Volume 03

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Olhares e Reflexões sobre

DIREITOS HUMANOS E
JUSTIÇA SOCIAL
A juventude diante das estruturas materiais e
simbólicas da modernidade

1ª Edição Revisada

Jackson da Silva Leal


Carlos Alexandre Michaello Marques
Sheila Stolz
(Organizadores)

1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE - FURG

Reitora Organizadores:
CLEUZA MARIA SOBRAL DIAS JACKSON DA SILVA LEAL
CARLOS ALEXANDRE MICHAELLO MARQUES
Vice-Reitor
SHEILA STOLZ
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Pró-Reitora de Extensão e Cultura Editora da FURG
ANGÉLICA DA CONCEIÇÃO DIAS MIRANDA Coordenador Editora, Livraria e Gráfica
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Pró-Reitor de Planejamento e Administração
Chefe Divisão de Editoração
MOZART TAVARES MARTINS FILHO CLEUSA MARIA LUCAS DE OLIVEIRA
Pró-Reitor de Infraestrutura Campus Carreiros
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Integrante do PIDL
Pró-Reitora de Graduação
Editora associada à
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Pró-Reitor de Assuntos Estudantis
VILMAR ALVES PEREIRA @Sheila Stolz, 2013.
Coleção Olhares e Reflexões sobre Direitos Humanos e Justiça
Pró-Reitora de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas
Social, Volume 3.
MARIA ROZANA RODRIGUES DE ALMEIDA A juventude diante das estruturas materiais e simbólicas da
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação modernidade
EDNEI GILBERTO PRIMEL
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Diretora da Secretaria de Educação a Distância
Responsável: Rita de Lima Nóbrega
IVETE MARTINS PINTO Revisores: Rita de Lima Nóbrega, Gleice Meri Cunha Cupertino,
Diretor da Faculdade de Direito Micaeli Nunes Soares, Ingrid Cunha Ferreira, Eliane Azevedo e
CARLOS ANDRÉ HUNING BIRNFELD Luís Eugênio Vieira Oliveira

Vice-Diretor da Faculdade de Direito


Núcleo de Design e Diagramação
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Coordenadora do Curso de Especialização em Capa: Lidiane Fonseca Dutra, sobre a obra “Dancer Untitled #12””,
Educação em Direito Humanos de Mark Rothko (1954)
Diagramação: Bruna Heller e Carolyne Azevedo

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A juventude diante das
estruturas materiais e
simbólicas da
modernidade
Coleção Olhares e Reflexões sobre
Direitos Humanos e Justiça Social
Volume III

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Comitê Científico e Editorial
Membros Externos
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Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Universidad de Valparaíso (UV/Chile)
ALFREDO ALEJANDRO GUGLIANO JOSÉ RODRIGO RODRIGUEZ
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(UFRGS) Permanente do CEBRAP
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Universidad de Sevilla (Espanha) Universidad de Autónoma de Madrid
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Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) JULIO CESAR LLANAN NOGUEIRA
ANTÔNIO HILÁRIO AGUILERA URQUIZA Universidad Nacional de Rosario (UNR/Argentina)
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(UFMS) Educación para la Paz No violencia y los Derechos
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Sul (PUC-RS) Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
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Universidade do Vale do Rio dos Sinos Universidade do Oeste de Santa Catarina
(UNISINOS) (UNOESC)
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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Sul (PUC-RS) MIRIAM COUTINHO DE FARIA ALVES
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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do PAULO RICARDO OPUSZKA
Sul (PUC-RS) Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA)
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UNIBRASIL/Paraná Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
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Centro Universitário de Cascavel (UNIVEL) Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC)
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Universidade do Vale do Rio dos Sinos Instituto Interamericano de Derechos Humanos
(UNISINOS) (IIDH)
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Discente do Programa de Pós-Graduação em TAYSA SCHIOCCHET
Direito (PPGD/UFSC) Universidade do Vale do Rio dos Sinos
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Universidade Federal da Paraíba (UFPB) THADEU WEBER
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Universidad Andres Bello (Santiago-Chile) TIAGO MENNA FRANCKINI
HECTOR CURY SOARES Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Fundação Universidade Federal do Pampa VERA KARAM DE CHUEIRI
(UNIPAMPA) Universidade Federal do Paraná (UFPR)
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Universidad de Talca e Centro de Estudios Universidade Nove de Julho (UNINOVE)
Constitucionales de Chile
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Geschäftsführender Direktor des Instituts für FURG
Steuerrecht / Professor für Öffentliches Recht und CARLOS ANDRÉ HÜNING BIRNFELD
Steuerrecht CARLOS ALEXANDRE MICHAELLO MARQUES
CLARICE GONÇALVES PIRES MARQUES
Universität Münster (UM/Alemanha)
EDER DION DE PAULA COSTA
JOÃO PAULO ALLAIN TEIXEIRA FRANCISCO QUINTANILHA VERÁS NETO
Universidade Católica de Pernambuco JAIME JOHN
JOÃO RICARDO WANDERLEY JOSÉ RICARDO CAETANO COSTA
DORNELLES JÚLIA MATOS
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro LIANE HÜNING BIRNFELD
RAQUEL FABIANA LOPES SPAREMBERGER
(PUC-RJ) RENATO DURO DIAS
JOSÉ CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO SALAH HASSAN KHALED JUNIOR
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do SHEILA STOLZ
Sul (PUC-RS) SUSANA MARIA VELEDA DA SILVA

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Sumário
Prefácio ................................................................................................................................. 7
Apresentação ........................................................................................................................ 11
 Juventude e sistema penal – o controle dos indesejáveis ....................................................
Jackson da Silva Leal & Raquel Fabiana Lopes Sparemberger .......................................... 15
 Educação em Direitos Humanos na infância e juventude: perspectivas para construção da
cidadania em uma cultura de paz ......................................................................................
Clarice Gonçalves Pires Marques & Carlos Alexandre Michaello Marques ......................... 75
 Quando inventamos novas ervas daninhas para expurgar do jardim: ou, da redução da
maioridade penal sob um prisma sociológico (e político) na modernidade líquida .............
Luiz Antônio Bogo Chies ............................................................................................. 103
 Apontamentos para a reconstrução da utopia anticarcerária .............................................
Marcelo Mayora Alves & Mariana Garcia .................................................................... 141
 Violência, adolescência e controle social: as (novas) estratégias de contenção da juventude
como “inimigo social” ......................................................................................................
Homero Bezerra Ribeiro .............................................................................................. 165
 Dinâmicas do desenvolvimento da juventude das periferias urbanas em Salvador, Bahia:
encontros, pertença, expressões e projetos de vida no âmbito de políticas públicas e
projetos sociais ................................................................................................................
José Eduardo Ferreira Santos & Ana Cecília de Sousa Bastos ......................................... 199
 A exposição de crianças e adolescentes aos discursos de ódio na internet: alternativas de
enfrentamento dessa forma de violência ...........................................................................
Rosane Leal da Silva ................................................................................................... 229
 Crianças e adolescentes na era dos direitos: entre o desenvolvimento econômico e a
inexistência da efetiva distribuição de renda e justiça social (um estudo de caso: a cidade
do Rio Grande) ................................................................................................................
Sheila Stolz ............................................................................................................... 261
 Menores y violencia de género: notas desde la criminología .............................................
Bárbara Sordi Stock ................................................................................................... 311
Sobre os autores ............................................................................................................... 339

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Prefácio
A leitura do contexto da subjetividade social e do imaginário da
exclusão social que perpassam as estruturas sociais de controle e domínio
ideológicos das sociedades capitalistas periféricas e mesmo centrais é
pontuada nesta obra em dois eixos fundamentais das práticas epistemológicas
políticas insurgentes e emancipatórias. Estes buscam criar espaços de
emancipação e de emergência da alteridade com foco nos aspectos dialógicos
e comunitários, partes fundamentais do ideal democratizante da visão do
pluralismo jurídico.
Ademais, ela se reveste de um olhar interdisciplinar que busca o
enfoque da criminologia crítica para a análise da instância penal dirigida à
infância com seus aspectos do controle social formal e informal. Além disso,
tal visão também busca uma cultura de paz e implementação dos Direitos
Humanos normativamente postos na Constituição de 1988, os quais
requerem novos impulsos.
Envolve, ainda, discussões propagandeadas pelos setores mais
conservadores da sociedade brasileira, agora focadas na questão etária,
seguindo a tendência do Estado paternalista penal, de criação de estruturas de
vigilância e controle social, com a luta destes setores pela redução da
menoridade penal na legislação brasileira. A busca de saídas legislativas de
recrudescimento da esfera punitiva, de uma legislação do pânico que
retroalimenta a esfera dos medos sociais na modernidade líquida, faz parte
desta abordagem de reforço dos controles criminais.
Com o fim da escravidão, os direitos das mulheres, dos indígenas, dos
trabalhadores, dos consumidores, das crianças, dos idosos, das minorias
sexuais, dosaposentados rurais, dos animais juntamente à proteção da
natureza sempre foram tidos como utópicos e irrealizáveis pelas ideologias
conservadoras dominantes, cristalizando a retórica da intransigência. A
utopia, por sua vez, é sempre vista como um sonho ingênuo de transformação
social, uma visão de idealistas que não entendem “a natureza humana” pela
lupa do controle social dominante, seja este teológico, burocrático ou
científico.
A cientificização e a naturalização biológica do crime voltam a
acompanhar a expansão da experiência neoconservadora do neoliberalismo,
não mais amparada no darwinismo social de Spencer e nas teorias
malthusianas e ricardianas – agora não são mais sustentadas na demografia e
na progressão aritmética e geométrica das populações e da produção de
alimentos – ou em teorias como a lei de ferro dos salários apregoada por
Ricardo para compelir os trabalhadores a trabalharem dentro do limite da
subsistência.
A agressividade e a periculosidade são legitimadas tautologicamente
frente ao espiral crescente de criminalização social da juventude, mas também
dos movimentos sociais. A aceitação do terrorismo de Estado, da tortura e
dos maus tratos passa necessariamente pelo tratamento histórico dado a
categoria social de controle chamada de inimigo, uma figura que pode ser
desumanizada, objetivada e exterminada sem remorsos, o infra-humano,
aquilo que não merece respeito, que deve ser extirpado para a saúde do corpo
social pelas práticas totalitárias do Estado de Exceção.
Em um momento de ampliação do discurso xenofóbico e do
neonazismo no mundo, principalmente em decorrência da crise social
ocasionada pela fratura social do Velho Continente, e nos EUA, também

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abalado por uma forte recessão econômica, trazem à ordem do dia a disputa
de emprego com estrangeiros e o recrudescimento dos discursos pregadores
da intolerância. Neste cenário, esta tematização é de suma importância, pois a
internet se torna um instrumento de disseminação da visão distorcida da
pregação do ódio e da violência.
Em contrariedade às múltiplas formas de violação dos direitos dos
grupos sociais excluídos, está a busca de possibilidades emancipatórias que
podem advir do respeito dos Direitos Humanos da juventude, em detrimento
das múltiplas formas de exclusão constituídas ao longo da história mundial e
brasileira, o que exige uma redefinição de nossas concepções sociais e jurídicas
do trato da questão dos Direitos Humanos voltados para a juventude nas
estruturas materiais e simbólicas modernas.

Lagoa da Conceição – Ilha de Florianópolis, fevereiro de 2014.


Carlos Alexandre Michaello Marques
Francisco Quintanilha Verás Neto

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Apresentação
É motivo de grande alegria e motivação para os organizadores deste
trabalho poder apresentar essa obra realizada por várias mãos e demonstrando
que este esforço se apresenta disseminado pelas inúmeras regiões do Brasil e
também de áreas e enfoques analíticos. Isto demonstra a importância do tema
que se constitui em uma problemática fundamental a ser enfrentada em um
processo de redescoberta de um mundo melhor.
A temática da juventude se apresenta de forma instigante na medida
em que encerra uma infinidade de elementos de análise, os quais não podem
ser objeto de apenas uma disciplina, ou mesmo enfoque analítico. Nesse
contexto, este trabalho demonstra um pouco isso, tendo em vista que a
juventude como categoria analítica e, ainda antes, como grupo de indivíduos e
suas necessidades e sentimentos se inter-relacionam com a modernidade em
múltiplas e concomitantes dimensões.
Nesta linha, a multiplicidade de enfoques e de problemáticas também
denuncia uma questão que não pode ser esquecida, em realidade deve ser
pensada sempre na concomitância com os mais variados temas em que a
juventude é parte, em regra como partícipe ou objeto de intervenção, que é a
questão epistemológica, ou seja, a juventude se constitui em constante
repositório de sentidos da modernidade burguesa, sendo sempre um ente
passivo das pretensões humanitárias que têm que sofrer com ares de gratidão,
enquanto se submetem as mais variadas formas de violência.
O presente trabalho é composto primeiramente pelo texto Juventude e
Sistema Penal, de autoria de Jackson Leal e Raquel Sparemberger, aportando
uma análise de cunho mais criminológico, apresentando uma crítica ao
modelo de juridicidade monista tecnicista em face das complexidades que
apresentam o contingente juvenil em suas múltiplas dimensionalidades,
constituindo-se em mais um veículo de repressão e dominação.
A seguir, o texto A Educação em Direitos Humanos na Infância e
Juventude, de autoria de Clarice Gonçalves Pires Marques e Carlos
Alexandre Michaello Marques, aborda a temática da infância e juventude na
construção da cidadania através da escola e da Educação em Direitos
Humanos para uma cultura de paz. Além disso, demonstra a trajetória das
concepções de infância e juventude e sua caminhada da negligência total para
a proteção total.
O terceiro capítulo, Quando inventamos novas ervas daninhas para
expurgar do Jardim, de autoria de Luiz Antônio Bogo Chies, trata da
problemática da redução da maioridade penal, constituindo-se em uma
análise criminológica e sociológica do tema que se propõe a discutir em uma
perspectiva crítica.
O quarto texto, intitulado Apontamentos para a reconstrução da
utopia anticarcerária, de Marcelo Mayora e Mariana Garcia, traz a
importante reflexão de um projeto de descarcerização, o que tem especial
importância se analisado no contexto da juventude desviante, haja vista que o
discurso reeducativo se apresenta claramente como uma falácia relegitimante
do próprio sistema, sem qualquer preocupação com os jovens (os mesmos de
sempre no processo histórico) sobre os quais recai o peso da atuação estatal
punitiva.
No quinto capítulo, apresenta-se o trabalho Violência, Adolescência e
Controle Social, de autoria e Homero Ribeiro,o qual trata das novas e
contemporâneas dinâmicas em que se apresenta o discurso pretensamente
protetivo e que em realidade encerram a faceta punitiva e controladora do

12
Estado, discutindo questões novas e de importante reflexão, como a prática
das internações compulsórias para usuários de substâncias psicoativas (objeto
de criminalização).
O sexto capítulo, de autoria de José Eduardo Ferreira Santos e Ana
Cecília de Sousa Bastos, analisa a questão da juventude e do acesso à cidade,
tema de suma importância para a criminologia crítica e para a questão da
juventude, mormente as definidas como desviantes ou subalternizadas, e o
processo de guetização e isolamento a que se têm submetido certos grupos
(que se tem definidos por párias).
O capítulo sete, de autoria de Rosane Leal da Silva, trata da atual
questão da rede mundial de internet e a troca e subordinação da juventude ao
discurso de ódio, constituindo-se o estudo, o aprofundamento e a produção
de consciência sobre a troca de informação no mundo globalizado de
fundamental importância e, sobretudo, pautado por uma ideia de
rompimento com a banalidade da violência, de não reprodução da lógica
hegemônica.
O penúltimo capítulo, de autoria de Sheila Stolz, trata de delinear, em
breves linhas, o entorno socioeconômico do município de Rio Grande e, com
base nestes dados, finalmente, defender a necessidade de criação de redes
sociais de apoio que visem o desenvolvimento integral das crianças e dos
adolescentes, defendendo-se, igualmente, a importância do componente
democrático a orientar a formulação, implantação e fiscalização das políticas
públicas.
O nono e último capítulo, de autoria de Bárbara Sordi Stock, trata dos
Menores e a Violência de Gênero e convida o jurista a repensar sobre a
insuficiência de iniciativas preventivas fundamentadas em bases teóricas
sólidas especificamente direcionadas a menores como estratégia para a
diminuição da violência de gênero entre adultos.

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Assim, essa obra busca romper com o silêncio na seara da infância e
juventude, sobretudo na perspectiva de colocar a juventude como protagonista
dos processos de transformação em um processo de pôr o Estado e as agências
centrais de controle/dominação na condição de objeto de análise.
É o que esperam os organizadores desta obra, com a certeza da
concordância dos demais autores, a produção de microrrupturas e a
contribuição para a produção de saberes críticos, conscientes e
comprometidos com o processo de mudança social a partir do
reconhecimento da juventude como sujeitos ativos.

Os organizadores
Ilha de Florianópolis/SC
Rio Grande/RS
Porto Alegre/RS

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Juventude e sistema penal – o controle dos indesejáveis
Youth and criminal system – the control of unwanted
Juventud y sistema penal – el control de indeseables

Jackson da Silva Leal


Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

Introdução

Esta abordagem se centra na juventude como objeto de pesquisa e


objetiva analisar o sistema de justiça juvenil à luz de um referencial teórico
centrado em uma interface entre o pluralismo jurídico (justiça comunitária) e
a criminologia crítica – ambos partindo do viés crítico e reflexivo. Além disso,
é iniciada a partir de um breve resgate histórico da concepção de juventude,
bem como do tratamento a ela dispensado no decorrer da modernidade, para,
então, analisar a história contemporânea da infância em contato com a Justiça
Penal no Brasil e suas dinâmicas multiplicadoras de violência e
vulnerabilidades e reprodutoras das estruturas que perpetuavam a ambivalente
relação menor/criança.
Este trabalho é resultado parcial (eminentemente da revisão teórica) da
pesquisa de mestrado que se desenvolve na fronteira brasileira e gaúcha com o
Uruguai e a Argentina. Esta pesquisa faz parte de um estudo maior,
denominado Direitos Humanos nas Fronteiras Gaúchas e é coordenada pela
professora Dra. Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, com o fomento da
Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
No centro da presente discussão, encontram-se a análise da identidade
juvenil, o sistema de justiça criminal juvenil e a falta de diálogo entre estas
duas instâncias, o que torna tal sistema um veículo meramente repressor e
reprodutor de perversidades. Isto inviabiliza a real busca por solução de
conflitos; pelo contrário, reproduz a lógica de catalisação do processo de
degradação de indivíduos supérfluos para a modernidade ocidental
hegemônica.
Esta linha de estudos se propugna por um processo dialogal, não
necessariamente estatal, de resolução de conflitos, que visualiza a
possibilidade de trazer para o centro dessa discussão a identidade juvenil
transgressiva, a qual no fundo é uma voz silenciada que clama por
oportunidade de falar e, sobretudo, ser ouvida em questões que,
principalmente, a ela interessem. Em termos de aportes metodológicos,
salienta-se a adoção da imprescindível interdisciplinaridade e se trabalha a
partir de um posicionamento crítico-reflexivo e do marco teórico da
criminologia crítica, objetivando-se oportunizar a democracia radical de
espaços sociais de participação e de resolução de conflitos através do exercício
genuíno da cidadania e não no formato simplificado, como tem sido a tônica
do discurso ocidental capitalista, a fim de proporcionar soluções prontas.

1- Juventude: a criação de uma categoria de análise científica ou de um


repositório de significados?

Inicialmente, parte-se de uma abordagem histórica que permite


visualizar o contexto sociopolítico da categoria juventude e como esta serve ao
sistema no seio da qual foi criada, ou pelo menos deveria servir. Entretanto,
tal segmento pode, em alguns momentos, voltar-se contra o próprio criador
de acordo com a sua incapacidade de dar conta das promessas feitas ou

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efetivar a projeção de modernidade realizada sobre a própria criação da
juventude como um complexo social novo e promissor.
A fim de viabilizar esta análise, proceder-se-á a um resgate conceitual
da cambiante definição de infância e da recente história da juventude
contemporânea e dos reflexos desta, bem como de seus desdobramentos no
Brasil. Procede-se a esse resgate histórico da infância (ainda que este grupo
em específico não seja objeto deste trabalho), pois tal concepção, neste
momento, engloba a concepção de juventude, dado a inexistência de
categorias científicas e o reconhecimento teórico, sendo impossível separar
estes dois grupos. Esse histórico se faz importante para que se compreendam
algumas dinâmicas modernas, assim como para contextualização política,
social e cultural do grupo, da categoria, da produção de sentidos e dos seus
desdobramentos históricos e contemporâneos.
A título de nota, convém mencionar que esta escrita trata a infância
como uma construção social e, antes ainda, como grupo, e traz um breve
histórico desta categoria. Ademais, salienta-se que esta se atém ao
desenvolvimento da concepção de infância para a cultura ocidental e seus
desdobramentos, bem como a algumas influências político-ideológicas.
Refere-se, também, que aqui não é feita uma análise mais pormenorizada, por
não ser o foco do presente trabalho, mas, sim, um resgate ligeiro a título de
contextualização (ainda que incorrendo em castração dos períodos históricos).
Assim, começa-se pela Idade Média, entre os séculos XII e XVII
(quando da Revolução Francesa e do início da Idade Moderna), em que as
crianças, de acordo com a casta ocupada, eram submetidas a dois tipos de
tratamento: se filho de camponeses, seria mantido próximo aos pais,
realizando pequenas atividades, e, aos sete anos (como marco de mudança na
vida da criança), aprenderia e seguiria o ofício do pai; se fosse menina,
tomaria como aprendizado o papel definido à mulher. No caso dos filhos da

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nobreza, em geral, sequer ficavam próximos aos pais até os sete anos,
permanecendo sob a tutela (ainda que não fosse esta a denominação dada) das
amas de leite. Estas criavam as crianças, quando, então, aos sete anos, o
menino poderia passar por algum rito de passagem e ingressaria na vida
pública junto à figura do pai, assim como a menina também seguiria a sina da
mãe, podendo já inclusive ter seu casamento acertado por conveniências
políticas ou econômicas (HEYWOOD, 2004; ARIÈS, 1981).
Convém mencionar que neste período (ainda que extremamente
extenso e com diversas mudanças e nuances temporais e culturais), em regra,
não era dada grande atenção à infância, não existia uma concepção ou
preocupação em explicar ou entender o que seria a infância ou mesmo a
questão do afeto que, ao longo de toda ou grande parte da Idade Média, foi
inexistente, ou seja, a despreocupação com a infância em termos formais se
refletia a partir do desinteresse em termos culturais. Isto em uma perspectiva
pura de manutenção do status quo político, social e cultural. Segundo Ariès,
“a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil
crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É
mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo” (ARIÈS,
1981, p. 17).
Saliente-se que tal condição se dá em uma pseudo-Europa
autossuficiente em termos produtivos e que se propunha e preocupada
meramente com a manutenção interna – a qual diz respeito à proteção em
relação às invasões e guerras; e também com as pestes que dizimavam a
população. Assim, dois elementos característicos da Idade Média explicam ou
permitem entender a concepção (ou falta de concepção) em torno do
indivíduo que contemporaneamente se conhece como criança – sendo
pensado como um adulto em miniatura (ARIÈS, 1981): a inexistência da
figura do afeto, em grande medida pelo afastamento dos pais (ou vice-versa);

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e a consequente preocupação com a questão utilitária da infância, vendo estes
indivíduos meramente como mão de obra para a economia agrária e pastoril,
de produção interna, e também como força de defesa em caso de invasão
externa. Estes dois elementos permitiam, inclusive, o extermínio dos
indivíduos que não fossem sadios e servissem a essas funções e resume o trato
com a infância no período.
O alvorecer da Idade Moderna se inicia no século XVIII, mas as
mudanças não seguem marcos estanques, prolongam-se, e, assim, permeiam e
entrecruzam paradigmas de sociabilidade que se vão moldando com as
mudanças, os progressos e os regressos multidimensionais e interligados.
Nesta linha, a título de organização do raciocínio, já no século XVIII, as
concepções diante da infância haviam mudado substancialmente, sobretudo, a
ideia de aproximação entre as famílias e estes indivíduos. Fato que fazia as
famílias se ocuparem com educação de suas crianças, gerando a construção de
afeto e empatia entre estes indivíduos. Para Ariès (1981), este foi o principal
móvel da mudança cultural para com a infância.
Entretanto, para efeito deste trabalho, adota-se uma postura menos
otimista, visto que tais mudanças se deram, em grande medida, por conta de
necessidades político-sociais que foram sendo descobertas com o progresso
das ciências e, com ela, as pretensões políticas e sociais de um paradigma de
governabilidade que nascia; o paradigma ocidental burguês. Nesta linha, com
o desenvolvimento das sociedades a partir da ciência, sociedades que já não se
propunham somente a produção interna, mas sim a produção e troca externa
(primórdios da exportação) em um mercado ascendente como necessidades de
tecnologia (e por isso o investimento em educação formal e especializada) e
também de corpos saudáveis para a produção, que era cada vez maior.
Período marcado também pela constituição mais sólida e organizada de
organismos e estruturas de governo na figura do Estado Monárquico.

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Assim, diante da necessidade de corpos sadios e mentes dóceis, surge a
capacidade estatal de regulamentar tal questão através das dinâmicas de
adestramento e punição (HEYWOOD, 2004). Essas dinâmicas poderiam
ocorrer no plano físico material, como também no plano simbólico-psíquico,
tendo em vista o grande poder atribuído à Igreja (ainda que em processo de
descenso diante da ascensão do conhecimento científico e da laicização do
poder/saber). A esta coube a função de deificar a infância, aproximando-a de
figuras celestiais, como também de demonizar os indivíduos que não cabem
ou não servem ao sistema complexo de governabilidade que se estrutura
(ARIÈS, 1981).
Ademais, Ariès (1981) salienta que existiam imensas diferenças de
trato entre as infâncias por conta de questões de classe e gênero, definindo os
objetivos a cada um destes indivíduos a partir destes critérios e determinando
papéis sociais que se refletiam em primeiro lugar na educação (seu acesso ou
não, no caso de menino ou menina), e também no acesso superior ou
subalterno (dependendo da classe). Essas questões seriam definidoras dos
papéis das diversas infâncias que surgem a partir destas divisões e do
consequente trato social.
A partir desse resgate, percebe-se que a concepção de infância não
parte de questões puramente biológicas, sequer naturalmente constituídas ou
ontológicas, sendo, portanto, mutáveis. Assim, para efeito deste trabalho,
parte-se de um pressuposto teórico: a infância como construção social,
variante no tempo e no espaço, de acordo com o contexto; ou seja, as
necessidades e possibilidades de uso desta categoria política, ideológica e
social.
A infância e juventude foram e são entendidas no senso comum e
propostas pelas ciências médico-naturais como sendo o período que
compreende o desenvolvimento físico, psíquico e moral do indivíduo,

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concepção esta estanque e determinista, biológica e morfologicamente
definida pela natureza dos corpos como algo inquestionável e imutável. Não
se refuta, nesse trabalho, a existência de uma base natural constituinte das
infâncias e juventudes. No entanto, a contrario sensu do proposto no bojo das
ciências naturais, a infância e, ainda com ela, a juventude têm sido verificadas
como algo cambiante no decorrer dos séculos, ao demonstrarem concepções
várias de acordo com as necessidades políticas de cada tempo e lugar,
percorrendo procederes que vão do cuidado à educação e deste ao controle ou
à cooptação pelo consumo e à sociedade em massa.
Contudo, não existe uma clara passagem ou período entre a infância e
a vida adulta, divisão cronológica que é um legado da modernidade [1],
denominada de juventude ou adolescência – momento em que esta fase passa
a ser constituída como uma categoria de análise autônoma. Nesse sentido,
pode-se perceber a juventude como categoria científica, a qual foi
inaugurada/criada na ciência moderna pelo psicólogo Stanley Hall na virada
do século XIX para o XX (ano de 1898). Ainda para tratar deste contexto,
Jon Savage (2009) aborda sobre Rousseau:

O termo definitivo para o hiato entre a infância e idade adulta foi


cunhado [...] ele vinha coletando dados havia no mínimo cinco
anos e, numa conferencia naquele verão, ele deu a primeira
definição de idade para o que chamou de adolescência, o estado
intermediário que Rousseau havia ao mesmo tempo exaltado e
feito advertência a respeito, não era só determinado
biologicamente, mas socialmente construído. (p.82).

Assim, sob a influência da Revolução Burguesa e, sobretudo, após a


sedimentação de uma sociedade ocidental e hegemônica eminentemente

21
industrializada; sob os ímpetos desenvolvimentistas; e sob o pretenso discurso
e deificação de princípios modernos como a liberdade, igualdade e
fraternidade, amplia-se e se aprimora o discurso acerca da juventude,
impulsionado pela necessidade de qualificação para as novas tecnologias,
visando maior produtividade e desenvolvimento. Dessa maneira, aumenta-se,
em tempo e intensidade, a proteção e o reconhecimento da infância como tal,
para que esta seja entendida e propagada como uma construção social,
definida por elementos conjecturais políticos, sociais e culturais.
Neste ponto, vê-se mais claramente que as concepções de infância e
juventude cambiam e se atrelam às necessidades do capitalismo nascente e à
necessidade de indivíduos produtores materiais e ideológicos, tornando-se
reféns da epistemologia burguesa e positivista hegemônica. Neste sentido,
propõe Cezar Bueno de Lima (2008):

O corpo, que até o século XVII constitui um mero objeto dos


suplícios e das penas, irá, nos séculos posteriores, comportar
diferente acepção. Já não interessa danificá-los tanto fisicamente,
mas formá-lo, reformá-lo, corrigi-lo e impor-lhe novas aptidões
com o objetivo de convertê-lo num corpo sadio para o trabalho. A
prisão adquire novo significado, transfigurando-se em aparelho
[...] (p.39).

Trabalha-se, então, com uma concepção de juventudes [...], plurais e


heterogêneas, e se as entende a partir da conceituação de Miriam Abramovay
e Mary Garcia Castro (2003), para quem:

Advoga-se a definição da juventude a partir da transversalidade


contida nessa categoria, ou seja, definir juventude implica muito
mais do que cortes cronológicos, vivências e oportunidades em

22
uma série de relações sociais, como trabalho, educação,
comunicações, participação, consumo, gênero, raça etc. Na
realidade, essa transversalidade traduz que não há apenas um
grupo de indivíduos em um mesmo ciclo de vida, ou seja, uma só
juventude. (p.17).

Entendendo-se por ser a categoria juventudes complexa e


multidimensional, a qual extrapola a capacidade ou bondade
definidora/classificatória proposta pela modernidade e mascara o falacioso
discurso da ampliação de tempo e intensidade das condições de vida das
juventudes como meras estratégias desenvolvimentistas e elemento constante
no projeto autolegitimante da modernidade burguesa hegemônica. Ainda no
que diz respeito às juventudes, mormente as subalternas, produz-se vivências
permeadas pelas mais variadas formas de opressão e violência, não dando
conta de tal complexidade o conceito moderno de juventude, baseado em um
critério meramente temporal e simplificador, sequer a sua prática atuarial
voltada aos resultados que esta juventude integrada pode reverter ao sistema.
Sendo apropriada, portanto, a definição de juventudes (no plural),
buscando-se abarcar as multiplicidades sociais, políticas, culturais e a
multidimensionalidade fatorial e simbólica que envolve o processo de
formação dos indivíduos em sua singularidade, identidade e alteridade.

2- O tratamento dos indesejáveis: a juventude e o sistema penal

Aborda-se aqui a condição de juventude e o seu trato criminalizante e


punitivista na realidade brasileira contemporânea, fazendo-se de suma
importância dividir a análise em dois períodos. O primeiro período, o pré-
democrático ou o de transição para a sociedade moderna brasileira; e o

23
segundo, a pós-Constituição (1988) ou o Estatuto da criança e do
Adolescente (lei 6.098 – ECA) e o grande passe de mágica (ao menos
retórico) liberal.
O primeiro é marcado por um sistema político muito inconstante,
alternando entre períodos ditatoriais e democráticos (menos formais e
extremamente violentos). Caracterizado pelo imponente apelo ao
desenvolvimento econômico, foi levado a cabo sob forte
influência/financiamento externa/o e através de severa/o repressão/controle.
No plano de proteção/controle à infância/juventude, delimitava claramente a
criação de duas infâncias, uma destinada aos avanços teórico-discursivos e a
outra direcionada ao ensino e à formação técnico-profissional, para quem
estavam reservadas vagas em setores formais da produção e a quem dependia
o futuro da nação.
Para estas juventudes, foi ampliada a proteção e alargado o período
entendido como de (de)formação desse indivíduo. A sociedade que se
pretendia moderna se responsabilizava por este período de cuidado juvenil.
Entretanto, também ficava claro que esse avanço não era destinado aos
menores [2]; às crianças provenientes de classes desfavorecidas, sem formação
educacional formal nem possibilidade de tal, sem perspectiva profissional; às
crianças sem família responsável (quando possuem são tão ou mais
desgraçados quanto os filhos, tendo sofrido agruras impensáveis), amontoadas
nas nascentes e descontroladas metrópoles brasileiras, situadas nas periferias
do sistema, das cidades, nas favelas.
Seguindo na presente análise, é importante dar atenção às recentes
práticas penais para com a juventude na dinâmica brasileira. O código de
menores, também conhecido como Código Mello Matos, de 1927,
preconizava o controle dessas camadas de jovens sob um discurso fortemente
moralizador e naturalizante, com prática nitidamente preconceituosa e

24
segregacionista; com objetivos de moldagem de corpos aptos ao trabalho
exploratório necessário ao contexto desenvolvimentista; e mentes obedientes,
acostumadas à reprodução de ordens e valores, bem como sujeição ao castigo.
Dessa maneira, mantinha a ordem da heteronomia que caracteriza o
desenvolvimento das práticas judiciais no Brasil atrelado à epistemologia
positivista distanciada dos objetos de intervenção, que consistiam meramente
em corpos que necessitavam de urgente correção e adequação ao paradigma
político vigente. Assim, assevera Cezar B. Lima (2008):

A meta do governo e dos setores específicos a ele vinculados, como


o sistema de justiça penal juvenil, não é apenas a de conservar o
Estado, mas imprimir o reforço e o desenvolvimento contínuo do
aparelho estatal. [...] Indivíduos classificados como normais ou
perigosos adquirem importância ao Estado se forem capazes de
fazer, ainda que em porção irrisória, alguma coisa que resulte em
alteração positiva e ajude a ampliar o poder do Estado ou algo
negativo, voltando-se contra ele, sua racionalidade e sua força. (p.
24).

Nessa estrutura, insere-se a categoria de análise teórica e prática do


menor em contraposição à criança, segundo a conceituação de Mayalu Matos
e Ruth Torralba (2002): “menores são aqueles que assaltam, que vivem nas
ruas, que vão para os juizados e educandários, enquanto as crianças vivem em
famílias ‘estruturadas’, vão à escola e têm um futuro pela frente” (grifo do
autor, p. 75). Em outras palavras, isto é o que se entende por antagonismo de
um componente cidadão e outro, de uma classe inferior (underclass) [3]. Este
que pode ser multiplicado por milhões e, de acordo com a diretriz
decodificadora de comportamentos, tem uma maior propensão de ser o

25
infrator da lei penal, bem como a personificação dos medos modernos e o
objeto da repressão estatal legitimante do sistema que o alijou.
O segundo período, quando da promulgação da CF88 e do ECA, é o
momento em que se inaugura um novo e atual período, ao menos
discursivamente diferente, compreende e se identifica com a instituição do
Estado Democrático de Direito e das democracias burguesas e individualistas,
em que são impetradas as atrocidades e são verificadas as mais perversas
situações de vida/privação, mesmo que sob um discurso
legitimante/humanizador. Demonstra-se que, na prática, o modelo atual não
se diferencia dos predecessores e que depende do aval técnico higienista e
patologizante das dinâmicas preconizadas pela episteme positiva-punitiva da
constante busca pela pureza. Nessa linha, é esclarecedora a abordagem de
Cezar Bueno de Lima (2008):

O ato infracional permanece ligado à violação de uma norma


jurídica devidamente regulamentada pelo Código Penal. Nesse
ponto, a retórica jurídico política contida no ECA não resultou em
mudanças efetivas na realidade. Práticas penalizadoras persistem
associando ato infracional a crime e medida sócio-educativa a
pena, contrariando o perfil pedagógico previsto pelo próprio
estatuto. Ou seja, o novo estatuto redimensionou o caráter
filantrópico do atendimento a criança e adolescentes, mas
permanece definindo a infração como crime ou contravenção penal
(p.107).

Rodeado e permeado por violências estruturais, físicas, morais e


identitárias, exclusões de todo tipo, do mercado de trabalho, do acesso a bens
de consumo, do direito a ter privacidade e à cultura, a subtração do direito a
ter direitos se enquadra na situação do jovem no Brasil emergente do século

26
XXI, que comemora a evolução técnica legislativa e discursiva do Estatuto da
Criança e do Adolescente. Vale trazer a análise de Maria Lucia Karam
(2000):

em formações sociais onde o espaço social e os bens são


desigualmente distribuídos, mantendo-se pertinente a indagação
de por que razão pessoas desatendidas em suas necessidades reais
fundamentais, despojadas de seus direitos básicos, como ocorre
com as que são prioritariamente atingidas pela intervenção do
sistema penal, estariam obrigadas a respeitar as leis. (p.338).

Esta pesquisa se constrói a partir do pressuposto de que esta mudança


tenha-se dado apenas no plano formal e, na melhor das hipóteses, no plano
teórico-discursivo, senão apenas mais uma armadilha retórica moderna para
maquiar as reais intencionalidades e projetos de
controle/dominação/exploração da sociedade e, sobretudo, dos jovens que
internalizam este poder difuso [4]. Pode-se dizer que o ECA nunca fora
aplicado como fora criado, permitindo que veladamente se mantenha ou se
deteriore ainda mais as condições dos jovens em instituição de controle.
Isto porque a informalidade desta racionalidade facilita este
ressurgimento da procedimentalidade eminentemente punitiva que vigorava
nos modelos anteriores, tais como o Código Mello Matos, acima de tudo
ligado ao ideário de periculosidade e, posteriormente, o Código de Menores
de 1979 e seu ideário higienista. Ambos baseados nos pressupostos
importados da Segurança Nacional, do Direito Penal do Inimigo e, assim, de
um direito penal do autor. Consoante a isto:

Acreditou-se, por motivos óbvios, que o código de Menores de


1979 estava de uma vez por todas sepultado e definitivamente já
27
não era o referencial legislativo que orientava o Estado, a Justiça e
a sociedade no atendimento a ser dado a crianças e adolescentes.
Contudo, a Justiça vem insistindo em ler o ECA sob a lente
encarceradora do Código de Menores, que, no cotidiano da prática
judiciária sobreviveu como um cadáver insepulto. Onde o ECA
prevê a excepcionalidade, promotores e juízes, pela ação,
advogados pela omissão e técnicos pela reconstrução científica da
figura do delinquente apreendem a regra, transformando a
internação em regularidade. (OLIVEIRA, 1999, p.77).

O consenso punitivo forjado, alimentado e potencializado no seio da


sociedade moderna tem-se refletido muito clara e cruelmente sobre as
camadas jovens da população outsider. Reflexo de comportamento que se
exterioriza não só no incremento do controle das juventudes, mas também na
contenção mais violenta, quando vistos como incontroláveis, o que tem se
mostrado em índices de mortalidade, ou simplesmente é a emersão de uma
política de, ou, pelo menos, a tentativa de imunização social, tendo em vista
que, no Brasil, vivem-se condições similares a uma guerra civil contra um
contingente específico [5]. Tal conclusão é possível a partir de pesquisas que
identificam índices de morte por causas externas, com predomínio de
vitimação infanto-juvenil [6].
Assim, jovens são recrutados em diversos setores determinados como
criminalidade no país, atraídos pela oportunidade de lucros (ganhos fáceis)
em troca dos riscos corridos (vida difícil), com seus sonhos e perspectivas
desvanecidas em decorrência da política de isolamento e contenção de
determinados grupos e setores, considerados descartáveis na sociedade do
consumo (BATISTA, 2003). Estes jovens, hoje delimitados como os jovens
do crime, do tráfico e toda (falta de) sorte de adjetivos para (des)qualificar
este contingente crescente de indivíduos que nasceram superfluamente e, por

28
isso, são mercadoria descartável, ou seja, não farão falta [7], foram seduzidos
pela possibilidade de poder e respeito, permeados pela ideologia dominante
de produtividade, competitividade e individualismo.
No entanto, apartados dos meios tradicionais para acessar encontros e
possibilidades de sucesso pessoal, apartados da educação (quando a acessam,
ocorre apenas em condições mais que precárias), apartados das oportunidades,
como do mercado de trabalho formal que é cada vez mais exigente, são
empurrados para se utilizar de meios comodamente aceitos pela fatia médio-
superior da população como ilegais, informais e reprimíveis [8]. Como
propõe Castells (2003), “para as ruas para ajudar financeiramente em casa ou
acabam por fugir do inferno das suas próprias casas para o inferno de sua não-
existência” (p.199-200).
Este contingente da juventude que é centrifugado no seio da sociedade
globalizada, ao mesmo tempo é impulsionado pelo consumo e pela vida de
produção de alteridade através de bens materiais e simbólicos, desprovido de
meios para obtenção destes acessos. Sendo assim, utiliza-se de estratégias
próprias, mais ou menos regulares, em maior ou menor medida tradicional,
com um maior ou menor potencial ofensivo/lesivo, a partir de seu contexto de
possibilidades individuais.
Assim, os bairros, as periferias, as favelas são celeiros de alteridades
distintas, uns mais conformados com a naturalidade artificial do sistema e de
seu futuro de subalternidade – de trabalhar para comer, e comer (quando dá e
o que dá) para trabalhar – fornecendo bem-estar/conforto para as classes
médio-superiores. Além disso, também produzem as alteridades conflitantes
com o sistema-mundo, pois almejam os mesmos bens de consumo, os quais o
salário mínimo não permite acessar, então, buscam por outros meios, arcando
com os riscos da rentabilidade do mundo do crime, do tráfico de drogas

29
principalmente, pela momentânea e efêmera sensação de pertença
proporcionada pelo consumo, pelo poder, pelo respeito produzido/adquirido.
A definição dos atos violentos depende diretamente do grau de
confrontação/desconforto aos ditames sociais e valorativos moderno-
burgueses. Estas estratégias utilizadas passam a ser objeto da violência, o
medo que converge todo o aparato/arsenal moderno de combate, desde os
meios materiais e institucionais até os meios ideológicos, que têm como
disseminador mais perspicaz/eficiente a mídia, como se entende a partir da
teoria do etiquetamento (labelling approach) [9].
Nessa abordagem contextualizadora, Boaventura de Sousa Santos
(2000) diz que “há um desassossego no ar. Temos a sensação de estar na orla
do tempo entre um presente quase a terminar e um futuro que ainda não
nasceu” (p. 41). Enquanto se comemora avanços em termos legais e
dogmáticos, convive-se com a inalterabilidade em termos reais ou até mesmo
com o retrocesso. Desta forma, oscila-se entre educar/dominação e
controlar/punição “enquanto a regulação se torna impossível, a emancipação
torna-se impensável” (p. 57).
Nesse sentido, Alessandro Baratta (2007) trata da violência como
congênita ao Estado e ao Direito moderno, sendo parte de seu código
genético, a partir desta dinâmica de monismo jurídico e monopólio do poder
de dizer o direito:

una contradicción, un defecto congénito de la modernidad.


Indicaron el tipo y grado de relación entre violencia y derecho.
Esta contradicción consiste esencialmente en el ocultamiento de la
violencia por parte del derecho y, al mismo tiempo, en la reacción
mimética, reproductiva, que el derecho tiene en relación con la
violencia. Piénsese en el derecho penal. En el pensamiento de la

30
modernidad, el derecho y el Estado estaban destinados al control y
a la superación de la violencia. Sin embargo, en el derecho y el
Estado La violencia sigue siendo inmanente y se reproduce. Es
justamente el ocultamiento de la violencia el que, como dice
Girard, produce el equívoco, la ambivalencia fundamental de la
modernidad. Eligio Resta desarrolló en un reciente trabajo esta
tesis recurriendo a la metáfora platónica del pharmakon, que en
griego clásico significa, al mismo tiempo, remedio y veneno. Así,
el Estado moderno y su derecho se legitimaron como un remedio
contra la violencia, pero a su vez, este remedio permitió perpetuar
el veneno, es decir, permitió mantener la violencia como el
verdadero tejido conectivo de la sociedad sin conseguir ni
neutralizarla ni, al menos, monopolizarla en la forma de la
violencia legal, ya que la mayor violencia sigue siendo la ilegal.
(p.9-10).

Percebe-se que a juventude é vista e reconhecida modernamente a


partir de um binômio principiológico e epistemológico, consumidor/menor
descartável, sendo, em ambas as acepções, visto meramente como objeto de
intervenção totalitária. Como aponta Paulo Freire (2005), “a pedagogia que,
partindo dos interesses egoístas dos opressores, egoísmo camuflado de falsa
generosidade, faz dos oprimidos objetos de seu humanitarismo, mantém e
encarna a própria opressão. É instrumento de desumanização” (p. 45).
No primeiro caso, estes indivíduos são percebidos pelo mercado como
mais um grande grupo que contém enorme potencial de compra e do qual o
mercado cada vez mais se ocupa e, no segundo, são compreendidos como
objeto de intervenção pelo braço interventor e punitivo do Estado, a fim de
reeducar estes indivíduos/consumidores perdidos ou simplesmente excluir ou
isolar esta célula cancerígena para o sistema hegemônico. Em ambas as

31
situações, os indivíduos são desprovidos de suas capacidades e potencialidades
típicas da juventude.
Este contexto, até aqui delineado em termos jurídicos, políticos e
culturais e epistemológicos, pode ser definido como paradoxal e carrega um
quadro permeado de vulnerabilidades, na conceituação de Castro e
Abramovay (2002):

[...] como o resultado negativo da relação entre disponibilidade


dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles
indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades
sociais, econômicas e culturais que proveem do Estado, do
mercado e da sociedade. Esse resultado se traduz em debilidades
ou desvantagens para o desempenho e mobilidade social dos
atores. (p. 29).

Assim, encerra-se a presente abordagem contextualizadora, para passar


as análises de um possível paradigma de juridicidade mais democrático e
verdadeiramente humano, a partir de práticas dialogais na busca da efetiva
resolução de conflitos e reconhecimento de identidades e produção de
alteridades juvenis.

3- A juventude insurgente – um sujeito de fronteira

Neste ponto da análise, dedica-se atenção à relação entre a juventude e


o direito contemporâneo e a sua complexa problemática que vai desde os
discursos humanistas ocidentais até as práticas de total desrespeito pela
identidade e pela corporalidade dos indivíduos que compõem a categoria

32
juventude. Esta que apenas tem sido objeto de intervenção, dominação e
docilização mente-corpo, ainda que sob uma capa humanitária e filantrópica.
Entende-se a juventude como categoria e, sobretudo, como grupo que
guarda a potencialidade de contribuir decisivamente para o processo de
(re)politização social a partir de um novo marco de alteridade e
reconhecimento de diferenças, calcados no diálogo e nas trocas democráticas.
Alessandro Baratta permite a análise da infância como categoria una [10],
classe ou grupo de interesse, ainda que multifacetada e imensamente
heterogênea, unificada na condição de subalternidade. Tal esfera se constitui,
como afirma Baratta (2007), em uma nação (de corpos e identidades) a ser
inserida na dinâmica e concepção nova de cidadania, para a conformação de
um estado mestiço de cidadanias plurais da democracia instituída pela
cidadania instituinte. Nestas linhas, escreve Alessandro Baratta (2007):

No soy yo quien ha inventado esta hermosa metáfora: los niños


como una de las patrias que concurren a formar el Estado mestizo.
La niñez como ciudadanía representa un momento propulsor y
una fuente de verdad de los que se alimenta el proyecto de la
alianza, la refundación del conjunto de las instituciones públicas
según el modelo democrático que me he permitido presentar aquí.
[...] El Estado mestizo es el Estado que se alimenta también, y
sobre todo, de esta ciudad de los niños, una ciudad que es una
enorme metrópolis que casi llega a ser tan grande como la mitad
de la humanidad. No podemos perder la riqueza potencial
contenida en este proceso de refundación del Estado: están en
juego no sólo los derechos de los niños, está en juego la existencia
de la propia humanidad. (p.13).

33
Assim, explicitado que se entende as juventudes como categoria, ainda
que heterogênea e até desorganizada em sua formação, passa-se para um dos
elementos que contribuem com a unicidade da categoria, que são os
elementos identitários na subalternidade. Com isso, é importante trazer a
concepção de identidade que pauta a presente análise permitida a partir da
leitura de Manuel Castells (1999):

Identidades, por sua vez, constituem fontes de significado para os


próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de um
processo de individuação. Embora [...] as identidades também
possam ser formadas a partir de instituições dominantes, somente
assumem tal condição quando e se os atores sociais as
internalizam, construindo seu significado com base nessa
internalização. Na verdade, algumas autodefinições podem
também coincidir com papéis sociais [...] contudo, identidades são
fontes mais importantes de significado do que papéis, por causa do
processo de autoconstrução e individuação que envolvem. Em
termos mais genéricos, pode-se dizer que identidades organizam
significados, enquanto papeis organizam funções. (p. 23).

Manuel Castells (1999) complementa ainda que a questão da


identidade coletiva se dá pela via da identificação ou exclusão à dada
identidade ou ao complexo de significações simbólicas, pelo sentimento de
pertença ou de contrariedade. Situação que se adéqua muito bem à relação
das juventudes, mormente as subalternizadas, e às identidades que lhes são
expostas e impostas paralelamente às vias de acesso (irregulares ou ilegais) a
tais identidades socialmente aceitas/impostas, ou ainda, à identidade
imanentemente transgressora e desviante, tensionadora (ainda que

34
inconscientemente), uma identidade de resistência, como propõe Castells
(1999).
Neste viés, acrescenta-se ainda a formação específica dessas
identidades juvenis a partir de multidimensionalidade e multifatorialidade de
significações, como propõe Maria Lucia Violante (1989):

Conceber o menor como síntese de múltiplas determinações


implica considerá-lo não como uma entidade única, peculiar e
fechada em si mesma, mas como ser social, no contexto das
condições marginais de sua existência, condições essas que
refletem as contradições básicas da sociedade [...] a identidade é
histórica na medida em que se forma na história de vida do
indivíduo. Sua biografia é o ponto de cruzamento entre sua
história pessoal e a de seu grupo social, de sua classe, da sociedade.
A identidade é constituída pelos dados pessoais do indivíduo, por
sua biografia, pelas categorias e atributos que os outros lhe
conferem, pelas representações e sentimentos que ele adquire a
respeito de si próprio na interação com o meio social. As ações e
representações do indivíduo são elementos constitutivos da sua
identidade, estabelecendo sua interação com o meio. (p. 22-24).

Forja-se a identidade individual e coletiva do que a autora chama de


decente malandro – o dilema do decente malandro entre a sina de adaptação
às condições marginais e subalternizadas de ser e não ser reconhecido ou a
imperiosa força cooptativa para os ideais do ethos burguês –, permeado pelos
riscos de tentar adentrar na vida ocidental burguesa, ou resistir em entrar,
constituindo-se por meio de uma identidade intensamente fronteiriça ou de
uma vida difícil de ganhos fáceis, conforme propõe Vera Malaguti Batista
(2003).

35
Nesta linha de pensamento, utiliza-se a categoria trabalhada por
Boaventura Santos (2006), denominada cultura de fronteira ou identidade de
fronteira:

Usei o conceito de fronteira mais no sentido de extremidade do


que no seu uso de zona de contacto, mas, em todo caso, procurei
com o conceito de fronteira significar a deslocação dos discursos e
das práticas do centro para as margens. Propus uma
fenomenologia da marginalidade assente no uso selectivo e
instrumental das tradições; na invenção de novas formas de
sociabilidade; nas hierarquias fracas; na pluralidade de poderes e
ordens jurídicas. Na fluidez das relações sociais; na promiscuidade
entre estranhos e íntimos, entre herança e invenção. Em suma,
viver na fronteira é viver nas margens sem viver uma vida
marginal. (p. 241-2).

Categoria analítica que pode muito bem ser trasladada para a condição
em que se encontram as juventudes. Esta é entendida como período liminar
que se encontra entre a infância e a vida adulta e compreende este espaço
temporal da vida de indivíduos com práticas culturais e identidades
complexas. A juventude é construída a partir desta liminaridade e é permeada
desde a sua gênese por sentimentos antagônicos e ambivalentes, constituindo
uma relação paradoxal, em virtude de que foi construída como grupo ou
categoria a partir da modernidade recente, como forma de conceituação de
um grupo e delimitação de espaço-tempo, em que estes indivíduos
integrantes seriam formados para a idade adulta capitalista e burguesa,
recebendo a lapidação da formação que se inicia desde tenra infância.
Nesse sentido, a juventude se constitui a partir de forte dinâmica de
vigília adulta e societal, que lhe imprime uma operacionalidade altamente

36
moralizante e repressiva, a fim de produzir corpos dóceis e afeitos ao trabalho,
à produção e à vida proba que preconiza a modernidade e o ethos burguês.
Com isso, a juventude, frente a este poder altamente repressor e tutelador,
constitui-se como o outro da adulteridade, como em uma relação de espelhos,
conforme proposta por Santos (2006). Dito isso, a juventude é caracterizada
por alguns elementos como a intensidade de relações e emoções, aptidões
noturnas desejantes e carnais, irritabilidade/irresignação intensas e ainda por
uma profunda ansiedade enquanto aguarda e anseia pela vida adulta.
Esse sentimento de ansiedade pode ser causado em grande medida
pelo processo de repressão e castração com que a juventude – como período –
é sentida e vivida pela grande maioria dos jovens, que não é aceita em sua
identidade intensamente insurgente, mas sim como mera fase de
complementação da formação produtiva para se chegar ao ápice da razão
humana produtiva em uma sociedade em que se vive para trabalhar e se
trabalha para comer, quando dá e o que dá. Este grupo acredita eternamente
em uma vida melhor e se movimenta para isso. Tais ações põem e mantêm a
modernidade burguesa em curso!
A relação reflexiva se completa com o desejante e impossível (ao
menos biológica e morfologicamente) regresso do adulto à vida juvenil, com
características de intensidade em potencialidades e eterno processo de
lamentação de que desta condição ele decorre. Isso resulta nas suas dinâmicas
de dominação do outro, do diferente que acaba sendo uma ameaça ao ethos
burguês médio, ao eu adulto por demais permeado e dominado pela dinâmica
atordoante da vida de produtor/consumidor e de sua cartilha rígida de
procedimentalidades e identidade permitidas e ordinárias.
Assim que se entende a juventude como uma categoria (composta por
um grupo de indivíduos viventes e desejantes por reconhecimento), a qual foi
criada pela e integrada à modernidade, mas desde a gênese da categoria, a

37
partir de uma intencionalidade meramente utilitarista, percebe-se que os
sujeitos que a constituem são concebidos como indivíduos que estariam sendo
formados a conformar a sociedade do futuro (que é cada vez mais presente e
mais inalcançável) e a expandir e aprimorar as capacidades produtivas e
consumidoras. Dessa forma, tais indivíduos não são verdadeiramente
reconhecidos como portadores de sentimentos e identidades autônomas e
dignas do poder de falar, ser e querer, mas meramente como objetos da
intervenção da adulteridade imposta pelo paradigma de sociabilidade
liberal/ocidental, entendendo esta juventude como um repositório da doutrina
pertinente ao ethos burguês.
Esta linha de argumentação traz à luz as categorias de insurgência
forjadas no estudo de Boaventura Sousa Santos, o viver na fronteira que
representa em parte esta identidade juvenil transgressora, mas que, em
verdade, expõe uma profunda vontade de participação das dinâmicas políticas,
jurídicas e sociais ou, simplesmente, almeja ser reconhecida em sua alteridade.
Assim, há outras categorias trazidas pelo autor, como, por exemplo, a cultura
ou o ethos barroco:

A subjectividade barroca vive confortavelmente com a suspensão


temporária da ordem e dos cânones. Enquanto subjectividade de
transição, depende, em simultâneo, do esgotamento dos cânones e
da aspiração aos mesmos. A sua temporalidade privilegiada é a
transitoriedade perene. Faltam-lhe as certezas óbvias das leis
universais [...] o local aspira antes a inventar um outro lugar, uma
heterotopia, se não mesmo uma utopia. Fruto de uma profunda
sensação de vazio e desorientação, provocada pelo esgotamento
dos cânones dominantes, o conforto que o local oferece não é o
conforto do repouso, mas um sentido de direcção [...] (SANTOS,
2006, p. 206).

38
Dessa forma, a juventude se enquadra na identidade barroca, pois, ao
passo que é jogada às formas periféricas de viver – à práxis subalternizada –
ela também é repudiada e combatida, ficando sem espaço, feia, suja, não
pertencente ao meio social burguês capitalista. Assim, criam-se maneiras e
espaços, bem como identidades juvenis transgressoras e um forte ponto de
irritação do sistema estatal-capitalista-burguês, construindo-se uma
importante categoria na luta pelo projeto de emancipação social e pela
constituição de um direito de grande escala, que permita, em primeiro lugar, a
participação deste contingente de indivíduos e, ainda, que reconheça as
dinâmicas jurídicas específicas que dizem respeito ao grupo.
Nesse sentido, vê-se que a juventude guarda um profundo sentimento
de repressão, além de um manancial de identidades insurgentes e de uma
experiência que não pode ser jogada no lixo da historicidade jurídica, social e
política. Tudo isso diante da forte carga de repressão identitária e cultural que
esta tem sofrido, que resulta em obediência silenciosa, mas imensamente
angustiada e pronta para explodir. Em consonância com esta análise, sugere
Boaventura Sousa Santos (2000):

A epistemologia dos conhecimentos ausentes parte da premissa de


que as práticas sociais são práticas de conhecimentos. As práticas
que não assentam na ciência não são práticas ignorantes, são antes
práticas de conhecimentos rivais, alternativos. Não há nenhuma
razão apriorística para privilegiar uma forma de conhecimento
sobre qualquer outra. Além disso, nenhuma delas, por si só,
poderá garantir a emergência e desenvolvimento da solidariedade.
O objectivo será antes a formação de constelações de
conhecimentos orientados para a criação de uma mais valia de
solidariedade. (p. 247).

39
Diante disso, o delito passa a ser a única forma de produzir a si
mesmo, que na modernidade recente tem-se feito através do consumo – o
qual se torna impossível quando fechados outros espaços, como, por exemplo,
o do trabalho e da produção. Nessa direção, escreve Baratta (1999):

Assim os conflitos fins em si mesmos, que derivavam, na


formulação de Coser, inspirado na psicologia profunda, da
necessidade de descarregar uma tensão agressiva. Portanto, eles são
ligados a uma atitude não realista, irracionalista e tem a sua raiz na
esfera emocional. Ao contrário, os conflitos realísticos são
plenamente compatíveis com uma atitude realista e racional
porque a sua característica é, de fato, a presença de alternativas
funcionais nos meios para alcançar um determinado fim. Também
no que se refere às normas de luta, os conflitos realísticos
permitem alternativas cuja escolha depende de um cálculo racional.
(p. 125, grifos do autor).

Baratta (1999) complementa a abordagem acima com os seguintes


termos:

A teoria por eles construída demonstra a dependência causal da


delinquência secundária, ou seja, das formas de reincidência que
configuram uma verdadeira e própria carreira criminosa, dos
efeitos que sobre a identidade social do indivíduo exerce a primeira
condenação; isto coloca uma dúvida de caráter fundamental sobre
a possibilidade mesma de uma função reeducativa da pena. (p.
179).

Vê-se, com isso, o quanto se faz intimamente ligada e de resultados


nefastos esta dinâmica ocidental penalizadora da criminalização primária, que
40
funciona simplesmente como elemento desestimulador e tipificador de
determinadas condutas e sobre certo contingente da sociedade. Fato que
(preponderantemente) ocasiona (sobre este contingente) a criminalização
secundária que, em grande medida, tem tido uma força condicionante da
(sub)vida destes grupos de indivíduos subumanos ou estranhos e que são
supérfluos ao sistema liberal capitalista e, portanto, descartáveis.
Também, aponta-se como elemento produtor de vulnerabilidade,
caracterizado como um potencializador deste repositório de rebeldia e
angústia acumuladas e silenciadas, a situação de dependência e sofrimento
humano material – sentida na pele cotidianamente. Assim, fala-se dos
direitos mais básicos que permitem a sobrevivência humana, tais como a
moradia digna, a alimentação minimamente aceitável, a educação com
capacidade reflexiva, um mercado de trabalho que permita a emancipação
econômica, cuidados com a saúde que mantenham a vida com qualidade. No
entanto, todos esses direitos, essas garantias e essas situações têm sido
rotineiramente negligenciados e carregam uma carga de ofensa e
descontentamento redobrada ou ampliada sobre a juventude vulnerabilizada e
estigmatizada.
Para definir a nuance identitária e materialista deste contingente de
jovens, que são vitimados pela vertiginosa retomada de rumo do mercado pelo
neoliberalismo, traz-se, novamente, com base em Santos (2006), a categoria
Sul que é, como o próprio autor explicita:

metáfora do sofrimento humano sistêmico causado pelo


capitalismo global. Com esta metáfora, quis significar, por um
lado, a dimensão e o caráter multifacetado da opressão nas
sociedades contemporâneas e, por outro, a capacidade de criação,

41
inovação e resistência dos oprimidos quando se libertam do
estatuto de vítimas. (p. 242).

Nesse contexto, acrescenta-se a proposta de Alessandro Baratta, de


modo a voltar a lente desse autor para uma abordagem macrocriminológica e
suas estruturas e reflexos [11]. Assim, avoca-se outra escala do fenômeno
criminal – uma escala maior –, preocupando-se com este e seus reflexos na
estrutura social como um todo, como mapa da luta de classes a partir do
binômio de quem tem o poder de determinar as condutas e os grupos que
serão objeto de intervenção estatal e os que são o objeto de atuação repressora
e não contam com uma base pública e política suficiente para subverter essa
ordem de valores.
Leva-se em conta, para efeito deste trabalho e de seus objetivos, o fato
da mudança de foco da defesa social (onde o foco e objeto de defesa seria a
sociedade em si mesma) em modificação para a manutenção do próprio
sistema que é transformado em vítima das agressões (transmutando-se em
objeto da própria intervenção e defesa), passa-se de uma pretensa ideia de
defesa social para uma concepção de manutenção sistêmica (ainda que não
declaradamente).
Essa constatação não tem reflexos meramente procedimentais que
precisam ser legitimados (tais como questões processuais), mas, do ponto de
vista epistemológico e macrossociológico das instituições e da estrutura social,
tem grande importância, pois deixa clara a carga política que carrega o desvio
e o delito – a irritação do sistema. Nesta perspectiva, acentua Baratta (1999):

Isto levou a um progressivo deslocamento de acento, da


subjetividade de elementos singulares do sistema social (e,
portanto, dos indivíduos, dos grupos, de suas necessidades e

42
interesses) à sua função em face da existência e da estabilidade do
sistema. Este, não os indivíduos e os grupos, assumiu
progressivamente a qualidade de sujeito dos objetivos das ações
sociais. Os sistemas sociais são, de tal modo, concebidos como
organismos equilibrados, estáticos e fechados em si mesmos,
baseados sobre uma harmônica convergência funcional de todas as
partes, sobre a comunidade dos interesses e sobre o consenso. (p.
120).

Entende-se que tal perspectiva analítica contribui de forma


significativa para se pensar o conflito e o desvio como integrantes do processo
do devir histórico e guarda íntima ligação com a mudança de paradigma de
sociabilidade, a partir do viés político do delito. Vê-se ainda o quanto o crime
(assim definidos alguns atos pela cultura e ciência dominantes) carrega um
componente de insurgência, tendo em vista que é a demonstração de
insatisfação e deslocamento da falta de espaço e reconhecimento de um
contingente (grupo) dentro do paradigma de sociabilidade em que se insere
(ou é inserido) – seja ele carregado de consciência de tal carga política ou não,
e o quanto este ato pode contribuir para a modificação do sistema cultural e
científico.
Convém trazer ainda, em paralelo à produção de transgressores (pelo
processo de etiquetamento), a imensidão de desviantes que se constituem a
partir da ordem de valores, identidades e direitos/necessidades básicos/as
juvenis que são rotineiramente violados/as – voltando a relação espelhar que
constitui esse entrelace entre juventude e adulteridade. Esta que tem como
sucedâneo o processo de retaliação e resposta desses indivíduos que se voltam
contra o sistema e se tornam agentes criminosos pelo direito oficial, o qual
chancela as práticas ordinárias de sistemática violação de direitos humanos
juvenis na junção de dois elementos identitários: a fronteira e marginalidade
43
epistemológica em que foram colocadas as juventudes, e ainda a fronteira
intransponível da emancipação material e econômica – ambas as nuances a
eclodirem com o ethos outsider.
Isto, para a criminologia, seria a união da perspectiva micro e
macrocriminológica do desvio de seus desdobramentos individuais e
fenomênicos e suas nuances e significações grupais e estruturais. A primeira é
a da fronteira epistemológica, que está submetida e subjulgada desde a sua
gênese e de seu nascimento, sob constante processo de
aculturação/colonização liberal e mercadológica. A segunda se enquadra no
caso de situação material e real de vulnerabilidade em questões elementares da
vida quotidiana, que inviabilizam qualquer possibilidade de vida com
dignidade, quiçá de constituir uma identidade que não seja revoltosa, ruidosa,
insurgente.
Demonstra-se claramente que o desvio, o crime ou o simples ato
reprimível pela moral ocidental carrega um forte componente político, como
já se propunha na sociologia do conflito (BARATTA, 1999) e conforme
expõe Salo de Carvalho (2011):

A criminologia cultural encontrará nas tribos contemporâneas,


sobretudo nos agrupamentos jovens das grandes cidades, distintos
significados e novas formas de vivenciar a experiência do crime e
do desvio. Isto porque se nas últimas décadas houve profunda
alteração na questão penal, ou seja, nas formas pelas quais as
instituições de controle abordam o crime e o desvio, inegavelmente
a experiência da transgressão adquiriu novos significados, para os
transgressores, para as vítimas e para as demais pessoas que, de
alguma forma, vivenciam situações problemáticas. (p. 175).

44
Neste raciocínio é que se propõe este esforço teórico-prático de
ressignificar os papéis sociais, empoderar os indivíduos diretamente
envolvidos com a trama pública (de interesses privados), que é a justiça
criminal, e desmistificar os papéis do Estado diante de tal problemática.
Diante disso, o presente trabalho busca resgatar o papel dos indivíduos, em
especial, das juventudes, bem como a sua produção de saberes comuns e
populares na resolução dos próprios conflitos, a partir de uma matriz teórica e
cultural outsider, marginal e comunitária.

4 – Da judicialidade à juricidade: de um modelo punitivo/controlador a uma


prática libertadora

Diante do panorama até então exposto, constata-se à necessidade do


(re)pensar as estruturas de poder unidimensionais, unidirecionais e
centralizadoras calcadas em visões técnicas e simplificadoras de
complexidades, de forma a objetivar pura e simplesmente o eficienticismo
quantificado e numérico a partir de uma gestão eminentemente economicista
da vida em sociedade, o que Bauman (2010) chama de Estado jardineiro.
Essa situação, no que diz respeito às juventudes ou aos rostos das
juventudes desumanizadas submetidos ao legislador em um processo antigo
de desempoderamento do saber rival, pode ser analisada a partir da proposta
de Bauman (2010) que elucida os esforços tutelares, educadores, punitivos –
únicas facetas do Estado jardineiro que as juventudes conhecem e têm
contato, sempre na posição de objeto de intervenção, sem vez e voz:

Em vez de deduzir sua autoconfiança da crença no progresso, a


elite educada forjou a ideia de progresso a partir da imaculada
experiência de sua superioridade. Em vez de retirar seu zelo

45
missionário proselitista de uma crença acrítica na infinita
perfectibilidade do homem, ela cunhou a ideia da maleabilidade da
natureza humana, a capacidade de ser moldada e melhorada pela
sociedade a partir de seu próprio papel disciplinar, instrutivo,
educador, tutelar, punitivo e reformador, tendo em mira outras
categorias que não ela própria. A experiência de uma categoria
constituída no papel de jardineiro em relação a todas as demais
categorias foi reconstruída como uma teoria da história. Como se
seguisse o preceito metodológico de Marx de examinar a anatomia
do homem como chave para a anatomia do macaco, a elite
educada usou seu próprio modo de vida, ou o modo de vida
daquela parte do mundo que ela presidia (ou pensava presidir),
como referência para medir e classificar outras formas de vida –
passadas e presentes – como atrasadas, subdesenvolvidas, imaturas,
incompletas, deformadas, mutiladas, distorcidas e outros estágios
ou versões inferiores de si mesma. (p. 156).

Assim que Zygmunt Bauman (2010) analisa a pretensa autoincumbida


tarefa, por parte dos intelectuais, de guia da sociedade e seu processo
evolutivo a um suposto paradigma de sociabilidade melhor e edificante – ou
simplesmente desenvolvida.
Atribui-se à modernidade a gestão, o controle e a pretensão de
emancipação da juventude. Imbuídos de boas intenções (quer-se acreditar
nisto), mas inabaláveis crédulos da incapacidade da autogestão ou mesmo
participação (e voz) dos próprios envolvidos, tornados meros objetos do saber
dos intelectuais.
Nessa medida é que se entende o período atual, no qual se encontram
as juventudes – propalado como de direitos e humanitário – é tributário de

46
uma dinâmica e gestão totalitária das significações (dos significados e dos
significantes).
A partir do panorama epistemológico apontado acima, que Santos
(2000; 2010) se propõe a (des)pensar o Direito, como um dos elementos
indispensáveis à transição paradigmática em busca de um novíssimo
paradigma de sociabilidade. Esta aventura prático-epistêmica passa em larga
medida a desmistificar algumas questões, como assevera o autor:

do positivismo jurídico à autopoiese, o pressuposto ideológico foi


sempre o de que o direito devia desconhecer, por ser irrelevante, o
conhecimento social científico da sociedade e, partindo dessa
ignorância, deveria construir uma afirmação epistemológica
própria (direito puro, direito auto-referencial, subjectividade
epistêmica do direito). (SANTOS, 2000, p.165)

Na medida em que este paradigma de regulação, que tem estrangulado


o potencial emancipatório contido na sociedade de massa e fragmentada na
dinâmica da sociedade de consumidores livres, ainda guarda seu fundamento
primevo naquele suposto e mítico contrato social, a partir do momento em
que não consegue mais dar conta da sua primária função/obrigação, que é a
vida/segurança de seus súditos. Quando suas justificativas e legitimações
racionais e lógico-científicas demonstram forte abalo intelectivo e
degenerativo (SANTOS, 1987; 1989), deve-se retomar a ideia de revolução e
a capacidade de subverter a ordem de ideias por outra que satisfaça e
recoloque a sociedade na diretiva de suas demandas e soluções.
Boaventura Santos (2000) traz uma interessante análise analógica do
paradigma jurídico moderno, a qual se presta muito bem para o escopo deste
trabalho, comparando-o à dinâmica cartográfica. Isto é, a ferramenta

47
matemática determinada em escalas, a fim de representar a realidade como ela
é, ou o mais próximo do possível, ao mesmo tempo em que guarda a
funcionalidade do mapa, que é a manuseabilidade e operacionalidade da
representação condensada [12].
Assim, Santos (2000) compara o sistema jurídico atual com um mapa
em pequena escala, que representa as relações jurídicas e sociais através de
abstrações e conceitos abertos e vagos, contando com a dogmática jurídica, a
qual auxilia com preceitos como igualdade e generalidade, a fim de operar
procedimentalidade e operacionalidade ao sistema jurídico. Com isso,
esquece-se de que este paradigma de regulação de pequena escala é
conformado por relações humanas complexas, de dores e sentidos, de
experiências ricas e várias expectativas frustradas, assim como de conflitos e
diversas versões destes.
Nesta linha, concordando com Santos (2000), diante da incapacidade
desse sistema ou paradigma jurídico abarcar a multiplicidade de relações e,
quiçá, as complexidades várias que envolvem as relações que têm a pretensão
de regular, surgem e convivem diversas dinâmicas jurídicas de solução de
conflitos e regulamentação de relações sociais. Sistemas jurídicos em grande
escala de dentro e a partir dos grupos interessados em regulamentações que
permitem adentrar nas nuances e especificidades (complexidades) dos casos
(fatos e pessoas imbricados – sujeitos e objetos) que se propõem a entrar e
contacto.
A partir disto, desenvolve-se, ainda que sem o aval ou reconhecimento
do Direito estatal oficial – ou até mesmo enfrentando a sua repressão – uma
multiplicidade de esferas jurídicas extraoficiais, de índole local, nacional ou
transnacional, o que se denomina de pluralismo jurídico. Neste meio em que
se encontra a juventude, permeada por promessas não cumpridas desde a sua

48
gênese como categoria analítica e como indivíduos humanos portadores de
capacidade intelectiva, portanto, de saber relevante.
Assim que esta dinâmica não se propõe dialogal tendo em vista que
não está preparada ou não tem qualquer intenção de ser influenciada pelo
auditório, e ainda que se prestasse a tal fim, não tem a capacidade de
compreendê-la; como assevera, de forma lapidar Eugenio Raul Zaffaroni
(2007, p.40):

o interrogador não está preparado para esta resposta, não suporta


toda a entidade que o interrogado lhe arremete, lhe projeta contra,
e deste modo vai ficando achatado (sujeitado) pelo peso das
repostas entitativas, que não quer processar porque não são
necessárias ou úteis ao seu objetivo de poder e que, mesmo que
quisesse, tampouco poderia fazê-lo, porque está treinado para não
escutá-las.

Trabalha-se com o processo de ressignificação desse estatuto de vítima


por parte da juventude subalternizada e vulnerabilizada, como forma ou
elemento central na construção de um novíssimo paradigma de sociabilidade
na transição paradigmática.
A partir da junção entre as identidades (material e epistemológica),
acrescido dos processos micro e macro criminológicos em que se encontram a
juventude desviante outsider, bem como ainda a incapacidade do paradigma
de juridicidade monista e burguês de dar conta das complexidades relacionais
e de sentidos forjados no seio destas constantes relações individuais e
intergrupais, surge a necessidade de um novo paradigma de juridicidade e de
sociabilidade, como propõe a Criminologia Crítica e o Pluralismo Jurídico de
viés Comunitário.

49
Num claro processo de refundação e ressignificação da concepção da
Política e do Direito, demonstrando o quanto estes existem para além dos
espaços estatais oficiais, que são plurais, ainda que não reconhecidos e até
desconhecidos ou ignorados. O quanto à política está impregnada e
embrenhada no Direito, (devendo mesmo estar) ao arrepio da falácia e cínica
proposta positivista de pseudoneutralidade justificante e legitimante de
dominações e perversidades históricas no Direito e da separação entre Direito
e Política – ambos tornados campos de dominação – quando podem ser de
lutas e diálogos/trocas emancipatórias.
Assim que se propugna por um direito plural e dialogal, alternativo e
acessível que permita a participação dos próprios envolvidos e dos mais
afetados pelas decisões, as quais não devem partir de cima para baixo, mas
devem ser construídas, de baixo para cima, impregnando e religando a ponte
entre o direito e a política, ambos sob a principiologia da igualdade (inclusive
na diferença) e da democracia. Isto é, no compartilhamento de saberes e
poderes, conformando uma esfera de solidariedade renovada, ressignificada.
Nesta linha, assevera Fabiana Marion Spengler (2010, p. 230):

Assim é necessário recordar que enquanto o totalitarismo erradica


o conflito e elimina toda a possibilidade de oposição, a democracia
baseia-se no pluralismo de opiniões e na sua oposição conflitual.
Por conseguinte, a democracia é o regime que, pela primeira vez
na história, não se propõe a eliminar os conflitos, e sim torná-los
visíveis, esforçando-se para lhes garantir desfecho negociável com
a ajuda de procedimentos aceites. Num regime democrático o
conflito é, pois, interminável [...] por aí se vê que a democracia
moderna é essencialmente transgressiva, não possuindo base
estável.

50
Uma autêntica esfera de construção da democracia a partir da
participação e fortalecimento da cidadania, instituinte da democracia como
fala Vera Regina Pereira de Andrade (2003), não como instância abstrata
(menos que), garantida no plano da legalidade positivista ou como algo
obtido e acabado, mas como uma construção diária a serviço da construção de
alternativas e resolução de conflitos. Para tanto, urge uma dinâmica dialogal e
participativa, envolvendo os próprios afetados e diretamente interessados,
reconhecidos como detentores de saber-poder relevante, identidade e
coproduzindo alteridade.
Por fim, para concretizar esta análise, neste processo (eternamente
inacabado – liminar) de (des)pensar o direito e a política, e (re)ligá-los para
complementar e contribuir com esta interface entre o direito e a política, na
sua relação com a juventude, traz-se a contribuição de Enrique Dussel (2009),
o qual direciona a lente analítica para a questão da política e seu potencial
transformador e emancipatório, a partir da análise do poder e sua
legitimidade, bem como complexidades relacionais e institucionais.
Abordagem que, direcionada à questão problemática de juventude
desviante/outsider, analisada sob o referencial proposto pela Criminologia
Crítica (congregando estudos sobre o fenômeno a partir do interacionismo,
da formação de subculturas e também da macro-sociologia do conflito) é de
particular importância. Nesta linha, Enrique Dussel (2009) propõe:

Toda corrupción es el fruto de una inversión ontológica


fundamental: el tomar a la potestas (mero ejercicio delegado del
poder de un representante por medio de una institución) como el
lugar donde reside la autonomía, la autodeterminación, la
soberanía, la autoridad, hasta el uso de dicho ejercicio del poder
para el propio beneficio o enriquecimiento). Por ello, los principios

51
normativos son necesarios para clarificar, recordar y explicar esta
originaria inversión o desplazamiento de la referencia ultima del
poder (p. 15).

Neste ponto, retoma-se a abordagem permitida a partir de uma


macro-sociologia do desvio, quando da mudança de foco do sistema de
Justiça, tornando-se o centro do pretenso discurso de manutenção da ordem.
Com isso, remonta-se ainda a um discurso legitimante de viés hobbesiano
[13] e da quebra do contrato social e do fim da sociedade politicamente
organizada sob a égide da teoria hobbesiana (centralidade soberana) numa
relação gregária com a teoria lockeana (liberalismo mercadológico), assim
como da ontologização do paradigma de sociabilidade calcado nas dinâmicas
violentas desta estrutura sistêmica com sua definição de valores e condutas a
serem seguidas e outras a serem reprimidas e punidas.
Assim, a partir da análise do Sistema Penal e sua mudança estratégica
de posição no discurso da modernidade e instrumentalizada pela burocracia e
epistemologia positivista weberiana, o sistema se transforma no que Dussel
(2009) entende por potestas, ou poder institucionalizado e fetichizado, que
não encontra qualquer legitimação ou ressonância na cultura popular dos
indivíduos que, discursivamente, esse sistema tem a pretensão de dizer estar
defendendo.
Nesse sentido, guarda importância o resgate do poder dos indivíduos
envolvidos com a esfera público-estatal punitivo weberiana, como elementar
resgate da ideia de poder legítimo, como base na ideia de público (numa
acepção dusseliana e que remonta a democracia aristotélica moderna calcada
na igualdade e diálogo intercultural e intergeracional). Na acepção fornecida
por Dussel (2009, p.54), da potentia:

52
El poder-poner en la existencia a los entre políticos es el tener
poder (potentia); es decir, el poder es el poder-poner los entes
políticos: la potestas. El poder ejercer el poder se origina en el
querer en el que consiste la voluntad; es decir, sin voluntad no hay
poder, ya que la voluntad es la fuerza, la potentia, el motor, la
condición del poder. Ser-voluntad es el querer por sí de la vida
humana en su permanecer y aumentar. El querer de la voluntad
asegura a la vida humana en su sobre-vivir en la duración del
tiempo. Si la vida pierde el querer vivir queda a la deriva, se
encuentra en situación de suicidio. Las mediaciones que
constituyen el nivel óntico de la política, o la totalidad de los entes
políticos en tanto políticos, quedan así fundados ontológicamente
en la Voluntad de Poder, en el Poder de la Voluntad – es una
primera instancia abstracta y general.

Esta potentia que surge do sentimento de exclusão e a consequente


rebeldia – tornada alteridade insurgente – dos indivíduos que somente tem
sido vítimas das dinâmicas sistêmicas do aparato punitivo e reprodutor de
sentidos na modernidade burguesa; nas palavras de Dussel (2009):

De lo que se trata para nosotros es de construir cada categoría por


referencia a su fundamento ontológico; es decir, fundarlas con
coherencia lógica, para relanzar deconstructivamente dicha critica
de todo el sistema de categorías desde la exterioridad de los
oprimidos o excluidos. Esto nos llevaría a exponer el concepto de
hiper-potentia de una comunidad de oprimidos o excluidos del
orden político vigente, que lucharían para su transformación (la
nueva potestas futura). (p.65).

53
Em sequência, a contribuição de Emmanuel Lévinas permite e ajuda a
começar a pensar nos indivíduos como sujeitos que subjazem e vão além dos
conceitos e símbolos aos quais geram, dão sentido e pertencem, na/no
tarefa/processo de (des)pensar o complexo paradigma de sociabilidade
autoritária humanista-ocidental. Assim escreve Lévinas (1997):

Salvo para outrem. Nossa relação com ele consiste certamente em


querer compreendê-lo, mas esta relação excede a compreensão.
Não só porque o conhecimento de outrem exige, além da
curiosidade, também a simpatia ou amor, maneiras de ser distintas
da contemplação impassível. Mas também porque na nossa relação
com outrem, este não nos afeta a partir de um conceito. Ele é ente
e conta como tal. Reportar-se ao ente enquanto ente significa, para
Heidegger, deixar-se o ente, compreendê-lo como independente
da percepção que o descobre e apreende. É por esta compreensão
precisamente que ele se dá como ente e não somente como objeto
(p. 26-7).

Em relação às juventudes, o processo de conceituação ocasiona o


encerramento e castração dos indivíduos/sujeitos a que se refere e que
pretende conceituar e compreender. Ainda que permeado de boas intenções,
projetando práticas sociais (como políticas ou leis), é dinamizado a partir de
uma lógica totalitária no momento em que se entende como detentor do
saber, apto a moldar a vida e dar (impor) sentido à existência destes sujeitos
que se propõem a compreender (e/ou docilizar as juventudes e seus saberes).
Assim, Emmanuel Lévinas (1997) entende que esse processo de
compreensão, produzido na dinâmica moderna, a partir dessa prática
autoritária, definitória e classificatória é uma dinâmica de negação do
indivíduo enquanto dotado de vontades, saberes, identidades.

54
O ato de incluir, na generalidade, que se impõe à humanidade e,
segundo Lévinas (1997), produz “[a] morte [do indivíduo], o ser vivente entra
na totalidade, porém não pensa mais nada. Pensante, o ser que se situa na
totalidade não é absorvido nela. Ele existe em relação a uma totalidade, mas
permanece aqui, separado da totalidade, eu” (p. 37). Assim não se produz a
aceitação do indivíduo como ente em si mesmo, nem mesmo permite a sua
emancipação, como sujeito apto a participar da modificação de outrem(s),
senão apenas na posição de indivíduos que devem ser modificados,
conhecidos, estudados – como objetos.
Para Lévinas, o indivíduo é um ente em si mesmo, é incapaz de ser
apreendido pelo saber de outro indivíduo em sua totalidade, multiplicidade e
complexidade. Nesta linha, escreve:

A compreensão, ao se reportar ao ente na abertura do ser, confere-


lhe significação a partir do ser. Neste sentido, ela não o invoca,
apenas o nomeia. E, assim, comete a seu respeito uma violência e
uma negação. Negação parcial é violência. E esta parcialidade
descreve-se no fato de que o ente, sem desaparecer, se encontra em
seu poder. A negação depende de mim. A posse é o modo pelo
qual um ente, embora existindo, é parcialmente negado. Não se
trata apenas do fato de o ente ser instrumento e utensílio – quer
dizer meio; ele é também fim – consumível, é alimento e, no gozo,
se oferece, se dá, depende de mim. (LÉVINAS, 1997, p. 31).

A partir deste processo de reconhecimento do indivíduo a partir de sua


identidade, de seus saberes, experiências, como Emmanuel Lévinas (1997)
propõe, em sua entidade, em sua singularidade, multiplicidade e
complexidade é que se poderia pensar em ressignificar a política como
instância de diálogo, de tomada de decisões, como espaço de aceitação do

55
outro e de todos, como iguais em suas diferenças e como indivíduos tornados
sujeitos livres.
Assim como o resgate da proximidade da política com a justiça,
rompendo com a pseudo-neutralidade tecnicista weberiana que permeia os
procedimentos judiciais na modernidade e uma justiça de pequena escala
[14], mas que se pretende pretensamente como universal (apreendendo e
produzindo sentidos gerais e abstratos).
Neste sentido, as juventudes como categoria, ainda que desorganizada,
podem contribuir com as suas entidades identitárias, com seus saberes e
sofrimentos historicamente silenciados, com a suas vidas de subalternidade
como elemento congregador. Fato que permite a estes indivíduos retornarem
a si e tomarem consciência de sua própria condição (de subalternidade e
dominação) a irromperem no real pela rebeldia, como propunha Alain
Touraine (2007), transformando-se em categoria, não meramente analítica,
mas também de atuação, de contestação, projetando fazer parte ativa na
modernidade como protagonista de suas próprias histórias, não apenas na
condição de objeto da história e projeção das expectativas adultocêntricas.
Desta forma, propõe Lévinas:

O pensamento começa, precisamente, quando a consciência se


torna consciência de sua particularidade, ou seja, quando concebe a
exterioridade para além de sua natureza de vivente, que o mantém;
quando ela se torna consciência de si ao mesmo tempo que
consciência da exterioridade que ultrapassa sua natureza, quando
ela se torna metafísica. O pensamento estabelece uma relação com
uma exterioridade não assumida. Como pensante, o homem é
aquele para quem o mundo exterior existe. Em consequência, sua
vida dita biológica, sua vida estritamente interior, se ilumina de
pensamento. (LÉVINAS, 1997, p. 36).

56
Essa dinâmica de tomada de consciência diante da própria
subalternidade, bem como a capacidade e potencialidade do conhecimento
que se produz a partir desta dinâmica inter-relacional e intergeracional (tendo
em vista que a grande guerra epistemológica se trava entre gerações), leva ao
que Dussel (2009) chama de potentia existente em todo e qualquer indivíduo
por si só, em sua vontade de viver (e aí se inclui a vontade/necessidade de
fazer parte e ser reconhecido), transformada em potestas legítima. Isto é,
quando a categoria fragmentada e desorganizada, ganha corpo e toma forma
simbólica e discursiva, transformando-se em multidimensionalidade humana,
de contato, de relações, de saberes e sofrimentos compartilhados e
interiorizados, tornando-se política.
Assim, um novíssimo paradigma de sociabilidade passa, em grande
medida, por processos complexos e abrangentes de modificação e de
reafirmação cultural, de tomada de consciência, uma consciência não
meramente contemplativa, mas (re)ativa, modificadora, emancipadora e
libertadora.
Emancipação que é tributária da criação e recriação de dinâmicas
democráticas a partir de uma perspectiva da democracia construída pelos
próprios envolvidos em sua trama diária, e não mais meramente como um
projeto de governo, outorgando tal papel aos súditos do Estado, a partir de
uma cidadania instituinte, para uma democracia instituída, como propunha
Vera Regina Pereira de Andrade (2003a). Esta culmina com a quebra do
monopólio de dizer o direito por parte do Estado, em que se empodera as
capacidades de dizer o que fazer com as relações conflituosas e as pessoas nele
envolvidas, a partir dos próprios envolvidos. Rompendo-se com o binômio
entre poder-saber científico e comum, como preconizado na Revolução
Paradigmática por Boaventura Sousa Santos (1987; 89).

57
Nesse sentido, entende-se como dois elementos centrais e
intimamente ligados. Primeiro, o empoderamento dos indivíduos em sua
capacidade simbólica das entidades juvenis como dotados da potencialidade
de produzir saber e tal saber como legítimo, que produz os sentidos para a
vida do próprio indivíduo significante, assim como representa a quebra das
estratégias dominadoras disfarçadas de educação ou reintegração social.
Em segundo, a multidimensionalidade, o inter-relacionamento, o
contato permeado pelo diálogo, sendo este um dos grandes nós da
problemática da democracia e do paradigma de juridicidade moderna – a
incapacidade genética e epistemológica de diálogo –, pois, este impõe o
reconhecimento do outro como figura dotada de poder. Conforme traz
Lévinas (1997):

Como manifestação de uma razão, a linguagem desperta em mim


e em outrem o que nos é comum. Mas ela supõe, em sua intenção
de exprimir, nossa alteridade e nossa dualidade. Ela se exerce entre
seres, entre substâncias que não entram em seus propósitos, mas
que os mantém. Com efeito a transcendência do interlocutor e o
acesso a outrem pela linguagem manifestam que o homem é uma
singularidade. Singularidade diferente daquela dos indivíduos que
se subsumem sob o conceito ou que articulam seus momentos. O
eu é inefável, visto que falante por excelência; respondente,
responsável [...] É na palavra entre seres singulares que só vem a
constituir a significação interindividual dos seres e das coisas, ou
seja, a universalidade. (p. 49-50).

Reafirma-se a necessidade do diálogo como forma de construir um


paradigma de juridicidade de grande escala (SANTOS, 2000), e, também, a
partir da coprodução de sentidos e saberes se opera o resgate dos valores

58
comunitários. Visto que uma Justiça deve ser não neutra, mas comprometida
e contextualizada com o meio em que se insere.
Assim que se propugna por uma revolução paradigmática, como
anunciava e exaltava Santos (1987), que permita irromper e ressignificar ou
(dês)pensar o direito e a política como estruturas basilares do paradigma
moderno de sociabilidade.
Com isso, levando em consideração o fato da multidimensionalidade
juvenil subalterna produzir um direito de grande escala [15], ou uma
microgovernança da justiça a partir de um processo radical de democracia e
participação social, refundando a cidadania e a sua capacidade de produzir
saber e legitimar conhecimentos, produzir na periferia da epistemologia
dominante.

Considerações finais

Em termos de aportes conclusivos, e em uma proposta de


desvelamento do sistema penal, trabalha-se em uma dupla perspectiva: (1)
reafirmar a crítica à dinâmica operacional e simbólica do sistema penal; (2)
esboçar o que se entende por uma proposta jurídico-criminológica
emancipatória a partir do viés do criticismo marginal.
Neste sentido, em relação ao primeiro ponto, (1), reafirma-se a crítica
das promessas da juridicidade e do paradigma de sociabilidade moderna,
tendo em vista que são, ao menos, discursivamente, imbuídas de elementos
como a liberdade, humanidade, igualdade, fraternidade, enquanto que a sua
dinâmica operacional continua amarrada e incapaz imanentemente de
construir um paradigma verdadeiramente comprometido com tais elementos.
Sendo que estas estruturas materiais e simbólicas (supostos valores de
humanidade) foram feitas lugares comuns do discurso hegemônico,

59
constituem-se em verdadeira arma de combate e (re)legitimação do próprio
sistema, enquanto mantêm as suas amarras firmes e fortes à dinâmica
iluminista técnico-mecânico e fortemente instrumentalista (utilitária).
Esses lugares comuns do discurso moderno legitimam ou mantêm em
cambaleante vida o que se trabalhou acima como pacto humanitário que, na
contemporaneidade, manifesta-se em alguns discursos politicamente corretos,
manietados com práticas sistêmicas de obsolescência e falibilidade
programadas. Um exemplo disso é o discurso do constitucionalismo
positivista que é proposto como a grande pedra angular para a gestão dos
Estados nacionais modernos e suas gigantescas máquinas, sobretudo, os de
orientação liberal, permeados por seu discurso de cristalização e princípios
universais de direitos e comandos morais da vida social que se
operacionalizam a partir da positivação e pretensão de garantia atemporal e
desconstextualizada de regulação e participação mecânica, um estado de
direito e uma democracia formatada em direção ao que se poderia chamar de
uma Atenas global, sempre sob a égide do padrão burguês – o ethos burguês
internacionalizado, naturalizado.
No que diz respeito em especial ao sistema penal, e como decorrente
do discurso positivo constitucionalista pseudo-humanitário, a proposta do
sistema de garantias, seguido de todas as ideologias re que o acompanham, a
ressocialização, a reeducação (...). Verifica-se que a modernidade imbuída de
seu humanitarismo caritativo-filantrópico punitivo não consegue desfazer-se
das amarras do tecnicismo instrumental e toda a sua potencialidade de
reproduzir dor e perversidades, que o vinculam ao sistema penal como
ferramental modificadora, modeladora e docilizadora do humano, ainda que
se tenha verificado nesta curta idade do próprio sistema, em termos de
formação histórica (algo em torno de 200 anos), a sua total incapacidade de
cumprir a função para a qual fora criado – ao menos em tese, pois se relembra

60
a hipótese das funções não declaradas de Vera Regina Pereira de Andrade
(2003a).
Em relação ao segundo ponto, (2), a proposta crítico-marginal,
trabalha-se com a contribuição de Alessandro Baratta (1999) acerca da
Criminologia Crítica com um viés que parte do constructo de crime como
sendo socialmente construído e resultado da atuação do próprio sistema. Esta
atuação-criação se dá e é compreendida não apenas de uma fenomenologia do
crime (como intentou o próprio labeling approach – sem desconsiderar as
valiosíssimas construções que legaram), mas de uma compreensão estrutural
da construção e atuação sobre o crime, que é permitida a partir de uma análise
eminentemente de orientação dialético-materialista, como já propunha
Miaille (2005), tendo em vista se tratar de resultado do modo de produção da
vida social.
A partir do desvelo dos paradoxos conceituais e operacionais do
sistema penal entre a abstração e generalidade de seu discurso e a concretude
e perversidade produzidas pela sua atuação, trabalha-se com o que tem de
radical na realidade dos fenômenos externos e relacionais e o contato do
grupo social definido como inimigo com o sistema programado para resolver
conflitos e metaprogramado para perpetuar os mesmos conflitos e manter a
sua utilidade e funcionalidade sistêmico-regulatória.
Como refere Zaffaroni (1991) sobre o realismo, imposto como
imperativo ético, a partir de todo arcabouço teórico e empírico, que não
permite que se prossiga com justificações alucinantes em termos de delito, da
defesa social, de recuperação de indivíduos a partir do sistema e toda a sua
violência estrutural, como sendo a única forma de gestão dos conflitos, ou
mesmo que estes continuam sendo uma questão patológica, assim como seus
autores – e que tais posturas não se justificam como práticas urgentes que se
tornaram permanentes, ou mesmo contingentes cuja permanente necessidade

61
de reforma é o maior atestado de falência congênita e imanente. Alessandro
Baratta (1999) aponta como necessário o compromisso de, para além da
compreensão da complexa trama envolvendo o crime, o sistema e a sua
clientela, contribuir com um processo de mudança, que ultrapassa os
paliativos político-criminais tecnológicos, mas que reside em uma profunda
mudança que redesenha toda a relação entre a criminologia, a política
criminal e o sistema de justiça, contemporaneamente pautados por uma
relação de sujeição entre as primeiras à última, uma mudança cultural em
torno do desvio.
Esse aporte teórico-prático, no que diz respeito à realidade latino-
americana, ganha outro e importantíssimo elemento que, segundo Zaffaroni
(1991), desenha-se na figura do marginal – uma criminologia marginal –,
tendo em vista que para conseguir perpassar e construir os passos e elementos
apontados acima, necessário se faz assumir a face, a voz, a experiência e a
existência dos indivíduos que sempre só fizeram parte da modernidade e seu
paradigma de sociabilidade e gestão social a partir da exterioridade e diante
do sistema e maquinaria penal são a voz silenciada e a versão negada, o
fragmento de verdade que é tornado irrelevante.
Ao fim e ao cabo, é necessária a completa reestruturação e
ressignificação do paradigma de juridicidade a partir desta entidade marginal
e todo seu arcabouço histórico-cognitivo, de modo a permitir a construção de
dinâmicas comunitárias de solução de conflitos de forma alternativa, dialogal
e pacífica, comprometida com a estrutura social em que se encontra uma
microgovernança da justiça. Nesta linha, apresenta-se a necessidade de uma
estrutura de organicidade (ou institucionalidade), que não seja
necessariamente estatal (ou tenha como este qualquer vinculação), para que se
permita a colocação em prática do projeto que redunda e se desenrola com
diversas questões altamente complexas e dificultosas quando saem do plano

62
das ideias e se encontram as pessoas (e seus conflitos) – ou seja, com seus reais
produtores.

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70
Notas de fim

[1] Para saber mais, ver Jon Savage (2009) e o desenvolvimento cultural, e
político-social da juventude na primeira metade do século XX.

[2] Segundo Edson Passetti (1985), “nem toda criança ou jovem é menor.
Menor é aquele que em decorrência da marginalidade social se encontra, de
acordo com o código de menores, em situação irregular [ainda que tal
condição legal tenha deixado de existir, a condição material continua viva].
Esta engendra condições para que ele cometa infrações, condutas anti-sociais
que no seu conjunto revelam prática delinquencial. O combate a isso exige
uma instituição criada para suprir as deficiências de adaptação decorrentes da
vida marginal. Menor é aquela criança ou jovem que vive na marginalidade
social, numa situação irregular”. (p.37).

[3] Termo utilizado por Loic Wacquant (2005; 2008) para se referir a este
contingente de subumanos criados e geridos na modernidade a partir da
punição.

[4] Pesquisa realizada em Belém do Pará, com os Policiais Militares (472),


sendo que 65,4% destes nunca leram o ECA; 69,4% entendem que este fora
criado para proteção do infrator, mantendo a racionalidade dos modelos
predecessores, do menor em situação irregular e em situação de pobreza; 39%
não sabiam a faixa etária que define um indivíduo como criança ou
adolescente; e 76,8% não sabiam a procedimentalidade do ECA
(SPOSATO, 2002).

71
[5] De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o índice de
homicídios acima de 40 para cada cem mil habitantes é indicativo de guerra.

[6] Pesquisas como as realizadas pelo IBGE (2002) identificam índices de


homicídio de 65 em São Paulo e 80 no Rio de Janeiro de indivíduos entre 10
e 19 anos. Já a pesquisa realizada por Julita Lemgruber (2004) traz dados de
que mais 10% dos homicídios cometidos no Rio de Janeiro seriam de autoria
da força policial.

[7] Dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos (2008) demonstram


que existiam 880 jovens internados no Rio Grande do Sul, 664 no Rio de
Janeiro e 4.328 em São Paulo, ao passo que em semiliberdade 33 (RS), 82
(RJ) e 422 (SP), no total, existem 16.868 jovens cumprindo medida
socioeducativa no Brasil, sendo que 3.715 em situação de internação
provisória (números não computados nos dados de internação anteriormente
apresentados). Outro dado interessante apresentado pela secretaria refere-se
ao incremento do controle do crime/punição juvenil e ao aumento sensível no
cumprimento de medidas socioeducativas. Em 1996, existiam 4.245 jovens
cumprindo algum tipo de medida, no ano de 2008, 16.868, tendo havido um
aumento de 397,36% em um lapso temporal de 12 anos.

[8] Verifica-se que as principais condutas delitivas cometidas são: roubo,


furto e tráfico de drogas. Outros dados importantes como, 85,6% é usuário de
drogas, 50% não concluiu o Ensino Fundamental, ou seja, crimes não
violentos, que pretendem meramente amenizar a situação de privação deste
contingente sempre crescente de jovens, que inclusive relatam ser a situação
socioeconômica a primeira motivação para a vida delinquencial. Para saber
mais, ver pesquisa levada a cabo por Tatiana Yokoy de Souza, realizada na

72
Casa de Semiliberdade (CSL) de Brasília/DF, que resultou na obra “Um
Estudo Dialógico Sobre Institucionalização e Subjetivação de Adolescentes
em uma Casa de Semiliberdade”; apresentando tipologias e analisando perfis
dos jovens internos (SOUZA, 2008).

[9] De forma breve, salienta-se que a proposta de análise a partir do Labeling


Approach diz respeito ao que se tem denominado de Ruptura Criminológica,
tendo em vista que inverte a lente de análise criminológica, buscando romper
com a abordagem tradicional em Criminologia, que tinha a ideia de crime
como natural, e, portanto, buscavam-se as causas do crime, como
materialmente dado e existente. E a proposta do enfoque do Etiquetamento
propõe que o crime não existe, senão como resultado da atuação do sistema
penal, que, com a atuação das suas agências, define o que é crime e assim o
cria e materializa com o processo de etiquetamento de alguns indivíduos
como criminosos. Assim, o crime é resultado de um processo de construção
social e de definição e resultado de lógicas de poder e de definição.

[10] Entende-se que o autor englobou em tal proposta a juventude – que


interessa para efeito deste trabalho.

[11] Salienta-se que para esta análise, não se entende esta corrente como
antagônica às demais (correntes criminológicas), pelo contrário, seria uma
complementação em outro nível de análise do fenômeno criminal.

[12] Tendo em vista que o mapa perfeito deveria ter a extensão do planeta,
com todos os seus detalhes, entretanto, perderia a sua operacionalidade e
razão moderna de ser.

73
[13] Fala-se da suposta e alegada perda do equilíbrio e da consequente guerra
de todos contra todos no caos social, caso a estrutura social perca a sua
centralidade.

[14] Em nível de detalhamento, como referido por Santos (2000) na


Cartografia do Direito.

[15] Direito que preconiza o elevado nível de detalhamento, aprofundamento


e reflexão sobre cada caso em específico, como proposto por Santos (2000).

74
Educação em Direitos Humanos na infância e
juventude: perspectivas para construção da cidadania
em uma cultura de paz
Human rights education in childhood and youth: perspectives for the construction of
citizenship on a culture of peace
Educación en derechos humanos en la infancia y la juventud: perspectivas para la
construcción de la ciudadanía en una cultura de paz

Clarice Gonçalves Pires Marques


Carlos Alexandre Michaello Marques

Introdução

Infância e juventude nem sempre tiveram a conotação da qual se


compartilha atualmente.Entretanto, nos últimos anos têm se intensificado o
olhar sobre as questões relacionadas a elas, tornando-se tema de vulto e
consideração, tomando espaço nas discussões estatais, as quais resultaram em
normas protetivas e políticas públicas de educação.
A ampliação dos debates neste campo pode ser atribuída ao
reconhecimento da vulnerabilidade da qual se revestem crianças e
adolescentes. Assim, a partir da Constituição Federal de 1988, seguindo suas
características de defesa dos direitos fundamentais do cidadão, crianças e
adolescentes foram inseridos como sujeitos de relações de cidadania, sendo-
lhes destinados vários dispositivos.
Contudo, em que pesem estas ações, ainda falta muito para alcançar
uma cultura de paz e transformação social, em especial, no que se refere à
escola, pois todo o aparato legal garante a proteção de direito, o que, por
vezes, não alcança as situações de fato. Constantemente, emergem as notícias
sobre violência, abuso e discriminação de todos os tipos, quer no ambiente
escolar, quer fora dele.
Nesse sentido, o presente estudo visa propor a reflexão sobre as bases
educacionais brasileiras e a educação em direitos humanos como ponte para a
cultura de paz voltada para infância e juventude na construção da cidadania,
tendo como meio de promoção a escola. Verificar o direito à educação,
constitucionalmente garantido, o Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos (PNEDH) e seus propósitos.
A fim de contextualizar o tema, serão necessariamente abordados
tópicos como considerações sobre cidadania, infância e juventude, a proteção
estatal e a garantia de acesso à educação, o próprio plano nacional de
educação em direitos humanos e sua relação com a educação básica e, por fim,
o contexto da escola básica na atualidade e aspectos da EDH na construção
da cidadania.

1- Pensando cidadania

O conceito de cidadania é um tanto complexo e sua constituição passa


por um processo que envolve diversos aspectos. Carvalho (2008) destaca que a
cidadania plena envolve a combinação de liberdade, participação e igualdade
para todos, mas que se tornou costume desdobrar a cidadania em direitos
civis, políticos e sociais. Ressalta que cidadãos incompletos seriam aqueles que
possuíssem apenas alguns direitos e aqueles desprovidos de qualquer direito
seriam não cidadãos.
Já, Vieira (2005) elucida que historicamente a cidadania tem assumido
funções e formas diferenciadas dentro dos diversos contextos culturais e que

76
seu conceito, enquanto direito a ter direitos, recebe várias interpretações.
Desse modo, a noção que se generalizou, embora não seja única e nem
estanque, foi a referida acima, ou seja, o trinômio direitos civis, políticos e
sociais, oriunda da concepção de Tomas Humphrey Marshall.
No que se refere à criança e, por que não dizer, ao adolescente, a
cartilha de Educação Inclusiva do Ministério da Educação esclarece que:

A família é o primeiro espaço social da criança, na qual ela


constrói referências e valores e a comunidade é o espaço mais
amplo, onde novas referências e valores se desenvolvem. A
participação da família e da comunidade traz para a escola
informações, críticas, sugestões, solicitações, desvelando
necessidades e sinalizando rumos. Este processo, resignifica os
agentes e a prática educacional, aproximando a escola da realidade
social na qual seus alunos vivem. A escola é um dos principais
espaços de convivência social do ser humano, durante as primeiras
fases de seu desenvolvimento. Ela tem papel primordial no
desenvolvimento da consciência de cidadania e de direitos, já que é
na escola que a criança e o adolescente começam a conviver num
coletivo diversificado, fora do contexto familiar. (ARANHA,
2004, p.09).

A escola, como espaço de elaboração de saberes, assume papel


importante também na edificação da cidadania, pois é local de reflexão que
coloca os estudantes em contato com seus direitos e as formas de exercê-los e
de protegê-los. Nesse sentido, cumpre verificar a seguir algumas
considerações acerca da infância e juventude, a fim de alcançar o contexto
atual que se pretende explorar.

77
2- Considerações sobre infância e juventude

O conceito de infância é uma construção cultural e se modificou


através do tempo. De acordo com Shaffer (2005), nos tempos pré-modernos,
as crianças não eram protegidas por quaisquer direitos e suas vidas, muitas
vezes, eram desconsideradas pelos adultos, sendo vítimas de sacrifícios
religiosos e vários tipos de abusos.
O autor em tela destaca ainda que até o séc. IV d.C. o infanticídio era
permitido legalmente em caso de deformidade, ilegitimidade ou apenas por se
tratarem de gestações indesejadas. Afirma que até mesmo as crianças
desejadas eram bruscamente tratadas para padrões atuais, passando por
rigorosos treinamentos desde tenra idade, a fim de servir aos Estados
Militares. Eram submetidos à fome, intempéries e exercícios físicos
exaustivos. Eram bastante comuns os casamentos de jovens entre 12, 14 ou 15
anos de idade.
Obviamente, o tratamento dispensado a crianças e adolescentes variava
de cultura para cultura, mas de modo geral, a visão atual de infância e
juventude estava longe de ser concebida. Já na Idade Média, surge uma
proposta de divisão das idades humanas, calcada em interpretações da obra de
Aristóteles, para fins de educação. Nesta concepção, a infância duraria sete
anos, a puerilidade até quatorze anos e a adolescência até os vinte e um anos.
A Idade Média também é marcada pelo surgimento do sentimento de família
e da instituição educacional, regida pelo Estado e Igreja. (FALEIROS &
FALEIROS, 2007).
Todavia, este sentimento não foi suficiente para resguardar direitos
para esta parcela da população. Ferreira (2001) destaca que a primeira voz a se
levantar em favor da infância foi a de Jean-Jacques Rousseau, posto que em
1762 publicou um tratado sobre educação, cujo título era Émile. O filósofo

78
buscava, através desta obra, demonstrar aos adultos as crueldades a que eram
submetidas as crianças de seu tempo. A partir daí, outros filósofos passaram a
adotar suas ideias, disseminando o tema para reflexão. Assim, a modernidade
será caracterizada por importantes transformações:

Com o Iluminismo, ampliou-se a circulação de novas ideias


durante os séculos XVII e XVIII. A industrialização e o
crescimento urbano acelerado tornam os indivíduos anônimos. No
século XIX, a adolescência passa a ser delimitada, identificada,
esquadrinhada e controlada. As meninas começam a receber
instrução formal.
Famílias ricas criticam os colégios (internatos, na maioria) por
maus hábitos morais e retiram seus filhos dessas escolas. As
famílias pobres e camponesas, por outro lado, veem na
possibilidade de enviar seus filhos para essas instituições à
esperança de um futuro melhor. Externato para o rico, internato
para o pobre. A família é nuclear, heterossexual, monógama e
patriarcal. O pai tudo pode em relação aos filhos e à mulher.
(FALEIROS; FALEIROS, 2007, p.18).

Resta claro que ainda nesta época, a proteção era ínfima. O trabalho
infantil, sempre presente durante a história da humanidade, propagou-se na
sociedade capitalista, pois no século XIX com a industrialização, os casos de
exploração da mão de obra infantil e juvenil eram massivos, e estas, muitas
vezes, suportavam jornadas de trabalho de dezesseis horas por dia ou mais.
(FERREIRA, 2001)
Neste contexto, o acesso à escola para essa massa de jovens
trabalhadores era impensado e, estima-se queem 1840 apenas 20% da infância
londrina contavacom alguma instrução. As crianças começavam a trabalhar

79
nas indústrias têxteis com três anos de idade e nas mineradoras aos cinco
anos, muitas faleciam antes atingir os vinte e cinco anos, devido às condições
terríveis as quais eram expostas. (FERREIRA, 2001)
Em que pese esta conjuntura conturbada, ao final do século XIX e
início do século XX, os estudos de Sigmund Freud surgem como
contribuições decisivas para a delimitação entre a infância e juventude e logo
são percebidos pela Pedagogia e Psicologia. (NUNES, 2000) A partir destas
novas percepções, inicia-se um processo de maior atenção a estas faixas
etárias:

O século XX inaugura a linha de produção em série e a intensa


exploração do trabalho infanto-juvenil provoca, por um lado,
mudanças nas famílias e problemas sociais e de saúde coletiva e,
por outro, o surgimento de políticas para a proteção de crianças e
adolescentes. De uma realidade do capitalismo industrial de
meados do Século XIX, em que as crianças trabalhavam por mais
de 16 horas, avançamos, ao final do século XX, para um
paradigma de proteção integral. Foi também no início do século
XX que tivemos a ampliação dos conhecimentos da psicologia,
que, debruçada sobre a constituição do sujeito infantil, contou com
a contribuição dos teóricos do desenvolvimento humano,
destacando-se Freud, Piaget, Vygotsky, Makarenko, Wallon e
Watson. Apesar da diferença de posicionamentos e matrizes
teóricas, esses autores foram fundamentais para a construção de
uma concepção de infância e para a adaptação do processo
educativo. (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p.18).

Observe-se que ainda assim, nos dias atuais, os padrões ligados à idade
estão intimamente relacionados com a cultura, sendo que estes podem não ser

80
compartilhados da mesma forma de uma sociedade para outra (BEE, 1997),
pois os valores e crenças não são os mesmos para sociedades ocidentais e
orientais, nem tão pouco entre países, comunidades ou tribos.
Entretanto, o paradigma de proteção total emergente no final do
século XX, está bem retratado no que se refere ao Brasil, tendo em vista que a
Constituição Federal de 1988 carrega consigo vários comandos legais neste
sentido. Deste marco legal, outras normas sucederam como o Estatuto da
Criança e do Adolescente e as políticas públicas de educação, conforme será
explorado a seguir.

3- Proteção estatal e garantia de acesso à educação

A Carta Constitucional de 1988 se destaca por conter forte carga de


valores humanistas em defesa dos direitos fundamentais. A proteção estatal
de crianças e adolescentes, na época, teve como base uma tendência calcada
na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a qual os tornava
sujeitos de direito.

[...] a Constituição de 1988 erigiu crianças e adolescentes à


condição de titulares autônomos de interesses jurídicos tuteláveis,
assegurando-lhes, com absoluta prioridade e em atenção peculiar
de pessoa em desenvolvimento, direitos fundamentais, como vida,
saúde, educação, entre outros. O texto constitucional também
atribui à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao Poder
Público a responsabilidade na efetivação dos direitos fundamentais
consagrados na Carta Magna, impondo uma conjunção de
esforços para a resolução dos problemas da população infanto-
juvenil. (CABRERA, 2006, p.06).

81
Nesta esfera, foram apresentados os direitos mínimos, entretanto,
coube à seara da legislação infraconstitucional regulamentar muitas
demandas, resultando em documentos como Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Plano Nacional de
Educação e Políticas de Educação em Direitos Humanos. A seguir, verifica-
se do que se tratam os referidos documentos, bem como o próprio conceito de
cidadania.

3.1-Estatuto da Criança e do Adolescente

O Estatuto da Criança e do Adolescente consiste na Lei nº 8.069/90 e


veio a regulamentar o apontado no art. 227 da Constituição Federal. Dispõe
especificamente sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Assim,
todas as políticas públicas formuladas em prol desta parcela da população
passaram a tomar como linha de base esta lei.
Conforme esclarece Carvalho (2002), este diploma legal se divide em
dois livros: o livro I se dedica aos direitos sociais básicos e atinge a todas as
crianças e adolescentes, enquanto o livro II trata de questões como direitos
civis e é voltado às crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e
social, incluindo proteção e medida sócio-educativas destinadas aos
adolescentes suspeitos de ato infracional.
Acompanhando a garantia de acesso a educação definida pela Carta
Magna no art. 205 e 227, a lei em comento amplia a proteção seus arts. 53 e
54, sendo, inclusive, definida a obrigatoriedade dos pais e responsáveis
matricular suas crianças na rede regular de ensino. Assim, cumpre revisar o
que dispõe, de modo geral, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).

82
3.2-Lei de Diretrizes e Bases da Educação

A Lei nº 9334/96 estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.


Já em seu primeiro artigo, a LDB, define que a educação abrange os processos
formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no
trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Também,
merece destaque o art. 2º, o qual dispõe que:

A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos


princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem
por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
(BRASIL, 1996, grifo nosso).

Em princípio, identifica-se no início da Lei em voga que a educação


possui, como um de seus objetivos, a preparação do sujeito para o exercício da
cidadania, o que de toda sorte depende de vários fatores e de uma conjunção
de esforços entre família e Estado, incluindo até mesmo a discussão do
próprio conceito de cidadania.
A LDB, de acordo com Abbade (1998), trata de questões como
educação e ensino no processo escolar, princípios e fins da educação,
competências e responsabilidades do Estado, dos estabelecimentos de ensino
e dos professores, dos sistemas de ensino e suas funções, das formas pelas
quais os cidadãos exercem seus direitos e deveres relativos à educação, da
formação de profissionais da educação para atuar nos diferentes níveis e
modalidades de ensino, dos mecanismos adequados ao atendimento de
segmentos sociais ou de indivíduos com necessidades especiais, das fontes , da

83
destinação e do uso dos recursos financeiros do poder público em matéria de
educação.
Neste âmbito, a referida lei disciplina a educação escolar, que se
desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições
próprias e traz consigo preceitos de universalização do acesso ao ensino, algo
que, conforme destacado anteriormente, por longos períodos, foi impossível.
A fim de ilustrar tal afirmativa, colaciona-se a seguir o art. 4º da LDB:

Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será


efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental,
obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram
acesso na idade própria;II - universalização do ensino médio
gratuito; III - atendimento educacional especializado gratuito aos
educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede
regular de ensino; IV - atendimento gratuito em creches e pré-
escolas às crianças de zero a seis anos de idade; V - acesso aos
níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística,
segundo a capacidade de cada um; VI - oferta de ensino noturno
regular, adequado às condições do educando; VII - oferta de
educação escolar regular para jovens e adultos, com características
e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades,
garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso
e permanência na escola; VIII - atendimento ao educando, no
ensino fundamental público, por meio de programas
suplementares de material didático-escolar, transporte,
alimentação e assistência à saúde; IX - padrões mínimos de
qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade
mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao
desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem; X – vaga
na escola pública de educação infantil ou de ensino fundamental

84
mais próxima de sua residência a toda criança a partir do dia em
que completar 04 (quatro) anos de idade. (BRASIL, 1996).

A democratização do acesso à escola ampliou de maneira


considerável o ingresso de estudantes na rede de ensino (Fundamental e
Médio). Assim, segue abaixo os números apresentados pela Organização
Todos pela Educação, uma entidade não governamental, financiada pela
iniciativa privada, que reúne esforços da sociedade civil organizada,
educadores e gestores públicos com a finalidade de contribuir para que o país
garanta educação de qualidade para crianças e jovens. Os dados são relativos
ao ano de 1996 e 2011 no que se refere ao atendimento da demanda
nacional[1]:

Idades: 4a6 7 a 14 15 a 17 4 a 17
Brasil (1996) 53,80% 91,20% 69,40% 79,70%
Região Norte (1996) 52,60% 91,60% 76,90% 81,50%
Região Nordeste 56,20% 86,40% 65,60% 76,60%
(1996)
Região Sudeste (1996) 56,20% 94,10% 72,30% 82,40%
Região Sul (1996) 46,00% 93,60% 66,00% 78,50%
Região Centro-oeste 46,80% 92,90% 71,50% 79,30%
(1996)
Fonte: Resultados preliminares da amostra do Censo Demográfico
2010
- Sidra/IBGE
4a6 7 a 14 15 a 17 4 a 17
Brasil (2010) 85,00% 96,90% 83,30% 91,50%
Região Norte (2010) 75,50% 94,50% 81,30% 87,80%

85
Região Nordeste 89,50% 96,80% 82,80% 92,20%
(2010)
Região Sudeste (2010) 88,00% 97,20% 85,00% 92,70%
Região Sul (2010) 77,70% 97,80% 81,40% 90,20%
Região Centro-oeste 78,70% 97,20% 83,10% 90,30%
(2010)
Fonte: Resultados preliminares da amostra do Censo Demográfico
2010
- Sidra/IBGE

Evidentemente os números não traduzem questões fundamentais


acerca da qualidade de ensino e geram inúmeras discussões por parte dos
educadores, sociedade, Estado e demais sujeitos envolvidos no processo
educacional, mas servem de referência para que se promova o debate em
torno do tema.
Outro documento importante na construção da cidadania através da
escola é o Plano Nacional de Educação - PNE, previsto no art. 9º, inc. I, da
LDB e na própria Constituição Federal de 1988. Respeitando as diretrizes
básicas, o PNE é atualizado decenalmente, conforme se analisará na
sequência.

3.3- Plano Nacional de Educação

O Plano Nacional de Educação – PNE consiste no estabelecimento de


metas para a educação no país. Calcado na LDB, ele instituirá objetivos a
serem alcançados no prazo de dez anos de sua vigência, por todos os níveis e
modalidades de ensino.

86
Sua primeira materialização, após a Constituição Federal de 1988, foi
realizada através da Lei n. 10.172/2001 e prevê a elaboração de planos
decenais correspondentes, conforme definido em seu art. 2º. Saviani (2004)
analisou este primeiro PNE, pós 1988, como algo descolado dos anseios
maiores da população brasileira, voltado para a manutenção de um estado de
coisas já vigente, sendo este documento, mais uma vez, objeto de debates
intensos por parte dos educadores.
Entretanto, também neste texto oficial, percebe-se a ideia de escola
como meio de construção da cidadania para jovens e crianças, pois se trata de
sua primeira prioridade:

Garantia de ensino fundamental obrigatório de oito anos a todas


as crianças de 7 a 14 anos, assegurando o seu ingresso e
permanência na escola e a conclusão desse ensino. Essa prioridade
inclui o necessário esforço dos sistemas de ensino para que todas
obtenham a formação mínima para o exercício da cidadania e para
o usufruto do patrimônio cultural da sociedade moderna. O
processo pedagógico deverá ser adequado às necessidades dos
alunos e corresponder a um ensino socialmente significativo.
Prioridade de tempo integral para as crianças das camadas sociais
mais necessitadas. (BRASIL, 2001, grifo nosso) [2].

Assim, é um plano de execução de metas e estabelecimento de


prioridades, o qual foi revisado em 2004, a fim de que fossem avaliados os
objetivos alcançados e corrigidas as distorções em seu andamento. Ao final
destes dez anos é possível verificar que:

A análise das ações realizadas nos quase 10 anos de vigência do


PNE mostra que ocorreram avanços em relação às metas e

87
objetivos que foram fixados no início da década de 2000, como
também equívocos em relação a algumas metas que não
correspondem aos anseios e reivindicações de setores organizados
da sociedade. No momento em que são abertas as discussões em
relação a um novo PNE, é necessário, à luz do debate
contemporâneo, examinar criticamente as ações realizadas, seus
avanços e limites, de modo a contribuir para traçar novos
horizontes para a educação brasileira. A avaliação do PNE
evidencia que a ausência de cumprimento das metas não pode ser
atribuída apenas à instância da União. Esta tem responsabilidades
concretas, mas os estados, o Distrito Federal e os municípios são
corresponsáveis pelos compromissos do Plano. Dependendo da
forma como se efetivam as relações entre os entes federados, dos
arranjos institucionais e das condições políticas existentes, as metas
poderão ser ou não alcançadas. Não se pode descurar, entretanto, o
fato de que as desigualdades socioeconômicas do país contribuem
para determinar o mapa das desigualdades educacionais e,
portanto, seria ingênuo supor que apenas medidas de caráter
burocrático-administrativo pudessem elevar o patamar de
escolaridade da população brasileira. Esta situação mostra bem a
complexidade dos problemas que o país ainda enfrenta, bem como
a necessidade de estabelecer políticas articuladas e ações
concertadas entre Estado e sociedade civil para garantir a todos o
direito à educação de qualidade social. (AGUIAR, 2010, p.723-
724).

Desse modo, ainda há muito a ser refletido a cerca das reais


necessidades da população brasileira no que se refere à educação, mas há a
certeza de uma proposta de construção da cidadania que paira sobre este
anseio de melhora contínua de buscar metas.

88
O novo PNE terá a vigência compreendida entre 2010 a 2020 e,
neste, já se verifica novas promessas de uma educação melhor e mais
abrangente, voltada para ações inclusivas. O Projeto de lei permanece em
discussão na Câmara dos deputados e ainda não foi votado, estima-se que a
votação ocorra ainda no primeiro semestre de 2012, de acordo com as
informações veiculadas na Agência Câmara de Notícias [3].
Com base no que foi verificado, é possível perceber que os
documentos referidos estão voltados aos propósitos mencionados, entretanto,
para que se consolide o entendimento, faz-se necessário abordar o Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos a seguir.

3.4- Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos – PNEDH


é um compromisso do Estado no sentido de promover ações na área de
Direitos Humanos, voltadas para a educação. Nos termos da apresentação do
Plano, temos que:

[...] é dever dos governos democráticos garantir a educação de


pessoas com necessidades especiais, a profissionalização de jovens
e adultos, a erradicação do analfabetismo e a valorização dos(as)
educadores(as) da educação, da qualidade da formação inicial e
continuada, tendo como eixos estruturantes o conhecimento e a
consolidação dos direitos humanos. (PNEDH, 2006, p.11)

Assim, o PNEDH visa à formação do sujeito de direitos e a


promoção de uma cultura de paz, fundada na democracia e cidadania,
edificada em diversos espaços. São estabelecidas concepções, diretrizes,

89
princípios e linhas de ação em cinco eixos que são Educação Básica;
Educação Superior; Educação Não Formal; Educação dos Profissionais dos
Sistemas de Justiça e Segurança Pública e Educação e Mídia, a fim de
alcançar seus objetivos. Nesse sentido, interessa examinar o que o PNEDH
institui para a Educação Básica, a qual engloba crianças e adolescentes.

4- PNEDH e a Educação Básica

Um dos eixos de atuação do PNEDH é a educação básica, a qual


envolve diretamente o público infantil e jovem. As propostas de ação neste
eixo estão estruturadas em dois tópicos: concepção e princípios e ações
programáticas. Cumpre avançar fazendo breve abordagem sobre os pontos
referidos.

4.1- Concepção e princípios do PNEDH para a Educação Básica

O PNEDH destaca inicialmente que a aprendizagem na EDH vai


além dos aspectos cognitivos, mas transcende para o enfoque do
desenvolvimento social e emocional. Indica que deve envolver temas
relacionados com os campos da educação formal, escola e procedimentos
pedagógicos, bem como agendas que prevejam ações pedagógicas
direcionadas para o respeito e valorização da diversidade, conceitos de
sustentabilidade e formação de cidadania ativa (PNEDH, 2008).
Ainda no âmbito das concepções, o documento define que a EDH
deve ser promovida em três dimensões. A primeira dimensão se refere a
conhecimentos e habilidades a serem desenvolvidos pelos alunos como
compreensão dos direitos humanos e dos mecanismos existentes para a sua
proteção. A segunda dimensão está relacionada ao desenvolvimento de

90
valores, atitudes e comportamentos que respeitem estes direitos e, por fim, a
terceira dimensão está ligada a ações que desencadeiem atividades de
promoção, defesa e reparação das violações de direitos humanos (PNEDH,
2008).
Para alcançar os objetivos, anteriormente descritos, uma série de
princípios norteadores é considerada como fundamental para o alcance destes
propósitos na educação básica. A saber:

a) a educação deve ter a função de desenvolver uma cultura de


direitos humanos em todos os espaços sociais;
b) a escola, como espaço privilegiado para a construção e
consolidação da cultura de direitos humanos, deve assegurar que os
objetivos e as práticas a serem adotados sejam coerentes com os
valores e princípios da educação em direitos humanos;
c) a educação em direitos humanos, por seu caráter coletivo,
democrático e participativo, deve ocorrer em espaços marcados
pelo entendimento mútuo, respeito e responsabilidade;
d) a educação em direitos humanos deve estruturar-se na
diversidade cultural e ambiental, garantindo a cidadania, o acesso
ao ensino, permanência e conclusão, a equidade (étnico-racial,
religiosa, cultural, territorial, físico-individual, geracional, de
gênero, de orientação sexual, de opção política, de nacionalidade,
dentre outras) e a qualidade da educação;
e) a educação em direitos humanos deve ser um dos eixos
fundamentais da educação básica e permear o currículo, a
formação inicial e continuada dos profissionais da educação, o
projeto político-pedagógico da escola, os materiais didático-
pedagógicos, o modelo de gestão e a avaliação;

91
f) a prática escolar deve ser orientada para a educação em direitos
humanos, assegurando o seu caráter transversal e a relação
dialógica entre os diversos atores sociais. (PNEDH, 2008, p. 32).

O que se depreende dos princípios propostos é que apontem no


sentido de consolidar, já na educação básica, conceitos que, muitas vezes, só
seriam abordados em níveis mais avançados de escolaridade. Assim, pretende
esta política, situar crianças e jovens, desde o início de sua formação, em uma
cultura pautada pela diversidade cultural e ambiental, focada na equidade e
solidariedade. O Plano almeja atingir estes objetivos através de ações
programáticas abordadas a seguir.

4.2-Ações Programáticas do PNEDH para a Educação Básica

As ações programáticas previstas no Plano foram especificadas em 27


tópicos, dentre os quais estão elencadas a inserção da EDH nas diretrizes
curriculares da educação básica; integração de seus objetivos a recursos,
metodologias e formas de avaliação dos sistemas; o desenvolvimento de uma
pedagogia participativa; incentivo para a utilização de mecanismos que
respeitem os direitos humanos e sua prática no sistema de ensino; tornar a
EDH um elemento relevante para a vida de alunos e trabalhadores da área da
educação, de modo a demonstrá-lo como algo cotidiano.
Verifique-se que é prevista a formação inicial e continuada de
trabalhadores, tanto nas redes de ensino quanto em instituições e unidades de
atendimento e internação de adolescentes em cumprimento de medida sócio-
educativa, alcançando docentes, não docentes, gestores e leigos.
O foco das ações está na inclusão no currículo escolar de temas ligados
ao gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiências,

92
entre outros, bem como todas as formas de discriminação e violações de
direitos. Prima, em síntese, pela equidade nas relações, pesquisa e integração
de diversos atores sociais no intuito de banir todas as formas de violência e
punições corporais.
São ações de profunda relevância e temas que urgem serem discutidos,
pois o contexto escolar da atualidade retrata várias condições que reproduzem
a sociedade desigual e complexa onde crianças e adolescentes estão inseridos,
as quais não podem ser dissociadas da sua trajetória escolar e de sua
constituição como aluno.

5-O contexto da escola básica na atualidade e aspectos da EDH na


construção da cidadania

O contexto da escola básica perpassa por muitas crises e êxitos. Ao


mesmo tempo em que se experimenta uma maior cobertura, com maior
número de alunos matriculados, também crescem problemáticas de diversas
espécies: a crise nos modelos educacionais, cumprimento de metas que não
traduzem uma eficiência da aprendizagem e cenários de violência e exclusão.
Não raro, a imprensa noticia agressões físicas e psicológicas entre
alunos e professores ou até mesmo entre alunos. Há locais em que os
profissionais da educação, amedrontados, não possuem sequer condições de
pisar em sua sala de aula perante as constantes ameaças dos alunos. Em
outros casos o bullying (assédio moral) se consolida entre alunos causando
diversos transtornos a quem sofre o constrangimento. Entretanto, há que se
tomar cuidado, pois vítima e agressor se confundem, eis que, na maioria das
vezes, são produtos de uma realidade perversa de exclusão social que assombra
a sociedade de modo geral.

93
Como bem coloca Abramovay (2002), a compreensão da violência nas
escolas exige a análise de uma série de fatores externos e internos. A autora
enumera como fatores externos as questões de gênero, raciais, meios de
comunicação e espaço em que a escola se insere; ainda define os fatores
internos como série, idade e nível de escolaridade do aluno, bem como as
regras e disciplinas do projeto pedagógico, o impacto dos sistemas de punição
e comportamento dos professores em relação aos alunos e vice-versa.
Nesse sentido, resta claro que a violência crescente que permeia nos
cenários da educação básica é campo extremamente complexo e rico em
atores que fazem parte deste processo. Assim, há muito para refletir e
construir no sentido de transformar esta realidade social.
A Educação em Direitos Humanos é uma proposta que vem ao
encontro da necessidade de modificação de valores e cultura de respeito entre
os atores sociais. Incidindo na qualificação dos professores, apresenta-lhes
uma nova ótica de sua própria realidade, da sua escola e alunos; voltadas para
os estudantes da educação básica, esclarece e cultiva novos paradigmas,
demonstra que é possível conviver de forma pacífica com as diferenças e ter
presente os Direitos Humanos como algo próximo de si, de sua propriedade.
Desde que foi criado o PNEDH, as suas temáticas deveriam ser
tratadas de forma transversal nos diversos conteúdos ministrados, mas não
eram assuntos obrigatórios no currículo escolar. Todavia, em maio de 2012, o
Conselho Nacional de Educação estabeleceu as diretrizes nacionais para a
Educação em Direitos Humanos, as quais preveem que estes assuntos sejam
de fato abordados, quer de forma transversal ou como disciplina específica.
Nesse sentido a resolução define, inclusive que:

Na Educação Básica, por exemplo, o CNE sugere que o ensino


dos Direitos Humanos se dê por meio da discussão de problemas

94
da comunidade, como saneamento básico, Educação, moradia e
transporte, entre outros. Além disso, o órgão pede que sejam
levados, para debate em sala de aula, exemplos de discriminações e
preconceitos comuns na sociedade. (MANDELLI, 2012, p.02)

Assim, a EDH é instrumento rico para a construção da cidadania,


porque vai colocar o estudante em contato direto com as questões sociais do
seu dia a dia, as quais lhe afetam de maneira imediata, fazendo com que o
mesmo reflita sobre sua própria condição seus direitos e meios de garanti-los.
Somente a partir da apropriação de seus direitos, crianças e
adolescentes assumirão seu espaço na sociedade em plenitude, gerando
transformação desta sociedade no sentido de obter condições de vida mais
justas e permeadas pela solidariedade e respeito mútuo, promovendo o acesso
aos Direitos Humanos na sua totalidade.

Considerações finais

A abordagem realizada permitiu verificar que a cidadania consiste em


um conjunto de direitos e para consolidação é necessário exercê-los em
conjunto e de forma plena. Assim, no que tange às crianças e adolescentes, a
cidadania pode ser construída a partir da escola, tanto pela socialização
quanto pelo espaço, que é oportunizado na aprendizagem de novos saberes.
Desse modo, a Educação em Direitos Humanos possui papel importante
nesta tarefa, uma vez que, promove a integração dessa parcela da sociedade
com os conceitos de liberdade e igualdade, demonstrando como é possível
conviver pacificamente em uma coletividade.
Verificou-se que através dos tempos a infância e juventude foram
caracterizadas de diferentes formas, vivenciando desde a negligência total até

95
o conceito de proteção total, no qual este público passou a ser sujeito de
direitos, recebendo um olhar mais atento do Estado, inclusive no que se
refere ao acesso à educação, ampliado sobremaneira nos últimos anos,
seguindo a proposta da Constituição Federal de 1988, também chamada de
Constituição Cidadã.
A partir deste marco, vários documentos importantes foram editados,
a fim de levar adiante a proposta de proteção e educação, neste ensaio foram
eleitos o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, o Plano Nacional de Educação e o Plano Nacional de Educação
em Direitos Humanos. Tais documentos estão intimamente relacionados
com a temática da construção da cidadania a partir da escola, tendo como
ápice destas ações o PNEDH.
Em que pese diversas divergências acerca da qualidade da escola no
país, o fato é que a cada ano a democratização do ensino se traduz em
números mais expressivos, assim, chegam anualmente às escolas crianças e
adolescentes de diferentes realidades e contextos sociais. Frequentemente,
estas diferenças resultam em conflitos de toda a sorte, o que denuncia a
necessidade premente de uma cultura para a paz promovida pela Educação
em Direitos Humanos.
Não se pretende atribuir à EDH a tarefa de “salvadora de todos os
males”, mas sim, um caminho possível e real nas mãos dos educadores para
estimular os estudantes e auxiliá-los no caminho da construção da cidadania,
já a partir do contexto escolar.

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100
Notas de fim

[1] Tabelas disponíveis em <http://www.todospelaeducacao.org.br/


educacao-no-brasil/numeros-do-brasil/brasil/>.

[2] Lei n. 10.172/2001.

[3] Notícia veiculada dia 30 de maio de 2012, no sítio eletrônico da Câmara


dos Deputados. Seção de Notícias. Disponível em:
<http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/EDUCACAO-E-
CULTURA/418711-RELATOR-CONCLUI-APRESENTACAO-DAS-
MUDANCAS-NO-PLANO-NACIONAL-DE-EDUCACAO.html>.

101
102
Quando inventamos novas ervas daninhas para
expurgar do jardim: ou, da redução da maioridade
penal sob um prisma sociológico (e político) na
modernidade líquida
When we invented new weeds to expurgate from the garden: or, concerning
the reduction of criminal majority under sociological (and politic) view in the
liquid modernity
Cuando inventamos nuevas malezas a expurgar del jardín: o la reducción de la
mayoría penal bajo un prisma sociológico (y política) en la modernidad líquida

Luiz Antônio Bogo Chies

Introdução

Há muito, a redução da maioridade penal – redução do limite etário


da imputabilidade penal dos atuais 18 anos para 16, 14 ou menos – ocupa as
pautas de debate na esfera sociojurídica brasileira.
De tempos em tempos, algum acontecimento dramático e barbaresco
reascende a discussão e a polêmica acerca do tema em toda sua potencialidade
política, jurídica e social. Nenhuma palavra, nenhuma ação, nenhuma
análise, ou mesmo punição, por mais completa, rigorosa e abrangente que
seja, conseguirá retirar o caráter dramático de muitos desses eventos. A
barbárie através da qual se constituem seus resultados e a dor que em muitos
provocam permanecerá. Tais casos, entretanto, instigam perguntas e exigem
respostas; contudo, por se produzirem em condições específicas e
especialíssimas – o que exige extrema cautela nas abordagens que suscitam –
ao mesmo tempo em que são pavios para reascender o debate, não podem ser
os únicos elementos a balizá-lo, sob o risco de se adotarem parâmetros
demasiadamente únicos e excepcionais para se enfrentar uma questão que é
tão complexa como complexas são as próprias condições de ocorrência de tais
casos limite, ou seja: a questão da redução da maioridade penal.
O risco maior de se balizar um debate acerca de tão complexa questão
a partir de casos dramáticos – e isto não retira a importância e a necessidade
de que os mesmos também estejam inseridos como elementos do debate – é o
de se deixar envolver de forma tão intensa pela passionalidade que eles nos
induzem que se acabe por perder o foco da dimensão de complexidade da
questão mais ampla.
A redução da maioridade penal e o debate a respeito dela está, em
nossa opinião, a exigir uma postura cognitiva e analítica diferenciada da que
se tem adotado com mais frequência; uma postura que, sem perder a
sensibilidade para com casos como, por exemplo, o do menino João Hélio [1],
refute o oportunismo e o sensacionalismo político e jornalístico que costuma
invadir e “vampirizar” a dor das vítimas e, alimentando-se do impacto social
provocado, mais obscurece o horizonte das respostas possíveis do que
realmente as enfrenta.
Norbert Elias (1998), sociólogo alemão, utiliza o conto “Descida ao
maelström”, de Edgar Allan Poe [2], para ilustrar a relação “engajamento e
distanciamento” no processo cognitivo e no processo de enfrentamento das
questões sociais, apontando-nos para a necessidade do exercício do
distanciamento... vale, em nosso contexto, citá-lo a partir da referência ao
conto:

Pode-se lembrar que os pescadores, enquanto estavam sendo


vagarosamente arrastados para o abismo do rodamoinho, por um

104
momento ainda flutuaram, colados às paredes do funil, junto com
os restos do naufrágio. Logo no início, os dois irmãos – o mais
moço já fora arrancado pelo temporal – estavam muito tomados
pelo medo para pensar claramente e observar atentamente o que
ocorria em torno deles. Depois de algum tempo, entretanto, assim
nos conta Poe, um dos irmãos foi capaz de vencer seus temores.
Enquanto o irmão mais velho se encolhia desamparadamente no
bote, paralisado pela vizinhança do desastre, o mais jovem
acalmou-se e começou a observar tudo à sua volta, com certa
curiosidade. Foi então, enquanto tudo considerava, quase como se
não estivesse envolvido, que notou certa regularidade de
movimentos nas peças que estavam sendo arrastadas em círculos,
juntamente com o bote. Resumindo, enquanto observava e refletia,
ele teve uma “ideia”; uma visão reveladora do processo em que
estava envolvido; e uma “teoria” começou a se formar em sua
mente. Olhando a sua volta e raciocinando, chegou à conclusão de
que os objetos cilíndricos desciam mais lentamente do que os
objetos de quaisquer outros formatos e que os menores afundavam
mais devagar do que os grandes. Baseado nesse quadro sinótico das
uniformidades do processo no qual estava envolvido e
reconhecendo a importância dessas uniformidades para sua própria
situação, tomou a iniciativa correta. Enquanto o irmão continuava
imobilizado pelo medo, ele se amarrou a um barril. Encorajando
em vão o mais velho a fazer o mesmo, pulou no mar. O bote, com
o irmão ainda nele, desceu mais rapidamente, sendo, afinal,
engolido pelo abismo enquanto o barril a que ele se amarrara
afundava muito lenta e tão gradualmente, que à medida que a
inclinação do funil se tornou menos íngreme, e a rotação da água
menos violenta, ele surgiu novamente na superfície do oceano,
retornando, afinal, à vida. (1998, p.165-166).

105
Esta ilustração nos permite sintetizar alguns pontos que adotaremos
como balizamentos para as análises que pretendemos realizar: a) é uma
postura de distanciamento – sobretudo emocional e psicológico – com o
objeto e, ou, fenômeno que permite a cognição do mesmo e a
operacionalização em suas configurações; b) o excesso do engajamento no
atual contexto – o qual também se expressa como uma cultura do medo –
resulta num obstáculo ao distanciamento, este viabilizador de uma cognição
crítica e operacional da realidade; c) o distanciamento implica processos de
controle (dos instintos, dos medos, das ansiedades etc.); d) a cognição crítica
e complexa dos fenômenos (em especial os sociais) permite uma
operacionalidade que amplia as probabilidades, mas que não elimina
totalmente os riscos e as incertezas diante das configurações que se enfrenta.

1- Invertendo a(s) questão(ões)

O que está em “jogo” quando se debate, se propõe ou se realiza a


redução da maioridade (imputabilidade) penal? Esta parece ser a questão
básica que nos é colocada; mas esta, conforme o prisma sob o qual se enfoca,
produz outros questionamentos e diferentes possibilidades de resolução.
A mais objetiva resposta que nos parece possível é que a redução da
maioridade penal permitirá que se amplie a faixa (num primeiro momento
abstrata) de brasileiros que poderão ser penalmente castigados pelo Estado,
ou seja: poderão, quando judicialmente responsabilizados por atos
considerados como delitos, serem punidos nos termos da legislação penal.
Trata-se, num primeiro momento, de responsabilizar e de aplicar
sanções negativas ao responsabilizado; mas, para além disso, aplicar sanções
negativas de caráter jurídico-penal. Tal especificidade (sanções negativas de
caráter jurídico-penal) se torna relevante na medida em que se sabe que a

106
legislação brasileira possui dispositivos normativos que responsabilizam e
sancionam (em caráter que não se pode negar como de sanções negativas, não
obstante serem denominadas como “medidas socioeducativas”) jovens abaixo
dos 18 anos quando incorrem em condutas delitivas, então chamadas de “atos
infracionais”, ou seja: o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n.º
8.069/90 (ECA).
É a presença em nosso sistema jurídico de normas capazes de
responsabilizar e sancionar adolescentes infratores que redimensiona
questionamentos e argumentos no debate proposto; passa-se a perguntar:
Pode-se sancionar penalmente menores de 18 anos? São suficientes as
medidas previstas no ECA? E se argumenta: O ECA é tolerante com os
infratores e não intimida os que pretendem transgredir a lei. O adolescente
possui discernimento do “certo e do errado”, devendo responder, portanto, no
nível penal por seus atos; argumento ao qual se agrega o fato da legislação
brasileira permitir o exercício do voto a partir dos 16 anos, como uma
confirmação da maturidade e, então, capacidade de imputabilidade.
Os contra-argumentos reforçam a existência do ECA e estabelecem
paralelismos entre as medidas por este previstas e as punições existentes no
sistema jurídico-penal. Também se escudam no argumento de ser a
maioridade penal aos 18 anos uma “cláusula pétrea” da Constituição Federal,
fato que impediria sua alteração na forma atualmente pretendida.
Os argumentos e os contra-argumentos são plausíveis; todos são fortes
em seus conteúdos, mas, igualmente, todos possuem seus pontos frágeis...
todos se esvaziam num debate que é infértil... Entretanto, sempre nos exigem
a eles enfocar. Por tal motivo, neste primeiro momento, vamos nos ater às
duas linhas principais que vislumbramos neste debate, sob a perspectiva que
nos propomos a nele contribuir: Pode-se sancionar penalmente menores de
18 anos? São suficientes as medidas previstas no ECA?

107
O ECA possui medidas de responsabilização dos adolescentes
infratores que, apesar de serem chamadas de “medidas socioeducativas”, por
ser o adolescente considerado uma pessoa em formação (e é de se lembrar dos
discursos ressocializadores, reeducadores e outros “re” que buscam sustentar a
“legitimidade” das sanções jurídico-penais modernas), são medidas,
objetivamente, similares às penais. Existe, assim, um significativo nível de
paralelismo entre as responsabilizações do ECA e as do sistema penal
aplicado aos adultos, como se pode verificar no quadro abaixo.

QUADRO 1 – Comparativo entre o sistema de sancionamento através de


medidas socioeducativas previsto no ECA e o sistema de sancionamento
através de penas previsto no Sistema Jurídico-penal brasileiro.
Estatuto da Criança e do Adolescente Sistema jurídico-penal
Finalidades das Responsabilizar; Retribuir;
sanções atuar de forma socioeducativa. prevenir;
previstas (re)inserir de forma
harmônica na sociedade.
Sanções Art. 112. Verificada a prática de ato Código Penal:
previstas infracional, a autoridade competente Art. 32. As penas são:
poderá aplicar ao adolescente as seguintes I – privativas de liberdade;
medidas: II – restritivas de direitos;
I – advertência; III – de multa.
II – obrigação de reparar o dano;
Art. 43. As penas restritivas
III – prestação de serviços à comunidade;
IV – liberdade assistida; de direitos são:
V – inserção em regime de semiliberdade;I – prestação pecuniária;
VI – internação em estabelecimento II – perda de bens e valores;
educacional; III – (vetado)
VII – qualquer uma das previstas no artigo
IV – prestação de serviços à
101, I a VI. comunidade ou a entidades
públicas;
Art. 101 V – interdição temporária
I – encaminhamento aos pais ou de direitos;
responsável, mediante termo de VI – limitação de fim de
responsabilidade; semana.
II – orientação, apoio e acompanhamento

108
temporários;
III – matrícula ou frequência obrigatória
em estabelecimento oficial de Ensino
Fundamental;
IV – inclusão em programa comunitário
ou oficial de auxílio à família, à criança e ao
adolescente;
V – requisição de tratamento médico,
psicológico ou psiquiátrico, em regime
hospitalar ou ambulatorial;
VI – inclusão em programa oficial ou
comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

Orientações em Art. 122. A medida de internação só Se o crime for doloso


casos com poderá ser aplicada quando: (intencional) a regra geral é
violência ou I – tratar-se de ato infracional aplicação de pena privativa
grave ameaça à cometido mediante grave ameaça ou de liberdade.
pessoa violência à pessoa. Se a pena aplicada não for
superior a 2 (dois) anos,
pode ser concedida a
suspensão condicional da
pena.
Orientações em Art. 122. A medida de internação só Maus antecedentes e
casos reiteração poderá ser aplicada quando: reincidência podem
de condutas I – (...) inviabilizar, mesmo nos
II – por reiteração no cometimento de crimes sem violência ou
outras infrações graves. grave ameaça à pessoa, a
aplicação de penas não
privativas de liberdade.
Orientações em Art. 122. A medida de internação só Não cumprimento de penas
casos de não poderá ser aplicada quando: não privativas de liberdade,
cumprimento I – (...) aplicadas de forma
de medidas não II – (...) substitutiva às privativas de
privativas de III – por descumprimento reiterado e liberdade, ou de condições
liberdade injustificável da medida anteriormente da suspensão, podem
imposta. acarretar a revogação ou
conversão das decisões,
com a consequente privação
da liberdade.
Tempo Nos casos do art. 122 I e II, no O tempo estipulado na
máximo de máximo, três anos, conforme art. 121 § sentença, já que a legislação

109
duração da 3.º; no caso do art. 122 III, no máximo, penal estabelece
sanção três meses, conforme art. 122 § 1.º. quantidades de penas
privativa de mínimas e máximas a cada
liberdade delito. Em casos de
condenações ou somatórios
de condenações que
ultrapassarem os 30 anos de
pena, este limite não
poderá ser ultrapassado na
execução da privação da
liberdade (artigo 75 do
Código Penal).
Tempo mínimo Não há tempo mínimo previsto, O tempo estipulado na
de duração da contudo, tem-se como prática seis sentença, já que a legislação
sanção meses, já que este é o período máximo penal estabelece
privativa de previsto para as (re)avaliações do quantidades de penas
liberdade adolescente, conforme art. 121 § 2.º. mínimas e máximas a cada
delito.
Possibilidade Sim. Através das (re)avaliações Sim. Através dos institutos
de acesso à previstas no art. 121 § 2.º. do sistema progressivo da
liberdade antes execução penal. Conforme
do tempo critérios especificados no
máximo artigo 83 do Código Penal
o Livramento Condicional
pode ocorrer em 1/3, ½ ou
2/3 da pena; contudo,
mesmo assim pode existir
revogação deste.
Fonte: Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90); Código
Penal brasileiro; Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84).

Ainda que este paralelismo não seja exato, o é muito significativo


naquilo que mais interessa ao debate da redução da maioridade penal, ou seja,
em ambos os sistemas: a) atos com grave ameaça ou violência à pessoa são –
via de regra – responsabilizados com medidas privativas de liberdade; b)
sujeitos que reiteram condutas infracionais podem ser responsabilizados com
medidas privativas de liberdade; c) sujeitos que descumprem medidas não

110
privativas de liberdade aplicadas podem ser responsabilizados com medidas
privativas de liberdade. O paralelismo ainda avança em aspecto fundamental
da sanção máxima de ambos os sistemas: d) privar da liberdade, seja nas
condições previstas de forma idealizada pela lei, seja nas péssimas condições
em que tendem a se encontrar os estabelecimentos (prisionais ou
socioeducativos), produz sensações e processos sociopsicológicos similares em
termos de socializações e sofrimentos.
Por fim, o paralelismo ainda existe, só que, neste ponto, fragiliza-se
nos “crimes” muito violentos e nos casos de reiterados atos e condenações, em
relação ao tempo de privação de liberdade que o “responsabilizado” poderá ser
submetido. Exemplos vários podem ser elaborados tanto para comprovar
como para atacar esta última afirmação. Motivo pelo qual, para evitar
descrevê-los, reforçamos que tal paralelismo (tempo de duração da privação
da liberdade) só se fragiliza em crimes muito violentos ou nos casos de
reiterados atos e condenações.
Voltaremos adiante com outras reflexões a respeito desses paradoxos e
paralelismos, por enquanto, avançaremos na segunda linha de argumentos e
contra-argumentos para, então, atingirmos o aspecto que nos parece ser o
mais fundamental no debate e análise da redução da imputabilidade penal.
O adolescente possui discernimento do “certo e do errado”, devendo
responder, portanto, no nível penal por seus atos. Concordamos com a
primeira parte do argumento. Sim, o adolescente possui discernimento do
“certo e do errado”, possui maturidade para ser responsabilizado (e o é!), mas
isto deve implicar ampliar a faixa de imputabilidade penal?
Antes de seguir em qualquer contraponto, é preciso esclarecer uma
posição que me é muito pessoal: estou convicto de que podemos trabalhar
com toda uma outra lógica de enfrentamento da conflitualidade que não
precise passar pelo sistema penal, o qual é um sistema de perversidades e

111
dores. Claro que uma proposta radicalmente abolicionista não é aplicável de
um dia para o outro, entretanto, podemos estabelecer práticas que nos
permitam caminhar neste sentido. O sistema atual, contudo, parece só saber
trabalhar com demandas que conduzam a uma maior punição.
Voltando ao contraponto, e pensando nos paralelismos já apontados, o
questionamento que então nos surge é: o que se ganha, substancialmente,
numa perspectiva de enfrentamento da conflitualidade e de harmonização
social, com a redução da maioridade penal? É algo a ser respondido adiante,
pois é aqui que nos propomos a inverter o tipo de questão que se costuma
utilizar como balizadora do debate. Ao invés das questões: Pode-se (ou é
adequado) sancionar penalmente menores de 18 anos? São suficientes as
medidas previstas no ECA? Propomos a seguinte pergunta: Por que nossa
sociedade (nós) quer(emos) tanto que os adolescentes sejam punidos nos
termos do Direito Penal, e naquilo que de mais penal tem este “Direito”?

2- A ordem, o jardim e a bulimia: um contexto para a redução da maioridade


penal

Vivemos, ainda, na chamada Sociedade Moderna (mesmo que esta


modernidade se esteja cambiando), ou seja, nossas estruturas sociais, nossas
instituições, dinâmicas e valores dominantes estão moldados sob o que se
pode chamar de paradigma da modernidade (ou modernista), o qual tem
como sua principal promessa produzir o “bem-estar” generalizado.
A modernidade, que talvez não possa ser datada com exata precisão
em seu momento inaugural, mas que inegavelmente é resultado de uma série
de processos de trânsito entre o modelo societário anterior e o atual, processos
que envolvem tanto as revoluções científica e industrial como a própria
Revolução Francesa – dimensões distintas do transitar de um modelo ao

112
outro –, pode também ser considerada tanto como o resultado de um processo
de apropriação do mundo pelo homem, que se percebe potente na sua
capacidade cognitiva, inventiva e tecnológica, como a busca do homem por
um mundo apropriado, adequado, “perfeito”!
Na visão de Zygmunt Bauman:

Dentre a multiplicidade de tarefas impossíveis que a modernidade


se atribuiu e fizeram dela o que é, sobressai a da ordem (mais
precisamente e de forma mais importante, a da ordem como tarefa)
como a menos possível das impossíveis e a menos disponível das
indispensáveis – com efeito, como o arquétipo de todas as outras
tarefas, uma tarefa que torna todas as demais meras metáforas de si
mesmas (1999a, p.12).

Ordem... ainda acompanhando Bauman:

[...] significa monotonia, regularidade, repetição e previsibilidade;


dizemos que uma situação está “em ordem” se e somente se alguns
eventos têm maior probabilidade de acontecer do que suas
alternativas, enquanto outros eventos são altamente improváveis
ou estão inteiramente fora de questão. Isso significa que em algum
lugar alguém (um Ser Supremo pessoal ou impessoal) deve
interferir nas probabilidades, manipulá-las e viciar os dados,
garantindo que os eventos não ocorram aleatoriamente. (2001,
p.66).

Jock Young, expondo as premissas fundamentais do paradigma


“modernista”, permite-nos vislumbrar o Estado como esse “Ser Supremo
impessoal” a quem cabe intervir nas probabilidades, já que tal paradigma

113
atribui ao Estado o papel de “intervir de modo a realizar passo a passo a
justiça social, como parte de um progresso metanarrativo” (2002, p.19).
Adequada, nessa perspectiva, a metáfora utilizada por Bauman para
sintetizar o sentido da modernidade – a Metáfora do Jardim, ou da Lógica do
Jardineiro –, e tal, seja para pensarmos a atuação do Estado, seja para
verificarmos a cultura da modernidade como uma cultura de jardinagem e
paisagismo:
A cultura moderna é um canteiro de jardim. Define-se como um
projeto de vida ideal e um arranjo perfeito das condições humanas.
Constrói sua própria identidade desconfiando da natureza. Com
efeito, define a si mesma e à natureza, assim como a distinção
entre as duas, por sua desconfiança endêmica em relação à
espontaneidade e seu anseio por uma ordem melhor,
necessariamente artificial. À parte o plano geral, a ordem artificial
do jardim precisa de instrumentos e matérias-primas. Também
precisa de proteção contra a ameaça implacável de – óbvio – uma
desordem. A ordem concebida originalmente como um projeto,
determina o que é um instrumento, o que é matéria-prima, o que é
inútil, o que é irrelevante, o que é perigoso, o que é erva daninha e
o que é uma praga. Classifica todos os elementos do universo pela
relação que têm com ela. Tal relação é o único sentido que lhes
concede e tolera – e a única justificativa para os atos do jardineiro,
diversos como as próprias relações. Do ponto de vista do plano
geral, todas as ações são instrumentais, enquanto todos os objetos
de ação são coisas que facilitam ou estorvam o plano. (1998a,
p.115-116).

O Estado moderno nasceu como uma força missionária,


proselitista, de cruzada, empenhado em submeter as populações
dominadas a um exame completo de modo a transformá-las numa

114
sociedade ordeira, afinada com os preceitos da razão. A sociedade
racionalmente planejada era a causa finalis declarada do Estado
moderno. O Estado moderno era um Estado jardineiro. Sua
postura era a do jardineiro. Ele deslegitimou a condição presente
(selvagem, inculta) da população e desmantelou os mecanismos
existentes de reprodução e autoequilíbrio. Colocou em seu lugar
mecanismos construídos com a finalidade de apontar a mudança
na direção do projeto racional. O projeto, supostamente ditado
pela suprema e inquestionável autoridade da Razão, fornecia os
critérios para avaliar a realidade do dia presente. Esses critérios
dividiam a população em plantas úteis a serem estimuladas e
cuidadosamente cultivadas e ervas daninhas a serem removidas ou
arrancadas. Satisfaziam as necessidades das plantas úteis (segundo
o projeto do jardineiro) e não proviam as daquelas consideradas
ervas daninhas. Consideravam as duas categorias como objetos de
ação e negavam a ambas os direitos de agentes com
autodeterminação. (1999a, p.29).

Assim, como se percebe, todo projeto ordenador, todo o projeto


paisagístico tem seu preço, enquanto se revela também como um sonho de
pureza:

A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos


que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro,
impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem –
isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em seu justo
lugar e em nenhum outro. [...]
Há, porém, coisas para as quais o “lugar certo” não foi reservado
em qualquer fragmento da ordem preparada pelo homem.
(BAUMAN, 1998b, p.14).

115
A modernidade – apesar de suas premissas a indicarem como uma
sociedade de inclusão social e bem-estar generalizados – por se pautar e se
propor como um projeto ordenador e paisagístico (de jardinagem) não se
compatibiliza com o abrir mão da categorização de seus elementos, inclusive
e, sobretudo, humanos, de atribuir lugares determinados às categorias
estabelecidas e de, eventualmente (ou mesmo como regra), não reservar lugar
nenhum a algumas dessas categorias. Assim como no jardim existe a grama,
que não ocupa o lugar privilegiado das flores, assim como existe a erva-
daninha, que deverá ser expurgada, também na ordem social da modernidade
existem lugares distintos para categorias distintas, e categorias às quais não se
reservou nenhum lugar, as quais são excedentes como o são as ervas-daninhas.
O sonho da modernidade, como capaz de realizar suas promessas
gerais de inclusão e bem-estar, manteve-se até o quarto final do século XX,
impulsionado, sobretudo, pela imagem de países europeus e dos Estados
Unidos da América que, em especial, no “pós segunda guerra mundial”,
experimentaram o que se pode chamar dos “anos dourados”. Contudo,
processos descritos como a “revolução cultural do individualismo e a crise
econômica e restruturação dos mercados de trabalho do mundo industrial
moderno” (YOUNG, 2002) se combinam para escancarar a inviabilidade do
paradigma moderno em relação às promessas feitas, bem como para produzir
uma nova transição, “da modernidade à modernidade recente [a qual] pode
ser vista como um movimento que se dá de uma sociedade inclusiva para uma
sociedade excludente” (YOUNG, 2002, p.23). Entretanto, esta é uma
sociedade excludente que se tornou bulímica (YOUNG, 2002), pois inclui a
tudo e todos no consumo de suas promessas e nos desejos, para depois
vomitar os excedentes.
Este, em nosso entendimento, é o “pano de fundo” no qual se deve
inserir o debate e a análise da redução da maioridade penal, ou seja, o

116
contexto de um modelo societário que, resistente em abandonar a ilusão do
sonho da modernidade e em perceber o paradoxo e a ambiguidade da ordem
como projeto de inclusão, mas necessária prática de exclusão, apressa-se em se
proteger daqueles que – categorizados pela própria dinâmica e pressupostos
do projeto como ervas-daninhas – são considerados excedentes.
Neste contexto, não é de se estranhar (ainda que com tal não se possa
compactuar) que as políticas criminais abandonem seus discursos “ético-
teleológicos”, ou os tornem quase esquizofrênicos, e construam suas
estratégias e fábricas de exclusão.

3- A redução da maioridade penal e as ilusórias máscaras das “boas


intenções”

“De boas intenções o inferno está cheio” [3], diz o ditado popular; “Os
grandes crimes, frequentemente, partem de grandes ideias”, alerta Bauman; e
prossegue:

Poucas grandes ideias se mostram completamente inocentes


quando seus inspirados seguidores tentam transformar a palavra
em realidade – mas algumas quase nunca podem ser abraçadas sem
que os dentes se descubram e os punhais se agucem. Entre esses
tipos de ideia, ocupa posição privilegiada a da visão de pureza.
(1998b, p.13).

Há um discurso de boas intenções no que diz respeito à redução da


maioridade penal; ele está representado, sobretudo, através daqueles que, não
podendo se fazer de cegos perante as contradições do sistema punitivo (em
especial o carcerário), iludem-se com o “mito do bom presídio” e pleiteiam

117
que se reduza a maioridade penal, mas com o acompanhamento da melhoria
dos nossos estabelecimentos prisionais.
A crença à qual o discurso das boas intenções se vincula – se quisermos
realmente acreditar que nele existem boas intenções – é a acrítica crença nas
máscaras ilusórias das chamadas filosofias “re” (ressocialização; readaptação;
reinserção; reeducação; repersonalização, etc.), as quais, como bem analisa
Eugenio Raúl Zaffaroni (2001), embasam-se e sustentam-se na ideia de que
algo falhou no (e em relação à personalidade do) sujeito que infringiu a lei,
justificando-se uma segunda intervenção, a qual, fora do contexto ideológico,
remete a uma sociedade em equilíbrio orgânico, contra a qual se insurgiu o
indivíduo a ser tratado e socialmente “curado”.
A força das filosofias “re”, como máscaras de tolerabilidade à punição,
decorre tanto da sua presença nas “boas intenções” do imaginário social como
nos próprios discursos legais. Como já expomos, a medida de
responsabilização dos adolescentes infratores se denomina “socioeducativa”
por se propor como necessária em atuar numa personalidade em formação e
que, então, já estaria se demonstrando falha – neste discurso só não se fala em
ressocialização pela atribuição dessa condição diferenciada ao adolescente:
pessoa em formação. Já a Lei de Execução Penal – Lei 7.210/84 (LEP), que
trata da execução das penas impostas aos “maiores” – apesar de não utilizar o
prefixo “re” expressamente no seu texto normativo, não deixa de fazer menção
à sua finalidade de “proporcionar condições para a harmônica integração
social do condenado” (conforme artigo 1º); e, no item 14 de sua Exposição de
Motivos. Entretanto, é mais explícita ao assumir que as penas devem “realizar
a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à comunidade” (grifos no
original).

118
Contudo, o que nos surpreende é que mesmo neste sentido – ingênuo,
crente e acrítico benevolente – a redução da maioridade penal se apresentaria
desnecessária e contraditória.
O já demonstrado paralelismo entre a perspectiva de aplicação de
medidas socioeducativas e penas nos remete a verificar que os dois mais
imediatos e publicamente sensíveis efeitos práticos da redução da maioridade
penal serão: a) a viabilização do encarceramento de adolescentes no sistema
prisional; b) a expectativa desse encarceramento se prolongar por mais de três
anos.
Diante de tais efeitos, um primeiro argumento para se contrapor à
redução da maioridade penal – um argumento que acompanha a crença
acrítica nas filosofias “re” – nos levaria a questionar da necessidade de tempo
superior a três anos para que algum resultado positivo de “tratamento” fosse
alcançado. Não obstante isso, outros elementos se tornam mais contundentes
para se verificar a inadequabilidade da proposta de redução.
Tem-se descrita, desde os estudos de Donald Clemmer (1970) [4], a
prisionalização como um efeito do encarceramento, entendendo-se esta como
um processo socializador similar à assimilação, por meio do qual os costumes,
hábitos, valores da comunidade e ambiente prisional são assumidos pelo preso
no período de encarceramento. Assim, mesmo sob a crença das filosofias “re”,
ter-se-á que, como expõe Cezar Roberto Bitencourt:

[A prisionalização] Trata-se de uma aprendizagem que implica em


um processo de “dessocialização”. Este processo dessocializador é
um poderoso estímulo para que o recluso recuse, de forma
definitiva, as normas admitidas pela sociedade exterior. A
prisionalização sempre produzirá graves dificuldades aos esforços
que se fazem em favor de um tratamento ressocializador. A

119
prisionalização é um processo que leva a uma meta diametralmente
oposta a que pretende alcançar o objetivo resocializador. (1993,
p.171).

Quanto mais tempo no ambiente prisional, maiores os efeitos


dessocializantes sobre o indivíduo, ou, em outros termos, os efeitos
socializantes na cultura carcerária.
Por outro lado, neste debate, deve-se levar em conta, também, a
constatação da plasticidade do tempo na sociedade atual, a variabilidade social
do tempo, sobretudo, no sentido de sua aceleração, fomentada pela
potencialização tecnológica, como elementos a serem considerados na
perspectiva das então pretendidas “boas intenções” das filosofias “re”.

A evolução tecnológica, ao mesmo tempo em que rompeu


barreiras, dirimindo as noções de espaço, reduziu o tempo,
obrigando o indivíduo a processos constantes de reciclagem sob
pena de incapacitação compreensiva da realidade. O tempo de 30
(trinta) anos – máximo da pena privativa de liberdade cominada
no país – nos anos quarenta, ou inclusive no início dos anos
oitenta [ainda vigente], não corresponde mais à noção atual de
idêntico período. (CARVALHO, 2001, p.208).

Com efeito, no contexto tecnológico atual, as penas longas se


traduzem, cada vez mais, como penas de incapacitação do indivíduo à
(re)integração social numa perspectiva de verdadeira inclusão e, portanto, não
de mera inclusão-precária.
Ainda no que tange às modificações contemporâneas da relação
espaço-tempo, Paul Virilio (1993) se refere a uma nova dimensão do espaço –
o espaço dromosférico [5] –, o qual se perfaz, sobretudo, a partir de um

120
tempo que, numa dinâmica relacional, privilegia mais a velocidade no
percurso (distância-velocidade) do que a dimensão física a ser percorrida ou
abrangida. Como correlata a esta noção, Virilio menciona a “poluição
dromosférica”: “[...] aquela que atinge a vivacidade do sujeito, a mobilidade
do objeto, atrofiando o trajeto a ponto de torná-lo inútil” (1993, p.115).
Temos a prisão, no contexto atual, como potencializado agente de poluição
dromosférica aos que nela se encontram.
Poderíamos ampliar a grade de argumentos acerca do quão
contraditória se mostra a redução da maioridade penal (no contexto das ditas
“boas intenções” das filosofias “re”) agregando considerações sobre a
estigmatização e rotulação provocadas pelo apenamento e pelo
aprisionamento, pelos processos chamados de criminalização secundária,
através de maiores detalhamentos das perversidades em termos de processos
des-re-socializadores que as estratégias de adaptação carcerária implicam.
Não prosseguiremos nesse sentido, contudo, não só por entendermos que o
aqui exposto já se propõe como suficiente para uma reflexão mais crítica
acerca das máscaras ilusórias dos discursos benevolentes, mas, também, para
que possamos avançar no enfrentamento da questão que julgamos ser a mais
importante neste debate, ou seja, aquela que propusemos ao final do primeiro
tópico: Por que nossa sociedade (nós) quer(emos) tanto que os adolescentes
sejam punidos nos termos do Direito Penal, e naquilo que de mais penal tem
este “Direito”?

4- Ordem no jardim: ocupe seu lugar, ou seja excluído!

Vinícius Caldeira Brant (1994), em obra que relata os resultados de


uma pesquisa sobre o trabalho no sistema prisional de São Paulo, faz um
alerta que – não obstante sua obviedade – deve ser sempre reproduzido

121
quando se debatem questões punitivas, dada a contaminação por estereótipos
que estes debates se permitem: “Cumpre ressaltar, desde logo, que estamos
tratando da população encarcerada e não da categorias social 'criminosos'. Há
muitos delinquentes habituais à solta, assim como muitos presos que apenas
ocasionalmente 'deram um mal passo'”. (1994, p.45).
A fala de Brant é mais um alerta para que reconheçamos a seletividade
do sistema de justiça criminal, ou seja, o fato de que nem todos aqueles que
cometem infrações à lei penal são alcançados ou atingidos por suas
instituições e intervenções punitivas.
Os estereótipos do delinquente – presentes no senso comum da
opinião pública e também nos operadores das instâncias do sistema de justiça
criminal (polícia, judiciário, sistema prisional) – favorecem que a seletividade
privilegie determinadas camadas sociais como “alvos” da intervenção penal, o
que, por sua vez, realimenta os próprios estereótipos.

Também os estereótipos que os policiais têm do criminoso ou do


infrator contumaz das leis constituem referencias importantes para
sua atuação; e, como os indivíduos de status socioeconômico baixo
são aqueles que mais se ajustam a tais estereótipos, são eles que
constituem os alvos por excelência da repressão policial.
(COELHO, 2005, p.276).

Quando acessamos os dados de perfis das populações encarceradas, ou


mesmo das populações sancionadas penalmente (atingidas por algum tipo de
punição através do sistema de justiça criminal), o que se verifica são
significativos traços de vulnerabilidade social, os quais se traduzem como
populações jovens, de baixa escolaridade, baixa renda econômica e que

122
acessam oportunidades de inserção no mundo do trabalho por vias precárias,
informais e, inclusive, ilícitas.
Esses traços de vulnerabilidade social contribuem também para que
Edmundo Campos Coelho possa assim se manifestar, realimentando a
compreensão da seletividade do sistema de justiça criminal:

O que ocorre, e está refletido nas estatísticas oficiais, é que as


pessoas de classe mais baixa não possuem as imunidades
institucionais que protegem as de classe média e alta e, por isso,
têm maiores probabilidades de serem detectadas pela polícia,
detidas, processadas e condenadas. (2005, p.279).

O que se está aqui a expor não nos deve conduzir a um sentido de


proposta de isenção de responsabilidade àqueles que produzem lesões a
terceiros, ou seja, não estamos propondo que a vulnerabilidade social seja uma
causa de não responsabilização, o que buscamos é incluir no debate – através
de um distanciamento das passionalidades (como vimos na referência à
ilustração de Norbert Elias com o conto de Edgar Alan Poe) – a percepção
das regularidades do fenômeno punitivo Estatal (a punição através da lei
penal), para que possamos não só compreender a realidade, desenvolver
teorias, mas também, e, sobretudo, adotar estratégias mais racionais de
enfrentamento desta questão social que se traduz como violência.
Nossas políticas criminais e de segurança pública, entretanto,
caminham num percurso inverso. O que podemos perceber com clareza são
duas estratégias complementares: a) a punição como controle e
apaziguamento de determinadas camadas sociais; b) a punição como exclusão
social daqueles que são considerados excedentes.

123
Na primeira estratégia, o discurso ainda se propõe como sustentado
nas filosofias “re” que apontamos: ora, se a sociedade moderna é marcada por
projetos de produção da ordem, se o desenvolvimento do projeto ordenador,
como a realização do “sonho da pureza”, atribui lugares e posições para cada
elemento e categoria social, estar fora do lugar significa produzir desordem.
Numa sociedade deste tipo a reintegração, a reinserção social representa a
recondução do indivíduo ao seu lugar, dentro do projeto determinado de
ordem social.
Trata-se, então, aproveitando a “metáfora do jardim”, de fazer com
que aqueles que foram categorizados para ocupar o lugar da grama – sustentar
o peso do canteiro sem nunca ocupar o lugar de destaque das flores –
contentem-se em este lugar ocupar, mantendo-se no jardim sem serem
“desfuncionais” e causadores de “desordem”.
A análise do trabalho destinado aos presos (como suposta estratégia
“re”socializante, de “re”inserção, de “re”integração) nos conduz à afirmação
acima. E tal, desde suas primeiras etapas, pois, como registra Michel
Foucault:

Em sua concepção primitiva o trabalho penal não é o aprendizado


deste ou daquele ofício, mas o aprendizado da própria virtude do
trabalho. Trabalhar sem objetivo, trabalhar por trabalhar, deveria
dar aos indivíduos a forma ideal do trabalhador. (1993, p.133).

Brant (1994), sobre a realidade do estado de São Paulo na década de


1980, expõe:

[o trabalho encarcerado] É um trabalho vazio, inútil tanto do


ponto de vista do trabalhador, como dos objetivos propostos pela

124
organização do sistema. As aspirações profissionais têm base na
experiência ocupacional anterior e no julgamento que os detentos
fazem de si, enquanto futuros egressos numa sociedade que os
aguarda de pé atrás. Essa conclusão aponta para o paradoxo da “re-
socialização”, cujo método é a segregação do indivíduo do mundo
social, seja este o mundo das relações de trabalho, seja o das
relações sociais mais abrangentes. Aponta ainda para a
inconsistência das propostas de ampliação do trabalho
encarcerado. Ele não passa de trabalho forçado, poder-se-ia dizer
escravo, irracional tanto do ponto de vista de sua utilidade como
no de sua retribuição por um salário. (1994, p.139).

Poder-se-ia dizer que o quadro atual já é distinto daquele registrado


por Brant, mas os dados da realidade não nos permitem assim proceder.
Como já registramos noutro estudo (CHIES, 2008), a própria escassez de
vagas de trabalho no sistema prisional é assenhorada pelo sistema
penitenciário como uma forma de capitalização da disciplina do preso.
Quanto às vagas existentes, via de regra, representam o trabalho explorado
por empresas privadas, que não contratam os presos-trabalhadores quando
estes deixam o presídio, o trabalho vazio e inútil (como mencionado por
Brant) ou o trabalho meramente recondutor do preso à condição (e ao
habitus) de categoria social marginalizada, subalternizada e precariamente
incluída na sociedade.
Uma análise que realizamos no trabalho das mulheres encarceradas no
Presídio Regional de Pelotas (RS) demonstrou-nos que:

A situação de trabalhadoras no contexto pré-delito, que faz parte


do perfil das mulheres encarceradas, não foi suficiente, diante dos
critérios da precarização do mundo do trabalho e da

125
vulnerabilidade social, para afastá-las da seletividade criminal. A
condição de trabalhadoras no cárcere, pelas características das
modalidades e formas de trabalho oferecidas, em nada favorece à
alteração da trajetória de vida dessas mulheres.
As faxineiras voltarão a fazer faxinas em “casas de família” (caso
conseguirem esconder o estigma adquirido); as costureiras poderão
fazer “trabalho para vender fora”; as artesãs serão vendedoras
ambulantes de seu artesanato... e todas estarão “re”integradas e
“re”inseridas nos seus “devidos lugares” no projeto ordenador da
sociedade moderna e capitalista; se possível, apaziguadas em seus
anseios de ascensão social, contudo, ainda consumidoras... caso
contrário, clientes preferenciais de uma nova intervenção estatal.
(CHIES; VARELA, 2009, p.28).

Contudo, e não obstante o exposto, atualmente, a prisão deixa de ser o


locus principal de realização das estratégias de controle e apaziguamento das
camadas sociais subalternizadas, as quais se redimensionam tanto através das
chamadas “penas alternativas”, como, mais recentemente, através das
propostas de “monitoramento eletrônico” (pulseiras, tornozeleiras e adereços
similares). A prisão, cada vez mais, torna-se um local de exclusão social dos
excedentes, o que nos remete à segunda estratégia de nossas vigentes políticas
criminais e de segurança pública.
Bauman (1999b), também se apoiando nos trabalhos de Nils Christie,
Thomas Mathiesen, Loïc Wacquant, entre outros, permite-nos vislumbrar a
prisão de Pelican Bay – no estado americano da Califórnia – como o símbolo
deste “novo” paradigma punitivo. Esta instituição, sustenta Bauman,
inteiramente automatizada e aparelhada para o isolamento do apenado,
“parece uma versão atualizada, super high-tech e sofisticada do Panóptico, a

126
suprema encarnação do sonho de Bentham de controle total através da
vigilância total” (1999b, p.116), ao que complementa:

A prisão de Pelican Bay não foi projetada como fábrica de


disciplina ou do trabalho disciplinado. Foi planejada como fábrica
de exclusão e de pessoas habituadas à sua condição de excluídas. A
marca dos excluídos na era da compressão espaço-temporal é a
imobilidade. O que a prisão de Pelican Bay leva quase à perfeição é
a técnica da imobilização. (1999b, p.121).

No Brasil, o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), implantado em


nível nacional em 2003, e recepcionado com festejos, é um resultado concreto
destas novas políticas criminais e de segurança pública, seguem-se a ele as
Penitenciárias Federais, bem como os estabelecimentos carcerários estaduais
de segurança-máxima, projetados e dinamizados para se constituírem como
eficientes “fábricas de exclusão”, para além da própria degradação e exclusão
que é característica inerente à precariedade das prisões em nosso país.
Sob a influência da “metáfora do jardim”, podemos sintetizar o sentido
das estratégias dominantes de nossas vigentes políticas criminais e de
segurança pública numa frase: Ocupe seu lugar, o qual lhe foi destinado na
visão ordenadora do jardineiro, ou seja, excluído, expurgado!

5- Redução da maioridade penal: afinal, o que ganhamos com ela?

A infância, a juventude fazem parte das “construções/invenções


sociais” que insistimos em obscurecer como tal, tornando-as maleáveis
(inclusive através da manipulação de critérios com pretensão científica como

127
os da maturidade e do discernimento) aos limites das responsabilidades que –
“adultos” – nos disponibilizamos, aos nelas inseridos, assumir.
Se o dado natural (a “regularidade” que a natureza nos impõe ou
oferta) é de que a reprodução normal da vida biológica nos remete à
verificação de que todas as sociedades humanas necessitaram lidar com a
existência de seres jovens, os quais num período de suas vidas exigem um
compromisso maior de sustento e envolvimento por parte dos “adultos”, o
dado social é que não só as formas através das quais esse compromisso se
consolida, mas também o lapso temporal em que o mesmo é assumido são
criações e invenções sociais que envolvem multidimensionais práticas, política
e culturalmente não isentas de abandonos, segregações, “infantilizações” e
“emancipações perversas”.
O caso brasileiro é significativo na compreensão dessas invenções
sociais, já que, inclusive, através de seu ordenamento jurídico (vejam-se os
Códigos de Menores de 1927 e 1979), ao longo do século XX (e até a
pretensa superação através do ECA), permitiu-se criar duas infâncias distintas
(bem sintetizadas por Irene Bulcão):

A primeira, associada ao conceito menor, [era] composta por


crianças de famílias pobres, que perambulam livres pela cidade,
que são abandonadas e às vezes resvalam para a delinquência,
sendo vinculadas a instituições como cadeias, orfanatos, asilos, etc.
Uma outra associada ao conceito de criança, [estava] ligada a
instituições como família e escola e não precisa de atenção
especial. (2002, p.69).

Mas, não obstante, esse já identificado paradoxo do caso brasileiro, o


que importa é reconhecer que a Modernidade (com sua racionalidade e

128
incessante avanço tecnológico), frente às angústias e aos medos existenciais da
pré-modernidade, às privações materiais que as forças da natureza e as
rudimentares técnicas de produção impunham, representou uma promessa e
uma perspectiva de bem-estar que permitiu, inclusive, “inventar” a infância e
a juventude amplas e plenas. Os humanos “crianças/jovens” – imputados
como seres em formação de personalidade e ainda imaturos para o mundo da
razão – foram, então, (em promessa e em perspectiva) liberados das angústias,
responsabilidades e seriedades da vida “adulta” e até a vida “adulta”, seus
únicos compromissos: gozar, brincar, estudar, permitirem-se ser disciplinados
para serem o futuro da nação.
Em tese, e ao menos no plano programático, justamente com o ECA é
que o Brasil chega (tardiamente) a esse estágio amplo e pleno da infância e
juventude modernas. Contudo, justamente no mesmo período no qual uma
nova transição social – de uma Modernidade Sólida para uma Modernidade
Líquida, conforme Bauman – se intensificou.
A sociedade atual é descrita por Bauman (2001; 2004; 2007) como a
da “Modernidade Líquida”, na qual tudo o que estava sólido, nas
características e padrões dominantes da etapa anterior (família, relações de
trabalho, relações interpessoais, etc.) começa a se derreter, a se tornar instável.
Esta instabilidade, somada à característica tecnológica e excludente da nossa
época, intensifica a competitividade.

A vida na sociedade líquido-moderna é uma visão perniciosa da


dança das cadeiras, jogada pra valer. O verdadeiro prêmio nessa
competição é a garantia (temporária) de ser excluído das fileiras
dos destruídos e evitar ser jogado no lixo. E com a competição se
tornando global a corrida se dá numa pista também global.
(BAUMAN, 2007, p.10).

129
Sob outra metáfora – na qual utiliza o ato de esquiar sobre gelo fino –
Bauman (2004) nos remete a compreender a postura de nossa sociedade como
a que valoriza a velocidade e a leveza (atributos necessários para que o gelo
fino não se quebre sob os pés do esquiador). Ou seja, nossa sociedade não se
dispõe a suportar nada que nos torne mais pesado ou que nos reduza a
velocidade, compromissos com os outros (inclusive afetivos) e solidariedades
se incluem na lista daquilo que, então, se despreza. É o lixo que deve ser
jogado fora para que possamos seguir nossas vidas suportando a
instabilidade..., continuarmos na dança das cadeiras.
No contemporâneo contexto, a possibilidade concreta de realização
daquelas inventadas na infância e juventude amplas e plenas (e mesmo
naquilo que de perverso possuem) ruiu e se fragilizou, do mesmo modo que as
demais promessas de bem-estar generalizado da modernidade.
Na competitividade excludente da modernidade e vida líquida, tal qual
os adultos são categorizados – como consumidores satisfatórios, precários ou
falhos, como flores, grama ou ervas-daninhas – e devem, sob sua própria
conta e risco, enfrentar a “dança das cadeiras” e se contentarem com os
lugares que lhes foram reservados, também as crianças e os jovens (os
adolescentes, aqui de forma mais precisa) estão sujeitos às mesmas regras do
jogo. Não há mais uma infância e juventude a serem protegidas à priori. Se a
modernidade se permitiu inventar a infância, a modernidade líquida se
permitiu desinventá-la... e inventar novas ervas-daninhas para expurgar do
Jardim.
Então, o que ganhamos, afinal, com a redução da maioridade penal?
Ora... a possibilidade de excluir e expurgar do Jardim essas novas ervas-
daninhas que inventamos, por mais tempo (afinal, sustentam os arautos da
redução que os três anos de exclusão, como prevê a máxima sanção possível
pelo ECA, é muito pouco tempo!) e com maiores garantias de que, rotuladas

130
pela estigmatização da punição-penal, serão alvos fáceis de uma nova exclusão
social, acaso não retornem para o Jardim (após a pena cumprida) convencidas
de se contentarem com o lugar que lhes foi reservado.
Para nossa sociedade atual, qualquer outra medida de enfrentamento
da conflitualidade (que não seja a exclusão, temporária ou definitiva; a
incapacitação dos humanos que foram categorizados como excedentes,
daqueles que necessitam ser vomitados pela dinâmica bulímica do “consuma
ou pereça”) parece ser interpretada ou considerada como algo que implica
compromissos de solidariedade social que nos deixarão pesados demais para
continuar a esquiar sobre gelo fino.

Considerações finais: ou, quando a política criminal se encontra com a


(ausência da) política social

Reunindo-se as considerações que fizemos ao longo desse texto,


entendemos ser possível se produzir a seguinte síntese:
a) inimputabilidade não significa isenção de responsabilização e de
aplicação de sanções;
b) a legislação brasileira, no ECA, já prevê medidas sancionatórias aos
adolescentes infratores, as chamadas medidas “socioeducativas”;
c) existe um paralelismo significativo entre a aplicação das medidas
socioeducativas e as sanções penais;
d) tal paralelismo só se fragiliza nos casos de “crimes” muito violentos
e nos de reiterados atos e condenações, quando, então, o lapso temporal de
punição poderá ser maior nos termos da lei penal;
e) as filosofias “re”, que marcam o discurso supostamente ético-
teleológico das punições modernas, mascaram paradoxos em relação à
racionalidade das sanções penais;

131
f) na sociedade moderna, que resiste ao reconhecimento das
ambiguidades e paradoxos que seu próprio modelo produz, o projeto de
ordem implica tanto em apaziguar as camadas sociais para as quais não se
reservou um lugar privilegiado na estrutura social, como excluir, expurgar
aqueles que, considerados excedentes, não possuem lugar algum reservado;
g) os dois mais imediatos efeitos da redução da maioridade penal
serão: a viabilização do encarceramento de adolescentes no sistema prisional e
a expectativa desse encarceramento se prolongar por mais de três anos;
h) a redução da maioridade penal se traduz, preponderantemente,
como uma estratégia de exclusão social de uma nova categoria selecionada
como excedente em nossa vigente configuração social.
i) as políticas criminais e de segurança pública contemporâneas são
frequentemente instrumentalizadas e chamadas a desenvolverem estratégias
tanto no sentido do apaziguamento como da exclusão social;
j) e, por fim, acompanhando Maria Palma Wolff: “A política penal e a
política social não podem ser consideradas como processos autônomos e
independentes, pois respondem ao mesmo conjunto de determinações
presentes na sociedade” (2005, p.8).
Neste último sentido, aliás, Georg Rusche e Otto Kirchheimer, no
clássico “Punishment and Social Struture” (1999[1939]), já consignavam que:
“A história da política pública para mendigos e pobres somente pode ser
compreendida se relacionamos a caridade com o direito penal” (1999, p.52).
Ora, desde as “Poor Laws” Inglesas [6] – com especial relevância a
Poor Law, de 1601, e sua conexão com as Workhouses [7] – o vínculo
ambivalente e ambíguo entre o social e o penal, entre a assistência e a
categorização segregadora e excludente, realiza-se quando essas dimensões se
encontram relacionadas por emergências e ausências, sejam num ou noutro
sentido, sejam simultâneas e complementares.

132
No Brasil, essa complementar relação se apresenta (des)velada não
somente quando se verifica a marca da vulnerabilidade social, como elemento
de seletividade penal, no perfil dos encarcerados, mas também, dentre outros
indicadores, quando se percebe que o ardil implícito existente nas propostas
de redução da maioridade penal se traduz como a “emergência da política
penal como consequência e possibilidade de ausência, carência e isenção da
política social”.
A infância e juventude no Brasil contemporâneo (categorias sociais
que registram as sobrecargas da vitimização violenta – vejam-se os índices de
homicídios nas populações jovens – mas que também se expõem
significativamente em índices que lhes registram em conflito com a lei) são,
perante o foco das Políticas de Segurança Pública, mais uma encruzilhada (do
que uma complexa intersecção) entre as políticas criminais e as políticas
sociais.
Não obstante, metas e ações “cidadãs” do Programa Nacional de
Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) [8], a trilha do expurgo
social, a qual é uma das sendas criadas na encruzilhada que reúne infância e
juventude com a segurança pública, acaba por se revelar numa acrítica “ação
estrutural” de construção de presídios para jovens entre 18 e 24 anos. Na
promessa de separar detentos por faixa etária e por crime, de não misturá-los
com as lideranças do crime organizado, etc. omite-se a compreensão crítica de
que a vulnerabilidade social já afetou esses jovens seja na seletividade criminal
do “crime organizado”, seja na seletividade criminal do Sistema Estatal de
Justiça (afinal, não são muitos desses jovens já egressos dos também falidos
sistemas de internação socioeducativa?). Também, de forma quase ingênua,
propõem-nos a acreditar que as mazelas do(s) sistema(s) penitenciário(s)
estadual(ais) não colonizarão, em curto espaço de tempo, cada uma das 421
vagas oficiais de cada estabelecimento para as suas dinâmicas de superlotação.

133
Mas se a proposta aqui não é analisar (como merecer ser) a proposta
dos bem-intencionados “Presídios para Jovens”, mas, sim, a(s) proposta(s) de
redução da maioridade penal, cabe sobre esta(s), então, uma última
consideração.
Chama-se de “populismo punitivo” quando “o uso do direito penal
pelos governantes aparece guiado por três premissas: que maiores penas
podem reduzir os delitos [criminalidade]; que as penas ajudam a reforçar o
consenso moral existente na sociedade; e que existem ganhos eleitorais
produzidos por este uso” (BOTTOMS apud LARRAURI, 2007, p.10;
traduzi e grifei). Talvez, apesar da redundância, possa-se chamar de
populismo punitivo selvagem quando estas premissas, sobretudo, a última
(ganhos eleitorais), pautam-se por estratégias que além de maximizar e
intensificar o uso do Direito Penal, o fazem em frontal abandono dos
compromissos humano-dignificantes que uma sociedade pretensamente
racional e democrática já produziu e firmou.
O Estatuto da Criança e do Adolescente avança para a sua terceira
década de vigência. O populismo punitivo brasileiro, ciente dos riscos dos
discursos que, num explícito retrocesso, propõem que se formalize novamente
a “invenção jurídica” de distintas infâncias e juventudes (não há mais
ambiente para os Códigos de Menores, seria “politicamente incorreto”!) opta,
ardilosamente, pela via da “emancipação legal” dos adolescentes.
Convertendo-os em “maiores”, prevê-se que poderemos, sobretudo, dormir
tranquilos, afinal, os não adaptados ou os que se rebelarem contra esse
sistema exclusão social – o qual viabiliza nosso sono e sonho com uma
infância inventada e negada – já não nos incomodarão, já não nos alertarão
para a necessidade de envolvimento com outras políticas, que sejam sociais e
não só penais, pois estarão distantes de nós, segregados na prisão.
Até que novas ervas daninhas pretendamos inventar...

134
Referências bibliográficas

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137
Notas de fim

[1] Em 7 de fevereiro de 2007, no Rio de Janeiro, o menino João Hélio


Fernandes Vieites, seis anos, foi morto no decorrer de um assalto ao carro em
que trafegava junto com sua mãe e sua irmã. João Hélio ficou preso pelo
cinto-de-segurança, pendurado ao lado de fora do veículo, e foi arrastado por
sete quilômetros. Entre os cinco envolvidos no assalto, um “menor de idade”.

[2] O conto relata, a partir de um sobrevivente, a experiência de três


pescadores (irmãos) que são apanhados num turbilhão (remoinho, ou
rodamoinho no texto de Elias[1998]).

[3] Frase originalmente proferida por São Bernardo de Clarivaux (1090-


1153).

[4] A expressão prisonization, que pode ser utilizada em português tanto


como prisionização ou prisionalização, é introduzida por Donald Clemmer na
obra The Prison Community, de 1958.

[5] Note-se que a caracterização desta dimensão do espaço denominado de


“dromosférico” busca referência no termo de origem grega dromos, que
possui significado de “corrida”; entendemos, assim, ser cabível falar-se no
tempo e nos efeitos deste sob um similar prisma, ou seja, um tempo que, mais
além de passagem sucessiva e contínua de intervalos regulares, significa a
velocidade e a instantaneidade no “percurso”.

[6] As “Poor Laws” Inglesas, ou Leis dos Pobres, constituem um sistema


legal de assistência aos pobres que se desenvolveu na Inglaterra já a partir de

138
períodos medievais (a Ordenança dos Trabalhadores, decreto emitido por
Eduardo III em 1349, é mencionado como um marco inicial das “Poor
Laws”), passando por importantes legislações no período da dinastia Tudor
(1485-1603). O sistema, com suas sucessivas reformas, existiu até o
surgimento do Estado de Bem-estar Social, no pós Segunda Guerra Mundial.

[7] As “Workhouses”, ou Casas de Trabalho, desenvolveram-se não só na


Inglaterra, mas também em outras partes da Europa. Tratam-se de locais de
encarceramento dos “pobres, mendigos, vadios”, nos quais trabalhavam como
condição de seu sustento. As “Workhouses” fazem parte das fontes
inspiradores da prisão moderna.

[8] Sobre o PRONASCI: < http://portal.mj.gov.br/pronasci/>

139
140
Apontamentos para a reconstrução da utopia
anticarcerária
Indications for the reconstruction of utopia anti-prison
Notas para la reconstrucción de la utopía anticarcerária

Marcelo Mayora Alves


Mariana Garcia

“No século XVII, por exemplo, em cada viagem de um navio


negreiro morria pelo menos vinte por cento da mercadoria, quer
dizer, da gente de cor que era transportada para ser vendida,
digamos, na Virgínia. E isso não comovia ninguém, nem saía em
manchetes garrafais no jornal da Virgínia, nem ninguém pedia que
enforcassem o capitão do navio que os tinha transportado. Se, pelo
contrário, um homem abastado sofria uma crise de loucura e
matava seu vizinho, depois voltava galopando para casa, onde mal
apeava matava sua mulher, ao todo duas mortes, a sociedade
virginiana vivia atemorizada por no mínimo seis meses, e a lenda
do assassino a cavalo podia perdurar por gerações inteiras. Os
franceses, por exemplo. Durante a Comuna de 1871, morreram
assassinadas milhares de pessoas e ninguém derramou uma lágrima
por elas. Por volta dessa mesma data, um amolador de facas matou
uma mulher e sua mãe velhinha (não a mãe de sua mulher, mas
sua própria mãe, caro amigo) e depois foi abatido pela polícia. A
notícia não só correu os jornais da França, como foi reproduzida
em outros jornais da Europa e saiu até uma nota no Examiner de
Nova York. Resposta: os mortos da Comuna não pertenciam à
sociedade, a gente de cor morta no navio não pertencia à
sociedade, enquanto uma mulher morta na província francesa e o
assassino a cavalo da Virgínia, esses sim, pertenciam, quer dizer, o
que havia acontecido com eles era escrevível, era legível.”
Roberto Bolaño

Pequeno introito

Louk Hulsman (2004, p.55), com a incrível simplicidade peculiar dos


seus textos, conta que em certa ocasião foi vítima de furto com arrombamento
em sua residência. Além disso, narra que após a polícia ter descoberto os
autores dos furtos, optou por conhecê-los, por conhecer as suas famílias, por
dialogar, por compreender seus motivos e por expor seu descontentamento
em relação ao ocorrido. Ao refletir sobre tal fato, o autor conclui que a
experiência da restauração, do diálogo e da compreensão foi extremamente
proveitosa e enriquecedora para todos os envolvidos. No noticiário
sensacionalista, o apresentador narra com naturalidade – em realidade, com
sóbria indignação, como exige a fórmula televisiva – episódio no qual o
proprietário de um carro flagra o sujeito que tentava furtar o seu veículo, para
ato contínuo de imobilizá-lo e estapeá-lo até a chegada da polícia. O recém-
herói contou com a ajuda de escudeiros, que no episódio se identificaram
prontamente com a vítima. Uma das cidadãs que acompanhou o
acontecimento dizia para o ladrão imobilizado: – fique calmo, pois não quero
que o senhor seja linchado – o que estava em vias de ocorrer – quero apenas
que o senhor seja preso.
O exemplo de alternativa ao sistema penal narrado por Hulsman,
consubstanciado em ação reparatória coletiva conduzida por aqueles que
estavam diretamente envolvidos na situação problemática, é frequentemente
considerado ingênuo no âmbito dos debates criminológicos contemporâneos.
Já o fato noticiado em um telejornal cotidiano é tratado com bastante

142
naturalidade. A naturalização da atitude repressiva e o rótulo de
“ingenuidade” da atitude pacifista podem servir de sintomas, a partir dos
quais diagnosticamos a enorme dificuldade em escapar da cultura punitiva,
em desnaturalizar suas categorias e seu hábito mental, de maneira a mirar os
conflitos desde outra lente que não a do código crime-pena e a do
maniqueísmo que lhe subjaz. (ANDRADE, 2003, p. 20).
Uma criminologia crítica do controle penal, comprometida com a
emancipação, guardiã dos Direitos Humanos – dimensão da cidadania – e
não da ordem social injusta – dimensão da criminalidade –, só pode ter como
objetivo a desconstrução do hábito mental, ou da ideologia, legitimadora do
sistema penal genocida, que rotula como “ingênuos” quaisquer tipos de
alternativas à política criminal. Isso porque esse tipo de argumento já é uma
instância de legitimação do sistema penal, que não pode aceitar em seu
horizonte uma criminologia crítica que coloque a sua própria existência em
cheque (daí deriva a enorme dificuldade de reconstrução de um modelo
integrado de ciências criminais).
O programa de descarcerização radical, ensaiado no título do artigo,
deriva de uma crítica radical do controle penal. Radical, aqui, não como
intransigência, como comumente a expressão é lida, mas em seu sentido forte,
de ir à raiz, de não se contentar com o aparente e de buscar o fundamento que
sustenta os elementos visíveis da criminalização. Baratta (2004, p. 66), ao
refletir sobre investigações extrassistemáticas acerca de “bens jurídicos”,
afirma que, do ponto de vista epistemológico, são necessárias duas condições
que aqui podem ser utilizadas como condições gerais para análises sobre
alternativas à política criminal e ao cárcere. A primeira é a subtração ou epoché
metodológica dos conceitos de delito, de pena e da justiça criminal. A
segunda é a consideração das situações conflitivas e problemáticas que
resultam da intervenção da justiça criminal (BARATTA, 2004, p. 66). A

143
primeira condição pode ser lida como a necessidade de exercício relativizador,
no sentido de não associar diretamente situações problemáticas com a ideia de
crime ou com a ideia de pena e de cárcere, em busca de soluções mais justas e
efetivas. É que, do contrário, ocorre uma inversão conceitual, bastante
característica da onipotência jurídica. Tal inversão se verifica

cuando los juristas intentan definir qué problemas o conflictos son


aptos para ser enfrentados con el instrumental del sistema
criminal, antes que, cuáles de los instrumentos existentes en los
diversos arsenales institucionales o que deben todavía ser
inventados, sean aptos para afrontar determinados problemas o
conflictos (BARATTA, 2004, p. 64).

A segunda condição é consequência lógica da virada criminológica e


dos diagnósticos da criminologia crítica sobre a “lógica da seletividade como
lógica estrutural de operacionalização do sistema penal e sua relação funcional
com a dominação classista” (ANDRADE, 2003, p. 49). A partir daí, é
possível considerar toda a complexidade das situações problemáticas que
habilitam grande parte do encarceramento no Brasil atualmente, sem
menosprezar sua eventual negatividade social, mas levando em conta a
reprodução das violências pelo controle penal e, sobretudo, as funções
declaradas (promessas) e reais do sistema penal, ou seja, o mito do “combate
ao crime” e seu desvelamento como estratégia de gestão da pobreza.
SCHEERER, provavelmente respondendo aos céticos que lhe
chamavam de “ingênuo”, nos lembrou que “nunca houve uma transformação
social significante na história que não tenha sido considerada irreal, estúpida
ou utópica pela grande maioria dos especialistas, mesmo antes do impensável
tornar-se realidade” (SCHEERER, 1986). Justamente porque estamos na era

144
do grande encarceramento, é que a criminologia crítica deve reconstruir
projetos ambiciosos e o principal deles é a utopia anticarcerária.

1- A expansão do controle penal e a questão carcerária no início do século -


das teorias da pena às mitologias do castigo

O paradigma da reação social e a criminologia crítica foram


responsáveis por desconstruir o arcabouço político e epistemológico que
sustentava o sistema penal. Absorvendo as demais teorias críticas da punição e
lhes situando numa perspectiva macrocriminológica, a criminologia crítica
demonstrou que o direito penal igualitário é um mito, ou seja, que a
seletividade é estrutural, inerente aos mecanismos de atuação do poder
punitivo. Desta maneira, restou evidente que as promessas modernas de
controle da violência eram um véu ideológico, que encobria a atuação
concreta das agências penais - de construção da violência estrutural como
criminalidade individual, gestão da pobreza e reprodução e manutenção das
relações de exclusão -, simbolizada por expressões como “genocídio em ato”
(ZAFFARONI, 1989) e “ditadura sobre os pobres” (WACQUANT, 2001).
A incrível potencia do discurso crítico na América Latina, o que pode ser
explicado pela evidência empírica da seletividade constatada a partir de uma
olhadela no perfil da população carcerária, permitiu que ZAFFARONI
decretasse, no final dos anos 80, “a perda de legitimidade do sistema penal”,
expressão que constou no título de sua obra seminal “Em busca das penas
perdidas”.
Nesse contexto, a maturidade da crítica criminológica proporcionou a
construção de políticas criminais alternativas, ancoradas na necessidade
consensual – em nível acadêmico – de contração do sistema penal, com vistas
à diminuição das violências a ele vinculadas e, ao cabo, da libertação. As

145
perspectivas abolicionistas, minimalistas, garantistas e realistas (realismo de
esquerda e realismo marginal), por exemplo, são derivações da criminologia
crítica. A partir delas, surgiram alternativas para a superação do sistema penal,
objetivo este que, para alguns, na ocasião, estava em vias de ocorrer [1]. As
novas políticas baseadas em tal consenso alcançaram algum grau de
institucionalização. A práxis abolicionista está presente, por exemplo, nos
projetos de implantação da Justiça Restaurativa, todos ainda bastante
incipientes no Brasil. Os abolicionismos, os minimalismos e os garantismos
encontram-se também, a partir de sua raiz comum, nas estratégias de
descriminalização, tanto em nível legislativo quanto judicial [2]. O
garantismo, em razão de suas próprias limitações epistemológicas, por tratar-
se de uma teoria jurídico-constitucional, encontrou seu espaço no judiciário,
ainda que as principais decisões garantistas ocorram em casos de crimes
privilegiados, de maneira que dificilmente ecos garantistas são ouvidos
quando estamos a falar do controle penal da pobreza. O realismo marginal se
faz presente quando vislumbramos o reconhecimento, tanto no poder
judiciário, quanto no poder executivo, da violência estrutural que é o sistema
penal, e da conseqüente tentativa de redução de danos. A categoria dogmática
de culpabilidade pela vulnerabilidade, construída desde as premissas do
realismo marginal, apesar de óbvia, encontra pouquíssimo espaço em nosso
judiciário. O realismo de esquerda parece ser o discurso declarado do governo
petista. As teses da “nova prevenção” fundamentam programas como o
Pronasci, as tentativas de reforma das polícias, o foco nas “áreas e nas
populações de risco”, a prevenção situacional, etc. Não obstante, convivem –
com não tão surpreendente tranquilidade – com as políticas marcadamente
genocidas que seguem tendo espaço mesmo após quase nove anos de governo
da esquerda, como a invasão de morros pelo exército e por polícias preparadas

146
para as incontáveis guerras do “bem contra o mal”, geralmente legitimadas
pela estúpida war on drugs.
Contudo, como sabemos, “a trajetória da criminologia não se desloca
pelas salas de um museu de teorias mortas, mas sim adentra uma selva de
discursos vivos e em constante renovação, produzidos por corporações que
lutam entre si para dar-se hegemonia, em negociação com poderes sociais
mais amplos” (ZAFFARONI et al., 2003, p. 279). Desta maneira,
considerando que não há superação de um discurso criminológico por outro,
mas mera acumulação, o “ramo da planificação social” (ANYAR DE
CASTRO, 1983, p. 195) que é a criminologia positivista continuou
legitimando o poder punitivo, principalmente no que tange ao preconceito
que permanece no senso comum e na opinião pública. Além disso, a
criminologia atuarial - não mais preocupada como a criminologia positivista
com a descoberta das causas e, consequentemente, da “cura” para os
“delinqüentes” –, mas com a “gestão das populações de risco” (lógica
securitária), representa atualmente outro forte pilar de sustentação do sistema
penal. Daí porque, apesar dos irreversíveis resultados da criminologia da
reação social e da perda de legitimidade do sistema penal, no final do século
XX e no início do século XXI observamos dois processos paralelos fundados
na mesma lógica: a expansão do direito penal e o encarceramento massivo.
A expansão do direito penal – expressão consolidada após a obra de
SILVA-SANCHEZ (2001) - é o processo que caracteriza a dinâmica
punitiva da transição do século. O direito penal distancia-se de sua matriz
iluminista (“proteção de bens jurídicos individuais”), em busca da “tutela de
novos bens jurídicos”, plasmados nas supostas necessidades de reforço de
tutela do direito administrativo (direito penal secundário) e na “tutela dos
direitos fundamentais de segunda e terceira geração”. No mesmo sentido, sob
o álibi da necessidade de “combate ao crime organizado”, observamos a

147
descodificação, a criação de leis penais especiais destinadas a lidar com os
“delitos transacionais”, de modo que o direito e o processo penal precisaram
reconstruir suas categorias ilustradas. O direito penal necessitou relativizar a
teoria do delito, prescindindo, por exemplo, da ofensividade, criando delitos
de perigo que não exigem a efetiva lesão ao bem jurídico. O processo penal
necessitou criar instrumentos persecutórios mais “efetivos”, ou seja, mais
violentos, como maneira de desvendar a “criminalidade complexa”. No
âmbito da execução penal, as demandas punitivas derivadas do pânico moral
gerado pela categoria-coringa “crime organizado” foram responsáveis pela
criação de regimes penitenciários extremamente fechados (penitenciárias de
segurança máxima) e pelo absurdo chamado Regime Disciplinar
Diferenciado. A expansão do direito penal é ainda complementada pelas
demandas dos “empresários morais atípicos”, ou seja, pelos anseios punitivos
de movimentos progressistas, como o movimento negro, feminista e,
atualmente, o movimento LGBT, que defende oficialmente a criminalização
da homofobia. A luta pelo empoderamento de grupos sociais subjugados por
meio da tutela penal, em movimento político-criminal nominado esquerda
punitiva (KARAM, 2001), gera perplexidade na crítica criminológica, “uma
vez que todos parecem crescentemente seduzidos pelas promessas ilusionistas
de combate à violência e proteção de direitos ofertada no crescente mercado
do sistema penal” (ANDRADE, 2003, p. 26). Todo o processo descrito, de
expansão do direito penal, é colonizado pelo populismo punitivo, ou
fundamentalismo punitivo (ANDRADE, 2003), fenômeno que perpassa
todas as demandas por punição, baseado na crença – reverberada pela mídia –
na solução penal como panacéia de todos os males.
Da mesma forma, a crítica corrosiva à prisão também não foi apta a
conter a escalada vertiginosa dos índices de encarceramento em grande parte
dos países do mundo [3]. Mesmo estando desconstruído o mito da

148
ressocialização, a partir dos estudos seminais que demonstraram os reais
efeitos gerados pelo cárcere nas subjetividades (prisonização e socialização
negativa) [4], e apesar dos esclarecimentos acerca das autênticas funções que
do cárcere, sua vinculação com o sistema de produção econômica e com o
mercado laboral e os mecanismos de seleção de suas clientelas [5], a
instituição aumenta a cada dia, agora, muitas vezes, sob gestão de empresas
privada (que negociam suas ações na bolsa de valores!), mantendo-se no
centro nevrálgico do sistema penal. As penas alternativas, por seu turno,
acabaram tornando-se complementares, significando simplesmente a
ampliação das redes de controle estatal, que penetram cada vez mais
profundamente no tecido social. Este parece que será também, fatalmente, o
destino de alternativas ao cárcere fundadas na mesma lógica de controle dos
“perigosos”, tais como as “pulseiras eletrônicas” que estão sendo em alguns
lugares do país.
A novidade da era do grande encarceramento parece ser a completa
desnecessidade da outrora necessária legitimação discursiva. É que a prisão da
contemporaneidade convive tranquilamente com a falência de todas as teorias
da pena, que, após submeterem-se ao crivo da criminologia crítica, foram
desmascaradas, de maneira que se tornaram meras mitologias do castigo.
IÑAKI RIVERA BEIRAS resume este ponto:

Después de cuanto se ha visto, me parece que aquellas llamadas


“teorías de la pena” han quedado, en efecto, en el estadio de
simples “mitologías”, completamente superadas por visiones y
herramientas inter-disciplinarias que ya no podrán ser deshechadas
en un estudio serio, global y compreensivo del problema de la
punición (RIVERA BEIRAS, 2003, p. 119)

149
LYRA FILHO há bastante tempo duvidava das teorias da pena, o que
fica claro a partir da leitura do pequeno trecho extraído do texto no qual o
autor debate magistralmente com CIRINO DOS SANTOS a Criminologia
Radical, obra escrita pelo último e publicada em 1981. Conforme o autor,
“pena, defesa social, reeducação, prevenção geral ou especial, intimidação,
retribuição e medidas “assistenciais” enriqueciam a palheta, mas, ao fim e ao
cabo, destinavam-se à mesma pintura” (LYRA FILHO, 1981, p. 60). Não
cabe aqui elencar todos os aportes de deslegitimação da prisão. O importante
é perceber que, apesar deles, estamos vivendo período de incrível inflação
carcerária. Cumpre, portanto, a partir de tal contexto, compreender o
encarceramento do início do século XXI, de modo que é fundamental
investigar a relação funcional entre a atual fase do sistema punitivo e a crise
do mecanismo de acumulação capitalista que estamos a acompanhar.
É vasta a literatura criminológica que denuncia que a punição
contemporânea possui funções diferentes daquelas observadas no passado.
Isso porque, conforme YOUNG:

A transição da modernidade à modernidade recente pode ser vista


como um movimento que se dá de uma sociedade inclusiva para
uma sociedade excludente. Isto é, de uma sociedade cuja tônica
estava na assimilação e na incorporação para uma que separa e
exclui (YOUNG, 2002, p. 23).

A análise macro-criminológica mais difundida, ancorada em fatores


econômicos presentes no atual momento do capitalismo - globalização
neoliberal - dispõe que em uma sociedade na qual nem todos podem ser
assimilados ao mercado de trabalho - existindo, em razão disso, parcelas da
população que estão “sobrando” e que por isso são “descartáveis” - a punição

150
perde sua função corretiva de disciplinar os trabalhadores [6]. Por este
motivo, diz-se que estamos em uma fase pós-corretiva ou pós-panóptica, na
qual a função da pena não é mais ressocializar as massas desviantes para
posterior inclusão na exploração capitalista, mas incapacitar ou conter as
massas excluídas que são inúteis de um ponto de vista organicista e principal
fonte das desordens do mundo contemporâneo. Neste contexto, a pena passa
a ser utilizada visando a incapacitação, a neutralização de categorias inteiras
de “prováveis reincidentes”. Os “prováveis reincidentes” são, obviamente, os
novos inimigos do admirável mundo novo, os imigrantes, os traficantes e os
terroristas, categorias de acusação que formam o second-code que atualmente
legitima o encarceramento. Quando estamos a tratar dos “novos inimigos”
sequer é necessário aguardar uma sentença condenatória, pois a aplicação da
pena é geralmente antecipada, por meio das prisões cautelares fundadas na
“garantia da ordem pública”, garantia da ordem pública que não significa
nada senão o medo institucionalizado dos folk devils contemporâneos. O
cárcere do nosso tempo é mero espaço de contenção e de armazenamento de
pessoas – warehousing (COHEN, 1988) - no sentido exposto por
BAUMAN:

Nesse contexto, a idéia de prisão de Pelican Bay como continuação


das primitivas casas industriais de correção cujas ambições,
experiências e problemas não resolvidos se refletiam no projeto do
Panóptico parece muito menos convincente. Nenhum trabalho
produtivo é feito dentro dos muros de concreto da prisão de
Pelican Bay. Também não se pretende um treinamento para o
trabalho: não há nada no projeto da prisão que permita tal
atividade. Com efeito, para os condenados, Pelican Bay não é
escola de coisa alguma – sequer de uma disciplina meramente
formal. Toda a questão do Panóptico, o propósito supremo de

151
vigilância constante, era garantir que o interno realizasse certos
movimentos, seguisse uma rotina, fizesse determinadas coisas.
Mas o que os internos de Pelican Bay fazem em suas celas
solitárias não importa. O que importa é que fiquem ali. A prisão
de Pelican Bay não foi projetada como fábrica de disciplina ou do
trabalho disciplinado. Foi planejada como fábrica de exclusão e de
pessoas habituadas à condição de excluídas (BAUMAN, 1999, p.
121)

Na América Latina sabemos que a pena nunca cumpriu as funções as


quais se propôs discursivamente, tendo sido sempre apenas um fato de poder
(ZAFFARONI, 1989). A questão que se alterou diz respeito à outrora
necessária legitimação discursiva, ou seja, notório que a pena nunca cumpriu
função ressocializadora, mas em outros tempos necessitava legitimação a
partir desse argumento. Na contemporaneidade sequer a legitimação
discursiva é necessária, pois “o poder político não dispõe de força para
conceder hegemonia a algum discurso coerente; por sua vez, o poder
econômico não precisa dele, porque, pela primeira vez, é exercido sem
qualquer mediação do poder político” (ZAFFARONI, 2003, p. 286).
Diante da crise do Estado Social, ou seja, da incapacidade estatal em
promover aos cidadãos as condições mínimas de sobrevivência, direciona-se o
tratamento da questão da pobreza à resposta penal - a miséria governada
através do sistema penal (DE GIORGI, 2006) -, a partir do encarceramento
massivo e dos mecanismos de controle social ligados ao sistema penal, como a
enorme discricionariedade verificada na atuação da polícia, sobretudo nas
periferias, tudo isso a corroborar a tese de WACQUANT da “ditadura sobre
os pobres” [7]. Conforme o mesmo autor, o paradoxo da penalidade
neoliberal é o seguinte:

152
Pretende remediar com “mais Estado” policial e penitenciário o
“menos Estado” econômico e social que é a própria causa da
escalada generalizada de insegurança objetiva e subjetiva em todos
os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo
(WACQUANT, 2001, p. 7).

A “ditadura sobre os pobres” pode ser observada empiricamente com


um simples olhar sobre a população carcerária, constituída por aquela parcela
da população sobre a qual recai o estereótipo de criminoso – eventuais prisões
em relação aos delitos de colarinho branco servem para confirmar a regra. Em
realidade, estamos assistindo a uma escalada punitiva, que se concretiza com
uma atuação policialesca genocida e com um encarceramento massivo, sendo
os selecionados “depositados” em presídios superlotados e que apresentam
condições inaceitáveis.
Por outro lado, considerando que o maior poder do sistema penal não
reside na pena – desde a constatação de Sutherland a respeito da cifra oculta
sabe-se que apenas parcela ínfima dos crimes cometidos são apurados, passam
por toda a persecução e resultam na aplicação de pena - mas sim no poder de
vigiar e controlar movimentos (poder configurador) (ZAFFARONI, 2003),
claro está que é sobre a parcela menos favorecida da população que tal poder
atua constantemente, por meio de verificações policiais sobre o corpo
(revistas) e observação constante de determinadas áreas.
Mesmo diante deste preocupante panorama, a criminologia crítica do
controle penal “tem possibilitado a desconstrução e a ultrapassagem (...) das
pseudo-soluções, (...) alicerçando a abertura de novas visões, novos discursos e
novas práticas (práxis)” (ANDRADE, 2003, p. 22). São estes os caminhos
que devem continuar a ser trilhados.

153
2- Em busca de um programa de descarcerização radical

Em artigo publicado pela primeira vez no ano de 1982, BARATTA


defendia a abolição das instituições carcerárias, nos seguintes termos:

Una análisis real y radical de las funciones efectivamente ejercidas


por la cárcel, el conocimiento del fracaso histórico de esta
institución en cuanto a los fines del control de la criminalidad y la
reincorporación del desviado en la sociedad, de la incidencia que
ella tiene , no solo en el proceso de marginalidad de los sujetos en
forma individual, aun el exterminio de las fases marginales de las
clases obreras, no pueden sino llevarnos a una conclusión radical
en la individualización de los objetivos finales de una estrategia
alternativa. Este objetivo es la abolición de las instituciones
carcelarias. Derribar los muros de la cárcel tiene para la nueva
criminología el mismo significado pragmático que los muros del
manicomio para la nueva siquiatria. (BARATTA, 2004, p. 372).

A relação entre a criminologia e a antipsiquiatria não foi feita por


acaso. É que, partindo da mesma raiz crítica, a antipsiquiatria obteve
inúmeras vitórias no campo político, tendo conseguido inserir no campo
legislativo os debates sobre a desinstitucionalização asilar, o que culminou
com a reforma psiquiátrica, de forte matriz antimanicomial. No campo
carcerário, o período também era de reforma, do que decorria a crença de que
a descarcerização radical era uma questão de tempo. O cenário posterior já
conhecemos: após a reforma, ocorreu a contrarreforma, e a partir daí o início
do processo que conduziu ao grande encarceramento contemporâneo. As
alternativas à política criminal e ao cárcere, de raiz criminológica crítica,
acabaram significando mera ampliação das malhas punitivas, e este é um dos

154
motivos pelos quais alguns autores diagnosticaram a “crise da criminologia
crítica” (LARRAURI, 2000).
Nesse contexto, observamos o arrefecimento dos projetos
anticarcerários radicais, tendo em vista que o campo foi dominado, por um
lado, pelas políticas de tolerância zero e de lei e ordem – fundamentalismo
punitivo -, e por outro, pelo realismo de esquerda, que, justamente por seu
caráter “realista”, consegue conviver com relativa tranqüilidade com as
políticas genocidas que ainda estão em andamento no Brasil. Após nove anos
de governo do PT em nosso país, é possível afirmar que a política de
segurança pública declarada é fundada no realismo de esquerda. Não
obstante, a estrutura permanece belicista, tendo em vista a manutenção do
controle militarizado e, sobretudo, da lógica de guerra contra o crime,
simbolizada primordialmente pela guerra contra as drogas. O realismo, nesse
contexto, parece ser o máximo que um governo consegue alcançar em termos
críticos, de maneira a respeitar a lógica do populismo punitivo e, com isso,
manter-se no poder. Nesse contexto, grande parte do pensamento sociológico
e criminológico brasileiro legitimou a recente incursão bélica, de forças de
segurança incrivelmente armadas, no Morro do Alemão, no Rio de Janeiro.
Na ocasião, a necessidade de “retomar o território” dominado por grupos de
traficantes, por meio de qualquer tipo de método, inclusive assassinatos
massivos, foi quase consensual na inteligentsia brasileira. Tudo isso a
demonstrar que as utopias emancipatórias perderam espaço para uma visão
pragmática do fato social, que se contenta com migalhas reformistas,
enquanto a estrutura de dominação injusta sequer é colocada em tela de juízo.
Justamente por tal motivo é que este trabalho pretende retomar o
radicalismo das propostas da criminologia crítica. Se crise houve, tal decorreu
muito menos de equívocos nas premissas, do que das derrotas políticas, ou
seja, das dificuldades inerentes às tentativas de implantação de propostas

155
emancipatórias radicais. No entanto, considerando que o contexto punitivo
injusto permanece hígido, e que, portanto, permanecemos com a “consciência
da desigualdade” que nos move, cremos que a tentativa deve ser a de
reencontrar as propostas criminológicas radicalmente críticas do controle
penal, verificar os seus destinos político-criminais, seguir pelo rastro das suas
pequenas histórias, de modo a encontrar os obstáculos, os atalhos e os desvios
pelos quais elas tiveram que passaram.
Hoje, sabemos perfeitamente quais são as situações-problemáticas que
habilitam o encarceramento massivo. Conforme dados do Departamento
Penitenciário Nacional, mais de 50% da população carcerária masculina e
mais de 60% da feminina está presa em razão de tráfico de drogas e de crimes
contra o patrimônio privado (roubo e furto) [8]. A descarcerização radical
passa, portanto, por esta trilha, e, principalmente, pelo desvelamento das
metarregras que regem a atuação seletiva das agências do sistema penal nesse
tipo de caso. Numa primeira análise, fácil vislumbrar que os delitos que mais
encarceram, não sem motivo, são aqueles majoritariamente praticados pelas
classes extremamente pobres, pelos excluídos do mercado de trabalho formal.
Quanto ao tráfico de drogas, já sabemos que os selecionados pelo sistema
penal são os pequenos traficantes, “meros serviçais do narcotráfico”, jovens,
pobres e negros [9]. Os delitos contra o patrimônio privado também são
geralmente “obras toscas”, pequenos furtos e pequenos roubos, não raro
intraclasse, que geram ínfima vantagem material àquele que pratica o delito.
Uma concepção emancipatória deve tratar os crimes contra o patrimônio
como sintomas de uma contradição estrutural bastante relevante. Não deve,
obviamente, contentar-se com o fato de que pessoas violentem outras em
nome de um bem material, mas deve tentar compreender a complexidade e
reduzir os custos da repressão, para contribuir para a restauração do laço

156
social. Trata-se, em síntese, de adotar o ponto de vista das classes subalternas,
no sentido proposto por BARATTA (BARATTA, 2002, p. 197).
As alternativas de descarcerização radical nunca foram tão claras,
sobretudo em momento político de relativa hegemonia da esquerda [10]. No
entanto, por evidente medo de contrariar as demandas punitivas, não estamos
caminhando para este destino. As louváveis iniciativas de distribuição de
renda – programas como bolsa-família, por exemplo – parecem fundadas na
lógica de defender prováveis vítimas dos “riscos dos prováveis reincidentes” da
underclass, e não de construção da cidadania e da garantia dos direitos
econômicos e sociais de todos. BARATTA analisou com precisão este ponto:

Para proteger a esas respetables personas, y no para propiciar a los


sujetos que se encuentran socialmente en desventaja respecto de lo
real usufructo de sus derechos civiles, económicos e sociales, la
política social se transforma (usando un concepto de la nueva
prevención) en prevención social de la criminalidad. Sujetos
vulnerados o vulnerables que sufren lesiones (reales), de derechos
por parte del Estado y da la sociedad, como son las lesiones a los
derechos económicos, sociales (derechos débiles, como se verá más
adelante), se transforman en potenciales infractores de derechos
fuertes de sujetos socialmente más protegidos (BARATTA, 2004,
p. 158/159).

Ou seja, não se trata de proteger os direitos fortes dos cidadãos


mediante transferência de renda para os “potenciais infratores aspirantes a
cidadãos”. Trata-se de transformar a estrutura social opressora, de maneira
que é importantíssimo diminuir o peso que o sistema penal exerce sobre as
classes baixas, o que só pode ser feito por meio de um programa de
descarcerização radical, que deve iniciar pelas duas situações problemáticas

157
em análise. Tal objetivo tem também importância do ponto de vista das
próprias possibilidades de compreensão de tais situações problemáticas, pois
ao retirar a lente desfocada do código crime-pena, talvez seja possível penetrar
com maior profundidade nas suas especificidades. Como lembra CHRISTIE,
“o sistema penal é análogo ao rei Midas. Tudo o que este tocava virava ouro e,
como sabemos, ele morreu de fome. Muito do que a polícia e a prisão tocam
se converte em crime e criminosos, e interpretações de atos e atores se
desvanecem” (CHRISTIE, 2011, p. 23).
O desafio é não capitular diante das tentações de conciliar o
inconciliável, de maneira a ultrapassar a timidez dos realismos em suas
variadas formas e recolocar no palco político-cultural a crítica radical do
controle penal. Só assim será possível continuar “afastando os obstáculos do
jardim” (HULSMAN, 1993), quer dizer, semeando o solo político-cultural,
de maneira a torná-lo fértil e receptivo a aceitação de alternativas ao sistema
penal, sobretudo considerando o grau de maturidade de tais propostas, como
a legalização das drogas, para o problema do tráfico de drogas, e a adoção da
Justiça Restaurativa nos conflitos que envolvem o patrimônio privado.

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162
Notas de fim

[1] Conferir, por exemplo, Thomas Mathiesen. A caminho do século XXI –


abolição, um sonho impossível? Revista Verve, 2003, p. 80.

[2] Sobre o tema, vale citar a advertência de Vera Andrade: “é necessário, em se


tratando de abolicionismo e minimalismo, situar o lugar da fala, ou seja, de que
abolicionismo e minimalismo se fala. É que ‘o’ abolicionismo e ‘o’ minimalismo, no
singular, não existem. Existem diferentes abolicionismos e ‘minimalismos e a
primeira tarefa é tentar compreendê-los” (ANDRADE, 2006, p. 165).

[3] Sobre o tema, conferir Nils Christie. Uma razoável quantidade de crime
(2011); e Loic Wacquant. As prisões da miséria (2001).

[4] GOFFMAN (2008), por exemplo.

[5] FOUCAULT (1987), RUSCHE E KIRCHEIMER (1999), MELOSSI


E PAVARINI (2006), por todos.

[6] Sobre o outro desviante na sociedade inclusiva, Young refere: “Trata-se de


uma sociedade que não abomina o ‘outro’, nem o vê como inimigo externo, mas
muito mais como alguém que deve ser socializado, reabilitado, curado, até ficar
como ‘nós’ (YOUNG, 2002, p. 21). No mesmo sentido, Bauman ressalta: “O
controle panóptico teve uma importante função: as instituições panópticas foram
todas concebidas como casas de correção. O propósito ostensivo da correção era tirar
os internos do caminho da perdição moral em que embarcaram por vontade própria
ou para a qual foram empurrados sem culpa direta, desenvolver hábitos que por fim
lhes permitiriam retornar ao convívio da ‘sociedade normal’, interromper a

163
‘decadência moral’, combater e extirpar a preguiça, a inépcia ou o desrespeito pelas
normas sociais, todas essas aflições que se combinavam para tornar os internos
incapazes de uma ‘vida normal’.” (BAUMAN, 1999, p. 117).

[7] No mesmo sentido, leciona Rivera Beiras: “La tendência es clara: gestion
punitiva de la pobreza, mercado econômico de total flexibilización, criminalización
cada vez mayor de la disidencia y reducción del Estado. (RIVERA BEIRAS,
2003, p. 125).

[8] http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJC4D50EDBPTBRNN.htm,
acesso em 05 de setembro de 2011, 19h.

[9] Conferir, por exemplo, BOITEAUX et al, 2009.

[10] Obviamente que este tipo de classificação esquerda/direita é


extremamente complexa. Nesse contexto, no entanto, crê-se que é possível
posicionar o governo petista à esquerda do cenário político.

164
Violência, adolescência e controle social:
as (novas) estratégias de contenção da juventude
como “inimigo social”
Violence and adolescent social control:
the (new) retention strategies of youth as the "enemy social"
Violencia, adolescencia y control social:
el (nuevo) juventud contención estrategias como "enemigo social"

Homero Bezerra Ribeiro

Introdução

Diante de uma realidade cada vez mais repressiva, principalmente para


determinados grupos sociais, como é o caso de adolescentes, faz-se necessário
tecer considerações sobre o atual contexto do sistema punitivo e suas agências
de controle, sejam elas oficiais (Polícia, Ministério Público, Judiciário), ou
não oficiais (mídia, grupos de extermínio). Neste seara, a realidade operativa
do sistema punitivo atua na criação de determinados mitos e estereótipos
contra certos grupos ou indivíduos, no sentido de impor preconceito e medo a
toda população. A realidade funcional deste sistema não é a seleção igual de
todos aqueles que ofendem bens jurídicos considerados essenciais ao convívio
social, assim como o senso comum teórico das doutrinas criminalistas
propugnam, mas sim a seleção de determinados sujeitos ao longo da história
considerados inimigos da ordem hierárquica e verticalizada da organização
social, baseada na exploração de determinados indivíduos contra outros.
Esta pesquisa, neste sentido, investigará justamente quais os principais
mecanismos jurídicos invocados para contenção social desta juventude
considerada, nas últimas décadas, como inimigo do sistema punitivo, ou
inimigo social. Assim, primeiramente cumpre verificar o que seria considerado
como inimigo, fazendo um breve recorte histórico sobre o aparecimento da
sua figura na história brasileira, sempre invocado no sentido de conferir
medidas extremas contra determinados indivíduos, bem como de manter
determinada ordem de manutenção das desigualdades sociais ao longo da
história.
Logo após, investiga-se a consolidação da figura da juventude pobre
como inimigo do sistema punitivo após a derrocada do período ditatorial e o
aparecimento do modelo neoliberal no território brasileiro. Neste sentido,
destaca-se justamente o incremento da tutela policialesca nas últimas décadas,
bem como o aperfeiçoamento de mecanismos de gestão seletiva da
criminalidade através do isolamento de determinados indivíduos considerados
perigosos, no caso, adolescentes pertencentes às parcelas mais pobres da
população encarnadas na figura do jovem narcotraficante.
Por fim, destacam-se dois dos principais mecanismos jurídicos de
contenção social da juventude pobre brasileira: a utilização desmesurada da
internação provisória, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente como
forma de restringir, antes da sentença, a liberdade de determinados
adolescentes acusados de cometer algum ato infracional; a internação
compulsória, prevista na Lei n. 10.216 de 2001, como forma de controlar e
isolar jovens viciados em drogas, sobretudo as ilícitas, através de estratégias de
higienizaçãoda segurança pública combinadas com o aparato médico, contra
determinadas localidades pobres nas grandes cidades brasileiras.

166
1- O inimigo no sistema punitivo

Ao levar em conta o discurso elaborado pelas agências oficiais do


controle social (Polícia, Judiciário, Ministério Público, etc.), percebe-se o
combate à violência como um de seus elementos constitutivos. A violência se
mostra, então, discursivamente como um problema externo – pré-constituído
– ao sistema penal, a que este deve lutar para acabá-la, ou, pelo menos,
diminui-la, visando à paz social (LIMA apud SANTOS, 1999, p.57).
Mesmo a justiça criminal, ao agir no sentido de retirar a liberdade de um
indivíduo, supostamente atua de forma legítima, mantendo o bem-estar
social. Seria, portanto, o lado bom da violência, a violência antiviolência
admitida.
É certo que a terminologia violência assume inúmeros contornos,
podendo ser aplicada no mesmo sentido de agressão física ou de qualquer
dano aos bens de outra pessoa, bem como pode ser referir à violência
simbólica (BOURDIEU, 2007, p.14-15), à violência praticada pelas
instituições públicas, seja por ação positiva (repressão, tortura) ou negativa
(inobservância de algum direito social básico). Estas últimas não estão, dentro
da estrutura discursiva das agências, pré-constituídas ao sistema penal, mas
participam também da construção discursivo-ideológica inerente ao sistema.
Nesse sentido, ao tratar discursivamente do combate à violência de
forma irrestrita, o sistema punitivo, no entanto, está construindo parcialmente
seu conceito de violência e quais indivíduos estariam predispostos a se
tornarem violentos – ou agressivos. Hodiernamente, o sistema prega o
combate intensivo à violência, esta ocasionada pela questão do narcotráfico e
do chamado “crime organizado”, esquecendo-se, contudo, de que outras
formas de violência são mantidas pelo encobrimento discursivo de suas
causas. Há, neste sentido, um tipo de violência inerente ao próprio sistema: a

167
violência institucional, que impede uma verdadeira igualdade entre os
indivíduos, ou seja, o sistema punitivo está funcionalmente determinado a
garantir que haja perpetuação da desigualdade entre os indivíduos através da
seleção de apenas uma parcela dos comportamentos indesejados, construindo
um conceito parcial de violência inerente à atitude apenas do suposto agressor
selecionado. Ao combater a violência de forma ampla e irrestrita, o sistema
punitivo apenas combate àqueles fatos e indivíduos considerados
inconvenientes para manutenção da ordem dominante. Observa-se, neste
sentido, que a base de sustentação do sistema é na gestão da violência, e não
no combate à mesma.
Há, portanto, na base de sustentação do poder punitivo, a criação de
determinados mitos e estereótipos que superestimam a agressividade ou a
periculosidade de determinados indivíduos ou grupos sociais para o restante
da população – preconceito que impõe medo – (ZAFFARONI, 2004, p.18),
bem como que legitimam outros tipos de violência – relações sociais
desiguais, genocídio, torturas –, pertencentes à própria atuação funcional do
sistema para a defesa em prol da sociedade.
No sentido invocado por Zaffaroni, o inimigo seria aquele em que o
direito nega sua condição de pessoa, seriam aqueles indivíduos ao longo da
história privados de certos direitos individuais pertencentes ao restante dos
cidadãos, pois, diante de suas condições de periculosidade, não mereceriam o
tratamento digno do restante da sociedade. Neste sentido, Zaffaronise baseia
no pensamento de Agamben (2002, p.189), que aborda figura do homo sacer,
ou homem sacro, no qual estaria incluída uma vida sem valor – vida nua –
uma vida que não merece ser vivida – e, dessa forma, pode ser impunemente
eliminada, ou seja, “qualquer um pode matá-lo sem que se cometa um
homicídio”. Agamben formulará a ideia de que nenhuma vida é mais política

168
do que a sua, pois guarda uma profunda relação com o poder que a
considerou como tal.
A partir desta delimitação, Zaffaroni (2004) irá defender que “o
inimigo [...] nunca desapareceu da realidade operativa do poder punitivo nem
da teoria jurídico-penal (que poucas vezes o reconheceu abertamente e, quase
sempre, o encobriu com os mais diversos nomes)”(p. 18). O conceito acaba
atravessando a história de Roma na antiguidade, ao perpassar por toda
história do direito ocidental e penetrando também na realidade operativa dos
sistemas punitivos na América Latina, onde somente mudaram os sujeitos
selecionados às diversas formas de tratamento conferido. A história de um
poder político centralizado e a necessidade de, para sua afirmação, determinar
o isolamento ou até a aniquilação de determinados sujeitos, estará sempre
presente na realidade operativa do sistema punitivo.
A partir de Agamben e Zaffaroni, através do inimigo no direito penal
e do homo sacer, este trabalho vai tecendo seu foco central de análise. O
inimigo pode ser encarado através de vários sujeitos ou grupos ao longo da
história. A criação do inimigo, de seus mitos e estigmas, está profundamente
relacionada à funcionalidade central do poder punitivo, garantindo, assim, a
necessidade de intervenção por parte deste poder para afastar a ameaça. A
necessidade de criação de uma determinada categoria de indivíduos, em que
seria necessário retirar parte ou a totalidade das garantias e direitos, inclusive
a vida se preciso for, é um elemento central na história do sistema punitivo,
principalmente na consolidação do sistema capitalista.
No decorrer da tradição histórica ocidental foram criadas cargas de
valores negativos contra determinados indivíduos ou grupos sociais, no
sentido de atribuí-los boa parte dos problemas sociais (ZAFFARONI, 2004,
p.14). Essa carga negativa traz como consequência a necessidade de uma
atuação energética em razão da periculosidade imanente do inimigo [1], o

169
que causa obstáculos para a consecução de uma sociedade melhor. Assim, há
a individualização dos problemas sobre determinados estereótipos criados ao
longo da história para selecionar indivíduos como verdadeiros bodes
expiatórios dos problemas sociais (ZAFFARONI et al., 2003, p.46).
Verificam-se, ao longo da história, discursos arbitrários ou racionais na
tentativa de justificar a atuação fora dos parâmetros considerados ordinários
do poder punitivo contra os verdadeiros inimigos, no sentido de afastar as
ameaças sociais que eles representam, atribuindo, através do coro da
excepcionalidade, medidas sem limites [2], justificando torturas, tratamentos
desumanos ou degradantes [3]. Além disso, as tentativas de conferir
racionalidade ao discurso penalizante do inimigo, na medida da estrita
necessidade, ou na necessidade imperiosa da medida, apenas serviram para
encobrir as reais finalidades de perseguição e repressão sobre determinados
indivíduos ou grupos estereotipados, através do subjetivismo dos agentes do
sistema penal. Neste sentido, remete-se o leitor ao próximo tópico.

2- Breve histórico sobre o combate ao inimigo no brasil.

A conquista dos territórios americanos através do extrativismo e da


exploração servil das populações indígenas foi um marco importante para a
consolidação dos Estados centralizados na Europa e para a afirmação do
modelo capitalista baseado no mercantilismo. Para Zaffaroni (2004, p.34-35),
o poder punitivo foi empregado na América colonizada para converter os
territórios tradicionais em grandes campos de concentração, eliminando a
população americana e reduzindo o restante à condição de escravo para a
monocultura latifundiária ou para a mineração, bem como a exigência de mão
de obra servil proporcionou o tráfico de habitantes do continente africano.
Neste sentido, as populações tradicionais começam a se encaradas como

170
inimigas frente ao crescimento econômico gerado pelas riquezas obtidas nas
colônias americanas.
Nesse sentido, Zaffaroni (2004) afirma:

Fora da Europa, o poder colonialista legitimado por estes discursos


exerceu-se sob a forma de genocídio, eliminando a maior parte da
população americana, desbaratando suas organizações sociais e
políticas e reduzindo os sobreviventes à condição de servidão e
escravidão. A exigência de mão-de-obra extrativa determinou o
tráfico escravista africano, levado a cabo por comerciantes ingleses,
franceses e holandeses, que compravam prisioneiros e inimigos dos
régulos da costa da África, provocando, deste modo, a destruição
das culturas pré-coloniais dos dois continentes (p.35).

Não é à toa que neste período havia discursos justificadores da


colonização e da “conquista” do território americano por parte da Igreja
Católica, justamente para livrar as populações tradicionais, que eram tratadas
como criaturas selvagens e de alma inferior, do “mal” e do “pecado”. O mito e
o perigo sobre selvagem traziam o medo aos colonizadores, em razão das
dissidências e guerras que poderiam advir durante a colonização.
Nota-se, portanto, a imensa preocupação durante o período colonial
sobre os possíveis dissidentes que não aceitavam a dominação. Estes deveriam
ser exterminados, pois não aceitavam a conquista do “moderno”, da
“civilização”, do selvagem. Justamente por isto, a eficácia centralizada e
militarizada conseguiu exterminar, material e simbolicamente, boa parte da
população americana entre os séculos XV a XVII.
No entanto, a representação do poder das metrópoles centralizadas,
em muito, estava centrada na figura dos latifundiários. Houve, neste sentido,
uma lenta implantação das burocracias estatais, sobretudo nos rincões mais

171
afastados das grandes vilas. Durante este período, existia a confluência de um
Direito Penal doméstico com bases escravistas, na qual os donatários
decidiriam sobre os conflitos dentro da sua jurisdição fundiária. Foi somente
a partir de meados do século XVIII que a centralização oligárquica foi
progressivamente tomando o lugar das descentralizações fundiárias com a
independência das colônias. No entanto, tal mudança não constituía a
retirada dos poderes dos grandes senhores de terras, apenas a organização se
tornou centralizada e codificada. As penalidades contra os dissidentes – os
inimigos – ainda continuavam de forma arrasadora. Zaffaroni (2004) assim
aclama:

A independência significou muitas vezes apenas a ascensão da


limitada classe dos brancos descendentes de colonizadores. Justiça
exercida por grandes proprietários de terras, penas de morte
privadas, assassinatos de dissidentes, repressão em massa,
recrutamento forçado de mestiços e mulatos para os exércitos,
polícias de ocupação, arbitrariedades e torturas, degolas,
aprisionamento sem processo, estados de exceção permanentes e
fenômenos de incrível corrupção foram correntes nestes imensos
campos de concentração. (p.47-48).

A partir do século XIX, atraídos pela codificação implantada


inicialmente pelo Código Napoleônico, mas que depois vai se espalhar pelas
codificações penais liberais dos Estados Unidos, os Estados Latino-
Americanos passaram também a prescrever suas codificações penais. A
primeira foi o Código Criminal do Império Brasileiro de 1830, que
influenciou e precedeu vários outros códigos criminais na América. Durante
este período, observa-se claramente a união entre os ranços coloniais e os
princípios liberais. Por exemplo, no Brasil havia a contradição entre o modelo

172
escravista, que somente vai entrar em decadência no final do século XIX, e o
liberalismo clássico, presentes nas prescrições contidas no Código Criminal.
A pena de prisão foi gradualmente sendo aplicada nos casos
anteriormente tratados através de suplícios, degolas e deportações. No lugar
de exterminar para impor medo, era necessário converter a grande massa em
trabalhadores assalariados. Por isso, a necessidade imperiosa da criação de
uma instituição que disciplinasse os dissidentes e impusesse também uma
disciplina à população em geral (FOUCAULT, 1987, p.126). Entretanto,
apesar de o panorama inquisitorial ter sido atenuado pelo discurso codificado,
poucas modificações na prática lograram êxito, principalmente para os
inimigos. As penalidades para os escravos dissidentes, por exemplo, poderiam
ser aplicadas pelos senhores através da abertura conferida no Código Criminal
Imperial.
Assim, denota-se que, para determinados indivíduos potencialmente
perigosos, a repressão punitiva os trata de forma diferenciada de outros
cidadãos ao longo da história. Na América Latina, observa-se claramente tal
oralidade através da tentativa de implementação de um discurso liberal de
fachada sem, contudo, observar que as reais finalidades de quem detém o
poder é a manutenção das desigualdades e a vigilância permanente sobre os
perigosos.
O início do século XX irá marcar a mudança de um paradigma de
Estado Liberal para a transformação deste em um modelo intervencionista.
Há, nesse sentido, a mudança das codificações pseudoliberais assumidas pelos
países latino-americanos por prescrições penais de cunho perigosistas,
advindas dos países europeus, como o Código Rocco, na Itália, em 1930. As
Repúblicas Oligarcas, gradualmente, seriam substituídas pelos governos tidos
por populistas. Nesse contexto, o industrialismo e o crescimento das grandes
cidades nas Américas também são fatores importantes para a mudança das

173
legislações. Era necessário conter o impulso dos trabalhadores grevistas que
causavam distúrbio ao bom funcionamento da disciplina fabril, bem como era
necessário controlar também os “problemas” causados pelos desempregados –
os vadios –, gerados a partir da vinda de grande massa de escravos libertos e
de trabalhadores estrangeiros para a cidade.
As medidas de segurança prescritas pelo Código Penal Brasileiro de
1940, por exemplo, demonstram que, apesar das prescrições técnico-liberais,
contidas no decorrer do Código, eram reservadas medidas excepcionais para
aqueles que demonstravam um grau acentuado de periculosidade, sem prazo
de término. As medidas de segurança (BATISTA, 2007, p.38), portanto
conferiram uma excepcionalidade para os inimigos em potencial, isto é, dos
comunistas, dos vagabundos e dos desordeiros da ordem disciplinar da época.
Nesse sentido, também se invoca como modelo figurativo do
perigosismo o Código de Menores de 1927, pois o mesmo prescrevia um
amplo poder de tutela dos magistrados sobre os adolescentes em situação de
abandono, delinquência ou mendicância (PINHEIRO, 2006, p.69-80). Era
preciso para o discurso dominante, durante aquele período de crescimento
urbano, dar conta da quantidade de jovens em situação de rua, bem como do
aumento das taxas de delinquência. A disciplina e vigilância sobre os jovens
perigosos, isto é, aqueles em situação irregular (ou melhor, sobre a juventude
pobre) foram à tona no debate sobre a intervenção estatal infanto-juvenil,
assunto a ser tratado no próximo capítulo deste trabalho.
A preocupação específica do Código de Menores de 27 (o que fez com
que fossem modificadas as estruturas de responsabilização infanto-juvenil
para com a dos adultos, assim como era antes da década de 20) foi a
necessidade, a partir do cientificismo positivista da época, de reformular
moral e socialmente crianças e adolescentes pobres. Nesse contexto, era
necessário, a partir do discurso oficial, criar uma estrutura específica que

174
moldasse jovens desvirtuados para que estes se adaptassem às estruturas de
dominação da época. Irá surgir, dessa forma, o gérmen de uma nova categoria
de inimigo que irá se desenvolvendo até atingir seu apogeu no final do século
XX e início do XXI.
É importante ressaltar que no período de intensa industrialização no
cenário brasileiro (início do século XX) era importante o controle e o
disciplinamento das classes sociais menos abastadas, através da figura de
exaltação para o trabalho e de construção de uma nação forte e soberana.
Dessa forma, surge como ameaça a figura dos grupos contrários à disciplina e
à ordem de cumulação do capital (vagabundos, grevistas e desempregados).
Os governos populistas, de certa maneira, causaram ódio nas
oligarquias que antes dominavam o cenário político latino-americano,
respaldando também o protagonismo de alguns setores antes excluídos com o
crescimento do modelo do Estado de bem-estar social e de uma classe média
economicamente influente. No entanto, a partir do medo proferido pelo mal
comunista e a ameaça da formação de ditaduras comunistas nos moldes da
União Soviética, os setores tradicionais se uniram com os militares
influenciados ideologicamente sob o comando da política externa norte-
americana e impuseram golpes de Estado, a partir da década de 60, nos países
latino-americanos. Nesse período, começaram a se instalar em quase todos os
países da América Latina, longos períodos ditatoriais que tinham como
objetivo evitar a ameaça comunista através da instituição de um estado de
exceção para, logo após, entregá-los ao poder dos civis. No entanto, o que se
viu foi a tomada do poder através do extermínio de lideranças de
determinados grupos políticos, não deixando espaço para o reagrupamento ou
organização dos movimentos contestadores, seja através da repressão em
massa, seja por meio do medo social invocado pela busca aos supostos
terroristas.

175
Cria-se, a partir deste medo proferido pela ameaça comunista, a figura
do inimigo interno terrorista, a ser combatido através de medidas de exceção.
Observa-se que, discursivamente, o Estado protagonizava o combate aos
terroristas, quando, implicitamente, aplicava o terrorismo para a população
através de penas de morte, execuções sem processo, torturas implícitas,
desaparecimentos forçados, dentre outras medidas extremas. Havia, nesse
sentido, “um sistema penal paralelo que os eliminava mediante detenções
administrativas ilimitadas [...] e um sistema penal subterrâneo, que procedia à
eliminação direta por morte e ao desaparecimento forçado, sem nenhum
processo legal” (ZAFFARONI, 2004, p.51).
A partir da derrocada destes regimes ditatoriais, bem como com a
decadência do modelo socialista soviético, a ameaça do inimigo terrorista
começa a sair de cena para uma nova categoria de inimigo: o narcotraficante.
Neste momento, cria-se uma nova guerra contra a ameaça subversiva que o
tráfico de drogas representa para os territórios latino-americanos. Entre as
décadas de 70 e 80 do século passado, praticamente toda a região sancionou
leis antidrogas muito parecidas [4], as quais consideravam a diferença entre
consumidor, com penas mais brandas, e o traficante, com o aumento da
penalidade, bem como, “desconheceram o princípio da ofensividade, violaram
a autonomia moral da pessoa, apenaram enfermos e tóxico-dependentes”
(ZAFFARONI, 2004, p.52).
A valoração negativa sobre o inimigo traficante – o jovem não branco
que mora normalmente nasperiferias e favelas das grandes cidades – é
consequência da falência do modelo prestacionista do Estado implantado
durante os governos populistas do início do século XX, que trouxe, além do
desmantelamento da assistência aos setores mais excluídos, uma diminuição
do poder aquisitivo da classe média, o aumento no desemprego, a
flexibilização salarial, os subempregados, os empregos temporários, dentre

176
outros problemas (WACQUANT, 2001, p.25-26). Nesta seara, o aumento
exorbitante da tutela policialesca e do encarceramento também é uma
constante neste novo modelo punitivo, passando a aumentar a prescrição de
condutas baseadas meramente no comportamento perigoso do autor com o
objetivo de pôr fim à insegurança dos indivíduos diante do risco imanente em
relação ao outro, ao desconhecido.
A legislação penal antidrogas foi apenas uma consequência da eficácia
discursiva da criação de um novo modelo autoritário de Estado sobre
determinados indivíduos. Há o que a jurista Maria Lúcia Karam aponta como
a consolidação de um modelo neoliberalista (na economia e na política)
juntamente com um novo modelo autoritarista de Estado – o
Neoautoritarismo – sobre determinados indivíduos (KARAM apud
ANDRADE, 2001, p.134). Neste contexto histórico, o Código de Menores
de 27 dá lugar ao de 79, que veio a aperfeiçoar a doutrina da situação
irregular, com a tutela arbitrária de jovens adolescentes pobres, possíveis alvos
para o mal proporcionado pelo tráfico ou pela desordem dos comunistas,
tornando-seum problema de segurança nacional.
Neste sentido, adolescentes considerados “desviados” do bom convívio
social deveriam ser isolados deste meio, na medida em que poderiam
representar um problema para a segurança do país. Assim, jovens em situação
considerada irregular (como se fosse um atestado de não sujeito para o
sistema punitivo), eram punidos a partir do discurso da prevenção social, da
reeducação, da busca para o melhor do adolescente.
O discurso da aplicação de medidas, tendo como base o melhor
interesse do adolescente influenciou, e ainda influencia (é claro!), medidas
deveras arbitrárias para determinados tipos de indivíduos, escolhidos a partir
de sua personalidade, sua cor, sua família e, principalmente, sua classe social.
Além disso, representa a consolidação cada vez mais clara da centralização da

177
juventude pobre como inimiga no contexto social brasileiro, assim como será
tratado no próximo tópico.
A história do sistema punitivo reservou, portanto, espaço para uma
arbitrariedade contra determinados inimigos simbólicos, selecionados a partir
da oportunidade de cada momento histórico sobre os grupos considerados
mais vulneráveis, assim como a eficácia discursiva implementada, seja através
das legislações repressivas de exceção, seja por meio da disseminação do medo
preconceituoso, conseguiu implementar uma desigualdade inerente ao
controle sociopenal, que depender da disputa das relações histórico-materiais.
A punição dos entes perigosos destoa dos princípios elementares aplicados
pelas garantias individuais, considerando apenas a natureza perigosa
estereotipada pelo indivíduo, poucose preocupando se a medida aplicada tem
caráter de pena ou não. Assim, faz-se importante a sujeição física e moral do
inimigo.

3- A consolidação da juventude pobre como “inimigosocial”

Nas últimas décadas, o discurso implementado foi o de conter a


ameaça do narcotráfico através dos alvos perigosos em potencial: os jovens
moradores das periferias e dos espaços públicos. Apesar deno Brasil o Código
de Menores de 79 ter sido totalmente revogado na década de 90 por uma
legislação menos arbitrária e mais garantista – O Estatuto da Criança e do
Adolescente –, aquele ainda continua presente discursivamente na aplicação
dos agentes do controle social. A atividade dos órgãos do sistema punitivo
está, assim, predisposta à construção material e simbólica negativa sobre o
jovem desvirtuado, pertencente às classes menos abastardas da população,
juntamente com as modernas políticas criminais implementadas pelo

178
neoliberalismo, que influenciam a maneira de decidir sobre matéria de
responsabilização de adolescentes supostamente em conflito com a lei.
O triunfo do mercado todo poderoso (WACQUANT, 2008, p.12-13)
traz, ao mesmo tempo, a afirmação de um governo mínimo, a nível global,
para as políticas sociais fundadas no modelo de Estado de bem-estar social e
de um incremento nas políticas de segurança pública e de contenção dos
chamados setores de risco, isto é, das populações excluídas pelas políticas do
estado mínimo e de precarização do trabalho. De acordo com De Giorgi
(2006, p.80-81), a estrutura do controle social montada pelo Estado passa, no
processo de acumulação pós-fordista, a atuar sobre administração do excesso,
da multidão constituída pelos rejeitados do processo de acumulação flexível.
Para o referido autor, o conceito de multidão, composta por um conjunto
indiferenciado de indivíduos, aparece a partir do declínio a nível global do
conceito de povo, ligado à soberania nacional, e do conceito de classe
operária, relacionado à produção fabril fordista. Estes dois últimos se
relacionavam à centralidade do emprego e às conquistas de cidadania social
durante o apogeu do keyseanismo e do fordismo, enquanto a multidão estaria
relacionada ao “esgotamento da soberania estatal e a emergência do domínio
imperial” (DE GIORGI, 2006, p.81).
O controle social adquire nesta nova fase a função essencial de gestão
do risco, advindo através da multidão, ou seja, do perigo representado pela
massa de subproletariados, de desempregados e das demais parcelas da
população que não se encaixam no modelo de acumulação. Essa gestão é
efetivada através da repressão e do isolamento preventivo das populações de
risco. O risco efetuado pela presença destes grupos já representa uma ameaça
que deve ser gerida preventivamente para conservação da ordem. Camila
Prando e Felipe Prando (apud ANDRADE, 2002, p. 156) apontam, neste
sentido, que os desempregados por si já cumprem um delito de

179
incompetência moral e, por isto, devem ser geridos, mantidos sob isolamento
e vigilância constante, seja através de barreiras físicas ou de simbólicas
presentes no imaginário coletivo, seja por meio das representações. Esses
novos dispositivos já não tem a função essencial de disciplinamento ou de
reeducação, mas, sim, como centralidade, a simples gerência preventiva.
Portanto, as características centrais do controle social, advindas desde
o último quartel do século passado até hoje, concentram-se sobre o
tratamento preventivo das populações consideradas perigosas através do
discurso do isolamento, tendo como base a ameaça que deve ser neutralizada
através de medidas mais severas e políticas repressivas mais eficientes.
Nas palavras de Gabriel Anitua (2008):

O fato que se fala tanto em “gerência” significa que a penologia de


princípios do século XXI não pretende castigar, ética ou
juridicamente, nem reeducar ou reabilitar, nem tampouco eliminar
a delinqüência no futuro, mas simplesmente torná-la tratável ou
tolerável. O sistema penal adquire uma função gerencial, já que se
converte no mecanismo de gestão daqueles grupos de risco, através
de instrumento que vão desde o confinamento em cárcere de
simples custódia, até sistemas de monitoramento eletrônico, novas
formas de vigilância, impedimentos físicos, etc. (p.815-816, grifo
do autor).

O risco da multidão supostamente perigosa trará, para o discurso do


controle oficial, o hiperdimensionamento do medo, através do sentimento de
insegurança provocado pela presença quase que permanente dos condenados
da metrópole (WACQUANT, 2008, p.107), seja nas ruas, nas praças, nos
parques, ou nas periferias. O medo trará junto o discurso do recrudescimento
das medidas, sejam penais ou socioeducativas, da vigilância e contenção dos

180
indivíduos e grupos perigosos, da busca pela paz social através da gerência da
multidão miserável. O crescimento generalizado do Estado repressor,
juntamente com a redução das garantias penais e processuais, garantiu um
importante elemento para o apogeu do chamado governo da insegurança
social, que, através da difusão de estigmas que impõe o medo a uma
determinada parcela da população, conseguiu, aos poucos, consolidar a
expansão do modelo de acumulação de capital e a diminuição das barreiras
regulatórias dos Estados nacionais, encobrindo os problemas sociais
provocados por esta nova ordem mundial.
O declínio da doutrina da Segurança Nacional no Brasil foi
acompanhado por uma nova forma de atuação do controle social sobre
determinados indivíduos. Agora, o discurso dominante encara o narcotráfico
como a mazela social a ser combatida através de uma guerra genocida sobre o
inimigo comum – o narcotraficante – representado essencialmente através da
população jovem desempregada ou subempregada, que mora na periferia ou
nas ruas das grandes metrópoles do país. É necessário, antes de tudo, como
em uma guerra, conter o risco e as ameaças da desordem social provocados
pelo tráfico de entorpecentes, utilizando-se de todas as formas possíveis,
sejam autoritárias ou não.
Nesse sentido, o recrudescimento do aparato penal e a utilização da
tutela repressiva se tornaram extremamente perversos para determinadas
populações, constituindo em um novo tipo de autoritarismo com formas de
atuação tão – ou mais – duras quanto no período ditatorial. É o que alguns
autores, como Vera Malaguti, apontam como um novo tipo de autoritarismo
através do sistema penal: “O econômico é tão perverso que desmoralizou as
democracias representativas, construindo estatísticas de encarceramento,
tortura e extermínio infinitamente superiores aos do período da ditadura
militar no Brasil” (MALAGUTI apud KARAM, 2005, p.54).

181
As mudanças estruturadas nas últimas décadas trouxeram para dentro
do controle social a figura do jovem, na maioria das vezes adolescente, não
branco, morador da periferia, desempregado ou subempregado, como
principal inimigo a ser combalido, isolado ou exterminado. A figura da
população jovem supérflua para a sociedade de consumo, e, por isso mesmo,
constituindo-se no excesso abordado Alessandro De Giorgi (2006, p.83),
torna-se, ao mesmo tempo, a maior vítima por falta de oportunidades e de
políticas sociais e a maior responsável pelo incremento das políticas de
segurança pública.
Nos últimos anos, segundo o Mapa da Violência de 2011publicado
pelo Instituto Sangali e o Ministério da Justiça [5], a taxa global de
mortalidade da população brasileira caiu de 633 em 100 habitantes, em 1980,
para 568 em 2004, no entanto, a taxa de mortalidade juvenil (de pessoas entre
15 a 24 anos) aumentou de 128, em 1980, para 133 a cada 100 mil jovens, em
2008. A maior fatia está relacionada ao número de homicídios, que
corresponde a 39,7% do total de fatores que levaram à morte de algum jovem,
enquanto na população não jovem este número não ultrapassa 1,8%. O
excesso composto pelos consumidores falhos são os que mais sofrem em
relação ao aumento do aparato repressivo estatal e à grande falha nas políticas
sociais.
Apesar do avanço significativo no enfrentamento à miséria nos últimos
anos em virtude do atendimento e da prestação de benefícios e serviços
assistenciais para a população que mais necessita, tais prestações estatais não
foram responsáveis por colocar em cheque o problema da manutenção de
desigualdade social do país (MENDEZ apud ILANUD, 2006, p.15), que
ainda é uma das maiores do mundo [6]. Esta situação desigual irá refletir no
sistema de controle punitivo, dado que está predisposto a selecionar

182
determinados sujeitos, principalmente jovens pobres da periferia das grandes
cidades.

4- As principais estratégias jurídicas de controle da juventude: a internação


provisória e a internação compulsória

O discurso do controle social através de medidas de prevenção contra


populações de risco trouxe consigo novos paradigmas para a disputa dentro
do campo jurídico, mais precisamente, dentro da dogmática tanto do Direito
Penal quanto da Justiça Juvenil no tocante à apuração do ato infracional, que
passou a conviver de forma mais ativa com o controle da periculosidade
abstrata. Os discursos na jurisprudência e na doutrina passaram a fortalecer o
mito dos supostos indivíduos perigosos, bem como que as chamadas tutelas
provisórias (internação provisória para adolescentes, prisões cautelares para
adultos) passassem da exceção para a regra. Há, nessa perspectiva, o
fortalecimento do desvalor da figura do agente em detrimento do desvalor da
ação que porventura possa ter feito. Princípios que em tese poderiam limitar o
agir estatal, como o da lesividade e o da ofensividade, são deixados de lado em
virtude da necessidade de agir eficazmente contra um suposto inimigo, o qual
deve ser perseguido, excluído ou até exterminado.

4.1- A Internação Provisória

A internação provisória, prevista no art. 108 do Estatuto da Criança e


do Adolescente, demanda que pode ser retirada a liberdade do adolescente
antes da sentença a partir de indícios suficientes de autoria e materialidade do
ato infracional e demonstrada à necessidade imperiosa da medida. Nesse
sentido, destaca-se a questão da instrumentalidade da medida em função do

183
processo, e não efetivamente em razão da prática do ato infracional, fato este
a ser provado durante o processo com a participação essencial do
contraditório. Assim, não é possível conceber a aplicação de tal medida como
forma de punição pelo ato infracional imputado ao adolescente, mas sim em
função da manutenção do bom andamento do processo de apuração e
responsabilização pelo ato infracional.
No entanto, a prática tem demonstrado que as medidas de internação
provisória estão cada vez mais sendo utilizadas como forma de punição, antes
do processo, de adolescentes acusados de cometer atos infracionais. Não é à
toa que tal medida, antes da sentença final do juiz, funcionaria como uma
forma de etiquetação prévia do adolescente supostamente perigoso,
demonstrando que tais sujeitos (ou melhor, não sujeitos), estão sendo punidos
pelas suas características pessoais, e não pelo fato cometido, já que tal situação
deve ser apurada no devido processo legal, com a participação da ampla defesa
e do contraditório. Nesse sentido, cumpre apontar que, entre 2004 e 2009, a
quantidade de adolescentes internados provisoriamente cresceu 23%.
A internação provisória acaba sendo, estrategicamente, o meio mais
eficaz para punição do adolescente sem necessariamente passar por todos os
trâmites processuais. Assim, apenas demonstrados o requisitos amplamente
discricionários (necessidade e indícios de autoria/materialidade), o
adolescente será internado. Neste sentido, as garantias presentes no processo
de responsabilização (ampla defesa, contraditório, presença dos pais), bem
como o próprio processo de responsabilização desaparecem para a punição
efetiva do adolescente de forma sumária (nos 45 dias previstos legalmente
para a medida). Não é à toa que o prazo máximo dos 45 dias acaba se
tornando a regra geral: o adolescente será internado por 45 dias e não, no
máximo, por esse tempo.

184
Assim, não importa qual medida final será dada ao adolescente
acusado da prática do ato infracional através da sentença judicial, o que está
em jogo, no momento, é a possibilidade de isolamento de determinados
sujeitos: os inimigos. Para estes, medidas, como a internação provisória, são
salutares, pois conseguem justamente relativizar as garantias individuais para
adolescentes considerados em situação irregular, já que esta nunca
desapareceu da realidade operativa da justiça juvenil.
Não se está aqui, contudo, pregando o final da internação provisória
para adolescentes. Apenas não se concorda com sua a utilização absurda e
desmesurada, o que acaba por trazer à tona justamente a justificação
(racional) de punição desmesurada para determinados inimigos. A internação
provisória deve ser excepcional e invocada a partir de balizas mínimas, as
quais podem ser trazidas a partir do auxílio do Código de Processo Penal
(CPP arts. 312 e 313) e da Constituição Federal (Princípio da não-
culpabilidade), sem esquecer que tal instituto (internação provisória) ainda
carece de formulações mais claras e precisas.

4.2- A Internação Compulsória

Cumpre adicionar, no paradigma atual, o aumento da repressão sobre


os supostos viciados, ameaçadores à ordem social, assim como ocorreu na
localidade conhecida como “Cracolândia”, no centro de São Paulo. Este é
apenas um caso no decorrer desta história recente, envolvendo a limpeza
étnica de populações pobres, supostamente ligadas ao consumo ou tráfico de
drogas, de locais estratégicos, por representarem possíveis ameaças. A
presença daquele inimigo representa um delito que deve ser repelido de forma
mais eficiente possível para locais onde não possam mais representar perigo –
contenção e exclusão social destas populações. No Rio de Janeiro, a

185
necessidade de intervenção sobre locais estratégicos – as favelas de alguns
morros cariocas – para expulsão dos comandantes do tráfico e instalação de
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s) – espécie de policiamento ostensivo
dentro das favelas – trouxe à baila a intervenção repressiva – chamada de
ocupação. Tal fato ocorre com ajuda das Forças Armadas, força atuante em
momentos de exceção, reafirmando o trato autoritário por parte do Estado na
resolução de conflitos, envolvendo o uso ou o comércio de drogas
consideradas ilícitas pela população mais pobre [7]. Sem falar no uso de
medidas, como a internação compulsória para jovens supostamente com
dependência de alguma droga.
Os argumentos técnico-jurídicos favoráveis invocam a necessidade de
internação compulsória daqueles que não tem capacidade de discernir, pelo
vício e o completo estado de sujeição às drogas, a possibilidade – perigo – de
futuros delitos para manter o vício. Mais uma vez, os estereótipos pessoais –
ameaça imanente das populações estigmatizadas – conduzem à receita de
seletividade usual através de medidas que mais se assemelham às de
segurança, ou às medidas de internação dos jovens abandonados ou vadios,
presentes no início do século passado. É necessário expor que este trabalho
não vai de encontro à necessidade de criação de clínicas de reabilitação
especificadamente para jovens, mas enfatiza que as mesmas devem ser
acompanhadas de políticas públicas efetivas e prioritárias, tendo sempre em
mente a condição de adolescentes como sujeitos de direitos e não objetos de
uma novel intervenção involuntária – melhor seria chamar de autoritária. No
entanto, é sabido que a internação compulsória não é nada mais do que outro
instrumento de contenção de uma população há muito chamada de
ameaçadora, com ajuda, mais uma vez, do discurso da necessidade de
intervenção para crianças e adolescentes, tendo como base a proteção para o
seu próprio bem.

186
Nota-se, neste sentido, que a aplicação desta medida, de forma
involuntária, é mais um flanco de ataque das instituições oficiais, com
fundamento na doutrina da situação irregular para a seletividade e contenção
de crianças e adolescentes pertencentes ao subproletariado. Neste sentido, o
discurso médico volta à tona atrelado às estratégias de segurança pública e de
contenção social de determinados grupos. No entanto, o uso deste tipo de
aparato científico não terá o condão de reedificação ou reeducação social, mas
sim a estratégia de controle geral de uma parcela supérflua da população.
Apesar de não estar prevista no Estatuto, a internação compulsória
como uma modalidade da internação psiquiátrica, prevista no parágrafo único
do art. 6º da Lei nº 10.216 de 2001[8], vem sendo utilizada com maior
frequência nos últimos anos para usuários de drogas moradores de ruas ou de
favelas [9], através de decisão judicial. Tais medidas vêm sendo tomadas com
base no discurso de que, diante da situação excepcional que vivem os usuários
de drogas altamente destrutivas, como o crack, seria necessário uma
intervenção médica no sentido de restaurar ou recuperar a vida daquele
indivíduo sem a necessidade de sua autorização pessoal.
O art. 6º da Lei supracitada aponta a possibilidade de três tipos de
internação psiquiátrica: uma voluntária, quando o próprio usuário consente
em ser internado; uma involuntária, quando se dá sem o consentimento do
usuário, mas com o pedido de terceiro, devendo ser comunicada ao
Ministério Público pelo responsável técnico do estabelecimento de saúde no
prazo de 72 horas; e uma compulsória, que será decretada mediante decisão
judicial devidamente fundamentada por juiz competente, sem também ser
necessária a anuência do paciente (art. 9º). No entanto, a Lei não prevê
necessariamente a internação específica para pacientes com dependência a
determinadas drogas, mas sim para pessoas com transtornos mentais de uma
maneira geral. Assim, apesar de se relacionar ao discurso médico-psiquiátrico,

187
a internação compulsória vem sendo utilizada como estratégia atrelada às
políticas de segurança pública em uma atuação de “guerra contra as drogas”.
Desta maneira, nos últimos anos, a internação compulsória de
adolescentes vem sendo efetuada, sobretudo, conjuntamente com grandes
operações de segurança pública. Estas operações têm como finalidade
precípua o afastamento de jovens dependentes químicos dos locais públicos
ou do convívio social, identificando a necessidade de um tratamento médico
especializado que possa lhes salvar a vida e lhes conferir uma suposta
dignidade, ou seja, buscar uma hipotética proteção através da internação em
clínicas especializadas no tratamento do drogatício [10].
No entanto, a internação compulsória vem se apresentando mais como
uma política oficial de controle social, através da vinculação entre transtorno
mental e psiquiátrico à gestão da delinquência juvenil, do que como uma
política vinculada estritamente ao tratamento médico e psiquiátrico daquele
usuário dependente. O aumento considerável no número de internações
efetuadas pelo Estado nos últimos anos [11] conjuntamente com uma política
de segurança pública cada vez mais nefasta para com determinadas
populações, sobretudo a juventude moradora de espaços públicos e da
periferia, aponta que a internação compulsória está sendo utilizada não para a
proteção específica daquele indivíduo dependente de drogas, mas como um
instrumento de controle, contenção e segregação do excesso produzido pelas
políticas neoliberais nos últimos anos. Não é por demais ainda demonstrar
que, nas últimas décadas, diante de discursos que giram em torno da
necessidade cada vez maior de desinternação de pacientes com transtornos
mentais. Isto ocorre através da necessidade de lhes conferir um tratamento
comunitário fora dos hospitais psiquiátricos, o crescimento da taxa de
internação compulsória de dependentes químicos soa mais como uma política
de controle e de segregação do que realmente de proteção, ou melhor, essa

188
política de proteção vem no sentido de uma estratégia de defesa social, da
prevenção da ameaça social gerada por determinados sujeitos indesejados.
Não é mais necessário, nestes casos, o cometimento, a apuração e a
execução de um processo infracional. O suposto perigo de vida corrido pelo
paciente no momento de justificar a internação compulsória afasta qualquer
necessidade de instauração de um processo infracional, no qual vai ser
auferida a responsabilidade sobre um ato determinado. O que é necessário
nesta modalidade interventiva é apenas obter a personalidade do adolescente e
verificar sua suposta incapacidade de discernimento individual pelo grau de
dependência química que sofre. Ocorre, portanto, aquilo que alguns autores
chamam de “psiquiatrização” e “medicalização” do discurso de controle sobre
determinados sujeitos indesejados. É retirada a ideia de capacidade de
discernimento e, por consequência, de responsabilização por qualquer ato
praticado, para controlar determinado indivíduo através de medidas tidas por
protetivas. Nesse mesmo sentido, é o discurso de que a medida socioeducativa
aplicada ao adolescente viria para protegê-lo e não para puni-lo.
Apesar do discurso médico e psiquiátrico combinados nas políticas de
segurança pública reavivar medidas demasiadamente autoritárias, assim como
fora na doutrina da situação irregular com o positivismo criminológico, aqui a
periculosidade não é auferida a partir de uma perspectiva biológica, social ou
mental do sujeito. O discurso agora reside justamente na necessidade de
gestão diferenciada de determinados grupos e indivíduos considerados
incontroláveis e que, portanto, devem ser isolados. A psiquiatrização do
controle social de adolescentes não ensejam, necessariamente, o controle de
um suposto transtorno mental, mas sim encobrir as relações sociais e
econômicas de exclusão presentes no neoliberalismo e efetivar um processo de
“desresponsabilização”, colocando-o na figura de mero expectador – objeto –

189
da imposição estatal, ligando-se à doutrina aqui tão combalida da situação
irregular.
A internação compulsória é, na realidade, outra medida capaz de
retirar todas as responsabilizações presentes no estatuto e, junto com elas,
todas as garantias individuais para invocar uma situação excepcional,
retirando a condição de sujeito de seus próprios atos. É também neste ponto
que a figura do inimigo encarado pelo adolescente indesejado, morador da
periferia ou dos espaços públicos, suposto usuário de drogas, atinge a sua
finalidade central.
O controle social, através da coisificação do adolescente dependente
químico, convocaria o discurso da necessidade de uma intervenção
segregadora para a contenção do excesso provocado pelas políticas neoliberais,
minimizando ou sensibilizando todas as garantias infanto-juvenis trazidas
pelo Estatuto e pela Constituição com base em uma suposta proteção,
resguardo ou reparação da própria vida do adolescente.
Assim, o discurso da internação compulsória consiste exatamente na
necessidade de supressão do processo e de suas garantias para a invocação de
um Estado de necessidade, no qual é absolutamente imprescindível a retirada
do adolescente indesejado do convívio social para sua própria proteção,
através do renascimento da doutrina da situação irregular conjugada com as
atuais políticas nefastas de segurança pública, efetivadas pelo neoliberalismo.

Considerações finais

O discurso de justificação do inimigo, nesse contexto, nunca


desapareceu da realidade operativa do sistema punitivo, bem como foi
essencial para a construção e efetivação do sistema capitalista e da exploração

190
de determinados grupos ao longo dos séculos, assim como foi demonstrado
acima.
Neste patamar, após a derrocada do sistema ditatorial no Brasil, a
figura do inimigo interno encarnada nos subversivos começa a deixar o
discurso das agências de controle social para a emergência de uma nova
categoria de inimigo: a juventude pobre moradora da periferia das grandes
cidades, relacionada ao problema do uso/comércio de entorpecentes ilegais. A
consolidação desta nova categoria de inimigo se deu, sobretudo, através da
edificação de um modelo de Estado e de política econômico-social, baseados
no paradigma neoliberal e na intensificação do estado policialesco.
Neste sentido, algumas medidas jurídicas foram fortalecidas no sentido
de isolar e punir determinados indivíduos considerados como inimigos (a
juventude pobre), através do discurso da excepcionalidade e da necessidade do
combate intensivo dos supostos narcotraficantes. Este discurso prioriza a
necessidade de controle de determinados indivíduos a partir de sua
personalidade e classe social, bem como através da relativização (ou supressão
total) das garantias presentes no processo de apuração do ato infracional e de
aplicação das medidas socioeducativas contra adolescentes.
As principais medidas são: a internação provisória e a internação
compulsória. Tanto uma como a outra estão sendo utilizadas de forma
intensiva nos últimos anos justamente através da utilização do discurso da
necessidade contra determinados indivíduos perigosos, bem como têm como
característica essencial a desnecessidade de processo, de suas etapas e de suas
garantias durante sua execução. Sem dúvidas, estas duas medidas vão ao
encontro do discurso enfatizado pelo neoliberalismo e da necessidade de
controle de uma multidão flexível, desnecessária e, portanto, descartável ao
modo de produção dominante.

191
É necessário, desse modo, defender as garantias infanto-juvenis
presentes nas legislações infanto-juvenis, compreendendo o adolescente como
sujeito de seus próprios atos e não a partir de discursos objetificantes que
venham no sentido de procurar o melhor ou a proteção dele. A busca por um
direito infracional mínimo não é a supressão das garantias que o compõe, mas
sim a efetivação dos instrumentos legais de proteção e respeito aos Direitos
Humanos infanto-juvenis, refreando as sensibilidades presentes no Estatuto
ou em outros instrumentos legais responsáveis por selecionar e controlar
adolescentes em uma suposta situação irregular.

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195
Notas de fim

[1] “Corresponde al jurista suizo Carl STOOSS el mérito de haber dado forma, a
fines del siglo pasado, a este concepto del llamado DUALISMO, al instituir, al lado
del sistema de la simple pena que se seguía hasta entonces, un sistema de medidas de
seguridad y corrección especiales. Con ello, el derecho -pernal se hace cargo de "dos"
medidas distintas: la pena en sentido estricto y las medidas de seguridad. Aquélla
considera la culpabilidad del autor, tal como se manifiesta en el hecho concreto
particular (medida referida al hecho), y éstas tienen en cuenta, independientemente
de la culpabilidad por el hecho, la peligrosidad del autor con miras al futuro
(medida referida al autor). Queda determinado de tal manera, de acuerdo con su
esencia, el principio del llamado dualismo.” (MEZGER, 1958, p. 392).

[2] “El internamiento dura solamente el tiempo que exija el cumplimiento de su


objeto (S 42, f), pues como el internamiento no tiene por objeto una retribución por
el injusto cometido, sino la protección de la comunidad frente a una persona
peligrosa, debe tardar tanto tiempo (pero no más) como lo exija esa necesidad de
protección. Por eso no se debe establecer ningún límite de tiempo en el fallo.”
(WELZEL, 1956, p.262-263).

[3] “Internación en una casa de trabajo. Se aplica a los "antisociales": pordioseros,


linyeras, prostitutas, etc. Presupuestos: el autor debe ser condenado a arresto por
mendicidad, vagancia, prostitución o cosas semejantes, y el internamiento debe ser
necesario para acostumbrarlo al trabajo y a la vida social. Para los incapacitados de
trabajar no se debe disponer el internamiento; cuando ya está dispuesto, se debe
efectuar en un asilo.” (WELZEL, 1956, p.261).

196
[4] No Brasil em 1976, na Argentina em 1989, no Peru em 1982, na
Venezuela em 1984, no Chile em 1985, na Colômbia em 1986, na República
Dominicana, no Paraguai e na Costa Rica em 1988.

[5] “Se na população não jovem só 1,8% dos óbitos são causados por
homicídios, entre os jovens, os homicídios são responsáveis por 39,7% das
mortes. Mas essas são as médias nacionais. Em alguns estados, como
Alagoas, Bahia, Pernambuco, Espírito Santo e Distrito Federal, mais da
metade das mortes de jovens foi provocada por homicídio (mapa da v. p. 18).
A taxa global de mortalidade da população brasileira caiu de 633 em 100 mil
habitantes, em 1980, para 568, em 2004, fato bem evidente na no aumento
da expectativa de vida da população, um dos índices cuja progressiva melhora
possibilitou significativos avanços no Índice de Desenvolvimento Humano –
IDH dos últimos anos. Apesar desses ganhos gerais, a taxa de mortalidade
juvenil manteve-se praticamente inalterada ao longo do período, e só teve um
leve aumento, passando de 128, em 1980, para 133 a cada 100 mil jovens, em
2008.” (WAISELFISZ, 2011, p.17).

[6] O Brasil atualmente ocupa a posição de número 84 dentre 187 países.

[7] Cf.: ESPECIAL Segurança Pública e Direitos Humanos. Caros Amigos.


Disponível em: <http://goo.gl/a3BZJa>. Acesso em: 19 mar. 2012.

[8] “Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo


médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. Parágrafo único. São
considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I - internação
voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação
involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de

197
terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.”
(BRASIL, 2001).

[9] Cf.:O ESTADO de São Paulo. Internação Compulsória de Usuário de


Drogas é Polêmica. 22 jan. 2012. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/geral,internacao-compulsoria-de-
usuarios-de-droga-e-polemica,825826,0.htm>. Acesso em: 30 maio 2012.

[10] AGÊNCIA Brasil. Internação involuntária de usuário de crack divide


especialistas. 9dez. 2011. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br
/noticia/2011-12-09/internacaoinvoluntaria-de-usuario-de-crack-divide-
especialistas> Acesso em: 02 maio 2012.

[11] KERBER, Aline. Cracolância. Internação Compulsória para


quê?Revista Carta Capital. 7fev. 2012. Disponível em:
<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/internacao-compulsoria-para-
que/>. Acesso em: 30 maio 2012.

198
Dinâmicas do desenvolvimento da juventude das
periferias urbanas em Salvador, Bahia: encontros,
pertença, expressões e projetos de vida no âmbito de
políticas públicas e projetos sociais
Dynamics of youth development in slum areas in Salvador, Bahia: engagement,
belonging, expressions and life projects related to public policies and social projects
Juventud dinámica del desarrollo de las periferias urbanas en Salvador, Bahia:
reuniones, membresía, expresiones y proyectos de vida en el marco de las políticas
públicas y proyectos sociales

José Eduardo Ferreira Santos


Ana Cecília de Sousa Bastos

Introdução

A questão do desenvolvimento humano e da qualidade de vida é um


dos temas centrais das discussões sobre políticas públicas para a juventude
brasileira. Atualmente, estamos realizando estudos no intuito de mapear os
contextos de desenvolvimento dos jovens das periferias urbanas da cidade de
Salvador, Bahia, procurando identificar variáveis destes contextos que possam
apontar para uma maior possibilidade de entendimento dos fatores de
proteção e os riscos psicossociais que esses jovens encontram.
Para isso, as pesquisas têm apontado para a formulação e tipificação
das redes de relações dos jovens de periferias urbanas, pretendendo ampliar e
sistematizar noções que possam vir a se configurar em conceitos que auxiliem
a promoção da saúde, da juventude e a sua inserção por meio de políticas
públicas.
Para promover um maior conhecimento das experiências e dos fatores
relacionais, este estudo pretende identificar as dinâmicas relacionais e as redes
de relacionamentos presentes no contexto da juventude das periferias urbanas
da cidade de Salvador, Bahia.
Ao identificar essas dinâmicas, pretende-se, aqui, descortinar, por um
lado, os aspectos do desenvolvimento presentes no cotidiano, as expressões
culturais, as redes de relacionamento, os fatores de risco e proteção da
juventude das periferias urbanas, e, por outro, as percepções frente aos
projetos sociais e às políticas públicas voltadas para a juventude.
A questão central deste artigo está situada na identificação das
variáveis do contexto de desenvolvimento da juventude e suas
implicações/repercussões, supondo que o estudo referente a estes contextos
podem favorecer o entendimento dos processos relacionais, as redes de
relacionamento e apoio, as significações presentes nas percepções dos jovens
quanto a espaços como os projetos sociais e as políticas públicas, assim como
os limites e oportunidades de desenvolvimento.
Buscamos analisar a complexidade e a diversificação das expressões da
juventude como uma possibilidade de aprofundar categorias que podem
orientar o entendimento dos seus contextos de desenvolvimento, promovendo
o desvelamento dos mecanismos psicossociais que podem acionar a
proatividade e o protagonismo.
O estudo dos contextos de desenvolvimento da juventude das
periferias urbanas na cidade de Salvador, Bahia, pode, também, contribuir
para o desvelamento das formas de agregação e expressão desta parcela da
população e revelar as situações de risco e exclusão presentes nos espaços que

200
habitam. O estudo pode orientar ações preventivas para as políticas públicas e
favorecer o acionamento das possibilidades de suporte e orientação aos jovens
desses contextos, contribuindo para a promoção da saúde, o acesso à
cidadania e o estabelecimento de projetos de vida.
Dada a multiplicidade de estudos sobre a juventude brasileira e, ainda
assim, a não abrangência deles a todas as situações e contextos desta parcela
da população, a proposição deste artigo se insere no contexto mais amplo de
estudos sobre a juventude, o que pode se constituir em uma contribuição ao
tema, partindo da configuração e análise sistemática dos contextos de
desenvolvimento, dos fatores de risco e proteção e das vulnerabilidades sociais
presentes em áreas caracterizadas pela pobreza urbana.
Sendo a temática da juventude um campo em aberto, dada a
multiplicidade de realidades encontradas no cenário brasileiro, o presente
estudo pode vir a contribuir para o desvelamento de questões ainda não
suficientemente elucidadas na literatura, compreendendo, assim, a sua
relevância científica pela originalidade do tema proposto, que pode contribuir
para o aprofundamento de questões que possibilitem a emergência de
políticas públicas que possam intervir diante da juventude, por vislumbrar
suas dinâmicas de desenvolvimento com base em um olhar voltado para as
redes de relacionamento presentes no cotidiano, apontando uma nova
modalidade de avaliação dos impactos de ações.
O objetivo deste artigo é identificar e apresentar as dinâmicas do
desenvolvimento da juventude das periferias urbanas da cidade de Salvador,
procurando identificar a incidência e a efetividade dos encontros, pertenças,
expressões culturais e estabelecimento de projetos de vida, baseando-se na
participação em políticas públicas e projetos sociais voltados para a juventude.
Nesse sentido, buscamos, também: a) mapear os fatores de risco e
proteção presentes nos contextos de desenvolvimento da juventude de

201
periferias urbanas; b) identificar como se configuram as redes e as relações, os
vínculos com as políticas públicas, que fornecem suporte e apoio para a
juventude que podem ser acionados diante de situações de risco, favorecendo
o protagonismo e a proteção; c) caracterizar as expressões (artística, cultural,
esportiva, profissional, musical etc.) da juventude das periferias urbanas,
mostrando se há uma relação entre o protagonismo e a redução de danos.

1- Revisão da literatura

Os estudos sobre os contextos de desenvolvimento da juventude brasileira


das periferias urbanas presentes na literatura começam a aparecer como importantes
áreas de interesse das Ciências Humanas e estão revelando a situação dessa
juventude de contextos urbanos caracterizados pela vulnerabilidade social e a
violência. Os relatórios das agências internacionais (ABRAMOVAY et al., 2002;
WAISELFISZ, 1998) sobre a situação da infância e juventude e a série de
pesquisas realizadas em várias capitais brasileiras como Curitiba, Fortaleza, Brasília,
Salvador, dentre outras, começaram a estabelecer um conhecimento necessário para
a promoção dos direitos garantidos pelas leis nacionais, como o Estatuto da
Criança e do Adolescente, de 1990 (BRASIL, 2005), aos jovens e mesmo a
formulação de políticas públicas voltadas a esta parcela da população, assim como
deu visibilidade às questões e relações entre juventude e violência.
Castro e Abramovay (2002) discutem as “juventudes” em situação de
pobreza, seu protagonismo e as vulnerabilidades sociais, caracterizando-as num
período etário dos 15 aos 24 anos. Os dados mostram as susceptibilidades às quais
estão expostos os jovens, dentre elas, a violência, expressa particularmente pelo
registro de mortes por causas externas.
Zaluar (1997) discute a emergência no cenário brasileiro das organizações
formadas por jovens e sua consequente relação com a violência e o uso de armas,

202
promovidas por mudanças estruturais, de ordem econômica e cultural,
particularmente na eclosão das favelas cariocas. O estudo oferece uma demarcação
dos ajuntamentos de jovens (quadrilhas e galeras) de uma metrópole urbana com os
seus variados escopos e práticas culturais.
Guimarães (1998) e Diógenes (1998) têm contribuído com a literatura por
meio do esforço de demarcar o território dos agrupamentos juvenis nas metrópoles,
analisando, também, as gangues, galeras e quadrilhas, geralmente, identificando os
códigos próprios de cada um desses agrupamentos, assim como a produção cultural
promovida pelos jovens e a contextualização desses fenômenos no contexto social
brasileiro, cada vez mais, marcado pela violência nas últimas três décadas.
Araújo (2001) identifica as relações complexas da juventude da periferia de
Belo Horizonte na escola, assim como suas estratégias de convivência, os estigmas e
a violência, demarcando espaços de exclusão.
Os estudos sobre a juventude das favelas baianas têm se caracterizado,
em especial, pela questão da violência, marginalização, vulnerabilidade e
significações atribuídas pelos jovens ao seu cotidiano.
Machado e Taparelli (1996), Machado, Noronha e Cardoso (1997) e
Espinheira (2003, 2004) analisaram a situação de jovens em favelas de
Salvador, a exemplo de áreas como o Subúrbio Ferroviário, nas quais
aparecem, dentre outras características, as vulnerabilidades sociais, a pobreza
urbana e a violência policial, assim como a entrada dos jovens em trajetórias
caracterizadas pela participação em quadrilhas, o uso e a posse de armas e
mesmo a prática sistemática de furtos, apontando para uma análise de cunho
etnográfico, que valoriza as interlocuções, buscando desvelar o universo
cultural dos jovens.
Dimenstein (2006) analisa as bases de apoio familiares e comunitárias
da adolescência/juventude enquanto estratégias de enfrentamento à violência,
recorrendo a diversos aspectos presentes nos contextos de desenvolvimento,

203
como atividade escolar, religião, lazer e esportes, dificuldades enfrentadas no
cotidiano, violência familiar e comunitária, saúde, valores sociais, dentre
outros. O estudo aponta a existência de grandes dificuldades no cotidiano da
juventude, particularmente, em relação ao desemprego e à saúde em geral.
Recentemente, alguns estudos sobre a juventude brasileira têm
enfocado suas possibilidades de inserção na realidade social, incluindo a
garantia aos direitos humanos, assim como a participação em atividades
diversas, em espaços promovidos pelas políticas públicas voltadas para essa
população, indo na contramão da violência e das situações de risco.
Em particular, colocam-se nessas categorias os estudos contidos nos
livros “Juventude contemporânea: perspectivas nacionais e internacionais”
(CASTRO; CORREA, 2005) e “Juventude e Sociedade: trabalho, educação,
cultura e participação” (NOVAES; VANNUCHI, 2004).
Santos e Bastos (2005) discutem as trajetórias de quatro jovens de uma
favela urbana, identificando nas suas redes de relacionamentos os fatores de
risco e proteção e sua integração a estes contextos de desenvolvimento. Nesse
artigo, começam a aparecer sistematicamente as noções de encontro,
pertencimento e “desterro” enquanto formas de integração e exclusão dos
jovens inseridos no contexto da favela urbana, o que mostra, de certa forma, a
exposição a riscos e oportunidades.
Nos últimos dois anos, dois importantes livros (SOARES; BILL;
ATHAYDE, 2005; BILL; ATHAYDE, 2006), que retratam a juventude
urbana das favelas brasileiras, têm causado impacto em toda a sociedade por
mostrar os dramas e as situações de violência nas quais os jovens estão
inseridos, particularmente, pela participação no tráfico de drogas. Os autores
trouxeram novos dados sobre o universo da juventude marginalizada das
periferias urbanas de grandes cidades brasileiras.

204
2- Materiais e métodos

Face à natureza deste trabalho, temos realizado uma abordagem


qualitativa (MINAYO, 1992), baseada na observação participante e nos
estudos de casos (BECKER, 1994), de cunho etnográfico (LAPLANTINE,
2000). A abordagem metodológica desta pesquisa busca valorizar e apreciar,
com base na escuta dos jovens, o registro dos seus depoimentos e expressões,
mediante a junção de variados instrumentos metodológicos, como a pesquisa
de campo, a observação participante e entrevistas semiestruturadas.
Tomando-se por base o roteiro, as entrevista foram registradas e
agrupadas, na análise, utilizando como eixos temáticos: a) os fatores de risco e
proteção da juventude; b) encontros; c) pertenças; d) expressões culturais; e e)
projetos de vida acionados durante a participação em políticas públicas e
projetos sociais locais.
A coleta de dados foi realizada com base na constituição de um grupo
de discussão, denominado “Pombo sujo”, em que 30 jovens, com idades entre
18 e 20 anos, que participaram de projetos sociais e espaços educativos
centrados em atividades culturais e profissionalizantes, promovidos por
associações comunitárias locais, assim como de políticas públicas para a
juventude das áreas de periferia urbana de Salvador, como o Consórcio Social
da Juventude, foram convidados a participar de discussões referentes aos eixos
temáticos acima citados. A pesquisa vem sendo realizada com jovens de
ambos os sexos, caracterizados pelos estudos do Comunitário de Combate à
Violência (O RASTRO..., 2002), enquanto potenciais vítimas de violência,
por causa de sua origem étnica afrodescendente e da habitação em áreas
denominadas de periferias urbanas. Em particular, alguns casos foram
entrevistados em profundidade, quando necessário. A participação dos

205
informantes, assim como o registro das suas expressões, foi viabilizada
mediante a assinatura do termo de consentimento informado e a autorização
dos mesmos para a divulgação dos dados, resguardando a identidade dos
participantes, dentro dos procedimentos vigentes da ética na pesquisa.
A análise de dados foi realizada por meio de orientação metodológica
proposta pelo quadro teórico que compõe este trabalho, partindo de uma
compreensão interdisciplinar que busca, de modo específico, reunir uma abordagem
ecológica do desenvolvimento humano em contexto (BRONFENBRENNER,
1996), em consonância com a rede de significações (ROSSETTI-FERREIRA;
AMORIM; SILVA, 2004).
A escolha desse referencial, caracterizado pela confluência de saberes e áreas
afins aos fenômenos psicológicos e sociais da juventude em situação de risco
psicossocial das periferias urbanas, deu-se em virtude da percepção da amplitude e
necessidade de analisar o contexto, as pessoas, o tempo e os processos neles
presentes, recortados nas trajetórias e na interação dos jovens com os elementos
descritores de suas experiências.

3- Perspectiva ecológica do desenvolvimento humano

A perspectiva ecológica do desenvolvimento humano analisa as relações


entre a pessoa e o contexto de desenvolvimento, e as sucessivas transformações que
decorrem da dinâmica dessas relações. Essa perspectiva teórico-metodológica
define-se como

[...] o estudo científico da acomodação progressiva, mútua, entre


um ser humano ativo, em desenvolvimento, e as propriedades
mutantes dos ambientes imediatos em que a pessoa em
desenvolvimento vive, conforme esse processo é afetado pelas

206
relações entre esses ambientes, e pelos contextos mais amplos em
que os ambientes estão inseridos. (BRONFENBRENNER, 1996,
p. 18).

Bronfenbrenner (1996) pontua que a concepção ecológica do


desenvolvimento-no-contexto tem implicações para o método e o planejamento de
pesquisa. Ou seja, é uma possibilidade de que a pesquisa seja realizada em contextos
dinâmicos de desenvolvimento, da vida cotidiana.
Embora o próprio autor considere e formule críticas relevantes à noção de
validade ecológica na pesquisa, ele vai oferecer pistas de como sua importância se dá
no estudo do desenvolvimento humano, pois, baseado no que ele chama de
experiências naturais, há uma “[...] validade ecológica se refere à extensão em que o
meio ambiente experienciado pelos sujeitos numa investigação científica tem as
propriedades propostas ou presumidas pelo investigador”
(BRONFENBRENNER, 1996, p. 24).
Dentro desse quadro teórico, Bastos (2001) e Santos (2005) vêm
focalizando particularmente as famílias e os adolescentes de favelas urbanas e de
projetos sociais, interessadas na análise da estrutura de proteção desses contextos de
desenvolvimento.
A perspectiva teórica de Bronfenbrenner (1996) assume o conceito de
desenvolvimento humano como um processo dinâmico e complexo de
interação da pessoa com o ambiente. O desenvolvimento é entendido como uma
resposta adaptada às circunstâncias contextuais, como algo contínuo, mas não
necessariamente sem rupturas.
A concepção do meio ambiente proposta por Bronfenbrenner (1996) tem
por característica o fato de ser mais ampla e diferenciada do que aquelas encontradas
na psicologia, particularmente na psicologia desenvolvimental, e pode ser definida
como uma concepção topológica, com uma organização de encaixe de estruturas

207
concêntricas, cada uma contida na seguinte, que interagem entre si o tempo inteiro,
com uma dinâmica própria.

4 - Rede de significações

O interesse pela apreensão dos fenômenos culturais e semióticos que


delineiam a adolescência em contexto de risco remete a uma síntese teórica recente,
a Rede de Significações (ROSSETTI-FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004)
convergindo para uma perspectiva do desenvolvimento humano que se relaciona
com os contextos e as significações atribuídas pelo sujeito em desenvolvimento ao
ambiente e às interações nele existentes. Segundo as autoras, essa síntese pretende
“[...] constituir uma ferramenta capaz de auxiliar tanto nos procedimentos de
investigação como na compreensão do processo de desenvolvimento humano”
(ROSSETTI-FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004, p. 23).
A Rede de Significações entende o processo de desenvolvimento não como
uma etapa ou um segmento do ciclo vital, mas como uma continuidade existente
durante todo esse ciclo, que se dá durante toda a vida, pelas interações das pessoas
em contextos organizados social e culturalmente. Um aspecto relevante dessa
perspectiva teórica sobre o desenvolvimento humano é o fato de considerar as
complexidades existentes entre a pessoa, o ambiente e as interações, assim como a
variabilidade dos processos interacionais no desenvolvimento durante o ciclo de
vida, recorrendo as autoras, à metáfora da rede, como possibilidade aproximativa
dessa complexidade.
Outro aspecto relevante para a Rede de Significações é a noção de
desenvolvimento dando-se dentro do contexto. O contexto aparece, então, como
algo dinâmico e organizador da experiência dos sujeitos.
Na Rede de Significações, o desenvolvimento humano ocorre numa matriz
sócio-histórica, composta por múltiplas e, muitas vezes, antagônicas condições e

208
discursos, mostrando uma luta entre valores sociais com orientações contraditórias,
vinculadas a diferentes processos sociais e períodos históricos. A multiplicidade de
significados contradiz a qualidade homogênea e determinística que frequentemente
é atribuída às dimensões socioculturais, o que, por sua vez, vem revelando que a
matriz sócio-histórica contribui para circunscrever de modo mais flexível os
processos de desenvolvimento das pessoas. É nessa matriz sócio-histórica que se dão
os processos interativos entre as pessoas e seus contextos.
Por fim, a Rede de Significações favorece a pesquisa desenvolvimental numa
perspectiva longitudinal, tomando-se por base as trajetórias, considerando a pessoa,
a matriz sócio-histórica, o ambiente, o tempo e a dinâmica dessas interações e
contemplando em seu corpo teórico a perspectiva espaço-temporal, constituindo de
forma central o desenvolvimento humano, considerando que todo acontecimento
está sempre situado em um contexto espaço-temporal, e que deve ser levado em
conta na análise dos processos de desenvolvimento.

5- Resultados, discussão

Os resultados da pesquisa apontam para uma questão emergente: quais


as dinâmicas de desenvolvimento dos jovens de periferias urbanas que
participam de políticas públicas e projetos sociais?
Com a chegada dos projetos sociais e das políticas públicas voltadas à
juventude, mais precisamente na década de 2000, muitos deles começaram a ter a
possibilidade de se inserir em cursos e projetos envolvendo cultura, educação e
profissionalização.
Dentre as possibilidades de inserção, podemos indicar o crescimento
dos projetos sociais que buscam propor uma educação mais inclusiva,
utilizando elementos da cultura, promovendo o aumento da diversidade de
oportunidades.

209
A escolarização, baseada em projetos sociais e educativos, incluindo
cooperativas e reforços escolares, tem sido uma possibilidade de inserção e
manutenção de jovens no Ensino Médio e mesmo na Universidade. Essa
nova possibilidade de escolarização tem sido realizada nas áreas periféricas do
Subúrbio Ferroviário de Salvador, apoiada em cursos afirmativos pré-
vestibulares para jovens afrodescendentes e desempregados, os chamados
“quilombos educacionais”, direcionados àqueles jovens que concluíram o
Ensino Médio, conseguindo resultados satisfatórios. Uma quantidade
considerável deles consegue ingressar em universidades públicas e/ou
particulares após a inserção nesses cursos.
Os relacionamentos com os adultos – educadores, assistentes sociais,
técnicos, instrutores –, no âmbito dos projetos sociais e das políticas públicas,
e com as lideranças comunitárias mostram a possibilidade de criação de
vínculos duradouros, recuperando, neste sentido, referências que ficaram meio
obliteradas na vida dos jovens. Os jovens buscam fazer a experiência de
acolhida integral nos projetos sociais e nas políticas públicas, com base no que
os adultos (educadores e dirigentes) podem proporcionar.
Cada encontro pode proporcionar a emergência do protagonismo, de
projetos de vida, de saberes, não destituindo os jovens pelos seus
comportamentos. Quando o jovem encontra um adulto que acredita nele é
como se acontecesse uma restauração de trajetórias, muitas vezes, negadas e
marcadas pelos riscos e pela violência.
O encontro com novas pessoas, geralmente dentro de um contexto
educativo, parece contribuir para ajudar os jovens a se confrontarem com
novas experiências que, com o tempo, fazem uma diferença significativa em
suas vidas, a começar pela revelação de novas possibilidades e, depois,
permitindo o estabelecimento de relações pautadas pelo respeito e pelo
diálogo.

210
As figuras de referência para os jovens das áreas periféricas parecem,
em um primeiro momento, estar relacionadas com os próprios jovens e,
depois, com adultos portadores de saberes legitimados socialmente. A
despeito de existirem constantes rupturas nesses encontros, há uma
permanência e sistematicidade capaz de possibilitar mudanças na vida de
ambos, educadores e jovens. A presença de adultos com formação superior ou
mesmo com disponibilidade para escutar os jovens provoca neles a
possibilidade de diálogo e aprendizagem.
Pertencer, nesse sentido, significa compartilhar experiências e crescer
juntos num caminho humano, no qual cada pessoa realiza a própria vida. A
pertença – que geralmente é agregadora – faz com que os jovens comecem a
ter comunalidades pelas quais vale a pena se dedicar. Como resultado está a
realização de cada um. A pertença está ligada a relacionamentos e a
estruturas. Os relacionamentos são aqueles espaços fundamentais para a
constituição de projetos de vida.
Quando nos referimos a projetos de vida, queremos indicar que se um
jovem não sabe para onde está indo (no que se refere ao uso da própria vida) a
sua energia vital pode ser dispersa em muitas coisas que não favorecem o seu
desenvolvimento. As estruturas são os espaços que dão sistematicidade a essa
experiência, mas que nunca se substituem à ação das pessoas. O que os jovens
buscam nas estruturas são pessoas para as quais eles podem olhar e crescer no
encontro com elas. Há uma grande dinâmica do desenvolvimento,
particularmente em razão da existência das redes de relacionamento nas
periferias urbanas. As redes se configuram com base nos relacionamentos
entre pares, com os adultos de referência, gerando relações e vínculos de
suporte e apoio que podem estar disponíveis para a juventude das áreas de
periferias urbanas, podendo ser acionadas diante de situações de risco no
desenvolvimento, favorecendo o protagonismo e a proteção.

211
Os encontros com pessoas e instituições aparecem como chaves
importantes e significativas de entendimento dos mecanismos de integração,
protagonismo, expressão dos jovens e redução de danos psicossociais diante
da violência. Quando há o encontro, é possível que se estabeleça a pertença. A
relação de pertença, entendida aqui como o estabelecimento de vínculos e
laços afetivos com pessoas e espaços, começa se tomando por base um
encontro, sendo importante mostrar que há uma dinâmica em que os dois
elementos se entrecruzam.
As expressões podem ser indicadas pelo saber fazer e pela
sistematicidade, podendo proteger o jovem das situações de violência. Podem
existir os mais variados contextos em que os jovens se movimentam, se
relacionando criticamente com o contexto, agindo, realizando, produzindo
cultura e outras formas de expressão, que indicam um novo modo de agir e
mesmo de conceber novos projetos de vida. As expressões artísticas, culturais,
esportivas e profissionais da juventude são variadas, mostrando que há uma
relação entre o protagonismo e a redução de danos.
Nos espaços educativos dos projetos sociais, apoiados por políticas
públicas para a juventude, há a possibilidade de interação com adultos
diferentes, abertos ao encontro e ao objetivo educativo da instituição,
mostrando que os contextos de periferias urbanas se apresentam ricos em
relacionamentos para os jovens.
Aparece no estudo uma integração dos jovens em habilidades
artísticas, culturais, esportivas, no trabalho e na família. A prática de um
esporte – no caso, o mais acessível é a capoeira, respeitando a característica
regional e cultural da Bahia – aparece como forma de integração para a
juventude. Essa integração se dá pela experiência feita pelos jovens na
referência à figura dos instrutores e de poder mostrar a sua arte e a sua cultura

212
para pessoas de outros lugares, ajudando a quebrar certos mitos
discriminatórios contra os jovens das periferias urbanas.
O esporte aparece, para alguns jovens, como a possibilidade de
ascensão social, tendo em vista a existência de outros jovens que conseguiram,
pela prática da capoeira, viajar e se estabelecer em um outro país, realizando
apresentações e ganhando dinheiro com a prática esportiva. O esporte parece
oferecer aos jovens um referencial masculino que muitos não conheceram em
suas histórias. Com todas as tensões possíveis e existentes, eles reconhecem
ser os instrutores presenças importantes em suas vidas.
A música se apresenta como forma de integração e de valorização de
si, baseada em um saber que o jovem tem. Em razão da música, os jovens se
afirmam em uma experiência de protagonismo. Essa experiência fica evidente
na elucidação da grande quantidade de grupos musicais, nas apresentações e
na inserção em diversos grupos, aos quais conseguem se integrar dentro e fora
dos projetos sociais e dos bairros. A música continua a exercer como que um
fascínio, é um espaço no qual eles conseguem se afirmar na prática de uma
atividade que pode lhes fornecer uma possibilidade de inserção efetiva no
mercado de trabalho.
O trabalho informal tem uma dupla realidade: integra e desagrega os
jovens. A integração ocorre pela possibilidade de contribuir com a renda
familiar e conseguir dinheiro para seus próprios gastos com alimentação,
roupas e lazer. A desagregação aparece quando esse trabalho destitui o jovem
da vida cotidiana, como a frequência à escola ou aos cursos e outros locais
educativos. Pode acontecer, em meio à experiência do trabalho informal, a
exploração, dada pelos baixos rendimentos oferecidos e caracterizada pelas
longas jornadas dedicadas aos ofícios de aprendizes em oficinas, marcenarias,
como ajudantes de pedreiro etc.

213
Na família, por fim, os jovens se encontram engajados em
relacionamentos mais estreitos com a mãe, sendo, nesses contextos, o trabalho
para ajudar a família ou a frequência a um projeto social, no qual se ganha
uma cesta básica, ou uma bolsa (contribuição financeira), vistos como uma
contribuição importante para a manutenção do lar.
Os resultados preliminares começam a apontar uma diversidade de
contextos de desenvolvimento da juventude, assim como as situações de
violência, aqui identificadas nas mais variadas manifestações. As situações de
violência que afetam a juventude das áreas de periferias urbanas são muitas
(violência física, extermínio, intimidação), e todas provocam mudanças nas
percepções dos jovens diante da vida e das perspectivas, alterando ou
remodelando suas interações.

Conclusões

Essas conclusões se constituem como a possibilidade de perceber a


convergência dinâmica entre a pessoa em desenvolvimento e o contexto, como os
projetos sociais e as políticas públicas, reconhecendo, conforme a Rede de
Significações, que

os processos de desenvolvimento das pessoas encontram-se situados em


contextos cultural e socialmente regulados, caracterizados pelo ambiente
físico e social, onde o contexto ocupa um papel fundamental, visto que,
inseridas nele, as pessoas passam a ocupar certos lugares e posições.
(ROSSETTI-FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004, p. 26).

Pretende-se, aqui, propor uma análise baseada na perspectiva da inserção


dos jovens em políticas públicas e nos significados advindos dessas experiências.

214
O olhar abrangente recomendado pela abordagem ecológica do
desenvolvimento humano é importante aqui: as barreiras impermeáveis do contexto
também podem se modificar apoiadas em recursos pessoais acumulados e
construídos na interação com outros sociais significativos, alterando as estruturas de
oportunidade e abrindo canais efetivos de participação social (GOODNOW,
1995).
Assim, apresentamos os fatores de risco e proteção disponíveis aos
jovens das periferias urbanas, procurando descrever a dinâmica do
desenvolvimento humano culturalmente situado dentro dessas perspectivas
teóricas norteadoras do estudo, levando em conta as interações dos
adolescentes com o contexto social.

Fatores de risco e proteção para a juventude das periferias urbanas de


Salvador, Bahia

Os fatores de risco para a juventude das periferias urbanas são variáveis,


dadas as condições presentes no contexto pessoal e social que podem comprometer
a saúde, o bem-estar e a integridade física e psicológica dos indivíduos. Tais fatores
se caracterizam por uma dinâmica que envolve a vulnerabilidade, a capacidade de
respostas pouco adaptadas às situações adversas e mesmo à existência dos fatores de
proteção. Essa dinâmica envolve: a) as favelas, como lugares desprovidos de
segurança; b) a noite, quando ocorrem violências mais graves; c) o estigma
relacionado à etnia e às formas de vestir; d) processos de marginalização; e) a
situação familiar (furtos, drogas, espaço reduzido); f) o acesso às drogas; g)
modalidades violentas ou abusivas de vivência da sexualidade e iniciação sexual; e h)
a emergência da violência.

215
As áreas periféricas foram identificadas, neste estudo, como lugares de risco
acentuado para o desenvolvimento dos jovens, por ser um ambiente em que se
convive com a pobreza, a violência e a impunidade, dentre outras características.
O contexto de risco nas periferias urbanas se expressa por meio da violência,
por exemplo, em suas manifestações mais diversas, desde a policial, às privações, até
aquela praticada por delinquentes locais, que fazem uso de armas de fogo como uma
forma de intimidação (BRICEÑO-LEÓN, 2002; MACHADO; NORONHA,
2002).
Os jovens entrevistados geralmente falam dos bairros onde moram como
lugares violentos nos diversos níveis: a violência diretamente relacionada a eles e aos
seus familiares, assim como aquela contra as outras pessoas que moram na área,
sendo cada vez mais crescente o número de jovens citados ao longo das entrevistas
que já foram assassinados ou estão envolvidos em trajetórias demarcadas por crimes.
A violência está presente na trajetória dos jovens, tendo, muitos deles,
testemunhado tais situações na própria família, ao ver os irmãos sendo presos e/ou
assassinados.
O período de maior risco para a juventude habitante das periferias urbanas é
o da noite, pois é nele que os marginais e delinquentes estão agindo mais
livremente, principalmente, nos assaltos.
A roupa usada pelos jovens, geralmente, desperta a suspeita de policiais.
Estar sem camisa, com tatuagens, brincos, roupas de marca ostensiva ou descalço
pode ser interpretado como um indicador de marginalidade nas áreas periféricas.
Outro fator de risco é a etnia. Ser negro (pardo ou afrodescendente) e morar
na periferia também é um demarcador de sérios agravos à integridade física da
pessoa por causa do racismo e da violência a essa grande parcela da população. Um
dado emergente é que, do universo de entrevistados, todos de origem
afrodescendente, em sua totalidade já sofreram alguma abordagem marcada pela
intimidação. Nas periferias urbanas, o preconceito atinge a população jovem e

216
produtiva, desqualificando-a por causa do estigma que pesa sobre os habitantes
dessas áreas.
A situação familiar dos jovens, marcada pelo baixo nível econômico e
desemprego dos adultos, pode se configurar como uma situação de risco às suas
vidas, principalmente, quando envolve situações de abandono, separação ou
negligência. Note-se a presença de novos arranjos familiares, diferentes da família
patriarcal nuclear, sendo, agora, muitas vezes, chefiadas por um dos adultos de
referência, geralmente, a mulher. É nessa família nova, dentro do contexto de
pobreza urbana, que os jovens são chamados a ser copartícipes, contribuindo com a
renda familiar mediante pequenos trabalhos informais. Não obstante essas
condições, a família continua a ser um espaço privilegiado para a proteção de
crianças e jovens (BASTOS; ALCÂNTARA; SANTOS, 2002; PETRINI,
2003). Em todos os casos aqui considerados, destaque-se, nesse sentido, o papel da
mãe.
Outras situações de risco envolvendo a família, em consonância com a
literatura, têm sido a ausência de um dos pais; o baixo nível econômico; a violência e
alcoolismo no ambiente doméstico; a existência de outras drogas e/ou envolvimento
de familiares na marginalidade; o espaço físico reduzido para a família (HUTZ;
KOLLER; BANDEIRA, 1996), assim como as agressões físicas.
Em estudos sobre as novas famílias urbanas (BASTOS; ALCÂNTARA;
SANTOS, 2002), os autores encontraram dados que apontam para uma nova
configuração das famílias de áreas periféricas de Salvador, indicando uma nova
forma de organização destes espaços importantes de socialização e desenvolvimento
das crianças e jovens.
No meio das solicitações contextuais, e mesmo nas relações mais
próximas entre os jovens, apareceu, ao longo da pesquisa, uma noção de
violência que pode ser percebida de vários modos, dentre eles, o pessoal, o
contextual. Destaque-se o acumular de experiências que paralisam ou vão dar

217
novos rumos às ações dos jovens. Algumas dessas formas de violência, dentre
tantas outras, que levaram a óbito, por exemplo, dois dos jovens que fizeram
parte deste estudo, situam-se na realidade que alguns autores (MACEDO et
al., 2001; ESPINHEIRA, 2003, 2004) encontraram ao analisar a relação
entre violência e desigualdade social nos homicídios ocorridos em Salvador.
Essas formas de violência podem ser identificadas pelo uso de armas de fogo e
ações realizadas em outros níveis: I) jovens envolvidos em trajetórias de
criminalidade e que são mortos por policiais; II) jovens que são exterminados
por pessoas portadoras de armas de fogo, podendo ser policiais, vigilantes e
outras pessoas não especificadas e em razão da não solução dos crimes; III)
jovens vitimados por pares, isto é, por outros jovens portadores de armas de
fogo que matam pelos mais variados motivos, desde disputas por “bocas” de
tráfico até acertos de contas, por diversas outras razões; IV) jovens vitimados
sem portarem armas de fogo, por causas mais diversas, desde assaltos até
motivos banais.
Aparece, também, o que temos denominado de “desterro” (SANTOS,
2005; SANTOS; BASTOS, 2005), que é outra forma de violência,
identificada em Novos Alagados e em outras áreas de periferias urbanas, com
suas múltiplas características. É um fenômeno que pode ser sintetizado nessa
expressão por seu caráter desagregador e desestruturador da vida das pessoas,
e está presente na trajetória dos jovens ao retirá-los da área de habitação.
A noção de “desterro” pode ser relacionada ao fenômeno do
“desenraizamento”, categoria utilizada por Bosi, particularmente quando esta
autora, retomando o pensamento de Simone Weil (1996, p. 347), considera
que

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais


desconhecida da alma humana e uma das mais difíceis de definir.

218
O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e
natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos
tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro (BOSI,
2003, p. 175).

De modo aproximativo, a noção de “desterro” aqui levantada pode se


relacionar com a nova pobreza, marcada pela estigmatização social e mesmo
pela desqualificação social, propostos por Paugam (2001, p. 67) como
fenômenos que se caracterizam por “um status social desvalorizado e
estigmatizado”.
Há nos relatos dos jovens associados um forte sentimento de injustiça
ou explicitação da violência familiar, policial e estrutural (MINAYO, 2002;
ZALUAR; LEAL, 2001). A presença do “desterro” acontece em alguns
casos, quando eles afirmam que tiveram que passar um período da vida,
quando crianças, com outros familiares, por falta de condições das famílias
para mantê-los, ou por outros motivos, como num dos casos no qual, por
causa da evidência de um furto, o jovem, quando criança, foi mandado para o
interior do estado. As repercussões desta separação precoce da família
acompanham os jovens por meio de recordação e mesmo na vivência da
juventude. Paugam (2003, p. 166), ao analisar as trajetórias sociais de setores
em situação de pobreza e caracterizados pela marginalização e assistência
estatal, verifica que 7 entre os 15 casos analisados tiveram a experiência de
separação da família em razão de os pais não terem condições de educar e
criar seus próprios filhos.
Os fatores de proteção podem referir-se a influências, mecanismos, pessoas
ou situações que têm a característica de modificar, para melhor, ou simplesmente
alterar a resposta dos indivíduos frente a ambientes e situações hostis (HUTZ;
KOLLER; BANDEIRA, 1996). Eles são, por assim dizer, a contrapartida positiva

219
dos fatores de risco e indicam espaços, atividades, pessoas e recursos que promovem
a saúde, o bem-estar, a integridade e o desenvolvimento adaptado aos jovens.
Os fatores de proteção disponíveis para os jovens das periferias urbanas,
sugeridos pela pesquisa, podem ser assim distribuídos: a) grupos; b) expressões
culturais; c) redes de apoio social; d) projetos sociais e políticas públicas; e) aquisição
de projetos de vida; e f) encontro e experiências.
As expressões artísticas e culturais, como a música, ocupam um lugar
importante na vida dos jovens das periferias urbanas. Os entrevistados pertenceram
a grupos musicais relacionados com o pagode baiano, nos quais percebem uma
possibilidade de ascensão, conforme identificou Lima (2002), mesmo não tendo
aprofundado essa questão.
A capoeira se apresenta como a possibilidade de inserção social, mostrando a
constituição de vínculos do jovem com o seu mestre, aparecendo como a
possibilidade de realização de novas experiências, como viagens a outros estados e
apresentações em diversas partes da cidade. Esse vínculo se inicia geralmente nos
espaços de projetos sociais, no encontro com educadores e mestres. A despeito dos
conflitos com a figura masculina, ausente na trajetória familiar de alguns jovens, os
mestres provocam uma relação de intensa identificação.
As redes de apoio social são aquelas instituições e pessoas que podem
coorientar e proteger, com a família, a vida dos jovens em situação de risco
psicossocial, ou seja, são “o conjunto interligado de recursos pessoais, profissionais e
institucionais que venham a oferecer algum tipo de apoio aos adolescentes em
situação de risco” (NEIVA SILVA; KOLLER, 2002).
Nesse sentido, os projetos sociais e as políticas públicas são um suporte de
reorientação de experiências e canalização da energia própria da juventude para fins
pautados sobre projetos de vida que se caracterizem por uma inserção social.
Outro fator de proteção está ligado ao sentimento de pertença.
Pertencer diminui o risco. Saber se expressar também diminui os riscos (tocar

220
violão, cantar, produzir arte, estar juntos num grupo cultural, trabalhar, estar
envolvido num espaço educativo).
Cada jovem se encontra no movimento de busca das respostas que
constituem a sua vida, por isso cada encontro é o espaço de realização ou não
dessa espera. Neste sentido, quanto mais organizada uma comunidade,
contando com associações e espaços de socialização disponíveis para a
juventude, mais eles podem ser protegidos. Contudo, atenção, não é o espaço
que confere possibilidades de proteção, e sim as pessoas que estão nele.
Favorecer o protagonismo é um importante fator de proteção.
Protagonismo significa oferecer ao outro a possibilidade de fazer, de agir.
O impacto das políticas públicas no desenvolvimento das dinâmicas
relacionais da juventude pode se constituir numa forma de avaliar e perceber a
efetividade de tais programas, promovendo, cada vez mais, novas ações e
possibilitando o acesso dos jovens à aquisição da cidadania e de projetos de
vida pautados pela inserção profissional e da diversidade das expressões que
este jovem pode desenvolver, tornando-se, assim, sujeito protagonista de sua
história e agente de transformação social.
Por fim, o estudo procurou apresentar a necessidade de conhecer os
mecanismos de integração presentes nas dinâmicas de desenvolvimento dos
jovens que participam de políticas públicas, de modo que elas venham a
cumprir sua função socializadora e promotora de cidadania e inserção destes
jovens na sociedade.

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ZALUAR, A. Gangues, galeras e quadrilhas: globalização, juventude e violência.
In: VIANNA, H (Org.). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais.
Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. p. 17-57.

______; LEAL, M. C. Violência extra e intramuros. Revista Brasileira de


Ciências Sociais, São Paulo, v. 16, n. 45, p. 145-164, 2001.

227
228
A exposição de crianças e adolescentes aos discursos
de ódio na internet: alternativas de enfrentamento
dessa forma de violência
The exposure of children and youths to the hatred discourse on the internet:
alternatives to face this kind of violence.
La exposición de los niños y adolescentes los discursos de odio en internet:
alternativas de afrontamiento de esta forma de violencia.

Rosane Leal da Silva

Introdução

Este artigo versa sobre o contato de crianças e adolescentes com


conteúdos denominados discursos de ódio disponíveis na internet. Este acesso
prematuro pode se constituir em uma nova forma de violência, por disseminar
pensamentos e condutas de intolerância e de negação ao outro. Em que pese a
discriminação, o preconceito e o racismo não serem fenômenos novos e
contemporâneos à internet, esta tecnologia da informação e comunicação
contribui para sua disseminação, como comprovado por inúmeros eventos
históricos que mostram o acirramento dessas formas de violência, a exemplo
do período escravocrata ou do Holocausto.
Grande parte do crescimento dessas mensagens no ambiente virtual se
deve às características da internet, como a instantaneidade, o grande potencial
de armazenamento e de disponibilização de conteúdos, o sentimento de
anonimato que desperta no autor das mensagens e a porosidade da rede, vez
que os fluxos informacionais não reconhecem os limites das fronteiras
geográficas dos Estados. Com efeito, a internet permite que os fluxos
informacionais (textos, sons, imagens, etc.) migrem de um local para outro,
subtraindo-se da atuação dos Estados, que passam a ter dificuldades de
identificar, perseguir e punir os autores das mensagens cujo teor se revele
ilícito.
Aliada a isso, a internet amplifica o âmbito de abrangência do que é
divulgado, que pode ser acessado por um número indefinido de pessoas, de
qualquer lugar, em qualquer tempo. Outro importante elemento que torna a
internet tão atrativa para a proliferação de conteúdos prejudiciais e ilícitos é o
que se pode denominar de cultura ciber libertária, que identifica o ambiente
virtual como um “território sem lei” e um espaço de absoluta liberdade de
expressão, a salvo de qualquer mecanismo de regulação por parte do Estado.
Tais características têm contribuído para que a internet, a par de
potencializar o exercício das liberdades e contribuir na luta em favor dos
direitos humanos, também possa, por outro lado, revelar um ambiente hostil
e que favoreça a disseminação de várias condutas que atentem contra a
dignidade humana, destacando-se neste artigo as que tomam a forma de
discursos de ódio.
O contato de adultos com tais conteúdos já se revela perigoso, pois,
independentemente da idade, algumas pessoas podem se mostrar mais
propensas a acolher determinadas mensagens, considerando-as como
verdadeiras, o que banaliza as práticas de violência. O problema assume
proporções ainda mais preocupantes quando quem acessa esses materiais são
crianças e adolescentes, pessoas em estágio de desenvolvimento e que se
mostram mais vulneráveis ao que leem ou assistem, muitas vezes pautando
seu comportamento a partir dessas influências.
Nesse sentido, muitos conteúdos disponíveis na internet no formato
de textos ou imagens são francamente negativos para os menores de idade,

230
pois as mensagens de cunho racista disseminam o ódio e a cultura de
violência. Dessa forma, é sobre essa problemática que versa o presente artigo,
que objetiva propor a discussão sobre a exposição de crianças e adolescentes a
essa forma de violência.
Para tanto, demonstra-se a existência desses discursos a partir da breve
análise de parte do conteúdo do site <nuevorden.net> e de indicadores
divulgados pela Safernet Brasil. Uma vez evidenciado o problema e cotejado
com a doutrina da proteção integral, assente na Convenção Internacional
sobre os Direitos da Criança e na ordem jurídica brasileira, apresentam-se
algumas experiências realizadas na União Europeia, que se destaca por
articular formas de prevenção e educação digital para crianças e adolescentes.

1- Os discursos de ódio como violadores de direitos humanos: delineamentos


teóricos

Segundo Meyer-Pflug (2009), o discurso de ódio “[...] consiste na


manifestação de ideias que incitam à discriminação racial, social ou religiosa
em relação a determinados grupos, na maioria das vezes as minorias” (p. 97).
O conceito oferecido pela autora mostra a abrangência desse discurso que
desqualifica determinados grupos por entender que a condição dos seus
integrantes de alguma forma não reproduz o modelo hegemônico.
De modo diferente das mensagens que se dirigem especificamente a
uma pessoa, insultando-a individualmente, o discurso de ódio, ao ser
divulgado (por palavras faladas, escritos ou imagens) transcende a pessoa
individual e atinge todo o grupo que apresenta as mesmas características. A
uma só vez o emitente insulta diretamente a vítima e o grupo a que esta
pertence, agredindo a dignidade em virtude de um traço ou característica
apresentada, bem como instiga outras pessoas, receptores do seu discurso,

231
para que adotem o mesmo comportamento, o que produz a proliferação da
intolerância e da violência.
Dessa forma, mesmo que não combata frontalmente o “inimigo”
comum, representado pelo grupo que não é tolerado e ao qual não se devem
“misturar”, fica evidenciado que o discurso se baseia na negação dos direitos
humanos e da dignidade do outro.
Com isso, o discurso de ódio toma a forma de uma nova categoria, que
não se confunde com insultos pessoais ou difamações e tanto pode se
expressar explicitamente quanto pode assumir formas bastante sutis e veladas
[1]. Seu objetivo é atingir indistintamente todos os que partilham as
características comuns, quer sejam determinadas pela cor da pele, raça,
religião, opção sexual, local de nascimento, classe social, dentre outras.
A abrangência desse discurso ultrapassa o destinatário e afeta um
número indeterminado de pessoas (todos os que partilham da mesma
característica), atingindo sua dignidade, em clara violação ao que prescreve o
artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo o qual
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.
Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em
espírito de fraternidade”. Por certo, os discursos odientos não refletem um
agir fraterno!
Convém lembrar igualmente que, de acordo com Artigo 2° do mesmo
compromisso internacional, todas as pessoas devem ser detentoras do mesmo
tratamento, não sendo toleradas distinções de nenhuma ordem [2]. Aqui que
se revela o quão pernicioso é este tipo de mensagem, pois, como salientado
por Meyer-Pflug (2009, p. 104-125), o discurso de ódio normalmente revela
o preconceito, a discriminação e o racismo do emissor da mensagem, que
expressa desprezo pelas diferenças, considerando o outro inferior, ao mesmo
tempo em que incita à violência.

232
O preconceito tanto pode ser individual, em que a pessoa expressa sua
posição religiosa ou política como verdades inquestionáveis, quanto pode
assumir a forma de preconceito social, em que um grupo de pessoas ataca
outro (MEYER-PFLUG, 2009, p. 105). Aqui, situam-se os discursos que
desqualificam o outro grupo em virtude da sua classe social, religião,
formação (ser analfabeto, por exemplo) e em virtude do seu estereótipo (ser
gordo, por exemplo). O preconceito se manifesta pela intolerância e pela
dificuldade de lidar com verdades contrapostas.
Já a discriminação seria mais forte, pois o emissor da mensagem, de
forma ilegítima, nega a própria condição de humanidade daquele a quem
dirige as palavras. Nesse caso, o discurso se dirige à exclusão do outro, como
aconteceu na campanha racial nazista e fascista, e as palavras normalmente
são acompanhadas da incitação à prática de atos voltados a este fim
(MEYER-PFLUG, 2009, p. 109-110).
Segundo Andrade (2011), “[...] a intolerância que se baseia em
preconceitos tem como característica atentar contra a diversidade humana e se
constitui em forma de racismo, sexismo, homofobia, xenofobia etc.” (p.
1093). Neste caso, o discurso é utilizado de forma emocional com o objetivo
de julgar e desqualificar o outro.
O racismo [3], por sua vez, “[...] é a atribuição de um valor negativo a
um determinado segmento social, se valendo para tanto de características
comuns existentes entre eles, que possa ser um traço identificador e como tal
mereça um tratamento desigual” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 113). Nesse
caso, a identificação das características inalteráveis de um grupo de pessoas é
utilizada para legitimar sua dominação. O racismo, portanto, apresenta
componentes como a inferiorização, a estigmatização e a exploração de um
grupo por outro, que se considera superior e melhor.

233
Tais elementos se encontram presentes nos textos publicados no
Brasil, no site <nuevorden.net>, conforme se verá na sequência.

2- A utilização da internet por crianças e adolescentes e os riscos decorrentes


do contato com discursos de ódio: o caso do site <nuevorden.net>.

Os últimos anos de século XX revelaram ao mundo uma série de


mudanças desencadeadas pelo desenvolvimento e crescente utilização das
tecnologias da informação e comunicação, em especial a internet. Esta
tecnologia, delineada no período da Guerra Fria para utilização militar,
ganhou novas funcionalidades a partir de sua apropriação pelos universitários
norte-americanos. Sua utilização nos campi universitários contribuiu para que
logo se distinguisse como tecnologia aberta e descentralizada, que permitia
maior protagonismo aos usuários, se comparada com as mídias tradicionais.
Ao lado das funções de uso pessoal relacionadas à interação e à
formação de redes, outras possibilidades foram abertas pela atuação do
mercado empresarial que, identificando suas potencialidades, não tardou em
criar novas ferramentas que permitissem aos usuários produzir e divulgar
conteúdos (CASTELLS, 1999, p. 43).A partir da utilização da internet, as
pessoas puderam ter contato direto com uma gama crescente de informações
consultadas diretamente sem a necessidade de intermediadores, o que lhes
conferiu maior autonomia de escolha.
Conforme destacado por Lévy (1999, p. 33), a informática,
desenvolvida nessa quadra da história, permite digitalizar informações,
armazená-las, tratá-las automaticamente, transportá-las e colocá-las à
disposição do usuário final, o que antes não acontecia. Essas potencialidades
consistiram em um verdadeiro convite para que os internautas passassem a
produzir conteúdos para disponibilizar no ambiente virtual. Ao mesmo tempo

234
em que potencializa o acesso à informação, a internet também abre inéditos
canais de comunicação, o que pode ser feito pela troca de e-mails e também
pelos dispositivos de comunicação instantânea, que permitem que vários
internautas interajam ao mesmo tempo.
Essas potencialidades têm despertado grande interesse aos internautas
de todas as idades, em especial de crianças e adolescentes, que nasceram e
cresceram na era digital. Como nativos digitais, esses usuários se movem com
naturalidade no ambiente virtual, utilizando as funcionalidades que a internet
lhes possibilita, interagindo com os mais diversos conteúdos (em formato
escrito e em imagens), tanto aqueles disponibilizados pelos repertórios
oficiais, como academias e centros de pesquisa, quanto os materiais
preparados por outros internautas e disponibilizados em fóruns de discussão,
blogs e redes sociais. Esse contato de informações se constitui em um dos
pontos de tensão produzidos pelo uso da internet, pois, se de um lado a
possibilidade de produzir e divulgar materiais e a própria diversidade de
fontes pode se constituir em uma das vantagens, potencializando o direito à
informação, por outro, pode colocar pessoas em fase de formação em contato
com conteúdos não apropriados para a sua idade.
Com efeito, na internet, pode ser encontrado todo o tipo de material,
desde aqueles com caráter educativo e que podem contribuir para a formação
cognitiva dos usuários, até materiais com forte apelo sexual e com discursos
de ódio. Exatamente neste ponto é que se situa a abordagem feita neste
trabalho: o contato prematuro dos internautas menores de idade com
discursos (na forma de textos) ou imagens (vídeos, jogos virtuais) que incitam
à violência e à discriminação contra pessoas em virtude de sua raça, cor,
etnicidade, sexo, religião, etc.
Como se sabe, crianças e adolescentes estão em processo de
desenvolvimento, o que os faz captarem e assimilarem de maneira diferente

235
do adulto as mensagens que lhes chegam pelas mídias, quer as tradicionais,
como a TV, quer se trate da internet. Na tenra idade, a criança está mais
propensa a tomar o que vê como verdade, pois o processamento das
informações é meramente perceptivo, ou seja, ela não dispõe de
discernimento para selecionar e criticar o que lhe é apresentado.
Estudos revelam que, entre dois e três anos de idade, os pequenos não
conseguem distinguir a ficção da realidade. A partir dos quatro anos a criança
passa a ter uma ideia representativa, percebendo que se tratam de imagens
disponíveis em uma mídia (STRASBURGER; WILSON; JORDAN, 2011,
p. 44-46). Apesar de serem mais vulneráveis, nesta idade, é menos provável
que, sem a intermediação de adultos, tenham contato com mensagens de ódio
disponíveis na internet, pois a pouca idade reduz o uso dessa tecnologia.
Quanto mais o sujeito cresce, melhor utiliza uma variedade de
estímulos para analisar as mensagens, apresentando melhores condições de
compreender o seu conteúdo e de fazer inferências, raciocinando
conceitualmente. Segundo Strasburger, Wilson e Jordan (2011), “O
adolescente também é capaz de criticar a estrutura lógica e causal de
diferentes mensagens da mídia.” (p. 48), conseguindo captar o significado por
trás da mensagem. Por um lado, isso se revela um alento, pois teria condições
de perceber que os discursos de ódio atentam contra a condição humana, por
outro, sua exposição aos conteúdos dispostos na internet é muito maior, se
comparado às crianças, pois tanto pode empregar esta tecnologia para lazer,
quanto para realizar pesquisas escolares. Neste caso, ao fazer uma tarefa
escolar sobre a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, e digitar na internet
palavras como “nazismo” ou “nacional-socialismo”, o adolescente pode ser
conduzido a sites destinados a espalhar o ódio contra os judeus.
Um dos sites desta natureza e que pode ser encontrado facilmente com
este método de busca é o <nuevorden.net>, que mantém na internet

236
conteúdos do extinto site <Valhalla88>, desabilitado por conter discursos de
ódio [4]. Este novo site tem a missão de “instaurar uma nova ordem”, ao que
se percebe “branca e pura”, integrada por pessoas que partilham das mesmas
ideias. Organizado na forma de tópicos, ganha destaque o destinado a discutir
e prestar esclarecimentos sobre raça e racismo, com estruturaem questionários
de perguntas e respostas curtas, o que mantém a atenção dos leitores. Para os
organizadores do site, a raça é “[...] o conjunto de indivíduos que
compartilham entre si as mesmas características genéticas, culturais e
históricas. Ou seja, são aquelas pessoas com semelhanças físicas que possuem
uma mesma origem histórica [...]” (NUEVORDEN.NET, 2012).
Embora afirmem que a “maioria das pessoas confunde racismo com
discriminação”, afirmando que o “racismo não tem nada a ver com ódio e o
desprezo às outras raças”, o conteúdo publicado revela esse ódio quando prega
a não miscigenação, que o casamente inter-racial pode conduzir ao
esquecimento da cultura, tradições e ancestrais, o que levaria, inevitavelmente,
à extinção daquela raça. Embora se dizendo não racistas, ao abordarem a
questão dos mestiços na América do Sul, afirmam que “Apesar de a América
do Sul ter sido castigada pela mestiçagem desde o primeiro momento em que
foi colonizada, ainda se conservam pequenos grupos de raça branca.”
(NUEVORDEN.NET, 2012). A expressão “castigada”, empregada pelo
grupo, certamente revela sua posição contrária à miscigenação e favorável
apenas à raça branca, o que desqualifica as demais pessoas.
Os índios não são poupados pelo site, pois, mesmo que se reconheça a
presença da população indígena no Brasil desde o “alvorecer do mundo”,
propõe-se a sua separação, conforme se constata na frase: “Cremos que tanto
os Brancos como os Indígenas podem viver em um mesmo continente,
separados devidamente.”. Ao realizarem a ressalva de “poderiam viver no
mesmo espaço, desde que devidamente separados”, evidenciam que não

237
aceitam a pluralidade e que negam todas as expressões do multiculturalismo
(NUEVORDEN.NET, 2012).
Não é diferente quando tratam dos negros, pois sugerem que seria útil
que os internautas ajudassem os negros a voltarem à África, mostrando que os
organizadores entendem que esse não é um espaço de pertencimento deles.
Entretanto, nos casos dos indígenas e negros mencionados no Nuevorden,
pode-se perceber que o discurso é mais velado, necessitando que o leitor
detenha alguns conhecimentos de linguagem para compreender a ideologia
que é defendida. Quando se tratam dos judeus, o teor das mensagens muda e
o discurso de ódio fica explícito: “Sobre os Judeus, estes vem trabalhando, no
curso da história, para aniquilar a nossa raça e, portanto devem ser tratados de
acordo”, ou seja, além de demarcar que os judeus não são detentores da
mesma dignidade que os demais brancos, utilizam adjetivos como
“pestilentos”, para incitar o seu aniquilamento, em um claro convite à
violência, conforme se verifica na seguinte passagem:

Queremos deixar bem claro que muitas pessoas usam o termo


“anti-semita”[sic] pra se referir apenas ao Judeu, também são
semitas os árabes e os armênios. Com relação à questão judaica, os
judeus, durante toda a história, corromperam e atacaram nossa
raça e cultura com o objetivo único de nos subjulgar [sic] e
finalmente nos aniquilar, são um povo pestilento e parasítico que
levam a ruína e decadência toda e qualquer sociedade na qual se
instalam, por este motivo eles foram perseguidos e expulsos de
todos os países e regiões aonde penetraram, desde o antigo Egito
milhares de anos atrás até a Alemanha há poucas décadas,
passando pela Babilônia, Jerusalém, Império Romano, Península
Ibérica, Inglaterra, França, Dinamarca, etc.. Isto não ocorreu por
coincidência, mas sim pelo fato de que a própria existência dos

238
judeus põe em risco a nossa e de qualquer outra raça que com eles
conviva. Desta forma consideramos sim o judaísmo internacional
como nosso maior inimigo (NUEVORDEN.NET, 2012, grifo
nosso).

Neste fragmento, percebe-se claramente a existência dos elementos


que configuram o discurso de ódio: o menosprezo e a intolerância com as
diferenças, expressos pela desqualificação da dignidade do outro (são tratados
como povo pestilento e parasítico) e o convite à violência, explicitado na frase
que considera o judaísmo como inimigo internacional. Ora, para os
integrantes desse grupo, o inimigo precisa ser aniquilado, e a supremacia da
“raça branca pura” deve ser um objetivo a ser perseguido, conforme se
depreende da seguinte passagem:

18) A Raça Branca Ariana é superior as demais raças? Cremos


firmemente que a Raça Branca Ariana é superior as demais raças,
mas isto não deve ser visto como algo que vá contra a natureza,
pois a superioridade de certas espécies sobre outras é parte da
hierarquia natural.
19) Que provas tem que a Raça Branca Ariana é superior as
demais raças? As provas estão a vista, o maior, o mais majestoso, o
mais harmonioso é criação do Ariano. As demais raças, não são
capazes de criar ou evoluir longe da influência Ariana
(NUEVORDEN.NET, 2012).

Trata-se de conteúdo ofensivo, inadequado e ilícito, porquanto de


caráter racista, com incitação à violência e que se encontra à disposição de
qualquer pessoa, independente da idade. Além do fácil acesso, a migração do
conteúdo de um site extinto para outro evidencia o tamanho do desafio

239
enfrentado pelas autoridades públicas no combate a esse tipo de discurso, que
pode ser postado em um Estado onde as leis priorizem a liberdade de
expressão, como os Estados Unidos, por exemplo, dali facilmente migrando
para outros. Outro entrave é a forma velada que, por vezes, o conteúdo
assume, a começar pela própria denominação do site, que em uma primeira
leitura não sugere incentivar a discriminação racial.
Tais dificuldades apontam para a necessidade de a comunidade
jurídica pensar em novas formas de enfrentamento do tema, já que o Direito
– instrumento tradicionalmente utilizado pelos Estados na modernidade para
perseguir e punir aqueles que violam a ordem estabelecida – parece não ser
suficiente para dar conta dos novos problemas descortinados na sociedade
informacional. Para além da persecução e punição dos responsáveis, matéria
afeta ao Direito Penal e que foge ao âmbito deste trabalho, mostra-se
imperioso discutir como proteger crianças e adolescentes do contato com
discursos de ódio que se proliferam na internet. Essas questões são objeto de
enfrentamento no próximo item.

3- O desafio de proteger crianças e adolescentes do contato com discursos de


ódio

Desde 1988, o Brasil, sob influência do debate que se travava na seara


internacional [5], adotou a doutrina da proteção integral à criança e ao
adolescente, expressa no artigo 227 da Carta Constitucional [6], segundo a
qual crianças e adolescentes são considerados pessoas em peculiar estágio de
desenvolvimento, consistindo em dever da família, sociedade e Estado
promover todos os direitos que lhe são inerentes, bem como zelar pela sua
dignidade. Para dar cumprimento ao comando constitucional, foi editada a
Lei n. 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, que, além de

240
assumir os princípios básicos estabelecidos pela Convenção Internacional e
pela Constituição, estabelece um conjunto de ações para efetivar a proteção
integral.
A Doutrina da Proteção Integral impõe aos adultos dever jurídico de
dupla face: ao mesmo tempo em que eles têm que se abster de violar os
direitos de personalidade de crianças e adolescentes,devem promover o
respeito aos direitos fundamentais desses sujeitos, amplamente positivados no
Brasil. Ao tratar desse tema, Veronese (1999) coteja o texto do artigo 16 da
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, com os artigos
correspondentes, previstos na Lei n. 8.069/90, destacando o papel do art. 17
do Estatuto, que trata do direito à integridade psíquica:

A nossa Lei não limita ao art. 17 essa proteção, fazendo-o também


nos seguintes dispositivos: arts. 7º, 13, 33, 56, I; 67; 69; 70; 71; 79;
81; 87; 91; 94, IX; 129, VI; 130; 136, a; 233; 234; 237; 239; 242;
243; 244; 245.
O direito à integridade psíquica consiste em algo de máxima
importância, tendo em vista que a criança, no seu
desenvolvimento, isto é, no processo de formação de sua
personalidade, deve ser preservada daquilo que poderia perturbar
ou danificar sua vida emocional. Esse cuidado faz-se necessário,
pois é justamente na infância e preponderantemente dos zero aos
cinco anos de idade que se estabelece a estrutura psíquica do ser
humano [...] (p. 120-121, grifo nosso).

Conforme evidenciado acima, a legislação brasileira, harmonizando-se


com a Convenção Internacional, contempla vários dispositivos que
incorporaram o respeito como categoria jurídica, em uma clara referência aos
direitos humanos, cuja observância é condição para o integral

241
desenvolvimento desses seres em formação. Assim, por entender que a
integridade psíquica precisa ser preservada e promovida, dispõe que todos têm
o dever de velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo
de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor (LEI n. 8.069/90, art. 18).
Na mesma senda, o estabelece o art. 5º, segundo o qual “Nenhuma
criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma
da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais”. Ora, pelo teor desses artigos já se verifica o dever assumido
pelo Estado brasileiro de preservar crianças e adolescentes da violência, o que
se mostra fragilizado diante dos discursos de ódio cujo conteúdo incita à
violência e à discriminação.
Apesar dos comandos legais serem expressos, torna-se muito difícil
tutelar os direitos psíquicos de crianças e adolescentes, pondo eles a salvo do
contato com discursos de ódio publicados na internet, cujas características, já
apontadas neste estudo, mobilizam a ação de alguns dos atores encarregados
da proteção integral. Dentre os exemplos de atuação preventiva existentes no
Brasil, destaca-se a SaferNet Brasil, associação civil sem fins lucrativos e com
alcance nacional, que, desde 20 de dezembro de 2005, trabalha no combate
aos crimes contra os direitos humanos, como os discursos de ódio praticados
na internet [7]. Quanto a estes, a Safernet mantém indicadores [8] sobre
intolerância religiosa, racismo, neonazismo, xenofobia e homofobia.
Com a missão de promover o uso seguro das tecnologias da
informação e comunicação, a SaferNet Brasil atua não somente no
recebimento e investigação preliminar das denúncias de crimes, mas também
trabalha de forma preventiva para habilitar as pessoas a fazerem uso seguro
das tecnologias, o que é feito pela produção de cartilhas de segurança,

242
disponíveis na internet, e de palestras em algumas escolas. Apesar das
iniciativas no âmbito preventivo, o recebimento e apuração das denúncias
para envio aos órgãos competentes (normalmente Polícia Federal e Ministério
Público Federal) se constituem nas maiores frentes de atuação da SaferNet
Brasil.
Conforme informado no site da associação, a Central Nacional de
Denúncias de Crimes Cibernéticos deste órgão é a única a atuar na América
Latina e no Caribe, recebendo cerca de 2.500 denúncias diárias de situações
como pornografia na internet, pedofilia, racismo, neonazismo, intolerância
religiosa, apologia e incitação a crimes contra a vida, homofobia, dentre
outros. Os números disponíveis quanto às denúncias sobre discursos de ódio
são bastante expressivos, pois a análise dos indicadores disponíveis pela ONG
mostra que, só no ano de 2011, foram recebidas aproximadamente 16.370 mil
denúncias de condutas que podem ser consideradas discursos de ódio, sendo
que destas 10.391 casos ocorreram no Orkut (SAFERNET BRASIL, 2012
b).
Outro dado interessante revelado pelos indicadores é que, no domínio
Orkut, o maior número de denúncias é de xenofobia (3.364 casos), seguido de
homofobia (3.095 casos), neonazismo (1.661 casos), racismo (1.568 casos) e
intolerância religiosa (700 casos). Fora do domínio Orkut, por sua vez, o
maior número é de denúncias de racismo, com 2.229 casos, sendo seguida de
homofobia (1.424 casos) e de xenofobia (1.245 casos). Os demais discursos de
ódio versando sobre intolerância religiosa e neonazismo somamjuntos pouco
mais de 1.000 incidências.
Esses números mostram que os discursos de ódio existem e são
denunciados pelos internautas, o que mostra certo engajamento da sociedade.
No entanto, quando se busca pela atuação das autoridades e do Poder
Público, percebe-se que as ações ficam voltadas à persecução e à punição do

243
autor dos crimes de racismo, não se dirigindo a medidas preventivas e
educativas para proteger crianças e adolescentes do contato com discursos de
ódio. Esta situação é bem diferente do que acontece na União Europeia, que,
desde 1996, editou comunicações (como a COM (96) 483 e a COM (96)
487) e normativas para enfrentar a difícil questão que envolve a circulação de
conteúdo prejudicial e ilegal na internet.
A primeira preocupação foi classificar os conteúdos disponíveis em
duas espécies: a) conteúdos ilícitos, cuja divulgação não é permitida nem
mesmo aos adultos em virtude de contrariarem a lei, o que por si só já
autoriza a restrição ao direito fundamental da liberdade de divulgação e de
informação; e b) conteúdos prejudiciais para menores de idade, assim
considerados aqueles com distribuição não autorizada para crianças e
adolescentes e que ficariam sujeitos ao controle parental.
Segundo explicado por Gonçalves (2003, p. 158), o modelo proposto
nas comunicações respeitaria a escolha do usuário adulto, reconhecendo sua
autonomia para livremente decidir se deseja acessar material com conotação
sexual ou não. Com isso, sua esfera de liberdade não seria atingida. Quanto
aos menores de idade, no entanto, foram previstas diretrizes,
responsabilizando tanto quem explora a atividade na área informacional, que
é encorajado a adotar códigos de conduta, bem como os pais das crianças, a
quem os Estados Partes incitam a assumirem o controle parental. O Estado
só atuaria diretamente e de maneira mais contundente para combater os
ilícitos.
Entre outras tantas medidas adotadas, em 1998 é expedida a
Recomendação 98/560 do Conselho Europeu, que orienta os Estados a
fomentarem a adoção voluntária de marcos legais para a autorregulação dos
serviços dos operadores de internet, proporcionando segurança aos menores
de idade que utilizarem esses serviços. Para atender a sua finalidade principal,

244
a Recomendação prevê quatro ações básicas: a) cooperação entre as
autoridades responsáveis na criação de estruturas de representação das partes
interessadas, para que possam participar das atividades em escala europeia e
internacional; b) cooperação na elaboração dos códigos de conduta; c)
elaboração voluntária de propostas de ações voltadas à proteção dos menores
de idade; d) dar sequência às atividades já adotadas em escala nacional
(UNIÃO EUROPEIA, 1998).
Na esteira dessas iniciativas, em 25 de janeiro de 1999, é adotada a
Decisão 276 do Parlamento Europeu e do Conselho, que cria o Plano
Plurianual de Ação Comunitária, com duração prevista de 1 de janeiro de
1999 a 31 de dezembro de 2002 (UNIÃO EUROPEIA, 1999). Este plano
visava a fomentar a utilização mais segura da internet através do combate aos
conteúdos ilegais e lesivos nas redes mundiais, o qual, para cumprir seu
desiderato, contou com orçamento de vinte e cinco milhões de euros.
Tal plano parte do reconhecimento do papel importante que pode ser
desempenhado pela autorregulação do setor e incentiva os usuários e as
empresas a elaborarem códigos de conduta para o uso seguro da internet.
Segundo se depreende da leitura do artigo 3º da referida Decisão, os Estados
firmatários entendem que a autorregulação poderia contribuir para limitar o
fluxo de conteúdos ilegais na internet, especialmente aqueles relacionados
com pornografia infantil ou que incitem ao ódio por razões de raça, sexo,
religião, nacionalidade ou origem étnica. Nesse ponto, já se percebe a
preocupação dos Estados Europeus com a proliferação dos discursos odientos
e a busca de alternativas conjuntas para o seu enfrentamento.
Para dar conta de seus objetivos, o Plano Plurianual também prevê a
criação de um sistema de filtragem de conteúdos, a partir do qual os pais
poderiam exercer o seu controle parental. Com isso, visava-se estimular a
aplicação de soluções técnicas para o problema das mensagens ilícitas e

245
prejudiciais, criando-se um sistema de classificação de conteúdos. Tal
classificação tanto poderia ser feita pelo próprio elaborador do conteúdo, que,
ao disponibilizá-lo, deveria indicar sua natureza, quanto poderia decorrer da
utilização de um sistema técnico, a ser criado.
Para obter um ambiente mais seguro, os Estados Partes propuseram a
criação de um sistema de linhas diretas, no qual os próprios utilizadores
pudessem comunicar a existência de conteúdos ilegais. A atividade de
persecução e punição dos responsáveis pela circulação dos conteúdos ilegais
seria das autoridades nacionais competentes para aplicar a lei, mas a
participação dos particulares seria valorizada na medida em que teriam a
missão de comunicar a existência desse material. Daí o empenho dos Estados
Partes em investir na sensibilização dos atores envolvidos (especialmente pais
e professores), pois entendem que parte do êxito do Plano depende da
aceitação e da colaboração dos usuários da internet.
Em 2003, adotou-se a Decisão n. 1151/2003/CE do Parlamento
Europeu e do Conselho, prorrogando a duração do Plano Plurianual até 31
de Dezembro de 2004. Esta decisão aumentou o orçamento indicativo em
mais treze milhões de euros e introduziu diversas alterações no título e no
âmbito do programa (UNIÃO EUROPEIA, 2003). Como justificativa para
a ampliação do tempo de execução, encontra-se a constatação da existência de
novas formas de conteúdos, como os de origem racista. Conforme se
depreende, a internet potencializa a divulgação desses materiais, o que
preocupa os Estados da União Europeia.
Decorrido o prazo previsto inicialmente para a execução do Plano,
realizou-se a sua avaliação, resultando na Comunicação 653/2003. Por meio
dessa avaliação, constatou-se que, no período entre 1999 e 2002, foram
cofinanciados 37 projetos, envolvendo mais de 130 organizações. Além desses
projetos, o relatório aponta a celebração de dois contratos de serviços de

246
assistência a organismos de autorregulação, bem como a realização de
intercâmbio de informações sobre as melhores práticas que podem ser
adotadas na internet (UNIÃO EUROPEIA, 2003b). Os resultados
indicaram que os impactos do Plano Plurianual foram positivos, destacando-
se a maior sensibilização das pessoas para a segurança na internet, o que
também se refletiu em maior participação dos usuários na comunicação de
conteúdos ilegais.
Os sistemas de classificação e de filtragem de conteúdos ainda se
mantinham como um desafio, conforme se constata na Comunicação
653/2003 (UNIÃO EUROPEIA, 2003b, p. 3), concluindo-se que
sensibilização e as ações educativas poderiam produzir melhores resultados na
proteção dos menores de idade. Para dar conta disso, em 2005, foi dado outro
passo importante em direção ao combate de conteúdos considerados discursos
de ódio, o qual foi feito com a criação do Programa Safer Internet Plus,
instituído pela Decisão 854/2005 do Parlamento Europeu e do Conselho
Europeu. Esse documento deu sequência ao Plano de Ação anterior,
desenvolvido no período de 1999-2004 (UNIÃO EUROPEIA, 2005).
O Safer Internet Plus, criado em 2005, consiste em um programa
plurianual comunitário, dotado de verba própria e voltado ao uso seguro da
internet e demais tecnologias em linha, com destaque especial ao combate aos
conteúdos ilegais e prejudiciais. Este plano contemplou ações, tais como
apoio a linhas telefônicas de ajuda para crianças que enfrentem conteúdo
ilícito ou prejudicial, adoção de medidas de incentivo para acelerar a criação
de códigos de conduta e medidas para melhorar a eficácia operativa e
favorecer as trocas de informação e experiência no âmbito da União Europeia
(UNIÃO EUROPEIA, 2005).
A preocupação com a disseminação dos discursos de ódio justificou os
investimentos em constantes ações de sensibilização para seu combate, seja

247
pela adoção de práticas de denúncia por parte dos próprios internautas, que
podem se valer das linhas abertas, seja a partir do uso de sistemas classificação
e filtragem, que evitariam que os menores de idade tivessem contato com
esses conteúdos. Com isso, verifica-se a adoção de ações preventivas, na
medida em que os Estados Partes, ao perceberem a dimensão e os riscos da
proliferação dos discursos de ódio na internet, apostam em alternativas que,
sem consistir na censura prévia de conteúdos, oportuniza meios para que os
pais e professores exerçam seu papel educativo.
A autonomia dos atores sociais e a sua participação também são muito
valorizados, já que os usuários são constantemente exortados a informar aos
órgãos encarregados sobre a existência de mensagens, textos, imagens e vídeos
que tenham conteúdos racistas e xenofóbicos e estejam disponíveis na
internet. Com efeito, ao propor ações educativas e preventivas e apostar na
cooperação entre usuários, empresas, Estados e organizações internacionais, a
União Europeia não só demonstra preocupação precoce com a disseminação
de conteúdos considerados discursos de ódio, como também investe na
corregulação [9]. Tal modelo de regulação pode ser definido, como “[...] a
resultante da interacção permanente entre a lei e os outros modos de
regulação. O pressuposto é o de que qualquer iniciativa que tenha por efeito
organizar e estruturar a Internet participa na sua regulação” (GONÇALVEZ,
2003, p. 146 apud VERBIEST; WÉRY, 2001, p. 523).
Dando sequência aos esforços empreendidos, em 2006, a União
Europeia produziu a Recomendação 2006/952/CE, em que novamente se
convocam as empresas que atuam no setor a concentrarem ações no combate
à propagação de conteúdos capazes de produzir discriminação por motivo de
sexo, origem racial ou étnica, religião ou crença, incapacidade, idade ou
orientação sexual. Para tanto, estabeleceu-se o dever de vigilância e de
denúncia de páginas consideradas ilícitas e a elaboração de código de conduta

248
em cooperação com profissionais e autoridades reguladoras em escala nacional
e comunitária (UNIÃO EUROPEIA, 2006).
Em 16 de dezembro de 2008, o Parlamento Europeu e o Conselho,
por meio da Decisão n. 1351/2008/CE, estabeleceram a criação do Programa
Comunitário Plurianual para a proteção de crianças que utilizam a internet e
outras tecnologias da comunicação. Este programa, além de ratificar os
compromissos já firmados na área, prevê novas ações pautadas na
corregulação, o que evidencia que os Estados Europeus têm ciência de que o
enfrentamento dos problemas relacionados aos conteúdos prejudiciais e aos
discursos de ódio on-line só será eficaz se contar com a participação de todos
os atores sociais (UNIÃO EUROPEIA, 2008).
Como se percebe da análise dos documentos, desde a década de 90, os
Estados integrantes da União Europeia destinam verbas e propõem políticas
públicas voltadas a sensibilizar a população para o uso seguro da internet.
Dessa forma, tentam harmonizar o exercício das liberdades potencializado
pelo uso da internet com valores, como a dignidade da pessoa humana, ideal
que deve ser perseguido por todos os integrantes da União Europeia, bem
como pelos demais Estados que acolherem o convite de cooperação
internacional.

Considerações finais

Conforme demonstrado ao longo do trabalho, os discursos de ódio,


considerados aqueles que atingem a dignidade de pessoas que pertencem à
mesma raça, credo, nacionalidade ou que detém a mesma opção sexual,
existem e facilmente se proliferam na internet. Parte dessa expansão se dá
pelo sentimento de anonimato de seus autores, que apostam na incapacidade
do Estado em persegui-los. Outros, por outro lado, entendem que o ambiente

249
virtual é uma espécie de território sem lei onde tudo pode ser publicado.
Aliada a isso, a facilidade de migração do conteúdo de um site para outro,
como mostrado no caso do extinto Valhalla88, cujo conteúdo migrou para o
Nuevorden.net, torna praticamente impossível o controle do que se encontra
na rede.
Tal conjunção de fatores aponta para a necessidade de se rever as ações
voltadas à proteção integral de crianças e adolescentes, especialmente
aquelas/es que se constituem internautas, em face da facilidade de acesso aos
discursos de ódio existentes na internet. O contato prematuro com
mensagens que inferiorizam as pessoas em virtude de sua raça (em seu
conceito lato, como utilizado pelo STF) ou de qualquer outro sinal distintivo
e a incitação à violência, característica do discurso de ódio, maculam a
integridade psíquica dos menores de idade, cuja falta de discernimento não
lhes permite um juízo crítico do conteúdo divulgado.
Revela-se, portanto, uma dupla violência, pois, ao mesmo tempo que
atinge as pessoas denegridas pelo discurso de ódio, também violenta crianças
e adolescentes, que estão em fase de desenvolvimento e que podem ter
contato com esses materiais, fato que abalaria a sua integridade psíquica. Tal
situação exige o enfrentamento por parte dos atores encarregados da proteção
integral no Brasil, pois apenas a identificação e a punição do autor do crime,
como normalmente ocorre, não são suficientes para promover a proteção
integral dos menores de idade.
A partir dessa nova forma de violência revelada pelos discursos de ódio
on-line, identifica-se, na corregulação e nas ações preventivas realizadas pela
União Europeia, uma alternativa de enfrentamento a este problema que viola
Direitos Humanos. Esta também poderia ser uma estratégia adotada pelo
Brasil, que não pode mais ignorar esse grave problema.

250
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253
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segura da internet através do combate aos conteúdos ilegais e lesivos nas redes
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254
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2009.

255
VERONESE, Josiane Rose Petry. Os direitos da criança e do adolescente.
São Paulo: LTr, 1999.

256
Notas de fim

[1] Como exemplo disto, pode-se citar a comunidade intitulada “Orgulho


branco” existente no Orkut, em que os integrantes enalteciam a raça branca.
Embora não houvesse ataque pessoal a pessoas de outras raças, os integrantes
dessa comunidade deixavam implícito que quem não tivesse a “pele alva” não
detinha as mesmas qualidades e direitos.

[2] Eis o teor do Art. 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos:


“Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades
proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente
de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de
origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra
situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto
político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da
pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou
sujeito a alguma limitação de soberania”.

[3] No entanto, convém lembrar que o mapeamento do genoma humano


conduziu a uma nova compreensão jurídica do conceito de raça, conforme se
destacam nos trechos do Habeas Corpus n. 82.424/RS, julgado pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), em 2003 (BRASIL, 2003): “3. Raça humana.
Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma
humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela
segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pelos ou por quaisquer outras
características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana.
Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos
iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um

257
processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-
se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito
segregacionista.”. A partir deste entendimento, o racismo começou a abarcar
a qualquer grupo étnico, religioso, cultural e social.

[4] Segundo Dias (2007), “No Brasil, crimes de ódio racial ainda são
precariamente condensados em dados específicos, muitas vezes caracterizados
apenas como lesão corporal, injúria ou até homicídio e não destacados como
crimes de racismo, embora a Constituição Brasileira de 1988 o preveja como
imprescritível e inafiançável. Ainda assim, as estatísticas dos movimentos
antirracistas apontam para o fato de que pelo menos noventa mil pessoas
estejam diretamente envolvidas em grupos neonazistas, cerca de metade disto
apenas no Estado de Santa Catarina. O maior site neonazista brasileiro, o
Valhalla, tem sua sede em Santa Catarina e alcançou a significativa marca de
200.000 visitas diárias antes de ser retirado do ar, em agosto de 2007” (p. 35).

[5] Trata-se do debate que perdurou quase dez anos, envolvendo mais de uma
centena de países e que, em 1989, resultou no texto da Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança e do Adolescente. Conforme se
denota de seu texto, este compromisso internacional se ampara nos mesmos
princípios que ancoram a visão contemporânea dos direitos humanos, tais
como liberdade, justiça e paz no mundo, reconhecendo as crianças como seres
vulneráveis, que merecem cuidado e proteção especiais em razão da fase de
desenvolvimento em que se encontram.

[6] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

258
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.

[7] O trabalho desta associação se integra a um projeto maior, que abrange 22


países que formam a International Associationof Internet Hotlines
(INHOPE), fundação criada no ano de 1999 e que se empenha em combater
o uso indevido da Internet (SAFERNET, 2012a).

[8] Para se ter uma ideia da dimensão do problema no Brasil, somente no


período compreendido entre 1 de janeiro de 2012 a 1 de fevereiro deste ano, a
Safernet já recebeu 92 denúncias de intolerância religiosa, 242 de racismo, 23
de neonazismo, 82 de xenofobia e 119 de homofobia praticados na internet
(SAFERNET, 2012b).

[9] Esse modelo misto atuaria de forma complementar aos modos


tradicionalmente empreendidos pelo Estado, combinando a utilização de
mecanismos informais de regulação, empreendidos por instituições públicas,
privadas, empresas e sociedade civil. A composição deste contemplaria, de um
lado, mecanismos de autorregulação, materializados em códigos de conduta;
normas estatais, pois os Estados continuariam empregando mecanismos de
regulação nos casos necessários, especialmente no combate à criminalidade; e,
por fim, a cooperação internacional.

259
260
Crianças e adolescentes na era dos direitos: entre o
desenvolvimento econômico e a inexistência da efetiva
distribuição de renda e justiça social
(um estudo de caso: a cidade do Rio Grande)
Teens in the age of rights: between economic development and lack of
effective income distribution and social justice
(a case study: the city of Rio Grande)
Los niños y adolescentes en la edad de los derechos: entre el desarrollo económico y la
ausencia de justicia social y distribución de renta efectiva
(un estudio de caso: la ciudad de Rio Grande)

Sheila Stolz

Introdução

O Relatório “A Ascenção do Sul: Progresso Humano num Mundo


Diversificado” sobre Desenvolvimento Humano, elaborado pelo Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2013), faz uma análise
detalhada da evolução da geopolítica e das questões e tendências que moldam
o panorama do desenvolvimento a nível mundial.
Segundo o PNUD 2013, durante a última década, todos os países
progrediram nas esferas da educação, da saúde e do rendimento, tal como
afere o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e as projeções para 2020.
Além disso, orienta para a conclusão de que o
produto combinado de apenas três dos principais países em
desenvolvimento, o Brasil, a China e a Índia, superará o produto
agregado do Canadá, França, Alemanha, Itália, Reino Unido e
Estados Unidos. Grande parte desta expansão é impulsionada por
novas parcerias comerciais e tecnológicas no seio da própria região
Sul. (PNUD, 2013, p.iv).

Entretanto, alerta o documento que, tal como apontado nos anteriores


relatórios,

[...] o crescimento econômico não se traduz, por si só e


automaticamente, em progressos no desenvolvimento humano. A
opção por políticas em prol dos mais desfavorecidos e por
investimentos significativos no reforço das capacidades dos
indivíduos – com ênfase na alimentação, educação, saúde, e
qualificações para o emprego – pode melhorar o acesso a um
trabalho digno e proporcionar um progresso duradouro. (PNUD,
2013, p. iv).

Este Relatório destaca, igualmente, que tais desigualdades sociais são


acrescidas de fatores concernentes à transversalidade racial, etária e de
identidades de gênero [1].
Corroboram com as constatações do PNUD, por exemplo, os
indicadores sociais publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), no ano de 2008, com base nas informações prestadas pela
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, obtidas durante o
ano de 2007 (em todo território nacional). Tais dados apontam, ao tratar de
transversalidade racial, para números absolutos, que se tinha, no ano de 2007,
cerca de 14 milhões de analfabetas brasileiras e analfabetos brasileiros e destes

262
– aproximadamente 9 milhões – correspondiam à população de pretos e
pardos.
Isto comprova que, para os grupos sociais de afrodescendentes, essa
situação persiste em sua extrema gravidade, principalmente porque esse grupo
social corresponde a quase metade da população brasileira. O Censo,
realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do ano
de 2000, revelou que as negras e os negros representavam, na época, 45% da
população brasileira, correspondendo, ademais, cerca de 65% da população
pobre e a 70% da população em extrema pobreza, enquanto que as brancas e
os brancos representavam 54% da população total, sendo que, nesta parcela,
35% correspondia aos pobres e 30% aos extremamente pobres.
Segundo o IBGE (2008), “Em termos relativos, a taxa de
analfabetismo da população branca é de 6,1% para as pessoas de 15 anos ou
mais de idade, sendo que estas mesmas taxas para pretos e pardos superam
14%, ou seja, mais que o dobro que a de brancos.” (p. 211). Cabe registrar, na
linha da pesquisa realizada pelo IBGE (2008), que

[...] o analfabetismo é um fator de marginalização, que exclui e


impede a mobilidade social da criança, do jovem [2], do homem e
da mulher. As elevadas taxas de analfabetismo que ainda subsistem
em diversas áreas é um indicador de exclusão de expressivas
camadas da população mundial e refletem as dificuldades
enfrentadas pelos governos para erradicação deste sério problema.
(p. 41).

Não obstante aos significativos avanços econômicos, normativos e de


políticas públicas sociais e afirmativas ocorridas a partir da promulgação da
Constituição Federal de 1988, no que diz respeito aos grupos vulneráveis [3],

263
ainda vigoram padrões, atitudes e valores discriminatórios. O termo
discriminação, em sentido amplo, é aqui utilizado para mencionar qualquer
tipo de distinção, exclusão, restrição ou violação dos direitos humanos de uma
pessoa, circunstâncias que impedem sua autonomia e seu reconhecimento
como, também, que a comunidade política, em seu conjunto, alcance padrões
viáveis de justiça social.
Constatar a existência dessas discriminações e atuar de forma
propositiva para sua superação têm sido árduas tarefas assumidas pelos
movimentos sociais, pelas organizações não governamentais, pelos defensores
dos Direitos Humanos, pelas universidades e pelo próprio Estado. Este tipo
de visão acerca das políticas públicas considera que a efetividade dos
programas dirigidos aos grupos vulneráveis somente será alcançada se, em sua
elaboração e execução, envolverem-se, opinarem e participarem as próprias
afetadas e os próprios afetados. Assim, reforça, desta forma, sua autonomia
nos planos individual, familiar e social e, consequentemente, suas capacidades
mediante à organização, ao acesso aos recursos materiais, ao fortalecimento
de redes sociais e ao desenvolvimento de qualificações para participar do
controle social das políticas públicas. Este enfoque é empregado, dentre
outros, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [4], pela
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e pelo
Instituto das Nações Unidas de Pesquisa do Desenvolvimento Social
(UNRISD).
No transcorrer destas páginas, tratar-se-á de delinear, em breves
linhas, o entorno socioeconômico do município de Rio Grande e, em
particular, das comunidades que residem nas proximidades do Campus
Carreiros, principal sede da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, e
com as quais a equipe do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos
Humanos da Universidade Federal do Rio Grande (NUPEDH/FURG) vem

264
desenvolvendo suas ações, as quais têm como marco teórico os Direitos
Humanos. Posteriormente, buscar-se-á descrever, desde suas origens, as
políticas públicas infanto-juvenis e, em particular, os avanços alcançados após
a democratização brasileira e os legados jurídicos da Constituição Federal e
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, além de elencar os
direitos fundamentais deste grupo vulnerável, define as diretrizes e bases das
políticas públicas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente em
situação de risco pessoal e social, enquanto vítimas preferenciais da exclusão.
A implementação dos Direitos Humanos deste grupo vulnerável requer a
universalidade e a indivisibilidade desses direitos, mas, também, o valor da
especificidade e diversidade.
Na terceira seção, caracterizar-se-á a violência tomando como ponto
de partida e, tal como adotado pelo Direito Internacional dos Direitos
Humanos, alguns elementos consensuais que a configuram como, verbi
gracia, a noção de coerção ou força, o dano que causa em um indivíduo ou
grupo de indivíduos pertencentes à(a) determinada(o) classe ou categoria
social, gênero e etnia para, a partir deste entendimento, esboçar
sumariamente o quadro de violência intrafamiliar contra a mulher, a criança e
o adolescente no Rio Grande do Sul e, em particular, na cidade do Rio
Grande.
Com base nestes dados, tratar-se-á, finalmente, de defender a
necessidade de criação de redes sociais de apoio que visem o desenvolvimento
integral das crianças e dos adolescentes, defendendo-se, igualmente, a
importância – constatada desde os fundamentos teóricos – do componente
democrático a orientar a formulação, implantação e fiscalização das políticas
públicas tanto para que ditas políticas públicas estejam acordes com as
necessidades daqueles para as quais estão dirigidas como para que

265
efetivamente se constituam em verdadeiros instrumentos de garantias de
direitos e cidadania.
1- Caracterização do entorno

De acordo com Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatística (IBGE), o município de Rio Grande, situado no Rio
Grande do Sul, nas chamadas Mesorregião “Sudeste Rio-Grandense” e
Microrregião “Litoral Lagunar” alberga, em seus 2.709,522 km² de área, uma
população de 197.228 habitantes e tem a estimativa de que a referida cidade
alcance, em 2013, a 206.161 habitantes [5]. Caracterizada por uma economia
baseada na predominância do setor secundário, com ênfase no Polo Naval
Gaúcho, o município de Rio Grande está vivenciando desde 2003,
particularmente a partir da construção da Plataforma P53 para a Petrobras,
um momento de acelerado crescimento econômico que prossegue seu curso
atual com a construção das Plataformas P-75 e P-77 do tipo FPSO (sigla em
inglês para o tipo de Plataforma que produz, armazena e transfere petróleo
[6]), dos projetos que tem como escopo a expansão do Polo Naval e a
respectiva geração de 3 mil empregos diretos durante os trabalhos de
montagem estimados, pelos órgãos responsáveis, em um período de 35 a 37
meses para sua completa execução.
O Índice de Desenvolvimento Humano do município alcançou, em
2010, a faixa de 0,744, considerada alta segundo o PNUD (se declara alto o
IDHM entre 0,700 e 0,799). Em termos absolutos, ademais, no período
entre 2000 e 2010 foi a Educação (um dos indicadores mensurados pelo
IDH), que mais crescimento obteve (percentual de crescimento de 0,146),
seguida pelos índices de longevidade e renda, conforme se averigua na tabela
abaixo:

266
UNIDADE
GEOGRÁFICA IDHM – IDHM – IDHM –
IDHM
RIO GRANDE Renda Longevidade Educação

0,717 0,314
1991 0,527 0,651
68,02

0,804
2000 0,652 0,702 0,491
73,21

0,861
2010 0.744 0,752 0,637
76,66

Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2013/Programa das


Nações Unidas para o Desenvolvimento [7].

Não obstante, tendo em vista tanta pujança econômica e também uma


significativa melhora no IDHM, o Mapa de Pobreza e Desigualdade –
Municípios Brasileiros 2003 [8] revela um índice de incidência de pobreza de
29,12% e a respectiva persistência de tal índice (20,88%) se averigua, também,
nos dados compilados no Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil –
2013 [9].
Os números apresentados pelo Atlas de Desenvolvimento Humano no
Brasil – 2013, transcritos na tabela acima, permitem uma visão global sobre
alguns aspectos do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, no
entanto, as disparidades entre as diversas localizações (bairros) do município
atingem amplitudes muito mais significativas. Certificam esta assertiva,
alguns dados expostos na sequência e que evidenciam as especificidades de
alguns bairros do entorno do Campus Carreiros da FURG – os quais somam
aproximadamente 28.000 mil habitantes que residem em regiões de extrema

267
pobreza e vulnerabilidade – onde, ademais, as atividades de pesquisa e
extensão do NUPEDH estão mais concentradas:

RIO GRANDE/ ESCOLA POSTO DE TEMPLOS DE ÁREAS


BAIRROS SAÚDE RELIGIÕES DE
DIVERSAS LAZER
Cidade 1 1 1 0
de Águeda
Castelo Branco 2 1 4 0
Vila Maria 0 1 7 0
Profilurb 2 1 11 1
São Miguel 2 2 25 0
Dom Bosquinho 0 0 0 0
Dados obtidos com a Secretária Municipal de Saúde (SMS/Rio Grande).

Quiçá seja oportuno recordar quem, no âmbito do Direito


Internacional dos Direitos Humanos, tal como adverte Kathryn Sikkink
(1993), se "pressupõe como legítima e necessária a preocupação de atores
estatais e não estatais a respeito do modo pelo qual os habitantes de outros
Estados são tratados" (p. 413) e, portanto, que os "direitos individuais básicos
não são do domínio exclusivo do Estado, mas constituem uma legítima
preocupação da comunidade internacional" (p.441). Neste mesmo sentido,
afirma Paul Farmer (2003) que o conceito de Direitos Humanos, muitas
vezes, é brandido como uma "panaceia universal", esquecendo-se que tais
direitos têm por finalidade precípua a proteção dos seres humanos e, em
especial, dos despossuídos e mais vulneráveis, pois o "verdadeiro valor dos
principais documentos do movimento de direitos humanos se revela apenas
quando eles servem para proteger os direitos daqueles com maiores
probabilidades de terem seus direitos violados" (p. 212).

268
Assim sendo, o direito ao desenvolvimento não pode ser confundido
com o mero crescimento dos índices econômicos sem que reflita real e
efetivamente na distribuição da riqueza e justiça social, pois, como bem
manifesta Joseph Stiglitz (2003), o "desenvolvimento diz respeito à
transformação das sociedades, à melhoria das condições de vida dos pobres, à
capacitação de todos para que tenham chances de sucesso e de acesso ao
sistema de saúde e à educação" (p.252).
Se o desenvolvimento econômico é garantia de melhor nível de vida
coordenada com um efetivo equilíbrio na distribuição de renda e de qualidade
de vida mais digna, o grau de desenvolvimento é aferido, maiormente, pela
melhoria das condições materiais de que dispõe uma população para o seu
bem-estar conjugado, ademais, com as liberdades que usufrui. Tal opinião é
abalizada por Amartya Sen (1999), quando esta assevera que

Os fins e os meios do desenvolvimento requerem análise e exame


minuciosos para uma compreensão mais plena do processo de
desenvolvimento; é, sem dúvida, inadequado adotar como nosso
objetivo básico apenas a maximização da renda ou da riqueza, que
é, como observou Aristóteles ‘meramente útil e em proveito de
alguma outra coisa’. Sendo assim, o desenvolvimento deve estar
relacionado, sobretudo com a melhora da vida que levamos e das
liberdades que desfrutamos. (p.28-29, grifo do autor).

Se na esfera internacional se entende como legítima a preocupação


pelo modo como qual são tratados os indivíduos em um determinado Estado,
cabe recordar que a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento [10]
(DDD), adotada pela Revolução n. 41/128 da Assembleia Geral das Nações
Unidas (ONU), de 4 de dezembro de 1986, no seu artigo 2, estipula que:

269
1. A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e
deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao
desenvolvimento.
2. Todos os seres humanos têm responsabilidade pelo
desenvolvimento, individual e coletivamente, levando-se em conta
a necessidade de pleno respeito aos seus direitos humanos e
liberdades fundamentais, bem como seus deveres para com a
comunidade, que sozinhos podem assegurar a realização livre e
completa do ser humano, e deveriam por isso promover e proteger
uma ordem política, social e econômica apropriada para o
desenvolvimento.
3. Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas
nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem o
constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de
todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e
significativa no desenvolvimento e na distribuição equitativa dos
benefícios daí resultantes. (DDD, 1986, p.2-3) [11].

Neste mesmo plano de entendimento, a Constituição Brasileira de


1988 referencia o desenvolvimento no seu preâmbulo ao enunciar que o
Estado democrático brasileiro está comprometido, dentre outros fins [12], a
assegurar o desenvolvimento da sociedade brasileira. No título da Ordem
Econômica, positivada nos artigos 170 a 181 da Constituição, delimitam-se
os parâmetros da atuação estatal na economia, bem como os fins que devem
ser priorizados, explicitando-se que o desenvolvimento das riquezas e dos
bens de produção nacionais deve ser compatível com a qualidade de vida de
toda a população na perspectiva de compatibilizar a ordem econômica com a
ordem social.

270
No entanto, o que se observa na cidade do Rio Grande e como bem
expõe o Relatório da Missão sobre Megaprojetos de Desenvolvimento na
cidade do Rio Grande – RS (RMMDRG-RS [13]), realizado pela
Plataforma Brasileira dos Dhesca/Brasil, é um "retrocesso e negação de
direitos", pois para as comunidades afetadas pela expansão portuária não há
perspectivas de ganhos reais com o propalado desenvolvimento local, mas sim
uma realocação no espaço urbano da cidade em assentamentos "sem as
mínimas condições de habitabilidade" (RMMDRG-RS, 2012, p.12) e, por
conseguinte, a perpetuação da pobreza.
Apesar da articulação visível dos movimentos sociais, no que tange às
diversas políticas públicas, a cidade do Rio Grande conta com uma rede
pública de atendimento bastante deficitária, sobretudo, se pensada desde o
ponto de vista do aumento populacional que tem ocasionado grande impacto
social, o que enseja a necessidade de afrontar esta nova realidade.
Igualmente, um dos grandes problemas que tem assolado o município
e o Rio Grande do Sul como um todo, são as diferentes expressões de
violência contra mulheres, crianças e adolescentes (e, claro, também a outros
grupos vulneráveis) e o avanço do consumo de drogas entre a adolescência e
juventude, principalmente diante da inexistência de políticas públicas que
apresentem alternativas socioculturais saudáveis nas comunidades e nos
bairros mais carentes.
Desde o ponto de vista da equipe multi e interdisciplinar do
NUPEDH, o enfrentamento da violência em suas diversas formas de
expressão, perpassa pelo acesso a toda uma gama de políticas, bens e serviços
sociais, como, também, qualificação cidadã, ocupacional e profissional, ao
fortalecer o tecido social, ativando o vínculo entre os sujeitos e o contexto
socioambiental em que estão inseridos, propiciando-lhes o seu “empowerment”
[14].

271
Fundamentado nos conceitos de transversalidade [15] étnico-racial
[16], de gênero [17], etária e de diversidades [18] e no entendimento de que
os Direitos Humanos são universais, interdependentes, indivisíveis e
interrelacionados e que o ideal de justiça exige, simultaneamente, a
redistribuição de bens e riquezas e o reconhecimento de identidades [19], a
efetiva proteção de tais direitos requer não somente de políticas públicas
universalistas, mas também e particularmente, de políticas públicas específicas
e acrescidas do valor da diversidade encaminhadas, portanto, aos grupos
socialmente vulneráveis.
Assim sendo, as atividades do NUPEDH estão voltadas à promoção e
defesa dos direitos humanos e de cidadania, entre outros, das crianças e
adolescentes, posto que são inúmeras as pesquisas que revelam índices
elevados de exclusão, pauperização, discriminação [20] e violência a que estão
expostos estes grupos vulneráveis [21]. Tais fatores, ademais, dificultam a
permanência na escola, o acesso ao trabalho, ao emprego e aos diversos
serviços públicos e, dentre eles, a Justiça (Poder Judiciário), instituição
fundamental para a garantia efetiva dos direitos violados e/ou não cumpridos.
Neste diapasão, cabe salientar que o exercício pleno da cidadania e
suas consequências práticas exigem a incorporação por todas as envolvidas e
todos os envolvidos de noções mais amplas sobre liberdade, autonomia,
igualdade, solidariedade e respeito e no qual tanto os indivíduos pertencentes
aos grupos vulneráveis como os demais tenham a mesma importância no seu
valor humano, social e político. Em outros termos, busca-se, através das ações
desenvolvidas pela equipe do NUPEDH, o efetivo empoderamento do
público-alvo por ele atendido.

272
2- Políticas públicas infanto-juvenis

Em suas origens, o atendimento à criança e ao adolescente no Brasil


esteve associado às concepções teóricas e ações societais voltadas à caridade
das entidades religiosas e das doações materiais das chamadas pessoas de boa
vontade, assim como a ações conflituosas e impiedosas demarcadas por fases
características, a saber: a) na colonização, com a aculturação imposta às
crianças indígenas pelos jesuítas; b) no período imperial, com a segregação e a
discriminação racial na adoção dos “enjeitados” e o infanticídio disfarçado
pela Roda dos Expostos; e, c) no fim do século XIX e início do XX, pela
exploração do trabalho de crianças no mundo fabril.
Durante a República Velha (1889 a 1930), o Congresso Nacional
discutiu, em 1902, segundo Vicente Faleiros (2004), a implantação de uma
política chamada de assistência e proteção aos "menores abandonados e
delinquentes", autorizando, em 1923, a criação do Juizado de Menores e, em
1924, a criação do Conselho de Assistência e Proteção aos Menores e o
Abrigo de Menores. A participação do Estado na formulação e/ou regulação
no atendimento a crianças e adolescentes esteve marcada por uma cultura
política de assistência social de caráter meramente residual, com programas
compensatórios à menoridade carente e que se traduziu, histórica e
majoritariamente, na construção de um aparato institucional de controle dos
conflitos sociais.
Em outras palavras, a política de assistência social brasileira seguiu as
mesmas prerrogativas das políticas sociais europeias que tiveram como
primeiro modelo, segundo Castel, as PoorLaws (Leis dos Pobres) – editos da
Rainha inglesa Isabel I que se sucederam de 1531 a 1601. As PoorLaws
forjaram a base legal de criação de um exército de reserva de mão de obra

273
indispensável para a implementação do capitalismo industrial nascente e,
igualmente,

[...] na origem primeira das políticas públicas sociais adestradoras


de comportamentos sociais. Ditas Leis que tinham como pano de
fundo a obrigatoriedade de trabalho para ‘todo o homem ou
mulher são de corpo e capaz de trabalhar, que não tem terra, não
está empregado por ninguém, não pratica profissões comerciais ou
artesanais reconhecidas’ (CASTEL, 2010, p.177) constituíram, há
seu tempo, uma forma sistemática de impedir o alastramento
populacional dos assim chamados, vagabundos – aquele
contingente de indivíduos que foram deslocados do campo para as
cidades e que não dispunham de nenhuma fonte de renda capaz de
lhes garantir a subsistência. (COSTA; STOLZ, 2013, p. 7, grifos
dos autores).

A cultura da desqualificação social das pessoas pobres e miseráveis e de


leis que objetivavam coibir de forma violenta e/ou enquadrar a todas e todos,
independentemente de suas aptidões, na disciplina exigida pelo sistema
assalariado, também teve, em âmbito nacional, seus similares. Um bom
exemplo se encontra no clamor social dos proprietários rurais por educação e
repressão à vadiagem, tão bem retratado nas palavras do Congresso Agrícola
de 1878, realizado no Rio de Janeiro [22], ao afirmar que “uma sólida
educação, moral, religiosa, cívica, intelectual e profissional” faria as pessoas
habituadas à ociosidade vislumbrarem o trabalho, enquanto uma lei natural e
uma necessidade social e, precisamente por isto, a necessidade premente da

[...] criação de leis repressivas à vagabundagem, à ociosidade, que


seja imposto um regime policial severo, a que deverão estar sujeitos

274
todos os indivíduos sem arte, sem ofício; e ficai certo que correrão
esses braços inativos aos doces prazeres da colheita, para obterem
uma posição d’alguma confortabilidade (CONGRESSO
AGRÍCOLA, 1878 apud RIBEIRO JÚNIOR, 2008, p.53).

A formação de uma ideologia que difundia e preconizava a inaptidão


da trabalhadora e do trabalhador livre e, por conseguinte, de sua prole, foi um
recurso eficiente utilizado pelos detentores do poder que justificavam, desta
forma, a reprodução do modelo escravagista e de seus análogos. A origem da
intervenção do Estado, no âmbito das relações de trabalho e da proteção dos
riscos sociais, faz parte da própria construção da sociedade fundada no
trabalho assalariado, incidindo na regulamentação jurídica das relações e
condições de trabalho, dando origem, mais tarde, à legislação trabalhista.
Entre 1930 e 1980 se criaram, expandiram-se e se consolidaram um
arcabouço jurídico-institucional de mecanismos de proteção sociais, tais
como: a previdência social e a assistência; a construção de uma rede de ensino
básico e científico; a política de atenção à saúde; e a política habitacional. Tais
políticas, programas e normas legais que, a sua forma e com objetivos muitas
vezes espúrios, trataram de dar respostas às questões sociais. No século XX, os
três momentos mais significativos de transformação institucional e de cultura
de criação de instrumentos legais estiveram associados às três profundas
alterações estruturais que envolveram o Estado brasileiro. Exemplos de tais
modificações são: o Estado Novo, caracterizado pelo autoritarismo populista
de Getúlio Vargas (1930 a 1945); a ditadura militar e o retrocesso dos direitos
políticos e civis (1964 a 1985); e, por fim, o período de redemocratização, a
partir de 1985, que culminou com a promulgação da Constituição Federal de
1988 e o respectivo reconhecimento dos direitos constitutivos de cidadania
para todas brasileiras e todos brasileiros.

275
Conforme Couto (2004), no período de 1930, quando Getúlio Vargas
assume o poder, é que se intensificou no Brasil o alargamento das relações
capitalistas que foram paulatinamente alterando as bases do Estado
oligárquico e patrimonial vigente até então. Um novo cenário foi sendo
desenhado no país com a instauração de um crescente processo de
industrialização, urbanização e mudanças nos órgãos governamentais e na
esfera política, os quais acabaram caracterizando o governo de Vargas como
sendo um Estado Nacionalista que passou a intervir e a reformular as relações
econômicas de mercado, dando forma, ademais, aos chamados direitos sociais
dos trabalhadores. Para Santos (1979), o conceito chave para compreender a
política estabelecida neste período é o de cidadania regulada – aquela
estabelecida por um conjunto de leis que criou o sistema de estratificação
ocupacional e no qual se considerava cidadão somente aquelas pessoas que
ocupam profissões reconhecidas e definidas legalmente.
O direito a ser cidadão estava vinculado ao lugar que o indivíduo
ocupava no processo produtivo. Ademais, conseguintemente, o não exercício
de uma atividade produtiva, legalmente reconhecida, acabava por encaminhar
uma parte significativa da população à categoria de não cidadão, ou de pré-
cidadão (incluídos aqui todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores da
área rural e urbana que, apesar de serem ativos no processo produtivo, não
tinham suas ocupações regulamentadas por lei), terreno fértil para a
marginalização social. Uma relação paterna em que o poder público definia
tanto o que era ser cidadão quanto o que era ser marginal estava na essência
do conceito de cidadania regulada.
No que concerne à implantação de uma política de assistência e
proteção aos menores a Constituição de 1934 em seu artigo 138 estabelece
que:

276
[...] incube a união, Estados e Municípios, assegurar amparo aos
desvalidos, criando serviços especializados aos desvalidos, criando
serviços especializados e animando os serviços sociais, cuja
orientação procurará coordenar; estimular a educação eugênica;
amparar a maternidade e a infância; socorrer as famílias de prole
numerosa; proteger a juventude contra roda exploração, bem como
contra o abandono físico, moral e intelectual; adotar medidas
legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade,
as morbidades infantis e de higiene social que impeçam a
propagação das doenças transmissíveis; cuidar da higiene mental e
incentivar a luta contra os venenos sociais. (BRASIL, 1934).

Neste contexto, em 1942, foi criado o Serviço de Assistência ao


Menor (SAM), órgão do Ministério da Justiça que funcionava como um
equivalente do Sistema Penitenciário destinado à orientação correcional-
repressiva da população menor de idade, carente, abandonada e/ou autora de
atos infracionais, tal qual previa o Código de Menores de 1927 [23] (Decreto
n. 17.943 A – de 12 de outubro de 1927) ao enunciar que "O menor, de um ou
outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será
submettido pela autoridade competente ás medidas de assistencia e protecção
contidas neste Codigo.".
O tratamento empregado às políticas públicas de atenção infanto-
juvenil esteve pautado pelo binômio criança e adolescente para membros das
famílias burguesas e menores para os pobres e/ou órfãos tutelados pelas
instituições totalitárias que, em suas cartilhas de medidas corretivas,
costumavam reprimir os comportamentos desviantes com confinamentos e
castigos físicos. Entre as entidades federais de atenção assistencialista à
criança e ao adolescente, adquiriu relevo a Legião Brasileira de Assistência
(LBA) criada pela esposa de Getúlio Vargas, Darcy Vargas, e, também,

277
alguns programas assistenciais [24], como, por exemplo, a Casa do Pequeno
Jornaleiro que se dedicava a amparar os jovens de baixa renda com ações
socioeducativas.
O Regime Militar, instaurado a partir do Golpe de Estado de 1964,
extingue o SAM e cria a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor) que, em conjunto com a Legião Brasileira de Assistência, foram
responsáveis pelo tratamento deferido ao menor de conduta antissocial,
conforme a doutrina da “situação irregular” ratificada no Código de Menores
de 1979, promulgado em 10 de outubro, precisamente no Ano Internacional
da Criança. A hegemonia e legitimidade destes órgãos institucionais será,
durante a década de 80, questionada pelos movimentos sociais pró-
democracia e a posterior transição ao regime democrático acabará
proporcionando a continuidade da luta pela extensão dos direitos de
cidadania ao segmento infanto-juvenil.
Os pressupostos que acabaram formando parte das bases das políticas
públicas sociais brasileiras destinadas à população infanto-juvenil mudaram
de forma significativa nas últimas décadas –particularmente a partir da década
de 90 – tanto no que concerne ao enfoque como às ações promovidas.
Parte desta nova perspectiva se deve, em âmbito interno, à
promulgação da Constituição Federal de 1988 e ao respectivo
estabelecimento do Estado de Direito Democrático, mas, principalmente, à
elaboração e publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.
8.069, de 13 de julho de 1990), fruto da mobilização de diferentes setores da
sociedade [25] e que deu origem, posteriormente, ao Fórum Nacional de
Entidades Não governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Fórum DCA).
Desde o ponto de vista jurídico, a Lei n. 8.069/1990 propõe, tomando
como base preceitos de garantia de direitos preconizados pela Convenção

278
Internacional dos Direitos da Criança (Organização das Nações Unidas,
1989) e da qual o Brasil é signatário [26], novos paradigmas de atenção à
infância e adolescência, estipulando normas que visam sua proteção e seu
desenvolvimento integral, conclamando, para tal fim, o envolvimento da
família, da sociedade e do Estado a proverem ações acordes com seus
objetivos precípuos e sem qualquer tipo de distinção ou discriminação.
Dentro desta perspectiva de ruptura com o velho paradigma
proveniente da doutrina da situação irregular dos “menores”, repudiam-se as
práticas centralistas, unilaterais, assistencialistas, estigmatizadoras e
segregadoras que sustentaram, por muitas décadas, a divisão entre “crianças e
adolescentes” e “menores” – aqueles em situação de abandono e/ou em
conflito com a lei.
Procurou-se, com o advento da doutrina da proteção integral, além de
redefinir os grupos de “crianças e adolescentes” sobre os quais as políticas
públicas e ações sociais devem incidir [27], reconstruir o significado de tais
grupos, passando a considerá-los sujeitos de direito se enfatizando, por
conseguinte, seus superiores interesses e sua inclusão prioritária em uma nova
política de atendimento em rede e com práticas descentralizadoras.
Na ruptura com a centralização do atendimento e no respectivo
comprometimento familiar e comunitário, bem como da sociedade civil e do
Estado na proteção integral à criança e ao adolescente, em efeito, na mudança
de paradigmas jurídicos [28], jurisdicionais, políticos, sociais, psicológicos e
pedagógicos com destaque para as possibilidades operacionais de proteção
pela rede de garantia de direitos é que se fundamenta também a construção de
um novo paradigma de organização político-institucional, no qual o
município é reafirmado como o locus privilegiado de participação política e
exercício da cidadania no que se refere à priorização de metas, aplicação de
recursos e fiscalização dos projetos, programas e serviços públicos.

279
A municipalização das políticas sociais básicas de educação, saúde,
habitação, transporte e saneamento e a respectiva descentralização político-
administrativa de recursos para o gerenciamento das políticas sociais no
âmbito municipal é crucial. Não obstante, não se pode fechar os olhos para o
fato de que dita política descentralizadora segue permeada por um cenário no
qual as diversas forças políticas, que não se reduzem somente aos agentes e as
esferas institucionais do poder público, mas também para as disputas de
interesses de grupos locais, constituem um desafio constante para aqueles que
lutam pela efetivação dos direitos sociais em uma sociedade pautada pela
desigualdade e pelo clientelismo político.
No que se refere à política municipal de atendimento ao segmento
infanto-juvenil, o orçamento municipal deve abarcar o “pleno” atendimento
às políticas sociais básicas, políticas e programas de assistência social em
caráter supletivo e serviços especiais de prevenção e atendimento médico e
psicossocial às vítimas de violação de direitos.
As políticas de atendimento devem primar pela universalização da
oferta dos serviços públicos, e os programas específicos, como os programas
de proteção (apoio sócio-familiar) e as medidas socioeducativas (liberdade
assistida, semiliberdade e internação), devem assegurar a promoção da
autonomia e reintegração social do indivíduo em desenvolvimento, sujeito de
direitos que pertence a um segmento especial por estar em um processo de
formação social, moral, cultural e histórica. A garantia do cumprimento das
normativas do ECA, em âmbito municipal, deve se dar pela ação efetiva do
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente que, dentro
da dinâmica da maior participação popular para a elaboração de políticas e
fiscalização dos recursos públicos, tem condições de aplicar, com maior
eficiência e qualidade, os recursos orçamentários e as verbas do Fundo
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (FUMCAD).

280
3- Vulnerabilidade social e violência

Pode-se arguir que internacional e nacionalmente se presencia, nas


últimas décadas, uma dilatação acerca da concepção do que consiste a
violência, pois, como é notório, as violências intrafamiliares contra a mulher,
a criança, o adolescente e o idoso, por exemplo, deixaram de ser práticas
costumeiras de regulamentação das relações sociais e, como tal, pertencentes à
esfera do estritamente privado, para adquirirem a configuração de fatos
públicos merecedores de sanção social. Ainda que existam dificuldades para
conceituar o que se denomina como violência, alguns elementos consensuais
sobre o tema podem ser enumerados: a noção de coerção ou força; o dano que
causa a um indivíduo ou a um grupo de indivíduos pertencentes à
determinada classe ou categoria social, gênero e etnia.
Com apoio nesses elementos, tomar-se-á como base teórica de partida
o conceito oferecido por Yves Michaud (1989), o qual diz que:

há violência quando, em uma situação de interação, um ou vários


atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa,
causando danos a uma ou a mais pessoas em graus variáveis, seja
em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas
posses, ou em suas participações simbólicas e culturais. (p.10-11).

O Mapa da Violência 2012 – estudo divulgado pelo Centro Brasileiro


de Estudos Latino-Americanos (Cebela) [29] – e a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE) corroboram em afirmar que, com o
advento, em 2006, da Lei Maria da Penha, houve um decréscimo, no seu
primeiro ano de aplicação, nas taxas de homicídio de mulheres. Porém, nos
anos seguintes, estas mesmas taxas indicam, além de um acréscimo

281
significativo de casos, o fato de que as políticas atuais necessitam de constante
monitoramento para a efetiva mudança no quadro de violação dos direitos das
mulheres.
Os relatórios referentes a tais pesquisas também apontam a
persistência da vulnerabilidade da mulher no âmbito de suas relações
domésticas, afetivas e familiares, visto que ,em quase metade dos casos
registrados, o perpetrador de atos de violência é o parceiro, ex parceiro ou
algum parente da mulher. Recomenda-se também a criação de mais varas ou
juizados especiais e direcionados a tratar e atender de forma adequada a
violência contra a mulher, especialmente em cidades do interior, as quais
possuem grande concentração populacional.
Observam os relatórios que a pior relação entre população feminina e
o quantitativo de varas ou juizados exclusivos se encontra nos estados do Rio
Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais, Bahia e Santa Catarina. Dados estes
que acabam tendo eco nos relatórios apresentados pela Delegacia da Mulher da
Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul/RS, que divulgou o registro de 12,8
mil casos em todo o ano de 2012 e de mais de 8 mil casos de violência contra a
mulher nos primeiros sete meses de 2013.
A violência contra a mulher possui algumas peculiaridades que a
distinguem da violência em geral, posto que é assinalada pelo gênero
(SCOTT, 1995), ou seja, pelo fato da vítima “ser mulher”. Entre os registros
de violência contra a mulher, os dados estatísticos do Sistema de Consultas
Integradas (SCI) da Secretaria de Segurança Pública/RS apontam que, entre
2006 e 2010, os homicídios vitimaram 1.173 mulheres no Rio Grande do Sul.
A cidade do Rio Grande ocupou, nessa relação, a 11ª posição no Estado em
criminalidade, e o 4º lugar entre as cidades gaúchas não pertencentes à região
metropolitana [30].

282
A violência intrafamiliar contra a mulher, a criança, o adolescente, o
idoso, nas suas quatro grandes vertentes: negligência, violência psicológica,
física e sexual, é, com certeza, a mais difícil de combater, seja por ser
reforçada pelas chamadas violência estrutural e urbana seja porque, apesar de
intensa, costuma ser invisibilizada. Ainda que haja o incontestável aumento
das denúncias interpostas, este tipo de violência continua sendo
subnotificada, pois é certo que existem mais casos factuais concretos do que
aqueles que chegam ao conhecimento dos órgãos responsáveis.
O silêncio das vítimas costuma ser motivado por muitos fatores
socioeconômicos e, também, por circunstâncias emocionais e educativas, os
quais perpassam pelo desconhecimento de que aquela era uma situação
inadequada (BRAUN, 2002; OSHIKATA; BEDONE; FAÚNDES, 2005),
como: o sentimento de culpa, a ansiedade com relação às possíveis
consequências da revelação, o medo em relação ao agressor, o receio de não
escutado ou compreendido e o temor quanto aos efeitos sobre a família ou
sobre a pessoa do agressor. Em se tratando de violência sexual, todos esses
fatores são acrescidos da vergonha da vítima em denunciar o ocorrido e/ou
também o medo de perder o emprego e de não ser aceita socialmente
(SOUZA; ADESSE, 2005).
Nesse sentido, convém recordar Rúben Katzman (2005), quando
alerta que os lugares vulneráveis são aqueles que apresentam riscos de diversos
tipos e matizes aos indivíduos, os quais podem estar na falta ou na não
condição de acesso a bens materiais e de serviço que possam suprir aquilo que
pode tornar tais indivíduos vulneráveis (AYRES, 1999). Dessa forma, a falta
de acesso à água potável, a ausência de saneamento básico, o analfabetismo ou
baixo grau de instrução escolar, o desemprego, o subemprego, entre tantos
outros fatores que poderiam ser mencionados, somados a não participação em

283
canais deliberativos das políticas públicas, tornam os sujeitos afetados por
estes contextos e alvos da vulnerabilidade social.
No caso da população infanto-juvenil, Malvasi (2008) afirma que a
vulnerabilidade, como envolvimento com drogas, situações de violência
(doméstica e comunitária), situação de rua, exploração sexual, trabalho
infantil, dentre outros aspectos, está associada aos fatores precedentes e,
especialmente, à carência e/ou à deficiência de garantia dos direitos e das
oportunidades nas áreas de educação, saúde e proteção social. Mesmo que o
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), em seu art. 4º, e a
Constituição Federal, em seu art. 227, preceituem que é dever da família, da
comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar à infância e
à juventude, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, bem como colocá-los a salvo de toda e
qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão, muito precisa ser feito.
Sendo assim, como é sabido, a exposição de crianças e jovens à
violência, não só como vítimas, mas também no papel de observadores ou
testemunhas, seja de certas cenas veiculadas pelos meios de comunicação
social de massa (Massmedia) seja por presenciar diretamente atos, como
assaltos, assassinatos ou brigas violentas no âmbito familiar, acabam
provocando, além de sintomas típicos da síndrome de estresse pós-
traumático, prejuízos de ordem emocional, afetiva, psicológica e
comportamental, como o mau rendimento escolar e um quadro de profunda
agressividade.

284
4- Redes sociais de apoio ao desenvolvimento integral das crianças e dos
adolescentes

A preocupação com o crescente aumento – no decorrer dos anos 80 –


de meninas e meninos moradores de rua conduziu à criação de inúmeras
organizações não governamentais com o propósito de intervir nessa realidade.
Dentre essas organizações, encontra-se o Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua, uma rede nacional dedicada à advocacia e também ao
treinamento dos chamados educadores de rua.
Além das ações do Movimento, um grande número de projetos
governamentais e não governamentais veio ao encontro das meninas e dos
meninos moradores de rua, procurando atender as suas necessidades,
denunciando as situações de descaso e violência das quais eram e continuam
sendo vítimas. Um dos ensinamentos mais importantes adquiridos com a
concretização dos programas a eles destinados foi a ênfase dada à capacidade
das crianças e dos adolescentes de serem agentes de seu próprio
desenvolvimento e, portanto, de mudanças nas próprias vidas (MYERS,
1988).
Outra importante contribuição de tais programas foi o
desenvolvimento de uma metodologia de trabalho flexível e criativa no trato
com este grupo social, a qual se revelou particularmente respeitosa com suas
especificidades (CASTRO, 1997). Não obstante, constatou-se a necessidade
de ampliar o campo de ações para atuar também com as crianças e os
adolescentes que ainda não estão vivendo ou trabalhando nas ruas, mas que,
possivelmente, serão levados a fazê-lo.
Portanto, algumas questões que as políticas públicas e os programas
sociais passaram a se dedicar, tanto com recursos quanto através de ações
próprias, foram a prevenção de problemas e a promoção de suporte, visando

285
ao desenvolvimento integral de todas/os crianças e jovens, enquanto, todavia,
ligadas as suas famílias, escolas e comunidades. Ao tomar como base a
geração de condições mais adequadas ao desenvolvimento integral de todas/os
crianças e jovens, a equipe do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos
Humanos (NUPEDH), em conjunto com o Centro de Atenção Integral à
Criança e ao Adolescente (CAIC/FURG), adotou em suas intervenções
concretas a perspectiva de ouvir os pais e/ou demais responsáveis e também os
próprios afetados na identificação de suas necessidades, assim como na
possível solução das mesmas.
Nesse sentido, priorizou-se o entendimento de que qualquer pessoa,
independente de seu nível educacional, econômico e etário, é capaz de dizer o
que gostaria para si própria, para suas filhas e seus filhos, para os que se
encontram sobre sua guarda e responsabilidade, e de chegar, portanto, a um
consenso, junto com a família e a comunidade – escolar e de moradia –, do
que seria mais importante focalizar e fazer. Ações interventivas de redes de
proteção social são fundamentais e legítimas ferramentas de enfrentamento
das situações de vulnerabilidade e inexistência de oportunidades igualitárias
de acesso a bens e serviços.
A equipe do NUPEDH se deparou, em seu cotidiano de trabalho,
com diversas expressões da marginalização e exclusão social. No que concerne
às demandas do público com o qual se atua, a equipe do NUPEDH se
deparou com relações interpessoais e familiares conflituosas e violentas;
dificuldades de aprendizagem; transtorno de déficit de atenção e/ou
hiperatividade; comportamento agressivo da criança/adolescente tanto na
escola quanto na família; dependência química no contexto familiar – seguida
de suspeita de violência doméstica e/ou psicológica; histórico de negligência e
abandono familiar; abuso sexual; bullying; casos de transtorno alimentar; casos
de transtorno de conduta; riscos e/ou ideias suicidas [31]. Nesse contexto,

286
intervém-se na defesa do direito humano à singularidade e na tarefa de
mostrar aos afetados novas possibilidades de atuação, de forma a romper com
sistemas e paradigmas existentes.
Nessa perspectiva, a atuação interdisciplinar possibilita o apoio e o
desenvolvimento de habilidades, tanto para a criança e o adolescente quanto
para a família, que podem lidar com o seu adoecimento e buscar uma melhor
qualidade de vida. Os atendimentos psicossociais (e também jurídicos)
realizados buscam propiciar a construção de espaços viabilizadores de
acolhimento e a construção dos vínculos, contribuindo para a reflexão e a
problematização de práticas que se propõem coletivas. Tal atuação investe no
fortalecimento das relações locais, propondo-se a reconhecer e legitimar a
diversidade nesses espaços de encontro, de modo a resgatar,
consequentemente, a cidadania dos atores sociais envolvidos.
É importante ressaltar ainda que o desenvolvimento das diversas ações
que o NUPEDH vem realizando se materializa em função das importantes
parcerias com outros centros e núcleos que formam, no âmbito da FURG, a
rede de apoio à comunidade [32], e também de outras instituições locais.
Essas parcerias aprofundam os diferentes olhares e potencializam a busca de
novas estratégias que proporcionem o exercício efetivo da cidadania, pois se
acredita que a construção das novas cidadanias começa por aquilo que se tem
no presente e que se projeta também em ideias e ações para o futuro
(IBERNÓN, 2006).

Considerações finais

Em 2011, realizou-se no entorno do Campus Carreiros da FURG uma


pesquisa qualitativa e quantitativa coordenada pelo Centro de Atenção
Integral à Criança e ao Adolescente (CAIC/FURG), da qual a equipe do

287
NUPEDH fez parte. Dita pesquisa objetivava identificar e conhecer as
demandas da população e, para tal, abarcou um detalhamento contextual das
comunidades, suas características, problemas socioeconômicos, situações de
renda, subemprego e desemprego, déficit habitacional, estratégias de
sobrevivência e degradação ambiental. Em outras palavras, enumerou
exaustivamente as diversas precariedades a que estão submersas e expostas às
referidas comunidades.
Fatores de riscos sociais para crianças, adolescentes e demais
moradores também foram dados relevantes constatados pela pesquisa, na qual
se registraram, ademais, inúmeros relatos de ameaças, agressões físicas,
violações sexuais e mortes violentas, o que corrobora para o elevado risco
social a que estão expostas as pessoas que vivem nessas comunidades. Quanto
às ameaças à vida, o bairro São Miguel, por exemplo, obteve os registros mais
preocupantes, já que 93% das moradoras e moradores se sentem ameaçados.
Com relação às mortes violentas na comunidade, destaca-se o bairro Castelo
Branco, com 16% dos casos ocorridos.
No que concerne à violência intrafamiliar e, em particular, a exercida
contra crianças e adolescentes, esta é identificada com frequência e constância
nos casos atendidos. Em face da gravidade dos casos, está se implementando
um trabalho de prevenção, detecção e minimização deste tipo de violência
através de oficinas temáticas e itinerantes com crianças, adolescentes e suas
famílias [33].
Embora as comunidades em situação de risco façam parte de um
grupo com muitas necessidades, dadas as suas precárias condições de vida,
estas acabam sendo, contraditoriamente, as que mais têm dificuldade em
aceder aos serviços públicos existentes em seus bairros de origem e/ou no
município, o que tende a agravar a situação de risco em que se encontram.
Neste âmbito, as ações desenvolvidas pelo NUPEDH estão focadas em

288
facilitar o acesso a uma série de serviços prestados pela Universidade ou outras
instituições públicas ou privadas, fortalecendo, nesse aspecto, a noção de rede
social de proteção.
Em síntese, a integração das ações desenvolvidas com vistas ao
atendimento às necessidades emergenciais capazes de possibilitar os mais
variados tipos de atendimentos, indispensáveis ao pleno desenvolvimento da
população, tem como escopo a ampliação e garantia dos direitos individuais e
do exercício pleno da cidadania. Isto porque se acredita que assegurar o
direito à efetiva participação dos grupos sociais no que tange às políticas que
diretamente lhes afetem é um requisito imprescindível para o sucesso da
política em si mesma.
Não obstante, adverte-se que a existência de um dilatado espaço entre
as situações de integração e exclusão sociais não pode ser sanada por melhor
que sejam as intenções daqueles que lutam pela efetivação dos Direitos
Humanos dos grupos vulneráveis, com as ações que até agora foram
realizadas. Não está se advogando aqui pela sua irrelevância, mas,
simplesmente, lançando o seguinte questionamento: como evitar, de maneira
eficaz, aquelas situações em que se infringem e/ou não se efetivam os Direitos
Humanos e fundamentais de forma massiva? Uma primeira resposta pode ser
dada, seguindo a Thomas Pogge (2002), quando afirma que:

Assim como o governo pode, portanto, ser o guardião primeiro


dos direitos humanos e a medida de referência da falta de respeito
oficial, o povo é o último guardião sobre quem sua atuação
depende de maneira crucial. O respeito duradouro aos direitos
humanos é, portanto, sustentado não somente pela constituição de
um país, por seu sistema político e jurídico, mas pela atitude de
seus políticos, juízes e policiais. É sustentado, de maneira mais
profunda, pelas atitudes das pessoas, tal como resultaram

289
conformadas pelo sistema educativo e a distribuição econômica
(p.63).

Portanto, uma aproximação plausível à ideia de obrigação jurídico-


política deve tomar em consideração o atendimento ao bem comum dos
membros da comunidade política e, em alguma interpretação de tal bem, faz-
se necessário, se é que as exigências impostas pelas instituições estatais
pretendem ter um status de genuínas obrigações e não de meras imposições
forçosas ou de exercício espúrio do poder, que se respeitem, salvaguardem e
fomentem tais bens. Tal qual mencionado na primeira seção deste paper, o
estudo realizado pela Plataforma Brasileira dos Dhesca/Brasil revelou que o
propalado desenvolvimento da cidade do Rio Grande, através do inestimável
investimento governamental dedicado à expansão portuária, não tem gerado a
indispensável justiça distributiva.
Em outros termos, a população rio-grandina mais necessitada, carente
e vulnerável, não foi, e tão pouco será, participante ativa e beneficiária do
direito ao desenvolvimento. Convém trazer à colação as palavras de Axel
Honneth (2009), quando leciona que as privações de direitos que advém da
exclusão social não representam somente a limitação violenta da autonomia
pessoal, mas também sua associação com o sentimento de não possuir o status
de um parceiro da comunidade política com igual valor e moralmente em pé
de igualdade.
A denegação de pretensões jurídicas – como as existentes nas privações
de direitos, na pobreza (e, em particular nos casos de pobreza extrema) e/ou
nas exclusões sociais [34], visíveis nas comunidades do entorno da FURG –
corresponde à negação da dignidade humana em seu caráter
multidimensional, ou seja, não somente no que se convencionou denominar
de concepção ontológica da dignidade – aquela que afirma a dignidade como

290
uma qualidade inerente ao ser humano [35] –, mas também no que se refere
ao seu âmbito intersubjetivo e político [36]. A dimensão intersubjetiva
implica, além do valor intrínseco da pessoa, o conjunto de deveres e direitos
correlativos, indispensáveis ao florescimento humano. Perspectiva
multidimensional da dignidade humana que é também objeto de expressa
previsão Constitucional no artigo 1º, inciso III da CF/1988, e que não passa
de um sonho idílico para milhões de brasileiras e brasileiros.

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297
Notas de fim

[1] No que concerne à transversalidade racial somada ao gênero, um


arquétipo paradigmático do que se está aqui afirmando pode ser encontrado
nos dados apresentados pelo Boletim Dieese 2003, o qual revelou um quadro
dramático que não está apenas situado nas precárias condições
socioeconômicas em que vivem, mas, sobretudo, na negação cotidiana de ser
mulher negra, através do racismo e do sexismo que permeiam todas as esferas
de sua vida. As mulheres negras estão expostas à violência, à pobreza, às
distintas formas de discriminação no mercado de trabalho e à precariedade
dos serviços de saúde e educacionais, o que resulta em uma precarização geral
da vida. Apoia esta constatação, o fato de que a esperança de vida para as
mulheres brancas é de 71 anos, enquanto 40,7% das mulheres negras morrem
antes dos 50 anos. Associa-se a essas condições desigualmente precárias, um
sentimento de inferioridade, de baixa autoestima e de semiescravidão
vivenciado por muitas.

[2] Os dados que trabalham a transversalidade etária demonstram que a


pobreza no Brasil tem cara de crianças e jovens. Dos mais de 50 milhões de
brasileiras e brasileiras que vivem na pobreza, quase 30 milhões são crianças e
adolescentes, ou seja, 47,6% da população de meninas e meninos.

[3] Entende-se por grupos vulneráveis aqueles grupos sociais que estão em
relação de desigualdade com o restante da comunidade política. Sendo assim,
o respeito à dignidade humana exige não somente a proteção dos indivíduos
que pertencem a ditos grupos, mas também a superação das desigualdades
sofridas por estes através da criação e implantação de medidas gerais e de
natureza transitória de não discriminação e de discriminação positiva.

298
[4] Veja-se Elson e Cagatay (2003) e, também, o Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (2013).

[5] IBGE. Censo de 2010. Disponível em:


<http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=431560&search
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003>.

[6] O mesmo tipo das plataformas que anteriormente foram construídas na


cidade do Rio Grande e já finalizadas, a saber: as P-53, P-58 e P-63.

[7] PNUD. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2013/Programa


das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Disponível em:
<http://www.pnud.org.br/IDH/Atlas2013.aspx?indiceAccordion=1&li=li_At
las2013.AtlasIDHM2013_Perfil_Rio-Grande_rs.pdf>. Acesso em: 10
nov.2013. p.2.

[8] IBGE. Mapa de Pobreza e Desigualdade - Municípios Brasileiros. 2003.


Disponível em: <http://goo.gl/06ALUq>. Acesso em: 12 nov. 2013.

[9] Dito Atlas é uma plataforma de consulta ao Índice de Desenvolvimento


Humano Municipal – IDHM – de 5.565 municípios brasileiros, o qual
recopila mais de 180 indicadores de população, educação, habitação, saúde,
trabalho, renda e vulnerabilidade, com dados extraídos dos Censos
Demográficos de 1991, 2000 e 2010. PNUD. Atlas do Desenvolvimento
Humano no Brasil 2013/Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/IDH/Atlas

299
2013.aspx?indiceAccordion=1&li=li_Atlas2013.AtlasIDHM2013_Perfil_Rio
-Grande_rs.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2013.

[10] Antes da aprovação da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento,


a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDHNU) proclamou
em 1977 e por vez primeira, a existência do direito ao desenvolvimento na
Resolução 4, XXXIII. Dois anos depois, a CDHNU confirmou, por meio da
Resolução n. 5, XXXV, de 02 de março de 1979, a existência desse direito
concomitante ao direito à igualdade de oportunidade como uma prerrogativa
tanto das nações quanto dos indivíduos. Entretanto, o conteúdo do direito ao
desenvolvimento ainda era vago, impedindo que a CDHNU conseguisse
atingir um acordo unânime entre os Estados nacionais. Foi somente em 1981
que a CDHNU estabeleceu um grupo de trabalho de experts governamentais
sobre o direito ao desenvolvimento que, após inúmeros estudos e debates
propôs a Resolução 37/199/18/1982, na qual a Assembleia Geral estatuiu,
definitivamente, o direito ao desenvolvimento como um direito humano
inalienável.

[11] DECLARAÇÃO sobre o direito ao desenvolvimento, 1986. Disponível


em:<http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacaoeconteudosdeapoio/legislacao/direitos
humanos/decl_direito_ao_desenvolvimento.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2013.

[12] Para Eros Roberto Grau (2001), os princípios dispostos na Constituição


de 1988 são: "a) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; b)
liberdade de associação profissional ou sindical – (art. 8) – e garantia do
direito de greve – (art. 9); c) a integração do mercado interno ao patrimônio
nacional – (art. 219); d) desenvolvimento nacional – (art. 3); e) sujeição da
ordem econômica aos ditames da justiça social – (art. 170, caput); f)

300
dignidade da pessoa humana – como fundamento da República (art. 1°, III) e
da ordem econômica (art. 170, caput); g) valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa – fundamento da República (art. 1°, IV) e da ordem econômica (art.
170, caput); h) erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das
desigualdades sociais e regionais – objetivos fundamentais (art. 3º, III) – a
redução das desigualdades – princípio da ordem econômica (art. 170, VII); i)
princípios dos incisos do artigo 170: soberana nacional, propriedade e sua
função social, livre concorrência, defesa do consumidor e do meio ambiente
(sustentabilidade), redução de desigualdade regionais e sociais
(desenvolvimento equilibrado), busca de pleno emprego e tratamento
favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte;
j) intervenção nos limites da lei – (art. 174). Vislumbram-se aqui dois papéis
do Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, com
três funções que efetivam estes papéis: fiscalização, incentivo e planejamento"
(GRAU, 2001, p.65).

[13] PLATAFORMA Dhesca Brasil.Relatório da Missão sobre


Megaprojetos de Desenvolvimento na cidade do Rio Grande – RS. 2012.
Disponível em: <http://www.dhescbrasil.org.br/attachments/831_cidade_
missao_rio_grande_2012.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2013.

[14] Segundo Sheila Stolz (2012), “O termo foi traduzido para o português
como empoderamento. Chama a atenção nesse termo o radical “Power”de
poder que, desde a Ciência Política, costuma ser vinculado ao Estado –
instituição que muitas vezes se constitui em fonte de opressão, autoritarismo,
abuso e dominação. Não obstante, no que aqui concerne, o termo empoderar
é utilizado para definir o resultado do processo de repasse de informações,
ferramentas e outros recursos para que a sociedade tenha acesso ao poder

301
(amplu sensu), seja ele político, econômico, social ou cultural. Dessa forma,
pode-se arguir que o conceito de empoderamento vai além da simples
participação social, pois pressupõe: 1) uma participação crítica, informada e
ativa que não pode ser confundida com a simples ‘presença’ do indivíduo ao
longo dos processos de decisão; 2) a inclusão da possibilidade de que o sujeito
compreenda a realidade do seu meio social, político, econômico, ecológico e
cultural, refletindo sobre os fatores que lhe dão forma, bem como a tomada
de iniciativas no sentido de que, tanto individual como coletivamente, possa
efetivamente melhorar dita realidade. Esse é um conceito sistêmico que
reconhece que a tomada de decisões e controle por parte daqueles que antes
não possuíam qualquer tipo de poder constitui-se, definitivamente, em uma
necessária alteração e inclusive transformação do próprio sistema. Na
proposta em tela, o termo empoderamento, constitui-se em uma forma de
resistência, de luta, em uma fonte de emancipação” (p.505-506, grifos do
autor).

[15] Cabe enfatizar que a noção de transversalidade decorre da complexidade


de que se revestem os temas transversais, fazendo com que nenhuma área
particular de conhecimento sobre um aspecto da singularidade humana, social
ou da natureza seja capaz de abarcar dita realidade por inteiro. A questão
ambiental, por exemplo, não se esgota no conhecimento da geografia ou das
ciências naturais, posto que requer de outros conhecimentos. Neste sentido, a
inclusão de temas transversais tanto nos processos de formação educativo-
profissional como em políticas públicas requer um planejamento sistemático e
permanente ao longo de toda a escolaridade como também ao longo da
formação cultural de uma sociedade.
[16] A noção de Joaquim Nabuco de que a escravidão e a respectiva abolição
da escravatura marcariam, por longo tempo, a sociedade brasileira, posto que

302
não foram seguidas de medidas socioculturais complementares em benefício
das negras e dos negros libertos, acabaram fazendo perdurar uma questão
essencial acerca dos direitos humanos: a prevalência de uma concepção de que
certos humanos (índias e índios, negras e negros) são mais ou menos
humanos do que outros e, por conseguinte, a respectiva banalização no
imaginário social de que a desigualdade de direitos é algo natural.
Indubitavelmente e tal como demonstra o estudo realizado por Nadya Castro
Araújo, o pensamento social brasileiro tem longa tradição no estudo da
problemática étnico-racial. Não obstante, serve mais bem como uma
postergação do reconhecimento da persistência de práticas discriminatórias
do que como fundamento de práticas emancipatórias. A noção de
transversalidade étnico-racial pretende ser um antídoto contra esta velha
sistemática de minimização, de não reconhecimento e/ou de invisibilização da
intersecção de etnia-raça que tanto dificulta a erradicação das desigualdades
étnico-raciais nas políticas públicas e a concretização dos direitos humanos e
da justiça social para uma imensa parcela da cidadania, requisitos essenciais
para a consolidação da democracia formal e substancial brasileira.

[17] O conceito de transversalidade de gênero é tido, aqui, como sinônimo


de gendermainstreaming. Tal conceito se origina a partir dos movimentos
feministas, aparecendo, pela primeira vez, nos textos internacionais
resultantes das medidas adotadas na Conferência Mundial de Mulheres
celebrada em Nairóbi em 1985. A noção de transversalidade de gênero se
encontra especialmente refletida nos debates e nos relatórios levados a termo
pela Comissão das Nações Unidas sobre a Condição da Mulher
(Commissiononthe Status of Women, criada em 21 de junho de 1946). A dita
noção exibe a importância de integrar os valores das mulheres nas políticas

303
públicas, nos planos e nos programas de Governo e Estado desde sua criação,
implementação e avaliação dos resultados.

[18] A transversalidade de diversidades, seguindo a noção de


transversalidade de gênero, pretende demonstrar a relevância de integrar os
valores das distintas orientações afetivas e sexuais dos indivíduos (termo que
faz referência à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração
emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo
gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais
com essas pessoas) e sua posta em marcha em políticas públicas, planos e
programas de Governo e Estado desde sua criação, implementação e avaliação
dos resultados.

[19] Ideia fundamentada no pensamento de Nancy Fraser.

[20] Em sentido amplo, o termo discriminação é utilizado para mencionar


qualquer tipo de distinção, exclusão, restrição ouviolação dos direitos
humanos de uma pessoa e que impede, outrossim, que a comunidade política
alcance a justiça social.

[21] Entende-se por grupos vulneráveis aqueles grupos sociais que estão em
relação de desigualdade com o restante da comunidade política. Sendo assim,
o respeito à dignidade humana exige não somente a proteção dos indivíduos
que pertencem a ditos grupos, mas também a superação das desigualdades
sofridas por estes através da criação e implantação de medidas gerais e de
natureza transitória de não discriminação e de discriminação positiva.

304
[22] O Congresso Agrícola de 1878 foi realizado entre os dias 8 e 12 de julho
de 1878, atendendo ao chamamento e contando com o apoio do Governo
Imperial, através do então Ministro de Negócios de Agricultura, Comércio e
Obras Públicas, João Vieira Lins Cansanção de Sinimbú, que convocou os
agricultores das províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e
Espírito Santo para participarem e discutirem acerca dos problemas
relacionados com a agricultura brasileira.

[23] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-


1929/d17943a.htm>. Acesso em: 23 mar. 2012.

[24] Cita-se também os programas: Casa do Pequeno Lavrador, destinado a


assistência e aprendizagem rural para crianças e adolescentes filhas e filhos de
camponeses; Casa do Pequeno trabalhador, programa de capacitação e
encaminhamento ao trabalho de crianças e adolescentes urbanos de baixa
renda; e, Casa das Meninas, programa de apoio assistencial e socioeducativo
destinado às adolescentes do sexo feminino com problemas de conduta.

[25] Movimento que recolheu, no período de elaboração da Constituição


Federal pela Assembleia Constituinte, mais de seis milhões de assinaturas,
com o intuito de garantir a criação de um artigo em âmbito constitucional
que estabelecesse os Direitos Humanos de meninos e meninas.

[26] Segundo o Decreto n. 99.710 de 21 de novembro de 1990.

[27] Ainda que uma redefinição destes grupos tenha sido adotada, a realidade
social não mudou substancialmente, pois continuam sendo majoritariamente
as “crianças e os adolescentes” mais vulneráveis aos efeitos da pobreza e da

305
exclusão social e os que representam algum tipo de ameaça à sociedade.
Quase a metade dos 60 milhões de crianças e jovens brasileiros (até os 17
anos) nasce em famílias pobres, as quais encontram dificuldades em prover
cuidados básicos adequados para seus filhos e suas filhas.

[28] Cabe recordar que o ECA possui como base essencial de sua doutrina
uma série de princípios que representam esta nova configuração jurídico-
política dos direitos da criança e do adolescente. Tais princípios servirão de
orientação ao intérprete e aos agentes públicos em geral, sendo os principais:
1) Princípio da prevenção geral: é dever do Estado assegurar à criança e ao
adolescente as necessidades básicas para seu pleno desenvolvimento (art. 54, I
a VIII) e prevenir a ocorrência de ameaça ou violação desses direitos (art. 70);
2) Princípio da prevenção especial: o Poder Público regulará, através de
órgãos competentes, as diversões e os espetáculos públicos (art. 74); 3)
Princípio de Atendimento Integral: o menor tem direito à atendimento total
e irrestrito (vida, saúde, educação, esporte, lazer, profissionalização, etc.)
necessários ao seu desenvolvimento (arts. 3º, 4º e 7º do ECA); 4) Princípio
da Garantia Prioritária: tem primazia de receber proteção e socorro em
quaisquer circunstâncias, assim como formulação e execução das políticas
sociais, públicas e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude (art. 4º, a,b,c,d);
5)Princípio da proteção estatal: visa a sua formação biopsíquica, social,
familiar e comunitária, através de programas de desenvolvimento (art. 101);
6) Princípio da prevalência dos interesses do menor, pois na interpretação do
estatuto levar-se-ão em conta os fins sociais a que ele se dirige, as exigências
do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e sua condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 6º); 7) Princípio da
indisponibilidade dos direitos do menor, pois o reconhecimento do estado de

306
filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser
exercido contra os pais, ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o
segredo de justiça (art. 27); 8) Princípio da sigilosidade: é vedada a divulgação
de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e
adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional. 9) Princípio da
gratuidade: é garantido o acesso de todo menor à Defensoria Pública, ao
Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos, sendo
a assistência judiciária gratuita prestada a todos que dela necessitem (art. 141,
§§ 1º e 2º ).

[29] Disponível em:<http://www.mapadaviolencia.org.br/>.

[30] Dados disponíveis em: 1) RIO Grande do Sul. Secretaria de Segurança


Pública. Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul: Indicadores
criminais 2011, 2012 e RIO Grande do Sul. Departamento de Gestão a
Estratégia Operacional. Divisão de Estatística Criminal. Estudo Técnico n.
05/2011 – violência contra a mulher – Rio Grande do Sul 2006 a 2010. Porto
Alegre, 2012. Disponível em:<http://www.ssp.rs.gov.br/?model=conteud
o&menu=193&id=361>. Acesso em: 17 ago. 2012.

[31] Dados fornecidos pela psicóloga Cíntia de Souza Serpa, que atua no
Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (CAIC/FURG) e no
Centro de Referência em Direitos Humanos (CEREDH).

[32] Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (CAIC/FURG)


e Centro de Referência em Direitos Humanos – CEREDH/FURG.

307
[33] Ao abordar temas, como Direitos Humanos, preconceito racial, gênero,
cidadania, saúde, consciência ambiental, identidade pessoal, autoestima,
fortalecimento dos vínculos grupais, tem-se realizado Oficinas de Vivências
que abordam desde a dimensão afetivo-emocional da pessoa, como, também,
a desconstrução e reconstrução social dos valores, das crenças, dos
preconceitos e dos tabus sociais e historicamente construídos. Efetivamente o
grupo participante das Oficinas de Vivências se torna, por algumas horas, a
possibilidade real de experimentação de novos padrões de relacionamento e
de problematização dos papéis sociais.

[34] Um aporte bastante interessante sobre a efetiva possibilidade de


humanização frente à globalização econômica é oferecido por Müller, 2000.

[35] Concepção herdada do pensamento kantiano, que concilia e relaciona a


dimensão axiológica – dignidade como valor intrínseco –, como as noções de
racionalidade, autonomia e moralidade, concebidas como fundamento e
conteúdo da dignidade. Afirma Kant que “o homem – e, de maneira geral,
todo ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio
para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo
contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros
seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como um
fim” (KANT, 2011, p.58).

[36] A perspectiva política da dignidade humana está sendo aqui projetada no


sentido dado por Arendt (2002), quando aborda o conceito e pressupostos da
condição e existência humana, afirmando que todos "[...] os aspectos da
condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é
especificamente a condição – não apenas a conditio sinequa non –, mas a

308
conditio per quan de toda a vida política. [...] a pluralidade é a condição da
ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que
ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou
venha a existir." (p.16).

309
310
Menores y violencia de género:
notas desde la criminología
Minors and gender violence: notes criminology
Menores e violência de gênero: notas de criminología

Bárbara Sordi Stock

Introducción

El reconocimiento de los Estados como responsables, “de puertas para


dentro”, para hacer frente a la violencia de género, aquí utilizada como
sinónimo de violencia contra la mujer pareja o ex pareja, es un tema
relativamente reciente en el contexto de la tradición jurídica penal moderna.
Entre la paradigmática Declaración sobre la Eliminación de la Violencia contra la
Mujer de la ONU (1993) y el audaz Convenio de Estambul del Consejo de
Europa (2011), apenas transcurren una veintena de años, produciéndose una
serie de cambios en el Sistema de Justicia de distintos países fácilmente
perceptibles. Téngase como ejemplo, la LO 1/2004 española y la Ley
11.340/06 brasileña, que apuestan por la implementación de juzgados
especializados, por el incremento de medidas legales y asistenciales para las
víctimas y por la rehabilitación del agresor.
Ahora bien, las trasformaciones en la Justicia - algunas de necesidad
incontestable- vienen acompañadas de una mirada crítica acerca de ser el
Derecho penal un instrumento de cambio problemático para la mejora real de
la situación de las mujeres (SMART, 1989; 1990; 1998; LARRAURI, 2007;
2008; VAN SWAANINGEN, 1989; 2011). A ello se suma una configuración
internacional reveladora de un escenario formal de desencuentros
conceptuales sobre la propia definición de violencia de género (RÖMKENSet.
al., 2011; RÖMKENS, 2012), de un volumen de casos casi inabarcable que
llegan a los Juzgados (MEDINA ARIZA, 2002; SORDI STOCKet. al. 2011)y de
estrategias punitivas de dudosos resultados para la disminución de las
violencias hacia la mujer (GONDOLF, 2012, STRAUSS, 2005; 2009; DUTTON,
2006). La única certeza que existe es que las cuestiones sobre género, crimen
y Justicia de la entrada del siglo XXI son en muchos aspectos distintas de las
estudiadas en el pasado y se encuentran íntimamente relacionadas con
cultura, sexo, clase, etnia y edad (DALY YMAHER, 1998; HEIDENSOHN,
2006).
En este incierto escenario no sorprende que distintos campos
investigación, entre los cuales ocupa un lugar preferente la Criminología,
insten a que los Estados pongan el acento en que la intervención penal esté
combinada con políticas y servicios con marcados resultados preventivos
(MILLER, IOVANNI Y KELLEY, 2011). Las siguientes reflexiones se basan en
esta línea argumentativa. Concretamente, invitan al jurista a repensar la
necesidad de articular iniciativas preventivas fundamentadas en bases teóricas
sólidas direccionadas a menores de edades como estrategia para la
disminución de violencias de género entre adultos. Por consiguiente, se ha
entendido como más adecuado estructurar el presente trabajo en dos
epígrafes. En un primer momento se expondrán, desde un matiz empírico,
algunas novedosas políticas en Europa de prevención del delito específicas
para menores. A continuación, se propone la “oxigenación” de los principales
marcos teóricos que intentan explicar la violencia de género. Se cree que este
análisis combinado, aun cuando sea somero, proporcionará los instrumentos
necesarios para un debate sereno. El desenlace lógico de esta exposición es
reducir el volumen de casos que llegan al Sistema de Justicia, no solo sofisticar
su actuación como forma de prevención terciaria (GONDOLF, 2012).

312
1- Políticas de prevención del delito: ejemplos europeos.

El mensaje de que sólo el Sistema de Justicia no va resolver la violencia


contra las mujeres es una constante en las investigaciones contemporáneas
(GADD, 2004; MILLER, IOVANNI Y KELLEY, 2011). Dese la Criminología se
viene poniendo el acento en la necesidad de combinar la intervención judicial
con políticas y servicios que atiendan la marginación social, el desempleo, el
cuidado de las mujeres víctimas e hijos, entre otras cuestiones (MILLER,
IOVANNI Y KELLEY, 2011; MEDINA-ARIZA, 2011).
Entran en juego, pues, las políticas de prevención del delito como
parte de una iniciativa más amplia de trasformación social y económica.
Según MEDINA-ARIZA (2011), la tendencia de algunos países occidentales
hacia la dureza e incremento de sanciones penales acaba por consumir los
recursos del Estado en detrimento de medidas más creativas, efectivas, menos
intrusivas o excluyentes para el control de la delincuencia. Una visión global
muestra que las políticas de prevención del delito y seguridad ciudadana
actualmente se encuentra na medio camino entre las políticas de bienestar del
Estado y las políticas de seguridad policial y justicia penal. Por tanto, por
políticas de prevención del delito se puede entender la suma de iniciativas a
las que se les ha atribuido la capacidad de prevenir la delincuencia [1].
Así, además de los esfuerzos de los Estados en la prevención terciaria,
se hace necesario diseñar estrategias de prevención primaria y secundaria. La
prevención primaria tiene por propósito reducir las causas de la delincuencia
en general y de esta forma comprende intervenciones orientadas al público en
general con alteraciones del entorno social y físico. Ya la prevención
secundaria está constituida por todas las intervenciones orientadas a los
grupos de riesgo. Comprende una actuación junto a sujetos que presentan un

313
perfil socio demográfico y personal que pueden indicar una predisposición a
la comisión del delito, como edad, estilo de vida etc. (MEDINA-ARIZA, 2011)
Ahora bien, en el campo de la prevención del delito existe una
equivocada tendencia de hacer frente a los problemas de forma apresurada
eirreflexiva sobre las estrategias preventivas, aun cuando se estén tratando
problemas altamente complejos que requieren la colaboración de diversas
instituciones (HOMELY HOMEL, 2012). La violencia contra la mujer pareja o
ex pareja lamentablemente puede ser aquí mencionada como ejemplo, razón
por la cual vale señalar algunas iniciativas novedosas puestas en marcha en
ámbito Europeo.
El reciente proyecto llevado a cabo en Reino Unido titulado FromBoys
to Men Project (2010- actual) reveló la importancia de invertir esfuerzos en la
prevención primaria y secundaria como una forma de prevenir la violencia
entre adultos. GADD y otros investigadores (2013) pretendieron encontrar
respuestas a cuestiones tan desafiantes como ¿Por qué algunos jóvenes vienen a
tornarse agresores domésticos y otros no? ¿Qué se puede hacer para evitar la
violencia futura?
El Proyecto comportó la recogida de datos de tres campos distintos: 1)
Cuestionario con adolescentes de ambos sexos de edad entre 13 y 14 años
(1.203 en total); 2) Grupos de discusión con jóvenes varones con edad entre
13 y 19 años (69 en total) y 3) Historia de vida de jóvenes varones con edad
entre 16 y 21 años que habían experimentado violencia doméstica como
víctimas, agresores o como testigos (30 en total). Todos los participantes de
este último grupo fueron reclutados en servicios formales o asistenciales,
como probation, programas de educación alternativos o de atención a la
familia.
Los hallazgos del proyecto fueron ciertamente intrigantes. Junto al
grupo de adolescentes, al tiempo que se comprobó que gran parte de ellos

314
había experimentado violencia doméstica bien en sus relaciones afectivas bien
en el hogar, se sacó a la luz que los niños son más propensos que las niñas a
pensar que el uso de la violencia de un hombre o de una mujer hacia el
compañero/a es una actitud justificable. En lo relativo al segundo grupo,
concretamente el compuesto solo por varones jóvenes, sus actitudes frente a la
violencia doméstica resultaron ser muy complejas. Véanse los siguientes
ejemplos. Como punto en común condenaron el uso de la violencia
doméstica. No obstante, algunos no identificaban el control como un
comportamiento violento. En ciertos casos, la infidelidad fue entendida como
justificación para el uso de la violencia, siendo muy pocos los jóvenes que
refirieron que bajo ninguna circunstancia la violencia hacia la mujer es
aceptable. Asimismo, dicha violencia fue relacionada con adultos, escoria,
drogadictos, minorías étnicas etc. y no como una cuestión vinculada a su
realidad. Por último, el tercer grupo investigado reveló un alto grado de
vulnerabilidad social. Muchos de ellos habían sido víctimas de abandono,
rechazo, sufrido pérdidas significativas y presenciado distintas violencias en la
familia. Por todo ello, se ha hecho muy difícil diferenciar la condición de
víctima y de agresor entre los jóvenes varones. (GADDet. al., 2013; FOXet. al.,
2013; FOX, HALE Y GADD, 2013)
Entre las recomendaciones finales del proyecto vale recordar las
siguientes: 1) La necesidad de implementar con vigor una educación
preventiva, preferentemente antes de los 13 años de edad, y tenga en cuenta
las distintas realidades vivenciadas por chicos y chicas; y 2) La necesidad de
poner en marcha programas para agresores jóvenes, que hayan tenido o no
contacto con la Justicia. En última medida, las estrategias preventivas en el
ámbito comunitario deben ser acentuadas así como deben ser fomentados los
trabajos direccionados a colectivos vulnerables. (GADDet al., 2013a)

315
Sin distanciarse de las propuestas del trabajo anteriormente descrito,
en Andalucía, sur de España, ya es posible constatar interesantes iniciativas
prácticas de carácter preventivo-asistencial direccionadas a menores de edad.
Tras llegar a conocimiento del Instituto Andaluz de la Mujer un número cada
vez mayor de casos de violencia contra mujeres menores de edad por parte de
su pareja o ex pareja, se ha puesto en marcha recientemente un programa
piloto titulado Programa de Atención Psicológica a las Mujeres Menores de Edad
Víctimas de Violencia de Género en Andalucía (INSTITUTO ANDALUZ DE LA
MUJER, 2013). El Programa ofrece tanto atención psicológica a mujeres
entre 14 y 18 años que sufren o que han sufrido violencia por parte de sus
parejas o ex parejas como también orientación a los progenitores y/o tutores
de las atendidas. El trabajo no depende de denuncia judicial, se realiza de
forma gratuita y se ejecuta en los ochos Centros Provinciales del Instituto de
la Mujer existentes en la Comunidad Autónoma de Andalucía. Pese a que los
resultados del Programa no han sido publicados, según el testimonio de uno
de sus responsables los niveles de violencia entre las jóvenes se mostraron
“más altos” y “muy consolidados” al ser comparados con mujeres adultas
(SORDI STOCK, 2014).
También vinculado al Instituto Andaluz de la Mujer, pero
específicamente dedicado a la atención psicológica de hijas e hijos de mujeres
víctimas de sus parejas, se encuentra el innovador Servicio de atención
psicológica a hijas e hijos de mujeres víctimas de violencia de género (INSTITUTO
ANDALUZ DE LA MUJER, 2013a). Se trata de un Servicio gratuito, cuya
gestión es responsabilidad de la Asociación AMUVI, enfocado a
descendientes con edad comprendida entre 6 y 17 años de las víctimas que
acuden al Instituto en busca de auxilio y tiene por finalidad trabajar para el
bienestar psicológico de los/as menores y en la prevención de
comportamientos violentos futuros.

316
Lo que se ha querido aquí subrayaron la referencia al Proyecto From
Boys to Men Project (2010- actual) y con las iniciativas del Instituto Andaluz
de la Mujer (2013; 2013a) es que actualmente Europa se constata un empuje
en línea de prevención inicial -que cuenta por tanto con otros actores
diferentes del Sistema Penal y Penitenciario - dirigidas a las mujeres y
varones menores de edad. Si bien a largo plazo las estrategias preventivas
tienen mayor probabilidad de reducción de la violencia contra las mujeres, las
dudas que siguen existiendo para la implementación de las mismas sonde los
más diversos órdenes (GADD, 2003; 2004; GADD et al., 2013a). El interés y la
capacidad real de los Estados en reorientar las inversiones en esta dirección,
así como la posibilidad de diseñar intervenciones preventivas comprometidas
con bases teóricas solidas son algunas de las inquietudes existentes (GADD,
2002; 2003). Teniéndose en cuenta que el reparto económico de los Estados
se relaciona más con una cuestión de prioridad de las políticas de género en la
agenda gubernamental, las siguientes líneas se dedican a la relectura sobre la
etiología de la violencia hacia la mujer como paso substancial para la
implementación de iniciativas preventivas más acordes a las exigencias del
contemporáneo.

2- Repensando marcos teóricos: ¿patriarcado versus masculinidades?

Uno de los argumentos más extendidos para explicar la violencia de


género, aquí interpretada intencionalmente de forma simplista como
sinónimo de violencia contra la mujer pareja o ex pareja [2], es el sistema de
dominación masculina propio de las sociedades patriarcales (VALCÁRCEL,
1994; AMORÓS, 2008). El concepto de patriarcado, sin embargo, no es
univoco (HUNNICUTT, 2009; DEKESEREDY Y SCHWARTZ, 2005; OGLE Y
BATTON, 2009).

317
En Criminología, una de las interpretaciones que mejor acogida ha
tendido ha sido la propuesta por DOBASH Y DOBASH (1992). Para estos
autores el patriarcado es determinado con base en dos elementos
interrelacionados: estructura e ideología. En relación a la estructura, el
patriarcado es entendido como una organización jerárquica dónde los
hombres poseen más poderes y privilegios que las mujeres. Los hombres
mantienen este poder porque el patriarcado también es una ideología,
formada por una lógica político-social en la cual hombres y mujeres creen que
determinadas conductas de dominación y subordinación son “naturales” y
“correctas”. Dicho análisis se aproxima del propuesto por el pensamiento
feminista de forma global y explicaría las diferencias de género existentes en
relación al crimen y a la victimización femenina (OGLE Y BATTON, 2009).
Sin desconsiderar la importancia de la literatura feminista a lo largo de
la historia y de la lucha política que propone y que resinifica otros espacios,
los avances en criminología-feminista han invocado la necesidad de
profundizar en la teorización entre patriarcado y crimen (CHESNEYLIND,
2006). El progreso sería doble: una mayor claridad conceptual y la
posibilidad de constatación empírica de la relación binaria crimen-
patriarcado (OGLE Y BATTON, 2009). Se refuta, pues, la utilización del
término patriarcado como un “comodín explicativo” (explanatory wild card), es
decir, que se dé por hecho que la sociedad patriarcal justifique por qué las
mujeres son victimizadas en mayor proporción que los varones (OGLE Y
BATTON, 2009). Desde una postura más tajante, autoras del calibre de
CARRINGTON (1998:72-73) afirman que el concepto de patriarcado es
“simplista”, “tautológico” y “monolítico”, pues crea un “esencialismo de
género”. El patriarcado concibe hombres y mujeres como sujetos sin
capacidad de autodeterminación y enmarca la violencia masculina y la

318
victimización femenina dentro de una consecuencia automática por la
condición del sexo - ser hombre y ser mujer (MESSERSCHMIDT, 1993; 2005).
El efecto espejo considera que todos los hombres están condicionados
por el sistema patriarcal (CARRINGTON, 1998). Se ha creado, pues, un
discurso que tiene por base que “hombre = patriarcado” sin cualquier
problematización sobre las causas, dinámicas y posibilidades de reducción de
la desigualdad entre hombres y mujeres (GULLVÅGHOLTER, 2005). Este
modelo prácticamente imposibilita que se espere un “nuevo hombre” en una
estructura post patriarcal (GULLVÅGHOLTER, 2005). Al tiempo, se ignora que
los hombres de distintos estratos sociales y culturales pueden ejercer
diferentes grados de control sobre la mujer (MESSERSCHMIDT, 1993; GADD,
2002; 2003) así como que otras variables, clase social y raza por ejemplo, se
mezclan con las definiciones culturales de género y ofrecen, a la par una
renovación del discurso feminista, un nuevo entendimiento de la violencia
masculina (MEDINA ARIZA, 2002).
Teniendo en cuenta este contexto, no es del todo arriesgado afirmar
que desde la Criminología se viene renunciado a la idea general de
patriarcado para volverse al estudio del “hacer género” [3] (OGLE Y BATTON,
2009). Consiguientemente, otras teorías ganan acogida como aproximación
más fiable para explicar las relaciones de género y criminalidad. En este
contexto se destacan los estudios de las masculinidades (GADD, 2002; 2003;
MESSERSCHMIDT, 2005; HEIDENSOHN, 2006; HEIDENSOHN Y

GELSTHORPE, 2007). Estos sacan a la luz que el uso de la violencia viene


determinada por dinámicas sub culturales en las cuales los hombres
encuentran en sus pares (peer group) una forma de legitimar (animar) y
expresar su condición masculina por el uso de la fuerza (DEKESEREDY Y
SCHWARTZ, 2005) [4].

319
Para las teorías de la masculinidad el género no existe solo, sino
interrelacionado con el otro y con las diferencias de clase, edad, etnia, edad
etc. La criminalidad masculina apenas será entendida si es contextualizada en
una “construcción relacional”: la identidad de género es un proceso que está
en constante reconstrucción, que se reinventa y se rearticula en las relaciones
micro y macro. Consiguientemente, el “hacer género”(do gender) pasa a ser
comprendido como un proceso influenciado por las experiencias y por la
estructura social. En otras palabras, no existe un único camino de hacer
género, una vez que se identifican masculinidades y femineidades que
comparten múltiples espacios. (CONNELL, 2005; MESSERSCHMIDT, 2005)
La idea central de la interacción entre teorías de la masculinidad y
crimen es que este último puede constituirse en un recurso del “hacer género”
en determinados entornos sociales. En otras palabras, el delito es invocado
como una práctica mediante la cual hombres y mujeres se diferencian unos de
otros (MESSERSCHMIDT, 1993). Lo desafiador es que no existe un parámetro
concreto que necesariamente determina el comportamiento masculino,
incluyendo aquí el comportamiento criminoso (MESSERSCHMIDT, 2005).
Existen varias formas de masculinidad que se determinan culturalmente. Por
ejemplo, las masculinidades de los individuos de clase baja, que enfatizan la
agresividad y dureza, y la masculinidades de los individuos de clase alta, que
giran en torno a los temas de ambición, responsabilidad y empleo profesional
- la imagen del burócrata (MESSERSCHMIDT, 1993). Desde una perspectiva
empírica vale aquí recordar la investigación de DOBASH Y DOBASH (1998),
quienes han analizado cómo hombres y mujeres usan la violencia en sus
relaciones de pareja. Entre sus hallazgos, encontraron que la reafirmación de
la identidad femenina no es valorada por medio del uso de la violencia,
mientras que en la violencia del varón contra la mujer se reafirman los ideales
sociales sobre ser maridos y esposas.

320
Téngase en cuenta que el impacto del hacer género en los hombres es
poco investigado bien es explicado desde una visión esencialista que se
fundamenta en las teorías de los roles de los sexos (MESSERSCHMIDT, 1993).
Esto se debe en gran parte al hecho de que se encuentra muy extendida la
idea de que investigar sobre género es sinónimo de estudiar mujeres. No
obstante, una discusión responsable - en términos de relaciones de poder -
también requiere el estudio del comportamiento de los hombres y por tanto
de las diferencias culturales de construcción de las masculinidades.
Entender las diferentes identidades entre hombres violentos y no
violentos ofrece una comprensión más detallada sobre las relaciones de género
en las sociedades industrializadas y por consiguiente permite reflexionar sobre
la posibilidad de cambio del comportamiento masculino para el logro de una
sociedad más igualitaria (CONNELL, HEARN Y KIMMEL, 2005;
MESSERSCHMIDT, 2005). En última medida, “las amplias fuerzas
patriarcales” no motivan por si solas a los hombres a agredir, violar o matar a
las mujeres y la violencia masculina contra las mujeres pasa a ser explicada por
la preocupación de los hombres de presentar una imagen de sí mismosdentro
de sus redes sociales (DEKESEREDY Y SCHWARTZ, 2005).
Nótese que el mérito de las teorías de la masculinidad ha sido
demostrar la fragilidad de las explicaciones esencialistas sobre el
comportamiento violento masculino para contextualizar la construcción del
mismo en un escenario complexo y múltiplo. Hoy día no es arriesgado
afirmar que las jerarquías de género particularmente verificadas en los países
neocapitalistas vienen siendo afectadas por una nueva configuración de las
identidades, sobre todo de los jóvenes (MESSERSCHMIDT Y CONNELL,
2005). Aunque desde el campo empírico se viene demostrando que los
hombres - por lo general - comentan más crímenes y crímenes más violentos
que las mujeres, esto no significa que todos los hombres sean violentos

321
(GADD, 2002; 2003; DEKESEREDY Y SCHWARTZ, 2005) o que todas las
mujeres tengan las mismas probabilidades de ser víctimas (LARRAURI, 2007;
2008).
Las prácticas relacionales de muchos jóvenes ofrecen una relectura de
las masculinidades y feminidades hegemónicas como fruto de las nuevas
dinámicas de género [5]. Se percibe, pues, un alejamiento de las
masculinidades y feminidades de carácter fijo y se abre espacio para otros
marcos interpretativos sobre el comportamiento violento y el desarrollo de las
políticas de género vinculados a distintos factores como la naturaleza de la
jerarquía de género, la geografía de configuración de las masculinidades, el
proceso de realización personal etc. (MESSERSCHMIDT Y CONNELL, 2005).
Si bien es cierto que el marco teórico expuesto anteriormente no
explica toda la historia acerca de la violencia masculina, también es cierto que
la comprensión de la violencia perpetrada por los varones contra las mujeres
parejas o ex parejas no puede ser adecuadamente estudiada prescindiendo del
estudio de las masculinidades (DEKESEREDY Y SCHWARTZ, 2005). Los
avances en las investigaciones exigen una mejor conceptualización y
operacionalita empírica para entender en profundidad las relaciones entre
género y criminalidad y las teorías de la masculinidad surgen como una
alternativa para explicar con mayor rigor dicha problemática (OGLE Y
BATTON, 2009).
Parece, pues, bastante lógico que en el proceso de socialización la
asimilación de valores, ideas y patrones de conducta observado por los niños y
niñas relacionados con los roles de género contribuyen para que ellos
organicen sus vidas en torno a esas referencias. En otras palabras, los
mandatos parentales recibidos a través de actos cotidianos, como palabras o
gestos, juegan un papel importante en la asimilación de los roles femenino y
masculino. Por ello, es muy difícil que el varón que observa una actitud de

322
desprecio de su padre por lo femenino tenga en el futuro una actitud positiva
hacia las mujeres de su entorno. Las niñas, por el contrario, aprenden que
deben aceptar la violencia y vivir con ella. (RODRÍGUEZ MANZANERA, 2005;
ECHEBURÚA Y CORRAL, 2010)
El resultado global no es otro que aprender que la violencia es un
recurso válido y eficaz para hacer frente a las frustraciones y/o una forma de
reforzar la identidad en las relaciones de pareja. Las secuelas de este
comportamiento en ciertos casos son devastadoras para la vida de los menores
y pueden influir para la existencia de relaciones adultas violentas. Pruebo de
ello es que en el campo empírico se ha detectado una alta prevalencia de
problemas psicológicos en la población infantil y joven producto del ambiente
violento, así como la heterogeneidad de secuelas ante la exposición a la
situación de violencia entre los progenitores (FALCÓN CARO, 2008;
ECHEBURÚA Y CORRAL, 2010). Los problemas emocionales o de conducta
están relacionados, entre otras cuestiones, con la ansiedad, depresión,
aislamiento, fracaso escolar y conductas agresivas especialmente con
compañeros de escuela y con la madre víctima de violencia. Los resultados de
uno de los pocos estudios cualitativos sobre violencia entre parejas
adolescentes publicados en España también son reveladores. SAMANIEGO
GARCÍA Y FREIXASFARRÉ (2010) sacaron a la luzque al tiempo que existe
dificultad de los jóvenes identificaren cuando se producen actos de violencia
dentro de una relación afectiva sus testimonios indican no ser infrecuente que
los noviazgos incluyan actos de violencia psicológica, física y sexual.
Por todo ello, defendemos que el énfasis debe colocarse en la
prevención anticipada de la situación violenta (CORRAL, 2009; ECHEBURÚA
Y CORRAL, 2010; PAZ RODRÍGUEZ, 2012). La implementación de
programas preventivos con base en marcos teóricos sólidos, como parece

323
ofrecer las teorías de las masculinidades, pueden contribuir de forma decisiva
a la evitación de la violencia de género entre adultos (GADD, 2002; 2013).

Epílogo

En materia de violencia hacia la mujer pareja o ex pareja, hay una


larga lista de investigaciones pendientes. Aunque se trate de un tema
recurrente en las dos últimas décadas de la justicia de adultos,s on pocas las
investigaciones realizadas en el contexto de la población menor de edad. El
presente artículo pretende ser una pequeña contribución para que se
reflexione con responsabilidad sobre esta carencia.
De esta forma y a modo de epílogo hacemos hincapié en un abordaje
de la violencia en el marco ecológico (BRONFENBRENNER, 1979). El modelo
ecológico es uno de los modelos más influyentes en la actualidad para
describir el conjunto de esfuerzos en el combate a la violencia hacia las
mujeres pareja y ex parejas. En un sentido amplio, sugiere la necesidad de
analizar la interacción entre los individuos y los contextos donde la violencia
se produce y actuar sobre distintos sistemas - micro, meso, macro y
ecosistema (TOLMAN Y EDLESON, 2011). Se estimulan trabajos desde el
entorno inmediato de los sujetos, como familia y escuela, pues facilitan el
desarrollo de habilidades para afrontar las situaciones estresantes de forma
positiva (microsistema). Al tiempo, se hace fundamental promocionarlas
redes sociales del sujeto que dan soporte a situaciones que sobrepasen los
recursos personales de los individuos (mesosistema). Desde una perspectiva
más amplia, la organización del medio en el que vive el individuo, como
sistema económico, político, medios de comunicación etc. (ecosistema),
requiere la utilización de nuevas tecnologías y estrategias en contra de la
normalización de la violencia. Aquí se destaca con mayor énfasis la

324
coordinación entre el sistema de policía y de justicia para la persecución de los
casos de violencia. La estructura social y cultural, o sea, el sistema de actitudes
y creencias en orden social e institucional (macrosistema)por su vez exige un
trabajo de cambios de actitudes y alternativas, sea para permitir la resolución
de conflictos de forma positiva, sea para abolir estereotipos descalificadores.
En resumen, se pretende transformar las actitudes y comportamientos de los
agresores, familias y sociedad con respecto a los roles de género y el uso de la
violencia, circunstancia que requiere esfuerzos dirigidos no solo a los
individuos penados por la justicia sino, sobre todo, aquellos que aún no hayan
pasado por un proceso judicial (LILA, GARCÍA Y LORENZO, 2010).
Hoy ya es posible constatar que algunas instancias oficiales adoptan el
marco ecológico y consecuentemente promocionan una mayor y mejor
investigación de estrategias de control informal que inhiban las violencias
perpetradas entre íntimos (véase la OMS, 2003; 2003a). Conscientes de que
los resultados de estas estrategias son difíciles de ser comprobados en el plan
empírico, pero sin distanciarnos de esta línea anticipada de actuación,
creemos que el conocimiento de algunas iniciativas europeas de carácter
preventivo para el público menor de edad y la “oxigenación” de los marcos
teóricos según la literatura más actualizada sobre el tema al menos
demuestran cuán utópico es pensar que la violencia empieza después del
matrimonio, que puede ser explicada de forma simplista o que la Justicia
logrará resolverla. El jurista prudente y sensible a las cuestiones de género no
pueden ignorar ni desconocer esta realidad.

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335
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Criminológica, Numero 8. Buenos Aires: B de F, 2011. 436 p. ISBN
9789974676749.

336
Notas de fim

[1] Pese a los esfuerzos para precisar lo que es la prevención del delito como
área de intervención política y campo de investigación científica su definición
sigue siendo ambigua y marcada por un profundo debate político e
ideológico. Para una discusión más afondo y muy actualizada consultar
MEDINA-ARIZA (2011).

[2] Para un análisis detallado sobre las distintas interpretaciones de violencia


de género consultar SORDI STOCK (2014).

[3] GULLVÅGHOLTER (2005: 16 - 17) sugiere que las investigaciones


contemporáneas utilicen las expresiones igualdad o desigualdad de género y
no el término patriarcado. El patriarcado es algo tan “obscuro” que aunque se
esté suavizando en los últimos años (“despatriarcalizando” -
depatriarchalization), no se puede explicar el alto índice de violencia de género
aún existente en las sociedades de orientación más igualitaria. Así que es
preferible utilizar el término desigualdad de género, pues es más “visible y
real”.

[4] Inspiradas en las investigaciones de rasgo feminista, las teorías de la


masculinidad buscan explicar la mayor incidencia del comportamiento
violento masculino por medio de las dinámicas de construcción de las
identidades de género. El feminismo liberal y el feminismo socialista
promueven una “atmosfera” para el contemporáneo estudio del crimen y de
las masculinidades, pues han articulado un marco de discusiones que intenta
explicar las relaciones de género y la criminalidad (MESSERSCHMIDT, 1993).
Como punto de encuentro entre los estudios feministas y las masculinidades

337
se destaca la premisa básica de describir jerarquías de dominación
relacionando el género con múltiplos e interactivos sistemas de opresión
(GARDINER, 2005). No obstante, la relación entre feminismos y teorías de la
masculinidad no ha sido pacífica y por lo general las feministas ridiculizan
dicho marco teórico. Sobre el análisis y la construcción de la masculinidad en
la sociedad contemporánea y el desarrollo de las teorías feministas consultar
GARDINER (2002; 2005).

[5] Vale recordar que el concepto de masculinidad hegemónica ha sido


formulado originalmente en relación al concepto de feminidad hegemónica
en el sentido de reconocer la posición asimétrica de las masculinidades y
feminidades en una sociedad patriarcal. Si bien el concepto de masculinidad
hegemónica ha influido en muchos ámbitos los estudios de género,
actualmente es objeto de severas críticas. Véase por ejemplo el estudio de
KERSTEN (1996) que sugiere que una comparación entre Australia, Alemania
y Japón muestra variaciones significativa en la visibilidad de la violencia
contra las mujeres y su etiología, siendo “engañoso” percibir la relación
masculinidad-violencia como categorías monolíticas.

338
Sobre os autores

Ana Cecília de Sousa Bastos


Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UNB). Estágio Pós-
Doutoral na Clark University. Professora do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora do Mestrado e
Doutorado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade
Católica de Salvador (UCSAL).

Bárbara Sordi Stock


Profesora de Derecho Penal y Criminología. Master en Ciencias Criminales -
PUC/RS (becaria CAPES). Doctorado en Derecho Penal y Procesal -
US/España (becaria MAEC/AECID).

Carlos Alexandre Michaello Marques


Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos -
UNISINOS. (2014). Advogado. Graduado em Direito (2006) e Especialista
em Gestão Ambiental em Municípios (2008) pela Universidade Federal do
Rio Grande - FURG e, em Didática e Metodologia do Ensino Superior
(2010), MBA em Gestão de Pessoas (2011) e Metodologias e Gestão para
Educação pela UNIDERP. Professor Colaborador e Pesquisador do Grupo
Transdisciplinar de Pesquisa Jurídica para Sustentabilidade - GTJUS
(CNPq) e do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos Humanos -
NUPEDH da Faculdade de Direito - FADIR da Universidade Federal do
Rio Grande - FURG.
Clarice Gonçalves Pires Marques
Mestranda em Educação e em Direito e Justiça Social pela Universidade
Federal do Rio Grande – FURG. Especialista em Direito Tributário –
UNIDERP. Especialista em Gestão Ambiental em Municípios – FURG.
Pesquisadora do Grupo Transdisciplinar de Pesquisa Jurídica para a
Sustentabilidade – GTJUS (CNPq) e do Núcleo de Pesquisa e Extensão em
Direitos Humanos – NUPEDH ambos da Faculdade de Direito da FURG.
Coordenadora de Tutoria do Curso de Especialização em Educação em
Direitos Humanos – FURG/FADIR/SEaD/UAB/CAPES. Acadêmica do
Curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.

Francisco Quintanilha Veras Neto


Professor Associado I, titular da cadeira de História do Direito da Faculdade
de Direito (Fadir) da Universidade Federal de Rio Grande (FURG) líder do
GTJUS- Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para a
Sustentabilidade do curso de Direito da mesma Universidade, Professor
Colaborar do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da
FURG.

Homero Bezerra Ribeiro


Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professor da
disciplina de Direito da Criança e do Adolescente pelo Centro de Ensino
Superior do Ceará. Advogado.

340
Jackson da Silva Leal
Graduado em Direito na Universidade Católica de Pelotas (UCPel),
advogado inscrito na OAB/RS; Mestre em Política Social (UCPel);
doutorando em Direito (UFSC); bolsista-pesquisador de doutorado CNPq;
membro da Universidade sem Muros (UFSC)

José Eduardo Ferreira Santos


Doutor em Saúde Pública. Professor da Camargo Gestão Educacional. Pós-
Doutorando em Cultura Contemporânea

Luiz Antônio Bogo Chies


Professor do Mestrado em Política Social e do curso de Direito da
Universidade Católica de Pelotas (RS). Doutor em Sociologia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos
Aires – Argentina). Coordenador-Geral do Grupo Interdisciplinar de
Trabalho e Estudos Criminais-Penitenciários (GITEP-UCPel).

341
Marcelo Mayora Alves
Graduado em Direito, mestre em Ciências Criminais (PUC/RS); doutorando
em direito (UFSC) professor substituto (UFSC) pesquisa do Instituto
Criminologia da Alteridade (ICA) e membro do grupo de extensão
Universidade Sem Muros (USM-UFSC);

Mariana Garcia
Graduada em Direito; mestranda em Direito (UFSC); pesquisadora do
Instituto Criminologia da Alteridade; e membro do grupo de extensão
Universidade Sem Muros (USM-UFSC).

Raquel Fabiana Lopes Sparemberger


Graduada em Direito (UNIJUI); advogada inscrita na OAB/RS; Mestre em
Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Doutora em direito
(UFPR); Pós-Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC); professora da Graduação em Direito (FURG) e do
programa de pós-graduação em Direito e Justiça Social (FURG).

342
Rosane Leal da Silva
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Professora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa
Maria e do Centro Universitário Franciscano, ambos em Santa Maria (RS).
Líder do Grupo de Pesquisa Teoria Jurídica no Novo Milênio, da UNIFRA e
do Grupo de Pesquisa Núcleo de Direito Informacional, da UFSM. Integra,
na condição de pesquisadora, o Núcleo de Estudos Sociais e Jurídicos da
Criança e do Adolescente (NEJUSCA), na UFSC. Coordena o Núcleo de
Direito Informacional, do Curso de Direito da UFSM.

Sheila Stolz
Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande –
FADir/FURG, Rio Grande/RS. Mestre em Direito pela Universitat Pompeu
Fabra – UPF, Barcelona, Espanha. Doutoranda em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS. Coordenadora
Geral do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos Humanos –
NUPEDH/FURG.

343
INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES

Coleção Olhares e Reflexões sobre Direitos Humanos e Justiça Social


Vol. III – A juventude diante das estruturas materiais e
simbólicas da modernidade

Organizadores da coleção:
SHEILA STOLZ
CARLOS ALEXANDRE MICHAELLO MARQUES
CLARICE GONÇALVES PIRES MARQUES

Produção vinculada ao Núcleo de Pequisa e Extensão em Direitos Humanos – NUPEDH

Informações sobre os volumes anteriores:

Vol. I – Estado, Violência e Cultura na Sociedade contemporânea.


Organizadores: Sheila Stolz; Carlos Alexandre Michaello Marques;
Clarice Gonçalves Pires Marques

Vol. II – Cultura e Educação em Foco


Organizadores: Sheila Stolz; Carlos Alexandre Michaello Marques;
Clarice Gonçalves Pires Marques

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