Novos Estudos em Próximo Oriente

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NOVOS ESTUDOS EM

PRÓXIMO ORIENTE
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].

Rede
www.orientalismo.blogspot.com

Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Novos Estudos em Próximo Oriente. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/
UERJ, 2022. 95 p.
ISBN: 978-65-00-54416-9
História da Ásia; Orientalismo; Próximo Oriente; Oriente Médio; Islã; Árabes.

Novos Estudos em Próximo Oriente


2
Sumário
APRESENTAÇÃO por André Bueno ................................................................................................ 4
MARIA MADALENA NO MOVIMENTO DO JESUS HISTÓRICO por Elois Alexandre de Paula ......... 9
VIAGENS NO ISLÃ MEDIEVAL-BREVE ANÁLISE DE VIAGEM AO VOLGA por Felipe Lomba Ferreira
e Bruna Alves Lopes .................................................................................................................... 19
COMÉRCIO, VIAGENS E O ISLÃ: UM RETRATO DO OCEANO ÍNDICO ATRAVÉS DA RIHLA DE IBN
BATTUTA por Gabryel Garcia Lima e Pietro Enrico M. de Chiara................................................ 26
PROBLEMATIZANDO OS SUMÉRIOS NO PERÍODO PROTODINÁSTICO por Leonardo Candido
Batista.......................................................................................................................................... 34
ENSINAR HISTÓRIA DO EGITO ANTIGO A PARTIR DAS AREIAS DO DESERTO: ALGUMAS
REFLEXÕES por Maura Regina Petruski....................................................................................... 44
LEPANTO: A ÚLTIMA BATALHA DAS GALÉS, 1571 por Nelson Rocha Neto ................................ 50
A FILOSOFIA ÁRABE MEDIEVAL E O LEGADO LITERÁRIO DOS FALASIFA por Renata Ary ........... 56
A PRÁTICA DA GUERRA MEDIEVAL: ENTRE AS CAMPANHAS DE FERNANDO III [1217-1252] E AS
CONQUISTAS DE TEMÜR [1360-1405] por Lucas Vieira dos Santos e Sofia Alves Cândido da Silva
..................................................................................................................................................... 62
ENTRE EUROPEUS E TURCOMANOS: OS COSSACOS UCRANIANOS por Talita Seniuk ................ 71
RESILIÊNCIA: UMA BREVE HISTÓRIA SOBRE A LUTA DAS MULHERES CURDAS por Tanya Mayara
Kruger .......................................................................................................................................... 79
HISTÓRIA É PODER: CONFLITO ISRAELO-PALESTINO REVOLUÇÃO OU TERRORISMO? Por Yasmin
Rodrigues Roque e Jeanne Silva .................................................................................................. 86

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3
APRESENTAÇÃO
por André Bueno

Anotava Pedro II, imperador do Brasil, em seus diários de viagem ao Egito,


sobre a vista as pirâmides:

O caminho quase todo por alamedas de acácias, das quais


muitíssimas trançam entre si as comas do verde o mais esplêndido é
condigno vestíbulo de tão venerandos monumentos. Parecem
pequenos até chegar a eles e só se faz ideia da altura da grande
pirâmide quando se observam os que por ela trepam e vão-se
tornando cada vez mais pigmeus. Subi facilmente [na pirâmide de
Quéops] ajudado pelos árabes e no cimo [138 metros de altura]
reunimo-nos mais de trinta [pessoas]. Da minha companhia só foram
Bom Retiro e o egiptólogo distinto doutor [Heinrich Karl] Brugsch,
que muito tem simpatizado comigo e dado-me informações
interessantíssimas.

Pedro II era um orientalista destacado, um experto em línguas antigas, capaz


de ombrear com os maiores eruditos de sua época. Há que se lamentar,
porém, que poucos brasileiros pensaram em seguir o exemplo dado pelo velho
soberano em querer conhecer um pouco mais e melhor o restante do mundo
fora do Brasil – principalmente, no que toca ao Norte da África e ao Oriente
Médio. Ainda escorregamos na falta de especialistas, e no desinteresse comum
que abraça estereótipos e preconceitos. O Próximo Oriente não está de lado de
nossas preocupações, ao contrário: ele é um objeto de disputa do senso
comum, um espaço em que os afastamentos e contradições pululam sem um
critério claro de entendimento.

Permitam-me a liberdade de contar um caso passado com o autor dessa


introdução. Voltemos às pirâmides, um exemplo claro do que pretendemos
pensar. Algum tempo atrás, em uma aula de graduação, voltávamos ao
excruciante tema das pirâmides. A imponência do monumento continua hoje
ainda a incomodar, a fascinar, tanto mais quanto se vê e menos se lê. Apesar
de historiadores, engenheiros e arquitetos já terem explicado inúmeras vezes
como elas foram feitas, tantas outras milhares de vezes será necessário
requentar suas conclusões, que o público comum não se interessa em ver – a
miracula domina ainda a maioria das mentes, e o encantamento do misterioso
segue mais divertido do que o desassombro da descoberta. Pois bem,
estávamos lá a discutir todas essas questões; mas como João Batista

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pregando no deserto, aparentemente muitos não estavam nem aí para um
resposta técnica ou científica – enfim, a beleza parece residir no absurdo. Foi
quando um aluno mais corajoso decidiu expressar sua inconformação e disse:
‘decididamente, as pirâmides foram feitas por extraterrestres, não há outra
resposta. Eles não podiam ter feito aquilo’. Antes que uma resposta pudesse
ser composta, no outro canto da sala, uma aluna rapidamente disparou: ‘isso é
absurdo. A vida só existe na Terra, pois Deus só a criou aqui. Foram os
escravos hebreus que as fizeram’.

Poderíamos escrever mais alguns parágrafos sobre como teorias alienígenas


são racistas [afinal, eles só apareciam na África, Oriente e América, mas nunca
se ouviu falar de marcianos orientando a construção do Coliseu ou do
Partenon], ou de como – mesmo numa narrativa religiosa tradicional – as
pirâmides foram feitas muito antes de qualquer improvável cativeiro hebreu no
Egito, mas isso é um tanto quanto desnecessário: se você que nos lê chegou
até aqui, é porque o incômodo da ignorância já nos lançou para fora da zona
de conforto do senso comum, nos convocando a um exame mais atento e
profundo dessas questões.

O Próximo Oriente é um palco de disputas intelectuais e religiosas. Não por


acaso, foi examinando as contradições dos estudos acadêmicos e literários
sobre as sociedades e culturas dessa região que Edward Said lançou o
paradigmático ‘Orientalismo – a invenção do oriente pelo ocidente’ em 1979,
revelando ao mundo os discursos coloniais hierarquizantes e esvaziadores que
produziram uma estratégia de olhar extremamente prejudicial a compreensão
do ‘outro oriental’. Se as questões religiosas ou esotéricas perpassam os
estudos sobre o Oriente, elas atravessam ainda outros campos, como as
falácias sobre Islã, antissemitismo, terrorismo, decadentismo social,
excentricidades culturais, etc. E ainda, encobrem as heranças judaico-arábicas
que vivenciamos no Brasil, graças a vinda de milhares de imigrantes que
enriqueceram nossa cultura com sua presença.

Se pudermos superar os preconceitos que embaçam nossas vidas, poderemos


então compreender o delicioso caso, narrado por Cezar Reis, em “O reencontro
da beleza ao olhar para a história” [2012] que o compositor Waldir Azevedo
[1923-1980] vivenciou:

Viajando pelo Oriente Médio, mais exatamente Palestina, parando


em uma daquelas tendas onde se vendem lembranças de viagem,
roupas, jóias, etc...Waldir Azevedo procurava um porta-cigarros para
trazer de presente a alguém no Rio de Janeiro. O comerciante
palestino ofereceu a ele alguns dos melhores exemplos, e depois
apresentou um em especial, que ao abrir, tocava música. Sim! Era
uma caixinha de música em forma de porta-cigarro. Waldir ficou
olhando para o comerciante enquanto tocava a música da caixinha.
O homem esperava uma reação de Waldir. E a reação veio, quando
ele disse: "Senhor, essa música que toca na caixinha é de minha
autoria! Como pode?". Traduziram isso ao comerciante, que não

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acreditou na história. Foram ao hotel e trouxeram o disco, a música
escrita, e o cavaquinho, e Waldir tocou ao vivo para o comerciante o
"Delicado", a mesma que tocava na caixinha de música oriental.
Concluiu-se então que, definitivamente, a música de Waldir Azevedo
havia ultrapassado todo tipo de fronteira, sem que ele ao menos
tivesse ideia disso.

O presente volume, Novos Estudos em Próximo Oriente, pretende dar conta de


reunir ensaios e pesquisas que podem nos ajudar a promover diálogos
interculturais tão ricos quanto o que surpreendeu nosso brilhante compositor.
Contemplando temáticas e temporalidades diversas, nos propomos aqui a
realizar uma breve apresentação [não alfabética, mas temática] dos temas
presentes.

Os estudos sobre a antiguidade no próximo oriente são trazidos a lume no


ensaio ‘Problematizando os sumérios no período protodinástico’ por Leonardo
Candido Batista, que analisa as construções históricas sobre essa que é uma
das mais antigas civilizações do mundo, e ‘Ensinar história do Egito antigo a
partir das areias do deserto: algumas reflexões’ por Maura Regina Petruski, no
qual a grande egiptóloga nos traz um precioso texto sobre o trabalho de
estudar e ensinar Egito para nosso público acadêmico. Fechando esse quadro,
‘Maria Madalena no movimento do Jesus histórico’ por Elois Alexandre de
Paula nos proporciona um debate sobre o polêmico tema do papel de Maria
Madalena na história do Cristianismo, e as questões de gênero que perpassam
a construção das religiões orientais.

Saltando para o período medieval, quando o mundo árabe era o farol da


civilização mediterrânica e europeia, o texto ‘Viagens no islã medieval-breve
análise de viagem ao Volga’ por Felipe Lomba Ferreira e Bruna Alves Lopes
nos apresenta um instigante relato de viagem de navegadores islâmicos
Europa adentro, desfazendo qualquer ideia de que pensadores, comerciantes e
intelectuais muçulmanos ficavam restritos aos domínios geográficos do islame;
esse tema é desdobrado e enriquecido no ensaio ‘Comércio, viagens e o islã:
um retrato do oceano índico através da Rihla de Ibn Battuta’ por Gabryel Garcia
Lima e Pietro Enrico M. de Chiara, que nos apresenta como esse grande
navegador conheceu as rotas euro-afro-asiáticas mundo antes de qualquer
‘grande navegação’ europeia na era moderna; mares que continuaram
dominados pelos impérios do oriente próximo até ‘Lepanto: a última batalha
das galés, 1571’ por Nelson Rocha Neto, um marco, de fato, na mudanças das
relações de poder no mundo mediterrânico. Mesmo assim, cumpre salientar a
crucial influência exercida pela cultura árabe no renascimento europeu, como
brilhantemente mostrado pela explanação ‘A filosofia árabe medieval e o
legado literário dos Falasifa’ por Renata Ary.

No caminho entre o Próximo Oriente e a Ásia central, ‘A prática da guerra


medieval: entre as campanhas de Fernando III [1217-1252] e as conquistas de
Temür [1360-1405] por Lucas Vieira dos Santos e Sofia Alves Cândido da
Silva, nos apresenta um ensaio comparativo entre os modos de se fazer guerra

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entre dois soberanos distintos, um europeu e outro oriental; um ponto de
passagem devidamente explorado também no texto ‘Entre europeus e
turcomanos: os cossacos ucranianos’ por Talita Seniuk, que nos apresenta
melhor elementos da rica cultura ucraniana e sua importância na história euro-
asiática.

No âmbito das relações modernas, ‘Resiliência: uma breve história sobre a luta
das mulheres curdas’ por Tanya Mayara Kruger, é um excelente texto sobre as
questões de gênero e afirmação do feminino dentro da sociedade curda,
marcadamente islâmica, em processo de autodeterminação e historicamente
pressionada por diversas tensões étnicas e geográficas. Já ‘História é poder:
conflito israelo-palestino revolução ou terrorismo?’ por Yasmin Rodrigues
Roque e Jeanne Silva, toca na ferida crucial das impressões que temos
construído sobre as relações entre israelenses e palestinos, duas sociedades
igualmente atravessadas por conflitos de escala geopolítica que se projetam
sobre suas existências cotidianas.

Desejamos que essas leituras possam ser proveitosas!

André Bueno
Primavera, 2022

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TEXTOS

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MARIA MADALENA NO MOVIMENTO DO JESUS
HISTÓRICO por Elois Alexandre de Paula

Introdução
Maria Madalena é uma personagem um tanto enigmática de versões distintas
construídas sobre esta mulher, e no tocante a teologia a suas narrativas
referente à sua pessoa e sua História apresentam interpretações pelos
evangelhos, sendo uma delas de uma mulher pecadora ou sendo Maria
Madalena dita como prostituta. Já dentro da literatura, como exemplo a obra o
Código Da Vinci, romance de Dan Brown [2004] apresenta essa personagem
não como uma prostituta, mas como uma suposta companheira de Jesus e
mãe de uma filha fruto de uma relação carnal com Jesus o nazareno. Um
romance um tanto polêmico que apresenta alguns nuances históricos sobre
Maria, representada também na Longa metragem do filme com o mesmo nome
o ‘Código da Vinci’.

Logo de início o que se referem a esses fatos, de pontos de vista históricos,


podemos afirmar que são mitos. A ideia aqui e de propor a discussão de Maria
Madalena dentro do movimento do Jesus Histórico para referenciar e comparar
pelo meio acadêmico a pontos que a historiografia vem abordando e discutindo
há quase dois séculos. Neste contexto dentro, de uma visão epistêmica, a
proposta aqui e de compreender e analisar a trajetória dessa personagem e a
sua relação com Jesus, sua influência e sua participação em diversos
acontecimentos entre a sua vida e também na sua morte do nazareno.

Apesar de, para alguns historiadores as discussões sobre Maria de Madalena


ou Maria de Magdala serem hipotéticas, referente a esta personagem ser
histórica, sua presença na trajetória de Jesus apresenta questões pouco
debatidas dentro de um contexto teológico, e que esta mulher possivelmente
teve uma grande influência dentro da sociedade Judaica, inclusive entre as
igrejas e o judaísmo na qual analisamos pela documentação.

Qual das “Marias?” As discussões sobre a sua identidade nos


Evangelhos
Maria Madalena é de certa forma envolvida em um grande mistério e que muito
se tem discutido sobre a sua identidade, tanto pela teologia e também pela
História campos e pela literatura, como já citamos aqui o romance de Dan
Brown em o ‘Código Da Vinci’. Neste contexto, essa personagem misteriosa,
analisamos primeiramente pela documentação dos evangelhos em três versões
distintas no que se diz a sua identidade, na qual podemos analisar dentro das

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possibilidades desses textos no apresentam. Em primeiro lugar o nome
Madalena do hebraico Migdal ou Maria de Magdala (Magdala de origem
aramaica) que significa torre, vem do nome de uma cidade em que ela viveu.
Esta cidade de Migdal ou Magdala localizada ao lado do lago de Tiberíades era
um importante centro de comércio na sua época. Esta cidade próspera
destacada pela rota internacional que produzia e comercializava peixe salgado,
tecidos e produtos agrícolas, importantes para o desenvolvimento da cidade.
[Tommaso, 2006].

Neste contexto a possível localização de Maria Madalena tem uma relação


geográfica com Jesus no mar ou lago da Galileia, muito próximo a Tiberíades,
ou Migdal, cidade costeira na qual viveria Maria. [Crossan, 2010]. Com relação
a sua identidade existem momentos específicos narrada nos evangelhos que
na qual citam o nome de Maria envolvendo este nome em três acontecimentos
envolvendo esta personagem e Jesus. No primeiro momento no evangelho de
Lucas Maria Madalena e apresentada como uma mulher que seguia Jesus
após que ele expulsou 7(sete) demônios que a possuíam:

“E ACONTECEU, depois disto, que andava de cidade em cidade, e


de aldeia em aldeia, pregando e anunciando o evangelho do reino
de Deus; e os doze andavam com ele,
2 E também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos
malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual
saíram sete demônios, [Evangelho Lucas, Cap.9-1,2 Bíblia sagrada
1994].”

Esse tipo de manifestação de possessão era um fato recorrente dentro da


cultura Judaica, principalmente com relação às mulheres, em que vários
acontecimentos de exorcismos eram bem mais recorrentes. Segunda a
tradição Judaica, as mulheres eram mais suscetíveis à possessão demoníaca
por serem essas mais próximas ao pecado, e que as mulheres eram a causa
do pecado original quando Eva seria a responsável por coagir Adão seu
companheiro ao pecado.

Outra identidade relacionada à Maria Madalena vem de uma referência de um


episódio anterior a sua possessão demoníaca, quando uma pecadora anônima
unge os pés de Jesus na casa de Simão e a mesma e perdoada:

“Ao saber que Jesus estava comendo na casa do fariseu, certa


mulher daquela cidade, uma ‘pecadora’, trouxe um frasco de
alabastro com perfume, e se colocou atrás de Jesus, a seus pés.
Chorando, começou a molhar-lhe os pés com as suas lágrimas.
Depois os enxugou com seus cabelos, beijou-os e os ungiu com o
perfume. Ao ver isso, o fariseu que o havia convidado disse a si
mesmo: "Se este homem fosse profeta, saberia quem nele está
tocando e que tipo de mulher ela é: uma pecadora.” [Lucas 7:37]”

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Esse acontecimento, no trecho Lucano, percebe-se outra relação a Maria com
o pecado, e que nos demais versículos esta personagem tem o perdão de
Jesus pelos seus erros mundanos, se apresentando aparentemente como uma
mulher arrependida e submissa ao rabi que implorava pelo perdão deste. A
terceira versão é que Maria, no Evangelho de João, está na unção de Betânia,
e nele é Maria, irmã de Marta e de Lázaro, que unge Jesus: [Tommaso, 2006].
Esta versão relacionada a esta personagem, e que teve maior aceitação pelo
meio teológico, inclusive pela igreja católica, foi a imagem de Maria Madalena
além da pecadora ganhou o titulo de a “Prostituta”. Para [Tommaso, 2006]a
confusão da identidade de Maria estendeu-se até o século III, até que no
Século VI o para Gregório Magno (540-604) declarou que Maria Madalena,
Maria de Betânia e a pecadora eram a mesma pessoa. De certo modo essa
declaração Papal criou o estigma relacionado a vida e a relação dessa
personagem que é uma declaração que é motivo de discussões.

Com relação a essa declaração do Papa Gregório entre os anos de 540-604,


foi o período da alta idade média que foi marcado por um tempo de
perseguições as mulheres como um verdadeira caça as bruxas, em que esses
fatos são descritos na obra ‘Malleus Maleficarum- O Martelo das Feiticeiras’ de
[Heinrich Kramer e James Sprenger, 1997]. Esta obra descreve as
perseguições contra as mulheres que pensavam ou que agiam contra os
preceitos e regras de comportamentos impostos pelos dogmas da igreja
católica. Ainda nesta obra se faz uma alusão a Maria Madalena em que a
igreja, pelas bulas papais, faz um reducionismo patriarcal desconstruindo a
imagem a presença histórica dessa personagem pela censura. Portanto desde
o Século I se tentou de desvirtuar, censurar ou criar versões de uma imagem
negativa sobre essa personagem que ainda em uma extensão cronológica até
no século XX se tinha apresentava uma imagem de Maria a prostituta.

Um exemplo deste estigma de imagem de prostituta e com relação ao cinema


mudo do início do Século XX, no qual segundo [Chevitarese, 2012], esses
filmes em sua maioria são impossíveis, em suas imagens, de desassociar
Maria Madalena da prostituição ou da mulher pecadora. Analisando o contexto
cronológico, ainda nos tempos atuais a visão dessa personagem para muitos e
está ligada a Maria prostituta arrependida ou a pecadora. Essa visão distorcida
sobre a identidade sobre Maria Madalena foi construída por um pensamento
extremamente machista, pelos dogmas da igreja, e tal pensamento sempre
esteve moldado pela ignorância com relação a esta personagem e também
sobre ao próprio Jesus Histórico. Maria Madalena dentro de suas várias faces é
uma mulher hibrida, na qual as diversas narrativas sobre ela foram descritas
pela teologia e pela mitologia, diferente do que a Historiografia aborda.

Maria Madalena e as Discussões na trajetória de Jesus Histórico


Para discutir sobre Maria Madalena, essa personagem um tanto enigmática,
observamos dentro de uma perspectiva sociológica do contexto da
personagem como igual se nos referimos ao contexto do Jesus Histórico,
dentro das comunidades como Migdal, Nazaré e outras cidades importantes da

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Judeia que estava sobre domínio romano.

Importante relembrar que essas comunidades tinham como tradição a religião


Judaica, e que tinha princípios e regras dentro de um domínio patriarcal e que
as mulheres eram extremamente submissas ao controle patriarcal. Como
exemplo, os casamentos na maioria eram formados em arranjos entre as
famílias dessa tradição Judia, as mulheres tinham que respeitar uma série de
regras impostas pelo marido, sendo elas tratadas como um produto de objeto.
Um exemplo dessa ideia está entre os dez mandamentos, cita no livro de:
[Êxodo, capítulo 20], versículos 1 a 17: Não desejai a mulher do teu próximo,
sendo que o texto original é Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não
cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi
ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença'. Logo em uma interpretação
mais rigorosa a mulher e comparada aos demais pertences da casa do seu
semelhante, ou seja, a mulher tem um valor aqui como propriedade.

Maria Madalena assim como Jesus pertenciam a essa tradição Judaica, assim
é importante abordar nesse ponto qualquer descrédito ou intolerância aos
Judeus, pois Jesus nasceu Judeu, viveu como Judeu e morreu como Judeu.
Não existe até o momento uma relação de Maria Madalena tenha casado
diante os registros históricos, apenas algumas especulações de um possível
casamento em Migdal. Essa especulação foi representada na série mexicana
Maria Magdala produzida por Lina Uribe, Darío Vanegas e Jaqueline Vargas,
[2018] na sua cidade casou-se contrariada ao seu pedido de seu pai ao se
casar com um Judeu chamado Ur. Logo depois, pressionada pela violência de
Ur, Maria foge da sua residência e logo foi presa como escrava por um
centurião romano.

Outro fato que não existe também provas históricas é que entre Maria
Madalena e Jesus Histórico havia um relacionamento afetivo ou que até
mesmo Maria era supostamente esposa de Jesus. Essa versão foi difundida
pelo fato de uma passagem do texto apócrifo de Felipe em que relatava que
“Maria beijava Jesus”, ora, a questão do beijo era comum também entre Jesus
e seus apóstolos, sendo assim essa ideia de Jesus e Maria terem um
matrimônio e uma mera especulação que não se prova tal versão.
.
Os textos testamentários nos fornecem narrativas da ressurreição de Jesus e o
quanto está enfatizando a presença das mulheres nesse início do movimento
cristão, e uma das mulheres que se apresentam neste episódio pós-morte e
ressurreição do nazareno é Maria Madalena conforme quadro explicativo
segundo: [Chevitarese, 2012].

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Quadro 1. Mulheres visitam ao Túmulo

Nestes textos evangélicos, observamos que logo após a morte de Jesus as


mulheres visitaram seu túmulo para colocar adornos e perfumes ao mestre,
como cita o trecho de Marcos na primeira linha “E, passado o sábado, Maria
Madalena, e Maria, mãe de Tiago, e Salomé, compraram aromas para irem
ungi-lo. Marcos 16:1”. Assim seguindo esse acontecimento, os textos de
Mateus, João e EvPe 12:50, fazem –se visitar o túmulo do nazareno e em
todos descrevem a presença de Maria Madalena [Chevitarese, 2012]. Vale
ressaltar que era comum as mulheres visitarem os túmulos, pela tradição
judaica eram elas que choravam e também batiam no peito como uma forma
de luto, consequentemente as mulheres como Maria Madalena realizaram essa
prática pela morte do seu “salvador”.

Outra presença de Maria Madalena é referente ao acontecimento da


ressurreição de Jesus, em que as mulheres ao levar os aromas tinham
dificuldade de remover a pedra do túmulo de Jesus. Porém ao chegarem ao
sepulcro viram a pedra tumular removida e observaram que o sepulcro se
encontrava vazio; as versões dos textos de Marcos 16:4; Lucas 24:2; João
20:1; Ev.Pedro 9:37, mencionam que a pedra apenas foi removida, já para
Mateus 28:2 a pedra teria sido removida por um anjo em que essas mulheres
teriam visto o mesmo [Chevitarese, 2012].

Mas o detalhe que Maria Madalena estava presente nesse episódio e das
diversas narrativas bíblicas dos evangelistas informam versões distintas sobre
aparição angelical, o ponto foi a aparição de Jesus, dado como ressuscitado, e
o mesmo se apresentou para as mulheres, sendo elas Maria ou Maria
Madalena, antes até de Pedro, como cita os textos de Mateus 28:9-10 e
também o de João 20:14-17. Já os textos de Lucas 24: 34 e de Paulo aos
coríntios 1.15:5 afirmam que Jesus apareceu primeiro a Pedro, sendo assim
para Chevitarese [2012], torna-se bastante contundente a preocupação dos
textos Lucanos e Paulino em terem uma ideia de divisão de gênero com
apreciação a visão de Pedro da imagem de Jesus ressuscitado.

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Com relação aos textos de João, este apresenta o nome de Maria Madalena
como testemunha na aparição de Jesus Ressuscitado e como informante da
boa nova aos demais discípulos:

“E Maria estava chorando fora, junto ao sepulcro. Estando ela, pois,


chorando, abaixou-se para o sepulcro.
E viu dois anjos vestidos de branco, assentados onde jazera o corpo
de Jesus, um à cabeceira e outro aos pés.
E disseram-lhe eles: Mulher, por que choras? Ela lhes disse: Porque
levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram.
E, tendo dito isto, voltou-se para trás, e viu Jesus em pé, mas não
sabia que era Jesus.
Disse-lhe Jesus: Mulher, por que choras? Quem buscas? Ela,
cuidando que era o hortelão, disse-lhe: Senhor, se tu o levaste, dize-
me onde o puseste, e eu o levarei.
Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, voltando-se, disse-lhe: Rabôni, que quer
dizer: Mestre.
Disse-lhe Jesus: Não me detenhas, porque ainda não subi para meu
Pai, mas vai para meus irmãos, e dize-lhes que eu subo para meu
Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus.
Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos que vira o Senhor, e
que ele lhe dissera isto. [João 20:11-18]”

Esse fato da presença de Maria sublinha sua relação com a imagem de Jesus
ressuscitado como a escolhida para dar a boa nova aos demais discípulos;
mas por outro lado, trechos Paulinos tentam obscurecer a presença de Maria
não somente nesse fato, como em outros acontecimentos no período inicial da
formação da igreja. Crossan [2010] faz uma reflexão com relação aos textos de
Paulo, em que alguns momentos passam a mensagem de um conservadorismo
baseado em modelo de um cristianismo Romano com preceitos de uma
sociedade patriarcal, como cita Paulo aos Efésios 5:22-24: “Vós, mulheres,
sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; Porque o marido é a cabeça
da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o
salvador do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo,
assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos”.

De toda a forma os textos evangélicos apresentam narrativas que Maria


Madalena era uma seguidora fiel do nazareno, que infelizmente os textos foram
ou tiveram interpretações de uma mulher limitada a uma pecadora arrependida,
pouco valorizada a sua trajetória pelo viés teológico.

Analisando a segunda possibilidade de documentação, discutimos os textos da


biblioteca de Nag Hammadi, ditos como textos apócrifos (textos que não
poderiam ser lidos ao público); essa documentação apresenta um prisma
diferente com uma trajetória de vida de Maria Madalena com uma maior
influência na vida de Jesus. Esses documentos, dentro de uma análise
cronológica, foram escritos em meados do século IV, com a mesma escrita o
grego copta e que se pode fazer uma referencia como fonte para o

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entendimento diferenciado sobre Maria e o próprio Jesus Histórico. Muito além
dos mitos construídos sobre a personagem, a ideia é descrever o contexto
daquela sociedade Judaica também pelos textos de Nag Hammadi. Assim
observamos em ambas documentações, diante da múltipla atestação, que
apesar de ter uma narrativa diferenciada dos evangelhos canônicos, os textos
de Nag Hammadi fornecem informações mais consistentes de que Maria
Madalena se apresentou como uma seguidora fiel de Jesus em sua vida e
também após a sua morte.

Dentro destes textos, como o próprio evangelho de Maria Madalena e de


Felipe, se observa uma Maria com um discurso mais intelectual e provido de
maturidade sobre o contexto de vida que ela estava inserida. As mensagens
nesses evangelhos pela visão gnóstica (aquele que tem o conhecimento) como
cita Matias [2013] Maria Madalena se apresenta detentora de conhecimento e
de uma maturidade espiritual, como a “Sophia” (sabedoria). Estes textos
apresentam Maria Madalena com uma grande influência na vida missionária de
Jesus e dos discípulos, em que ela tem uma voz ativa entre eles e sua
representatividade é bem descrita nos trechos desses evangelhos o de Maria
Madalena:

“Então Maria se levantou, beijou todos e disse aos seus irmãos:


Pare de chorar e se aflija e seu coração não é mais compartilhado
porque sua graça irá acompanhá-lo e protegê-lo. Louvemos a sua
grandeza porque Ele nos preparo, 20 Ele nos fez homem. Com
estas palavras, Maria converte seus corações para o bem e eles
começaram a discutir sobre as palavras do [Salvador].
Pedro disse a Maria: “Irmã, sabemos que o Salvador prefere você a
outras mulheres, relata-nos as palavras do Salvador que você tem
na memória, aqueles que você conhece, mas nós não sabemos e
não ouvimos”. [Evangelho segundo Maria Madalena BG 1, Biblioteca
Nag Hammadi] “

É notável neste trecho do evangelho de Maria o quanto sua participação e o


quanto ela influencia pelas suas palavras o ordenamento e o controle das
situações em que os demais seguidores de Jesus estariam um tanto
preocupados, Maria tenta acalmá-los com um beijo e pede para pararem de
chorar. Mas notadamente existe um desconforto por parte de Pedro ao citar
que o “Salvador a preferia a ela do que as outras mulheres”. Porém ela
responde a Pedro:

”Pedro falou e discutiu questões semelhantes e perguntou-lhes


sobre o Salvador: "É possível que Ele tenha tido uma conversa com
uma mulher em segredo - para nosso conhecimento - e não
abertamente para que nós deveríamos, formar um círculo e todos
escutar isso? Ele teria escolhido, de preferência nós?
Maria respondeu e disse: "O que está escondido de você, vou lhe
dizer", e ela começou a dizer-lhes: "Eu", disse ela, "eu vi o Senhor
em visão. e eu disse a ele: Senhor, eu te vi neste dia em visão. Ele

Novos Estudos em Próximo Oriente


15
respondeu e disse para mim: Abençoado, você que não o incomoda
à minha vista porque, onde está o intelecto..”
Jesus ainda completa essa posição de Maria com relação a ideia do
conhecimento: “Não é nem por meio da alma nem por meio do
pneuma que ele vê, mas o intelecto [sendo] entre os dois é lido [i]
quem percebe o visão e é ele”. [Evangelho segundo Maria Madalena
BG 1, Biblioteca Nag Hammadi]

Esse discurso detalha a importância e a influência de Maria Madalena com os


discípulos e para, além disso, a sua participação na vida ativa de pregação de
Jesus o Nazareno, assim esses textos de Nag Hamaddi apresentam uma nova
discussão de que Maria provavelmente era muito mais que uma seguidora,
mas provavelmente uma discípula de Jesus.

O fato de que Maria seria uma discípula de Jesus se apresenta em raros


momentos nos evangelhos e até mesmo nas epistolas de Paulo, que apesar
deste ator dar pouca importância a Maria, este faz uma alusão a ela como uma
discípula importante na pregação em Roma. Tal fato segundo Tommaso [2006]
está presente nas cartas de Paulo aos romanos, que segundo Paulo, Maria
“trabalhou muito” para a comunidade em Roma. Poderia Maria Madalena ter
atuado fora do território da Palestina, pois de se tratar que Maria era de Migdal,
ela teria conhecimentos da cultura Helênica e Romana, e também detentora do
conhecimento do latim e do grego? Dentro desse contexto Greco Romano,
possibilitaria que Maria pudesse ser uma pregadora da palavra de Jesus em
outros domínios do império romano?

Outro texto Apócrifo de Felipe, que já abordamos aqui sobre o beijo entre Maria
Madalena e Jesus, que para muitos era uma relação conjugal, analisamos aqui
pelo lado de um confronto e de posição dentro da missão de Jesus, conforme o
texto de Felipe-Nag Hamaddi: “Quanto Maria, o Senhor [afeiçoado o amou]
mais que [todo] o discípulo [e] o beijou na boca. O restante dos [discípulos] 64
[. . ] Eles lhe disseram: Pedro perguntou: “Por que você o ama mais do que a
todos nós”. Esse questionamento é notável, e Pedro estaria intrigado pelo
quanto Jesus considerava Maria Madalena, e isso causou a Pedro um
sentimento de descrédito pela aproximação entre Maria e Jesus.

Deste modo, esses acontecimentos que revelava o quanto Maria era admirada
por Jesus, consequentemente após a morte do salvador se tentou obscurecer a
imagem de Maria, principalmente nos anos iniciais da formação da Igreja
Cristã. Assim poucas são as citações da vida de Maria principalmente nos
evangelhos. Pedro certamente se sentiu ameaçado por esta mulher, que era
motivo de seus questionamentos do seu envolvimento com o Nazareno.

Porém nos momentos mais difíceis da vida de Jesus, Maria estava presente e
compartilhou do seu sofrimento desde a sua prisão até após a sua morte. Já
Pedro, apesar de ter sido um mártir pela igreja católica, negou a Jesus três
vezes quando ele estava preso na fortaleza Antonia e levado ao sumo
sacerdote, conforme comentado no evangelho de Lucas 22:54-71.Então como

Novos Estudos em Próximo Oriente


16
pode ser Pedro o fundador da igreja? Sendo que Maria Madalena estava
presente junto Jesus em seus momentos de dor? O fato que a igreja durante
longo tempo desconstruiu a história de Maria por uma ideia de um pensamento
preconceituoso e machista, assim Pedro foi instituído pela igreja católica o
primeiro Papa da igreja, e o símbolo de Pedro com sua rede está forjada como
imagem no anel Papal, com uma forte influência de uma teologia baseada no
patriarcal por milênios, desconsiderando assim a presença da mulher no
controle da igreja.

Assim durante anos Maria Madalena foi esquecida e ignorada desde o início do
cristianismo arcaico, pois seria difícil esta personagem e sua história resistir a
uma sociedade com um pensamento machista, pensamento este pautado por
conceitos e teologias preconceituosas.

Considerações Finais
Não é de hoje que discutimos e observamos as tendências machistas e
preconceituosas referente a figura do feminino em todos os setores da
sociedade. No nosso século ainda vemos o quanto a sociedade tem tendências
machistas e que tenta ridicularizar e minimizar a importância feminina, tanto
social, político e religioso, na qual este último é sustentado pelo conceito do
fundamentalismo. A História apresenta diversas pesquisas sobre a mulher e
suas perspectivas de lutas, embates sociais para promover seu pertencimento,
visibilidade na trajetória nos mais diversos períodos.

Porém sobre Maria Madalena, a historiografia, através de diversas


possibilidades, consegue resgatar a biografia escondida ou “Obscurecida”
dessa personagem, e graças a análises de diversas fontes e demais outros
trabalhos, em que existe uma discussão mais ampla sobre a trajetória dessa
personagem. As mais variáveis Hipóteses têm sido abordadas e questionadas
sobre a imagem e a importância dessa personagem desde o Século I. Dentro
dos mitos e hipóteses, Maria de Madalena traz provocações sobre sua
trajetória e sobre o contexto do papel da mulher daquele período dentro da
sociedade Judaica. Portanto, Maria Madalena, no movimento de Jesus
Histórico, desde a segunda metade do Século I, tem sua importância diante
das pesquisas e pelas diversas análises acadêmicas nas quais
fundamentamos essa discussão.

Referências
ELOIS ALEXANDRE DE PAULA. Graduado em História Fafi-UV União da
Vitória-PR, Especialista em História Cultura e Arte UEPG, Ponta Grossa-PR

BROWN, Daniel Gerhard. Mário Dias CORREIA (trad.). O Código da Vinci. Edi
Sextante, Rio de Janeiro, 2004.

CHAVES, Júlio Cesar Dias. A biblioteca copta de Nag Hammadi uma historia
da pesquisa, Oracula, São Bernardo do Campo, 2.4, 2006. Acesso em
http://www.uel.br/laboratorios/religiosidade/pages/arquivos/textosNaqHammadi
LERR.pdf. 12/07/2022

Novos Estudos em Próximo Oriente


17
CHEVITARESE, André Leonardo. Maria Madalena no cinema mudo: Jesus no
Cinema: “Um Balanço Histórico e Cinematográfico entre 1905 e 1927” Rio de
Janeiro: Klínē Editora, 2012.

CROSSAN, Jonh Dominic. CHEVITARESE, André Leonardo. CORNELLI,


Gabriele (Org). A descoberta do Jesus histórico: A vida de Jesus histórico. São
Paulo, Ed Paulinas, São Paulo, 2°edi, 2010.

CROSSAN, Jonh Dominic. CHEVITARESE, André Leonardo. CORNELLI,


Gabriele (Org). A descoberta do Jesus histórico: As Duas Vozes Mais Antigas
da Tradição de Jesus. São Paulo, Ed Paulinas, São Paulo, 2°edi, 2010.

KRAMER, Heinrich, SPRENGER, James. Tradução de PAULO FRÓES O


Martelo das feiticeiras, Record: Rosa dos Tempos,12° edi, Rio de Janeiro, 1997

LUCAS. MATEUS. MARCOS. JOAO, Evangelhos. Bíblia sagrada, Edi:Loyola,


São Paulo, 1994

MATIAS, Carlos Almir. A participação das mulheres nos círculos gnósticos


cristãos nos séculos ii e iii. Dissertação de mestrado, Londrina, 2013.

TOMMASO, Wilma Steagall. ‘Maria madalena nos textos apócrifos e nas seitas
gnósticas’. Revistas Puc SP, Último Andar [14], São Paulo, 2006: ACESSO
EM https://revistas.pucsp.br/index.php/ultimoandar/article/view/12896.

Evangelho de Felipe: acesso em https://www.naghammadi.org/wp-


content/uploads/2015/08/NH-II-3-Évangile-selon-Philippe.pdf

Evangelho de Maria Madalena: Acesso em: https://www.naghammadi.org/wp-


content/uploads/2015/05/BG-1-%C3%89vangile-selon-Marie.pdf

MARÍA MAGDALENA, Série: Direção:Felipe Cano, Rodrigo Lalinde, México,


2018

Novos Estudos em Próximo Oriente


18
VIAGENS NO ISLÃ MEDIEVAL-BREVE ANÁLISE DE
VIAGEM AO VOLGA por Felipe Lomba Ferreira e Bruna
Alves Lopes

Introdução
Os debates acerca da Base Nacional Curricular Comum [BNCC] possibilitaram
importantes reflexões públicas acerca do lugar ocupado pela História enquanto
disciplina escolar e, consequentemente, acerca daquilo que era/é abordado em
sala de aula. Nesse sentido ganhou visibilidade [principalmente nas
considerações sobre a primeira e segunda versão da BNCC] a discussão sobre
a pertinência, ou não, de se estudar História Antiga e Medieval num país como
o Brasil. No caso de afirmações positivas, outras indagações eram
necessárias: como estudá-las? Que usos do passado queremos e devemos
realizar?

Guarinello [2013], ao escrever sobre a História Antiga, argumentou que a


mesma faz parte do repertório cultural brasileiro ocupando um papel importante
na construção de nossa identidade que, desde o século XIX, foi alvo de um
projeto de ocidentalização empreendido de forma consciente por nossas elites
políticas e intelectuais. Tal afirmação pode ser estendida para pensarmos a
chamada Idade Média. Sobre a questão, Pereira e Giacomoni [2019] enfatizam
que há um uso político do chamado passado medieval; uso esse que [longe de
possibilitar um conhecimento historiograficamente orientado sobre tal
temporalidade] colaboram para perpetuar e “[...] justificar posições
conservadoras, preconceituosas e discriminatórias, atingindo minorias,
religiosidades e outras formas de existências e de vida que não fazem parte da
sua visão do que seria a Civilização Ocidental” [s/p.].

Os apontamentos acima fazem com que os medievalistas, tal qual Berriel


[2020], argumentem sobre a necessidade dos estudos da área dialogarem com
os teóricos dos estudos de pós-colonialismo e decolonidade. Nesse sentido,
descolonizar a Idade Média significa muito mais que apenas reconhecer que o
termo em questão é uma construção européia, nascida durante a Modernidade
e que traz em si os fundamentos colonialistas. Embasado em Maria de Lourdes
Rosa, o autor defende que decolonizar a Idade Média significa romper
definitivamente com uma História universal cujo centro seria a Europa.

A partir da leitura de Teixeira e Pereira [2016] podemos argumentar que o


estudo e ensino de História Medieval não podem ser reduzido a uma visão
caricaturada de “pertencimento de teor conservador”, ao contrário, podem nos

Novos Estudos em Próximo Oriente


19
instrumentalizar para compreendermos fenômenos políticos e sociais do
presente como, por exemplo, as complexas questões envolvendo o “mundo
árabe” e o Islã; principalmente num contexto em que “ [...] o Estado Islâmico se
apropria de formações políticas medievais [o califado] e assume um discurso
‘cruzadista’ de retomada dos territórios da Península Ibérica.” [TEIXEIRA,
PEREIRA, 2016, p.24]

Neste ponto argumentamos que estudar a Idade Média, principalmente tendo a


cultura islâmica como ponto de partida, significa estar atento às demandas
políticas, sociais e acadêmicas do presente.

“Uma das maiores dívidas da produção humanística brasileira,


dentro ou fora da academia, é com questões relativas ao Oriente
Médio, quaisquer que sejam elas. São poucos os historiadores,
críticos literários, sociólogos, estudiosos de filosofia, enfim, de
qualquer área das humanidades, que se dedicam ao assunto.”
[JAROUCHE, 2012, p. 3]

De acordo com Jarouche [2012] ainda que acontecimentos como o 11 de


Setembro de 2001 e, uma década depois, os movimentos políticos e sociais
denominados de Primavera Árabe tenham despertado o interesse de
estudiosos brasileiros para temas referentes ao Oriente Médio e a Cultura
Árabe, estes assuntos ainda podem ser considerados marginalizados.

Tendo em vista a produção do conhecimento histórico e sua capacidade para


questionar estereótipos acerca do passado e do presente, vale destacar que,
de acordo com Bissio [2012] - ao contrário de uma caricatura que torna o Islã
representante do atraso e da ignorância em oposição a um mundo Ocidental
culto e civilizado herdeiro da chamada cultura greco-romana - durante a Idade
Média “foram os árabes herdeiros e sucessores da ciência helênica” permitindo
que os territórios ocupados por esse grupo fossem um espaço de grande
efervescência cultural e intelectual.

Parte dessa produção intelectual árabe produzida ao longo do medievo esteve


relacionada com as viagens empreendidas por esses povos naquele contexto.
Entre os vestígios produzidos nessas ocasiões encontramos o relato de Ahmad
Ibn Fadlan, escrito no século X, intitulado no Brasil de Viagem ao Volga. É
nesse relato que dedicaremos nossa atenção.

Sobre a fonte
No século X Ahmad Ibn Fadlãn recebeu uma ordem do califa da dinastia
abássida Almuqtadir Billãh para deslocar-se até o reino dos búlgaros do Volga
[na região da atual Bolgar, Rússia] visando atender a solicitação do rei dos
búlgaros, realizada por meio de uma carta endereçada ao citado califa, pedindo
auxílio na construção de uma mesquita, um mimbar e um forte de proteção. O
pedido, que oficialmente tinha como base um suposto interesse em propagar o
Islã enquanto fé, tinha nas entrelinhas uma dimensão política: visava o apoio
do califa contra aqueles que visavam subjugar os eslavos [CRIADO, 2019].

Novos Estudos em Próximo Oriente


20
As solicitações foram recebidas e aceitas pelo califa que enviou uma comitiva
encarregada de entregar à Almas Ibn Yaltw-ar dinheiro e orientações acerca
da fé islâmica. Ibn Fadlãn participou dessa comitiva na condição de secretário-
geral do califa e porta-voz dos fiéis. Nesse sentido, podemos argumentar que a
viagem empreendida por Ibn Fadlãn, e realizada entre 921-922 d.C ou, 309-
310 H. [Hégira], foi de caráter oficial e político/diplomática [CRIADO, 2019].

De acordo com Criado [2019] o relato de viagem produzido por Ibn Fadlãn foi
utilizado no século XIII d.C [VII H.] sendo, depois disso, encontrado novamente,
ainda que de forma incompleta [pois não há vestígios do retorno à Bagdá]
somente em 1923 no Irã. O pesquisador ainda nos informa que essa versão
parcial passou a circular em 1939.

O referido relato circulava em vários idiomas; entre eles o inglês [versão mais
procurada pelos estudiosos de literatura árabe que desejavam ter contato com
a obra]. Em 2018 a editora Carambaia, numa parceria realizada com Pedro
Criado, publicou uma versão em português traduzida diretamente do árabe. A
grande procura fez com que uma nova edição bilíngue fosse publicada em
2019 [CRIADO, 2021], versão essa utilizada neste trabalho.

Sobre a pertinência da fonte enquanto objeto de estudo historiográfico cabe


aqui os apontamentos realizados pelo seu tradutor, Pedro Criado [2019]:1]
apesar de não podermos definir exatamente qual o impacto desse relato para
viajantes e estudiosos que vieram depois de Fadlãn, é inegável sua influência,
uma vez que a cultura árabe o consagrou como um dos principais
representantes do espírito e legado islâmico de sua época. 2] O relato de
viagem de Ibn Fadlãn possibilita compreendermos e estudarmos regiões
distintas como o norte e o leste europeu, assim como sudoeste asiático e Islã;
3] além de ser o único testemunho ocular de uma cerimônia funeral viking, o
que influenciou no modo como tal cultura foi vista ao longo do tempo dentro e
fora das produções acadêmicas, sendo o filme 13º Guerreiro, de 1999
[produzido por John McTiernan e Michael Crichton e estrelado por Antonio
Banderas] um exemplo desse fenômeno. 4] Por se tratar de um relato
produzido por um observador atento, o leitor/analista do relato consegue não
apenas visualizar as imagens e situações por ele descritas, mas também
entender questões como alteridade e subjetividade presentes na narrativa.

A viagem
Viagem ao Volga pode ser inserido no gênero textual literatura de viagem
[CRIADO, 2021]. Cabe destacarmos dois pontos: o significado da viagem para
o Islã medieval e dos produtos dessas viagens que aqui estamos denominando
de literatura de viagem. Aqui recorremos à Bissio [2010, p.5] que argumenta o
seguinte: “Para os muçulmanos, todo conhecimento humano, seja relacionado
à religião ou não, tem a sua origem em Allah, o Deus único e o escopo do que
os seres humanos podem conhecer é claramente delimitado pelo Corão, que
invoca a onisciência de Deus [BISSIO, 2010, p.5 ].”

Novos Estudos em Próximo Oriente


21
De acordo com a autora, no mundo islâmico medieval a viagem possuía dois
sentidos: 1] era uma forma de expressar a fé e, além disso 2] constituía-se de
um mecanismo de construção do saber sendo que estes dois elementos
estavam articulados. No que diz respeito ao primeiro ponto, a autora nos
relembra que um dos cinco fundamentos do Islã é a peregrinação à Meca. Isso
fazia com que mulçumanos, de al-Andalus até Índia e China, se deslocassem a
fim de cumprirem suas obrigações rituais.

A peregrinação, viagem de cunho religioso, fazia parte do mundo muçulmano


que replicava os passos de seu profeta como uma jornada em busca de
sabedoria e iluminação divina. O Corão, livro sagrado do Islã, transcrito a partir
das falas do profeta, contendo 114 suras, foi considerado por tempo "A única
fonte aceita pelos muçulmanos para orientar-lhes a conduta. Mas logo ficou
claro que ele era insuficiente para dar conta de todas as situações que iam se
apresentando e exigiam respostas.” [BISSIO, 2010,p.2]

Especialistas foram assumindo a missão de, dentro dos domínios islâmicos,


reunir testemunhos e decisões do profeta Maomé e que pudessem servir de
referência para os fiéis. Desta feita, a viagem além de ser um dos fundamentos
do Islã, também colaborou para sua ampliação e adaptação. Nesse sentido, a
autora nos informa que:

“[...] a viagem como método de estudo foi, durante a Idade Média,


assumida como um dever por todos os muçulmanos que aspiravam
a integrar o círculo dos eruditos, fossem eles a especializar-se em
ciências corânicas, ou em ciências naturais - astronomia,
matemáticas, medicina - que também adquiriram grande
desenvolvimento. A viagem pode ser considerada um tema que
unificou a história do Islã medieval.” [BISSIO, 2010, p.3]

Com uma cultura que tanto valorizava as letras e o ato de viajar surgiu na
civilização árabe textos sobre tais experiências. São registros e contos
daqueles que viajavam em decorrência das mais distintas razões: comércio,
religião, busca por conhecimento ou guiados pela própria curiosidade. Viajar
se tornou um ato característico do povo arábe, mesmo que para eles já fosse
reconhecido os riscos de tal ato: contrair doenças, se deparar com assaltos,
desvios de rota e ocasionalmente morte. Ibn Fadlãn, por exemplo, não apenas
é consciente desses perigos a serem enfrentados, como também o expressa
em vários momentos de sua narrativa. Estes perigos são perceptíveis na
própria escolha do trajeto a ser realizado: a opção por um caminho longo está
relacionado com a consciência de se evitar passar por territórios de grupos
inimigos. Os perigos da viagem podem ser vistos em passagens tais como:

“[...]Também lhe foi solicitado que nos deixasse seguir em frente e


enviasse uma carta ao seu governante em HuWarizm para que ele
não dificultasse a nossa passagem e outra ao guardião do portão
dos turcos para que nos escoltassem e não pusessem nenhuma
dificuldade à nossa passagem.” [IBN FADLÃN, 2019, p. 27]

Novos Estudos em Próximo Oriente


22
O trecho acima demonstra que mesmo em territórios aliados, uma série de
medidas eram necessárias para garantir ao viajante chegar ao seu destino com
o mínimo de segurança. Tais questões nos fazem compreender as razões
pelas quais aqueles que partiam passavam por ritos de purificação sendo-lhes
inclusive recomendado que deixassem por escrito seu testamento [BISSIO,
2010].

Apesar dos riscos de diferente natureza que poderiam surgir ao longo da


viagem, o próprio percurso era compreendido como fonte de experiências e,
portanto, conhecimento [BISSIO, 2010]. No relato de Ibn Fadlãn há em vários
momentos descrições sobre seu espanto acerca de práticas culturais
totalmente distintas daquelas com as quais ele estava acostumado em seu
lugar de origem. Em alguns momentos as diferenças são lidas a partir de um
olhar negativo, em outros elas possibilitam importantes reflexões, inclusive
sobre si mesmo e suas crenças e costumes.

Destacamos os trechos em que o tema da higiene é colocado em questão pelo


viajante. Dentre os vários relatos sobre o assunto, apresentamos o seguinte:

“Eles são as mais imundas criaturas de Deus. Não se limpam depois


de defecar ou urinar, não se lavam depois das impurezas rituais e
não lavam as mãos depois de comer [...] Todos os dias,
impreterivelmente, eles lavam o rosto e a cabeça com a água mais
imunda e nojenta que há.” [IBN FADLÃN, 2019, p. 80-81]

A seguir o relato destaca a prática de, um a um, os homem se lavarem


utilizando a mesma bacia [com a mesma água] apesar das pessoas que
utilizaram o recipiente anteriormente terem assoado o nariz e cuspido nela.
Neste ponto chamamos a atenção para a observação realizada por Bissio
[2010] de que o relato de viagem mulçumano, ao contrário dos relatos cristãos,
possuem como princípio conhecer a si mesmo. Aqui podemos ressaltar a
temática da higiene. Criado [2010] nos chama atenção para o fato das cinco
orações diárias serem um dos pilares do Islã. Para a realização adequada do
rito, antes da oração é realizada a ablução sendo, portanto, diariamente cinco.
O relato de Ibn Fadlãn nos apresenta a questão de que “a higiene enquanto um
valor” [CRIADO, 2021], portanto algo praticado cotidianamente e por todos os
grupos, é um hábito socialmente construído constatação que o viajante só pôde
perceber ao vivenciar a experiência da viagem e observar em lócus que outros
povos poderiam, e possuíam, práticas distintas das suas.

A questão feminina é outro ponto em que a alteridade é acentuada no relato


analisado. Ao falar dos Oguzes e suas mulheres, o viajante fez a seguinte
descrição: “Suas mulheres não se cobrem na presença de homens, conhecidos
ou forasteiros. Da mesma forma, uma mulher não esconde nada de seu corpo
diante de ninguém” [IBN FADLÃN, 2019, p. 37]. Neste momento, Ibn Fadlãn
descreve seu constrangimento diante de comportamentos tão diferentes dos

Novos Estudos em Próximo Oriente


23
quais estava habituado podendo ser observado em expressões como
“escondemos os olhos.” [IBN FADLÃN, 2019, p. 38]

Entretanto, se o relato é a descrição e a análise de um viajante sobre aquilo


que viu e ouviu durante seu percurso, em vários momentos há também
vestígios sobre o fato de que aqueles povos citados na obra também olhavam
para Ibn Fadlãn e os demais membros da comitiva com um olhar crítico. Um
exemplo disso está na continuação da passagem, quando é descrito que o
marido da mulher citada por Ibn Fadlãn ri dele e dos demais que demonstraram
não estarem confortáveis com a situação. Vemos, portanto, que aquilo que
podemos chamar de choque cultural não é uma via de mão única e pode
possibilitar aos envolvidos reflexões sobre aquilo que creem e praticam.

Breves considerações
Durante o medievo as viagens entre os mulçumanos se caracterizaram como
importante instrumento de expressão da fé e de aquisição de conhecimento,
sendo importante destacar não apenas o conhecimento em relação ao “outro”,
mas também em relação a si: suas práticas, crenças, costumes e tudo o mais
que pudesse caracterizar o viajante como um fiel de Allah. No caso do relato
em questão, o contato com povos não arabizados (ou em vias de tornar-se)
possibilitou ao viajante contato não apenas com climas e vegetações
totalmente distintas daquela de Bagdá, mas também com práticas e valores
que, em quase nada, se assemelhavam aos seus. Embora estejamos olhando
tudo a partir da perspectiva de Ibn Fadlãn, encontramos em sua narrativa
indícios de que enquanto ele observava [e por vezes julgava] tudo
atentamente, os grupos com os quais teve contato também faziam o mesmo
com ele e sua comitiva.

Referências
Felipe Lomba Ferreira é graduando em Licenciatura em História pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e estuda em sua iniciação a
construção identitária armênia a partir do cinema.

Bruna Alves Lopes é graduada em Licenciatura em História, mestre e doutora


em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG). É professora colaboradora do Departamento de História da mesma
instituição.

BERRIEL, Marcelo Santiago. Pour un autre Moyan Age au Brésil: a perspectiva


decolonial na busca de uma episteme para a compreensão dos medievalismos
brasileiros. Revista Antíteses, Londrina, v.13, n.26, 2020. p. 68-96.

BISSIO, Beatriz. A viagem e suas narrativas no Islã medieval. REVISTA


LITTERIS, 2010. p.

BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica


através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012.

Novos Estudos em Próximo Oriente


24
CRIADO, Pedro Martins. Apresentação: a viagem de um relato. In: IBN
FADLÃN, Ahmad. Viagem ao Volga. São Paulo: Carambaia, 2019.

CRIADO, Pedro Martins. Clube de leitura na quarentena: conversa sobre o livro


Viagem ao Volga. Youtube, 2021. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cGiSx2kdFkE&t=146s&ab_channel=Editora
Carambaia . Acesso 18/09/2022.

CRIADO, Pedro Martins; JUNIOR, Afonso. Viajantes do islã medieval. Youtube,


2021. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kObr18V3s7Q .
Acesso 18/09/2022.

GUARINELLO, Norberto Luiz.História Antiga. São Paulo, Contexto.2013.

GOODY, Jack. A ideia de um Renascimento. In Renascimento: Um ou Muitos?.


São Paulo, Fundação Editora da UNESP [FEU], 2011.

IBN FADLÃN, Ahmad. Viagem ao Volga. São Paulo: Carambaia, 2019.

JAROUCHE, Mamede Mustafa. Prefácio. In: BISSIO, Beatriz. O mundo falava


árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e
Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

PEREIRA, Nilton Mullet; GIACOMANI, Marcello Paniz. A Idade Média


Imaginada: usos do passado medieval no tempo presente. Café História. 2019.
Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/usos-do-passado-medieval-
idade-
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a%20e%20de%20mulheres%20escritoras. Acesso: 17/09/22.

TEIXEIRA, Igor Salomão; PEREIRA, Nilton Mullet. A Idade Média nos


currículos escolares: as controvérsias nos debates sobre a BNCC. Diálogos.
Vol.20. n.3.2016. p.16-29.

Novos Estudos em Próximo Oriente


25
COMÉRCIO, VIAGENS E O ISLÃ: UM RETRATO DO
OCEANO ÍNDICO ATRAVÉS DA RIHLA DE IBN
BATTUTA por Gabryel Garcia Lima e Pietro Enrico M.
de Chiara

Introdução
Ibn Battuta é uma figura ímpar no Islã. É muito possível que historiadores do
século XIV o tenham como uma fonte, mesmo tendo como recorte de estudos
a Índia, a China, o Mali, dentre outros locais. Quase trinta anos distante de
sua terra natal renderam ao marroquino inúmeras experiências com os mais
diversos outros e as mais diversas realidades. Em 1325 ele viu sua cidade
natal, Tânger, sumir no horizonte. Sua intenção era a peregrinação à Meca,
mas ele foi bem além. O viajante passou por Argel, Bugia, Túnis, Tripoli, para
finalmente chegar a Alexandria. Adiante ele vaga por várias localidades da
Península Arábica e da região da Pérsia. Após isso, seu próximo destino é a
costa índica da África, em Mombaça e Kilwa, no século XIV. O tangerino
retorna ao Egito e, dessa vez, parte para a Anatólia. Nesse momento de sua
viagem, ele conhece o chefe do Ilkhanato e parte rumo à Constantinopla.
Finalmente, Ibn Battuta viaja para o extremo oriente. Permanece na Índia por
cerca de dez anos, no qual ele atua como qadi, assim como nas Maldivas.
Antes de retornar para o Marrocos, ele visita o Sudeste Asiático, a China e a
ilha de Sumatra. Por fim, em 1349 ele retornaria ao Sultanato Marínida, em
Fez. Entretanto, os longos deslocamentos não cessaram: após dois anos, ele
novamente viaja rumo à Península Ibérica. Após isso, próximo de 50 anos de
vida, ele se uniu a uma caravana e cruzou o Sahara e chegou ao atual Mali.

Entretanto, Ibn Battuta não parte e é bem sucedido sem antes haver um
contexto prévio estabelecido de viagem, isto é, sem as condições materiais
para realizar tal feito. Apesar da peregrinação ser um dos principais motivos
dos viajantes, vale ressaltar que ela não era a única. Esses personagens
possuíam vários objetivos e eram figuras multifacetadas, podendo ser
mercadores, estudantes, embaixadores, missionários ou aventureiros
[TOUATI, 2006, p. 830].

O contexto do Oceano Índico


Quando os europeus ocidentais, na temporalidade moderna e contemporânea,
expandiram-se de forma imperialista, eles não precisavam tecer as novas
redes. Isto é, eles suplantaram as já existentes entre os negociantes árabes,
chineses, indianos, entre outros, inclusive trilhando caminhos já consolidados
anteriormente. [RODNEY, 2010]. É importante destacar isso para fugir de uma

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interpretação hamita do mundo não ocidental, ou seja, de que a vivacidade e
complexidade só se faz presente mediante um europeu. A circulação, os
intercâmbios e os contatos possuem elementos locais; porém com a própria
dialética dos encontros, é possível também sintetizar o outro. É importante tal
ponto de partida já que, com a falta de enfoque em contextos não-europeus,
cria-se um mito de que tais mundos só são possíveis com a ação europeia.
Entretanto, o Oceano Índico, por exemplo, era um mosaico e via diariamente
diversos trajetos das mais diversas origens em suas águas. Um exemplo disso
é quando a presença da frota de Vasco da Gama passa despercebida pelos
locais, que estavam acostumados com o afluxo de diversos estrangeiros nesse
mundo indo-oceânico, como aponta Fauvelle [2018, p. 280].

Feitas tais considerações, pode-se abordar o século XIV. Quanto ao mosaico


da região, na costa Oriental africana, banhada pelo Oceano Índico, existiam
diversas cidades costeiras de grande movimentação comercial como Kilwa e
Mogadíscio, tais cidades têm origem em povos autóctones de cultura swahili,
na época de Ibn Battuta, esta região era palco não só de intensas trocas
comerciais mas também de trocas culturais, de forma que o Islã estava cada
vez mais presente na região. Mais ao norte, está a Península Arábica que,
além de abrigar a cidade sagrada de Meca, possui diversas cidades portuárias
que recebem muitos mercadores com produtos vindos da África, Índia e
Indonésia. Neste ambiente o Egito Mameluco tem um papel importante no
comércio do Mar Vermelho, enquanto o golfo pérsico, do outro lado da
península arábica, estava sob a hegemonia do Ilkhanato. Mais ao sul, as
regiões do Iêmen e Omã tem um papel importante em conectar as rotas
comerciais terrestres existentes no continente com as rotas marítimas, um
exemplo de destaque dessas cidades portuárias da península arábica é a
cidade de Hormuz que consistia em um sultanato independente.

Seguindo mais a leste pelo Oceano Índico o subcontinente indiano encontrava-


se sob a hegemonia do sultanato de Delhi que estava-se em declínio, além
deste, havia diversos reinos menores tanto muçulmanos como hindus, regiões
como Gujarat, Bengal e o extremo sul da Índia já se encontravam fora do
controle do sultanato de Delhi possuindo sultanatos independentes ou reinos
hindus locais. A Índia, ao longo de toda a sua história, é marcada pela
diversidade de religiões presentes em seu território. No período de Ibn Battuta,
é notório em seu relato a dualidade entre muçulmanos estrangeiros ou
convertidos e a população hinduísta, o que é transparecido pelo seu relato. O
território conhecido como a Índia já é imenso por si só, imerso em uma lógica
de produção internas e comércio que acabam se estendendo para fora do
subcontinente principalmente através das rotas marítimas pelo Oceano Índico.
Por último, mais ao leste que a Índia, estavam as ilhas da atual Indonésia e
Malásia, as quais possuíam pequenos estados de líderes considerados não
islâmicos pelos mulçumanos, mas ao mesmo tempo tal lugar recebeu a
influência do hinduísmo, do budismo e do Islã de forma que a presença dessas
três religiões podiam ser notadas através dos templos construídos na região.

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Reiterando o que já foi dito inicialmente, o Oceano Índico já era palco de uma
intensa rede de comércio e de trocas culturais muito antes da presença
europeia, os produtos oriundos de regiões distantes podiam ser encontrados
em meio aos mercados e palácios, segundo o relato de Ibn Battuta, o marfim
da costa Oriental africana, o incenso da península arábica, o algodão da Índia e
as especiarias da Indonésia estavam todas conectadas através das rotas
comerciais do Oceano Índico.

O Islã
Um recorte interessante a ser feito é quanto ao Islã e sua prática no oceano
Índico. Ao pensar nisso, é imprescindível localizar a rihla de Ibn Battuta em
uma posição de fonte qualitativa. O particular e o individual de um homem
podem demonstrar a maneira em que o Islã se expandiu para diversos locais
no século XIV, além dos costumes que passavam pelo seu filtro individual. Ele
está localizado em um momento em que regiões, no índico, encontram-se entre
o Islã como religião estrangeira trazida por comerciantes e um Islamismo
adotado pela nobreza e o governante. Obviamente essas relações são
complexas, com diversos fluxos que englobam inúmeras localidades.

Ademais, Ibn Battuta foi um agente da institucionalização dessa nova religião.


Muitos locais procuravam homens para compor o arcabouço islâmico de seu
governo, a exemplo de Delhi e das Maldivas. Dessa forma, nestes locais, Ibn
Battuta atua como qadi, o que o concede o poder de legislar sobre o outro. Um
detalhe a ser destacado é a diferença de modelos mentais e de cultura.
[MACEDO, 2021] Entretanto, era mais latente para as administrações islâmicas
incluírem um erudito no seu sistema, mesmo que estrangeiro.

Definitivamente, o Islã não está isento de moldar-se conforme os lugares que


se assenta, de modo a conversar com o universo simbólico significativo local,
como aponta Geertz [2004]. O exemplo de como o modelo de estado budista e
a metáfora do sol é transposta, inclusive nos próprios mitos de fundação,
mostra a evidência que esses sincretismos são comuns. Ademais, é
fundamental reconhecer que uma religião global, como desenvolvido por Eller
[2007], é uma variedade de elementos locais, além de ter possibilidade de
circularidade com outras religiões.

Para pensar o Islã nessas condições e entender o papel de Ibn Battuta, é


importante pautar-se na dialética centro e periferia. Da mesma maneira que há
um Islã ortodoxo central, há diferentes modos em que as tradições locais
podem recebê-lo. A partir desse conflito, surge uma realidade local e como as
pessoas lidam com uma manifestação de fé estrangeira.

Eis a situação de Ibn Battuta: alguém que é a ponte entre um Islã ortodoxo e o
estrato popular. Na Índia e nas Maldivas, ele deixa de ser apenas um
observador para ter poder de legislação sobre o outro. A partir disso, há de se
notar que o príncipe dos viajantes tem consciência de sua persona como um
estrangeiro e sabe que a legislação dali é construída de maneira diferente de
sua terra natal: o Maghreb. Até a própria madhhab [escola de jurisprudência] e

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a língua oficial é diferente nos locais em que ele atuou. Tal consciência pode
ser vista em frases como “Uma vez nomeado qadi, usei todos os meus
esforços para fazer cumprir as prescrições da lei, tendo em conta que os
pleitos não se levam da mesma maneira que em nosso país" [IBN BATTUTA,
2017, p. 768, tradução nossa]. Mesmo que ele demonstrasse preocupação
nesse aspecto, há a barreira de significação do mundo local e dos modelos
mentais que Ibn Battuta não pode superar.

Nas Maldivas, por exemplo, o maghrebino narra que o primeiro costume que
ele altera é a da permanência das esposas na casa do marido mesmo após o
divórico. Para fazer cumprir isso, por mais que ele reconhecesse as
diferenças, ele açoitou alguns homens. Aparentemente, isso parece ter tido
sucesso, entretanto, nem todas as suas ações tiveram êxito. Uma delas, por
exemplo, foi a tentativa de vestir as mulheres.

Ao falar de contato e sincretismo religioso, uma das passagens mais


interessantes de Ibn Battuta nesse recorte geográfico é a peregrinação à
montanha Sri Pada no atual Sri Lanka. Lá, de acordo com a tradição
muçulmana, estaria a pegada de Adão. Entretanto, o que torna complexo o
local é que ele é cultuado também pelo cristianismo, hinduísmo e budismo.
Obviamente, os dois últimos têm uma interpretação diferente, no qual a
pegada é interpretada como a de Hanuman, Shiva ou de Buda. Entretanto,
isso não é motivo de discordâncias ou de impedimento de peregrinações,
afinal, Ibn Battuta ressalta ter ido lá junto com iogues e brâmanes. Isso
significa que o viajante não encontrou resistência ou impedimentos de
transitar na região, o que mostra um ambiente multicultural de peregrinações
na região.

Ainda sobre o Islã, é importante relacionar os itinerários de Ibn Battuta com as


rotas de islamização do Oceano Índico. Afinal, como aponta Bissio [2012], o
maghrebino se locomove em um espaço em que ele reconhece o idioma e há
um grupo da mesma religião para acolher. Dessa forma, é possível vislumbrar
as redes de contatos em que o Islã está presente e o apoio que Ibn Battuta
encontra, principalmente em locais mais distantes. A ideia de contatos e
comunidades é crucial quando se é minoritário no país. Em nenhum local, ele
é o primeiro islâmico dali e, mesmo longe de casa, encontra intérpretes que o
ajudam a conversar com os habitantes locais. Mesmo que o feito do viajante
seja incomum, a viagem e o deslocamento, em si, não eram, o que tornava
possível encontrar pessoas dessa religião por toda a extensão de sua viagem.

Em Bengala e Sumatra, por exemplo, o viajante aponta políticos muçulmanos


que têm boas relações com o Islã e adotam eruditos de tal fé para compor as
leis. Esses casos têm uma função de dizer o quão extensa é a umma para os
seus leitores, além de estar pautado em uma materialidade situada em um
contexto de expansão de estados islâmicos no que é chamado de Extremo
Oriente.

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O maravilhoso
Além do Islã, é notório a construção de uma antinaturalidade desse universo
tão distante do Maghreb feita por Ibn Battuta, mais especificamente quando ele
está se dirigindo para a China, como aponta David Waines [2010]. O
maravilhoso é uma chave importante para entender o relato de locais tidos
como distantes na época. Mesmo que a obra não esteja situada
especificamente neste gênero, há uma intertextualidade.

Nesse quadro, há três momentos que marcam isso. Um deles é um lugar


denominado Tawalisi, alvo de confusões entre os estudiosos no sentido dele
ser real ou fictício. Pela lógica do itinerário, seria em algum lugar do sudoeste
asiático, mas nenhum especialista conseguiu identificar onde exatamente seria.
Esse lugar teria mulheres que montavam a cavalo lideradas por uma princesa
de língua turca, governante de Tawalisi. Essa mulher afirmava que só se
casaria com um homem que lutasse contra ela e a derrotasse. Há uma
construção de uma inversão à ordem social que marca tal antinaturalidade. O
segundo é um encontro, com a grande ave rukh, confundida por montanha. Por
fim, há também o relato de um grupo de homens que se parecem com
cachorros perto da região da Indonésia.

Esses elementos anunciavam um universo completamente diferente do


Maghreb, tanto na natureza, na fauna, nas expectativas, na ordem social. Era
um mundo distante e que a linha entre o real e o imaginado alcançava certa
tenuidade, afinal, foi o local mais distante no sentido oriental que o “príncipe
dos viajantes alcançou”. David Waines [2010] interpreta esses dois contos
como faróis de advertência para qualquer um que ousasse se aventurar além
dessas terras.

O comércio
Por fim, a rihla fornece também informações sobre o comércio praticado na
costa. Os produtos comercializados através das rotas marítimas do Oceano
Índico e atestados na rihla de Ibn Battuta demonstram as conexões existentes
entre os povos do Oceano Índico. Dentro deste contexto, um recorte
interessante a ser feito é o da comida e seu fluxo, assim como dos cauris
[wada] das Maldivas.

Sobre os alimentos, vale ressaltar que o primeiro livro de receitas no Islã data
de aproximadamente do fim do século X, que contém uma coletânea dos
desenvolvimentos culinários de um emergente grupo comerciante em Bagdá.
Até o século XIV, podem ser apontados diversos livros que discorrem sobre a
comida, além de discussões teológicas, como o próprio Al-Ghazali, autor com
grande influência no sunismo. Esse assunto é importante em Ibn Battuta, já
que ele oferece um material rico em questões como recursos alimentares
[WAINES, 2010].

As comidas e como elas são preparadas dizem muito sobre o fluxo material e
cultural, além de revelar uma relação com a própria religião no sentido da

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hospitalidade. Ahadith lembra que Muhammad não costumava fazer suas
refeições sozinho e prezar pelo preparo da comida por muitas mãos.

Quando o maghrebino esteve em Mogadíscio, na atual Somália, descreve que


seu principal alimento era o arroz importado da Índia. Entretanto, esse não é o
único produto que atravessava o Oceano Índico que Ibn Battuta notou na
cidade africana: há as folhas de bétele e nozes de areca, um símbolo da
hospitalidade indiana que foi introduzido na costa oriental africana. Esses itens
demonstram que além das trocas materiais, ocorriam também as culturais.
Entretanto, esse comércio não se restringiu apenas às costas, uma vez que os
trabalhos arqueológicos encontraram diversos produtos desse comércio no
interior da África, inclusive no próprio complexo habitacional do Grande
Zimbábue. [FAUVELLE, 2018].

Em adição a isso, quando relato fala sobre a população de Zafar no Yemen e


dentre as diversas descrições do viajante, uma diz sobre o principal alimento é
o arroz, vindo da Índia. Ademais, o viajante nota que as roupas são
principalmente de algodão também originários da Índia. Dessa forma, é
possível vislumbrar que o comércio índico introduziu itens que fizeram parte do
cotidiano das populações no golfo pérsico.

Outra mercadoria bastante apreciada nesse comércio são as especiarias


indianas. É possível vislumbrar que o fluxo delas era feito antes dos
portugueses e que tinham muito estima para os comerciantes e circulavam pelo
Oceano Índico até o ocidente islâmico.

Como abordado em outras pesquisas [DE CHIARA, 2021], um objeto


importante a ser incluído no comércio índico é o cauri [wada], conchas com uso
comercial, sendo colhidos principalmente nas ilhas Maldivas. O trânsito deles é
avassalador, sendo possível encontrar conchas maldívias na África
Subsaariana.

Ainda nessas redes de contatos, uma cidade crucial para compreender o


comércio índico é Aydhab, localizado na fronteira entre os atuais Egito e o
Sudão. Tal localidade era a ponte que interliga diversos pontos do comércio
índico que envolviam África e a Índia. Era ponto de encontro entre homens de
diversas localidades, além de que era por tal rota que chegava o karim,
comboio marítimo anual entre a Índia e o Cairo. [FAUVELLE, 2017, p.133]. Ibn
Battuta foi impressionada pelo caráter cosmopolita dali, o que pode ser visto na
descrição exaustiva dos pontos de partida das embarcações que chegavam ali.
[IBN BATTUTA, 2017, p. 429].

O relato de Ibn Battuta é apenas um fragmento desse grande oceano que


comportava fluxos dos mais diversos setores para diferentes localidades,
porém, torna explícito o fluxo material e imaterial que percorria diversas rotas e
circulavam por diferentes configurações sociopolíticas. Os cauris, os incensos,
as especiarias e tantos itens expostos pelo viajante revelam um mundo vivo,
conectado e imerso em trocas culturais.

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31
Conclusão
No Oceano Índico, Ibn Battuta depara-se com um mundo novo repleto de
trocas, como foi exposto. Tais relações tinham complexidades e iam além do
material; ou seja, havia também o contato cultural, religioso, simbólico, dentre
outros. Dessa forma, o viajante é apenas um homem no meio desses fluxos,
porém, a sua representação demonstra a vivacidade desse mundo, no qual
navios vagavam lotados de mercadorias rumo aos diversos portos que eram
pontos cosmopolitas.

Para compreender esse mundo, é imprescindível analisar também a


construção da possibilidade de uma viagem e de um relato e também as suas
relações com o islamismo, que fortalecia-se pouco a pouco em novas
localidades. Ibn Battuta não estaria ali se não tivessem condições firmadas
para tal e nem uma base de apoio a viajantes, como foi muito bem encontrada.
Mesmo em locais onde o Islã não era religião dos governantes, ele encontrou
hospedagem e foi recebido, o que reflete, além de sua estima e capital
simbólico como viajante, a possibilidade de recepção do estrangeiro. Ademais,
na perspectiva macro, isso também aponta que o Islã não era estranho para
grupos locais, uma vez que indivíduos dessas religiões circulavam por tais
regiões, seja por atividades comerciais, missionárias, políticas, dentre outras.

Referências
Gabryel Garcia Lima é graduando em História pela Universidade Federal do
Espírito Santo [UFES]. Atualmente é bolsista pela CNPq e desenvolveu,
durante dois anos, pesquisa de iniciação científica na área de África Antiga
sendo integrante do projeto: Representações sociais,alteridades e estigmas na
África Antiga e Medieval.

Pietro Enrico Menegatti de Chiara é graduando em História pela Universidade


Federal do Espírito Santo [UFES] e aluno de Mobilidade In na Universidade de
Évora. Atualmente é bolsista pela CNPq e desenvolveu, por dois anos,
pesquisa de iniciação científica sobre alteridade no Dar al-islam e Dar al-harb
na rihla de Ibn Battuta

BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe – A Civilização árabe


clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.

DE CHIARA, Pietro E. Menegatti. Entre cauris, jinns e casamentos: As


Maldivas por Ibn Battuta. In: André Bueno. (Org.). Mundos em Movimento:
Próximo Oriente. 1ed.Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2021, v. , p.
73-81

ELLER, Jack David. Introducing Anthropology of Religion. New York:


Routledge, 2007.

FAUVELLE, François-Xavier. O rinoceronte de Ouro. São Paulo: EDUSP, 2018

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32
GEERTZ, Clifford. Observando o Islã. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

IBN BATTUTA. A través del Islam. (trad., Introd. e notas: Serafín Fanjul;
Frederico Arbós). [S.l.]: Titivillus, 2017.

MACEDO, José Rivair. Antigas Sociedades da África Negra. São Paulo:


Contexto, 2021.

RODNEY, Walter. “A economia colonial” In. BOAHEN. Albert. História Geral da


África VII: África sob dominação colonial, 1880-1935. Brasília: UNESCO, 2010.

TOUATI, Houari. “Travel” in MERI, Josef (ed.). Medieval islamic civilization an


encyclopedia. Abingdon: Routledge , 2006.

WAINES, David. The odyssey of Ibn Battuta. Londres: I.B. Tauris, 2010.

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33
PROBLEMATIZANDO OS SUMÉRIOS NO PERÍODO
PROTODINÁSTICO por Leonardo Candido Batista

É muito comum existir uma aura de curiosidade quando debruçamos nos livros
de história e nos deparamos com os sumérios. Sua existência gerou um status
quase “místico”, sempre sendo atribuída como o berço da civilização. É claro
que não podemos negar as influências humanísticas, como a literatura,
urbanismo, escrita, que por volta do quarto milênio a.C., no Sul da
Mesopotâmia, começaram a ficar mais evidentes, e hoje são os alicerces do
que é considerado “civilizado”. O que muitas vezes é apresentado como
sumérios, é um conceito muito vago, que geralmente pressupõe uma
comunidade homogênea, de um povo que não se sabe muito sobre as origens,
e que teriam migrado para a Mesopotâmia se estabelecendo como a “cultura
mais avançada” daquelas redondezas, ganhando primazia sobre as outras.
Uma característica adicional que geralmente se apresenta como o “milagre
sumério”, é o surgimento da escrita cuneiforme, que fomentou tudo o que viria
a ser a “civilização mesopotâmica” e suas zonas de influência. Um ponto
importante de reflexão para entendermos questões étnicas e culturais dessa
região, é nos distanciarmos desse substrato uniforme sumério, e partimos do
princípio que essa sociedade coexistiu com culturas distintas que fizeram parte
de sua construção histórica.

Interpretações baseadas em conflitos étnicos entre sumérios e acadianos pela


manutenção do zênite etnocultural devem ser rechaçadas, pois esse período
necessita ser analisado como um emaranhado cultural que fazia parte da
realidade da região mesopotâmica por volta do terceiro milênio a.C., sendo que
a cultura não é uma abstração estática, como muito bem explica Fredrik Barth
(2005, p.17), essa é induzida nas pessoas por meio da experiência, ao ponto
de ser constantemente gerada pelas práticas e meios das quais se dá o
aprendizado. A variação cultural é contínua, não no sentido de expressar todas
as formas e gradientes uniformes; existem descontinuidades um pouco
abruptas, e agregados padronizados de algumas ideias compartilhadas ou em
contrastes com outros. Mesmo que o sumério como escrita perdurou resiliente
até Sargão, é perceptível que nomes em acadiano e até mesmo palavras de
origem hurrita existiram no período Protodinástico.

O Problema sumério
Um ponto muito debatido na historiografia mesopotâmica foi a questão étnica
da região, conhecido como o famigerado “problema sumério”, que
resumidamente baseia-se na discussão se os sumérios eram os habitantes

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34
autóctones da Baixo Mesopotâmia, ou se chegarem tardiamente. Essa questão
foi formulado, devido alguns pesquisadores acreditarem que esse povo não
teria adentrado na Mesopotâmia meridional pouco antes do Dinástico I (por
volta de 2900 a.C.), sendo que para esses não existiam evidências da língua
suméria nos textos do período Uruk. É comum se deparar com formulações de
hipotéticas etnias pré-sumérias (proto-eufratiana e proto-tigridiana), que teriam
habitado essa localidade, consequentemente sendo seus antecessores. No
entanto, Gonzalo Rubio (2007, p. 7 – 8) considera o “problema sumério” como
uma falácia étnica, explicando não haver nenhum substrato identificável que
tenha deixado vestígios no léxico. Sendo assim, perguntar de onde os
sumérios vieram, ou quem estava lá antes deles, seria um autoengano, já que
a terminologia “sumério” não é necessariamente um etnônimo direto. Todas as
discussões embasadas nessa problemática serão sempre uma aventura nas
traiçoeiras águas da tentativa de vincular uma língua (e antropônimos) a
etnicidade. A respeito disso, é importante notar a presença de nomes semitas
entre os escribas mencionados nos colofões dos textos sumérios.

No entanto, isso não significa que o portador do nome semita falasse alguma
língua relacionada a esse tronco, nem que a presença de um nome sumério
apontasse para outra coisa que não o contexto social e religioso. Diante das
dificuldades de esboçar qualquer figura etnolinguística do início da
Mesopotâmia, a velha dicotomia sumério/acadiana às vezes é substituída com
outra supostamente mais sutil: norte (semita) contra o sul (sumério). Tal
polaridade é na maior parte do tempo baseada em seus diferentes sistemas de
posse de terra, mas que no final das contas, recicla a tradicional divisão étnica.
Mesmo com duas línguas diferentes bem atestadas, a história e cultura
mesopotâmica devem ser entendidas como uma rica tapeçaria, cujos variáveis
fios estendiam-se ao longo de um período de mais de três milênios, com uma
variedade geográfica continuamente pontuada por interações com outras
áreas. (RUBIO, 2007, p. 8). Essa problematização é fundamental para não
cairmos na trampa de buscar as “origens da civilização”, e como muito bem
lembra Nicole Brisch (2013, p. 111), embora exista um desejo de investigar os
atores por de trás desse “prelúdio”, devemos entender que a designação
“sumério”, em primeiro lugar, deve ser aplicada ao fator linguístico, não para
um grupo étnico. Os sumérios se denominavam como “povo da cabeça negra”,
e chamavam seu habitat simplesmente de “terra nativa”. Provavelmente uma
reconstrução da palavra Kengi (r) = lugar e Gir = nativo. Já a linguagem
suméria era conhecida como eme-gir, literalmente “língua nativa”.

Partindo desse pressuposto, entendemos que os aspectos culturais do período


Protodinástico eram contínuos, com grupos étnicos podendo coexistir em certa
harmonia em um mesmo território, portanto, devemos enxergar essa
temporalidade percebendo uma dicotomia entre sociedade e língua suméria.
Essa premissa é importante para o leitor se desvencilhar da imagem mítica
como a Suméria sendo o limiar da História, sociedades anteriores já
partilhavam trocas de informações, sendo que a cultura viajava através desses
contatos evidentes desde o quinto milênio a.C.

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Geografia e hidrografia da Mesopotâmia meridional
A configuração ambiental da Baixa Mesopotâmia fora um dos pressupostos
para os primeiros assentamentos na região, baseavam-se em características
uniformes, configurada em uma certa unidade ambiental, diferentemente da
maior parte do Oriente Próximo. Nicolas Postgate (1990, p. 18) comenta que
geologicamente essa área é de origem mais recente – uma acumulação aluvial
depositada pelos rios Tigre e Eufrates, na trincheira profunda entre o escudo
árabe ao oeste e as dobras dos Zagros. O aspecto mais evidente desse terreno
é a sua horizontalidade. A 500 km ao norte da linha do golfo, a paisagem geral
se eleva menos de 20 metros sobre o nível do mar, resultando em um
gradiente de 1:25.000. Existem poucos obstáculos para uma mudança de
percurso fluvial, e em um espaço de poucos anos, o panorama natural pode
passar de um deserto estéril a um lugar pantanoso. Amelie Kuhrt (2000, p. 34)
complementa citando que o curso dos rios que banhavam a Mesopotâmia
meridional não era sempre estável, mudando em diversas ocasiões. Esse fato,
somada as inundações da primavera, depositavam excesso de lodo,
dificultando a irrigação. Outro perigo é a rápida evaporação das águas
superficiais, causando a salinização do solo.

Na Antiguidade a costa do golfo pérsico encontrava-se mais ao norte do que


atualmente, apesar de não ser consenso entre os pesquisadores. Os vastos
pântanos faziam parte do ambiente da Mesopotâmia meridional, e como
destaca Amelie Kuhrt (2000, p. 33 – 34) essa configuração representou uma
importante fonte de recursos, ao prover caniço e junco para a fabricação de
coberturas e produtos de vime, como cestos e esteiras, além de fornecer
alimentos, como pescados, aves aquáticas e javalis. A tamareira era de
extrema importância na região, já que pela falta de outras árvores, suas folhas
podiam ser utilizadas para a construção de telhados, enquanto o tronco fibroso
permitiu a confecção de cordas e edifícios leves. Seu fruto era valoroso para a
alimentação, madurava no outono complementando as colheitas na primavera,
sendo armazenado facilmente.

Uma peculiaridade dos vales fluviais é a falta de certas matérias-primas, como


materiais de construção mais adequados e robustos, assim também como
minerais. A. Caballos e J.M Serrano (1988, p. 12) comentam que o
ecossistema local é correspondente pelos fatores bióticos, edafológicos,
climáticos e geomorfológicos, sendo a pradaria o biocoro predominante. Na
transcendência do desenvolvimento histórico, as espécies arbóreas endêmicas
eram caracterizadas pelas tamareiras, álamos, adelfas e acácias. Na
atualidade o território é composto por palmeiras. Outra particularidade a se
considerar, é a divisão de uma série de unidades fisiográficas que
circunscreviam esse território, divido por Buringh (1957, apud A. CABALLOS e
J.M SERRANO, 1988, p. 12 – 14) em: estuário, zona pantanosa, delta, planície
fluvial e planaltos desérticos.

A morfologia do estuário é caracterizada pela alternância de zonas ribeirinhas


baixas, aterros fluviais, e pequenos canais irrigados pelo ritmo do aumento das
águas. Os pântanos eram formados na área onde se convergia o Tigre e

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36
Eufrates, e apresentavam um nível freático muito elevado. O delta era
composto pelo leito de inundação concebido pelos rios nas proximidades do
paralelo de Uqair e Ur, onde a superfície encontra-se no caminho de uma
infinidade de canais naturais interligados e cujos cursos não são fixos. A
planície fluvial fora constituída pelas águas levadas pelos rios, que contribuiu
para a formação de ribeiras altas, que uma vez transbordas, causavam
inundações catastróficas. Por último, o planalto desértico, configurado por
espaços onde o aproveitamento da irrigação era dificultado pela natureza muito
elevada dos terrenos. Devemos lembrar que o impasse da falta de materiais na
Mesopotâmia meridional, foi o estopim para que os habitantes dessa região
organizassem expedições comerciais, e inclusive, tentar estender seu domínio
político para o norte e noroeste, controlando assim essas matérias-primas.

Figura 1 — Mapa fluvial da Baixa Mesopotâmia


Fonte: CABALLOS, A; SERRANO, J.M. Sumer y Akkad. Madrid: Akal, 1988.

Períodos arqueológicos
Com base em um conjunto arqueológico de artefatos, pondera-se que a cultura
mais antiga da Mesopotâmia meridional é a de Samarra datada do sexto
milênio a.C. Ela fora identificada em lugares como o leste iraquiano perto da
fronteira com o Irã, e também ao norte de Bagdá. Ana María Vázquez Hoys
(2004, p. 16) descreve que esse período foi caracterizado por sua cerâmica de
superfície bege clara, um pouco arrugada e decorada com temas geométricos
pintados de vermelho vivo com asserções figurativas de animais e dançarinos.
Essa sociedade aparentemente exercia atividades como a agricultura, pecuária
e caça, praticando uma forma rudimentar de irrigação; utilizando as cheias do
Tigre para regar os campos de trigo, aveia, cevada e linho. O centro do
assentamento apresentava um fosso, talvez para proteger os habitantes contra
invasores. As casas possuíam certo estilo arquitetônico em plano retangular,

Novos Estudos em Próximo Oriente


37
construídas em ladrilho. Certos ritos funerários também eram praticados, com
os adultos sendo enterrados em posição fetal, envoltos em vendas de betume,
enquanto as crianças eram sepultadas em jarros ou grandes recipientes.

A cultura em potencial evidência dessa época surgiu um pouco mais ao sul,


caracterizada por sua cerâmica pintada, foi batizada de Ubaid. O sítio foi
identificado no que antes fora a cidade de Ur nos anos 1920 por Leonard
Wooley, e suas sequências culturais foram classificadas na década de 1960
por Oates. Todavia, existem outras áreas além de Ur que constatam traços da
sociedade de Ubaid, que muito ajudam a complementar nosso conhecimento, e
como sugere Postgate (1999, p. 38), observando as escavações em Eridu,
percebe-se que nas fases mais antigas desse estágio houve uma inclinação
para a agricultura. Nos níveis mais antigos aparecem ferramentes de caça e
pesca, ao passo que os materiais agrícolas surgem tardiamente. É razoável,
baseando-se nestas informações, considerar que os momentos iniciais do
período Ubaid aconteceram em torno de 5000 a.C., com o surgimento dos
primeiros assentamentos nessa faixa (POSTGATE, 1990. p. 39).

De certa forma, a sociedade de Ubaid foi ordenadora da planície


mesopotâmica, detendo uma arquitetura habitacional (apesar de um pouco
rudimentar), com cabanas construídas de barro, podendo ter sido costumeiro a
construção de templos no centro do assentamento. Mario Liverani (2016, p. 95)
especula que pode ter havido uma tendência à estratificação, mesmo os
indícios não sendo muito expressivos. Algumas evidências contribuem para
essa interpretação, como a presença de produtos artesanais, fruto de
atividades especializadas; cotejamento de um crescente volume de riqueza em
contextos públicos e simbólicos, e menos nos familiares. Isso sinaliza a
existência de um excedente para o desenvolvimento comunal, e a tendência
final desse vislumbre à centralização, é o início de uma produção em série;
envolvendo artesões em tempo integral, contando também com a presença de
uma espécie de “agência” política que dirige e coordena a atividade econômica
da comunidade.

O período que segue Ubaid é conhecido como Uruk (4000 – 2900 a.C.), onde
ocorrera a substituição da cerâmica pintada, por uma sem adornos e feita em
tornos, denotamos aqui o surgimento de traços mais sofisticados tanto nos
aspectos urbanísticos quanto humanísticos, não tendo mais características de
um povoado, mas sim algo muito similar com o que viriam ser as cidades-
estados sumérias, e como bem resume Harriet Crawford (1991, p. 17) o
período Uruk foi caracterizado pelo rápido crescimento da quantidade de
assentamentos e o surgimento de uma hierarquia em quatro níveis. Pela
primeira vez essas construções tinham tamanho suficiente para serem
chamadas cidades. Com mudanças acentuadas, veio à tona o desenvolvimento
de um sistema administrativo complexo com uma sociedade estratificada, com
o advento do que podemos chamar líderes seculares.

Novos Estudos em Próximo Oriente


38
Figura 2 - Cronologia das principais fases arqueológicas

Fonte: KUHRT, Amelie. El Oriente Próximo en la Antiguedad (c. 3000 – 300


a.C.) Volumen 1. Barcelona: Crítica, 2000.

Os dados arqueológicos também trazem à luz a emergência de exércitos,


assim como uma vida militar organizada. As mudanças tecnológicas também
não ficaram atrás, na metalurgia houve um sofisticado processo de moldagem;
na cerâmica vemos o uso da roda rápida; e talvez algo de demasiada
importância, à introdução da primeira escrita pictográfica em tabletes de argila.
O período Uruk foi mais inovador do que qualquer outro na história da
Mesopotâmia, sua influência atingiu lugares como o Mediterrâneo e o platô da
Anatólia (CRAWFORD, 1991, p. 17). Essa peculiaridade de uma rede de
influências que começa a ser distribuída por outras áreas do Antigo Oriente
Próximo, é de suma importância para entendermos como a cultura não era algo
ilhado nas sociedades da Antiguidade.

Para começarmos a ter uma noção dessas redes, é necessário explicar como
esse período fora importante para enrijecer contatos com outras regiões, é o
que Guillermo Algaze (2008, p. 68) defende como “expansão de Uruk”, que
resumidamente podemos entender como uma integração das sociedades da
Mesopotâmia meridional por volta da segunda metade do quarto milênio, onde
a cultura dessa região foi difundida por nódulos em várias localidades, embora
Gonzalo Rubio (2007, p. 20) aponte que essas conexões culturais poderiam ter
existido já no quinto milênio no período Ubaid. A penetração de Uruk foi um
processo de implantação citadina, ao passo que as formas sociais e urbanas
mesopotâmicas foram introduzidas em paisagens essencialmente virgens
(ALGAZE, 2008, p. 69). Apesar dessa explicação ter muitas controvérsias por
se basear na Teoria de sistema-mundo do sociólogo Immanuel Wallerstein, e
pelo fato de muito pouco sabermos do período Uruk, ela é um caminho para
entendermos essa teia que gerou uma gama de entrepostos ao sul,
estabelecendo locais estratégicos de suma importância na periferia
mesopotâmica, beneficiadas pela intersecção dos rios e outras rotas terrestres.

Novos Estudos em Próximo Oriente


39
Na fase final da cultura de Uruk (Uruk IV 3500 – 3200 a.C.) aparecem os
primeiros documentos escritos de forma pictográfica, compostos em sua maior
parte por registros de contas. O sumério como língua escrita começa a ter
formas mais contundentes no período que sucedeu Uruk, também conhecido
como Djemdet-Nasr. A. Caballos e J.M Serrano (1988, p. 23 – 24) explicam
que essa etapa é a continuação dos últimos momentos de Uruk, sendo também
uma fase proto-literária, pois corresponde ao embrião do sistema de escrita
suméria. Aqui foram encontrados os selos mais antigos, primeiro em forma
plana e depois em formato cilíndrico, sua função era para a inalterabilidade do
conteúdo após impresso, com a finalidade de facilitar o funcionamento do
sistema produtivo, agilizando os intercâmbios comerciais. Amelie Kuhrt (2000,
p. 41 – 42) resume que até 2900 a.C., as técnicas agrícolas e a exploração de
fontes alimentícias, foram aproveitadas pelos grupos de poder que surgiram em
algumas cidades, assegurando assim um importante excedente. Esse processo
deu lugar a uma estrutura social articulada, a qual cada cidade contava com
uma autoridade suprema que provavelmente controlava a maior parte dos
recursos. A complexidade crescente dessa organização urbana é observada no
desenvolvimento da escrita, aplicada também à abundância de diversas
atividades. Cada vez mais a Baixa Mesopotâmia moldava-se em uma estrutura
de cidades-estados.

Período Protodinástico
O período Protodinástico é mais abundante em fontes textuais e dados
arqueológicos, sendo maior em sua composição e homogeneidade histórica.
Essa época é constantemente classificada como a “clássica Suméria” que tanto
ouvimos ser o berço da civilização. No entanto, uma reconstrução do passado
sumério é um exercício bastante complicado, e como muito bem destacou
Samuel Noah Kramer (1963, p. 33), essa sociedade não escreveu uma história,
na concepção geral de seu significado, em termos de desdobramento e
processos subjacentes. Os intelectuais sumérios, não possuíam conhecimento
de definição ou generalização, nem uma abordagem evolutiva para uma
avaliação histórica. Limitados pela visão cotidiana do mundo, aceitando a
verdade axiomática de fenômenos culturais e acontecimentos. A denominação
de sequência arqueológica chamada Protodinástica foi estabelecida pelo
Instituto Oriental de Chicago, e segue classificada em subdivisões (PD I, II, III A
e B).

Para Marc Van de Mieroop (2004, p. 41) após o período Uruk, a influência da
Mesopotâmia meridional cessou em outras partes do Oriente Próximo,
restringida no âmbito local, embora alguns séculos mais tardes essa rede de
conexões voltou a ser estabelecida. Certas habilidades como a escrita se
tornaram abundantes (embora raras fora da região sul-mesopotâmica),
possibilitando um melhor entendimento do desenvolvimento político e cultural.
A organização se deu em forma no estabelecimento de cidades-estados, que
constantemente viviam em interação competindo uma com a outra. Paul Garelli
(1982, p.69) menciona que o processo de urbanização já se mostrava
avançado na planície meridional. Duas linhas de cidade desenhavam curvas
aproximadamente paralelas próximas ao Eufrates, e um canal que ligava este

Novos Estudos em Próximo Oriente


40
rio ao Tigre eram a leste: Adab, Zalabam, Umma, Bad-Tabira e Lagash; a
oeste: Akshak, Kish, Nippur, Shuruppak, Uruk e Ur.

Mario Liverani (2016, p. 151) faz uma análise sobre a distribuição do vale
mesopotâmico durante essa época, e conclui a existência de um arranjo
regional mais engendrado, embora as comunidades estivem um tanto isoladas
por estepes áridas ou pântanos. Piotr Michalowski (1997,p. 98) chama a
atenção para o conjunto de artifícios simbólicos e outras similaridades na
cultura material, que levam o leitor a crer que a Suméria foi uma entidade
cultural, todavia, existia muita diversidade entre as cidades-estados, assim
como semelhanças superficiais. Elas foram propícias para novas elites
regionais e hierarquias locais de poder, diferentes representações simbólicas
dessas relações e novas categorias (principalmente escribas e sacerdotes),
que possuíam suas posições e controle sobre esses símbolos. Tais grupos
tinham um forte interesse no status quo e as forças separatistas resultantes
das cidades sumérias, resistiram às tentativas de unificação em um estado
territorial.

A rede de canais fora a base desse conjunto integrado. A coesão interna


desses sistemas, não implicavam necessariamente no todo, ao passo do que
foi benéfico para uma área poderia não ter sido para outra, pois todas
dependiam do fluxo das águas. O isolamento gerado pelas possibilidades
irregulares oferecidas pela natureza, incitou as cidades a se formarem em
Estados distintos. A tendência ao separatismo manteve-se sempre viva,
embora isso não tenha atrapalhado a elaboração de uma sociedade comum,
cuja irradiação alcançou regiões mais setentrionais (GARRELLI, 1982, p.69). A
questão dessa divisão estatal estar relacionada a essa circunstância, pode ter
sido também ideológica, como bem observa Marc Van de Mieroop (2004, p. 45)
o conceito de articulação de cada cidade possuir sua independência, está
relacionada com o imaginário de que eram habitações particulares dos deuses
e deusas, construídas desde tempos primordiais.

Fontes
Como já mencionado, as fontes históricas desse período são mais
consistentes, embora não nos permita formar uma construção detalhada do
passado. No campo da cultura material, Amelie Kuhrt (2000, p. 43) menciona
que esses objetos são procedentes de diversos centros urbanos em forma de
restos de edifícios, placas esculpidas, selos cilíndricos, figuras em posição de
oração e cerâmica. Já o aparato escrito encontra-se distribuído de forma
desigual ao longo de toda essa época, formado por grupo de tabletes que
correspondem a diversos depósitos de anos distintos. Uma das principais
fontes textuais para a interpretação das cidades-estados é conhecida como
“Lista Real”, apesar de alusões a reinados que duraram milênios, fazendo nos
questionar sobre a natureza mitológica dessa fonte. I.M Diakonoff (1991, p. 74)
descreve que essa lista registra todos os reis que supostamente governaram
em ordem consecutiva, sucedendo um ao outro nas múltiplas cidades da
Mesopotâmia desde o início dos tempos. A sucessão real em uma mesma
cidade, era convencionalmente relacionada a uma dinastia.

Novos Estudos em Próximo Oriente


41
Essa lista é composta por relatos mitológicos e históricos, com dinastias
coexistindo contemporaneamente. Marc Van de Mieroop (2004, p. 43)
complementa explicando que cronologicamente o texto demarca o momento
em que a realeza “desceu dos céus”, ou seja, se inicia antes do dilúvio até a
dinastia de Isin (1900 a.C.). Os seguimentos que cobrem do Protodinástico, as
cidades-estados citadas são primeiramente localizadas ao sul, com um
destaque em especial para Ur, Uruk e Kish. Também são mencionadas cidades
em outras localidades como Awan, Hazami e Mari. As primeiras partes da Lista
Real são baseadas em aspectos lendários, atribuindo reinados
impossivelmente longos de 3600 anos, por exemplo, para figuras mitológicas
como Dumuzi, que era conhecido como sendo o marido da deusa Inanna,
sendo assim, puramente fictício (MIEROOP, 2004, p. 43). Mais tarde essa lista
foi utilizada pela dinastia de Isin em busca da legitimação de seu reinado.

Outras fontes importantes, mas não tão conhecidas, são os “Hinos sumérios do
templo”. Essa obra diferencia-se um pouco das outras, pois sua compilação é
atribuída a uma mulher, que pode ter sido uma das primeiras autoras da
história, conhecida como Endehuana. Gwendolyn Leick (2003, p. 142) defende
que ela causou uma enorme impressão em sucessivas gerações de escribas,
sendo suas obras copiadas e lidas durante séculos após sua morte. Recentes
estudos revogam dúvidas anteriores sobre a autenticidade de sua criação
literária, situando-a firmemente no período acadiano durante o reinado de
Naram-Sin. Endehuana não só compilou os hinos, como também foi autora de
uma complexa composição literária conhecida como Nin-me-sara. Nicolas
Postgate (1999, p. 41) especifica que essa coletânea de hinos é baseada em
poemas de curtas invocações individuais de todos os templos da planície
meridional. Cada um descreve o templo e sua deidade, em uma linguagem
figurativa que deve estar cheia de alusões, em sua maioria, perdidas para
nossas modernas concepções.

Referências
Leonardo Candido Batista, Mestre em História Social pela UEL

ALGAZE, Guillermo. Ancient Mesopotamia at the Dawn of Civilization. The


Evolution of an Urban Landscape. Chicago. The University of Chicago Press,
2008.

BARTH, Fredrik. Etnicidade e o Conceito de Cultura. Antropolítica: Revista


Contemporânea de Antropologia e Ciência Política – n.19 – Niterói: EdUFF,
2005.

BRISCH, Nicole. History and Chronology. In Harriet Crawford (org). The


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CABALLOS, A; SERRANO, J.M. Sumer y Akkad. Madrid: Akal, 1988.

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42
CRAWFORD, Harriet. Sumer and the Sumerians. Cambridge: Cambridge
University Press, 1991.

DIAKONOFF. I.M. The City-States of Sumer. In I.M Diakonoff and Philip L. Kohl
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GARELLI, Paul. O Oriente Próximo Asiático: Das Origens às Invasões dos


Povos do Mar. São Paulo: Edusp, 1982.

HOYS, Ana María Vázquez. Historia Del Mundo Antiguo Volumen I (Próximo
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KRAMER. Samuel Noah. The Sumerians: Their History, Culture, and Character.
Chicago: Chicago University Press, 1963.

KUHRT, Amelie. El Oriente Próximo en la Antiguedad (c. 3000-300 a.C.)


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LEICK, Gwendolyn. Mesopotâmia: A Invenção da Cidade. Rio de Janeiro:


Imago, 2003.

LIVERANI, Mario. Antigo Oriente: História, Sociedade e Economia. São Paulo:


Edusp, 2016.

MICHALOWSKI, Piotr. Sumerians. In: Eric M. Meyers (org). The Oxford


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University Press, 1997.

MIEROOP, Marc Van. A History of the Ancient Near East ca. 3000-323 BC.
Malden: Blackwell Publushing, 2004.

POSTGATE, Nicholas. La Mesopotamia Arcaica: Sociedad y Economía en el


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RUBIO, Gonzalo. From Sumer to Babylonia: Topics in the History of Southern


Mesopotamia. In: Mark W. Chavalas (org). Current Issues in the History of the
Ancient Near East. Claremont: Regina Books, 2007.

Novos Estudos em Próximo Oriente


43
ENSINAR HISTÓRIA DO EGITO ANTIGO A PARTIR DAS
AREIAS DO DESERTO: ALGUMAS REFLEXÕES por
Maura Regina Petruski

Refletir sobre as regiões desérticas nos encaminha primeiramente a ideia


construída no imaginário coletivo de que são desenhadas por longas extensões
de terras cobertas por areias claras sob sol escaldante, onde predomina a
aridez do solo, a secura do clima e a inexistência de vegetação, ou, em alguns
casos, lembradas a partir de um oásis que rompe a paisagem classificado
como uma espécie de miragem salvatória.

Acrescido a essas percepções também se veslumbra que a proporção de


regiões da superfície terrestre que se enquadram nessas características não
são elevadas, mas pode-se dizer que há ledo engano nessa referência, em
razão de que aproximadamente um quinto dessa extensão estão inseridas
nesse padrão, o que contribuiu para que gradativamente passassem a ser
observados como objetos de pesquisas de diferentes áreas, inclusive dos
historiadores que os viram além das suas condições geográficas, dentre os
quais estão Maria Helena Trindade Lopes (1998), Andrés Diogo Espinel (1998)
e Rose Marsal (2014).

Tais espaços, embora sejam realidades objetivas que majoritariamente se


apresentavam como locais vazios, têm muitas histórias a serem reveladas,
embora as areias pudessem escondê-las, não conseguiram apagá-las,
interpretação essa cada dia mais observável a partir de análises de
pesquisadores que demonstram às influencias dessas terras em vários
aspectos não somente nas sociedades que se constituíram ao seu entorno,
mas também nas longínquas, todavia, “os enfoques e pontos de vista são
distintos, em função das regiões e problemas estudados dentro as
representações, vivências, experiências e interesses de cada região”
(BARAJAS, 2011, p.8).

Exemplo da colocação mencionada acima está presente quando tomamos os


desertos Arábico e Líbico como referência ao Egito antigo, uma vez que
influenciaram a construção do mundo, das representações socias e crenças
dos indivíduos dessa sociedade. Todavia, como na História não temos
verdades absolutas, acredita-se que eles têm ainda muitas coisas a serem
reveladas, uma vez que por muito tempo estavam identificados como um rasgo
de terra que esteve à margem de muitas narrativas históricas, principalmente
quando a paisagem era coadjuvante na análise do processo.

Novos Estudos em Próximo Oriente


44
E, devido ao entendimento da relevância que deve ser concedida às regiões
desérticas, e vendo-as como espaços potencializadores para a construção da
narrativa histórica é que esse trabalho foi desenvolvido, buscando ressaltar que
os desertos que margearam o corredor produtivo do vale do Nilo foram
componentes para a formação da sociedade egípcia, mesmo que suas
extensões não tivessem sido percorridas de forma habitual e mais intensa se
comparada com outras terras, mas, todavia, não é possível rechaçar que esses
espaços fizeram parte dessa história e contribuíram direta ou indiretamente
para perpetuar os acontecimentos da terra dos faraós, como veremos no
próximo tópico.

Uma terra, muitas histórias


Durante muito tempo, os desertos que margearam o fluxo de água do rio Nilo, o
Líbico e o Arábico, não integraram estudos científicos constitutivos
relacionados a história do Egito antigo. A justificativa central para a exclusão de
não serem identificados como componentes da formação cultural faraônica
seguiu os rastros dos primeiros egiptólogos franceses do século XIX que os
consideravam pouco relevantes como objeto de análise, devido ao fato de que
era o vale do rio Nilo e sua área circundante que serviam como espaço de
referência dos pesquisadores, dessa forma, tudo o que estivesse fora dos
limites do rio não deveriam ser tratados como parâmetro de pesquisa,
acrescido ao fato que até então eram as grandes construções que os
interessavam.

Por certo, entende-se que a partir da compreensão da postura mencionada


acima por parte desses estudiosos, é possível afirmar que contribuíram para
gerar hiatos na aquisição do conhecimento da história dessa sociedade, a qual,
seguramente, começou a ser revertida na segunda metade do século XX
quando regiões desérticas passaram a ser incluídas como diretrizes de análise
nas produções acadêmicas, e não mais identificadas somente como locais
inóspitos e sem relevância, mas alçados a lugares possibilitadores de trazerem
à tona informações que contribuiriam para que acontecimentos históricos
pudessem ser elucidados, principalmente os que se direcionavam a
temporalidades mais remotas ligados aos períodos primevos.

Entretanto, até que se chegasse ao ponto de aceitação que esses territórios


poderiam ser utilizados como suportes nos campos de pesquisa, não foi um
caminho percorrido de maneira fácil e simplista como possa parecer, pelo
contrário, os primeiros pesquisadores que adotaram os desertos como objeto
de estudo no início do século XX sofreram críticas no meio acadêmico, alguns
tiveram seus trabalhos contestados e negligenciados, mesmo àqueles que se
propuseram a estudar os espaços desertificados mais próximos ao vale do
Nilo.

E, a medida que a mudança gradativa de compreensão referente aos desertos


foi se consolidando, esclarecimentos sobre lacunas a respeito da história dessa
sociedade começaram a ser gerados, e a partir de então, nota-se que ecos do

Novos Estudos em Próximo Oriente


45
passado passaram a soar na contemporaneidade, fronteiras que foram sendo
rompidas não somente no aspecto natural, mas também em outros segmentos.

A despeito disso, destaca-se que os relatórios mais recentes apontados como


desmembramento dos descobrimentos promovidos pelos achados
arqueológicos geridos a partir de levantamentos topográficos e
complementados pelo registro visual de satélites, fez com que os desertos
fossem transformados em lugares a serem decifrados, contribuindo para a
compreensão principalmente do período protofaraônico, período sobre a qual
as informações que se tem até então ainda são nebulosas, principalmente as
centradas na circunscrição da cidade de Hieracômpolis, indicada como centro
de expansão no processo de conquistas.

Consonante ao mencionado acima, temos o trabalho de Rose Marsal (2014,


p.37) que afirma que entre a décadas de 1920 e 1930, o deserto ocidental
egípcio foi visitado por vários exploradores que realizaram o mapeamento da
região, embora nesse período ainda prevalecesse na mente desses
desbravadores a ideia de que alcançariam e descobririam lugares míticos.

Todavia, mesmo tendo essa intencionalidade abarcando os projetos desse


momento, algo que não se deve perder de vista é que foi a partir de então que
ocorreu o despertar do interesse científico para com esses locais promovendo
as demarcações de regiões desérticas, áreas que quando observadas
panoramicamente do alto, se constituíram numa ampla zona salpicada de
recortes espaciais, as quais passariam a receber missões científicas que
cooperariam significativamente para a criação de novas linhas de investigação,
ou, ainda, a sua integração em projetos arqueológicos maiores já existentes,
coordenados por pesquisadores oriundos da Alemanha e França, dentre muitas
outras nacionalidades, comprovando que esse chão tem história e é revelador
de novos conhecimentos.

Nessa perspectiva, Marsal, destaca que,

“o objetivo das primeiras expedições era modesto: localizar e


posteriormente visitar os sítios já registrados por exploradores
anteriores. Devido ao contexto da segunda guerra mundial, na
década dos anos de 1930, alemães, ingleses, egípcios, húngaros,
entre outros, quiseram participar da exploração desse deserto. O
deserto era uma encruzilhada de interesses políticos e
geoestratégicos. Pouco a pouco, os achamentos foram ganhando
importância, pois já se descobririam novas paisagens, maciços e
vales desconhecidos, senão a presença de atividades antrópicas
que escapavam da compreensão dos primeiros que delas falavam”.
(MARSAL, 2014, p. 62)

Antonio Pérez Largacha é outro autor que apresenta projetos de investigação


inseridos nesse novo contexto interpretativo, e mencionou que,

Novos Estudos em Próximo Oriente


46
“o primeiro é o Combined Prehistoric Expeditio (CPE), iniciado em
1972 e dirigido por Fred Wendorf, que colocou a importância das
culturas que durante o Holoceno habitaram o deserto ocidental,
destacando-se em Nabta Playa (Wendorf, et al., 2001). Igualmente o
Dakhleh Oasis Project, centrado nas mastabas dos governadores de
Balat (VI dinastia), também o estudo em seu entorno, rotas e
inscrições rupestres (Rossi e Ikran, 2013), assim como o Theban
Sesert Road Survey, iniciado em 1992 e que, ainda centrando-se
nas manifestações presentes nas cercania de Tebas, podendo
fechar-se a maioria entre Nagada II e III, há posto de sobressair a
necessidade de explorar e entender as rotas e caminhos que, desde
os centros urbanos do vale do Nilo se adentravam nos desertos
(Darnell 2002, 2013). Finalmente, o projeto ACACIA 13, continuado
a partir de 2009, que foi centrado especialmente em Gilf Kebir”
(LARGACHA, 2015, p.91).

Andrés Diogo Espinel, também faz parte do rol de investigadores integrantes


da nova geração que aborda a questão das fronteiras e limites do Egito antigo.
Segundo ele, ao falar da demarcação de fronteiras nessa sociedade há que se
diferenciar ao menos dois tipos: primeiro; as políticas, cujos limites eram de
uma jurisdição que serviam de ruptura entre entidades diferentes; e, segundo;
as constituídas pelos limites naturais representados pelo vale do rio e pelo
deserto, que, de certa maneira, não tinham porque coincidir uma com a outra
como referência de demarcação (ESPINEL, 1998, p.23).

Relacionado aos limites naturais e se enquadrando no segundo ponto indicado


acima, o autor chama a atenção para a perspectiva de análise construída pelos
próprios egípcios no decorrer do primeiro período intermediário conjugada na
ideia da ‘observação pedológica’, ou seja, a utilização do uso de cores para
destacar a representação imagética de observação dos solos, sendo a cor
vermelha simbolizando o aspecto negativo, nesse caso os desertos, bem como
a preta, para o lado positivo, visto que a terra negra formava um solo fértil
advindo do limo depositado durante a inundação, e frente a ele se opunha o
deserto (ESPINEL, 1998, p.12).

Inserido nesse contexto,

“a paisagem (era) fortemente orientada, com o rio fluindo para o


norte e os dois horizontes ocres dos desertos arábico e líbico, atrás
dos quais surgia e desaparecia o disco solar toda manhã e toda
tarde. [...] O lado fértil que seguia o rio ostentava tons puros: negro
no momento da lavra, verde brilhante e luminoso quando cresciam
as culturas, amarelo ardente quando o trigo estava maduro. [...] A
orla do deserto marcava brutalmente o limite entre o mundo
ordenado e nomeado da planície fértil e as vastas extensões
informes e inorganizadas de areia e rochedos estéreis. [...] A grande
uniformidade dessa paisagem, que se repetia de Elefantina ao Delta,
era outro traço específico do Egito” (ESPINEL, 1998, p.22).

Novos Estudos em Próximo Oriente


47
Seguindo outro entendimento, porém dentro da análise das regiões desérticas,
os egípcios compreendia-los a forças assombrosas que levavam ao caos, bem
como a lugares terríveis e cheios de perigos, ademais, eram frequentados por
animais perigosos e criaturas fantásticas desconhecidas, incluindo ao fato de
que eram habitados por grupos de pessoas marginais que ameaçavam a órbita
do desenvolvimento e organização da vida no universo do entorno do rio,
assim, diante de tantos malefícios, deveriam ser evitados de serem
transpostos.

Maria Helena Trindade Lopes acrescenta que a proximidade marcante dos


desertos no espírito do homem egípcio, desenha imagens de morte,
isolamento, solidão e silêncio, ademais, também conjugavam tanto lugares de
transcendência sagrada e a espaços pertencentes aos mitos da criação do
estado faraônico (LOPES, 1998, p.217).

Entretanto, mesmo prevalecendo a percepção negativa entre os egípcios em


relação aos desertos, isso não foi suficiente para que evitassem a percorrê-los,
visto que foram atravessados não somente por beduínos que buscam de pasto
para seus animais, mas, também, por aventureiros e comerciantes condutores
de caravanas que faziam chegar ao Egito produtos e matéria-prima,
principalmente os oriundos do oriente e da Núbia ao sul.

Além de que, algumas faixas de terras desérticas localizadas mais próximas do


leito do rio Nilo serviram para os viajantes como uma espécie de caminho
alternativo, quando o transcurso fluvial fosse impossibilitado de ser realizado,
fazendo com que, desviassem seu trajeto perfazendo um contorno que atingiria
o solo árido para, posteriormente, retornarem às águas do rio. Diante dessa
situação, o deserto pode ser interpretado como uma área de comunicação para
se alcançar o destino final estabelecido.

Sendo assim, encerro a presente reflexão enfatizando que as considerações


apresentadas no decorrer do texto são alguns encaminhamentos que permitem
fazer com que a história do Egito antigo seja cada vez mais instigante e
observada a partir de diferentes frentes de análise.

Referências
Maura Regina Petruski. Doutora em História pela Universidade Federal do
Paraná. Professora do departamento de História da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG). Integrante do corpo docente da pós-graduação
Mestrado de Ensino de História (PROFHIST) da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG)

BARAJAS, Dení Trejo. Los desiertos em la historia da América: Uma mirada


multidisciplinaria. Editorial Morevalladolid. México, 2011.

ESPINEL, Andrés Diego, Fronteras y demarcaciones del território egípcio em el


reino antiguo. Stvd. hist., W antig. 16,1998, pp. 9-30

Novos Estudos em Próximo Oriente


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LARGACHA, Antonio Pérez. Algunas reflexiones sobre Gilf Kebir, el desierto
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LOPES, Maria Helena Trindade. Leitura do espaço à interiorização da sua


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Evidencias del Neolítico Sahariano. In: VIDAL,J. & RIVA, Rocio da (orgs).
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Bellaterra S.L., 2014, p. 39-69.

Traunecker, Claude. Os deuses do Egito. Brasília:Unb, 1992.

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LEPANTO: A ÚLTIMA BATALHA DAS GALÉS, 1571 por
Nelson Rocha Neto

Em 1571, um evento destacou-se no decorrer das crises otomana/cristã do


século XVI, como a Batalha de Lepanto, na Grécia, ainda que sua denotação
como triunfo cristão seja excessivamente superestimada na erudição moderna
[DIMMOCK, 2005], pois os turco-otomanos passaram por portentosa expansão
militar ao longo do século XV: invadiram a Pérsia, a Síria, o Egito, Trípoli,
Tunísia e Argel; conquistaram Constantinopla em 1453; subjugaram parte da
Hungria em 1526 e dirigiram-se novamente às portas de Viena. As frotas turcas
causaram inúmeros prejuízos às potências europeias no Mediterrâneo até a
solenizada vitória da coalizão católica conhecida como Liga Santa, nas
margens de Lepanto. Até meados do século XVI, o sultão otomano Solimão I, o
Magnífico, governara cerca de quinze milhões de pessoas em três continentes
[KAUFMANN, 2018].

O corsário e rei de Argel, Khayr ad-Din, mais conhecido por Barbarossa (1483-
1546), protagonizou a expansão dos seus domínios, do comércio de
escravizados, do combate contra os espanhóis e impôs-se contra outros piratas
com a ajuda de renegados europeus que atuaram nas embarcações
capitaneadas por turcos [BRADFORD, 2013]. Deste modo, Barbarossa
comandou uma frota de corsários otomanos em nome de Solimão I, açoitando
a costa mediterrânica ocidental, impondo grandes baixas na frota papal e do
mercenário, Andrea Doria (1466-1560). Entre os anos de 1541-1544,
Barbarossa avançou nos domínios costeiros italianos da Espanha em pacto
sigiloso com os franceses. Trinta anos depois, sua frota foi destruída no Golfo
de Lepanto [NOLAN, 2006]. Desta forma, o historiador Ernle Bradford descreve
a importância das galés e a diferença entre os remadores turcos e cristãos:

“[...] na famosa batalha de Preveza, em 1538, muitas das galés


turcas vitoriosas sob o comando do irmão Barbarossa caçula foram
parcialmente tripuladas por homens livres turcos. Esses voluntários,
geralmente janízaros de origem, eram considerados mais eficientes
(e, naturalmente, muito mais confiáveis) do que os escravos, que
provavelmente se rebelariam na primeira oportunidade. Outra
grande vantagem em empregar seu próprio povo nos remos era o
fato de que, quando a batalha começava, os próprios remadores se
tornavam parte da força de combate. Nas grandes galés cristãs, por
outro lado, os remadores hesitavam – sua lealdade era duvidosa –

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bem no momento em que o combate realmente começava”
[BRADFORD, 2013, p. 42].

O préstimo militar da galé mediterrânea desenvolvida por gregos e romanos,


adaptada pelos bizantinos e venezianos até seu ápice no século XVI, foi o
produto de duzentos anos de engenho, trabalho, guerra e navegação.
Nomeada num tratado imputado ao imperador bizantino, Leão VI (866-912),
para distinguir seus navios de guerra com um assento de remos único, estas
embarcações, além de despertarem admiração e deslumbre no olhar,
repugnavam o olfato exalando a baixeza moral. Na labuta miserável nos porões
das galés, os homens eram acorrentados nus em grupos de quatro a seis em
bancos com cerca de um metro de largura, “obrigados a urinar e a defecar nos
próprios assentos em que trabalhavam” [BRADFORD, 2013, p. 19]. Durante a
serenidade das marés, os homens podiam revezar o trabalho nos remos,
metade dos vacantes era autorizada a dormir ou se ocupar de artesanatos
sobre os bancos, pequenas esculturas em madeira, ossos, desenhos ou nós
em cordas até a troca de turno. Podiam comerciar seus objetos nos portos em
troca de pequenos luxos ou pagar por serviços sexuais. Quando a força motriz
era exigida, o responsável pelos galeotes recebia as ordens diretas do capitão
para golpear as águas conjuntamente e transmitia sinais apitando para dois
suboficiais, um no centro e outro na proa da embarcação munidos com
chicotes. Os agrilhoados podiam remar entre dez a vinte horas sem descanso,
nessas circunstâncias, um oficial enfiava pedaços de pão embebidos em vinho
na boca dos remeiros para impedir que esmorecessem. Nas batalhas, os
remadores cristãos bradavam e batiam as suas correntes para amedrontar os
inimigos, costume também adotado pelos muçulmanos que dos seus remos
bramiam: “Allahu Akbar!” [BRADFORD, 2013, p. 117]. Atuaram no mar
Mediterrâneo aproximadamente quinhentas galés de guerra, na considerada
última grande batalha de galés da história. A esquadra cristã era formada pela
Liga Santa Católica Italiana, contando com o apoio da República de Veneza; da
Espanha (com os reinos da Sardenha, Nápoles e Sicília); dos Estados
Pontifícios; de Gênova; do Grão-Ducado da Toscana; de Saboia; do Ducado de
Urbino e da Ordem dos Cavaleiros de Malta dentre outras potências menores
[NOLAN, 2006]. O acirrado conflito entre Ocidente e o Oriente durante o século
XVI, transformou o escravagismo dos porões fétidos das galés em um “estatuto
social” composto por escravos, criminosos condenados e endividados:

“A maioria desses homens que colocavam em movimento a galé


papal em seu percurso pela costa eram muçulmanos – tanto cativos
turcos e árabes quanto mouros da costa do norte da África. Os
bancos de remadores também eram reforçados por criminosos
condenados e por uma terceira classe de escravos de galé, os
“voluntários”. Estes eram homens que haviam se endividado e, para
escapar da imensa punição infligida aos devedores, preferiam se
tornar remadores [...]” [BRADFORD, 2013, p. 20].

Estes indivíduos eram originalmente incorporados às fileiras soldadescas


árabes, por conseguinte os soldados negros passaram a ser objeto de desejo

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dos príncipes europeus [M’BOKOLO, 2009, p. 252], pois semelhantemente aos
marroquinos, montariam “um corpo militar integrado por soldados negros”,
causando “pavor junto das populações, apenas com a sua presença”,
admitindo “jovens soldados instruídos na obediência religiosa e submissão
incondicional ao grande senhor, num processo comparado ao que conheceram
as tropas de janízaros otomanos, a partir do século XVI” [ALBERTO, 2010, p.
124]. Na outra frente encontravam-se as galés otomanas do sultão Selim II e as
galeotas dos corsários berberes. A frota muçulmana estava sob o comando do
almirante Ali Paxá, com aproximadamente duzentas e trinta galés e setenta
galeotas da Barbária, transportando noventa mil homens, milhares de
arcabuzeiros e seis mil janízaros do sultão. Os dois exércitos empenhavam-se
em reunir recursos para a guerra territorial e comercial em nome da jactância
dos seus governantes. Ambos disputaram a preferência da divina providência
em uma retórica de guerra santa [NOLAN, 2006].

O impacto dos combates marítimos como a Batalha de Lepanto (1571) e a


Conquista de Túnis (1574) ocorreu, em geral, no âmbito publicitário do que no
ramo das forças armadas, convertendo o Mar Mediterrâneo num espaço
desprovido de poder: um mar diminuto, problemático diplomaticamente,
comercialmente e militarmente, pois estava entregue às atividades piráticas. As
batalhas imperiais reduziram-se em escaramuças contínuas entre esquadras
piratas e frotas imperiais que se deslocavam em direção às águas atlânticas e
ao Mar Vermelho. Logo, os atritos entre os governos concretizaram a atividade
corsária, politizando e agravando o retorno do ancestral estratagema
mediterrânico da piratagem [ALBERTO, 2010]. O fenômeno da pirataria
Moderna não foi exclusivo de algum Estado europeu. O historiador Fernand
Braudel observou o antagonismo entre o cristianismo e o islamismo como um
modelo secundário de batalha. Porém, as motivações religiosas eram
encobertas, pois as justificações para a pirataria eram em parte econômicas.
Logo, no Mediterrâneo, a pirataria não era exclusivamente uma prática
islâmica, pois alguns notórios piratas provinham da Ordem Soberana e Militar
Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta [FUCHS, 2000].
Braudel ponderou sobre o corso estar pouco ligado com o sentimento pátrio ou
crença, exprimindo um meio de sobrevivência. Nessas circunstâncias, o
enfraquecimento da monarquia originava em corsários ultrapassando a
fronteira entre a predação regulamentada e a infração à lei [ANDERSON,
2001].

O cronista cordobês, Ambrosio de Morales (1513-1591), publicou um acrítico


compêndio sobre os antepassados romanos espanhóis em 1575, rejeitando a
história do Al-Andalus, focando-se apenas na Reconquista e na sua versão
sobre Lepanto, enfatizando o triunfo da Liga Santa sobre o islã [KAGAN;
PARKER, 2002]. No entanto a sociedade islamita, julgada como pouco
interessada no mundo não islâmico, interessou-se pelo poderio expansionista
ibérico. Por volta de 1580, o sultão Murad III, revelou seus desejos nos
territórios do atlântico: “esperemos que algum dia essas valiosas terras sejam
conquistadas pelo Islã, habitadas por muçulmanos e se tornem parte das terras
otomanas” [ELLIOTT, 2000, p. 88]. Em meados do século XVI, a aposta nos

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subterfúgios ultramarinos despontava em rendimentos lucrativos, mesmo que
despendesse quantias nos embates contra o Islã. Por isso, o poder do Império
Otomano acabou afetado quando mediu forças com uma empresa espanhola
fortalecida por recentes triunfos sobre os povos indianos e ameríndios com
numerosas minas de prata fluindo sob sua posse [ELLIOTT, 2000]. O júbilo da
cristandade sobre o islã em Lepanto ocorreu acompanhado do nascimento do
descendente do monarca de Habsburgo, em 1571 [KAGAN; PARKER, 2002]. O
poeta afro-espanhol, Juan Latino (1517-1594), publicou o poema: De natali
serenissimi (1572) exaltando o desempenho espanhol em Lepanto,
enaltecendo a governança do rei em seus territórios e o nascimento do príncipe
Fernando. Assim, a vitória em Lepanto precederia uma campanha para
recuperar o santo sepulcro e Constantinopla do controle otomano: “como líder
nato se alza contra sus enemigos, el hermano acometerá grandes batallas por
ti. Y vuestro Fernando, nuestra esperanza y gloria de siglos, aprenderá a
gobernar y a amar al propio Marte” [WRIGHT, 2019, p. 4].

Contudo, a capacidade do soberano espanhol em guerrear dependia de seu


crédito com os financistas europeus. Os seus recursos oriundos dos tributos
eclesiásticos, dos impostos castelhanos e das minas de prata da América
tornavam-se parcos em comparação aos compromissos e dívidas acumuladas
com os banqueiros de Gênova. Decerto estes, e não a casa de Habsburgo,
governavam os destinos da Europa [SUGDEN, 2006]. De acordo com Ruggiero
Romano as transações monetárias das empresas europeias eram regidas pela
influência italiana, pois impunham as suas técnicas comerciais e práticas
bancárias [ROMANO, 2015].

Examinemos a atividade corsária: podemos categorizá-la como comércio de


guerra ou comércio de crise, possibilitando-nos insinuar uma conexão entre o
crescimento do corso e os períodos de um retrocesso econômico de um
governo. Pesquisadores do período final medievo não encontraram uma
resposta sobre as ligações entre o corso e a economia. Porém, essas
dependências podem estabelecer vínculos entre o corso e a recessão
econômica quando analisamos a Batalha de Lepanto como um fenômeno de
uma economia em crise, dialogando com a concepção braudeliana acerca de
um comércio parasitário. No entanto, o historiador Michel Fontenay qualificou o
ato corsário como um recurso final, contextualmente estabelecido na
decadência das rotas comerciais mediterrânicas e acendimento ultramarino
atlântico [NADAL, 2001]. Ao longo do século XVII a Europa julgou os Estados
da Barbária como sociedades piratas fundadas nas periferias do Império
Otomano. O político inglês, Charles Davenant (1656-1714), difamou as
colônias inglesas, comparando-as à Argel, alcunha para designar as
sociedades piratas [HANNA, 2015]. Fernand Braudel examinou as
consequências pós-guerra em Lepanto que enfraqueceram a efetividade naval
otomana no Mediterrâneo, proporcionando a independência dos Estados
barbarescos em relação à Constantinopla, a progressão da pirataria nas
fronteiras e a adesão popular nas fileiras do banditismo:

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“[...] em toda a extensão do Império Otomano, minúsculos Estados
móveis de bandoleiros – e esta é a sua força – são capazes,
silenciosamente, de passar dos Pirinéus catalães para Granada, ou
de Granada para a Catalunha, ou de vaguear como nómades pelos
Alpes, perto de Verona, até a Calábria, da Albânia ao mar Negro:
estes grupos insignificantes mortificam e provocam os Estados
constituídos e desgastam-nos. Parecem resistentes das actuais
guerras populares. O povo está invariavelmente do seu lado”
[BRAUDEL, 1984, p. 107].

Por fim, o vácuo de poder ocasionado pelo conflito lepantino jamais foi
reconquistado entre as frotas cristãs e otomanas com a mesma veemência,
assim as rotas marítimas estenderam-se para irromper o conflito de
fundamentação individual e mercenária: a guerra corsária [SENIOR, 1972].
Muitos europeus associaram-se aos muçulmanos e “tornaram-se turcos”,
visando o pagamento de dívidas e sobrevivência às rigorosas leis.
Considerados “de pouca serventia para a igreja cristã”, os indivíduos admitidos
desfrutavam “dos benefícios que isso poderia trazer num lugar como Argel, que
rapidamente ia se tornando tão rica, próspera e civilizada como qualquer
cidade na Europa” [BRADFORD, 2013, p. 107-108]. Desde modo, a tênue
autoridade do sultão entrou em conflito com o apoio aberto à pirataria nas
margens de sua soberania [HANNA, 2015], pois as ilhas mediterrânicas em
seus domínios tinham se tornado “vespeiros de piratas” [BRADFORD, 2013, p.
30].

Referências
Nelson Rocha Neto é graduado em História pela Universidade Tuiuti do Paraná
(UTP) e mestrando em História pela Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (UNILA). E-mail: [email protected]

ALBERTO, Edite Maria da Conceição Martins. Um negócio piedoso: o resgate


de cativos em Portugal na Época Moderna. Tese de doutoramento em História
Moderna. Braga: Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, 2010.

ANDERSON, John L. Piracy and World History: An Economic Perspective on


Maritime Predation. In: PENNELL, C. R. (org.). Bandits at Sea: A Pirates
Reader. New York: New York University, 2001. p. 82-106.

BRADFORD, Ernle Dusgate Selby. Barbarossa, o almirante do Sultão: pirata e


construtor de um Império. São Paulo: Grua, 2013.

BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico. v. 2. Lisboa:


Martins Fontes, 1984.

DIMMOCK, Matthew. New Turkes: Dramatizing islam and the Ottomans in Early
Modern England. London: University of Sussex, 2005.

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ELLIOTT, John Huxtable. Europe Divided, 1559-1598. Oxford: Blackwell
Publishing, 2000.

FUCHS, Barbara. Faithless Empires: Pirates, Renegadoes, and the English


Nation. ELH, V. 67, n. 1, 2000. p. 45-69.

HANNA, Mark G. Pirate Nests and the Rise of the British Empire, 1570–1740.
Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2015.

KAGAN, Richard L.; PARKER, Geoffrey (orgs.). Spain, Europe and the Atlantic
world. Essays in honour of John H. Elliott. Cambridge: Cambridge University
Press, 2002.

KAUFMANN, Miranda. Black Tudors: The Untold Story. London: Oneworld


Publications, 2018.

M’BOKOLO, Elikya. África negra: história e civilizações – Tomo I (até o século


XVIII). Salvador: EDUFBA, 2009.

NADAL, Gonçal López. Corsairing as a Commercial System: The Edges of


Legitimate Trade. In: PENNELL, C. R. Bandits at Sea: A Pirates Reader. New
York: New York University, 2001. p. 125-136.

NOLAN, Cathal J. The age of wars of religion, 1000–1650: an encyclopedia of


global warfare and civilization. Westport: Greenwood Press, 2006.

ROMANO, Ruggiero. Os mecanismos da conquista colonial: os conquistadores.


São Paulo: Perspectiva, 2015.

SENIOR, Clive Malcolm. An investigation of the activities and importance of


English pirates, 1603-40. A thesis presented for the degree of Doctor of
Philosophy at the University of Bristol, 1972.

SUGDEN, John. Sir Francis Drake. London: Pimlico, 2006.

WRIGHT, Elizabeth R. Juan Latino. Del advenimiento de una era de paz (De
natali serenissimi). Disponível em: https://openiberiaamerica.hcommons.org.
Acesso em: 1 dez. 2021.

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A FILOSOFIA ÁRABE MEDIEVAL E O LEGADO
LITERÁRIO DOS FALASIFA por Renata Ary

A filosofia árabe medieval: a falsafa


Durante a idade média, os árabes produziram uma bagagem cultural
imensurável, dentre elas a filosofia árabe, denominada por alguns, de filosofia
islâmica. O uso das expressões filosofia árabe ou filosofia islâmica está longe
de ser pacificado, porém, neste trabalho nos filiaremos à expressão filosofia
árabe tendo em vista que, independente da nacionalidade dos pensadores e
filósofos da época, o idioma árabe os unia, todas as obras foram escritas em
árabe não obstante a gênese do pensamento tenha sido o Alcorão – Livro
Sagrado dos muçulmanos.

Em árabe, a palavra falsafa significa filosofia. Em sentido estrito, é entendida


como a filosofia clássica medieval desenvolvida entre os árabes durante os
séculos VIII d.C./ II H. e XII d.C./ VII H., a partir da aceitação da filosofia grega
nas terras dominadas pelo Islã.

Etimologicamente a palavra filosofia tem origem do grego philosophía e cuja


junção dos morfemas philo e sophia [amizade, amor e sabedoria] se traduzem
em amor à sabedoria. A transliteração exata da palavra filosofia para o árabe
resultou na terminologia falsafa. No entanto, em árabe, a idéia que liga os
conceitos de amor e sabedora à palavra falsafa ocorrem apenas por analogia e
ao retorno aos termos gregos, pois em árabe as palavras amor e sabedoria não
possuem qualquer semelhança com os radicais gregos. [Attie Filho, 2002, p.
10]

A principal característica da falsafa é que ela é medieval: é a filosofia praticada


durante a idade média entre os séculos VIII e XII d.C. / II e IV H. O medievo foi
um tempo histórico rotulado com pré-conceitos e estereótipos negativos e
consequentemente a filosofia praticada durante este período também. A
dicotomia razão-fé propiciou um olhar estigmatizado em relação à filosofia
medieval além de uma visão deturpada sobre a falsafa, os árabes e os
muçulmanos.

Além de ser medieval ela apresenta outras características: I) foi inovadora


entre os povos árabes em um ambiente filosófico já consolidado no mundo: a
filosofia Grega e Romana praticada entre os Cristãos do oriente e ocidente; II)
foi escrita em árabe e aliou-se à uma nova religião, a islâmica.

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Geograficamente a falsafa teve sua gênese no oriente, porém desenvolveu-se
simultaneamente em uma pluralidade de territórios conquistados pelo Islã, do
oriente ao ocidente, ligados por uma unidade linguística e filosófica.

A contribuição da falsafa para filosofia é inegável, inúmeras obras foram


escritas pelos falasifa (filósofos árabes) e cujos títulos chegam a mais de 600.
Durante o Islã Clássico [séculos IX d.C. /III H. e XII d.C. / VII H.] seis filósofos
destacaram-se no ciclo de produção literária e colaboraram na sistematização
da filosofia medieval no oriente. São eles: Al-Kindi [o anfitrião]; Al-Farabi [o
inventor]; Ibn Sina [Avicena, o sistematizador]; Al-Ghazali [o batedor]; Ibn
Rushd [Averrois, o reformador] e Ibn Khaldun.

Os falasifa
Abu Yusuf Ya’qub ibn ishaq al-kind ou simplesmente Al-Kindi [796-873 d.C. –
185-260 H.] foi o primeiro estudioso a produzir textos em árabe seguindo a
tradição do pensamento filosófico grego, sendo portanto, o primeiro filósofo
árabe da falsafa. Foi um pensador importante na promoção e transmissão das
traduções dos textos filosóficos gregos para o árabe através do chamado
circulo de Al-Kind. Foi o primeiro filósofo genuinamente árabe, de
descendência, de nascimento, de idioma e que nele se expressou, daí o título
de filósofo dos árabes, além do “mérito de introduzir Aristóteles no ambiente
intelectual do Islãm pregando uma exegese filosófica do Alcorão” [Faylasuf al-
arab]. [Attie Filho, 2006, p. 100].

Assimilou e comentou as obras de Platão e de Aristóteles já traduzidas para o


árabe, permitindo que os muçulmanos recebessem o conhecimento da filosofia
grega. Foi através deste sábio, que as portas da filosofia se abriram para o
mundo árabe. [Iskandar, 2011, p. 17]. Deixou um legado importante, cerca de
241 obras, dentre as quais destacam-se temas sobre filosofia geral, música,
astrologia, geometria, astronomia, medicina e psicologia. Foi professor, teve
muitos alunos e um círculo que deu continuidade aos seus estudos. Suas obras
denotam a passagem da teologia à filosofia, cobrindo o espaço existente entre
a razão e o dogma. Dentre suas obras destacam-se: Rasa'il Al-kindi al-
falsafiyah; On first Philosophy; Fial-falsafat al-awla, The philosopher of the
Arabs, Al-Kindi's Metaphysics, Scientific weather forecasting in the middle ages
: the writings of Al-Kindi; Oeuvres Philosophiques Et Scientifiques D'Al-Kindi:
L'Optique Et LA Catoptrique, Medical Formulary of Aqrabadhin of Al-Kindi.

Al-Farabi [em algumas fontes conhecido como Muhammad ibn Muhammad ibn
Tarkhan ibn Uzlagh al-Farabi] conhecido no ocidente como Alpharabius, Al-
Farabi, Alfarabi, Farabi e Abunaser [872-850 d.C. – 259-339 H.] foi um polímata
da Ásia Central que promoveu um salto na falsafa e um dos maiores cientistas
e filósofos da Pérsia e do mundo islâmico. É um neo-platônico teocêntrico que
segue a doutrina mística religiosa e o monismo emanatista.

Para Al-Farabi o objetivo do homem é retornar à Deus e este retorno ocorrerá


pela virtude e pelo pensamento filosófico. Foi um verdadeiro muçulmano, cuja
vida foi basicamente moldada e influenciada pelos ensinamentos islâmicos

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contidos no Alcorão e nas Sunnas do Profeta. Através dos textos corânicos e
das Hadith, Al-Farabi formulou uma resposta intelectual ao pensamento grego.
Recebeu o título de al-Mu´aliim al-thani [o segundo professor - porque
Aristóteles foi o primeiro].

Na falsafa, Al-Farabi foi o principal responsável pelas teorias mais originais e


criativas entre os árabes. Escreveu aproximadamente 120 obras, dentre elas:
Kitab tashil as-Saadah; 'Ara' ahl al-Midnia al-Fadilah; Kitab 'Ihsa' al-Uloom;
Kitab as-Siysah al-Madinyah; Kitab al-Huruf; Al-tahsil; The Philosophy of Plato
and Aristotle; Fusul al-Madani: Aphorisms of the Statesman; Alfarabi: The
Political Writings: Selected Aphorisms And Other Texts..

Ibn Sina [980 – 1037 d.C.] conhecido no ocidente como Avicena, foi
considerado um dos zênites da humanidade, seu nome ultrapassou os limites
da própria falsafa. Foi um dos mais importantes pensadores da Era de Ouro
Islâmica e ícone da história do pensamento oriental, cuja filosofia medieval e
saber universal o colocou ao lado dos maiores nomes da história. Foi um
polímata muçulmano persa, além de poeta, médico, músico, matemático,
gramático e filósofo. Grande parte da família de Ibn Sina seguia vertente sunita
da religião islâmica. Sua filosofia ocupou lugar ímpar e seu pensamento atingiu
papel de destaque tanto na filosofia islâmica como na filosofia medieval do
Ocidente. Diversas teses avicenianas repercutiram pelo mundo desde o
medievo até a modernidade. Segundo Attie Filho [p.143] tal fato justifica-se por
três motivos: “o primeiro foi por Ibn Sina ter recolhido grande parte das ciências
e da filosofia de sua época; o segundo, por ter sistematizado e reelaborado
esse conjunto, resultando numa abordagem própria e renovadora; e o terceiro
diz respeito a sua presença marcante nos destinos da filosofia e das ciências
posteriores”.

Dentre os filósofos árabes, Avicena foi influenciado, particularmente, por Al-


Farabi. Por outro lado, sua filosofia influenciou o pensamento Escolástico
Cristão da Idade Média em figuras como Tomás de Aquino, São Boaventura,
Alexandre de Hales e João Duns Scotus. Em sua grandiosa obra Suma
Teológica [ou Suma de Teologia], Tomás de Aquino cita Ibn Sina mais de 250
vezes, ora para defende-lo ora para refuta-lo. [Iskandar, 2011, p. 81]. Cataloga
cerca de 276 obras, dentre elas: Kitab al-Nars [O livro da alma]; o tratado Hayy
Ibn Yanqzãn, Al-Sifa [a cura, sua maior obra], Al-Najat [A salvação], Dunes
Nama [livro das ciências], Al-Qanun fi al-Tih [Cânon da medicina].

A biografia de Al-Ghazali [1058 - 1111 d.C. / 450 - 505 H.] está inserida em
sua obra autobiográfica O salvador do erro [Al-Muqid min Al-dalal]. Nela Al-
Gazali dividiu a sua vida em quatro períodos: O primeiro, marcado por estudos
em sua cidade natal; o segundo, na sua vida como professor em Bagdá; o
terceiro, em suas viagens e o último, retratado pelo retorno à sua cidade natal.

Escreveu diversas obras, dentre elas Maqasid al-falasifa [As intenções dos
Filósofos] e Tahafut al-falasifas [A autodestruição dos filósofos], duas obras
críticas aos filósofos. Pretendeu com essas obras expor as idéias dos filósofos,

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em especial Ibn Sina e Al-Farabi com a intenção de manifestar seu desacordo.
Publicou ainda as obras; Ihya al-Ulum al-Islamia [O Rivival das ciências
religiosas]; The beginning of Guidance and his autobiography [O começo da
orientação e sua autobiografia]; Munkidh min al-Dalal [A Libertação do erro] e já
com idade mais avançada, escreveu sua autobiografia Al-Munqid min al-salal
[O salvador do Erro], na qual retrata a sua eterna busca pela verdade.

Algumas obras foram traduzidas para o latim durante a Idade Média, período
em que era conhecido como Algazel. Apesar de ter deixado muitos escritos, é
difícil encontrar suas obras no ocidente somando-se a dificuldade de
estabelecer a autenticidade dos escritos.

Ibn Rushd [Averrois] [1126 - 1198 d.C.] nasceu em Córdoba, durante o


califado Omíada em uma época de florescimento intelectual na Espanha. A
lista da produção literária de Averrois foi volumosa e é composta por 92 obras
que versam sobre filosofia, teologia, direito, astronomia, gramática e medicina.
Sua filosofia esteve mais ligada ao ocidente do que ao Oriente e influenciou
pensadores como Maimônides [pensador judaico] e os Cristãos Siger Brahant,
Alberto Magno e Tomás de Aquino.

Dentre suas principais obras encontramos: Fasl al-Maqal [Livro do discurso


decisivo e estabelecimento da conexão que há entre a lei religiosa e a filosofia];
Tahafut al-tahaf [A incoerência do incoerente]; Kitab fasl al-maqal [Sobre a
harmonia entre Religião e Filosofia]; Bidayat al-Mujtahid [Distinguido jurista]; Os
Comentários ao Corpus aristotelicum, Exposição da 'República' de Platão;
Comentários a Ptolomeo, Alexandre de Afrodísias, Nicolau de Damasco,
Galeno, al-Farabi, Avicena e Avempace; O tratado De Substantia Orbis; Três
importantes escritos teológicos: Fals AL Maqal, Kasf´al-Manahiy e Damima; O
Kitab al-kulliyyat al-Tibb [Livro das generalidades da medicina].

Para alguns autores e estudiosos da filosofia islâmica, a morte de Ibn Rushd


encerrou a falsafa e o período clássico, mas não a filosofia islâmica. Outros no
entanto, entendem que a falsafa encerrou-se com a morte do filosofo e
historiador Ibn Khaldun [1332 – 1406]. Nesta pesquisa seguiremos este último
entendimento.

Conhecido como Ibn Khaldun ou Ibn Jaldun [1332 – 1406], Wali ad-Din Abu
Zayd’ Abd ar-Rahman Ibn Muhammad Ibn Muhammad Ibn Abu Bakr
Muhammad Ibn al-Hasan Ibn Muhammad Ibn Jabir Ibn Muhammad Ibn Ibrahim
Ibn Muhammad Ibn’ Abd ar-Rahman Ibn Khadun al-Hadrami al-Ixbili, foi “um
africano genial, demente tan clara y tan pulidora de ideia como la de um griego”
[Ortega y Gasset, 1927, p. 679]. Nasceu em Túnis, à época Capital da Ifriqiya
[deriva do nome romano África e na Idade Média compreendia o leste Argelino
e a Tunísia – Hoje: atual Tunísia em 27 de maio de 1332 [732 H.] em uma
família originária de Hadranaut, Iêmen.

Foi um homem do século XIV, do final da idade média [de acordo com a
historiografia ocidental] e que viveu entre o mundo muçulmano dos marínidas

Novos Estudos em Próximo Oriente


59
no Marrocos [1269-1430], dos háfsidas na Tunísia [1228-1574], dos násridas
em Granada [até 1492], dos mamelucos no Egito [1250- 1517] e do Império
mongol de Tamerlão [1331-1405].

A partir da sua crítica metafísica e da idéia de decadência dos estados descrita


em sua obra magnânima muqaddimah, desenvolveu uma nova ciência
alicerçada na análise da história e das plurais intenções sociais dos povos e do
questionamento às fontes históricas tradicionais. Apresentou ao leitor a idéia de
uma sociedade como organismo natural, que nasce, desenvolve-se e morre.

A obra de Ibn Khaldun foi escrita originalmente em árabe e, diante da escassez


dos estudos sobre o mundo árabe em geral, a tradução para o português só
chegou ao Brasil em 1958, em três volumes e através do trabalho de José
Khoury e sua esposa Angelina Khoury. Posteriormente tivemos a tradução feita
pelo francês Vincent Monteil em 1968 e para o espanhol, por Juan Feres em
1977. [Araujo, 2007, p. 41]

Foi o último filósofo de perfil universal em língua árabe do período clássico.


Abriu novos horizontes na busca do saber e a continuidade da filosofia islâmica
pode ser verificada a partir de outros filósofos do período moderno.

Infelizmente muitas das contribuições literárias dos falasifa não chegaram até
nós, outras encontram-se em manuscritos arquivados em bibliotecas no oriente
editadas em árabe e sem tradução para o português. Os títulos considerados
mais importantes tiveram tradução para o latim durante a idade média, porém
pouquíssimos deles foram traduzidos para os idiomas modernos. [Attie Filho,
2006, p. 102] Em português, temos um número escasso de obras traduzidas,
fato que dificulta a divulgação e a cognição sobre a falsafa em nosso país, não
obstante o valor imensurável do legado destacado e engrandecedor que a
falsafa nos deixou. Nas palavras de Libera [p. 7] “sempre perdida, perseguida e
denunciada como a manifestação mais evidente das trevas do ‘obscurantismo’,
mil anos de pensamento, de reflexão, de inovações e de trabalho dormem no
silencioso interregno que separa a antiguidade e o renascimento.”

Referências
Renata Ary é doutoranda em educação, mestre em direitos difusos e coletivos
e pós graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo [PUC-SP].

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______. A filosofia que nasce escrita em Árabe. Revista entreLivros – para


entender o mundo árabe. São Paulo. Mar 2006. Disponível em:
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Editora Vozes. 2011.

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<https://muslimphilosophy.org/>.

LIBERA. Alain de. A filosofia medieval. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
1990.

ORTEGA Y GASSET, José. Obras completas. Tomo II. 1927.

Novos Estudos em Próximo Oriente


61
A PRÁTICA DA GUERRA MEDIEVAL: ENTRE AS
CAMPANHAS DE FERNANDO III [1217-1252] E AS
CONQUISTAS DE TEMÜR [1360-1405] por Lucas Vieira
dos Santos e Sofia Alves Cândido da Silva

Introdução: a guerra no Ocidente medieval


Ao tratar sobre Idade Média, os grandes veículos de mídia tendem a reproduzir
imagens de batalhas campais envolvendo dezenas de milhares de soldados
em confronto direto. Evitando a discussão sobre o modus operandi da
composição destes materiais midiáticos, nossa proposta visa atingir uma
discussão geral sobre os confrontos militares empreendidos no período em
questão, focalizando, em particular, os séculos XIII e XIV e comparando a
atividade guerreira sob o comando de Fernando III e Temür.

Afinal, não poderíamos propor uma discussão teórica que desse conta de mais
de mil anos de história válida enquanto noção universal. Contudo, debater as
campanhas militares e a prática da atividade militar em termos comparativos,
partindo das fontes e da historiografia, nos possibilita evidenciar semelhanças e
distanciamentos em contextos tão distintos.

Para fazê-lo, traçamos elementos gerais comparativos sobre a prática da


guerra no Oriente e no Ocidente durante os séculos finais do que se
convencionou chamar de Idade Média. De início, se recorremos aos textos
mais tradicionais sobre a temática, nos deparamos com o Medieval Warfare
[1999], organizado por Maurice Keen. O livro elaborado pela Oxford pretendia
dar conta de um processo de desenvolvimento da atividade guerreira
explorando aspectos como a complexificação das fortificações no contexto
europeu, a elaboração de táticas de cerco, etc.

Ainda assim, a fim de propor uma noção geral que desse conta de explicar a
atividade guerreira nesta conjuntura, podemos fazer uso do conceito de guerra
de posição definido por Francisco García Fitz [2001]. As batalhas em campo
aberto se tornavam cada vez mais escassas enquanto as campanhas militares
passaram a visar a tomada de castelos e vilas importantes. A partir da
conquista de fortificações deste tipo, os exércitos se reagrupavam,
organizavam seus recursos e partiam para novas investidas ofensivas.

Para isso, as tropas promoviam ações de cerco combinadas com movimentos


de desgaste. O objetivo imediato era o isolamento dos habitantes de
determinada cidade ou vila. Era necessário um contingente significativo de

Novos Estudos em Próximo Oriente


62
guerreiros para este bloqueio do adversário dentro das próprias defesas e,
aliado a este aprisionamento, ações de desgaste como cavalgadas, ataques a
mantimentos e privação de acesso a vias fluviais se demonstravam ótimas
combinações ofensivas.

Diversas fontes apresentam exércitos desgastados psicologicamente, mas,


sobretudo, exaustos diante de longos cercos sem acesso à água e comida. O
cerco liderado por exércitos cristãos em Sevilha em 1247 exemplifica este
movimento [Primera Crónica General de España, 1955, p. 765]. Com tantos
meses em privação de mantimentos, a derrota parecia até mesmo inevitável.

Os maquinários também se desenvolveram no contexto em questão. Como


assegura Richard Jones [1999, p. 174], máquinas de lançamento de longa
distância, como balistas, trabucos e manganelas eram empregados em alguns
casos. Evoluções do legado tecnológico-militar romano, as ferramentas
utilizavam tração ou contra-pesos e poderiam alcançar até 150 metros de
distância, o que as tornava mais eficazes diante de muralhas sólidas.

Havia ainda a possibilidade de instalação de minas subterrâneas para fragilizar


as defesas de castelos ou a opção de invasões furtivas que, quando bem-
sucedidas, representavam uma significativa economia de tempo e recursos.
Quando ocorriam, os guerreiros costumavam agir durante a noite e com clima
chuvoso, potencializando o efeito surpresa e dificultando a visibilidade de
defensores em torres. Esta técnica aparece empregada na tentativa cristã de
domínio de Córdoba [Crónica Latina de los Reyes de Castilla, 1999, p. 97].

As campanhas militares tinham custos distintos; eram mais caras,


especialmente, quando o cerco se estendia por meses a fio. Para viabilizar as
operações, monarcas firmavam acordos até mesmo com inimigos estratégicos
e buscavam apoio diante da nobreza aliada para garantir suporte bélico e
econômico. Neste contexto, documentos jurídico-militares cumpriam o papel de
regulamentar e facilitar a continuidade da vida pública enquanto os exércitos
marchavam para confronto [Palomeque Torres, 1944, p. 207].

Afinal, quando discutimos a dominação territorial no medievo, nos referimos a


projetos políticos sólidos que, além de expansionistas, procuravam estabelecer
alianças estratégicas para a efetividade das operações militares.

Se enfatizamos como exemplo o caso da Península Ibérica, notamos a


multiplicação das fortificações, sobretudo, a partir do século IX. Ali, tratamos
sobre uma sociedade moldada pela guerra e para ela [Palomeque Torres,
1944]. Marcados por conflitos acentuados desde o século VIII, os peninsulares
conviviam com elementos pensados a partir da atividade militar em todas as
áreas das suas vidas. Os reinos da região elaboraram as construções
adaptadas aos terrenos. Aonde havia morros, os monarcas e senhores
ordenavam que os castelos fossem erguidos sobre eles para facilitar a visão
externa em casos de ataque [Gutierrez Gonzalez, 1992].

Novos Estudos em Próximo Oriente


63
Os reinos cristãos ibéricos, até mesmo pela longa convivência — que, ainda
que tenha sido marcada por diversos embates, contou com momentos de
trégua — incorporaram diversos elementos trazidos pelos muçulmanos até
mesmo em suas construções militares. A utilização de cubos semicirculares
nos castelos foi uma prática notória [Gutierrez Gonzalez, 1992, p. 37].

Ao retomarmos reinados como o de Fernando III, podemos notabilizar uma


série de aspectos militares supracitados. O rei castelhano-leonês [1230–1252]
promoveu diversas investidas contra os reinos muçulmanos da Península
Ibérica e se tornou um dos maiores conquistadores da região.

Recortamos o reinado do monarca enquanto demonstrativo válido para a


compreensão da teoria da guerra e de projeto expansionista para domínio
territorial, sobretudo ao tratarmos do caso hispânico. Afinal, em seu reinado, os
avanços por etapa foram evidentes. Promovendo guerras de cerco e longos
bloqueios que contavam com ações de desgaste, como foi o caso de Jaén,
cujas plantações foram atacadas antes mesmo de um projeto efetivo de
conquista, ele avançou sobre todo o Vale do Guadalquivir.

Ademais, as alianças políticas internas, contando com senhores de relevância


e setores do episcopado castelhano em seu favor, foram capazes de patrocinar
as investidas que realizou até sua morte, que resultaram na anexação de
diversos reinos inimigos.

Utilizando os autores mencionados, ressaltamos que o domínio territorial e as


ações militares no contexto europeu durante a Idade Média clássica estiveram
marcados por uma teoria e prática da guerra específica, definida em termos de
avanços e conquistas graduais. Instrumentos como a noção de guerra de
posição nos possibilitam o entendimento de campanhas que raramente se
desenrolavam para batalhas campais, mas que estavam articuladas em torno
de fortificações que se tornavam cada vez mais eficazes [Verbruggen, 1997, p.
327].

Podemos assegurar que, grosso modo, as defesas medievais, especialmente


no caso ocidental, estiveram em vantagem sobre o desenvolvimento de
elementos ofensivos. A cavalaria, maior arma de combate do período, ainda
que eficaz para movimentação de tropas e relevante nos cercos e desgastes,
era anulada pela solidez defensiva na maioria dos casos onde não era
planejada enquanto elemento de conquista a ser combinado com outros fatores
decisivos, como o isolamento político dos sitiados.

Tendo em vista os elementos supracitados, este artigo possui o objetivo de


traçar paralelos entre o modelo de guerra utilizado no Ocidente medieval e as
táticas utilizadas no Oriente, em específico, as que eram empregadas por
Temür. Desse modo, na seção seguinte, apresentamos as campanhas
realizadas por Temür e a constituição de seu Império e, na sequência,
realizamos uma comparação entre as táticas militares presentes no exército
timúrida e as táticas de Fernando III.

Novos Estudos em Próximo Oriente


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Guerra no Oriente: o caso de Temür
As extensões territoriais que eram anteriormente governadas por canatos
mongóis encontram-se, no século XIV, fragmentadas e, por vezes, sob o
comando de líderes que não participavam da linhagem de descendentes de
Genghis Khan. Neste contexto, a partir da dissolução das lideranças mongóis,
especialmente nas regiões localizadas ao oeste dos domínios que
conformavam o Império Mongol, tribos turco-mongóis assumiram o poder
[Manz, 1989]. No cenário em questão podemos situar a ascensão de Temür e,
consequentemente, algumas de suas campanhas militares.

A segunda metade do século XIV é marcada, no Oriente, pelo início das


conquistas realizadas por Temür. Em um primeiro momento, o objetivo era a
liderança de sua tribo [Barlas]. Posteriormente, sua intenção era controlar o
canato de Chagatai e, por fim, expandir suas conquistas por todos os territórios
conhecidos [Manz, 1989]. Podemos observar que, conforme Temür obtinha
sucesso em suas pretensões, seus objetivos eram expandidos e, como
resultado, foi possível a constituição de um Império. “A este império foram
incorporadas, além da Transoxiana e da Corásmia, as regiões ao redor do Mar
Cáspio, Irã, Iraque, parte do sul do Cáucaso e o território do atual Afeganistão
e norte da Índia” [Ashrafyan, 1998, p. 323, tradução nossa].

Desse modo, a expansão territorial do Império Timúrida ocorreu de forma


gradual, sendo que em um primeiro estágio as conquistas estavam focalizadas
na região Transoxiana. A partir da década de 1380, começam as tentativas de
adquirir regiões mais distantes [Burgan, 2009]. Beatrice Forbes Manz [1989]
afirma que as campanhas militares destes dois períodos apresentam
distinções: as primeiras eram mais frequentes e relativamente curtas, com isso,
mesmo o exército estando frequentemente fora dos domínios, ele ainda estava
em seu território original; por sua vez, no segundo momento Temür lidera seus
homens para longe do território de origem e os mantém distantes por longos
períodos de tempo.

Decorrente da grande extensão temporal das expedições militares, três


empresas foram nomeadas de acordo com sua temporalidade, sendo elas:
“Campanha dos Três Anos” [1386, ano em que inicia-se a primeira grande
campanha de Temür em direção ao Irã e ao Cáucaso]; “Campanha dos Cinco
Anos” [Temür realiza novamente uma expedição ao Irã em 1392]; “Campanha
dos Sete Anos” [campanha mais longa empreendida por Temür, iniciada no
ano de 1399] [Manz, 1989; Burgan, 2009].

Seguindo as tradições militares dos líderes mongóis, o exército timúrida, de


caráter nômade, possuía sua principal força militar na cavalaria, a qual era
proveniente de populações tribais. Além disso, a infantaria era formada por um
contingente de povos sedentários, os quais eram responsáveis pelo manuseio
dos maquinários, utilizados, principalmente, em ataques às cidades [Ashrafyan,
1998].

Novos Estudos em Próximo Oriente


65
“As campanhas de Temür eram árduas e às vezes lutavam sob
circunstâncias muito destrutivas para o gado. Um grande número de
animais morria, especialmente durante as expedições que Temür
realizava contra seus vizinhos do norte. O exército de Temür era
nômade, acompanhavam-nos as esposas e os filhos dos soldados, o
que implicava na necessidade de grandes quantidades de comida.
Para prover-lhes, deveriam renovar os estoques pegando animais
dos nômades que eles encontravam ao longo do caminho” [Manz,
1989, p. 101-102, tradução nossa].

O armamento utilizado era composto por: arcos [grandes e pequenos];


espadas; shamshīr [modelo de espada com a lâmina curva]; lanças de
arremesso; escudo; e armaduras [Ashrafyan, 1998]. Por sua vez, para atacar
fortificações, os maquinários eram utilizados [catapultas e balistas] com a
intenção de abrir buracos, a partir dos quais cavavam-se túneis. Já para
ultrapassar as muralhas construídas ao redor de fortalezas, “[...] os guerreiros
utilizavam escadas e cordas específicas para momentos de cerco, os quais
eram lançados sobre as muralhas” [Ashrafyan, 1998, p. 331, tradução nossa].

A organização do contingente militar liderado por Temür baseava-se em


costumes mongóis. Nesse sentido, de acordo com Ashrafyan [1998], o exército
timúrida era organizado por meio de um sistema decimal. Isto é, dividia-se em
contingentes nomeados de acordo com a quantidade de membros, sendo eles:
tümens [dez mil]; mingliks [milhares]; yüzlüks [centenas]; onluks [dezenas].
Esta organização tradicional é descrita no relato de viagens redigido por
Giovanni da Pian del Carpini

“[...] Gengis Khan decretou que à frente de dez homens fosse posto
um, e chama-se ele, à nossa maneira, um decano; que à frente dez
decanos fosse posto um que se designa centenário; que à frente de
dez centenários fosse posto um que se chama milenário; que à
frente de dez milenários fosse posto um, e esse número é chamado
de ‘trevas’” [CARPINI, 1929, p. 35].

Além disso, o exército dividia-se em duas frentes, o centro, no qual


localizavam-se os líderes, e a vanguarda, auxiliada por postos avançados e
que, usualmente, era o primeiro a entrar em confronto com os inimigos. Acerca
do acampamento, Ashrafyan [1998] afirma que, em ocasiões em que era
necessário montá-lo nas proximidades dos inimigos, trincheiras eram
construídas, assim como torres móveis.

Após a realização de invasões bem-sucedidas, o exército era, de certa forma,


separado. Uma vez que, ao carregar os espólios e pessoas escravizadas, o
ritmo do contingente era prejudicado. Com isso, parte do exército ficava
responsável pelo transporte e a outra parte continuava os ataques, deixando os
primeiros “para trás” [Ashrafyan, 1998]. Ademais, Temür implementou algumas
novidades táticas na disposição do contingente militar e inspecionava

Novos Estudos em Próximo Oriente


66
regularmente os exércitos, de modo a reforçar a disciplina dos que eram
liderados por ele.

De acordo com Beatrice Forbes Manz [1989], a organização militar timúrida


aproveitou estruturas remanescentes dos líderes anteriores e as uniu com
contingentes nômades e sedentários. Com isso, Temür foi capaz de mobilizar
uma grande quantidade de recursos em pouco tempo. A autora declara que,
após realizar conquistas territoriais, Temür adicionava ao seu contingente
militar certos grupos que haviam sido subjugados, com isso: “[...] o exército de
Temür era descrito como uma grande aglomeração de diferentes pessoas –
nômades e sedentários, muçulmanos e cristãos, turcos, árabes e indianos [...]”
[Manz, 1989, p. 90, tradução nossa].

As guerras empreendidas ininterruptamente constituíam-se como fonte de


poder para o imperador turco-mongol. Tais empresas, além de objetivarem o
ganho de riquezas, eram promovidas para conquistar o controle de regiões
estratégicas para o comércio [Ashrafyan, 1998; Tibor, 2007].

Para conquistar e subjugar novos territórios, Temür utilizava de sua força militar
e, por vezes, estabelecia acordos com outros líderes, os quais auxiliavam-no
em novas conquistas. Estas alianças não eram duradouras, devido aos
próprios costumes dos povos turco-mongóis e mongóis, no qual os interesses
“pessoais” dos comandantes eram mais importantes do que criar laços
militares/políticos duradouros [Tibor, 2007].

Estabelecendo paralelos: a guerra ibérica e a guerra timúrida


Ao traçarmos comparações entre as campanhas militares ocidentais e
orientais, em específico, as ibéricas e as desempenhadas por Temür,
elencamos dois pontos comparativos. O primeiro trata-se do objetivo das
conquistas e o segundo, de que forma elas eram realizadas.

As empresas lideradas por Fernando III, rei castelhano-leonês, visavam a


“reconquista” de territórios que estavam sob comando mulçumano, mas que
anteriormente eram de domínio hispânico. Por sua vez, as campanhas
empreendidas por Temür tratavam-se de conquistas para a consolidação de
um novo Império [fundado nas bases do sucesso de Genghis Khan]. Dessa
forma, é possível evidenciarmos a existência de objetivos diferentes, quando
comparamos os dois líderes em questão.

A despeito do catalisador das conquistas serem distintos, o quê deveria ser


conquistado eram, em ambos os casos, territórios. Porém, enquanto Fernando
III organizava seus exércitos para lutarem contra muçulmanos, Temür liderava
suas tropas contra diferentes povos. Nesse sentido, no caso timúrida, o
controle era exercido de diversas maneiras, devido à própria multiplicidade de
povos e culturas. De acordo com Beatrice Forbes Manz [1989], no norte da
Índia, na Anatólia e na Síria, por exemplo, as invasões tinham o propósito de
coletar riquezas e destruir ou castigar os inimigos, não deixando uma
administração permanente após a vitória. Já em regiões como Irã, líderes

Novos Estudos em Próximo Oriente


67
próximos à Temür foram colocados como comandantes dos locais
conquistados.

Ademais, é relevante notar como o sucesso de campanhas militares


expansionistas estava atrelado a uma combinação de fatores internos aos
conquistadores, mas também à desorganização dos derrotados. Enquanto
percebemos a ausência dos canatos mongóis como contexto favorável ao
avanço na região, a desagregação da presença muçulmana em pequenos
reinos denominados taifas, a partir do século XI, também possibilitaram os
ataques de reis cristãos.

Tratando-se da forma utilizada para realizar as conquistas territoriais, conforme


supracitado, na Península Ibérica, nos deparamos com um contexto em que as
campanhas raramente culminavam em batalhas campais. Em contrapartida, no
cenário do Império Timúrida, os ataques em “assalto” eram comumente
aplicados, em consonância com a rapidez atrelada à cavalaria.

Análogos aos assaltos orientais, as cavalgadas funcionavam como elemento


de desgaste dos inimigos e para, extraordinariamente, os guerreiros reunirem
mantimentos necessários para a manutenção de cercos [Cardoso, 2015].

De modo convergente, ocidentais e orientais utilizavam-se dos cercos para a


conquista de cidades e fortificações, assim como possuíam a disponibilidade
de maquinários de guerra para ultrapassarem muralhas. Os cercos de
Córdoba, no caso de Fernando III, e de Damasco, no caso de Temür, são
exemplos de ocasiões em que os líderes utilizaram tal tática para vencer seus
oponentes.

Uma série de ferramentas nos permite aproximar as conjunturas tão distintas


evocadas. Ao propormos este estudo, defendemos que a teoria da guerra e a
difusão de elementos essenciais da sua prática podem ser apreendidas a partir
das fontes históricas e dos debates promovidos pela historiografia até então.

As variadas estratégias militares empregadas pelos combatentes medievais no


decorrer do período em questão demonstram a relevância da atividade bélica
para aqueles sujeitos e, sobretudo, reforçam como o planejamento de
campanhas militares era central para qualquer projeto político expansionista,
por mais que este devesse e, na maioria das vezes, contasse com alianças
relevantes para a aquisição e manutenção de territórios.

Referências
Lucas Vieira dos Santos é mestrando no Programa de Pós-Graduação em
História [PPH] da Universidade Estadual de Maringá [UEM] e membro do
Laboratório de Estudos Medievais [LEM].

Sofia Alves Cândido da Silva é mestranda no Programa de Pós-Graduação em


História [PPH] da Universidade Estadual de Maringá [UEM] e membro do
Laboratório de Estudos Medievais [LEM].

Novos Estudos em Próximo Oriente


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2009.

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VERBRUGGEN, J. F. The Art of Warfare in Western Europe During the Middle


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Novos Estudos em Próximo Oriente


69
Novos Estudos em Próximo Oriente
70
ENTRE EUROPEUS E TURCOMANOS: OS COSSACOS
UCRANIANOS por Talita Seniuk

Este trabalho apresenta de modo sintético como as irmandades cossacas


ucranianas, durante o Medievo e a Idade Moderna, defenderam a Europa das
agressões do Império Turco-Otomano. Estrutura-se em dois tópicos, Ucrânia:
da Pré-História ao Medievo e, Os cossacos, respectivamente. Figuram entre as
referências bibliográficas autores consolidados na temática da história da
Ucrânia como Sasse [2007], Skrypnyk [1966], Subtelny [2009] e Yekelchyk
[2007], além de Quataert [2008] para subsidiar a discussão sobre o Império
Otomano, entre outras obras que dialogam e complementam o assunto.

Ucrânia: da Pré-História ao Medievo


O estabelecimento de seres humanos onde atualmente é o território da Ucrânia
assemelha-se com a história de outros povos e nações. Registros
arqueológicos de aproximadamente 700 mil anos antes de Cristo, marcam a
presença dessa existência na região; durante o Alto Paleolítico – 40.000 a
15.000 a.C. – tribos primitivas de caçadores coletores habitavam o norte do
Mar Negro [YEKELCHYK, 2007]. E, por volta de 5.000 anos da mesma era,
devido ao aprendizado da prática da agricultura, sedentarizaram-se.

Em seguida, a civilização agrícola primitiva mais conhecida, é a Cultura


Tripiliana [Trypillian]. Datada entre 4.000 a 2.500 a.C., viviam em grandes
povoações e tinha como característica agrícola o uso do arado de madeira; já
possuíam também uma vida espiritual desenvolvida, segundo achados
arqueológicos de cerâmicas ornamentadas [YEKELCHYK, 2007]. Apesar da
importância desses registros históricos, existe uma cisão entre estudiosos – os
que defendem e os que não – dessa cultura como os ancestrais dos
ucranianos.

Posteriormente, foi o palco dos cimérios – 1.500 a 750 a.C. – vindos da Ásia
Central e que devido ao seu estilo de vida de montaria nômade, difundiram o
uso do cavalo e das ferramentas de ferro na região [YEKELCHYK, 2007]. Essa
presença equina em solo ucraniano marcaria durante séculos o modus
operandi do povo que por ali se desenvolveria. Logo, os citas substituíram os
cimérios e fundaram novas povoações.

Com o crescimento das civilizações, em especial na costa do Mar Negro,


surgiram postos comerciais gregos que comercializavam com os citas. E foram
eles que detiveram em 513 a.C., a invasão do rei persa Dario I. Depois,

Novos Estudos em Próximo Oriente


71
expandiram seus domínios para o Oeste, até serem detidos pelo rei Filipe II da
Macedônia em 339 a.C. Nesse ínterim, sármatas do Leste assimilaram os citas
e se apoderaram de seu império; entretanto, aqueles que viviam na região da
Crimeia resistiram até 200 d.C. [YEKELCHYK, 2007].

No milênio seguinte, godos, de origem tribal germânica investiram sobre os


sármatas. E novas invasões do Leste também ocorreram: eram os povos
turcos – hunos no século IV, búlgaros e ávaros no VI e cazares no VII
[YEKELCHYK, 2007]. Os cazares dominaram a região norte do Mar Negro e as
Montanhas do Cáucaso por aproximadamente dois séculos. Esta presença
proporcionou um ambiente seguro para o desenvolvimento dos povos eslavos
orientais, enquanto, ao mesmo tempo, o Império Bizantino se consolidava no
Mediterrâneo.

Para Yekelchyk [2007], a presença dos cazares nessa região permitiu que ela
servisse como uma “super estrada” comercial e cultural, entre Europa, Ásia e
Oriente Médio, influenciando, inclusive, a Grande Rota da Seda da China. E
outro elemento de destaque estava na fertilidade de seu solo, motivo de cobiça
por todos que habitavam além das suas fronteiras [BURKO, 1963]. Controlar
todas estas características trazia benesses e problemas.

Enquanto isso, nos limites atuais do centro-leste da Polônia e noroeste da


Ucrânia, exatamente nas Montanhas dos Cárpatos, acredita-se que viviam os
povos eslavos originais, nativos da Europa Oriental que seriam os verdadeiros
ancestrais dos ucranianos, bielo-russos e russos [YEKELCHYK, 2007]. Apesar
de não existir unanimidade entre os historiadores sobre isso, registros
arqueológicos do século V apontam eslavos na Ucrânia, e mostram que houve
uma intensificação de seus domínios até a área central no século VII.

À medida que os cazares expandiam seu poder sobre a região Eurasiana, os


eslavos se estabeleciam em maior intensidade no Vale do Dnipro, até serem
obrigados a pagar tributos àqueles. Valendo-se de crises internas dos cazares
e outras invasões externas, surge a presença massiva dos vikings na Ucrânia.
Nasciam os contornos étnicos atuais de ucranianos, russos e bielo-russos com
a implantação do Estado da Rus de Kyiv [BURKO, 1963].

O Estado Kyivano, liderado pelos vikinks, governou e unificou as tribos eslavas


através da diplomacia e da força. A dominação, nem sempre pacífica,
demonstrou seu poder ao repelir em 907 um ataque dos cazares, depois disso,
houve o estabelecimento do comércio com o Império Bizantino. Em 988 –
Volodymyr, o Grande – aceita o Cristianismo bizantino e o implanta em seu
império. A proximidade comercial favoreceu a adoção de uma nova religião à
Rus de Kyiv, antes predominantemente pagã [YEKELCHYK, 2007].

Principalmente sob o pretexto religioso – Volodymyr, o Grande – expandiu seus


domínios para o oeste da atual Ucrânia e leste da Lituânia e casou-se com a
irmã do imperador bizantino. Após a sua morte, algumas disputas internas
entre familiares e invasões estrangeiras marcaram o Estado Kyivano. Seu filho

Novos Estudos em Próximo Oriente


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– Yaroslav, o Sábio – reconquistou o poder ao se casar com a filha do rei
sueco; fruto desse casamento, em pouco tempo tinha como genros os
governantes da França, Noruega e Hungria [YEKELCHYK, 2007].

Embora a família tenha se tornado extremamente articulada e poderosa, fora


ela mesma que atrapalhou a expansão do poder kyivano sobre o restante da
Europa. Como as sucessões seguiam uma sequência diferente de outros
reinados [não utilizando a primogenitura], a Rus de Kyiv se fragmentou em
vários principados e feudos nas décadas seguintes [YEKELCHYK, 2007];
mesmo durante o reinado de Volodymyr II – 1113 a 1125 – que conseguiu certa
autoridade política e florescimento cultural num cenário de decadência
territorial.

Um fato histórico deste período que merece destaque e se consagra como a


primeira agressão russa contra os ucranianos é o ataque do príncipe Andrei
Bogoliubskii em 1169 contra a Rus Kyivana. A invasão contou com saques,
pilhagens e incêndios em Kyiv, acabando com sua hegemonia enquanto centro
político daquela região. Vale ressaltar que neste momento histórico, o príncipe
não estava motivado por questões étnicas ainda, mas buscando restaurar as
possessões de seu avô, Volodymyr II [YEKELCHYK, 2007].

Entre 1237 e 1240, os mongóis dominaram a Rus. Devido a vasta extensão de


seu império e autoridade sobre inúmeros povos, entre eles algumas tribos
turcas, ao chegarem até os eslavos orientais ficaram conhecidos como tártaros.
Os mongóis sob as ordens do neto de Ghengis Khan – Batu Khan – cobravam
impostos sobre a população, mas não interferiam muito no cotidiano das
cidades [YEKELCHYK, 2007].

Enquanto isso, emergem três novos principados que derivaram politicamente


de Kyiv: Galícia-Volínia [atual oeste da Ucrânia] em 1238, Vladimir Suzdal
[parte europeia da Rússia, que posteriormente se chamaria Moscóvia] e
Novgorod [norte russo]. Não muito tempo depois, como resultado da ingerência
e novas invasões da Horda Mongol, o reino da Galícia é anexado ao da Polônia
em 1378 e a Volínia ao da Lituânia [SEGRILLO, 2012]. É deste período que
aqueles que viviam próximos a Kyiv passaram a ser chamados de rutenos
[русини – rusyny – derivado de Rus] e os que viviam na atual Rússia, de
moscovitas [SUBTELNY, 2009].

Os cossacos
Se o território ucraniano estava dominado por diferentes grupos étnicos no final
da Idade Média, é preciso destacar que ao sul, surgia um novo inimigo: os
tártaros. Para Yekelchyk [2007] os tártaros eram originalmente o povo turco
que constituía o exército mongol no século XIII. Mas, os que viviam na Crimeia
no final do século XV após a ocupação da Rus haviam se separado do
enfraquecido Império Mongol.

Os tártaros da Crimeia tornaram-se vassalos do Império Otomano. Entre os


anos de 1300 e 1683, tal estado partiu de um pequeno feudo para encontrar

Novos Estudos em Próximo Oriente


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seu máximo esplendor. Nesse período, os otomanos dominavam da Península
Arábica e das cataratas do Rio Nilo ao sul e, da região de Baçorá, no Golfo
Pérsico até o Planalto Iraniano a oriente; a oeste quase até Gibraltar e claro, ao
norte, até as estepes ucranianas [QUATAERT, 2008], lar dos cossacos. Sua
presença compreendia também os mares Negro, Egeu, Cáspio, Vermelho e
Mediterrâneo.

A partir do ano 1480, eles partiam das suas terras e invadiam e devastavam os
territórios da atual Ucrânia. Além de alimentos, ferramentas e animais, outro
objetivo desses assaltos era a obtenção de escravos para serem vendidos no
Porto de Kaffa na Crimeia [SUBTELNY, 2009]. As consequências desses
ataques inviabilizavam a vida por décadas, como se percebe no trecho:

“Por exemplo, de 1450 a 1586, oitenta e seis ataques foram


registrados, e de 1600 a 1647, setenta. Embora as estimativas do
número de cativos capturados em um único ataque tenham atingido
até 30.000, a média foi mais próxima de 3.000. De qualquer forma,
as perdas para os ucranianos eram sérias. Só em Podília, cerca de
um terço de todas as aldeias foram devastadas ou abandonadas
entre 1578 e 1583” [SUBTELNY, 2009, p. 106, tradução nossa].

Não obstante os ucranianos serem assaltados pelos tártaros ao sul, sob o jugo
dos impérios polaco-lituano pelo norte e oeste, logo se depararam com
diversos problemas sociais que faziam a vida ficar praticamente insustentável.
Além das diferenças culturais com seus senhores, contrastava a questão
religiosa: os poloneses eram católicos, enquanto os ucranianos, ortodoxos.
Falta de terras, abuso de poder, preconceito e a servidão, logo passaram a
alimentar um sentimento contrário às autoridades.

E aqueles que haviam fugido dessas mesmas condições para o leste,


encontraram certa prosperidade. Apesar das invasões estrangeiras, existia
liberdade e trabalho. Para Subtelny [2009] ainda que esses ucranianos
tivessem que muitas vezes arar suas terras com a espada empunhada, foram
mais autossuficientes e ousados, desenvolvendo habilidades militares que seus
compatriotas de outras localidades não tinham. E, após duas gerações, seus
filhos nunca haviam ouvido falar em servidão, e isso fez com que alimentassem
a ideia de serem homens livres, sem dever obrigações a nenhum outro.

Como resultado desses contrastes, no sul das estepes ucranianas no século


XV, começaram a formar grupos de pescadores, caçadores e até de
saqueadores, entre eles, camponeses fugitivos da servidão que passaram a
ser chamados de cossacos [козаки – kozaquê] [YEKELCHYK, 2007]. A origem
da palavra remonta a palavra turca “kazak”, cujo significado é homem livre. Em
seus primórdios, mulheres também faziam parte, logo, isso foi proibido e
punível com a morte [OPANOVIC, 1966].

Geralmente utilizavam armas brancas e de fogo; como espadas, lanças,


mosquetes, balestras e foguetes incendiários; machados, foices, pás e cordas

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complementavam as ferramentas [OPANOVIC, 1966]. Tais instrumentos
demonstravam que o trabalho existia tanto em tempos de paz, quanto de
guerra. Outra característica marcante era a bravura. O historiador turco
Mustafa Naima escreveu sobre eles: “Reconhece-se abertamente que no
mundo inteiro não se pode encontrar um povo mais corajoso. Eles não
demonstram o menor medo de perder a vida, e ainda, muito menos da morte”
[OPANOVIC, 1966, p. 16, tradução nossa].

Admitindo a importância bélica dos cossacos, ainda no XV, o Papa Inocêncio


XI, escreveu para eles, articulando uma aliança em defesa da Europa Cristã,
contra as investidas turco-otomanas [BURKO, 1963]. Além de apoio moral e
religioso, 3 mil soldados cossacos deveriam receber subsídios financeiros e
lutar sob as insígnias pontifícias. E a época, a Igreja Católica declarou através
do Núncio Apostólico de Varsóvia: “os cossacos devem ser considerados como
a melhor infantaria que possa existir contra os Turcos” [BURKO, 1963, p. 28].

Paralelamente, o rei da Polônia e o imperador da Áustria planejavam fazer o


mesmo, entretanto, fazê-los lutar por suas bandeiras [BURKO, 1963]. No
século XVI, os nobres poloneses perceberam que poderiam usar essa força
militar autônoma conforme seus caprichos. Contratavam os cossacos para
defender as fronteiras de seu império contra as ofensivas dos tártaros. E,
muitas vezes, os cossacos se aventuravam nas estepes e no Mar Negro onde
saqueavam e resgatam cativos ucranianos. Não demorou para serem
reconhecidos como uma força militar que conquistou seu espaço através da
força.

Exemplos de sua bravura e eficiência foram registrados, muito antes dos


cossacos se organizarem de modo mais sistematizado. Construíram dezenas
de barcos esguios [chamados de чайки – tchaikê] que levavam até sessenta
homens e atacaram os fortes tártaros da Crimeia e otomanos da Turquia, ao
longo do Mar Negro já em 1538 [SUBTELNY, 2009]. Não demorou muito para
ficarem conhecidos tanto na Europa, quanto na Ásia.

Embora fossem considerados os homens livres das estepes ucranianas, havia


uma rígida hierarquia dentro da irmandade cossaca, sendo agrupados em
regimentos com quinhentos e até mil homens [OPANOVIC, 1966]. O poder era
exercido por uma assembleia geral que todos participavam das decisões; a
individualidade de cada guerreiro era enorme, mas subjugava-se a deliberação
do grupo. Em momentos de guerra, o hetman [гетьман], reconhecido como o
comandante militar da comunidade dispunha de poderes ilimitados como
ditador [BURKO, 1963].

Com a construção da fortaleza de Zaporizhia Sich, entre 1552 e 1554, no Rio


Dnipro pelas mãos de um herói, o soldado ortodoxo Dmytro Vyshnevetsky, que
conseguiu unir diversos desses grupos sob seu comando; o Estado Cossaco,
passou a ter uma distinção social diferenciada na Europa. Os reis poloneses,
percebendo o poder que estes homens tinham, concederam-lhes direitos e

Novos Estudos em Próximo Oriente


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liberdades que outros não possuíam e, claro, impuseram limites para o número
de cossacos que poderiam existir [YEKELCHYK, 2007].

Em 1594, o império dos Habsburgos da Áustria, enviou para o Zaporizhia Sich


um representante para negociar com os cossacos um ataque coordenado
contra os otomanos na atual região da Moldávia. Fruto dessa viagem, o
diplomata Eric Lassota Von Steblau, escreveu um livro intitulado “Habsburgos e
Cossacos Zaporizhianos” [1975] em que descreve pormenorizadamente essa
relação [SUBTELNY, 2009].

Difícil tolerá-los, pior sem eles, eram um mal necessário. Houve três grupos
cossacos distintos durante o século XVII: aqueles que eram contratados pelo
reino polonês, aproximadamente 3 mil homens; os da Zaporizhia; e aqueles
que viviam nas fronteiras, espalhados em diferentes locais com o mesmo estilo
de vida; estes dois últimos grupos totalizavam aproximadamente 50 mil
homens [SUBTELNY, 2009]. Houve disputas entre os que trabalhavam para os
poloneses, únicos que possuíam alguns direitos reconhecidos, e os demais,
que por vezes, viviam na extrema pobreza.

Apesar dos cossacos registrados desfrutarem de certos benefícios perante a


elite polonesa, e isso só devido a necessidade de sua força; os outros, que não
tinham nenhum vínculo estabelecido passaram a ser reconhecidos como
necessários a segurança europeia também. As constantes invasões dos
tártaros demonstravam que apenas 3 mil homens não conseguiam frear as
invasões. Não eram vistos como bandidos ou párias sociais, mas defensores
de um território e de um povo, principalmente depois da destruição otomana na
Hungria em 1529 e que quase capturou Viena [SUBTELNY, 2009].

Organizados, contratados pelos reinos europeus ou motivados por conta


própria, seja na busca por vingança ou fortuna investiam contra seus inimigos.
O próprio Império Otomano culpava os poloneses de não conseguirem
controlar os cossacos, causando mal-estar entre os reinos:

“As incursões cossacas contra os otomanos atingiram o ápice entre


1600 e 1620. Em 1606, os cossacos destruíram Varna, a fortaleza
otomana mais forte do Mar Negro; em 1608, Perekop caiu em suas
mãos; em 1609, eles saquearam Kilia, Ismail e Akkerman; em 1614,
até então a intocada Trabizonda na Ásia Menor foi atacada; e em
1615 eles desferiram um golpe mais audacioso quando, à vista do
sultão e uma guarnição de 30 mil homens, cerca de oitenta cossacos
num barco conseguiram entrar no Porto de Constantinopla, queimá-
lo e fugir. Em 1620, eles repetiram a mesma façanha. Enquanto isso,
em 1616, Kaffa, o empório comercial escravocrata da Crimeia, foi
tomada e milhares de escravos libertados” [SUBTELNY, 2009, p.
112, tradução nossa].

E não eram apenas exímios guerreiros nos mares. Expedições terrestres ágeis
e estratégicas também figuravam como uma marca da atuação cossaca. O

Novos Estudos em Próximo Oriente


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sultão otomano Osman II, enfurecido pela incapacidade de o governo polonês
controlar seus “soldados”, investiu contra, com aproximadamente 160 mil
homens, pelotão este que contava com vários tártaros da Crimeia. Tal fato
ficou conhecido como a Batalha de Cecora, que aniquilou o exército polonês
em 1620 [SUBTELNY, 2009].

Entretanto, em 1621, 35 mil poloneses lutavam na mesma guerra na região de


Khotin, território ucraniano. Se não fosse a chegada de 40 mil cossacos que
somaram forças, mais uma vez, a armada polonesa seria destruída
[SUBTELNY, 2009]. O entrave se estendeu por um mês e resultou na
negociação da paz, tendo os dois lados que ceder às vontades inimigas.
Montados em cavalos e empunhando espadas, enfrentavam sem medo
qualquer oponente.

Outras tantas incursões seguiram exitosas, mas em 1637 os cossacos


conquistam o Mar de Azov [Azak, para os otomanos] [QUATAERT, 2008] e
mais uma vez, reafirmaram seu poder bélico – terrestre e marítimo – perante
seus velhos inimigos, que dessa vez, perdem sob o comando do sultão Murad
IV.

Devido ao seu sucesso nas batalhas e entraves com outros grupos europeus,
os cossacos logo passaram a se enxergar como representantes do
Cristianismo ortodoxo, perante seus senhores católicos e seus inimigos
muçulmanos. Também se percebiam como defensores do seu povo no quesito
étnico, pois os ucranianos viviam sob o jugo da servidão e como se não
bastasse, das ofensivas tártaras/otomanas. Questões externas e internas
alimentavam a motivação dos cossacos [SUBTELNY, 2009].

Considerações
Se para Sasse [2007] a Ucrânia foi o palco onde se efetivou de diferentes
formas a articulação entre os impérios Habsburgo, Russo e Otomano enquanto
atores externos, desprende-se disso de que, certamente, no mesmo cenário
um dos principais protagonistas internos foram os cossacos. Não obstante em
sua história terem deslocado sua concepção de inimigo, reconhecendo como
tais ora poloneses, ora tártaros e turco-otomanos [BURKO, 1963], sua
presença foi essencial em diversas batalhas para deter invasões estrangeiras.

Em tempos de paz, mercenários; em tempos de beligerância, essenciais. Sua


estima, ou a falta dela, um dilema: relacionava-se conforme convinha para os
governantes, em especial, para os poloneses. Reconhecidos como os homens
da fronteira, assim a zelavam dos forasteiros enquanto seguiam suas vidas.
Para Opanovic [1966] foram os responsáveis por trazer de volta a vida nas
estepes ucranianas; a atuação dos cossacos, seja como homens da lei ou fora
dela, ultrapassa os limites impostos neste trabalho e não se limita apenas na
luta contra os tártaros ou o próprio Império Otomano. Eles participaram de
inúmeras outras batalhas, que até alcançaram a contemporaneidade.

Novos Estudos em Próximo Oriente


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Referências
Talita Seniuk é licenciada em História pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa, em Ciências Sociais pela Universidade Metodista de São Paulo e em
Filosofia pela Universidade Metropolitana de Santos; pós-graduada em
Metodologia do Ensino de História e Geografia pelo Centro Universitário de
Maringá e em Ensino de Sociologia pela Universidade Cândido Mendes.
Coautora do livro As Ucrânias do Brasil: 130 anos de cultura e tradição
ucraniana pela Editora Máquina de Escrever. Atualmente é pesquisadora
integrante do Grupo de Pesquisa CNPq em Mídias, Tecnologias e História
[MITECHIS] da Universidade Federal do Tocantins; Professora de História,
Sociologia e Filosofia da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso;
colunista do Jornal Ucraniano Pracia - Праця e colaboradora do Blog Exílio-
migração política |humanidades digitais.

BURKO, Valdomiro. A Imigração Ucraniana no Brasil. Curitiba: [s. n.], 1963.


[Livro]

LASSOTA VON STEBLAU, Erich. Habsburgs and Zaporizhian Cossacks: the


diary of Erich Lassota von Steblau 1594. [translated by Orest Subtelny].
Colorado: Ukrainian Academic Press, 1975. [Livro]

OPANOVIC, Olena. The Cossack Republic. In: SKRYPNYK, Mary. Folk heroes
of Ukraine. Toronto: The Ukrainian Canadian Press, 1966. [Livro]

QUATAERT, Donald. O Império Otomano: das origens ao século XX. Coimbra:


Edições 70, 2008. [Livro]

SASSE, Gwendolyn. The Crimea question: identity, transition, and conflict.


Cambridge: Harvard University Press, 2007. [Livro]

SEGRILLO, Angelo. Os Russos. São Paulo: Contexto, 2012. [Livro]

SUBTELNY, Orest. Ukraine: a history. Toronto: University of Toronto Press,


2009. [Livro]

YEKELCHYK, Serhy. Ukraine: Birth of a Modern Nation. New York: Oxford


University Press, 2007. [Livro]

Novos Estudos em Próximo Oriente


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RESILIÊNCIA: UMA BREVE HISTÓRIA SOBRE A LUTA
DAS MULHERES CURDAS por Tanya Mayara Kruger

Um giro historiográfico sobre o povo curdo


De acordo com McDowall (1996), o povo curdo está entre as etnias mais
antigas do Oriente Médio, sendo retratato como um povo nomâde e
mulçuamano onde encontra-se distribuída entre as fronteiras da Turquia, Irã,
Iraque, Síria e Geórgia, tendo sua história vinculada às dinâmicas geopolíticas
da região. Logo, o Curdistão não possui fronteiras limitadas e são considerados
“ a maior nação sem Estado do mundo”.

Além disso, os curdos possuem uma língua propria, apesar de não poderem
pratica-la em diversas partes do mundo (PESSUTO, 2017). Sobre sua
identidade, Kelen Pessuto (2017, p.82), afirma:

“A A construção da identidade de uma nação está vinculada à língua


deste povo, que se torna um instrumento de poder. A ideia de nação
curda está diretamente ligada à questão do idioma curdo. Os
governos soberanos, sabendo da importância do curdo como
mobilizador de identidades acabam por coibir seu uso. O processo
de assimilação perpetrado pelas “nações hospedeiras” (categoria
nativa) - Irã, Iraque, Síria e Turquia - começa já pela língua, pois ao
minar a cultura de um povo, enfraquece-se sua memória coletiva.”.

De acordo com Ribeiro (2021), os curdos têm conseguido ao longo de séculos


manter sua cultura, língua e tradições, principalmente pela forma com que se
organizam politicamente, sobretudo nas regiões de Cobane e Rojava: por
meio do confederalismo democrático , tendo como pilar uma sociedade
anticapitalista e sem a dominação de um Estado.

Sobre o Confederalismo Democrático entende-se como uma uma tentativa


política de renovar o debate sobre alternativas às instituições p tradicionais
nos marcos das democracias liberais, em que há uma organização sem a
presença do Estado, nem de um governo centralizador, se baseando para isso
num conjunto de assembleias e conselhos populares (Gerber e Brincat, 2018).

O Confederalismo Democrático é um sistema política que unifica o povo curdo


ao representar um projeto de autonomia política considerado como um dos
principais instrumentos para unificação do povo curdo, o Confederalismo
Democrático representa um ousado projeto de radicalização da autonomia

Novos Estudos em Próximo Oriente


79
política que envolve a formação de uma estrutura de base formada por
assembleias locais que, por sua vez, elegem delegados para os conselhos
municipais e assembleias regionais. Sobre o Confederalismo Democrática, de
acordo com Ribeiro (2021, p.10):

“A proposta, enquanto um modelo inovador de administração política


não estatal, possui cinco princípios: 1) o direito à autodeterminação
dos povos; 2) a consideração do Confederalismo Democrático como
um paradigma social e político não estatal, organizado no marco da
“nação democrática” (Öcalan, 2018); 3) a organização política de
base; 4) o caráter não independentista das instituições criadas sob
este sistema, ou seja, o abandono do projeto de formação de novas
unidades estatais, a partir da reivindicação da governança coletiva e
autônoma das comunidades; e 5) o antinacionalismo, promovendo a
integração democrática nas quatro partes do Curdistão sem
questionar as fronteiras estatais” (Öcalan, 2016a: 33-34 ss.)

Assim, o povo curdo vem lutando pela sua autonomia e radicalização política,
sendo que além de um sistema política diferenciado, a Confederação
Democrática, também possuem diversos grupos armados, que dentre eles está
o tema matriz deste artigo: uma organização armada, politicamente coesa e
antipatriarcal formada exclusivamente por mulheres curdas.

A luta das mulheres curdas


A luta das mulheres curdas está nitidamente ligada ao Partido dos
Trabalhadoras Curdistão (PKK). Em termos históricos, os primeiros anos de
atuação do partido remontam a década de 1980, em que caracterizou-se pela
busca da unificação e independência do Curdistão por meio da luta armada.
Dentro da partido, aos poucos, as mulheres foram se inserindo e
posteriomente, ocupando às linhas de frente da guerrilha e se tornaram parte
do movimento de libertação nacional (RIBEIRO, 2021). De acordo com Ribeiro
(2021, p. 10):

“Decorreu dessa inclusão um questionamento inicial do sistema


patriarcal e das especificidades do lugar social ocupado pelas
mulheres no projeto de libertação nacional (Cansiz, 2017), crítica
que incentivou a produção de espaços exclusivos para a articulação
sociopolítica das mesmas, e da construção teórico-ideológica de
argumentos que questionam o caráter sexista do militarismo, a partir
dos anos 1990” (Al-Ali e Tas, 2018a; Bergikhani et al., 2018; Chaguri
e Paniz, 2019).

Outro aspecto de suma importância das mulheres dentro do movimento foi a


sua percepção do conceito de família, na qual as mulheres curdas
compreendiam que a família desempenha um papel fundamental na
manutenção das estruturas de dominação, opressão e exploração masculina.
Essa percepção é de grande valia, tendo em vista que o conceito de família é
um dos principais conceitos discutidos dentro do movimento feminista, seja ele

Novos Estudos em Próximo Oriente


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ocidental, oriental, de viés à direita ou à esquerda. Segundo Ribeiro (2021,
p.130) “sendo assim, a subversão das estruturas patriarcais esteve presente,
ainda que em menor medida, desde os primórdios das organizações de
mulheres na região.”

Contudo, vale ressaltar que as mulheres curdas não se intitulam feministas,


tendo em vista que a sua proposta é uma ideologia “decolonial”, na qual
buscam novas concepções, partindo do seu próprio contexto histórico- cultural.
Acerca dessa afirmação Ribeiro (2021, p.15) disserta: “a mobilização das
mulheres curdas não significa uma afiliação direta ao feminismo, pois no
movimento alguns setores ainda reivindicam uma forte crítica a um modelo de
feminismo liberal, capitaneado pelo pensamento ocidental hegemônico” (Akan,
1992). Nos dias de hoje poder-se-ia dizer que não há um posicionamento
homogêneo a respeito da filiação do movimento de mulheres curdas ao
feminismo, pois, no interior do movimento, segmentos se posicionam
criticamente a respeito do que consideram uma falta de radicalidade de um
feminismo hegemônico, composto por mulheres que em grande parte fazem
parte da elite social no mundo ocidental (Comité de Jineologî, 2017).

Mesmo assim, a jineolojî aposta nas epistemologias feministas que criticam as


ciências sociais e que “desmascaram o patriarcado” (Diyar, 2021), criando uma
proposta epistemológica ao mesmo tempo anticolonial, antissistêmica, coletiva
e transnacional.

De acordo com Ribeiro (2021), o movimento das mulheres irá se unificarar a


partir de 1987,onde na Alemanha Fruto, foi fundada a União das Mulheres
Patrióticas pelo Curdistão (YJWK, na sigla original). A criação dessa entidade,
estava voltada para reinvindicar a indepência dos povos curdos e além disso,
ela também trazia contestação dos papéis de gênero atém mesmo dentro das
proprias organizações armadas.

Diante disso, a partir dos anos de 1980, com a criação das primeiras guerrilhas,
as mulheres se engajavam cada vez mais na frente de combate. Vale resslatar,
segundo Ribeiro (2021, p. 21): “tal adesão teve como cenário a intensificação
dos conflitos na Turquia, a repressão política aos movimentos sociais e as
práticas discriminatórias que impactam a vida das mulheres.”

Assim, a inserção na luta armada não só eram um eixo pela autonimia dos
povos curdos, mas também acabou tornado-se um valiosso meio de
contestação feminina a cerca dos pepeis de gênero e da opressão sofrida
pelas mulheres (Ribeiro, 2021). Logo, é através das montanhas do Curdistão,
as mulheres se uniram às linhas de frente do PKK para fugir de casamentos
forçados, violência doméstica, opressão, humilhação e reclusão (Akan, 1992;
Al-Ali e Käser, 2020).

A partir da década de 1993, foram criadas as primeiras organizações


combatentes compostas exclusivamente por mulheres, como a União das
Mulheres Livres do Curdistão (YJAK, na sigla original), mais tarde chamada de

Novos Estudos em Próximo Oriente


81
YJA-Star. Dentre os diversos objetivos dos grupos, destacam-se a anti-
patriarcalismo (RIBEIRO, 2021).

Como vimos, outras organizações ja vinham sendo criadas desde a década de


1980, contudo, de acordo com Pessuto (2017, p.135) : mas a partir da criação
da YPJ, “criou-se uma estrutura feminina própria, com suas próprias
demandas”.

No ínicio dos ano 2000, foi fundada a União Estrela das Mulheres Livres
(Yekîtiya Star, no original), uma organização voltada a atuar no território de
Rojava. Vale ressaltar que, Rojava, fica localizada entre as regiões norte e
leste da Síria desde 2012, sendo uma região autônoma sendo instaurados
alguns princípios da base do povo curdo, como o Confederalismo Democrático,
a igualdade de gênero, a ecologia radical e a democracia direta (Silva, 2017;
Dirik, 2018; Schmidinger, 2018; Amorosi, 2019). De acordo com siglana
(RIBEIRO, 2021):

“Contando com mais de quatro milhões de habitantes, é o principal


símbolo da luta antipatriarcal das mulheres na região a partir da
intervenção do Congresso Estrela e a formulação de um conjunto de
diretrizes que buscam fortalecer a perspectiva das mulheres na
sociedade. Sua criação visou responder às reivindicações de um
efervescente movimento de mulheres que operava clandestinamente
na região havia alguns anos”.

O governo Sírio em contrapartida reagiu de forma repressivar com relação às


organizações curdas o que fez com que esses brigas agissem na
clandestinidade. Contudo, em 2011 a organização deixou a clandestinidade e
foi criando conselhos de mulheres na cidade s[iria de Damasco, Aleppo, Rakka,
dentre outros, tendo como objetivo a organização política, gestão de
autogoverno, e discussões acerca dos papeis de gênero e empoderamente
feminino.Nesse período, também foram criadas academias de estudos dirigidos
voltado para a jineolojî (RIBEIRO, 2021)

Tratando-se de do termo jineoloji, refere a uma ruptura com os grupos


hegemonivos para a elaboração de uma nova teoria baseada com a realidade
social do grupo em questão. Autoras como Bell hooks (2000) e Patricia Hill
Collins (1997, 2000, 2018), ja defendiam a importância da valorização
epistemológica (RIBEIRO, 2021). Acerca dessa temática, Ribeiro (2021, p. 26):

“Por meio do que podemos chamar de uma historiografia feminista


(herstory) a jineolojî objetiva identificar o papel atribuído às mulheres
nos diferentes períodos da humanidade propondo compreender suas
especificidades e oferecer oportunidades para a elaboração de
alternativas epistêmicas à dominação masculina e políticas
centradas no modo de vida das mulheres (Comité de Jineologî,
2017). Em vista disso, a ação das mulheres e a elaboração de uma

Novos Estudos em Próximo Oriente


82
epistemologia crítica depende do estabelecimento de espaços
voltados para a sua organização e empoderamento”.

Assim, no ano de 2016 a União Estrela mudou de nome e passou a chamar-se


Congresso Estrela, tendo como objetivo uma transformação no só de
nomenclatura, mas também reconhecer e incoporar mulheres das mais
diversas tribos, etnias e religião. Além disso, o Congresso também passou a
organizar de forma horizontal assembleia e fundações estruturadas em
espaços de participação direta.

Dentre essas organizações política, de acordo com Ribeiro (2021), vale


destacar as “casas das mulheres”, que funcionam como um centro para acolher
mulheres vitimas de violencia de gênero nas mais diferentes cidades, sendo a
primeira dessas casas fundada no ano de 2011 em Qamisho. Sobre este
Congresso Ribeiro, (2021, p. 22) ressalta:

“Sua agenda de trabalho é dividida, administrada e executada por


meio de dez comitês: justiça, municipalidades e meio ambiente, arte
e cultura, relações políticas, autodefesa, economia participativa,
relações diplomáticas, educação, mídia, e relações sociais
(comunidade civil). Todos estes comitês trabalham sob a orientação
dos princípios da jineolojî e são administrados exclusivamente por
mulheres. O destaque entre os comitês vai para as associações e
cooperativas criadas para a emancipação econômica das mulheres.
O conceito de economia solidária é utilizado por essa organização
com o objetivo de promover o empoderamento econômico das
comunidades em um contexto de guerra e de embargo impetrado
pela Turquia e pelo Iraque, países fronteiriços a Rojava”.

Desse modo, há décadas as mulheres vêm lutando pela pela autonomia e


emancipação dos povos curdos, além de resistirem constantemente a
dominição/ opressão de uma sociedade moldado pelos paradigmas do
patriarcado. Assim, através da história da luta das mulheres curdas, é possivel
visualizar um caminho na qual é se é possível mudar a os papéis de gênero e o
começo de uma emancipação feminina (MIRANDA, 2013).

Considerações finais
A lutas das mulheres curdas é de suma importância para a compreensão do
movimento de emancipação das mulheres. De acordo com Brito (2020), as
revolucionárias do Curdistão relatam que enquanto o dito “feminismo
hegemônico” lutam pela democracia esquecendo muita das vezes que o
patriarcado está intrisicamente ligado ao capitalismo.

Além disso, os mais diversos movimentos feministas em toda a sua pluralidade,


tende a ter como precisa ideologica um feminismo eurocentrico, que muita das
vezes acaba não abrangindo a sua real realidade enquanto grupo (BRITO,
2020).

Novos Estudos em Próximo Oriente


83
Diante disso, o movimento das mulheres curdas ganha grande projeção pois,
além de ser uma movimento de guerrilha armada, composto exclusivamneto
por mulheres, esse grupo também leva em consideração a “guerra” contra a
cultura dominante ao reestabelcer papeis de gênero secularmente impostos
(BRITO, 2020).

Dessa forma, o presente artigo ao analisar brevemente a história das mulheres


curdas, teve como objetivo elucidar a grande contribuição desse movimento
para as mulheres de todo o mundo e a compreensão de que a revolução só
começa quando há de fato a libertação dos grupos secularmente dominados
pelo sistema patriarcal.

Referências
Tanya Mayara Kruger tem História Social das Relações Políticas (PPGHIS)
pela Universidade Federal do Espírito Santo (2020) e membro do Laboratório
de Estudos de Gênero, Poder e Violência (LEG-UFES).

AKAN, Sara (1992), “Women in Kurdistan: A History of Their Struggle since the
’70s”, in Kurdistan Solidarity Committee (org.), Kurdish Woman: The Struggle
for National Liberation and Women’s Rights. Interviews and Articles. London:
KSC-KIC Publications, 7-16.

AKKAYA,Ahmet H.; Jongerden, Joost (2012), “Reassembling the Political: The


PKK and the Project of Radical Democracy”, European Journal of Turkish
Studies, 14.

AKKAYA,Ahmet H.; Jongerden, Joost (2014), “Confederalism and Autonomy in


Turkey: The Kurdistan Worker’s Party and the Reinvention of
Democracy”, in Cengiz Gunez; Welat Zeydanhoglu (orgs.), The Kurdish
Question in Turkey. Oxon: Routledge, 186-204.

COLLINS, Patricia Hill (1997), “Comment on Hekman’s Truth and Method:


Feminist Standpoint Theory Revisited: Where’s the Power?”, Signs, 22, 375-
381.

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Consciousness, and the Politics of Empowerment. New York/London:
Routledge.

COLLINS, Patricia Hill (2018), “Se perdeu na tradução? Feminismo negro,


interseccionalidade e política emancipatória”, Parágrafo, 1, 6-17.

PESSUTO, Kelen. Made in Kurdistan: Etnoficção, infância e resistência no


cinema curdo de Bahman Ghobadi. 2017. 401 f. Tese (Doutorado em
Antropologia Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu manas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

Novos Estudos em Próximo Oriente


84
RIBEIRO, Maria Florencia G.; GUGLIANO, A. A. . Resistir é viver. Notas sobre
a luta política das mulheres curdas por uma sociedade antipatriarcal no século
xxiResisting Is Living. Notes on the Kurdish Women?s Political Struggle for an
Anti-Patriarchal Society in the 21st CenturyRésister c’est vivre. Notes sur la
lutte politique des femmes kurdes pour une société antipatriarcale au XXIe
siècle. REVISTA CRÍTICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS, p. 29-52, 2021.

Novos Estudos em Próximo Oriente


85
HISTÓRIA É PODER: CONFLITO ISRAELO-PALESTINO
REVOLUÇÃO OU TERRORISMO? Por Yasmin
Rodrigues Roque e Jeanne Silva

Este breve ensaio tem o objetivo de refletir sobre o papel do professor de


História ao levar análises históricas para as instituições educacionais básicas e
ao trabalhar o tema dos conflitos entre Israel e Palestina. Orientada à temática
dos conflitos orientais, em foco, na disputa territorial israelo-palestino,
descolonizando saberes e práticas realizadas até os dias atuais, buscando
proporcionar ao leitor uma visão desvinculada ao eurocentrismo e positivismo
histórico; no qual visa refletir através de fontes como: a declaração israelense e
artigos acadêmicos, a necessidade de mostrar novas perspectivas ao ensino
de história, construindo novos saberes críticos e históricos para a compreensão
dos conflitos atuais. Logo, será dialogado, as guerras entre Israel, país criado
por meio do sionismo, e o território Palestino, analisando a partir do império
Otomano, passando pela disputa de suas independências perante os países
colonizadores europeus, até os conflitos atuais. A fim de apresentar ao leitor
que, o conhecimento histórico é poder, e quem o obtém, detém privilégios e
estabelece uma narrativa de vencedor.

Introdução
Os desafios atuais para o professor(a) de História é a desvinculação do ensino
histórico ao modelo tradicional/positivista e eurocêntrico. A formação à
docência influência diretamente nesta desvinculação do saber hegemônico,
sendo a projeto político pedagógico dos cursos, responsáveis pela
(des)construção para o saber subalterno. Logo, é necessário a busca pela
troca de conhecimento e aprendizado a partir da perspectiva da História e
Cultura Asiática e Oriental, visando que o Brasil em sua formação enquanto
nação, tem influência direta das sociedades orientais, por meio da emigração
árabe (sírio-libanesa), japonesa, chinesa até os dias atuais.

A Guerra Fria foi um período histórico relevante para países da Ásia e África
oriental, os conflitos armados resultaram em (re)conquistas dos territórios
orientais colonizados por países europeus, Inglaterra-França-Holanda-Bélgica.
Contudo apesar de todas as guerras, revoluções, (re)conquistas sócio-
históricas e culturais, o ensino de História e Cultura Asiática é marginalizada
nos currículos escolares na educação básica brasileira, influenciando as aulas
de história e os direcionamentos do corpo docente.

Novos Estudos em Próximo Oriente


86
A revisão historiográfica é importante para compreensão de como se constituiu
o estereótipo em relação as sociedades orientais (extremo oriente, próximo
oriente); os conflitos de poder ocidental perante o território oriental, o
imperialismo no século XIX e XX; a construção do estado de Israel através da
aliança com os Estados Unidos; A Guerra do Vietnã e a hegemonia dos
Estados Unidos da América; e como a produção cultural, cientifica e tecnologia
ocidental constrói a imagem do sujeito histórico oriental.

A construção deste estereótipo é reconhecida no romance, A volta ao mundo


em 80 dias de Júlio Verne, publicado no século XIX, período no qual a
discussão e formação da teoria do Darwinismo Social estava em construção.
Cientistas, políticos, e homens influentes utilizaram o conceito de seleção
natural, de Darwin, para atribuir aos sujeitos históricos a seleção de grupo
sociais por meio de suas raças; passando a considerar-se superiores às
demais raças, presentes no território Africano – Asiático e Latino Americano.
Os discursos utilizaram a raça, como argumento de dominação e
superioridade. Independente de sua cultura, contribuições cientificas,
mitológicas e religiosas, os grupos que não se encaixassem na supremacia
branca eram considerados inferiores cientificamente, culturalmente,
socialmente aos homens de raça “branca”, no qual teriam o papel de salvador
das demais raças, sendo assim um discurso viável para o processo de
colonização e imperialismo. No livro é percebido através do narrador o discurso
de que os povos originários da Índia seriam selvagens e precisavam de sua
domesticação, sendo ela, feita através do imperialismo europeu:

“Mas a Índia inglesa propriamente dita conta com uma superfície de


apenas setecentos mil milhas quadradas e uma população de cem a
cento e dez milhões de habitantes. Basta dizer que uma parte
notável do território ainda escapa à autoridade da rainha, e, de fato
entre alguns rajás do interior, selvagens e terríveis, a independência
hindu ainda é absoluta” [VERNE, 1873, p.69].

A Índia dominada e administrada pela Grã-Bretanha durante os séculos XIX e


XX, se localizava na Nova Déli, sendo apoiada pelos árabes influentes. Neste
período a Índia possuía uma diversidade de religiões, que influenciaram
diretamente na separação dos territórios indianos, predominando os conflitos
entre o hinduísmo e o islamismo, que influenciou na divisão territorial
turbulenta, influenciada pelo imperialismo da Grã-Bretanha. O Paquistão,
predominante um país mulçumano, foi formado por meio destas disputas
territoriais e muitas foram as influências imperiais introduzindo a cultura
europeia nas cidades árabes. Logo, Para Verne, falar sobre a dualidade entre o
civilizado e o selvagem se faz necessário para a divulgação do Império
britânico na Ásia Oriental.

O território indiano, teve suas religiões, culturas e economia conservada, a


economia social é dividida por uma hierarquia, formada por castas, “[...] quatro
castas hindus, que são, da superior para a inferior: os brâmanes ou sacerdotes,
os xátrias ou governantes e guerreiros, os vaixás ou comerciantes e lavradores

Novos Estudos em Próximo Oriente


87
e os sudras ou artesões” [FISCHER, 1983, p.160]. Os rajás, citado por Júlio
Verne, faz parte da casta dos xátrias, sendo eles considerados os príncipes ou
monarcas da região no qual pertence. Verne, aponta os rajás do interior, como
selvagens, por não irem de acordo com o posicionamento do império britânico,
desrespeitando uma hierarquia importante na Índia.

Apesar do Darwinismo Social ter sido uma teoria e discurso superado pelas
ciências sociais e humanas, as relações ocidente-oriente foi construída com a
narrativa de superioridade, Edward W. Said debate o oriente como invenção do
ocidente, sendo necessária a segregação, inferioridade de culturas, para que
se tenha a potência no Ocidente. Sendo Israel (criação com influência
estadunidense e a ONU) e a Palestina, dois países que representam essa
dicotomia oriente-ocidente. O presente trabalho visa, através da declaração de
independência do Estado de Israel e de trabalhos acadêmicos, analisar como o
ocidente e os estudos históricos eurocêntricos, positivistas e tradicionais veem
os conflitos da israelo-palestino, fazendo uma crítica aos costumes e valores do
século XIX e a diluição das culturas e tradições para a atual globalização.

Criação do território Israelense


Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada em
decorrência das tragédias ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, devido
ao Holocausto, que pressionou a formação do território de Israel. O Estado de
Israel foi proposto pela Organização das Nações Unidas (ONU), formulando
sua declaração de independência; intervinda e baseada nos documentos de
declaração dos Estados Unidos da América. Israel proclamou sua
independência em maio de 1948, sendo reconhecido como Estado-Nação,
pelas Nações Unidas.

David Ben-Gurion assumiu o cargo provisório de Primeiro Ministro, nos


primeiros anos de formação do Estado-Nação de Israel, em seu discurso
durante a declaração de independência, chama atenção as seguintes partes:

“O Estado de Israel [...] promoverá o desenvolvimento do país para o


benefício de todos os seus habitantes; terá como base os preceitos
de liberdade, justiça e paz ensinados pelos profetas hebreus;
defenderá a total igualdade social e política de todos os cidadãos,
sem distinção de raça, credo ou sexo; garantirá liberdade total de
consciência, culto, educação e cultura; protegerá a santidade e a
inviolabilidade de santuários e Lugares Sagrados de todas as
religiões; e se manterá fiel aos princípios da Carta das Nações
Unidas”. [ISRAEL... 1948].

O discurso de David Ben-Gurion ocorreu junto a declaração da independência


de Israel para poucos ouvintes, pois o primeiro ministro tinha receios na
eclosão de guerra, o processo do período de independência foi turbulento e
cheio de conflitos armados. Em seu discurso, prometeu garantir liberdade
sobre todas as culturas e religiões presente no território israelense. Entretanto,
apesar do discurso comovente de superação nos pós Segunda Guerra

Novos Estudos em Próximo Oriente


88
Mundial; de 1948 aos dias atuais, os israelenses e palestinos se encontram em
permanentes conflitos e guerras; envolvendo países vizinhos, em suma maioria
árabes, comovente com a Palestina, gerando diversos embates no Próximo
Oriente. Como é o caso da fronteira entre Israel e o Líbano.

O território cedido pela Organização das Nações Unidades à Israel, pertencia a


Palestina, localidade conquistada durante o Império Otomano. O movimento
sionista – movimento social judaico – reivindicaram a reconquista do território
de Jerusalém, já que tradicionalmente Jerusalém além da terra prometida, foi a
capital política e religiosa dos judeus, com a narrativa de defesa à
autodeterminação dos povos judaicos e o reconhecimento de suas identidades,
como filhos de Deus:

“Muitos dos emigrantes [judaicos, após a Segunda Guerra Mundial]


optaram pelos Estados Unidos, mas a ideia de estabelecer a Terra
de Israel como centro da vida judaica ganhou impulso redobrado
entre muitos iluministas (maskilim) e judeus russos [Haskalá foi um
movimento do Iluminismo Judaico, marcando ampla participação
com a Europa e os Estados Unidos da América, a partir do século
XVIII]. Durante os pogroms (distúrbios e massacres nas aldeias do
leste europeu), uma rede de novas sociedades Chibat Sion
(Amantes de Sion) foram proliferando na denominada Área de
Estabelecimento (zona exclusiva restringida aos judeus),
mobilizando jovens dispostos a iniciar suas vidas na árida Palestina”.
[FAINGOLD, 2010]

Apesar da Independência de Israel ter ocorrido somente em 1948, Jovens


Judeus começaram a imigrar as terras palestinas já no século XIX, sendo o
iluminismo judaico a principal força para o movimento sionista. O movimento
sionista conseguiu ganhar apoio das grandes nações europeia apenas no
século XX, após a Segunda Guerra Mundial, devido ao Holocausto e a
imigração judaica, principalmente na Alemanha.

Em 1948, as terras cedidas às regiões de Israel possuíam um menor número


de território, desde então o objetivo da nação foi reconquistar e ocupar regiões
fronteiriças do Estado-Nação. A Guerra dos Seis Dias ou a Guerra árabe-
israelense de 1967, é o exemplo da tentativa e consolidação de novos
territórios à Israel, envolvendo um conflito armado entre Israel e os países
árabes (Síria, Egito, Jordânia e Iraque). Atualmente Israel, já possui mais de
70% da região onde um dia, fora a Palestina, restando apenas uma pequena
porcentagem localizada na Cisjordânia e a Faixa de Gaza.

“Estava iniciando, então, o conflito que dura até hoje, com cerca de
250 mil palestinos fugindo ou expulsos da Palestina. Quando o prazo
do mandato [Mandato Britânico da Palestina] expirou em 1948, Ben-
Gurion declarou independência de Israel [proclamando o
estabelecimento do Estado Judeu na Palestina, que chamaria
Israel], causando uma declaração de guerra por parte de uma junta

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89
de países árabes, composta por Líbano, Síria, Egito, Iraque e
Jordânia”. [SCHIOCCHET, 2011, p. 64]

Ken Stein, aponta que após oito horas da declaração lida por Ben-Gurion, a
Força Aérea do Egito lançou suas primeiras bombas nos arredores de Tel Aviv
[cidade na costa israelense do mar mediterrâneo], a guerra de independência
de Israel durou até o início de 1949.

Palestina Revolução ou Terrorismo?


A Alta comissão árabe, órgão político central da comunidade árabe, criada
1936-1937, teve um importante papel na luta palestina contra as políticas
judaicas, durante a nova demarcação presente na resolução nº 181 da ONU,
de 1947, que promulga a criação de um novo Estado-Judaico nos territórios
palestinos. A comunidade árabe que residia as terras da palestina, foram
contra a esta divisão de terras, e os conflitos geopolíticos passaram a ser
constante a partir de 1948. Os povos judaicos e os palestinos passaram a
defender os projetos nacionais amparados em narrativas e valores que tentam
justificar um domínio completo e exclusivista sobre o território da Palestina
[ROCHA, 2015].

Os movimentos judaicos e palestinos, se apoiam ao passado, defendendo o


território de acordo com historicidade antiga e os conflitos antigos; não
permitindo que reconheçam suas necessidades presentes, que é o caso do
Coronavírus. Israel é uma potência ocupante, e a Palestina um território
ocupado e explorado, e apesar do grande sucesso de vacinação em Israel,
muitos palestinos acabaram sendo excluídos e colocados como último plano no
governo de vacinação eficaz de Israel. Como diz a deputada do Estado "É
difícil assistir enquanto esse Estado de apartheid continua a negar (a vacina) a
seus vizinhos, as pessoas que respiram o mesmo ar que eles, que vivem nas
mesmas comunidades”. [RASHIDA, 2021].

Em sua declaração no dia da independência, Israel, promete tratar todos os


habitantes de seu território de maneira igual, respeitando costumes, tradições e
religiões de todos os povos presente nas novas terras [terras que seriam
conquistadas através das ocupações] israelenses, porém essa suposta
“igualdade” gerou uma das maiores diásporas contemporâneas no Oriente
Médio, em torno de 5 milhões desde a formação do Estado israelense. Com as
disputas e conflitos constantes, a Palestina perdeu por volta de 75% de seu
território, os países vizinhos além de oferecerem suporte à Palestina e abrigar
muitos dos imigrantes, aderiram as disputas e conflitos, entrando em guerras
permanentes com o estado de Israel em suas fronteiras, que é o caso do
Líbano. Israel conseguiu tomar grandes partes dos territórios palestinos,
através de assentamentos judaicos, que em suma maioria é formado por
grupos de judeus mais conservadores e radicais.

Com os seus estereótipos de árabes-mulçumanos selvagens e terroristas,


forjados no período de colonização e imperialismo europeu, a partir de 1800, e
com o recente atentado em 11 de setembro nas torres Gêmeas, por Osama Bin

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Laden. Aprofundou-se as raízes estereotipadas, a dominação ocidental perante
o oriente e a xenofobia. Em consequência da modernidade e a globalização,
houve uma diminuição de diálogos entre judeus e árabes, o que influenciou
diretamente nos conflitos israeleno-palestino.

É notório que os dois lados adotam a violência e o terrorismo para validar suas
conquistas, em que ambos acabam desrespeitando as culturas, religiões,
cultos, ideologias em prol da dominação sobre seus corpos. Porém é
importante ressaltar alguns pontos: 1) Israel tem influência geopolítica e
econômica direta com os países europeus e norte-americanos, sendo o
principal deles, Estados Unidos. 2) Os direitos humanos foram constituídos e
moldados por homens europeus e presentes em grandes potências, ou seja,
para os povos árabes esta cultura de respeitar o inimigo não se encaixa em
suas tradições, deixando claro, que este ponto não é uma justificativa para as
ações terroristas, mas sim uma análise de costumes do Oriente e Ocidente. 3)
Israel e Palestina, lutam pela a ocupação e permanência de seus territórios,
entretanto ocorre uma situação de desigualdade nas conquistas destas terras,
visando que Israel têm aporte da maior potência econômica na atualidade, os
Estados Unidos.

Conclusão
Após o atentado nas Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, Israel só
teve dois presidentes, o ex-presidente Shimon Peres e o atual presidente
Reuven Rivlin, ambos de partidos voltado a uma ideologia de extrema direita. O
Estado de Israel vive uma onda ultraconservadora, em que ambos os
presidentes foram votados com a campanha principal de segurança ao país,
devido ao atentado ocorrido nas Torres Gêmeas. Para Israel e o mundo
ocidental positivista e tradicional, os países árabes foram ligados aos
movimentos terroristas, o que fez com que a esquerda israelense, não tivesse
apoio o suficiente para chegar ao poder, gerando ainda mais uma dificuldade
no diálogo israelo-palestino, e o aumento dos conflitos em terras palestinas e
nas fronteiras com demais países árabes.

O estudo da História enquanto ciência, permite entender que ela possui poder
sob as revoluções contemporâneas. A História é capaz de recontar o passado
de acordo com suas fontes e sujeitos históricos, permitindo que novas
gerações possam analisa-las e estuda-las a fim de compreender o seu
presente. O poder da História é capaz de reconstituir culturas e de
descentralizar o pensamento eurocêntrico, positivista, tradicional e colonial pelo
mundo, permitindo que as demais filosofias, como as orientais, sejam
estudadas de acordo com suas histórias, memórias e patrimônios.

Por isso é importante entender os conflitos palestinos e israelenses em


diversas perspectivas e compreender que a história do dominante é sempre a
primeira versão, sendo necessário transitar por diversas versões com o intuito
de formular suas próprias analises. É preciso compreender questões
geográficas que influenciam diretamente na política de cada país, questões
sociais, e religiosas principalmente nos territórios onde a sua base de formação

Novos Estudos em Próximo Oriente


91
é em torno da religião. Se posicionar fielmente à um lado, evidência a
arrogância do historiador, é necessário se apoiar em suportes teórico e
metodológicos, para desvincular de estereótipos enraizados, como: “Os
islâmicos são naturalmente terroristas” [frase escutada ao longo da minha
formação enquanto historiadora], estes estereótipos só reforça a necessidade
de desconstruir, e utilizar da História enquanto ciência para gerar poder aos
povos marginalizados, desassociado a perspectiva de que os povos europeus,
ocidentais, norte-americanos e brancos, são os salvadores do mundo
selvagem.

Notas biográficas
Yasmin Rodrigues Roque: graduanda do curso de Licenciatura em História, na
Universidade Federal de Catalão (UFCAT).

Jeanne Silva: Drª em História Social, Professora da disciplina de História do


Mundo Contemporâneo e Estagio Supervisionado do Curso de História UFCAT.
Com atuação no Mestrado de História UFCAT. Formação em História e Direito.

Referências
FAINGOLD, Reuven. Memória e história do movimento sionista: Nechama
Puchachevski, escritora da odisseia sionista. WebMosaica: revista do instituto
cultural judaico marc chagall. v.2, n.1 (jan-jun) 2010.

FISCHER, Louis. Título do Original: Gandhi, his life and message for the world.
Tradução: Raul de Polillo. Nova York, EUA: Círculo do Livro, 1982. p.278.

HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Tradução Marcos Santarrita.
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ISRAEL. Primeiro Ministro. (1948 – 1953: David Ben-Gurion). Discurso


Declaração de Independência de Israel. Tel Aviv, 14 mai. 1948. Disponível em:
https://israeled.org/declaracao-de-independencia-de-israel-14-de-maio-de-
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ROCHA, Ivan Esperança. O conflito esraelo-palestino: entre passado e


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SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente Como Invenção do Ocidente. São


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SANTOS, Ana Carolina dos. Percepções sobre o Império Otomano, na obra de


Arnold J. Toynbee. Tese (Mestrado em História Social) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo.
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SCHIOCCHET, Leonardo. Extremo Oriente Médio, Admirável Mundo Novo: A


construção do Oriente Médio e a Primavera Árabe. Revista Tempo do Mundo.
v.3, n.2, p. 39-82, 2011.

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VACINAÇÃO em Israel: as acusações de ‘apartheid’ em plano de imunização
que exclui palestinos. BBC News. São Paulo, 26 jan. 2021. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55811778 Acesso em: 21 abr.
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VERNE, Júlio. A volta ao mundo em 80 dias. Tradução: Juliana Ramos


Gonçalves. Jandira, São Paulo: Principis, 2019. p.301.

Novos Estudos em Próximo Oriente


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Novos Estudos em Próximo Oriente
94
O presente volume, Novos Estudos em Próximo Oriente,
pretende dar conta de reunir ensaios e pesquisas que podem
nos ajudar a promover diálogos interculturais acerca das
regiões e culturas do Oriente Médio, bem como de suas
relações históricas.

Novos Estudos em Próximo Oriente


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