nº 100, 06/10/1828; nº 214,
17/07/1829.
203
A Aurora Fluminense, nº 63, 04/07/1828.
184
e quem sabe quando os absolutistas de cá não terão folgado com os bons feitos dos seus
consectários, os Infantistas de lá! Que lhes importa que padeçam os interesses e a glória
do nosso amado Imperador; que Portugal seja governado como a Espanha; que se
infrinjam os mais sagrados juramentos; com tanto que a causa do Despotismo, e das
antigualhas venerandas triunfe sobre a Ordem-Constitucional?208
204
A Aurora referia-se ao infante Carlos, símbolo da contrarrevolução e encarnação do carlismo na Espanha. No
bojo do multifacetado quadro de conflitos entre forças liberais e contrarrevolucionárias, o infante empreendeu
ofensivas, levadas a cabo em 1833, com o intuito de colocar-se à frente da Coroa. A referida Junta Apostólica foi
criada na Espanha em 1560 e extinta em 1836, consistindo em um espaço de negociação dos conflitos entre os
tribunais Eclesiásticos e Militares. Ver: GUIMARÃES, Nívea Carolina. O movimento miguelista nas páginas
d'Aurora Fluminense (1828-1834). 2016. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Ouro
Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de História. Programa de Pós- Graduação em
História. Ouro Preto, pp. 18 e segs; RÚJULA, Pedro. Contrarrevolución: Realismo y Carlismo en Aragón y el
Maestrazgo, 1820-1840. Saragoça: Prensas Universitarias de Zaragoza, 1998, p.5-31; A Aurora Fluminense, nº
63, 04/07/1828.
205
A Aurora Fluminense, nº 63, 04/07/1828.
206
Ibidem, nº 63, 04/07/1828.
207
Ibidem, nº 63, 04/07/1828.
208
Ibidem, nº 63, 04/07/1828.
209
GUIMARÃES, Nívea Carolina. Op. cit., p. 96.
210
Pedro José da Costa Barros nasceu em 1779, em Aracaty, no Ceará. Fez carreira militar e política, chegando às
Cortes de Lisboa. Nos quadros do Império brasileiro, administrou a pasta da Marinha e foi presidente de província
185
Costa Barros estavam “sonhando conspirações (...) para quebrantarem a seu salvo a
Constituição do Império (...); converterem em Leis as suas vontades, e os seus caprichos;
tornarem-se necessários empregos lucrativos, e talvez... talvez para encherem melhor os seus
cofres”.211 Outro nome surgido entre as forças absolutistas do norte era o de Antônio da Costa
Pinto, sucessor de Costa Barros na presidência da província do Maranhão e, agindo “segundo
os conselhos” deste, parecia empreender um governo de teor persecutório: “Já uma Inquisição
tão terrível como a de Veneza anima os delatores a vingarem-se dos que lhes são desafetos; já
as Tropas se põem em armas, quando o Conselho do Júri tem de julgar abusos da Imprensa; já
se abrem cartas de correios”.212
A ofensiva dos restauradores no Maranhão parecia alimentar-se das “notícias de
Portugal”, que “deviam sem dúvida beliscar os desejos de certas pessoas, que ainda sonham
com a recolonização, porque o monopólio era a principal fonte de suas riquezas”.213 A ação dos
absolutistas brasileiros estava em consonância com os anseios dos “absolutistas da Europa”,
ainda esperançosos “de dominar alguma parte do Brasil”, em uma “empresa (...) muito superior
às suas forças, e muito impossível, atento o caráter Brasileiro, que tudo fará por defender a sua
Independência”.214Apesar das dificuldades que encontrariam os defensores do trono e do altar
no Brasil, “a estupidez e vingança de muitos Miguelistas, que habitam o Norte do Brasil, podem
causar-nos graves incômodos.”215 Para a folha moderada, os simpatizantes do miguelismo não
estariam circunscritos à porção setentrional do território, o que evidenciava-se em um recado
ao Sr. Padre Luiz Gonçalves dos Santos:
Declara-nos que o Sr. D. Miguel é irmão de S. M. I., e que nesta qualidade deve ser
respeitado; pouco lhe faltou, para dizer obedecido. Quanto a remeter-nos para Lisboa,
nós sabemos que a sua caridade cristã nos pouparia o incômodo, e despesas da viagem,
se aqui nos pudesse fazer o mesmo benefício que em Portugal recebem os amigos da
Constituição; porém pode estar certo o Sr. Padre Luiz Gonçalves, que nenhuma intenção
temos de ir a esse país afortunado, aonde se não vê nem Jornais de oposição, nem
debates públicos, aonde a cega obediência é o grande móvel do sistema social; e em que
os santos Frades, e Abades imperam, perseguem, e desfrutam a boa vida sem
contradições.216
no Ceará e Maranhão. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. VII), p. 43. A Aurora
Fluminense, nº 89, 10/09/1828.
211
A Aurora Fluminense, nº º 89, 10/09/1828.
212
Tal qual já referido no presente trabalho, o expediente de abrir cartas também foi utilizado por Diogo Antônio
Feijó. Ver: A Aurora Fluminense, nº º 89, 10/09/1828.
213
A Aurora Fluminense, nº 89, 10/09/1828.
214
Ibidem, nº 89, 10/09/1828.
215
Ibidem, nº 89, 10/09/1828.
216
Ibidem, nº 89, 10/09/1828. (Grifos do autor).
186
217
TENGARRINHA, José. Nova História da Imprensa Portuguesa... Op. cit., pp. 442.
218
A Aurora Fluminense, nº 156, 20/02/1829 (Grifos do autor).
219
Ibidem, nº 156, 20/02/1829.
220
Ibidem, nº 101, 08/10/1828; nº 145, 23/01/1829.
221
Ibidem, nº 156, 20/02/1829.
222
Ibidem, nº 880, 26/02/1834.
223
Ibidem, nº 880, 26/02/1834.
224
Ibidem, nº 157, 27/02/1829.
225
Ibidem, nº 197, 01/06/1829 (Grifos do autor).
226
Miguel Calmon Du Pin e Almeida nasceu em 1796, na então vila de Santo Amaro, Bahia. Formou-se em leis
pela Universidade de Coimbra, lutou na Guerra de Independência e representou sua província natal na Constituinte
de 1823 e nas quatro primeiras legislaturas. Obteve inúmeras ordens e comendas, sendo também senador, ministro,
conselheiro de Estado, diplomata, membro do IHGB e presidente da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional.
Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. VI), pp. 273-276.
187
Minas Gerais e, segundo a Aurora, “o Analista do Ouro Preto”.227 Cumpre notar que o Analista,
apesar de ter feito, segundo a Aurora, coro aos escritos de José Agostinho de Macedo,
reproduziria a correspondência de “Um Português” denunciando a “usurpação do Sr. Infante
D. Miguel” e, números depois, noticiando a adesão de “Quinhentos Soldados de D. Miguel” às
“fileiras dos Súditos fiéis da Legítima Rainha de Portugal, Senhora D. Maria II.” 228
Ao denunciar as influências intelectuais e as ações políticas das hostes caramurus, o
principal periódico moderado esboçava um quadro da inserção dos restauradores no âmbito
jurídico-político do sistema da monarquia constitucional. Os partidários de d. Pedro I e, no
limite, de uma centralização política que unificasse o poder e a nação sob o signo do rei e da
dinastia de Bragança, adaptavam-se à dinâmica de uma esfera pública transfronteiriça e sensível
à multifacetada conjuntura política euro-americana pós-revolucionária. Calmon, Gordilho,
Costa Pinto, Costa Barros e padre Perereca, herdeiros de uma formação intelectual e política
típica do Antigo Regime luso-brasileiro, ocupariam as fileiras do Legislativo, do Executivo e
da magistratura, agindo também na imprensa, na articulação em diferentes sociabilidades
políticas.
Em 1829, a Aurora Fluminense noticiou a formação de “reuniões, ou clubs secretos” de
uma “santa Confraria, cujo fim é propagar a doutrina dos Apostólicos,229 e se intitula –
sociedade Japônica, ou colunas do Trono”.230 Da referida sociedade, fariam parte “Autoridades
de vulto”, podendo-se aí incluir o bispo de Pernambuco, d. frei Tomás de Noronha e Brito,
“excelente laia de Sacerdote, que nos veio da Índia de encomenda, e que sendo estrangeiro
achou contudo logo à sua espera um Bispado no Brasil”.231 Além do bispo, “um dos respeitáveis
e machuchos membros desta Corporação era o Padre Paes Barreto, o mesmo que fez sonetos ao
227
Em Minas Gerais, ao lado do Telégrafo, a Aurora destacaria o Amigo da Verdade, redigido em São João del-
Rei pelo vigário colado do Pilar, Luiz José Dias Custódio. Dias Custódio foi acusado de fraudar a lista de eleitores
da eleição de 1829 e, entre os moderados, era tido por caramuru. Ver: A Aurora Fluminense, nº 279, 16/12/1829;
nº 394, 01/10/1830; OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Op. cit., pp. 43-44.
228
O Analista, nº 54, 08/02/1829; nº 132, 10/11/1829.
229
A Aurora Fluminense utilizava-se do termo “Apostólicos” para referir-se aos defensores da causa miguelista,
chegando a apelar à designação “Partido Apostólico”, traduzida dos periódicos franceses Constitucional e Courrier
Français. Em 1828, em Portugal, viria à luz um ensaio intitulado Reflexões sobre o partido apostólico em Portugal,
que caracterizava o referido partido “uma facção destruidora, que em desprezo das coisas santas tomou nesta época
o título de Apostólica” (Grifos do autor). Esta obra seria de autoria anônima, mas foi escrita por J. J. F. de Moura,
segundo o Arquivo Bibliográfico da Universidade de Coimbra. Ver: A Aurora Fluminense nº 101, 08/10/1828, nº
145, 23/01/1829; Arquivo Bibliográfico da Universidade de Coimbra (Vol. V, num. I). Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1905, p. 39; Reflexões sobre o partido apostólico em Portugal. Lisboa: [s.n.], 1828, p. 6.
230
A Aurora Fluminense, nº 185, 05/05/1829.
231
Tomás Manuel de Noronha e Brito nasceu em 1779, em Viana do Minho. Descendente da família dos condes
de Arcos, ingressou na ordem dos dominicanos e iniciou sua carreira eclesiástica na Índia, onde foi prior, provincial
e vigário-geral de sua ordem, além de bispo de Cochim. Tomou posse, por procuração, na diocese de Pernambuco
no ano de 1823, à qual renunciou em 1829, partindo para Portugal e só voltando a Pernambuco em 1839. Ver:
SILVA, Inocêncio Francisco da. Dicionário Bibliográfico Português (vol. VII). Op. cit., p. 353.
188
232
A Aurora Fluminense, nº 185, 05/05/1829.
233
Ibidem, nº 185, 05/05/1829. (Grifos do autor).
234
Ibidem, nº 185, 05/05/1829.
235
Joaquim Pinto Madeira nasceu em Barbalha, sul do Ceará, em 1783. Militar, proprietário e político, liderou a
Revolta de Pinto Madeira que ocorreu entre o final de 1831 e se prolongou por 1832. Pinto Madeira participou
ativamente da repressão aos movimentos de 1817 e 1824 na região do Cariri. Ver: LEITE, Maria Jorge dos Santos.
A influência das revoltas liberais no Cariri cearense e a “Sedição de Pinto Madeira”. Anais do XXVII Simpósio
Nacional de História. Natal: 2013, p. 5; A Aurora Fluminense, nº 285, 04/01/1830.
236
A Aurora Fluminense, nº 285, 04/01/1830.
237
Ibidem, nº 320, 31/03/1830.
238
A revolta de Pinto Madeira eclodiu na região do Cariri cearense, cuja influência política de Recife era maior
que a de Fortaleza. Desde 1817, a Vila do Crato tornou-se um lócus de propagação dos ideais revolucionários,
liberais e republicanos, o que ocorreu também em 1824, com o protagonismo do padre José Martiniano de Alencar
e seus familiares. Já a Vila de Jardim, de maioria monarquista, tornou-se um refúgio da resistência monarquista e
antiliberal. As rivalidades entre as duas localidades remontavam a tempos pretéritos e envolviam disputas por
cargos nas fileiras da burocracia colonial, na medida em que Jardim pertencia a Crato, tornando-se vila apenas em
1816. Com a separação e a perda de poder por parte da Vila de Crato, seguida da Revolução Pernambucana e da
Confederação do Equador, as divergências aprofundaram-se. A revolta eclodiria em 1831, após a anulação das
promoções de Pinto Madeira, de prestígio abalado após o 7 de abril, pelo governo regencial. Em que pese a
ofensiva dos monarquistas, as acusações e as violências diversas partiram dos dois lados, que travaram sangrentas
batalhas. Após meses de luta, as tropas rebeldes se renderam e Pinto Madeira, ao fim de um processo conturbado,
sob a vigilância do então presidente da província do Ceará, o padre Martiniano de Alencar, foi condenado à morte
e fuzilado. Ver: LEITE, Maria Jorge dos Santos. Op. cit., pp. 1-13.
189
239
A Aurora Fluminense, nº 715, 28/12/1832.
240
Ibidem, nº 715, 28/12/1832.
241
Após os levantes exaltados dos dias 3 e 4 de abril, na madrugada do dia 16, os caramurus intentaram uma
revolta organizada por mar e por terra, sendo debelados pelas forças legalistas da Regência. Apesar da perseguição
aos sediciosos, sobretudo aos militares, houve uma ampla absolvição, excetuando-se a figura daquele que foi tido
por líder do referido movimento, o barão de Bullow, condenado a dez anos de prisão com trabalhos.
Posteriormente, a pena de Bullow, responsável pelo periódico O Carijó, foi comutada em banimento do Império.
No levante caramuru, estavam envolvidos diferentes personalidades e grupos, sendo também diversas suas
motivações. Empregados do Paço de São Cristóvão, militares do Exército e da Marinha, comerciantes, caixeiros e
médicos dividiam sua indignação com os anônimos que “constituíam o grosso da multidão”, encontrando-se aí
indícios da participação de escravos. Além do saudosismo quanto à figura de Pedro I, e também os vivas a Pedro
II, o isolamento político caramuru e as perseguições estiveram entre os principais fatores que contribuíram para a
eclosão da revolta. A suspeita de envolvimento de José Bonifácio, à época tutor de Pedro II, recrudesceu a oposição
que se formava para destituí-lo do cargo que ocupava, o que aconteceria em 1833. Ver: BASILE, Marcello. O
Império em construção... Op.cit., pp. 388-414; A Aurora Fluminense, nº 715, 28/12/1832.
242
Antônio Manoel de Sousa era vigário da vila de Jardim e, a exemplo de Pinto Madeira, também filiado à
Sociedade Colunas do Trono e do Altar. Para alguns autores, o referido clérigo teria sido um mentor da revolta e,
além de ser responsável por escritos conclamando os rebeldes. O padre Sousa chegou a comandar tropas durante
a rebelião. A alcunha “benze cacetes” resultou da sua prática de abençoar as armas dos insurretos monarquistas
durante o conflito. Conta-se que Antônio Manoel chegou a benzer uma mata inteira a partir da qual seriam
confeccionadas as armas para o combate aos liberais do Crato. Ver: LEITE, Maria Jorge dos Santos. Op. cit., pp.
7-9.
243
A Aurora Fluminense, nº 1009, 28/01/1835.
244
A região do Acará, na fronteira com Belém, foi uma das primeiras a fornecer pessoal para a massa de revoltosos
da Cabanagem. Para além do que a historiografia tradicional produziu sobre o sangrento conflito, tomando os
revoltosos por vilões ou heróis, Magda Ricci destacou o “tráfico interno de ideias e condutas locais”. Revisitando
alguns esforços historiográficos, a autora esboçou conexões político-intelectuais das quais as Guianas e os Andes
perfaziam pontos de recepção e difusão de um multifacetado espectro de matrizes filosóficas, políticas e
intelectuais oitocentistas. No supracitado artigo, a Aurora Fluminense destacou a figura de Vicente Ferreira de
Lavor, o Papagaio, redator da Sentinela Marianense e do Cabano da Praia Grande. Ver: A Aurora Fluminense,
nº 1009, 28/01/1835; RICCI, Magda. Magda. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do
patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo [online]. 2007, vol.11, n.22, pp.5-30. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-77042007000100002 Acesso em 07/03/2018.
190
Para os moderados, tal qual ocorria com o miguelismo em Portugal, no Brasil, uma
massa amorfa e imersa nas trevas insurgia-se, capitaneada pelo fanatismo religioso de seus
líderes. Entretanto, no contexto brasileiro, as forças da Cabanagem, que se revoltaram contra a
herança absolutista lusitana, também estariam à mercê do referido fanatismo. Parecia não haver
alternativa para além daquelas que se enquadrassem no liberalismo esboçado e praticado a partir
do juste-milieu moderado. Cumpre ressaltar que a identificação, por parte da Aurora, de forças
miguelistas, organizadas no Brasil, soava um tanto quanto hiperbólica, na medida em que
pautava a conjuntura interna e as forças caramurus tinham em d. Pedro I sua principal
referência.245 Contudo, tratava-se também de demarcar os limites entre, de um lado, um
liberalismo de inspiração ilustrada e secular e, de outro, as demandas contrarrevolucionárias e
conservadoras, muitas vezes tidas por “ultramontanas”.246 As cores e matizes da
Contrarrevolução variaram significativamente no mundo luso-brasileiro e euro-americano,
sendo mais evidentes na Península Ibérica, onde a defesa intransigente do trono e do altar partia
das fileiras miguelistas e, sobretudo, do longevo carlismo espanhol.
Ao mesmo tempo em que a Aurora Fluminense anatematizava seus antagonistas
contrarrevolucionários, buscava um amplo espectro de referências que compunham seu
liberalismo constitucional, de inspiração anticongregacionista e secular. Tais referências eram
oriundas, sobretudo, da França, onde a cerimônia civil que conferiu poderes a Luís Felipe I
(1830-1848), em julho de 1830, estava em flagrante contraposição à sagração de seu antecessor,
Carlos X. Dentre os autores citados, estaria Pierre Daunou (1761-1840), do qual seria traduzido
um trecho de seu Ensaio sobre as garantias individuais. 247 O artigo, intitulado Último recurso
dos absolutistas: meios únicos que lhes restam para sufocar as instituições livres, destacava as
“retrogradações rápidas”, que poderiam resultar no “socorro da inquisição, que renasceria mais
ativa, e devoradora”.248 Assim, o atraso despótico, incompatível com os direitos do indivíduo,
245
GUIMARÃES, Nívea Carolina. Op. Cit., pp. 87 e segs.
246
A Aurora Fluminense, nº 1069, 15/06/1835.
247
Pierre-Claude-François Daunou nasceu em 1761, no condado de Bolonha e foi educado entre os oratorianos,
recebendo a ordenação em 1787. Deputado à Convenção Nacional por Pas-de-Calais, fez dura oposição a Luís
XVI e foi preso durante o Terror jacobino. Principal autor da Constituição de 1795, que aboliu o voto universal,
Daunou esteve também entre os redatores da Carta de 1799, já sob Napoleão, período em que foi também diretor
do Arquivo Nacional (1804-1815). Durante a Restauração, ocupou o posto de deputado (1819-1823/1828-1834)
e, novamente, diretor do Arquivo Nacional (1830-1840). Pierre Daunou foi historiador e destacou-se na condição
de um proeminente pensador liberal, comprometido com o arrefecimento dos arroubos radicais da Revolução de
1789. Ver: The Editors of Encyclopaedia Britannica. Pierre-Claude-François Daunou. Illinois: Encyclopaedia
Britannica, inc, 1998. Disponivel em: https://www.britannica.com/biography/Pierre-Claude-Francois-Daunou
Acesso em 07/03/2018.
248
A Aurora Fluminense, nº 48, 28/05/1828.
191
tinha nas ordens e nas instituições religiosas do Antigo Regime um dos seus sustentáculos e
sobreviveria:
Daunou publicou seu Ensaio em 1819, afirmando as “garantias” como “os únicos limites
que, em um grande estado, podem utilmente circunscrever a autoridade”.250 Sua concepção
político-filosófica dos direitos civis incluía a liberdade perante a arbitrariedade do Estado, a
proteção da propriedade, o livre exercício da indústria e a liberdade de opinião, com direitos
políticos e, por conseguinte, cidadania, estendidos apenas aos proprietários.251 Além de
Daunou, a Aurora destacou em 1831 outros nomes de peso da filosofia política liberal da França
pós-revolucionária. Na ocasião, as análises foram transcritas do periódico Sentinela do Serro,
publicado por um frequentador assíduo da livraria de Evaristo da Veiga, Teófilo Benedito
Otoni.252 No artigo, destacavam-se os “sucessos de 1830” e o “triunfo das doutrinas modernas,
anunciado nos escritos dos Dupin, dos Benjamim Constant dos Tracy e de outros espíritos
luminosos e profundos”.253 O êxito do liberalismo doutrinário estaria encarnado em uma
concepção de cidadania na qual as liberdades constitucionais, com os direitos políticos
garantidos aos proprietários, surgiam em contraposição às forças do trono e do altar: “A guarda
249
A Aurora Fluminense, nº 48, 28/05/1828.
250
DAUNOU, P. C. F. Essai sur les garanties individuelles que réclame l’état actuel de la société. Paris: Chez
Foulon et Comp., Libraires-Editeurs, 1819, p. 4. Disponível em
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k61384286/f9.image.r=.langES Acesso em 07/03/2018.
251
Essa concepção censitária dos direitos políticos era adotada na Constituição de 1824 e também na Constituição
de Pouso Alegre. Ver: HOMEM DE MELO, F. I. M. O golpe de Estado de 30 de julho de 1832. In: Op. cit., p. 30;
STAUM, Martin. Minerva’s message: stabilizing the French Revolution. Québec: McGill-Queen’s University
Press, 1996, pp. 183-185.
252
O Sentinela do Serro foi fundado por Teófilo Benedito Otoni (1807-1869) em sua cidade natal, Vila do Príncipe,
depois cidade do Serro Frio, província de Minas Gerais. Otoni fundou o referido periódico após desligar-se da
Academia da Marinha, onde havia estudado, alegando perseguições políticas. Além de comerciante, Teófilo Otoni
construiu uma carreira política de destaque, sendo deputado à Assembleia Nacional na quarta, sexta, sétima e
décima primeira legislaturas. Nomeado senador em 1864, recusou uma vaga no Conselho de Estado. Em sua obra
política fundamental, Circular aos Eleitores de Minas, expôs um liberalismo de inspiração “jeffersoniana”. Otoni
colaborou com a imprensa liberal em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Perfilava-se aos ideais republicanos, tendo
arrefecido de tais arroubos diante da hegemonia moderada. Apoiou a aprovação do Ato Adicional de 1834 e
compôs as fileiras da Revolta Liberal de 1842. Ver: SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op. cit., pp. 115-117.
253
A Aurora Fluminense, nº 458, 07/03/1831. (Grifos o autor).
192
cívica e o Rei cidadão tiveram maior força do que tiveram os Bourbons endeusados. As suas
tropas suíças, os seus exércitos, os seus jesuítas, os seus gendarmes”.254
As referências que a Aurora Fluminense abordaria a partir do Sentinela do Serro não se
limitaram aos liberais da França pós-revolucionária e incluiriam os artífices da Independência
dos Estados Unidos da América, base da “linha republicana” adotada no periódico de Otoni e
do “democratismo jeffersoniano” defendido pelo político mineiro.255 No ano de 1831, havia
uma “diferença considerável”, com relação aos “anteriores até 1829 inclusivamente”, quando
um “regime arbitrário oprimia a França debaixo das formas legais, a imprensa estava no todo
agrilhoada, e nem se podia falar a verdade na Tribuna Nacional”.256 A Santa Aliança, núcleo de
“salteadores coroados”, havia “tornado infrutíferas as tentativas heroicas, feitas pela Espanha,
Nápoles, Sardenha e Portugal, para se livrarem do jugo tirânico de que eram vítimas.”257 O
restante da Europa, “excetuando a Suécia, e a Baviera, estava naquela sonolência mortal, que
caracteriza o despotismo.”258 Na Inglaterra, “sujeita à influência dos Torys, coadjuvava nos
seus planos tenebrosos a santa canalha e apenas por alguns meses se opôs ao espírito dos
retrógados, enquanto o leme dos negócios foi dirigido aí pela poderosa mão de Canning.”259 Se
antes de 1830 reinava o despotismo na Europa, na América “veríamos, que a liberdade só podia
alçar a frente majestosa no seu antigo asilo, na Pátria dos Paine, dos Jefferson, e dos
Franklin.”260 Contrariamente aos tempos despóticos, a primavera de julho de 1830 teria sido
um marco na busca pelas liberdades constitucionais:
Presentemente tudo está mudado: o conciliábulo dos tiranos acha-se quase dissolvido.
Na França já nem existe a luta entre oprimidos, e opressores (...) A Bélgica proclamou-
se independente: a Holanda já saiu do seu letargo. Na Alemanha já se fazem observações
às ordens do Déspota. Na Espanha já se combate pela divina liberdade: e a esta hora os
Espanhóis estão divididos em 2 exércitos; um composto da canalha, e dos frades; outro
dos patriotas, e da Nação, e não é duvidoso a quem pertencerá a vitória. Finalmente,
254
A concepção de uma cidadania ativa, restritiva e atrelada à propriedade, teve em Emmanuel Joseph Sieyès
(1748-1836) um de seus principais formuladores. Em 1788, às vésperas da eclosão revolucionária, o abade de
Sieyès redigiu Qu’est-ce que le Tiers État?, obra cujos princípios fundamentais foram incorporados à Constituição
de 1791. Consolidava-se a noção de um “corpo nacional”, em contraposição à escalonada estrutura de
representatividade por Estados (clero, nobreza e povo), cara ao Antigo Regime. Ainda que excludente, na medida
em que era censitária quanto ao voto e à elegibilidade, a nova concepção jurídico-política prescrevia que os
cidadãos ativos politicamente representariam toda a nação, incluindo os cidadãos passivos, e não mais uma
corporação especifica. Ver: A Aurora Fluminense, nº 458, 07/03/1831; SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte
Burguesa: Qu’est-ce que le Tiers État? (Org. e Int. de Aurélio Wander Bastos). Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2001, pp. 9-53.
255
SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op. cit., p. 116.
256
A Aurora Fluminense, nº 457, 04/03/1831.
257
Ibidem, nº 457, 04/03/1831.
258
Ibidem, nº 457, 04/03/1831.
259
Ibidem, nº 457, 04/03/1831.
260
Ibidem, nº 457, 04/03/1831.
193
261
A Aurora Fluminense, nº 457, 04/03/1831.
262
Ibidem, nº 439, 19/01/1831; nº 475, 22/04/1831.
263
François Dominique de Reynaud (1755-1838), Conde de Montlosier. De família nobre, esteve por seis anos
entre os jesuítas de Clermont-Ferrand, abandonando o claustro para se dedicar aos estudos científicos e históricos.
Deputado substituto aos Estados Gerais, defendeu os privilégios da nobreza e, a partir de 1792, exilou-se em
Hamburgo e Londres, onde redigiu o Courrier de Londres. Sob Napoleão, foi incumbido de compor uma História
da Monarquia Francesa. A obra, na qual defendeu os preceitos feudais, foi censurada e publicada após o início da
Restauração. Apesar de sua defesa das prerrogativas do Antigo Regime, Montlosier fez dura oposição à
Congregação durante o último lustro da década de 1830. À época, contribuiu para o Constitutionnel, sem renunciar
ao seu pavor com relação à Revolução Francesa. Ver: A Aurora Fluminense, nº 25, 14/03/1828; nº 96, 26/09/1828;
ROBERT, Adolphe; BOURLOTON, Edgar & COUGNY, Gaston. Op. cit. (Lav-Pla), p. 420.
264
A Aurora Fluminense, nº 801, 02/08/1833.
265
Ibidem, nº 801, 02/08/1833. (Grifos do autor).
266
A London Magazine, o mais antigo periódico literário da Inglaterra, ainda em circulação, foi criada em 1732 e
para ela contribuíram T. S. Eliot (1888-195), Jack London (1876-1916) e Thomas Carlyle (1795-1881), dentre
outros proeminentes nomes da literatura inglesa. Em 1820, a London Magazine passou por uma reestruturação
editorial, de inspiração liberal, sob os auspícios de John Scott (1784-1821) e a nascente geração dos românticos
ingleses da qual fariam parte Charles Lamb (1764-1847) e Thomas De Quincey (1785-1859). No que se refere ao
Globe, ao que parece, não se tratava mais do Le Globe francês, que circulou entre 1824 e 1832, tendo Joufroy
(1796-1842) e Guizot à frente. Contudo, o referido periódico, de linha editorial romântica e liberal, foi citado em
outros momentos pela Aurora Fluminense. Ver: A Aurora Fluminense, nº 99, 03/10/1828; nº 344, 02/06/1830; nº
194
pois, ordenavam “que o homem seja besta de carga ocupada em trabalhar para seu senhor” e
propagavam “as doutrinas do governo absoluto em toda a sua feia nudez”.267 À religião
legitimadora do despotismo, opunha-se um catolicismo ilustrado e progressista, em
consonância com o ecletismo de Vitor Cousin e seu espiritualismo laico, cuja defesa seria feita
também pelo romântico Gonçalves de Magalhães, na revista Nitheroy.268 Se a intolerância
inquisitória era parte de um passado tenebroso, rechaçavam-se também os arroubos radicais de
uma Ilustração anticlerical e, no limite, avessa a qualquer tipo de religião. Da pena de Benjamin
Constant surgia a crítica a uma “minoria turbulenta”, “fanática do passado” e que via “o
ateísmo, aonde a liberdade de consciência substitui as fogueiras”. 269 Opondo-se ao ateísmo e
ao “espírito de partido”, a Aurora também daria voz a Madame de Stael (1766-1817): “Como
se viu pregar o ateísmo com a intolerância da superstição, assim o espírito de partido ordena a
liberdade com todo o furor do despotismo.”270
Além de incluir a agenda de reformas na Igreja do Brasil Império, defendidas por Feijó
e o clero regalista, o juste-milieu, esboçado nas páginas do principal periódico moderado,
incluía também um posicionamento religioso longe dos extremos e em diálogo com os autores
que buscaram a “cristianização do liberalismo francês”.271 O fim das ordens religiosas, as
mudanças na disciplina do clero e a reforma da estrutura político-administrativa da Igreja não
significavam um apelo ao ateísmo radical, mas, sim, uma readequação do papel do clero na
dinâmica do Estado e da sociedade imperial, tanto no nível das instituições quanto no nível das
consciências. O antídoto contra certo jesuitismo, representado pelo Seminário do Caraça e por
aqueles que evocavam Bonald e pareciam se inspirar no miguelismo de José Agostinho de
Macedo, era um liberalismo constitucional referenciado nas produções dos filósofos e políticos
sediados no eixo Paris-Londres.272 No Brasil, onde a Aurora afirmava grassar “a posse
839, 11/11/1833; PARKER, Roger & SMART, Mary Ann. Reading Critics Reading: Opera and Ballet Criticism
in France from the Revolution to 1848. Oxford: University Press, 2001, pp. 69 e segs; SCOTT, Mathew. John
Scott’s The London Magazine. The London Magazine. Dec 2008/Jan/Feb 2009. Disponível em:
https://www.thelondonmagazine.org/john-scotts-london-magazine-matthew-scott/ Acesso em 09/03/2018;
WEILL, Georges. Op. cit., pp. 47-53.
267
A Aurora Fluminense, nº 99, 03/10/1828; nº 839, 11/11/1833.
268
À semelhança de Monte Alverne e Evaristo, Gonçalves de Magalhães “apresentava uma abordagem
predominantemente filosófica e racional da religião, sem se orientar pela revelação ou princípios dogmáticos
rígidos, o que o distancia de um enfoque característico do tradicionalismo ultrarrealista de Xavier de Maistre e De
Bonald.” Após a morte de Evaristo da Veiga, em 1835, as publicações da Aurora seriam retomadas por dois anos,
entre 1838 e 1839, por Francisco de Salles Torres-Homem (1812-1876), advogado, político e intelectual da
primeira geração do Romantismo. Ver: FERRETTI, Danilo José Zioni. Op. cit., p. 79.
269
A Aurora Fluminense, nº 245, 28/09/1829.
270
A Aurora Fluminense, nº 768, 10/05/1833.
271
FERRETTI, Danilo José Zioni. Op. cit., p. 82.
272
Segundo Raphael Quintela, a partir de 1836 teve início a formação de um eixo franco-brasileiro de publicações
impressas. Ver: QUINTELA, Raphael. Les périodiques brésiliens en France au XIXe siècle. (Maîtrise en Histoire)
195
indisputada do regime representativo desde 1821”,273 o clérigo ideal deveria estar integrado à
sociedade, cultivando mais a sabedoria e a inteligência que a disciplina. Em sentido próximo
afirmaria o padre Bhering no Novo Argos: “Um eclesiástico virtuoso, porém ignorante é mais
prejudicial à Igreja, mais nocivo à sociedade, do que um instruído ainda que libertino. O Bispo
de Genebra S. Francisco de Sales.”274
CAPÍTULO 5
REGRESSISTAS E ROMANIZADOS: REAÇÃO E RESTAURAÇÃO
1
Em alusão à Independência do Haiti, e à precoce abolição do sistema escravista na antiga colônia francesa, o
termo “haitianismo” foi utilizado durante o Império brasileiro, sobretudo durante o período regencial, para
qualificar os temores quanto às sublevações protagonizadas por escravizados. Ver: RODRIGUES, Jaime. O Infame
Comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil. (1800-1850). Campinas, SP:
Editora da UNICAMP: CECULT, 2000, pp. 50-63.
2
O Sete d’Abril, no 516, 13/01/1838.
197
círculos da Inconfidência. A exemplo de seu pai e de seu avô materno, Vasconcelos formou-se
em Coimbra. De sua geração, fizeram parte alguns vultos da política imperial, dentre eles,
Nabuco de Araújo, Miguel Calmon e o regente Araújo Lima. Recém-formado, Vasconcelos
trabalhou por um ano no escritório de seu tio Bernardo de Souza Barradas. Voltando ao Brasil,
começou sua carreira de magistrado em Guaratinguetá, indo depois para o Maranhão. Foi eleito
deputado em 1826 por Minas Gerais, sendo reeleito até o ano de 1838, quando chegou a
senador. Esteve à frente do Ministério da Fazenda, em 1831, e da Justiça, em 1837, quando
organizou o chamado gabinete das capacidades.3 Em 1840, foi ministro do Império por apenas
nove horas. Em 1833, era vice-presidente da sua província natal, quando ocorreu a Sedição de
Ouro Preto e, no meio de toda a confusão, chegou a ser preso.4
Vasconcelos projetou-se na cena imperial a partir de uma trajetória construída em
frentes múltiplas, “na confluência entre a propriedade, de terras e homens, e a magistratura,
cuja complexa relação constituiu a ordem oitocentista.”5 O “campeão” do Regresso inseriu-se
na dinâmica de uma esfera pública marcada por múltiplos círculos de sociabilidade e travou
duras batalhas sobre temas que geraram polarizações, por vezes irredutíveis, como a escravidão.
Ao contrário de uma postura monolítica e continuamente conservadora, perigosamente
reproduzida pela historiografia, Bernardo Pereira de Vasconcelos mostrou-se resiliente ao
longo de sua carreira, adaptando-se às flutuações conjunturais sem, no entanto, abrir mão de
posicionamentos incisivos e críticas contumazes.6 A astúcia do político mineiro assentava-se,
portanto, em “motivos, ousadias e interesse pelo embate público, irredutíveis a uma lógica de
Antigo Regime”.7
Com efeito, a retomada de alguns dos princípios basilares do Antigo Regime a partir do
Regresso conservador, enfatizando a sacralização e a consolidação institucional do regime
monárquico através dos recursos simbólicos e materiais do catolicismo romanizado, não
excluiu o apelo à imprensa e às batalhas opinativas típicas das sociedades sensíveis às práticas
3
O Gabinete das Capacidades foi encabeçado por Vasconcelos, que assumiu os Ministérios do Império e da Justiça,
após a renúncia de Diogo Antônio Feijó em 1837. Na pasta dos Negócios Estrangeiros, estaria o médico lisboeta
Antônio Peregrino Maciel Monteiro (1804-1868); na Fazenda, o caramuru Miguel Calmon du Pin e Almeida
(1796-1865); na Marinha, o Saquarema Joaquim José Rodrigues Torres (1802-1872); na Guerra, um dos pilares
do Regresso conservador, Sebastião do Rego Barros (1803-1863). Ver: LIMA OLIVEIRA, G. A. de. Op. cit., pp.
75-133.
4
SACRAMENTO BLAKE, Augusto Vitorino. Op. Cit. (Vol. 1), pp. 415-416; SISSON, Sebastien Auguste.
Galeria dos Brasileiros Ilustres: os contemporâneos (Vol. 1). Rio de Janeiro: Lithographia de S. A. Sisson, 1861,
pp. 99-100.
5
SILVA, Wlamir. A valentia da dialética: Bernardo Pereira de Vasconcelos, o senso comum, a classe conservadora
e a cabeça de medusa. In: SALLES, Ricardo (Org.). Ensaios gramscianos: política, escravidão e hegemonia no
Brasil Imperial. Curitiba: Editora Prismas, 2017, p. 89.
6
SILVA, Wlamir. A valentia da dialética... In: Op. cit., pp. 83-155.
7
Ibidem, p. 93.
198
8
PAULA, Alexandre Marciano de. Op. cit., pp. 18 e segs; SILVA, Wlamir. Ser ou não ser liberal, eis a questão...
Op. cit., p. 1.
9
SOUZA, Octávio Tarquínio de. Op. cit., p. 181.
10
O Universal, no 241, 26/01/1829; no 446, 28/05/1830. VEIGA, J. P. Xavier da. A Imprensa em Minas Gerais.
Op. cit., p. 202 e segs.
11
O Universal, no 131, 14/03/1828.
12
Ibidem, no 135, 23/05/1828.
199
defesa das interferências seculares sobre as questões de foro eclesiástico, o autor evocava o
regalismo lusitano: “Ninguém há que ignore que esta prática não é nova na Monarquia
Portuguesa, quer negando Beneplácitos às Leis Ecles. recentes, quer proibindo a execução de
outras já aceitas”.13 Ao mesmo tempo, destacava algumas características do antagonista de
Feijó:
Parece ainda mais pueril queixar-se o nosso Patrício dos Santos de haver-lhe o Sr. Feijó
chamado Ultramontano e Papista, por serem esses os nomes, com que sem a menor
injúria se apelidou sempre aqueles, que dão aos papas poderes que eles não têm, que os
julgam impecáveis, e superiores no Espiritual e temporal a todos os Soberanos da terra.14
13
O Universal, no 135, 23/05/1828.
14
Ibidem, no 135, 23/05/1828.
15
Ibidem, no 138, 30/05/1828; no 141, 06/06/1828; no 147, 20/06/1828; no 153, 04/07/1828.
16
Ibidem, no 154, 07/07/1828.
17
Ibidem, no 154, 07/07/1828.
18
Ibidem, no 191, 01/10/1828.
19
A epígrafe do Brasileiro, “Soyez Moderés, soyez justes”, era atribuída ao historiador suíço Johannes von Muller.
Ver: SILVA, Wlamir. A valentia da dialética... In: Op. cit., p. 101; O Brasileiro, no 27, 05/05/1832.
20
O Brasileiro, no 27, 05/05/1832.
200
bem dos homens, e não os homens para o bem das religiões, da mesma forma os Governos são
feitos para os homens, e não os homens para os Governos.”21 Era preciso “distinguir nas
religiões dois objetos, um metafísico, e o outro político”, consistindo o “objeto metafísico” no
“dogma”, ou “parte revelada”, que nas “religiões falsas” seria “inventada”.22 Assim, o conteúdo
teológico das crenças não estaria submetido ao crivo temporal e coletivo: “são as relações do
homem para com Deus, cuja observação ninguém julgará senão Deus; e não interessa a
ninguém, além do indivíduo no foro interior.”23 Em sua origem, o cristianismo surgia na
condição de uma crença abstraída de obrigações políticas vinculantes: “Jesus Cristo nunca
impôs aos Governantes o preceito de obrigar as consciências.”24
Quanto ao segundo objeto, o político, não seria substancialmente dogmático, mas sim
“moral; quase a mesma em todas as religiões, a mesma em todas as seitas cristãs”.25
Diferentemente das crenças metafísicas, a partilha de uma moral comum entre os indivíduos
fazia-se necessária e imprescindível: “são as relações dos homens entre si: destas todos os
homens são juízes. E é nesta parte em que todos são juízes, que se entende, serem feitas as
religiões para o bem dos homens, estabelecendo e consagrando preceitos de moral.”26 A
perspectiva de um sentimento de moralidade religiosa, apartado de imposições dogmáticas,
coadunava com os valores da tolerância ventilados pelo clero regalista e liberal, a exemplo do
posicionamento defendido pela Aurora Fluminense. Para o autor do artigo reproduzido no
Brasileiro, a figura do súdito cristão, própria às monarquias católicas do Ancien Régime, dera
lugar ao cidadão, em torno do qual gravitavam os esforços do governo e das religiões:
Desta verdade segue-se a demonstração a fortiori de que os Governos são feitos para os
homens se até as religiões (independente do seu objeto metafísico, que é do foro interior)
no estabelecimento político, que é do foro exterior, são feitas para o bem dos homens,
é forçoso concluir que os governos, que não têm senão um objeto político, são feitos
para os homens, os Reis para os povos.27
Para fortalecer os argumentos sobre o “bem que deve produzir ao Brasil a existente
tolerância religiosa”, apresentava-se “aos (...) leitores um artigo do Scothman traduzido em
21
O Brasileiro, no 27, 05/05/1832. (Grifos do autor).
22
Ibidem,, no 27, 05/05/1832.
23
Ibidem, no 27, 05/05/1832.
24
Ibidem, no 27, 05/05/1832.
25
Ibidem, no 27, 05/05/1832.
26
Ibidem, no 27, 05/05/1832.
27
Ibidem, no 27, 05/05/1832. (Grifos do autor).
201
28
Le Messager: Journal Politique et Littéraire (1831-1834) foi uma das mais importantes publicações em francês
que circularam na primeira metade do século XIX no Brasil, sob a orientação de Pedro Gueffier, proprietário da
Tipografia Gueffier. A partir de 1832, modificam-se o formato e o título, passando a ser um Journal Politique,
Littéraire et Commercial. A partir do final dos anos 1820 e 1830, surgiram também outros periódicos estrangeiros,
contribuindo para uma expansão qualitativa e quantitativa da circulação e apropriação da produção política,
científica e literária em uma esfera pública transatlântica. Ver: GIMENEZ, Priscila. Le Messager: journal politique
et littéraire (1831-1832), Le Messager: journal politique, littéraire et commercial (1832-1833). In: Site
TRANSFOPRESS Brasil, disponível em: http://transfopressbrasil.franca.unesp.br/verbetes/le-messager-
politique/, acesso em 26/03/2018; SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., pp. 116 e 226; O Brasileiro, no 27,
05/05/1832.
29
O Brasileiro, no 27, 05/05/1832.
30
Ibidem, no 27, 05/05/1832.
31
Ibidem, no 27, 05/05/1832.
32
Ibidem, no 27, 05/05/1832.
33
Ibidem,, no 56, 23/01/1833.
34
Ibidem, no 56, 23/01/1833.
202
“as fogueiras ardiam e as feras nutriam-se de carne humana, insultando os desgraçados que
sacrificavam ao seu furor; e mesma divindade cujo nome invocavam”, não seria mais admitido:
“Tempos tão horrorosos se passaram, não é possível fazê-los voltar mais”. 35
O Brasileiro
circulou entre os anos de 1832 e 1833, ano este em que surgiria o Sete d’Abril, publicação de
fôlego na imprensa da Corte imperial e do Brasil, através da qual Vasconcelos destilava sua
verve irônica, sarcástica e pragmática.
Inicialmente, o Sete d’Abril faria coro aos auspícios reformistas e seculares defendidos
pelo núcleo de padres regalistas do grupo moderado. Em janeiro de 1834, um artigo assinado
por certo “Padre Onça” abordaria “o Correio Oficial de Sábado 4 do corrente mês de Janeiro”,
no qual estava “inserta a resposta do Reverendo Provincial dos Franciscanos, a Portaria do Exm.
Sr. Ministro da Justiça em que aquele Reverendo Sr. mostra-se penalizado por em tempo de seu
Antecessor terem professado – apenas 4 Noviços nascidos em Portugal”.36 O referido ministro
era Aureliano Coutinho, e sua portaria compunha a série de ações do governo imperial que, em
consonância com a agenda do clero regalista, buscava o controle das ordens regulares, o que
incluía propostas de apropriação dos seus bens.37 Ao analisar a situação sobre os regulares
portugueses, cujas ordens foram extintas em 1834, o “Padre Onça” ironizava: “quem não
derramará lágrimas à vista de tanta escassez!! somente 4 papeletas malcriados, e inimigos do
Brasil!!! (...) Adeus Corporação Franciscana! em três anos – apenas professarão 4 nascidos em
Portugal!!”38 Por fim, o desejo de um controle mais rígido sobre as ordens regulares, recorrendo
ao encarregado dos negócios da Santa Sé Domingos Scipião Fabrini:39
35
O Brasileiro, no 56, 23/01/1833.
36
O referido clérigo era frei Henrique de Santa Ana e o ministro, o liberal Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho.
Aureliano Coutinho, Visconde de Sepetiba, nasceu no dia 21 de julho de 1800, na província do Rio de Janeiro,
onde faleceu em 1855. Esteve na academia militar e se formou no curso de direito em Coimbra. Fez carreira na
política e na magistratura, sendo também ministro das pastas do Império, da Justiça e dos Estrangeiros. Em 1833,
foi responsável pelas modificações da tutoria no Paço Imperial, quando mandou prender José Bonifácio de
Andrada e Silva. Desde então, Coutinho destacou-se na condição de liderança nos círculos áulicos e articulista do
Golpe da Maioridade. Ver: SACRAMENTO BLAKE, Augusto Vitorino Alves. Op. cit. (Vol. 1), pp. 373-374;
Correio Oficial, no 03, 04/01/1834; O Sete d’Abril, no 111, 18/01/1834.
37
PACHECO, Paulo Henrique Silva. A Ordem Beneditina e o Governo: acordos e conflitos da Corte Imperial.
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.4, Outubro de 2010, pp. 94-95.
38
O Sete d’Abril, no 111, 18/01/1834.
39
O abade Fabrini ficou encarregado dos negócios da Santa Sé no Brasil entre a partida de Pedro Ostini (1775-
1849), em 1832, e a chegada de um internúncio no ano de 1844. Em 1839, o padre Perereca ofereceu a Fabrini
uma obra na qual refutava as práticas religiosas dos metodistas que chegaram ao Brasil no ano de 1836, livro
“composto para arrancar a cizânia, que o homem inimigo ousa semear no fértil campo da Igreja Brasileira”. Ver:
ACCIOLLY, Hildebrando. Op. cit., p. 309; SANTOS, Luis Gonçalves dos. O católico e o metodista, ou refutação
das doutrinas heréticas e falsas, que os intitulados missionários do Rio de Janeiro, metodistas de New York, tem
vulgarizado nesta corte do império do Brasil por meio de huns impressos chamados tracts, com o fim de fazer
prosélitos para a sua seita, &c". A que se ajunta uma Dissertação sobre o direito dos Católicos de serem
sepultados nas Igrejas e nos seus adros. Oferecida e dedicada ao Exmo. e Revmo. Senhor Scipião Domingos
Fabrini... pelo padre Luiz Gonçalves dos Santos. Rio de Janeiro Imprensa Americana, 1839, p. 3.
203
40
O Sete d’Abril, no 111, 18/01/1834. (Grifos do autor).
41
Ibidem, no 123, 25/02/1834; no 124, 01/03/1834.
42
Ibidem, no 124, 01/03/1834.
43
Ibidem, no 126, 08/03/1834.
44
Ibidem, no 127, 11/03/1834.
45
Ibidem, no 228, 14/03/1835; no 261, 11/07/1835; no 268, 08/08/1835.
46
Ibidem, no 220, 10/02/1835.
47
Em que pese a defesa do tráfico e da escravidão por parte de Vasconcelos, intensificada sobretudo a partir dos
idos de 1837, houve de sua parte críticas à escravidão, em um diapasão próximo ao de Feijó. Cumpre ressaltar que
tais variações de opinião eram recorrentes em indivíduos e grupos de orientações políticas distintas, compondo um
“amálgama de argumentos econômicos e humanitários contra a escravidão, junto aos temores de desorganização
da economia, da rebelião escrava e, mesmo, de dissolução moral pelo africano.” Ver: SILVA, Wlamir. A valentia
da dialética... In: Op. cit., pp. 94-98; O Sete d’Abril, no 220, 10/02/1835.
48
Dilermando Ramos Vieira, citando José Castellani, afirmou que Feijó ingressara nos quadros da maçonaria em
1833, na loja Amizade. Era diverso o espectro de tendências políticas que compunham as fileiras da maçonaria no
Brasil Império. De acordo com William Almeida de Carvalho, Feijó e Holanda Cavalcanti, seu concorrente à
Regência, representavam “o eterno embate entre maçons liberais e conservadores”. Ver: VIEIRA, David Gueiros.
204
destacando os nomes de Montezuma (1794- 1870) e Januário da Cunha Barbosa, com seus
“espetáculos” de “infâmia”, intolerância” e “ambição”.49 Desse modo, se no início de 1835,
Vasconcelos ainda poupava Feijó no Sete, devotando-lhe apoio e simpatia, o mesmo não se
poderia dizer com relação a outras lideranças liberais e ao principal periódico moderado, a
Aurora Fluminense.50
Os ataques proferidos no Sete de Abril não incluíram somente os posicionamentos,
ambíguos em um primeiro momento, com relação às lideranças liberais. O periódico chegou a
fazer chiste com as pretensões áulicas de Romualdo Seixas. Em uma seção chamada
“Piparotes”, na qual apontava o “organista de certo Convento (...) que fabrica nulidades contra
bispos eleitos”, alegava que “Foi engano – O Sr. Arcebispo da Bahia teve só unzinho, e não 2
votos para Tutor.”51 Assim, no que se referia às questões da agenda regalista e secular, durante
algum tempo, em 1835, sustentou-se a opinião de que no Brasil não deveriam ser executadas
leis feitas pelo papa ou “por Concílios em que a Igreja Brasileira não teve parte”.52 Em suma, a
resposta ao Pontífice seria clara: “vós sois bispo de Roma e não do Brasil: os títulos de Pontífice
e de Papa, que a etiqueta, ou o que quer que seja, vos atribuiu tirados do Paganismo, não vos
dão mais jurisdição do que S. Pedro exerceu.”53
Um dos defensores da Santa Sé alvejados pelo Sete d’Abril foi o Visconde de Cairu que,
em 1828, refutou Feijó na obra Causa da religião e disciplina eclesiástica do celibato clerical.54
Na primeira parte da peça, Cairu citava o “Sagrado Concílio Tridentino, que se observa em
todos os Estados Católicos, assim providenciou à Unidade da Fé, e à perpetuidade da Disciplina
Eclesiástica, confiando-as à proteção dos Soberanos Fiéis à Igreja que Deus edificou.”55 Em
1835, o Sete direcionava ao “nobilíssimo Visconde de Cairu” algumas considerações do
Investigador Português, datadas de 1817.56 No melhor espírito regalista, o artigo resgatava as
ofensivas do “grande Rei o Senhor D. João IV (...) cujo projeto majestoso, fundado na douta
decisão dos teólogos franceses, que unanimemente concordavam que o Monarca podia fazer
sagrar em Portugal os seus Bispos sem confirmação papal.”57 Para embasar a perspectiva
veiculada, eram citados o francês François Richer (1718-1790) e o austríaco Joseph Valentin
Eybel (1741-1805), ambos jurisconsultos e canonistas ligados a proposições reformistas e
ilustradas com relação ao poder pontifício sobre a disciplina e a hierarquia eclesiásticas. 58 Ao
final, lembrava o “maior teólogo português”, Antônio Pereira de Figueiredo, a partir da obra
Tentativa Teológica ao afirmar “que a confirmação papal, praticada na eleição dos Bispos, é
um privilégio de consentimento e tolerância da parte da Igreja”.59
Em outra ocasião, continuavam os ataques a Cairu, “beatíssimo Papista” que “regalou
há dias a nossa devoção com o traslado da Encíclica do SS. Padre Gregório XVI, dirigida a
todos os príncipes da Igreja Católica em 1832”.60 A referência à encíclica Mirari Vos incluía
citações diretas do documento, pois, o Papa estaria “horrorizado das monstruosas doutrinas
que cercam os cristãos em forma de inumeráveis volumes e de folhetos, pequenos em tamanho,
mas grossamente pejados de males, que brotam (diz ele) em todas as direções”.61 Sobre o
55
CAIRU, José da Silva Lisboa, Visconde de. Causa da religião e disciplina eclesiástica do celibato clerical.
Defendida da inconstitucional tentativa do padre Feijó. Rio de Janeiro: Imperial Tipografia de Plancher Seignot,
1828, p. 3.
56
O Investigador Português começou a circular em 1811, em Londres, por iniciativa dos médicos portugueses
Vicente Pedro Nolasco e Bernardo José de Abrantes e Castro, os quais receberam a incumbência da representação
lusa e foram financiados pelo príncipe regente. Em 1814, Abrantes deixou Londres e Domingos de Sousa
Coutinho, conde de Funchal, o substituiu pelo também médico Miguel Caetano de Castro. Contudo, a escolha de
Abrantes para sua substituição recairia sobre Liberato Freire de Carvalho, que passou a fazer oposição à
permanência da Corte portuguesa no Brasil. Ver: SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., pp. 31-33; Sete d’Abril, no
242 02/05/1835. (Grifos do autor).
57
Sete d’Abril, no 242, 02/05/1835 (Grifos do autor).
58
François Richer nasceu em Avranches, na Normandia. Após se formar em direito, estabeleceu-se em Paris, onde
dividiu o tempo entre a advocacia e a República das Letras. Dentre suas obras, pode-se destacar De l’autorité du
clergé, et du pouvoir du magistrat politique, sur l’exercise des fonctions du Ministère Ecclésiastique, citada pelo
Sete d’Abril, na qual defendeu a supremacia dos poderes temporais sobre a disciplina eclesiástica. Joseph Valentin
Eybel nasceu em Viena e foi educado entre os Jesuítas. Já na Universidade de Viena passou a advogar pela
supremacia do poder temporal sobre as questões eclesiásticas, sendo um dos idealizadores do josefismo, a ofensiva
ilustrada e secular de José II (1765-1790), imperador romano-germânico, sobre as prerrogativas da sé romana.
Ver: MICHAUD, Louis-Gabriel. Biographie universelle ancienne et moderne: histoire par ordre alphabétique de
la vie publique et privée de tous les hommes. Paris: Chez Madame C. Desplaces, 1854, p. 649. Disponível em
https://archive.org/stream/biographieuniver35desp#page/648/mode/2up. Acesso em 17/03/2018; SORKIN,
David. The Religious Enlightment: Protestants, Jews, and Catholics from London to Viena. Princeton and Oxford:
Princeton University Press, 2008, pp. 215 e segs.
59
Sete d’Abril, no 242 02/05/1835.
60
Ibidem, no 245, 12/05/1835 (Grifos do autor).
61
Ibidem, no 245, 12/05/1835 (Grifos do autor).
206
“nobre Papista”, afirmava o Sete que tinha “todos os sintomas de uma loucura próxima; e nós
cremos que em bem poucos dias teremos o dissabor que anunciar à nossa Câmara dos Lords
mais esta cabeça perdida.”62 As condenações de Gregório XVI faziam parte de uma “peça
impolítica”, contrária a “todo o orbe político” e aos valores “Tolerância política e religiosa”.63
O Sumo Pontífice condenava uma “inundação de maus livros”, aparecendo “um ou outro em
favor da VERDADE e da RELIGIÃO”.64
Além da intolerância política e religiosa explicitada na condenação às publicações
impressas, surgia ainda a questão das associações políticas, nas considerações sobre o apoio de
Cairu às diretrizes da Santa Sé: “o bom do Papista nos tinha também apresentado, havia dias,
a bula de Pio VII contra os Carbonarios e Pedreiros-Livres”.65 Segundo o artigo, Cairu estaria
“publicando esta peça pelos mesmos tipos por onde saem os Decretos e mais peças curiosas dos
Soberano-Grande-Comendador-Inquisidor Montezuma”.66 Montezuma, por sua vez, surgia na
condição de “fundador de um certo Rito de Pedreiros Livres do Rio de Janeiro, ao qual por aí
se diz que o Papista também pertence”.67 Ao que parece, o “Papista” comportava-se de maneira
contraditória ao propagar as encíclicas e bulas condenando a tolerância e a livre associação,
pois “feriu com uma espada de dois cortes a religião Cristã de quem se diz advogado, e a ordem
dos Pedreiros-Livres da qual ele faz parte. Qual dos dois Mestres terá o Papista renegado em
segredo: – Jesus Cristo ou Adoniram? – Ele o dirá antes de morrer.”68
À época dos ataques do Sete d’Abril dirigidos a Cairu, estavam próximos ao seu auge
os atritos entre Brasil e Roma por ocasião da indicação de Antônio Maria Moura para o bispado
do Rio de Janeiro. Em outro artigo dirigido ao “nobilíssimo V. de Cairu”, era a vez de uma
análise sobre duas publicações do Diário do Rio, “Disciplina Eclesiástica e Cisma
anatematizado – nos quais seu autor se propõe admoestar o Brasil que deve respeitar e executar
as disposições disciplinares do Sagrado Concílio Tridentino”.69 O autor dos textos em questão
afirmava que os bispos nomeados tivessem “plena confiança na Santa Sé”,70 o que não era o
62
Sete d’Abril, no 245, 12/05/1835.
63
Ibidem, no 245, 12/05/1835 (Grifos do autor).
64
Ibidem, no 245, 12/05/1835 (Grifos do autor).
65
Ibidem, no 245, 12/05/1835 (Grifos do autor).
66
Ibidem, no 245, 12/05/1835 (Grifos do autor).
67
Ibidem, no 245, 12/05/1835 (Grifos do autor).
68
Ibidem, no 245, 12/05/1835 (Grifos do autor).
69
O Diário do Rio de Janeiro surgiu no ano de 1821 na Corte fluminense e circulou até 1878, cumprindo a função
eminentemente informativa e popularizando-se, por seu preço e pelos preços dos gêneros alimentícios que trazia,
sob os epítetos Diário do Vintém e Diário da Manteiga. Em termos de alinhamento político, por mais que
alardeasse suposta neutralidade, Werneck Sodré identificou o “aulicismo” do Diário do Rio. Ver: SODRÉ, Nelson
Werneck. Op. Cit., pp. 50-51; Sete d’Abril, no 251, 02/06/1835 (Grifos do autor).
70
Sete d’Abril, no 251, 02/06/1835 (Grifos do autor).
207
caso de Maria Moura, cujas bulas de confirmação não foram enviadas por Gregório XVI. Diante
dos motivos alegados pela Sé romana, questionava o periódico orientado por Bernardo Pereira
de Vasconcelos: “não se reputará iníqua uma sentença (...) que infama um homem contra quem
se procede nem sua audiência, e sem lhe dar ação à defesa? Não se violarão (...) todos os
princípios do Direito Natural, Direito que a mesa religião confirma e sanciona?”71
A reflexão sobre os atritos jurídicos e político-eclesiásticos manteve-se calcada na
perspectiva do clero regalista e secular, defendida até então pelo Sete d’Abril, na medida em
que considerava “intolerável” e “execrando” o “julgamento” do Sumo Pontífice, “aplicando-se
aos súditos de uma Nação, cujo sistema político é o constitucional representativo.” 72 O
“primeiro princípio (...) professado” no Império brasileiro era o da legítima defesa: “Que
ninguém possa ser julgado senão pelos seus pares, dando-se lhe lugar à defesa.”73 Nesse sentido,
a oposição à nomeação de um bispo pelo governo brasileiro configuraria um atentado à própria
soberania, pois “como é que um Governo constitucional pode sofrer que fora da Nação se
congregue um estranho Tribunal para julgar um seu súdito, e arbitrariamente o condenar?”74 O
Consistório de Roma, o conselho de cardeais reunidos com o papa, era “em rigor um Tribunal
(...) porque ele julga um processo e irroga a pena, qual é a infâmia resultante da denegação de
bulas.”75 Tal afronta configuraria “o maior escândalo sobre o objeto de que se trata”, sendo sua
motivação política, pois o “Bispo eleito (...) tem emitido, na Assembleia de que é membro, sua
opinião inviolável”.76 Diante da decisão do Consistório, considerada discricionária, “ou a Corte
de Roma há de alterar certas decisões e normas porque se rege, ou o Brasil mudar suas
instituições liberais.”77
Diante da “autoridade do Sumo Pontífice para dispensa ou derrogar decisões dos
Concílios em matéria disciplinar”, a solução para o impasse passava pela reformulação do
ordenamento jurídico-eclesiástico, através de “uma concordata, pela qual se harmonizem
nossos princípios constitucionais com os procedimentos de Roma. Este passo devera ter sido
dado no começo de nossa Independência, para se evitarem os embaraços com que agora
lutamos.”78 As normas e jurisprudências reconhecidas pelo Estado nacional, em âmbito
eclesiástico, deveriam estar em consonância com a ordem constitucional vigente: “não são
71
Sete d’Abril, no 251, 02/06/1835.
72
Ibidem, no 251, 02/06/1835.
73
Ibidem, no 251, 02/06/1835.
74
Ibidem, no 251, 02/06/1835.
75
Ibidem, no 251, 02/06/1835.
76
Ibidem, no 251, 02/06/1835.
77
Ibidem, no 251, 02/06/1835.
78
Ibidem, no 251, 02/06/1835.
208
certamente aquelas disposições e decretos que, formados nos séculos em que o absolutismo e
despotismo regiam os povos, estão hoje em diametral oposição com as Instituições liberais.”79
Ao Império brasileiro, emancipado sob a égide das garantias individuais, não caberia acatar
decisões típicas da velha ordem, na qual eram amorfas as fronteiras entre os poderes temporal
e espiritual: “Então o procedimento do Pontífice e sua conduta era o procedimento e conduta
dos Reis, e sua vontade absoluta a lei dos Estados. Por estas palpáveis razões, mais que nunca
é interessante que se altere esta disciplina dominante.”80 A sacralidade do contrato coletivo
distinguia-se da normatividade disciplinar, à qual estava submetido um clero imprescindível à
dinâmica político-administrativa da monarquia brasileira:
Que tem que a religião do Brasil seja a religião católica e apostólica romana? Religião
é dogma, a disciplina regulamento. O dogma não muda, o regulamento muda: assim,
que é feito d’essas penitências canônicas, e de mil outros regulamentos que só pela
história se sabem? Portanto, se o sistema romano sobre confirmação de Bispos é ponto
disciplinar, pode o Governo, pode o povo, sem pena de perjúrio, infringir o estabelecido
no sistema romano em termos hábeis. Jurou sustentar a religião, não jurou sustentar a
disciplina. Não se confundam pois as espécies, extremem-se bem estas ideias.81
79
Sete d’Abril, no 245, 12/05/1835.
80
Ibidem, no 245, 12/05/1835. (Grifos do autor).
81
Ibidem, no 245, 12/05/1835. (Grifos do autor).
82
Ibidem, no 245, 12/05/1835 (Grifos do autor).
83
Ibidem, no 245, 12/05/1835 (Grifos do autor).
209
entre o trono e o altar. A marcha do Regresso conservador ocorreria pari passu à retomada dos
valores do catolicismo romanizado, no seio de um liberalismo constitucional forjado na
especificidade da monarquia católica e escravocrata brasileira.
84
Para um panorama geral sobre o Regresso conservador, ver: CASTRO, Paulo Pereira de. Op. cit., pp. 42 e segs;
DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit., pp. 125 e segs; LIMA OLIVEIRA, G. A. de. Op. cit., pp. 55-73; MATTOS,
Ilmar Rohloff de. Op. cit., pp. 142 e segs; MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos... Op. cit.,
pp. 146-147; PAULA, Alexandre Marciano. Op. cit., pp. 11-25; SILVA, Wlamir. Ser ou não ser liberal, eis a
questão... Op. cit., pp. 1-10.
85
SILVA, Wlamir. A valentia da dialética... In: Op. cit., p. 85 (Grifos do autor).
86
Na mitologia grega, Proteu era pastor dos rebanhos de Netuno, de quem recebeu dons de adivinhação.
Importunado por aqueles que buscavam predileções, Proteu passou a se metamorfosear para fugir de tais
importunações. No épico A Odisseia, Menelau e seus homens lograram imobilizar Proteu, obtendo a resposta sobre
a direção para casa. Para uma análise acurada da biografia política de Bernardo Pereira de Vasconcelos, a partir
do mito grego do Proteu, ver: SILVA, Wlamir. A valentia da dialética... In: Op. cit., pp. 83-155.
210
87
Aurora Fluminense, no 1085, 24/08/1835 (Grifos do autor).
88
Ibidem, no 1085, 24/08/1835.
89
Ibidem, no 1085, 24/08/1835 (Grifos do autor).
90
Ibidem, no 1085, 24/08/1835 (Grifos do autor).
91
Ibidem, no 1085, 24/08/1835 (Grifos do autor).
92
Ibidem, no 1085, 24/08/1835. (Grifos do autor).
93
Ibidem, no 1069, 15/06/1835.
94
Ibidem, no 1069, 15/06/1835(Grifos do autor).
211
em que houve uma “repentina mudança”, levantando a suspeita de “que neste negócio há
veneno escondido, ou que o nosso colega no seu recente Lusitanismo é muito pouco sincero.”95
As mudanças evidenciadas por Bernardo Pereira de Vasconcelos envolveriam também
os posicionamentos com relação aos problemas eclesiásticos. A Aurora destacava a
indisposição, já referida, do Sete d’Abril no que se referia à nomeação de Antônio Maria Moura
para o bispado do Rio de Janeiro: “Hoje a sua zanga da repartição dos negócios exteriores,
parece toda empenhada contra os Italianos, e contra o Chefe da Igreja Romana.” 96 Por outro
lado, a ira dirigida à Igreja romana poderia ser apenas mais uma das artimanhas opinativas:
“quem diz que daqui a algum tempo, irado catecúmeno, não venha o Sete, possuído de outro
Espírito, expender as doutrinas mais ultramontanas a pretexto de regresso, e estigmatizar todos
quanto puderem duvidar da infalibilidade pontifícia?”97 A julgar pela transigência que parecia
caracterizar a personalidade de Vasconcelos, a ofensiva regalista e secular do Sete d’Abril seria
passageira, podendo dar lugar a inspirações vindas das hostes que o mesmo Sete esboçaria sob
o epíteto de “papistas”. O posicionamento incisivo e, no limite, agressivo com relação à cúria
romana, juntamente com uma citação direta do Sete, embasaria o argumento da Aurora:
Por ora, é ele anti-papista, e não sabemos mesmo se em boa hermenêutica, as ideias da
sua Epistola 1ª ad Romanos podem ser olhadas como prova de que o Sete abjurou a
comunhão religiosa a que pertencemos. Decidam os Teólogos = “Vós (diz ele dirigindo-
se ao Chefe da Igreja) sois Bispo de Roma e não do Brasil; os títulos de Pontífice e de
Papa que a etiqueta ou quer que seja, vos atribuiu, tirados do paganismo, não vos dão
mais jurisdição do que S. Pedro Exerceu... Há um só legislador que é Deus. Não
examinaremos se as leis que fazeis executar na vossa Diocese, merecem todas esse
nome; porém vos afirmamos que não nos reconhecemos obrigados a lei algumas que
não seja estabelecida por Deus: os Livros sagrados e a tradição nos ensinam umas, as
outras se manifestam à nossa inteligência que nos vêm de Deus, e é independente de
vós... A nossa fé será pura, sem cobrir usurpações: o Brasil deixou de ser colônia de
Lisboa, não será longo tempo domínio de Roma.” 98
As rusgas entre a Aurora Fluminense e Vasconcelos, até então, não haviam impedido o
Sete d’Abril de defender o regalismo de inspiração secular dos padres moderados liderados por
Feijó. Contudo, o perfilhamento ao catolicismo romanizado não tardaria a aparecer nas páginas
do periódico orientado por Bernardo Pereira de Vasconcelos. Ainda em 1835, alguns meses
após as provocações da Aurora e as publicações atacando o “papista” Cairu, viria à luz, no Sete
d’Abril, um artigo, transcrito da Gazeta da Bahia, intitulado “Progressivo de Patente”, seguido
95
Aurora Fluminense, no 1069, 15/06/1835.
96
Ibidem, no 1069, 15/06/1835 (Grifos do autor).
97
Ibidem, no 1069, 15/06/1835.
98
Ibidem, no 1069, 15/06/1835 (Grifos do autor).
212
Art. 1º Sendo todos os homens formados e nascidos do mesmo modo, pouco mais ou
menos, serão todos iguais sem distinção de pais e filhos, de sábios e ignorantes, de
honrados e velhacos, de ricos e pobres, &c., &.: pelo que, o filho não terá obrigação de
obedecer ao pai, o discípulo ao mestre, nem a mulher ao marido.101
Ainda em 1834, quando das discussões sobre o Ato Adicional, Vasconcelos esteve na
“vanguarda” das ponderações sobre a reforma na Câmara dos Deputados e, relator do projeto,
entregou-o sob o estigma de “código da anarquia”.102 Após a aprovação do Ato, o líder
regressista tornou-se cada vez mais convicto sobre os perigos resultantes das concessões ditas
“descentralizadoras”, que, em seu entender, ampliavam demasiadamente o acesso às liberdades
e à igualdade em âmbito político-institucional.103 Os sarcasmos constitucionais do Sete eram
desenvolvidos, portanto, do ponto de vista de certa “anarquia” gerada pelo aprofundamento das
demandas liberais e, no segundo artigo, um tema caro a Diogo Antônio Feijó: “Art. 2º As
mulheres serão comuns, e cada homem tomará quantas quiser, e as largará toda a vez que lhe
parecer; e o mesmo poderão fazer as mulheres pelo que, deve cessar desde já a indissolubilidade
dos matrimônios.”104 A dimensão secular e laica do matrimônio, antes defendida, daria
sequência aos dispositivos jurídicos “demagógicos” e “federalistas”: “Art.3º Estes serão
celebrados em presença do Juiz de Paz respectivos, e na falta d’este, em presença do Delegado;
na falta d’este, do Inspetor do Quarteirão, e na falta d’este, do Fiscal, sem nenhuma dependência
dos Padres, que para prestam.”105 Ao fim do primeiro capítulo, os direitos republicanos
sobrepunham os deveres da tirania: “Art. 5º Sendo o vocábulo Dever inventado pelos déspotas
e tiranos, em a nossa República só se conhecem “Direitos” e nunca Deveres.”106
99
O Sete d’Abril, no 289, 27/10/1835. (Grifos do autor).
100
Ibidem, no 289, 27/10/1835 (Grifos do autor).
101
Ibidem, no 289, 27/10/1835.
102
LEAL, Aureliano. História constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1915, p. 178; SILVA,
Wlamir. A valentia da dialética... In: Op. cit., p. 111.
103
LEAL, Aureliano. Op. cit., pp. 177 e segs.
104
O Sete d’Abril, no 289, 27/10/1835.
105
Ibidem, no 289, 27/10/1835.
106
O Sete d’Abril, no 289, 27/10/1835 (Grifos do autor).
213
Art. 5º os Conventos serão suprimidos, e seus bens tomados em benefício do Povo, isto
é, dos Patriotas. Esses bens serão aplicados para Colégios de jovens fêmeas a fim de
aprenderem a esgrima, danças grotescas, a nadar, pescar e empalmar por princípios; e
os mesmos Conventos serão convertidos em public-house’s ou Prostíbulos, onde os
jovens vão recrear e adquirir boas maneiras.110
107
Ibidem, no 289, 27/10/1835.
108
Ibidem, no 289, 27/10/1835.
109
Ibidem, no 289, 27/10/1835.
110
Ibidem, no 289, 27/10/1835 (Grifos do autor).
111
DARNTON, Robert. Boemia literária: o submundo das letras no Antigo Regime. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, pp. 28-31.
112
Sete d’Abril, no 289, 27/10/1835.
214
exclusivo múnus sacerdotal ao qual deveriam se submeter, os clérigos nada mais seriam que
cidadãos comuns: “Art. 7º os que já forem casados, tenham que emprego tiverem, poderão ser
Padres; e assim terá a nossa República Sacerdotes pedreiros, carapinas, ferreiros, carniceiros,
mascates, almocreves, &c.; o que tudo é muito conveniente à Religião.”113 À comum condição
de padre casado associava-se a alusão aos “pedreiros”, o que poderia aludir aos casos não menos
comuns de sacerdotes maçons, a exemplo do próprio Feijó. Sobre a escolha dos bispos, mais
uma vez, o Sete distanciava-se da opinião emitida algum tempo antes:
Art. 8º Os Bispos serão eleitos por aclamação do Povo, e d’este receberão todos os seus
poderes. Nunca mais usarão de vestimentas do culto católico; pelo que, nos grandes dias
da República os seus ordenamentos serão estes: capote e calças azuis à Robespierre,
carapuça encarnada, (emblema da Liberdade) e em vez de báculo, usarão de um chuço
ou forquilha.114 (lembrar da Civil do Clero)
113
Ibidem, no 289, 27/10/1835.
114
Ibidem, no 289, 27/10/1835 (Grifos do autor).
115
Ibidem, no 289, 27/10/1835.
116
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Op. cit., p. 132.
117
SILVA, Wlamir. A valentia da dialética... In: Op. cit., p. 109.
118
Sete d’Abril, no 289, 27/10/1835.
119
Sete d’Abril, no 289, 27/10/1835.
215
capítulo, Dos Direitos e Garantias dos Cidadãos da Nova República, excluía-se uma fragmentária
“aristocracia” da vida política: “Art. 8º É membro nato dos Jurados todo o Pai da Pátria, todo o
indivíduo rasgado e que vive das suas agências. São excluídos os aristocratas. Aristocrata é todo
e qualquer rico, ou que vive do seu comércio, emprego ou indústria.”120 Além da divisão entre
os poderes, delimitava-se a orientação da política educacional a partir de uma literatura eivada
de “ateísmos” e “libertinagens”:
Esta Constituição garante a todos os cidadãos a instrução primária e gratuita; pelo que,
qualquer menino, na idade de 12 anos, já deve saber de cor o Citador de Pigault-Le-
Brun, o Templo de Jatab, a Thereza Filosofa, a Carta de Talleirand ao Papa, e a
Pavorosa Ilusão da Eternidade.121
120
Ibidem, no 289, 27/10/1835.
121
Ibidem, no 289, 27/10/1835 (Grifos do autor).
122
O Citador (1803), do novelista pós-revolucionário francês Charles Pigault-Lebrun (1753-1835), consistia em
um virulento ataque à Bíblia e ao catolicismo, tendo versão em espanhol datada de 1807 e em português datada de
1834. O romance licencioso História de dois Amantes ou o Templo de Jatab (1743), incialmente de autor anônimo,
era do dramaturgo francês Claude Godard d’Aucour (1716-1795). A obra foi condenada pelo edital censório de 24
de setembro de 1770 e saiu no Brasil pela Impressão Régia, com cortes e adaptações, em 1811. Pavorosa Ilusão
da Eternidade referia-se ao poema Epístola a Marília, de autoria do poeta árcade, ilustrado português, Manuel
Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). O poema fomentou a prisão de seu autor pelas mãos do intendente-geral
Diogo Inácio de pina Manique (1733-1805) em 1797, circulando em manuscrito clandestinamente em Portugal e
no Brasil. Ele, como também assinalava Tereza Filósofa, compreendia a religião como um freio social. Denunciava
o uso da religião pelo despotismo, fosse dos religiosos, fosse dos príncipes. Ver: ABREU, Márcia. O templo de
Jatab: um romance licencioso publicado pela Impressão Régia do Rio de Janeiro. Floema — Ano VII, n. 9, p. 193-
215, jan./jun. 2011; ANDRADE, Maria Ivone de Ornelas de. Macedo e Bocage: um duelo de vaidades. In: SILVA,
Francisco Ribeiro da Silva et al. Leituras de Bocage. Porto: Faculdade de Letras do Porto, 2006, p. 15; LUDLOW,
Gregory. Pigault-Lebrun: A Popular French Novelist of the Post-Revolutionary Period. The French Review, Vol.
46, No. 5 (Apr., 1973), pp. 946-950; VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do Livro no Mundo Luso-Brasileiro... Op.
cit., p. 214.
123
Inicialmente publicado sob anonimato, o romance libertino Teresa Filósofa foi atribuído a Jean Baptiste de
Boyer (1704-1771), o marquês d’Argens, crítico mordaz da Igreja católica. A tradução consultada foi publicada
como de autoria anônima. Ver: Teresa Filósofa. Porto Alegre: L & PM, 1997, pp. 30 e 91 e 96.
216
e dos “costumes dos celebrantes”.124 Em 1838, Talleyrand receberia uma resposta de Luís
Gonçalves dos Santos. Ao combater a Carta do primeiro-ministro francês, o padre Perereca
qualificaria a obra de “Epílogo monstruoso das horrorosas blasfêmias.”125 Cumpria afastar as
influências deletérias que partiam do antipapismo de Talleyrand e de um deus, “Bárbaro
impostor, mostro sedento”, rimado nos versos de Manuel du Bocage.126
No que se referia ao “direito de propriedade”, a “Constituição” afirmava garanti-lo “em
toda a sua latitude aos Pais da Pátria e a todos os seus apaniguados”, ao mesmo tempo, previa
o confisco dos bens de alguns estratos sociais: “a propriedade porém dos Padres, Frades e
aristocratas pertence por direito à Nação.”127 Além de privados das suas posses materiais, os
clérigos estariam entre os menos afortunados naquela sociedade inspirada pela “boemia
literária” e pelo republicanismo jacobino: “Art. 12º Também haverá uma Marinha da República,
e serão recrutados para grumetes, rações, gajeiros, &c., “os Padres, os Frades, os
Desembargadores, ou Lestes dos Cursos Jurídicos, os Professores de Lógica, Retórica, e os
Sacristãos.”128 Ao reproduzir uma sátira constitucional dedicada a Evaristo da Veiga, o Sete
d’Abril rompia com um posicionamento regalista e secular defendido meses antes e parecia
perfilar-se à defesa de um catolicismo romanizado, cioso das prerrogativas tridentinas e avesso
à marcha do “carro da Revolução”.
A conversão de Vasconcelos à ortodoxia católica ocorreu em uma conjuntura delicada,
no momento em que Feijó abatia Holanda Cavalcanti (1797-1863)129 e vencia a corrida pelo
posto de regente do Império. O artigo tratando da “Constituição”, dirigido a Evaristo da Veiga,
fora reproduzido poucos dias depois da posse de Feijó, a 12 de outubro de 1835, em um cargo
para o qual o campeão do Regresso concorreu e obteve poucos votos.130 Honório Hermeto
registrou, em carta a Costa Carvalho (1796-1860),131 a briga entre Vasconcelos e Feijó, fato
124
TALLEYRAND, Carlos Maurício. Carta escrita al papa Pio VII. Paris: año de 1822, p. 2.
125
SANTOS, Luís Gonçalves dos. A impiedade confundida, ou refutação da carta de Talleyrand escrita ao papa
Pio VII. Oferecida e dedicada ao excelentíssimo e reverendíssimo senhor D. frei Antônio d’Arrábida. Pernambuco:
Na tipografia de Santos e Companhia, 1838, p. 7.
126
GONÇALVES, Adelto. A casa onde nasceu Bocage e outras verdades que não pegam. In: SILVA, Francisco
Ribeiro da Silva et al... Op. cit., p. 81.
127
Sete d’Abril, no 289, 27/10/1835 (Grifos do autor).
128
Ibidem, no 289, 27/10/1835.
129
Antônio Francisco de Paula Holanda Cavalcanti de Albuquerque, visconde de Albuquerque, nasceu em
Pernambuco e iniciou carreira militar nos quadros do Império luso-brasileiro, servindo em Moçambique e Macau.
Foi deputado por Pernambuco nas três primeiras legislaturas, além de senador e ministro das pastas da Fazenda,
Marinha, Guerra e Império. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. 1), pp. 172-173.
130
CASTRO, Paulo Pereira de. Op. cit., pp. 41-42.
131
José da Costa Carvalho nasceu em Salvador, marquês de Monte Alegre e bacharelou-se em direito na
Universidade de Coimbra. Foi deputado pelas províncias da Bahia e de São Paulo, senador por Sergipe, presidente
da província de São Paulo, conselheiro de Estado e membro da Regência Trina Permanente (1831-1834). Costa
Carvalho fundou o primeiro periódico da província de São Paulo, O Farol Paulistano (1827-1832) e foi diretor da
217
Faculdade de Direito da mesma província. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. 1),
p. 399.
132
CASTRO, Paulo Pereira de. Op. cit., p. 42.
133
Romualdo Seixas posicionou-se a favor da censura prévia por parte dos bispos, como já se informou nesta tese,
alegando inclusive a inconsistência da infalibilidade papal e, inspirado no conciliarismo, a preponderância da
“Igreja Universal”. Assim, evocava um ponto de vista típico dos regimes regalistas e galicanos para justificar
práticas persecutórias por parte do Estado e legitimadas pelo poder espiritual. Vasconcelos, por sua vez, firmou
posicionamento contrário, inspirado no liberalismo constitucional herdeiro da ilustração: “É preciso pois declarar-
se, se os bispos censurarão só os livros publicados antes desta lei, ou também os posteriores a ela, e é também
necessário que não fique em dúvida se haverá alguma censura antes da publicação, como poderia entender-se à
vista das palavras – censurar os livros já publicados. – Acabou a censura prévia, a nossa constituição a proscreveu.”
Ver: SEIXAS, Romualdo Antônio de. Discursos parlamentares... Bahia: Tipografia de J. P. Franco Lima, 1836,
pp. 18-19. BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 22/07/1826. Brasília: Câmara dos Deputados.
Disponível em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 21/03/2018.
134
CASTRO, Paulo Pereira de. Op. cit., p. 44.
135
Nas Memórias do marquês de Santa Cruz, d. Romualdo Seixas afirmou que os supostos encontros em sua
residência, com “os principais conspiradores Vasconcelos e Calmon”, não passavam de um “boato” da oposição.
O arcebispo destacou ainda a anedota do deputado mineiro sobre a conspiração, pois, “paralítico como estava e
tolhido das pernas não poderia subir a grande ladeira de S. Bento”. Ver: LIMA OLIVEIRA, G. A. de. Op. cit., pp.
150 e segs; SEIXAS, D. Romualdo Antônio de. Memórias do Marquês de Santa Cruz. Op. cit., p. 99.
136
O Sete d’Abril, no 264, 21/07/1835.
137
O Sete d’Abril, n o 264, 21/07/1835 (Grifos do autor).
218
do Império, baldasse destarte todos os planos dos partidos em que se divide, por
desgraça, a nossa população; se, observando que a mesma Providência parece
recomendar tão sábia medida fazendo abrolhar tão Alta Inteligência, Siso e Prudência
na tenra idade de S. A. Imperial...138
138
Segundo o Sete, a Aurora Fluminense reprovava a proposta de um terceiro partido, alegando que o periódico
regressista “não era mais do que um eco, um servil copista do célebre francês Dupin, que está organizando um
terceiro partido em França em circunstâncias muito menos urgentes que as nossas.” Ver: Aurora Fluminense, no
1035, 20/07/1835; O Sete d’Abril, no 264, 21/07/1835 (Grifos do autor).
139
O Sete d’Abril, no 264, 21/07/1835.
140
Ibidem, no 264, 21/07/1835 (Grifos do autor).
141
LIMA OLIVEIRA, G. A. de. Op. cit., pp. 152 e segs; O Sete d’Abril, no 265, 28/07/1835; no 268, 08/08/1835;
no 270, 18/08/1835; no 279, 22/09/1835; no 327, 11/03/1826; no 331, 26/03/1836; no 333 02/04/1836; no 336,
11/04/1836; no 341, 27/04/1836; no 352, 11/06/1836; no 368, 03/08/1836;
142
O Sete d’Abril, no 327, 11/03/1826
143
BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão Imperial da Abertura da Assembleia Geral Legislativa,
03/05/1836. Brasília: Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 21/03/2018.
144
O Sete de Abril, nº 343 – 12/05/1836.
219
uma nota de Lord Strangford, diplomata inglês, ao Império turco-otomano, estando o “Brasil
em lugar de Inglaterra, e a de Santa Sé em lugar de Constantinopla”.145 Em uma conjuntura
na qual era intenso o apreço do Parlamento brasileiro às questões da Política Externa, o
tratamento dado à Sé romana parecia pouco equilibrado: “Muita semelhança decerto encontra
o nosso Governo entre o Soberano Pontífice e o Príncipe Maometano!!! E será este o tratamento
que merece o Sumo Pontífice, que, como diz a Fala do Trono, obedece à sua consciência?!”146
Enveredando-se por uma argumentação que reproduzia a ideia de “cisma” entre os
Estados brasileiro e pontifício, Vasconcelos protestava “contra o intento que o Governo ostenta
de alterar a Fé Católica, de mudar a Religião do Estado, de, em uma palavra, Luteranizar o
Brasil.”147 A Igreja romana seria “uma Sociedade perfeita e Divina” e, portanto, “recebeu do
seu Divino Fundador todos os seus poderes necessários para o seu Governo Espiritual. Ela só
pois tem o Direito de estabelecer as suas leis, de variar e regular a sua Disciplina sem ingerência
de outro algum Poder humano.”148 A autoridade da Santa Sé sobre as questões espirituais fora
exercitada “efetivamente sob os Imperadores idólatras e perseguidores; e o fato de se
converterem e abraçarem estes a Religião Cristã não lhes deu, nem podia dar outro Direito, que
o de a protegerem e manterem nos seus Estados.”149 O argumento de autoridade ficava por
conta de Bossuet, voz recorrente nas falas de d. Romualdo Seixas:
Tal é a Constituição da Igreja Católica: o seu espirito, diz Bossuet, é que ela seja
governada pelos seus Cânones e pela divina Hierarquia dos seus Poderes. É evidente
pois que os Príncipes ou o Poder Temporal, não podem, só por sua autoridade e sem o
concurso do Poder Espiritual, reformar ou alterar não já o Dogma, que é imutável, mas
a mesma Disciplina Universal, estabelecida pelos Cânones. Esta proposição, segundo o
mesmo Bossuet, é de Fé, e assim o definiu igualmente o célebre Concílio de Constança
na Sessão 13, onde tratando de uma questão de Disciplina Geral pronunciou a seguinte
145
O documento de Percy Clinton Sydney Smythe, Lord Strangford (1780-1855), embaixador inglês no Brasil
durante a estadia da Corte portuguesa, foi redigido em 1823, na sequência da Independência grega (1821) com
relação ao Império Otomano. Em linguagem dura e direta, o diplomata britânico pressionava a Sublime Porta no
sentido do restabelecimento das relações com o Império Russo, afirmando não ser “inesgotável (...) a paciência do
Imperador da Rússia”. Em tom semelhante, a nota do governo brasileiro afirmava: “A Santa Sé se engana, se crê
inesgotável a paciência da Regência em nome do Imperador D. Pedro II.” Ver: Reflexiones imparciales de un
brasilero sobre el mensaje del trono, de las respuestas de las cámaras legislativas del año de 1836 en la parte
relativa al obispo electo para la diócesis del Rio de Janeiro, y a la Santa Sede Apostólica, traducidas del idioma
portugués al castellano. Buenos Ayres: Imprenta de la Libertad, 1837, pp. 23 e segs; LIMA, Raul. O desabusado
Lord Strangford. Revista de História, São Paulo, v. 50, n. 100, p. 777-781, dec. 1974. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/132669/128754. Acesso em: 21 mar. 2018; O Sete de Abril, nº
343 – 12/05/1836 (Grifos do autor).
146
O Sete de Abril, nº 343 – 12/05/1836 (Grifos do autor).
147
Ibidem, nº 343 – 12/05/1836 (Grifos do autor).
148
Ibidem, nº 343 – 12/05/1836.
149
Ibidem, nº 343 – 12/05/1836.
220
decisão – Habenda est pró lege quam non licet reprobare; aut sine Eclesiae auctoritate
mutare –.150
150
A referida questão dizia respeito ao “Decreto a respeito da comunhão só sob a espécie do pão”, sentenciando a
passagem transcrita no Sete que “este costume deve ser considerado como uma lei que não pode ser reprovada
nem modificada arbitrariamente, sem o consentimento da Igreja.” Em suma, os dispositivos dos cânones
conciliares, por vezes, consolidavam-se através de jurisprudências que tinham por objetivo dirimir conflitos. No
caso, se a comunhão deveria ocorrer em duas espécies, o pão e o vinho, ou em uma espécie, o pão. Ver:
DENZINGER, Henrici. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas:
Edições Loyola, 2007, pp. 347-348; O Sete de Abril, nº 343 – 12/05/1836 (Grifos do autor).
151
SEIXAS, D. Romualdo Antônio de. Memórias do Marquês de Santa Cruz. Op. cit., p. 95.
152
Ibidem, p. 95. (Grifos do autor).
153
Ibidem, p. 95.
154
SEIXAS, D. Romualdo Antônio de. Memórias do Marquês de Santa Cruz. Op. cit., . 98.
155
Ibidem, p. 98.
221
Com efeito, no Sete d’Abril, não haveria mais espaço para a agenda de reformas do clero
moderado, e quanto a isso era claro o final do discurso reproduzido da resposta à Fala do Trono:
“Ora, aplicados estes princípios ao caso de que se trata, ainda é mais saliente a incompetência
do Poder Temporal para alterar esta parte tão importante da Disciplina relativa à Instituição dos
Bispos.”156 Ao “Chefe da Igreja”, caberia a “plenitude do Poder de Honra e Jurisdição” e, desse
modo, a “Instituição Canônica” não poderia passar “a outras mãos por um ato do mesmo Poder
Civil, e sem o acordo ou consentimento do Soberano Pontífice”.157 Na hipótese de uma
ingerência temporal nos assuntos de natureza canônica, “cada uma das Igreja Nacionais se
tornaria absolutamente independente e sem nexo algum com o Chefe e Pai comum de todos os
Fiéis, e com a Cadeira eterna, sobre a qual Jesus Cristo edificou a sua Igreja”.158 A alegada
usurpação de competências redundaria no fim da religião católica: “desapareceria
conseguintemente o Catolicismo; pois que este não pode existir sem Unidade, e a unidade não
pode existir nem conceber-se sem o Primado da Honra e Jurisdição”.159
A Fala do Trono elaborada por Feijó, embasada nos Estatutos da Universidade de
Coimbra de 1771 e inspirada também pela Constituição Civil do Clero,160 impactaria o escopo
do arcabouço jurídico do Império, pois “seria preciso finalmente, para sermos consequentes,
riscar o art. 5º da Constituição Política do Império e por em vigor e execução o famoso Projeto
do Ilustre Deputado o Sr. Rafael de Carvalho”.161 O referido projeto do deputado Estevão Rafael
de Carvalho foi proposto à Câmara em 1835 e seu conteúdo era direito: “Art. 1º A igreja
brasileira fica desde já separada da igreja romana; Art. 2º O supremo sacerdócio fica devolvido
ao governo.”162 O texto cismático fomentou um clima efervescente na Câmara e, levado à
votação em julho de 1836, a pedido de Vasconcelos, não foi aprovado.163 Segundo as
informações da coleção O Clero no parlamento brasileiro, no mesmo conturbado ano de 1836,
o deputado Francisco de Paula Araújo Almeida leu uma emenda de 1827, de autoria de
156
O Sete de Abril, nº 343 – 12/05/1836.
157
Ibidem, nº 343 – 12/05/1836.
158
Ibidem, nº 343 – 12/05/1836.
159
Ibidem, nº 343 – 12/05/1836.
160
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. O Clero no parlamento
brasileiro (Vol. III). Op. cit., pp. 244-245.
161
O Sete de Abril, nº 343 – 12/05/1836.
162
BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 06/06/1835. Brasília: Câmara dos Deputados. Disponível
em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 22/03/1835.
163
A proposta do deputado Rafael de Carvalho, juntamente com um projeto do deputado Ferreira França, foi alvo
de análise por parte do general Abreu e Lima. O autor criticava as duas propostas, pois atacavam os pilares do
trono e do altar, rompendo com a Santa Sé e estabelecendo uma “República Democrática”. Ver: ABREU E LIMA,
José Inácio de. Bosquejo Histórico, político e literário do Brasil. Niterói: Tipografia Niterói de Rego e Comp.,
1835; BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 09/07/1836. Brasília: Câmara dos Deputados.
Disponível em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 22/03/1835; SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Op. cit.,
pp. 347-349.
222
164
A Comissão Eclesiástica, da qual faziam parte Feijó e José Bento, emitiu parecer opondo-se ao teor do
documento pontifício em razão de quatro questões fundamentais. A bula concedia ao imperador o direito ao
Padroado, o que não fazia sentido, pois a referida competência já estava regulamentada pela Constituição de 1824.
Quanto aos novos bispados, a bula buscava regulamentar a criação dos cabidos, o valor das côngruas e a instituição
dos seminários episcopais, o que, segundo o parecer emitido, era de estrita competência do poder civil. No tocante
aos cabidos, afirmava-se serem desnecessários, na medida em que apenas se preocupavam em “recitar ou cantar
os ofícios divinos”. Em longa análise da questão, Romualdo Seixas, recém-sagrado arcebispo primaz, saiu em
defesa das prerrogativas papais. Vasconcelos apoiou o parecer de Feijó e José Bento, propondo uma emenda de
teor regalista e secular na demarcação do exercício das competências eclesiásticas pelo poder temporal. O nono e
último ponto da emenda continham o seguinte teor: “se a corte de Roma se recusar a uma tão ortodoxa como
interessante negociação, o Governo observará a disciplina dos bons séculos da Igreja.” Ver: BRASIL. Anais da
Câmara dos Deputados. Sessão de 12/07/1827. Brasília: Câmara dos Deputados. Disponível em:
http://www.camara.gov.br. Acesso em 22/03/1835; BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Centro de
Documentação e Informação. O Clero no parlamento brasileiro (Vol. III). Op. cit., pp. 245-246.
165
O Sete de Abril, nº 350, 04/06/1836.
166
Ibidem, nº 350, 04/06/1836.
167
Ibidem, nº 350, 04/06/1836.
223
Concordatas ou Convenções estabelecidas pelo seu mútuo acordo com o Chefe da Igreja”.168
Em sua exposição de argumentos construídos a partir da lei e do direito, Romualdo Seixas citava
o presidente da Câmara dos Deputados da França, André Dupin (1783-1865), afirmando que
“nenhum Poder pode por si só impor a lei aos outros, e reciprocamente nenhum pode desfazer
por si só a lei que foi feita com o concurso de muitos”.169
A história da França foi outro ponto nodal da réplica do arcebispo, e um dos exemplos
escolhidos remetia à recusa de Inocêncio XII (1676-1689) com relação aos bispos “que na
famosa Assembleia do Clero de 1682 haviam aprovado os quatro arts. que tanto desagradavam
à Cúria Romana”.170 Diante do fato, Luís XIV, “aquele Grande Rei”, prescindiu das ameaças,
solicitando “que os referidos Bispos dirigissem ao Santo Padre explicações respeitosas em uma
carta que foi redigida pela mão de Bossuet” e escrevendo “ele mesmo a S. Santidade neste
sentido, prometendo não insistir na adoção da doutrina dos mencionados arts.”171 Já na edição
seguinte do Sete, uma inflexão deletéria ficaria por conta da “Constituição Civil do Clero,
monstruosa produção do Jansenismo e da Filosofia, mudou inteiramente a Disciplina recebida
sobre a nomeação e confirmação dos Bispos”.172 A ruptura revolucionária, muito mais que o
galicanismo de Bossuet e Luís XIV, teria sido responsável pelo descaso para com a Cúria
romana, pois:
168
O Sete de Abril, nº 350, 04/06/1836.
169
André Marie Jean Jacques Dupin nasceu em Varzy e, concluindo o bacharelado em leis, tornou-se destacado
advogado e jurista ao defender as liberdades individuais civis e políticas. Dupin foi um dos artífices da transição
que levou à Monarquia de Julho em 1830. Romualdo Seixas destacava a resistência do advogado liberal francês,
em 1831, à revogação de uma concordata sobre circunscrições eclesiásticas, documento este estabelecido entre
França e Santa Sé. Ver: ROSSI, A. A construção da opinião pública na França no início do século XIX. Textos de
História: revista do programa de pós-graduação em história da UnB, Brasília, v. 2, n. 4, p. 111-130, 1994.
Disponível em: http://seer.bce.unb.br/index.php/textos/article/view/5762. Acesso em: 12/04/2017; O Sete de Abril,
nº 350, 04/06/1836.
170
O Sete de Abril, nº 350, 04/06/1836.
171
Ibidem, nº 350, 04/06/1836.
172
Ibidem, nº 351, 08/06/1836.
173
Ibidem, nº 351, 08/06/1836. (Grifos do autor).
224
Roma, diz o Orador Francês, está longe, Roma é fraca; mas Roma tem inteligências
profundas, sagradas, enraizadas na consciência das nossas populações. Sua voz fala mui
alto no coração das massas; seu silêncio mesmo, seu descontentamento secreto não é
sem influência sobre a paz do País. (...) Quanto mais novo é o Poder Político, mais
recente a vossa Liberdade, tanto maiores respeitos devemos guardar para com a Corte
de Roma, tanto mais devemos convencê-la de que não há inimizade natural entre a
174
O Sete de Abril, nº 351, 08/06/1836.
175
Ibidem, nº 351, 08/06/1836.
176
Ibidem, nº 351, 08/06/1836.
177
Ibidem, nº 351, 08/06/1836.
178
BÉNICHOU, Paul. Op. cit., p. 67.
225
Religião e a Liberdade, entre as mais nobres faculdades que a Providência tem dado ao
homem.179
179
O Sete de Abril, nº 351, 08/06/1836.
180
Ibidem, nº 352, 11/06/1836.
181
Ibidem, nº 352, 11/06/1836.
182
Ibidem, nº 352, 11/06/1836.
183
Ibidem, nº 352, 11/06/1836.
184
LIMA OLIVEIRA, G. A. de. Op. cit., pp. 89 e segs.
226
poucos sucessos têm obtido na catequese e civilização das Tribos errantes”.185 Sobre a extinção
dos Jesuítas, cujo resultado fora um “vazio imenso” na educação dos povos autóctones, recorria
mais uma vez a uma voz liberal: “como diz Chateaubriand, não se levantou mais a educação,
depois da queda dessa famosa Sociedade”.186 A solução para o problema seriam “outras
Corporações”, em especial “os padres denominados da Missão (...) herdeiros do zelo Apostólico
do Imortal S. Vicente de Paula, que mereceu as simpatias dos Filósofos, até colocarem o seu
Busto entre os dos seus Heróis, com a inscrição – Vicente, Filósofo do Século 17!”187 Na
resposta ao Ministro do Império, Limpo de Abreu (1798-1883),188 o clérigo baiano interpretaria
os limites da legislação imperial à tolerância com relação a outras manifestações religiosas
além do catolicismo romano:
185
O Sete de Abril, nº 356, 25/06/1836.
186
Ibidem, nº 356, 25/06/1836.
187
Ibidem, nº 356, 25/06/1836. (Grifos do autor).
188
Antônio Paulino Limpo de Abreu, Visconde de Abaeté, nasceu em Lisboa e migrou para o Brasil com a Corte
em 1808. Formado em direito pela Universidade de Coimbra, fez longeva carreira na magistratura, na política e
na diplomacia. Limpo de Abreu foi deputado por Minas Gerais nas quatro primeiras legislaturas e senador pela
mesma província, além de presidente do Conselho de Ministros do primeiro gabinete da Regência de Feijó. Em
Minas Gerais ainda exerceu o cargo de presidente de província. Ver: BLAKE, Augusto Vitorino Alves
Sacramento. Op. cit. (vol. 1), pp. 275-276.
189
O Sete de Abril, nº 356, 25/06/1836. (Grifos do autor).
190
BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil (25 de março de 1824). Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm
191
SANTOS, Israel Silva dos. Op. cit., p. 95.
227
d’Abril exporia as razões que o arcebispo elencou na Câmara: “conquanto eu esteja convencido
da utilidade do estabelecimento proposto pela Emenda, eu inclino-me a crer que ela não é por
ora exequível, ou ao menos não será executada de um modo tal que desempenhe as vistas de
seu Ilustre Autor”.192 Apesar da oposição à proposta, elogiava-se a preocupação do autor da
proposta em promover uma “Teologia Católica”, “em uma época em que as doutrinas do
Protestantismo são continuamente amalgamadas e confundidas com as do Catolicismo”. 193
Condenando o “gozos puramente materiais que distinguem a Escola Sensualista”, mesmo se
opondo ao projeto de Vasconcelos, Romualdo agradecia a lembrança “quando aparecem
tentativas para descatolizar o Brasil”.194
O Sete d’Abril tornou-se o principal periódico regressista na Corte fluminense,
combatendo os outrora aliados da moderação e dando eco aos valores tridentinos de Romualdo
Seixas, o principal antagonista do padre regente. Em sua missão de refrear as volições
revolucionárias, tidas por anárquicas, o Sete ainda travaria diálogos com folhas redigidas nas
províncias. Foi o caso do periódico O Carapuceiro, redigido pelo padre Miguel do Sacramento
Lopes Gama (1792-1852).195 Apesar de rejeitar o termo “Regresso”, o padre Lopes Gama
apoiou as demandas capitaneadas por Vasconcelos e sintetizadas, sobretudo, na lei de
interpretação do Ato Adicional (1840) e na reforma do Código de Processo Criminal (1841).196
192
O Sete de Abril, nº 360, 09/07/1836.
193
Ibidem, nº 360, 09/07/1836.
194
Ibidem, nº 360, 09/07/1836. (Grifos do autor).
195
Miguel do Sacramento Lopes Gama (1792-1852) nasceu em Recife. Iniciou seus estudos eclesiásticos em
Olinda e concluiu em Salvador, onde também lecionou. Consolidou carreira eclesiástica lecionando também em
Pernambuco e foi vice-diretor da Faculdade de Direito de Olinda. Foi eleito deputado à Assembleia Geral por
Alagoas na sexta legislatura, além de deputado provincial em Pernambuco. Era pregador da Capela Imperial,
comendador da Ordem de Cristo e membro do IHGB. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op.
cit. (Vol. 6), pp. 287-290.
196
De um modo geral, a Interpretação do Ato Adicional redundou na centralização do exercício das competências
jurídicas, abolindo-se a figura do prefeito (onde ela havia sido criada) e esvaziando os poderes dos juízes de paz.
Até o Ato Adicional de 1834, as prerrogativas de criação, supressão, nomeação e definição de atribuições dos
empregos provinciais estavam concentradas, em tese, nas mãos do poder central. Com a reforma, criaram-se as
Assembleias Provinciais e a elas foi conferido um espectro de competências que dispunham sobre a criação e
supressão dos empregos provinciais e municipais, inclusive no que se referia à jurisdição eclesiástica, à exceção
do bispo. Cumpre salientar que, a partir de 1828, com a Lei das Câmaras, de autoria de Feijó, os municípios
perderam autonomias político-administrativas seculares, herdadas do ordenamento jurídico próprio ao Antigo
Regime, e muitas de suas atribuições passaram ao âmbito do governo provincial, em que pese a figura do juiz de
paz, eleito pelos municípios e com poderes ampliados a partir do Código de Processo Criminal promulgado em
1832. Nesse sentido, a partir de 1828, houve uma inflexão descentralizadora com relação ao poder central e, ao
mesmo tempo, centralizadora no que se referia aos municípios. Com a Lei de Interpretação do Ato Adicional, as
Províncias mantiveram as atribuições de criação e supressão concernentes aos empregos municipais e provinciais,
excetuando-se os empregos do Judiciário. Apesar da manutenção de certo poder nas mãos das Assembleias
Provinciais, os vice-presidentes de província passaram a ser nomeados pelo poder central e não mais pelas cassas
legislativas das províncias. (As informações desta nota de rodapé foram, em parte, fornecidas por Alex Lombello
do Amaral, que retirou muitas delas de fontes primárias coevas. Registra-se aqui o agradecimento ao referido
historiador). Ver: DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit., pp. 65 s segs.
228
197
O Sete de Abril, nº 346, 21/05/1836.
198
Ibidem, nº 346, 21/05/1836.
199
Ibidem, nº 346, 21/05/1836. (Grifos do autor).
200
Ibidem, nº 346, 21/05/1836.
201
De acordo com Lopes Gama, “à exceção dos mendigos, velhos decrépitos e meninos, quase tudo o mais deve
ser Guarda Nacional”. A solução passava por restabelecer “o Regulamento de 20 de Dezembro de 1808, que é
ótimo; deixemo-nos de novidades impraticáveis, e que só servem de nos tornar ridículos.” Ver: O Sete de Abril, nº
346, 21/05/1836.
202
O Sete de Abril, nº 630, 05/11/1838.
203
Ibidem, nº 630, 05/11/1838.
229
darão a tais fatos certos Doutores formados em Barão d’Holbac, em Helvécio, em Voltaire, em
Boulanger, no Citador e no Compadre Matheus?”204 O “espantoso acontecimento” poderia
avivar os “ânimos de certos franchicotes, que guardam, como uma relíquia, ou um Oráculo o
infame livrinho falsamente atribuído ao mesmo Talleyrand e intitulado – CARTA ESCRITA A
PIO VII.”205
A angustiante narrativa enveredava pela senda de uma análise sobre os “filosofantes”,
cuja vida era “pela mor parte a crônica dos mais vergonhosos vícios”.206 De acordo com o artigo
do Carapuceiro, os “sofistas” e “soberbos sacerdotes da Deusa Razão” padeciam, “combatidos
de remorsos à hora da morte, assustados com os terríveis pensamentos, que lhe lidavam na
alma, retrataram-se, converteram-se felizmente, ou exalaram o último suspiro nas angústias da
desesperação.”207 Dentre os arrependidos, encontrava-se “Boulanger, um dos mais rancorosos
inimigos do Cristianismo”.208 Na classe dos desesperados, “o misantropo Rousseau (...) que
depois de sustentar que o homem para ser feliz devia separar-se da sociedade (...) e pôr-se de
quatro pés pelos bosques à maneira dos ursos; terminou os seus dias pelo suicídio, último delírio
do espírito humano!”209 Fruto dos delírios de indivíduos afastados da religião, a produção
ilustrada do século XVIII teria sido um catalizador para os acontecimentos desencadeados em
1789: “Nas obras dos ímpios do Século passado foram beber as máximas mais horrorosas e
detestáveis os monstros, que alagaram de sangue, e de nunca vistos crimes o solo da França.”210
Cumprindo diferentes desígnios, ilustrados e jacobinos irmanavam-se em uma obra nefasta:
Se deixassem obrar Robespierre, que apenas tinha feito cair perto de 100.000 cabeças
sob o machado nacional; se lhe permitissem descarregar o grande golpe, o golpe
republicano, só existiriam em França sans culotes, a Pátria seria salva e a Terra Livre!
Talvez que os Srs. filosofantes chamem a tudo isso calúnia, e adulteração das suas
doutrinas, visto que eles nunca pregaram às escancaras a matança e o roubo, como
Babeuf, Marat e outros malvados seus discípulos: (...) porque os filosofantes eram muito
mais ladinos e moquencos, do que esses demônios encarnados.211
204
O Sete de Abril, nº 630, 05/11/1838.
205
Ibidem, nº 630, 05/11/1838.
206
Ibidem, nº 630, 05/11/1838.
207
Ibidem, nº 630, 05/11/1838.
208
Nicolas-Antoine Boulanger (1722-1759) nasceu em Paris. Filho de livreiro, Boulanger foi autodidata em
matemática arquitetura e línguas antigas, destacando-se como filósofo, engenheiro, cartógrafo e crítico ferrenho
da Bíblia. Desenvolveu obras de engenharia, compêndios, monografias e tratados, além de contribuir para a
Enciclopédia, de Diderot e d’Alembert. Ver: SADRIN, Paul. "Boulanger, Nicolas-Antoine." In: KORS, A. C.
(Ed.). Encyclopedia of the Enlightenment (Vol. I). Oxford: Oxford University Press, 2003, pp. 169-171; O Sete de
Abril, nº 630, 05/11/1838.
209
O Sete de Abril, nº 630, 05/11/1838.
210
Ibidem, nº 630, 05/11/1838.
211
O Sete de Abril, nº 630, 05/11/1838. (Grifos do autor).
230
212
O Sete de Abril, , nº 630, 05/11/1838.
213
Ibidem, nº 630, 05/11/1838. (Grifos do autor).
214
Et des boyaux du dernier prêtre/ Serrons le cou du dernier roi - Com as tripas do último padre/Enforquemos o
último rei. Ver: O Sete de Abril, nº 630, 05/11/1838.
215
O Sete de Abril, nº 630, 05/11/1838.
216
Ibidem, nº 630, 05/11/1838.
217
Ibidem, nº 706, 05/03/1839 (Grifos do autor).
218
Ibidem, nº 706, 05/03/1839.
219
Ibidem, nº 706, 05/03/1839.
231
Sociedades de Pafos, de Gnido e de Amatunta, Sociedade de Caco já as temos”. 220 Mais uma
vez, as forças da religião surgiam na condição de vítimas da intolerância: “Ninguém se importa
com a aplicação que tais Sociedades fazem de seus fundos (...) mas as Sociedades Religiosas
(...) Não devem existir”.221
No entender do Carapuceiro, o resultado dos desígnios racionais propagados pelos
filósofos da Ilustração lembrava algo próximo ao quadro A liberdade guiando o povo, de
Eugène Delacroix (1798-1863): “Fora com essas frioleiras; venha o puro e Santo Culto da
Natureza, venha a Deusa Razão que, será representada por uma linda e guapa Mocetona sem
outros vestidos, e adornos mais, do que aqueles com que nasceu.”222 À moral católica estava
oposta a lascívia revolucionária, da qual derivaria a campanha contra o clero regular: “O
filosofismo e o venha a nós bradaram que o único remédio a tão graves males era a supressão
das Ordens Religiosas; e todos os seus bens aplicados em proveito do Fisco.” 223 Exemplo da
tragédia gestada pelo “filosofismo” era Portugal, onde “D. Pedro (Deus lhe perdoe) deu ouvido
a essas Remoras empolgadoras, com quatro penadas destruiu a obra de quatro séculos!”224 O
destino incerto dos bens das ordens seria a fortuna daqueles que triunfaram sob d. Pedro IV:
“Que é feito de tanto cabedal, que possuíam as Corporações Regulares? Que é feito da imensa
prata e ouro de seus Templos? Não se sabe: tudo se sumiu ou consumiu. Perguntem sobre este
capítulo a certos heróis, que tem-se escamugido para Londres”.225
Os reforços à campanha regressista do Sete d’Abril não se restringiram à província de
Pernambuco, reduto de uma bancada parlamentar que contava com o futuro regente Araújo
Lima (1793-1870)226 e financiava o Atlante, periódico da falange regressista editado por
Justiniano José da Rocha.227 De importância para Regresso conservador foi também o
Paraibuna, de Barbacena, Minas Gerais, perfilado à defesa de um catolicismo romano e
220
O Sete de Abril, nº 706, 05/03/1839.
221
Ibidem, nº 706, 5/03/1839.
222
Ibidem, nº 706, 5/03/1839.
223
Ibidem, nº 706, 5/03/1839 (Grifos do autor).
224
Ibidem, nº 706, 5/03/1839.
225
Ibidem, nº 706, 5/03/1839 (Grifos do autor).
226
Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda, filho de Manoel Araújo Lima e de dona Anna Teixeira Cavalcanti,
nasceu em Pernambuco a 22 de dezembro de 1793. Doutor em cânones pela Universidade de Coimbra, foi senador,
conselheiro de Estado, ministro por oito vezes, além de sócio fundador do IHGB. Ver: BLAKE, Augusto Victorino
Alves Sacramento. Op. cit. (Vol. 7), pp. 16-17.
227
A bancada de Pernambuco à Assembleia Geral na terceira legislatura (1834-1837) formou um importante
núcleo regressista e contava com nomes proeminentes, a exemplo do regente Araújo Lima, do candidato à regência
Holanda Cavalcanti e Sebastião do Rego Barros (1803-1863). Ver: LIMA OLIVEIRA, G. A. de. Op. cit., pp. 30 e
segs.
232
228
O Paraibuna começou a circular em 1836 e, após interromper suas publicações, passou a ser reeditado a partir
de 1837. Seu redator era o padre Justiniano da Cunha Pereira. PAULA, Alexandre Marciano. Op. cit., pp. 58-61 e
92.
229
PAULA, Alexandre Marciano de. Op. cit., p. 59.
230
O Sete de Abril, nº 358, 02/07/1836.
231
Manoel do Monte Rodrigues de Araújo (1798-1863) nasceu em Pernambuco e foi um dos primeiros
matriculados na Faculdade de Direito de Olinda, lecionando teologia no Seminário Episcopal da referida cidade.
Manoel do Monte foi prelado assistente do Sólio Pontifício, capelão-mor e membro do Conselho de Estado, além
de integrar os quadros do IHGB e de várias associações científicas nacionais e estrangeiras. Deputado à Assembleia
Geral por Pernambuco na terceira legislatura e pelo Rio de Janeiro na sexta legislatura. Em 1839, tornou-se bispo
do Rio de Janeiro, no lugar do regalista Antônio Maria Moura. Em 1841, Manoel do Monte polemizou com
Romualdo Antônio de Seixas, afirmando que a prerrogativa de presidir a cerimônia de sagração de d. Pedro II era
do bispo capelão-mor e não do arcebispo primaz. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit.
(Vol. VI), pp. 164-167; O Sete de Abril, nº 358, 02/07/1836.
232
O Sete de Abril, nº 358, 02/07/1836. (Grifos do autor).
233
Ibidem, nº 469, 26/07/1837. (Grifos do autor).
234
Referências elogiosas a Cairu também surgiram na publicação do decreto que garantia a pensão para suas filhas
em abril de 1838, quando Vasconcelos já compunha o Ministério regressista. Em novembro, um comunicado do
Diário de Pernambuco tecia exaltações a José Bonifácio e ao “imortal luzeiro do Brasil, o Exm. Sr. Visconde de
Cairu, esse Gênio universal, esse sábio, reconhecido como tal, de quem o Brasil se ufana”. Ver: O Sete de Abril,
nº 578, 04/07/1838; nº 638, 23/11/1838.
235
O Sete de Abril, nº 469, 26/07/1837.
233
meus filhos que, para ser Católico, é necessário pagar tributo? que, se houver de promover
qualquer ato de Religião, é necessário pagar uma multa? &c. &c.”236
As preocupações relativas às conjunturas provinciais chegaram ao Sete d’Abril também
pelo discurso de abertura dos trabalhos da Assembleia Provincial do Pará, proferido pelo
presidente da província, Francisco José de Sousa Soares de Andréa (1781-1858).237 Na seção
sobre “Culto Divino e Estabelecimentos Eclesiásticos”, o barão de Caçapava lembrava:
“precisam, por conseguinte, todas as Sociedades de uma crença e de uma Religião. É, pois, da
obrigação de todo o Governo conservar uma Religião, proteger seus Sacerdotes e pagar todas
as despesas do culto.”238 Na terra natal de Romualdo Seixas, tomada pela violenta Cabanagem,
todos os templos necessitavam de “concertos [sic] mais ou menos consideráveis”, o que poderia
“obter-se pelo trabalho devoto de moradores respectivos”.239 Além da reconstrução física dos
templos, cumpria restabelecer os recursos humanos do Seminário Episcopal e dos “dois
Conventos; um da Ordem dos Carmelitas calçados, e outro dos Franciscanos descalços da
Província de Santo Antônio.”240 Para tanto, a sugestão passava por aproveitar os serviços de
regulares portugueses, pois:
A Pátria dos Sábios e a dos homens de reconhecida virtude é uma só; e eu julgo que,
sem ofendermos a suscetibilidade de pessoa alguma, poderíamos aceitar para estes dois
Conventos alguns Religiosos de reconhecido merecimento das extintas Ordens de
Portugal, que hoje definham em um total abandono.241
O fortalecimento dos quadros das ordens regulares no Pará contribuiria para aplacar as
“desgraças porque passou esta Província”, na medida em que “muitos Sacerdotes foram
envolvidos entre os seus autores por um modo que lhes não faz honra: o que para o Povo rude
tem o efeito de desacreditar a Religião.”242 De fato, houve a participação de sacerdotes na
Cabanagem, com destaque para o jornalista e advogado cônego João Batista Gonçalves Campos
(1782-1834), precursor do movimento e ativista da Independência em 1822, ao lado do
236
O Sete de Abril, nº 469, 26/07/1837.
237
Francisco José de Sousa Soares de Andréa, barão de Caçapava, nasceu em Lisboa e formou-se engenheiro
militar na Real Academia da Marinha, transferindo-se para o Brasil com a Corte em 1808. Trabalhou em cargos
da burocracia militar e em várias campanhas, incluindo o combate aos revolucionários de 1817, em Pernambuco.
Foi presidente das províncias do Pará, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais e Bahia, além de deputado
à Assembleia Geral pelo Pará e pelo Rio de Janeiro. Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Op. cit.
(Vol. 3), pp. 16-17.
238
O Sete de Abril, nº 576, 02/03/1838.
239
Ibidem, nº 576, 02/03/1838.
240
Ibidem, nº 576, 02/03/1838.
241
Ibidem, nº 576, 02/03/1838.
242
Ibidem, nº 576, 02/03/1838.
234
243
Batista Campos esteve ligado às lutas pela Independência na porção norte do território brasileiro, a exemplo de
Felipe Patroni, deputado às Cortes de Lisboa e fundador do primeiro periódico do Pará, O Paraense. O referido
cônego foi perseguido pelos poderes instituídos durante a Independência e também durante a Cabanagem e, à sua
morte, em dezembro de 1834, seguiu-se o conflito do qual foi um dos precursores ao engajar-se nas demandas da
base da pirâmide social. Ver: REIS, Arthur Cezar Ferreira. A incorporação da Amazônia ao Império. RIHGB. Rio
de Janeiro, V. 193, p. 110-127, out./dez. 1946; RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade
revolucionária... Op. cit., p. 11; SOUZA, Márcio. Afinal, quem é mais moderno neste país? ESTUDOS
AVANÇADOS 19 (53), 2005, pp. 87-96
244
Segundo o Sete, a iniciativa não foi levada adiante pela obstrução da oposição, nomeadamente do deputado
Antônio de Aguiar e Silva, que “propusera a abolição do Celibato Clerical” e, sobre a questão dos regulares,
utilizou-se “longas citações” do liberal Inocêncio Antônio de Miranda (1758-1836), o “Abade de Medrões! é o seu
teólogo!”. Ver: O Sete de Abril, nº 639, 26/11/1838.
245
O Sete de Abril, nº 639, 26/11/1838.
246
O artigo era reproduzido do periódico O Brasil que, sob a responsabilidade de Justiniano José da Rocha, tornou-
se o maior sustentáculo do partido Conservador na opinião pública. Cumpre ressaltar que a defesa de uma religião
de Estado, da qual sua adesão era pressuposto para o exercício dos direitos de elegibilidade, era feita também pelos
regalistas do núcleo moderado, inclusive na já referida Constituição de Pouso Alegre. Por outro lado,
diferentemente de Romualdo, Cairu, padre Perereca e Vasconcelos, a ênfase na tolerância religiosa foi recorrente
na voz de Feijó e seus correligionários, tanto em seus aspectos sociais e morais quanto nas suas implicações
jurídico-políticas e institucionais. Ver: Ver: Constituição Política do Império do Brasil (25 de março de 1824).
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm; HOMEM DE MELO, F. I.
M. O golpe de Estado de 30 de julho de 1832... Op. cit., pp. 15 e 30; O Sete de Abril, nº 685, 08/02/1839.
247
A Sabinada foi deflagrada em 1837, quando rebeldes, diversos em sua orientação política e liderados por
Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira e João Carneiro da Silva, tomaram a Câmara Municipal de Salvador,
declarando a independência da província com relação ao Império brasileiro. Ver: SILVA, Daniel Afonso da.
Sabinadas. Estud. av., São Paulo , v. 22, n. 63, p. 319-322, 2008. Disponível em:
235
afrontava uma salutar rigidez disciplinar decorrente do freio moral religioso. Tal noção, baseada
na religião como elemento inibidor de transgressões valorativas, típica das Antigo Regime e
mesmo de correntes ilustradas, era justificada pela “eloquente obra do Conde de Maistre,
intitulada Do Papa”.248 Da corte às províncias, no bojo de uma dinâmica política e intelectual
transcontinental, urgia conter os sentimentos revolucionários que buscavam “descatolizar” e
“democratizar” a sociedade.249
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142008000200024&lng=en&nrm=iso. Acesso
em 12/04/2018; O Sete de Abril, nº 555, 26/11/1838.
248
O Sete de Abril, nº 555, 26/11/1838.
249
Ibidem, nº 555, 26/11/1838. (Grifos do autor).
250
MAYER, Arno J. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-1914). São Paulo: Companhia
das Letras, 1987, p. 23. (Grifos do autor).
251
Ibidem, p. 23.
252
MAYER, Arno J. Op. Cit., p. 136.
253
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A intreriorização da Metrópole. In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A
interiorização da metrópole e outros ensaios. São Paulo: Alameda, 2005, pp. 7-39.
236
254
VILLALTA, Luiz Carlos. A Universidade de Coimbra sob o reformismo ilustrado português. In: FONSECA,
Thaís Nívia de Lima e. As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2015, p. 158;
VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822). Op. cit., pp.11-95; COSTA,
Emília Viotti da. Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil. In: Op. cit., pp. 64-125.
255
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e
elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro (1790-1840). Rio de Janeiro: Diadorim, 1993, pp.
107.
256
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem... Op. cit., pp. 63-117; MOREL, Marco. As
transformações dos espaços públicos... Op. cit., pp. 145-147; MATTOS, Ilmar Rohloff de. Op. cit., pp. pp. 142 e
segs.
257
DOMINGUES, Ivan. Op. cit., pp. 40 e segs.
258
Vasconcelos tornou-se exemplar quanto à composição de uma perspectiva política contrarrevolucionária e
conservadora, porém não infensa às liberdades constitucionais. Pelo contrário, o Regresso, alardeado pelo próprio
mentor do Sete d’Abril, compôs uma visão específica do liberalismo constitucional. As liberdades fundamentais
estabelecidas no contexto pós-revolucionário não eram suprimidas, mas garantidas na dinâmica de uma monarquia
constitucional que deveria sopesar seu cariz sacralizado e terminar arroubos revolucionários, por vezes, gestados
no interior do próprio clero regalista e liberal. Tal postura, no entanto, não excluía o recurso a referências
237
Vasconcelos e Romualdo revelado posturas flutuantes sobre o tema. 259 Mesmo depois da
guinada regressista, o Sete d’Abril evocava o despotismo ilustrado espanhol, em uma
transcrição de obra escrita por Charles Didier (1805-1864),260 para dar o panorama de “uma
perseguição sacerdotal, cuja vítima foi o Conde de Olavide.”261 Ao longo de suas publicações,
o periódico fluminense também apropriou-se de Guizot,262 Stael,263 Constant264 e, pela voz do
arcebispo primaz, Chateaubriand.265 Distanciava-se da “monarquia federativa” defendida pela
compartilhadas na dinâmica do mundo euroamericano, por mais que apropriadas de modos diversos, e o
reconhecimento de alguns pontos do legado liberal das Tropas da moderação, materializado no Ato de 1834. No
que se referia à composição do movimento regressista, revelavam-se também cisões internas. Bernardo Pereira de
Vasconcelos, de relações pouco amistosas com Honório Hermeto, demitiu-se do gabinete regressista em 1839 e
também mostrou indisposições com relação à “trindade Saquarema”. Ver: DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit., pp.
pp. 125 e segs; LENAHRO, Alcir. Op. cit., pp. 91-109; SALLES, Ricardo. Segunda escravidão, liberalismo de
classe e matriz política imperial, 1815-1860. In: SALLES, Ricardo (Org.). Ensaios gramscianos... Op. cit., pp. 15-
76; SILVA, Wlamir. A valentia da dialética: Bernardo Pereira de Vasconcelos, o senso comum, a classe
conservadora e a cabeça de medusa. In: Op. cit., pp. 83-156.
259
Em 1827, na ocasião em que analisaria o tratado pela extinção do tráfico firmado entre Brasil e Grã-Bretanha,
Romualdo Seixas destacou os males do tráfico e da escravidão, mostrando-se a favor do acordo na Comissão de
Diplomacia e Estatística da Câmara. Já em pastoral de 1835, afirmou a “dura sorte” destinada aos escravizados
por obra divina. Em outra oportunidade, quando segmentos da Igreja na Bahia repudiaram a ascendência de um
vigário colado, o arcebispo saiu em defesa do clérigo. A respeito de Bernardo Pereira de Vasconcelos, em que
pese o recrudescimento da defesa do tráfico e da escravidão na conjuntura do Regresso, houve também diferentes
posturas com relação ao tema. Ver: SANTOS, Israel Silva dos. Op. cit., pp. 119-130; SILVA, Wlamir. A valentia
da dialética... In: Op. cit., pp. 96-98.
260
Charles Didier nasceu em Genebra, onde travou contato com o estudo dos clássicos ocidentais. De espírito
cosmopolita, tendo viajado pela Europa, Didier compôs a cena poética e literária do romantismo parisiense
oitocentista e teve em Victor Hugo (1802-1885) uma de suas referências principais. Dentre suas contribuições
mais afamadas, figuraram escritos na famosa Revue des deux mondes. Ver: SELLARDS, John A. The Journals of
Fontaney and of Didier. PMLA, Vol. 51, No. 4 (Dec., 1936), pp. 1114-1122. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/458087. Acesso em 12/04/2018.
261
Pablo de Olavide (1725-1803) nasceu em Lima e fez carreira nos quadros burocráticos do Império espanhol.
Após se indispor com os Jesuítas do Peru, Olavide “foi chamado em Madrid para se justificar”. O processo resultou
em prisão e ruína financeira, mas não o impediu de uma nova inserção na dinâmica político-administrativa europeia
e na Corte de Madrid. Na Europa, Olavide travou contato com Rousseau e Voltaire, compartilhando com este uma
perspectiva pedagógica seletiva. De acordo com o Sete, Pablo de Olavide foi vítima de “rancores eclesiásticos”
que, dentre outras questões, censuraram sua tolerância com relação aos protestantes. O processo aberto no tribunal
da Inquisição teria ocorrido por denúncia de um capuchinho, sendo a biblioteca do réu, na qual se encontravam os
enciclopedistas e outros ilustrados, um dos motivos para fundamentar a acusação de “herege”. Ao relatar a história
de Olavide, o Sete evocava até mesmo certo cariz mitigado das Luzes ibéricas, salientando “que faltou muito para
que essas primeiras campanhas do espírito filosófico além dos Pirineus fossem todas felizes”. Ver: VILLALTA,
Luiz Carlos; MORAIS, Christianni Cardoso; MARTINS, João Paulo. As reformas ilustradas e a instrução no
mundo luso-brasileiro. In: Op. cit., pp. 39; O Sete de Abril, nº 666, 15/01/1839.
262
O Sete de Abril, nº 55,06/07/1833; nº 353, 15/06/1836; nº 361, 13/07/1836; nº 473, 09/08/1837.
263
Ibidem, nº 325, 05/03/1836; nº 465, 12/07/1837; nº 523, 07/02/1838; nº 588, 27/07/1988; nº 598, 22/08/1838;
nº 617, 05/10/1838.
264
O Sete de Abril, nº 63, 03/08/1833; nº 150, 07/06/1834; nº 338, 16/04/1836; nº 429, 08/03/1837; nº 453,
31/05/1837; nº 455, 07/06/1837; nº 542, 04/04/1838; nº 653, 31/12/1838; nº 655, 03/01/1839; nº 704, 02/03/1839.
265
Dentre os referidos autores, evocados nas páginas do Sete d’Abril, Romualdo Seixas também se utilizou de
Guizot, em um discurso no qual reprovava a perspectiva pedagógica do Emílio, de Rousseau, e exaltava o
catolicismo romano, “fonte salutífera” da “moral conservadora”. Ver: SEIXAS, Romualdo Antônio de. Discurso
Recitado no ato de tomar Posse do Cargo de Provedor da Casa Pia dos Órfãos da Cidade da Bahia, no ano de 1831
In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. Cit., p. 84. O Sete de Abril, nº 352, 11/06/1836; nº 555, 26/11/1838.
238
moderação, mas exaltava a figura de Thomas Jefferson, autor caro ao liberal moderado Teófilo
Otoni.266
A ressignificação de algumas referências liberais, empreendida por Vasconcelos e
Romualdo, compunha-se em um corpus multifacetado que enfatizava o despotismo ilustrado, a
matriz liberal francesa, vestígios do federalismo estadunidense e o “Espírito conciliador,
pacificador e conservador” de “Edmund Burke, que tanto concorreu com seus discursos e
escritos a salvar seu país de cair no caos da revolução francesa.”267 Mesmo em meio à
heterogeneidade da composição social, política e intelectual de seus artífices, o movimento
regressista buscou amplos consensos, buscando uma “unificação da elite” sob a convergência
de agrupamentos políticos dos eixos centro-sul e norte-nordeste.268 A articulação regressista
envolveu também os conventos e o clamor pela ação das ordens regulares em um momento de
combate à situação caótica que tomava conta de algumas porções do território.269 Sem negar a
importância dos avanços liberais, esconjuravam-se as revoluções pela retomada dos valores
mais ortodoxos de um catolicismo romanizado, que, nos dizeres de Kátia Mattoso, resultaria
em “uma imagem mais sacralizada do clero, sem deixar de exortá-lo a permanecer atento aos
debates políticos.”270
Com efeito, ainda que porta-vozes do catolicismo tridentino não tenham apresentado
um projeto coeso de profundas mudanças estruturais, tal qual fizeram os regalistas, também
eram, a seu modo, reformadores.271 Alinhado ao Regresso conservador, d. Romualdo Seixas
representou o apelo a um catolicismo marcado pela ortodoxia disciplinar e espiritual. O
266
SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op. cit., pp. 115-117; O Sete de Abril, nº 325, 05/03/1836; 398, 06/11/1836;
nº 677; SILVA, Wlamir. Liberais e povo… Op. cit., pp. 115-117.
267
O artigo saiu na ocasião das eleições para regente e defendeu a eleição de Feijó. Juntamente com Edmund
Burke, surgiam Benjamim Franklin e Montesquieu. Ver: SEIXAS, Romualdo Antônio de. Discurso recitado no
ato de tomar Posse do Cargo de Provedor da Casa Pia dos Órfãos da Cidade da Bahia, no ano de 1831. In: Op. cit.,
p. 89; SILVA, Wlamir. A valentia da dialética... In: Op. cit., p. 141; O Sete de Abril, nº 235, 07/04/1835. (Grifos
do autor).
268
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem... Op. cit., pp. 63-142; MATTOS, Ilmar Rohloff de. Op.
cit., pp. 142 e segs; SALLES, Ricardo. Segunda escravidão, liberalismo de classe e matriz política imperial, 1815-
1860. In: Op. cit., p. 33.
269
Ainda em 1828, a Aurora Fluminense publicava uma carta sobre a disputa por cargos no convento de Santo
Antônio, no Rio de Janeiro, o que envolvia “uma odiosa, e anticonstitucional alternativa de Brasileiros, e Europeus
para os cargos”. No texto, destacava-se a ação de certa “autoridade saída do centro da Representação Nacional, e
que só ao sistema liberal deve a consideração, e eminência, em que está, queira servir-se de arbitrariedades, para
alentar partidos de conventos”. A publicação ocorreu na mesma conjuntura dos atritos que opuseram Feijó a
Romualdo Seixas e d. Marcos Antônio, na Câmara dos Deputados. Com efeito, a demarcação de fronteiras entre
grupos que concebiam distintas dinâmicas estruturais político-eclesiásticas incluía as movimentações no interior
das próprias instituições de cariz monástico e regular. Ver: A Aurora Fluminense, nº 67, 14/07/1828.
270
A referida autora destacou os três pontos da “reforma” resumida em um “programa” que seria “tridentino em
sua essência”: “fazer do clero brasileiro um corpo instruído e sadio – o exercício de sua missão espiritual deveria
suplantar suas atividades políticas -, trabalhar pela instrução religiosa do povo através da catequese e assegurar a
independência da Igreja em relação ao poder temporal.” Ver: MATTOSO, Katia M. de Queiros. Op. cit., p. 314.
271
MATTOSO, Katia M. de Queiros. Op. cit., pp. 306-308 ; SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Op. cit., p. 397.
239
272
CERTEAU, Michel de. Op. cit., p. 37.
273
GREGÓRIO XVI. Carta do papa: Ao venerável irmão Romualdo Antônio, arcebispo da Bahia no Brasil. In:
Op. cit., p. 1.
274
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral II: Acerca da residência dos Párocos; abusos na celebração do
sacrifício da Missa, e administração dos Sacramentos; Missa Paroquial; dispensas dos impedimentos matrimoniais;
e exortando os Párocos a cumprirem o dever de explicar o Evangelho. In: Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit.,
pp. 53-60.
275
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral XIX: Reprovando, como abusivo e criminoso, o costume de ornarem
as Sacristias e Átrios dos Templos, nas grandes Solenidades, com pinturas profanas e indecentes. In: Coleção das
obras... (Tomo I). Op. cit., p. 226.
276
Gonçalo do Amarante, santo português, teve suas práticas devocionais ligadas à dança e à fertilidade. Segundo
a lenda, Gonçalo era um frade dominicano de Amarante, norte de Portugal. Quando jovem, o então marinheiro
entoava melodias em sua guitarra e farreava com as prostitutas do Porto, impedindo-as de praticar o ofício e
livrando-as do pecado, tendo realizado o parto de uma das mulheres. Nos registos hagiográficos diversos,
240
sobretudo em Portugal, São Gonçalo tornou-se um santo casamenteiro. No Brasil, desde o século XVIII, os ritos
em homenagem ao santo, permeados por danças insinuantes e sensuais, foram perseguidos por autoridades
eclesiásticas das cidades e passaram a se concentrar nas zonas rurais. Ao que parece, além de contribuir para a
propagação da fé católica, a exteriorização do culto poderia facilitar a identificação das heterodoxias sincréticas,
tal qual a referência a “São Gonçalo das Moças”, reprovada por d. Romualdo. Essas manifestações eram comuns,
sobretudo, no interior do Brasil. Ver: BONFIM, Wellington de. Identidade, memória e narrativas na dança de
São Gonçalo do povoado Mussuca (SE). 2006. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, pp. 49-51; MATTOSO, Katia M.
de Queiros. Op. cit., pp. 296 e 394; SEIXAS, Romualdo Antônio de. Portaria VI: Contra o abuso de uma legenda
indecente, estampada em uns Registros de S. Gonçalo, e sobre a Festividade do mesmo Santo. In: Coleção das
obras... (Tomo I). Op. cit., p. 332.
277
As conferências eclesiásticas foram implementadas no século XVI, no bojo da Contrarreforma, por são Carlos
Borromeu, bispo de Milão. Tinham o intuito de aperfeiçoar a formação moral e teológica do clero diocesano. Em
1830, d. Romualdo Seixas iniciou as conferências na arquidiocese soteropolitana, dando ênfase à ampla
participação do clero e à uniformização das diferentes perspectivas teológicas e eclesiológicas. Ver: MATTOSO,
Katia M. de Queiros. Op. cit., pp. 349-350; SANTOS, Israel Silva dos. Op. cit., pp. 157-161; SEIXAS, Romualdo
Antônio de. Pastoral VIII: Sobre os Estudos do Clero, e estabelecimento das Conferências Eclesiásticas. In:
Coleção das obras... (Tomo I). Op. cit., pp. 123-124.
278
Os seminários, prescritos pelo Concílio de Trento, eram divididos entre eclesiásticos e episcopais, sendo estes
últimos ligados diretamente à autoridade do bispo. Na Bahia, o primeiro seminário funcionou entre 1569 e 1603,
com posteriores tentativas de recriação. Em 1815, na esteira da criação do famoso Seminário de Olinda, o arcebispo
Frei Francisco de São Dâmaso Abreu Vieira (1767-1816), antecessor de D. Romualdo Seixas, ergueu o Seminário
de Ciências Eclesiásticas, ou Seminário Maior. O referido seminário teve seu funcionamento prejudicado pela
longa vacância da mitra arquiepiscopal, entre 1816 e 1828, e pela Guerra de Independência que atingiu
singularmente a Bahia. Ver: MATTOSO, Katia M. de Queiros. Op. cit., pp. 350-355; SANTOS, Israel Silva dos.
Op. cit., pp. 145-157; SEIXAS, Romualdo Antônio de. Pastoral XVII: Anunciando ao seu Clero a abertura do
Seminário Arquiepiscopal. In: Coleção das obras... (Tomo V). Op. cit., p. 212.
279
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Representação a S. M. I. pedindo providências sobre as profanações
cometidas nos templos por ocasião das eleições populares. In: Coleção das obras... (Tomo V). Op. cit., pp. 123-
124.
241
gestado na colônia e era compartilhada por pessoas da lavra de d. Frei José da Santíssima
Trindade, d. Marcos Antônio de Sousa, padre Perereca, padre Lopes Gama, visconde de Cairu
e, de modo pragmático, Bernardo Pereira de Vasconcelos. Se os ímpetos liberais e regalistas
tensionariam a dinâmica sócio-política e jurídico-eclesiástica durante todo o Império, o núcleo
das reformas de inspiração secular intentadas por Feijó e seus correligionários fora abortado
diante do apelo romanizado, que ganhou espaço durante o Regresso conservador.
Adensavam-se os ventos ultramontanos e, em carta de 1842, o próprio Romualdo
Seixas, ao se defender de uma “calúnia”, reproduzida de Bogotá a Paris, afirmava ao redator
do periódico francês Univers que “de viva voz e por escrito, tenho sustentado os interesses da
religião católica apostólica romana”.280 Na sequência, a acusação de ultramontano, desferida
por seus opositores, tornava-se um artifício de defesa: “É por causa destes contínuos esforços,
quase sempre coroados de sucesso (...), que meus adversários me gratificam com o epíteto de
ultramontano, de advogado de opiniões que, dizem eles, não estão mais em voga, mesmo na
Itália.”281 Na fala do arcebispo, a despeito da desqualificação oposicionista, indícios de que já
se reconhecia no Ultramontanismo, além de uma referência enraizada no vocabulário político
euroamericano, a gênese de um movimento organizado contra as ressacas revolucionárias do
pós-1789. Para embasar sua justificativa, D. Romualdo Seixas daria um panorama da agenda
política, jurídica, teológica e eclesiástica defendida:
E tudo porque tenho defendido as santas instituições cristãs; porque tenho me oposto às
inovações que querem introduzir aos impedimentos matrimoniais; porque tenho
sustentado, com toda a energia que posso, o indubitável direito do Soberano Pontífice
no que se refere à confirmação dos bispos, e rejeitei a investidura sacrílega contra uma
atribuição semelhante, que pareciam querer me conferir; porque tomei a defesa das
corporações regulares e dos seus bens, e competi com todo meu poder para encontrar
uma via de admissão de noviços; enfim, porque não tenho deixado escapar uma só
ocasião para sustentar os direitos do sacerdócio, a independência e a autoridade do poder
espiritual. E depois de todos estes precedentes, que a imperiosa necessidade de me
justificar me obriga a lembrar, ousam avançar sem qualquer prova, sem mencionar o
diário das câmaras, onde este fato deve ter sido relatado, que o arcebispo da Bahia quer
separar de Roma a Igreja brasileira, e para isso apresenta um projeto de lei que, se
existisse, daria uma bem triste ideia de seus conhecimentos em matéria de disciplinas
eclesiásticas? E como poderia ele apresentar semelhante projeto ao senado, sendo que
não faz parte desse corpo? 282
280
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Carta dirigida ao Redator do Jornal Francês l’Univers, e nele inserta,
refutando uma atrocíssima calúnia, que de um Jornal de Bogotá passara a outro de Madrid, e deste ao mesmo
Univers, contra a ortodoxia de S. Ex. Revm. In: Coleção das obras... (Tomo V). Op. cit., p. 352. (Tradução nossa,
grifos do autor).
281
Ibidem, p. 352.
282
SEIXAS, Romualdo Antônio de. Carta dirigida ao Redator do Jornal Francês l’Univers... In: Op. cit., p. 352-
353.
242
CONCLUSÃO
Veiga, redator da Aurora Fluminense. A partir de meados da década de 1830, tomava forma o
Regresso conservador, capitaneado pelo outrora liberal moderado Bernardo Pereira de
Vasconcelos, astuto magistrado coimbrão e defensor dos interesses dos grupos proprietários e
escravocratas. Em sintonia com Vasconcelos e em franca discordância com o cismático regente
Feijó, d. Romualdo Seixas ganharia espaço na imprensa a partir do Sete d’Abril, periódico
fluminense que circulava sob os auspícios do líder regressista.
Para os moderados, mudanças fundamentais na disciplina eclesiástica estavam na ordem
do dia. Afinados com um espírito de nacionalização da religião, Feijó e seus companheiros não
abririam mão de pugnar pela autonomia do Império brasileiro perante Roma. O provimento de
cargos, os dispositivos disciplinares do clero, a estrutura financeira e administrativa da Igreja e
a administração dos bens das ordens eram temas sobre os quais deveriam deliberar, inspirados
pelo episcopalismo conciliarista, os poderes político-eclesiásticos brasileiros. Para tanto,
cumpria assentar as bases de certa mundividência secular, integrando ao ordenamento jurídico
a situação de um Martiniano de Alencar. Pai de numerosa prole, dentre a qual estava o escritor
José de Alencar, Martiniano foi um franco revolucionário, presente nos levantes de Pernambuco
em 1817 e 1824, e devia nutrir pelas moças um “Negro amor de rendas brancas”.1
No percurso reformador empreendido pelo clero regalista, percebe-se a secularização
de certas práticas. O matrimônio deveria ser um contrato sob monopólio do poder temporal e
desvinculado da obrigatoriedade sacramental católica, estendendo-se o direito também aos
imigrantes de orientação protestante, que começavam a surgir nas primeiras propostas de
superação da mão-de-obra cativa. Para Feijó, mesmo a catequização dos povos indígenas
poderia ficar a cargo de missionários Morávios. Se não questionaram o artigo quinto da Carta
de 1824, mantido no texto da Constituição de Pouso Alegre, o clero regalista e liberal parecia
esboçar um horizonte no qual a Igreja católica seria mais uma dentre as instituições do século,
e não uma força estrangeira dotada de poderes autônomos. Ao mesmo tempo, propugnavam
que cultivar, ou não, uma fé católica seria uma escolha de foro individual. Se a Igreja deveria
estar sob a égide do Estado, as restrições de natureza religiosa não deveriam criar tantos
embaraços ao exercício da cidadania. O horizonte de tais mudanças esboçava-se à moda da
Constituição Civil do Clero (1790), marco da Revolução Francesa.
Em contraposição aos regalistas, o clero romanizado buscou no catolicismo romano os
elos de uma cidadania já restrita. Para além de uma profissão de fé individual, a nação forjava-
1
ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015,
p. 328.
245
se a partir dos valores católicos romanos. Nesse sentido, Romualdo Seixas destacava a
necessidade de introjeção da ortodoxia emanada dos princípios tridentinos, da disciplina regular
herdeira da evangelização missionária jesuítica e do ordenamento sinodal setecentista. A
obrigatoriedade de celibato e a retidão disciplinar eram fundamentais aos membros do clero.
No caso dos bispos, o aval viria da Santa Sé, para que fossem evitadas escolhas equivocadas.
Aos fiéis, seriam fundamentais a execução rigorosa das obrigações sacramentais, o jejum, as
confissões e as penitências. Os santos deveriam ser venerados sem os apelos personalistas do
culto privado, característicos dos tempos coloniais, quando foi gestada uma religião (ainda hoje
presente) “doce, doméstica, de relações quase de família entre os santos e os homens”.2 Para d.
Romualdo, ao Sumo Pontífice caberia manter em riste seu “condão fulminador” das
consciências.3
O Império pretendido por regressistas, romanizados, repaginava a relação entre a
monarquia e o catolicismo, exorcizando os fantasmas do clero regalista e liberal, no limite,
revolucionário. O recurso à sacralização do Estado nacional ocorria, em certo sentido, em
contraposição ao projeto de nacionalização da religião que recorria a um regalismo de teor
“radical”. Aos romanizados regressistas, era dissonante a figura de um regente cismático e
acusado de republicanismo, o qual reconhecera as ameaças de secessão e a predileção pelas
províncias do Sul. D. Romualdo Seixas, Luís Gonçalves dos Santos, o Visconde de Cairu e
Bernardo Pereira de Vasconcelos admitiam o liberalismo constitucional, mas sob a influência
conservadora, contrarrevolucionária e romanizada. A monarquia católica brasileira, do modo
como essas lideranças a concebiam, era a união dos proprietários, magistrados, sacerdotes e
homens livres das províncias espalhadas pela vastidão territorial. O cidadão do Império deveria
ser o “súdito” do monarca e o fiel da Igreja católica romana. Do passado colonial resgatava-se
a recente “utopia do poderoso império”,4 mas pela via de um projeto civilizacional referenciado
na cristandade monárquica, distante dos remanescentes do heterodoxo catolicismo colonial.
Nesses termos, o clérigo seria o fiador da disciplina e da retidão moral, não um pai de família,
por vezes agricultor e burocrata, integrado ao cotidiano, espectador das missas em capelas
senhoriais e embebido nos prazeres da carne.
No bojo do processo de formação do Estado nacional brasileiro, regalistas e
romanizados empreenderam duras batalhas, divulgando seus valores políticos, filosóficos e
2
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala... Op. cit., p. 438.
3
WILDE, Oscar. The soul of man under socialism. New York: Max N. Maisel, 1915, p. 51. Disponível em:
https://archive.org/stream/soulmanundersoc01wildgoog#page/n6/mode/2up/search/pope. Acesso em 17/04/2016.
4
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