Processos Criativos em Laboratorio

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Processos criativos em Laboratório: A produção de

intimidade no território disruptivo do tecnovívio

Martha de Mello Ribeiro

Para citar este artigo:

RIBEIRO, Marta de Mello. Processos criativos em


Laboratório: A produção de intimidade no território
disruptivo do tecnovívio. Urdimento – Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 42, dez. 2021.

DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103422021e0118

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Processos criativos em Laboratório: A produção de intimidade no território disruptivo do tecnovívio
Martha de Mello Ribeiro

Processos criativos em Laboratório:


A produção de intimidade no território disruptivo do tecnovívio

Martha de Mello Ribeiro1

Resumo

Os processos biográficos/autoficcionais nos ensinam a enfrentar os


dispositivos de controle biopolítico sobre nossa produção imaterial,
especialmente os afetos. Essas narrativas de intimidade são um convite
luminoso para a reinvenção radical do sujeito, para o refazimento do mapa
de afetos e enfrentamento das “realidades” intimidantes. Essa promessa de
intervenção e emancipação apontadas com as narrativas de intimidade ainda
podem funcionar em um território virtual? A decolonização,
desmercantilização e desprivatização dos corpos se realiza numa prática
artística à distância? Onde não é possível o convívio entre corpos diversos?
Como produzir corpos biopotentes no território disruptivo do tecnovívio? É o
que esse ensaio busca refletir.

Palavras-chave: Autoficção. Biopotência. Decolonização.

Creative processes in laboratory: the production of intimacy in the


disruptive territory of virtual gatherings

Abstract

Biographical/autofictional processes teach us to face the devices of


biopolitical control over our immaterial production, especially the affections.
These narratives of intimacy are a radiant invitation for the subject´s radical
reinvention, for the remake of the affection map and the confrontation of
intimidating “realities”. Can this promise of intervention and emancipation
pointed out with narratives of intimacy still work in a virtual territory? Can the
decolonization, demercantilization, and deprivatization of bodies be
performed in a remote artistic practice? Where is the interaction between
bodies impossible? How to produce bipotent bodies in the disruptive territory
of virtual gatherings? This is the reflection proposed by this article.

Keywords: Autofiction. Biopotency. Decolonization.

1
Pós-Doutorado em Teatro pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP - FAPESP, 2010). Estágio de
Pós-Doutorado na Università di Bologna (CAPES, 2015-2016). Doutora em Teoria e História Literária pela
UNICAMP, com período sanduiche na Università di Torino (2007). Professora Associada no Departamento de
Arte do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Docente no Programa
de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos. [email protected]
http://lattes.cnpq.br/1477601900273409 https://orcid.org/0000-0001-9272-1013

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Martha de Mello Ribeiro

Procesos creativos en laboratorio: la producción de intimidad en el


territorio disruptivo del tecnovivio

Resumen

Los procesos biográficos/de autoficción nos enseñan a enfrentarnos a los


dispositivos de control biopolítico sobre nuestra producción inmaterial,
especialmente los afectos. Estas narrativas de intimidad son una luminosa
invitación a la reinvención radical del sujeto, a la recomposición del mapa de
los afectos y al afrontamiento de las intimidatorias "realidades". ¿Puede esta
promesa de intervención y emancipación señalada con las narrativas de la
intimidad seguir funcionando en un territorio virtual? ¿La decolonización,
descommodificación y desprivatización de los cuerpos se lleva a cabo en una
práctica artística a larga distancia? ¿Dónde no es posible la convivencia entre
cuerpos diversos? ¿Cómo producir cuerpos biopotentes en el territorio
disruptivo del tecnovivio? Eso es lo que este ensayo busca reflejar.

Palabras clave: Auto-ficción. Biopotencia. Decolonización.

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“Para que eu seja utopia, basta que eu seja um corpo”


(Foucault, 2013, p.11)

“Se a perda da individualidade é de certa maneira imposta ao


homem moderno, o artista lhe oferece uma revanche e a
ocasião de encontrar-se” (Ligia Clark, 1965, p.05)

“Romper a linguagem para tocar na vida é fazer ou refazer o


teatro” (Artaud, 1993, p.10)

Nas pioneiras experiências teatrais dos anos sessenta (citando como


importantes nomes desta revolução, à qual podemos chamar como revolução do
corpo, o Living Theatre, Jerzy Grotowski e Tadeusz Kantor), ocorre uma frenética
redescoberta do corpo enquanto agente do acontecimento teatral, do
entendimento da cena enquanto inventora de um espaço de entrelaçamento, um
lugar do entre, que na justaposição de diferentes espaços e de uso de um tempo
singular como num rito de festa (tempo não linear de ações simultâneas), cria um
espaço outro: uma heterotopia, destinada a apagar todos os outros espaços; como
assim pensado por Michel Foucault (2013, p.20). Os encenadores e mestres
pedagogos do período compreendem o corpo como o lugar de partida e de
chegada para a construção de uma nova teatralidade e principalmente para um
novo pensamento sobre o teatro. Esses visionários homens do teatro,
revolucionários artesãos da cena dos anos sessenta, protagonizaram uma
profunda mudança sobre o pensamento da arte teatral: um percurso que
ultrapassa uma busca preferencialmente estética para uma busca
fundamentalmente ética, centrada principalmente no trabalho de preparação ou
training do ator. Uma via para o autoconhecimento, da arte enquanto veículo para
o auto-aprendizado. Esses reformadores da cena teatral têm em comum o fato
de privilegiar em seus experimentos cênicos o encontro entre ator e espectador,
ambos tomados como criadores da cena. É somente nos encontros que se produz
o acontecimento, isto é, o teatro, ou melhor, um corpo-teatro.

Entendo o teatro como território privilegiado para o acontecimento e a


criação de uma espacialidade heterotópica que instigue, em seu tensionamento
com o real, novas possibilidades de construção criativas no mundo. Que possa

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enfrentar, no estar junto dos corpos (pois teatro é corpo com), os agenciamentos
deste complexo sistema biopolítico e de representação contemporâneo. A palavra
corpo-teatro é usada para dar nome ao corpo plural e difuso que se projeta no
acontecimento teatral, instaurando, no território de sua singularidade, uma
experiência entre corpos diversos. A pergunta que nos fazemos é: O que esse
corpo, que é o teatro, tem a nos dizer ou ensinar sobre o isolamento social?
Entendendo o corpo-teatro como um campo de forças que se expande nos
encontros, uma cartografia de afetos que transforma a realidade visível,
apontamos que é no encontro, justamente, que se constitui uma potência
selvagem. Força capaz de derrubar instâncias de poder e de controle, pois
ninguém é capaz de prever o que acontece num encontro. E é justamente essa
imprevisibilidade que faz possível a realização de novos mundos, novas realidades.
Uma nova realidade que se forma com a ruptura da tríplice regulagem do sistema
representativo. O sistema de forças que controla o fazer, o dizer e o saber se
desfaz assim na alegria de um mundo-festa: um território complexo onde se forma
um comum feito de singularidades e contradições, onde se extrai uma verdade
ética capaz de subverter a ordem vigente. Corpos juntos são extremamente
subversivos, ocupações são subversivas, a escola é subversiva, o teatro é
subversivo, as manifestações são extremamente subversivas. Há nessas
aglomerações uma conjunção de corpos diversos que se juntam produzindo
experiência, memória, invenção e afetos que se imprimem nos corpos, refazendo
esses corpos.

A dimensão biológica da vida e sua permanência no plano das identidades


não promove bons encontros, pois apequenam a vida, sabemos disso, a vida quer
mais. Mas ainda assim nos espantamos quando lemos cartas de um doente
terminal narrando as poesias que leu ou que escreveu, ou mesmo quando nos
deparamos com o revolucionário que descreve seu passeio entre as flores de um
vale bucólico, entre uma gargalhada e outra. Como se a dimensão biológica ou
social da vida não permitisse com sua urgência certos desvios poéticos,
inconsequentes e mesmo inúteis. A vida clama por uma partilha do sensível mais
democrática, para falarmos junto à Rancière. Ser afetado é produzir um
movimento de distração: olhar de forma difusa, desviar-se da realidade e devanear

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outros de si, na invenção de corpos heterotópicos. A distração nos faz percorrer


pela superfície das coisas e criar novas invenções, no êxtase de ser absorvido pelo
tempo da experiência de um encontro. A experiência não tem uma utilidade
material, ela não serve para outra coisa além dela mesma. A experiência é o que
nos acontece e o que nos acomete no acontecimento de um ato que dura no
tempo. A experiência é totalmente inútil para a máquina de repetição do sistema
de representação. Assim como a alegria, ela vale por si só, sua força está em sua
capacidade de interromper esse sistema. Não é à toa que a alegria foi repelida
pelas grandes narrativas do passado. Um herói não podia ser alegre, sua seriedade
era valor instrumental para modelos identitários . Só os bobos da corte podiam se
alegrar ou pessoas do povo, sem “nenhum” valor. Shakespeare foi o rei da
distração! O rei dos bons encontros, escrevendo tragédias temperadas com fortes
gargalhadas. E o que faz a gargalhada se não nos colocar diante de nós mesmos?
Os exemplos são muitos, e pode ser que o leitor tenha esboçado um sorriso ao
lembrar de alguma distração que o tenha carregado para alhures das urgências
impostas pelo isolamento ou mesmo ter se distraído no exato momento da leitura
desse texto, interrompendo-o para fabricar alegremente seu próprio texto. O que
me daria muita alegria, mas peço licença para voltar ao ensaio.

“Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as
realidades das contradições?”2, escreve Ligia Clark a Mário Pedrosa em 1967.
Destaco essa interrogação da artista justamente por descrever de forma muito
aguda a metodologia que venho buscando para pensar e problematizar no campo
das artes/cena o corpo enquanto um campo de batalha de forças que o
atravessam, na busca de uma ética dos afetos decolonizadora. As escritas e os
diferentes usos dos corpos nas artes nos interessa na medida em que
problematiza o corpo enquanto potência de transmutação e refazimento, pois
todo corpo se faz com, daí seu poder de gênese. Esse com pode ser traduzido nas
relações materiais e imateriais, não orgânicas ou orgânicas de afectibilidade do
corpo, no poder do corpo em afetar e em ser afetado. Todo corpo produz
linguagem e um campo de virtualidades, de ressonâncias, campo que Antonin

2
Lygia Clark, carta a Mário Pedrosa, 1967; in Sonia Lins, Artes, 1996. S/p.(Grifo meu). Disponível em
http://www.sonialins.com.br/ pdf/artes.pdf. Acesso: 20 abr. 2021.

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Artaud nomeou como corpo sem órgãos, corpo que se faz duplo do corpo
orgânico. Todo corpo é uma multiplicidade, todo corpo é uma singularidade, todo
corpo é um dentro e um fora, todo corpo é também virtualidade ou um não-corpo
que cria conexões subterrâneas, ainda invisíveis, com as forças externas que se
dobram sobre ele. Certos experimentos artísticos, como por exemplo os Objetos
Relacionais da brasileira Lígia Clark3 criam paisagens (ambiências) que formam
fissuras no sistema de representação, colocando em relevo as forças de
espessamento dos corpos. Criando densidade e opacidade no compartilhamento
de vivências, esses experimentos modificam a posição do olhar ao inventar ou
possibilitar novas relações, novas percepções e consequentemente diferentes
afectibilidades, ampliando o que denomino como mapa de afetos do corpo. Essas
experiências tão diferentes se aproximam, ao nosso ver, em seu desejo de
convocar um tempo do olhar: um tempo que reivindica um esquecimento, uma
distração ou mesmo um esvaziamento de nossas marcas perceptivas, ao mesmo
tempo em que abrem passagens para outras conexões, mais “selvagens”. Essas
experiências convocam um olho não especialista e mais afetivo para a constituição
de um corpo autopoiético. Limpar o olho para convocar esse tempo do olhar, na
duração e intensidade das coisas ínfimas do mundo, é o que iremos pensar neste
ensaio, convocando como ideia o corpo-teatro.

Nas proposições do Laboratório4 busco diagnosticar os efeitos ou sintomas


de uma cartografia social, cultural e política nas marcas de linguagem que se
inscrevem sobre os corpos dos atores, no uso que fazem dos corpos e nas
relações empreendidas com outros corpos. Busco entender cada corpo como uma
teatralidade em curso, uma resposta mais ou menos criativa ou reativa ao sistema
econômico-político-social e cultural, e também como um corpo capaz de se
projetar no acontecimento de um corpo-teatro: um corpo que não é nem corpo
blindado e nem corpo fantasma, e sim um corpo-poroso, permeável e com alta
plasticidade e poder de gênese. Um corpo biopotente capaz de se reinventar,
traçando um novo mapa de afetos, potencializando e afirmando a vida na

3
Os Objetos Relacionais da (artista) propositora Lygia Clark é uma obra realizada entre 1976 a 1981, com
algumas incursões até 1984.
4
Suprimi o nome do Laboratório seguindo às normas de uma apresentação cega; essa referência será
acrescentada depois da avaliação dos pares.

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(re)invenção e no cuidado de si. A experimentação com os Objetos Relacionais de


Ligia aponta um possível caminho para retomarmos, ainda que de forma sempre
instável, a força vital do sujeito e da arte, amalgamados. É neste duplo experimento
- arte(vida) - que vislumbramos um terreno fértil para novas redes de criação que
possam tecer linhas de enfrentamento de um poder biopolítico. Fortalecendo
cartografias de afetos, com palavras-afeto que resistam aos agenciamentos e às
práticas coloniais, torna-se possível superar as marcas de rebaixamento impressas
nos corpos, submetidos à realidades intimidantes. O teatro, com seu pensamento
próprio, pode ser um dispositivo, uma condição metodológica para a
decolonização dos nossos corpos. Quando digo pensamento próprio, quero dizer
que o teatro pensa o mundo através da invenção, e na montagem/composição
das imagens experimenta essa invenção no mundo, produzindo acontecimento. O
teatro como acontecimento se faz na teatralidade (linguagem) e na
performatividade (exposição) que friccionadas produzem uma experiência real (o
acontecente). O teatro como um dispositivo para se experimentar relações na
simultaneidade de tempos heterogêneos (passado-futuro-presente), colhendo o
que de imprevisível e de inabitual pode ocorrer no acontecimento, para a abertura
de um campo de forças do contraditório próprios ao convívio.

Conviver é uma arte, uma arte do encontro e, mais especificamente, uma arte
do conflito. Entendo o conflito como um elemento fundamental para a construção
de uma sociedade plural, justamente por evitar falsas relações consensuais que
promoveriam o apagamento de modos diversos de existência, de produção
imaterial, simulando uma romântica ideia de apaziguamento. A afirmativa de uma
arte do conflito vai se desdobrar na pergunta: Como viver juntos, na complexidade
de saber-nos sujeitos fraturados? Dilema que poderia se desdobrar em muitos
outros pontos de interrogação, pois conviver é esse inefável dispositivo de
produção de emoções, de afetos e de partilhas que nos levam a tantas outras
perguntas que provavelmente não teriam respostas. Mas talvez, e essa é nossa
aposta, o teatro possa provocar uma experiência excepcional para enfrentarmos
a pergunta-dilema !Como viver juntos?”, em seus múltiplos tensionamentos ético-
políticos. E aqui cabe a pergunta, especialmente neste momento de isolamento
social: O que o teatro teria para nos dizer ou ensinar sobre o convívio? Enquanto

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território privilegiado para uma convivência experimental e autopoética, o teatro


nos ensina a sermos mais amorosos diante dos conflitos e mais interessados na
escuta política e ética desse estar juntos, para além de uma esfera de poder e
dominação. Queremos dizer também que pensar o conflito numa dimensão
poética/corpo-afeto (e não apenas retórico-discursiva) é escapar da armadilha
dogmática do saber, da autoridade do conceito, de um conhecimento discursivo
dominante e superior que se imponha aos saberes do corpo e sobre outras
epistemes. As emoções, afetos e sentimentos, assim como a arte, não se
fundamentam numa lógica racionalizante, binária, fundamentada entre isso ou
aquilo, trata-se de um saber que absorve simultaneamente isso e aquilo. O
exercício crítico também se faz no diálogo conflituoso entre discursos e
imaginários: são camadas de discursos sobrepostas, que respondem mais ou
menos a uma imaginário coletivo, cultural, e que jamais irão captar uma palavra
definitiva sobre a obra analisada. No melhor dos casos, o exercício crítico, em sua
tagarelice, traindo muitas vezes a própria obra, faz a obra falar, mas essa fala é
uma fala inventada, pois a crítica nada pode dizer sobre a verdade da obra.

Diante da importância do convívio para um fazer teatral emancipatório e


decolonial, compartilho antes de continuarmos nossas análises, um incômodo: a
percepção de uma certa euforia e de um entusiasmo rápido demais de alguns que
enxergam no isolamento social a possibilidade de instalação de uma nova forma
de expressão midiática, na qual a abolição do convívio traria como resultado
positivo um maior alcance do teatro, ultrapassando geografias e seu eterno
adversário, o tempo. O entusiasmo caminha numa linha que considero
problemática, especialmente em sua dimensão ético-politica, ao afirmar uma
espécie de vantagem nas plataformas virtuais, justificada pelo maior alcance
dessas redes. Ainda que seja salutar abrir novos espaços para novas formas de
comunicação e de expressão, nada contra a diversidade epistemológica, longe
disso, devemos ser cautelosos. Não esqueçamos que se tratam de duas
experiências muito distintas, já apontadas por Jorge Dubatti: a experiência do
convívio e a experiência do tecnovívio (essa que estamos tendo aqui nesse
momento de isolamento social pandêmico). Em minha análise, a irreflexão que
estabelece comparações entre territórios tão diferentes esfumaça o poder

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disruptivo do isolamento social sobre o corpo-teatro, se deixando envolver pela


sedução fria de se ver pulverizado em imagens, muito embora sejam imagens sem
corpo, quiçá sem alma5. Gostaria então de fazer um convite para pensarmos juntos
sobre o dispositivo teatro, na especificidade da experiência convivial.

Nesse momento de exceção no qual estamos vivendo, onde perdemos a


possibilidade do convívio por causa do vírus que ameaça a vida, convidamos o
leitor à pensar no poder de contágio do teatro. O teatro como peste, já nos disse
Artaud, território da experiência convivial que em nada se assemelha à
comunicação do tipo virótica, tecnológica que, como analisada por Baudrillard, se
trata de uma comunicação direta que transmite, sem mediação, uma informação
sobre o mundo. O poder de contágio do teatro não está em informar um mundo,
mas inventar novos possíveis mundos. Convido à pensar o corpo-teatro como um
corpo vivo, que convive com os organismos, que usa de suas estruturas para se
fazer visível, mas que delas se mantém emancipado. Corpo que participa
ativamente dessa pluralidade, dessa polifonia que é a cultura humana, mas
sempre em permanente transmutação. Um corpo nada disciplinado, diria mesmo
impertinente. Tantas vezes já se falou da morte do teatro, mas esse moribundo
há mais de 2 mil anos muda seu traçado e emerge transfigurado, dando uma
rasteira nas carpideiras, e se refaz vivo no luto do corpo que não lhe serve mais.
O berço do teatro sempre foi o luto. Um corpo enlutado - um corpo en-lutado!
Em luta. Um combate que se estabelece como força afirmativa da vida.
Absorvendo todos os fantasmas, todos os sintomas, esse corpo-teatro dança às
avessas no beiral de seu próprio túmulo. E não foi assim que nasceu o teatro? Na
diferença de um corpo que carrega em si um coro em luto? Instaurando o conflito?
O dissenso? Claro que neste momento tão desencantado em que vivemos, onde
nos deparamos todos os dias com uma ameaça real de morte, se faz necessário
valorizar a dimensão biológica da vida e nos isolar. A opção pela experiência do
convívio não nos parece ser uma escolha possível atualmente. E o teatro, como
arte do convívio, produtor de aglomerações, sofre um enorme impacto em sua
economia, fundamentalmente convivial.

5
Compreendendo o desgaste da palavra alma em nosso sistema de mundo, destaco que seu uso aqui não
busca retomar uma anacrônica divisão entre corpo e alma, ao contrario. O sentido que buscamos é
justamente pensar na impossibilidade de uma divisão entre alma/corpo/linguagem.

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Essa suspensão do convívio interrompe a obviedade do convívio. Tomando


como exemplo a minha mão esquerda, ferida por um corte profundo no dia 08 de
junho, confesso que até então, eu não pensava nessa mão. Ela não parecia fazer
falta, por sua obviedade. Desdenhamos a obviedade. E agora que eu tive que
interromper o uso dessa mão, eu vejo como ela me faz falta, a importância dessa
mão para mim. Então eu quero usar essa metáfora, para pensar sobre essa
privação da experiência do convívio, para pensar naquilo que o teatro fabrica de
singular e o que esse território disruptivo tecnovival (convivência em modo remoto)
traz de privação para a vida e o que traz de tensionamento para o corpo-teatro.
Muito embora o teatro não tenha meios para propor grandes mudanças num plano
macropolítico, sua espacialidade e economia pode revelar, no plano micropolítico,
certas dimensões da vida invisibilizadas por esse nosso sistema de pensamento,
construído por esferas de poder: vivemos num regime policial, com semblante de
democracia, no qual ideias ou corpos divergentes são apagados em nome de uma
segurança, do bom nome da paz, ou em prol de um status quo controlável,
funcional para o regime. O que experimento no teatro convivial é um buscar-se,
experimentar-se no outro que me transmuta e que me reinventa. Esse comum-
plural, que é o teatro, habita, neste momento, um território virtual. Questiono se
no mundo das redes sociais seria possível inventar uma cena que não ceda às
esferas maquínicas de poder; que possa promover um regime de sensibilidade e
afetividade, ao reverso do sistema de representação. Como analisado pelo filósofo
Jacques Rancière no livro"O destino das imagens, o regime de representação na
arte !não é aquele em que a arte tem por tarefa produzir semelhanças. É o regime
em que as semelhanças são submetidas à tríplice obrigação [do ver, do saber e
do fazer]” (Rancière, 2012, p.130). As análises de Rancière adensam nosso debate
na afirmação de que contrariamente ao regime de representação, no regime
estético tudo é “igualmente representável”. Esse igualmente representável foi!"a
derrocada do sistema representativo”, promovendo uma partilha mais
democrática do sensível, vai dizer Rancière (2012, p.131). Essa partilha democrática
se faz possível numa experiência remota?

Nos exercícios presenciais do Laboratório minha proposição inicial é o


reaprendizado da respiração - ponto de partida para todo e qualquer movimento

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e a ponte para o corpo ativar e liberar as potências adormecidas ou atrofiadas


pelas marcas de subjetivação coercitivas. O aprendizado da respiração é a via que
leva o ator a eliminar os automatismos e se colocar em contato com seu corpo,
com sua força vital. O corpo que respira fala em seu nome, ele se experimenta e
se potencializa. A respiração é a consciência do corpo-ato. Quando o ator entra no
modo de representação automático a respiração consciente o abandona e todo
seu corpo deixa de se conectar com outros corpos. Então, o que vemos em cena
são partes mortas ao lado de outras automatizadas: braços ausentes, olhar vago,
pernas frouxas e mãos rápidas (automáticas). O corpo que não respira ou é um
corpo reativo ou um corpo sem vontade própria. Os escritos de Antonin Artaud,
contidos no O teatro e seu duplo, especialmente no texto Um atletismo afetivo,
tratam fundamentalmente do corpo do ator e de sua relação com a respiração.
Artaud vai dizer que o ator possui dois corpos, o corpo material (biológico) e o
corpo virtual (imaterial). Ambos constituem o que denomino como mapa dos
afetos. A respiração é a constante passagem entre os corpos, de modo a
apresentar na cena um corpo vivo. Tudo que é vivo está em permanente
atualização, e essa atualização no teatro se faz no acontecimento de um
refazimento do corpo. O treinamento é a ferramenta para dar ao corpo seu
protagonismo: o corpo me habita, neste dentro e fora de mim que sou eu. Meu
corpo é um desconhecido familiar. Como dirá Foucault: está no corpo todas as
nossas revoluções, invenções e utopias. As magias, os encantamentos, os super
heróis, as fadas, os personagens de teatro são utopias do corpo, para a criação de
um corpo incorporal que transcenda sua carne; talvez uma estratégia de fuga para
aquilo que não dominamos e que nos escapa, nosso próprio corpo, esse real
inatingível.

O pensamento de Artaud é fundamentalmente um pensamento politico do


corpo. Pensamento que se constrói ao reverso do pensamento lógico
racionalizante. Sua ideia principal parte da ideia de um corpo sem órgãos com
poder de gênese, capaz de criar uma nova anatomia. Um corpo capaz de acusar,
com sua resplandecente vida, toda a ilusão do corpo-fantoche de deus: ![...] viver
é voltar a si mesmo, a todo segundo, com obstinação, e é o esforço que o homem
atual não quer mais fazer” (Artaud, Ouevres complètes, tomo XV, p.20). A

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necessidade de que fala Artaud - !voltar a si mesmo”- se conecta ao profundo


significado do training para a arte do ator, na busca da libertação deste corpo-
fantoche, corpo automatizado e escravo dos múltiplos agenciamentos que o
dominam. Voltar a si, como afirma Artaud, está na ordem do rigor e da necessidade
de uma experimentação cruel de si, que significa consciência e renúncia. Manter a
conexão com o corpo, pela via da respiração, é o meio para se evitar os
automatismos ou o caos generalizado, as convulsões sem sentido ou a abstração
das formas. É na respiração consciente que o ator transmuta seu corpo, na
conexão viva entre o corpo-matéria e o corpo-afeto, essa é toda a magia de que
fala Artaud e posteriormente Foucault (2013, p.11):

Não há necessidade de mágica nem do feérico, não há necessidade de


uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco
e transparente, visível e invisível, vida e coisa: para que eu seja utopia,
basta que eu seja um corpo. Todas aquelas utopias pelas quais eu
esquivava meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e
seu ponto primeiro de aplicação, encontravam seu lugar de origem no
meu próprio corpo.

A obra de Antonin Artaud é mesmo esse bisturi afiado que penetra no tecido
da realidade, desviando e subvertendo sua lógica. Esse bisturi é feito da verdade
ética do desejo e se faz na escuta do corpo e seus saberes. O trabalho de Antonin
Artaud, em sua disposição para se conectar ao corpo, um corpo refeito em uma
nova anatomia, traz para a arte do ator uma abertura fantástica. O ensaio Um
atletismo afetivo, escrito pelo poeta ao final de 1935, descreve o ator como um
“atleta do coração”, aquele que em seu processo de trabalho “exercita” não os
músculos, mas os afetos, isto é, a capacidade do corpo em afetar e em ser afetado.
Palavras que instigam o ator a se lançar numa busca experimental,
improvisacional, intuitiva e rigorosa de escuta do corpo, do que o corpo tem a nos
dizer e a nos ensinar, fora da experiência do sujeito, de uma palavra soprada e
introjetada. A obra viva de Artaud nos ajuda a pensar a arte da cena como território
processual para reativar essa escuta do corpo, uma escuta que a cultura ocidental,
com seus arranjos e dispositivos, tenta silenciar, concentrando e validando a
experiência na centralidade do sujeito, no aspecto perceptivo, sensorial da vida
concreta, escravizando o desejo em representações mortas. A ideia artaudiana de

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refazimento do corpo é, para nós, um possível território para se enfrentar os


múltiplos agenciamentos do desejo, de nossa força vital. A via para esse
enfrentamento é, sem duvida, a invenção. Buscamos lançar aqui a perspectiva de
que o corpo é, potencialmente, um agente capaz de esculpir afetos, de construir
uma rede de afecções outra que escape à “dobragem” das formas de poder em
nossa força vital. Esculpir afetos seria, em nosso entendimento, uma ação eficaz
e consciente (no sentido espinozista) impulsionada pela força vital contra à
incorporação passiva de forças externas. Esculpir afetos, ou refazer o corpo, é uma
ação criativa de combate aos processos maquínicos de subjetivação, reprodutores
de subjetividades pré-concebidas, adequadas a uma determinada função, lugar ou
comportamento. O corpo, como escultor de afetos, é um corpo que age! E aponta
a linha de fuga dessa complexa adequação do desejo à formas pré-concebidas:
um corpo com poder de gênese que se levanta contra à economia de um corpo
dócil.

A subjetivação seria, conforme esclarece José Gil, uma incorporação de


forças: “[…] entre um sistema institucional de poder e de saber e as forças do
homem livre estabelece-se uma relação, de onde resultará uma captura das
forças do indivíduo pelas forças do sistema” (Gil, 2003, p.23); o que se nomeia
como biopoder, literalmente poder sobre a vida. Claro que nem tudo será
absorvido pelo corpo, nem tudo lhe será permeável, mas algo se configura na fala
de Gil e de Artaud, que somadas se apresentam como de grande importância para
pensar as narrativas de intimidade como um dispositivo decolonizador. Algo
interessante se estabelece entre essas ideias, que lança a inevitável pergunta: qual
o poder do corpo diante dessas forças? E a pergunta inevitável surge, ou deveria
surgir: Quais emoções eu sinto diante de um outro corpo? E por quais razões?
Importante ressaltar, junto à Suely Rolnik (2018), que a resistência às
afectibilidades do corpo se dá em um sujeito blindado, colonizado e triste, incapaz
de escutar o alarme vital do corpo para agir afirmativamente diante da vida. A
reatividade é contrária à pulsão. E aqui estamos diante de dois tipos de
micropolítica do sujeito: a ativa e a reativa. A micropolítica do sujeito em processo
afirma a vida, em sua vital potência de transmutação, onde o sujeito se coloca em
obra, num trabalho de refazimento constante. Esse corpo vibrátil, biopotente

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supera os agenciamentos, os cálculos e a economia de uso dos corpos, justamente


por sua permeabilidade aos afetos, aos acontecimentos.

Entender o corpo como um campo de contradições e com força de gênese


se faz possível no ponto exato onde encontramos o teatro e no que existe entre
nós, no que vibra em e entre nós. Trazendo como inspiração os Objetos Relacionais
de Lygia Clark, observa-se que estes elementos são muito mais do que objetos,
são estruturas-afetivas, com tal força de afectibilidade que causam rasgaduras
nas realidades intimidantes, abrindo espaços para uma reinvenção ou melhor para
um ensaio de nós, cuidadoso. Toda relação potente é também uma invenção de
tempo, uma escuta-teatro, onde voltamos a nos aventurar. Os Objetos Relacionais
nos levam à um ensaio entre nós. Quando Grotowski (1992) diz que a maior
aventura é o ensaio6, se percebe que para o pedagogo teatral é justamente no
ensaio que a magia pode acontecer, é ali que pode ocorrer o corpo-teatro, o
acontecente. O ensaio é o que ainda não foi acordado, é o que ainda está em
gênese, é um movimento entre o perder-se e o encontrar-se, experimentação que
se põe em desacordo com o instituído. Este “não sei” próprio ao ensaio é o que
pode dar passagem ao corpo-bicho de Ligia ou à verdade de um corpo sem órgãos
que leva a uma transmutação do mapa de afetos, onde é possível superar o que
não nos serve mais, o que não nos cabe mais. No ensaio toda escrita é reescrita,
triturada, apagada, remodelada, devorada, cuspida, escarnada no acontecer do
ensaio. Toda palavra-escrita, no ensaio, se volta contra um autor, transformando-
se em palavras-afeto que reivindicam sua emancipação como palavras-bicho. Para
Suely Rolnik (1998), Lygia quer, com seus Objetos Relacionais, “resgatar a vida em
sua potência criadora, seja qual for o terreno onde se exerça tal potência”, e
completa, “Ele, homem, agora é o "bicho" e o diálogo é agora com ele mesmo, na
medida da sua organicidade e também na medida da magia que ele pode
emprestar de dentro dele mesmo”7.

E o que resta nesta operação entre corpos? Se nos é difícil dizer sobre o que
há, sabemos dizer o que não é. O que resta não é uma estrutura “copiável”, da

6
" os ensaios sempre foram a grande aventura”, dirá Grotowski em depoimento no vídeo Cinque sensi del
teatro, produzido pelo Workcenter em 1992. O vídeo integra meu acervo particular.
7
Disponível em: https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/estadodearte.pdf. Acesso em: 01
dez. 2020.

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ordem do disciplinar, é algo que se instaura na ordem do precário, do não


automatizado e não automatizável, é algo da dimensão do vivo. O que resta não é
capturável, por se fazer na singularidade do acontecimento, na volatilidade e
fluidez do agora. Rolnik (1998) identifica em Lygia o desejo de fazer de toda
existência uma obra de arte, tal visada busco com os residentes do Laboratório:
(1) no processo instável e volátil das narrativas biográficos/autoficcionais; (2) no
campo das afecções contraditórias; (3) nos corpos não domesticados dos não
atores. Ir ao encontro do outro, onde toda vida importa, é perguntar a cada um de
nós: O que existe entre nós? Mas também, qual é sua língua própria? O problema
singular que nos une? Aquilo que nos move e que nos afasta? Como se estabelece
essa relação convivial no teatro? Busco por uma língua/linguagem polifônica, no
movimento infinito de palavras-afeto que podem nos juntar em torno da busca
por uma verdade ética, no combate à violência biopolítica contemporânea. Abrir
passagem para o refazimento do mapa de afetos, novas dobraduras sobre os
processo de subjetivação, ativadas na relação dos corpos com e entre os corpos.
As narrativas de intimidade me aparecem disparadores para uma nova escritura,
cuidado e invenção de si, um rascunho rizomático desenhado sobre as marcas de
violência deixadas em nossos corpos.

As experiências biográficas/autoficcionais são um laboratório radical de


subjetividades: corpos inquietos, em desassossego na invenção de novas linhas,
cartografias e mapas de afeto. É na invenção de uma nova escritura sobre os
cortes profundos e marcas da violência deixadas em nossos corpos que podemos
decolonizar o pensamento e nos aventurar: !perder-se é um achar-se perigoso”,
nos diz Clarisse Linspector (1998, p.102). Habitar o inabitual e afirmar o poder da
vida como arte, enfrentando as forças que tentam expropriar e extorquir a vida, e
que introjetamos, é um convite para trabalharmo-nos. E a ferramenta aqui é o
dispositivo teatro. As narrativas de intimidade permitem e propõem esse espaço
de invenção radical de si, na dilatação e nas rasgaduras das últimas fronteiras
entre o real e a ficção, conformando em tal espaço memórias, documentos, afetos
e desejos como invenção e produção do corpo. Em minha hipótese, tal espaço se
coloca como estratégico para o enfrentamento micropolítico dos complexos
agenciamentos sofridos pelo corpo, na perversa manipulação do desejo, na tripla

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regulagem do ver, fazer e saber que replica um modelo hegemônico de orientação


de mundo. Proporcionando novos lugares de fala e promovendo encontros
afetivos "de verdade", no qual o ator lança mão, como estratégia de atuação, a
confissão, na tecitura entre o mundo e sua intimidade, acentua-se o olhar para a
geografia de corpos dissonantes num projeto ético-político-estético de um estar
junto. Falei mais acima sobre uma “verdade ética” que emerge nesse “juntamento"
de corpos. Aqui destaco uma fala do Comitê Invisível: “A linguagem, longe de servir
para descrever o mundo, ajuda-nos sobretudo a construir um. As verdades éticas
não são, assim, verdades sobre o Mundo, mas as verdades a partir das quais nós
nele permanecemos” e continua: “São verdades que nos ligam, a nós mesmos, ao
que nos rodeia e uns aos outros. Elas introduzem-nos de uma assentada numa
vida comum, a uma existência não separada, sem consideração pelos muros
ilusórios do nosso Eu” (Comitê Invisível, 2016, p.54).

Se Antígona enfrentou todo um país, se enfrentou seu soberano, o rei


Creonte, para enterrar seu irmão de forma digna, fazendo uma insurreição contra
uma lei estabelecida, foi porque ela estava ligada ao irmão, à cultura e às crenças
do mundo em que habitava. Guiada por essa verdade ética, Antígona enfrenta a
própria morte, revelando com seu gesto político essa existência não separada, a
pulsão vital de um corpo coletivo. Antígona, com seu gesto, faz muito mais do que
representar à ela mesma, não se trata de uma disputa familiar, particular e
subjetiva apenas. O gesto de Antígona é o levante de todo um corpo coletivo que
questiona a lei, a lógica de Creonte: uma lei que impõe uma vida que não merece
ser vivida. O gesto de Antígona é a revelação desse comum, da soberania de uma
verdade ética que se impõe contra toda estrutura de poder, contra uma ordem
que cria desordem no mundo comum. A verdade ética nos ligam, nos amalgama
em um corpo coletivo, somos muito mais do que esse temporário Eu que habita
um corpo físico e biológico. A lei de Creonte se ergueu contra o mundo e contra
uma verdade ética, e o mundo se voltou contra ele. Esse comum, potência de um
corpo coletivo, é a força que pode mudar a realidade imposta pelas forças externas
da lei. Essa talvez seja a maior contribuição do teatro ao mundo: descortinar as
verdades éticas que nos unem enquanto sujeitos fraturados, derrubando os muros
ilusórios que nos separam, produzindo intimidade entre nós. Mas esse ensaio

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busca também refletir sobre a possibilidade de construção de uma narrativa


íntima no território disruptivo do tecnovívio8. Vamos empreender tal tarefa
organizando um relato crítico sobre o vídeo!"Fala comigo!, uma autoficção de todo
mundo”9, realizado com colaboradores em moto remoto durante o isolamento
social (2020).

Nas etapas de criação do vídeo me questionei em todos os momentos se não


estaria espetacularizando um privilegiado isolamento social, dando voz a um
movimento de centralização narcísica do Eu, produzindo imagens destituídas de
mundo, de alteridade e, ainda pior, imagens apaziguadas de uma classe média
minoritária e favorecida. Minhas dúvidas me fizeram buscar, com esse coletivo de
classe média, em sua maioria branca e habitantes de territórios burgueses,
imagens reveladoras desse alheamento subjetivo narcísico. A angustia sofrida com
o isolamento, confessada nos encontros virtuais, me pareceu refletir uma
importante e óbvia falta, a experiência convivial. Mas de que tipo de convívio fomos
privados? Enquanto sujeitos fraturados que somos, sem uma verdade ética pela
qual lutar e pela qual nos unir, muitos se abismam ainda mais em si mesmos, na
busca de uma aparente melhor versão. O isolamento físico, forçado, me parece
acentuar um isolamento ainda maior, que responde a esse sentimento de não
pertencimento ao mundo, o que faz tudo à volta parecer ainda amais irreal, ou
mesmo um deserto. A reação imediata e irrefletida é o mergulho em uma profusão
de imagens selecionadas, manipuladas e artificiais do corpo, da casa, da voz,
imagens fraturadas em milhões de espelhos, alimentando um artificioso
sentimento de criação de mundo e de identidade. Mas qual mundo pensamos
estar criando nestes dispositivos remotos? E por qual mundo se está lamentando?
O titulo que dei ao experimento - “Fala comigo!” - responde à uma suplica, um
grito de quem escavou um deserto sobre seus próprios pés, e muito antes da
pandemia.

8
O termo tecnovívio é usado por Jorge Dubatti como dispositivo para pensar o teatro enquanto uma arte do
convívio. São duas experiências muito distintas, já apontadas pelo autor: a experiência do convívio e a
experiência do tecnovívio. Ver: Dubatti, 2016.
9
O vídeo se encontra disponível no YouTube. A supressão da referência ao canal, assim como o nome de seus
realizadores, segue as indicações da revista para uma avaliação cega. Tais informações serão acrescidas na
edição final do texto.

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Processos criativos em Laboratório: A produção de intimidade no território disruptivo do tecnovívio
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Observo neste momento de exceção, de isolamento social imposto, uma


repetição nos discursos de quase todos os participantes desse experimento
virtual: a falta melancólica das familiares estratégias ilusórias que simulam a
construção de um !coletivo”, de classe média, cimentado por muitos (não)
encontros quaisquer. Viver junto não é uma coisa fácil, mas também não
gostaríamos de viver sozinhos, isolados, pelo menos não a maioria de nós. E o
filosofo Schopenhauer já pensou muito antes desta pandemia que talvez sejamos
uma forma de porco-espinho. Sabemos que a solidão e o frio nos castiga, o que
nos leva invariavelmente a buscar o contato com outro corpo, para assim nos
aquecermos mutuamente. Estreitando nossa aproximação com o outro,
acreditamos idealmente que tal convívio íntimo nos aqueceria o corpo e a alma e
que finalmente viver juntos nos libertaria do frio e da solidão. Mas infelizmente
não é assim que acontece. Essa mesma proximidade ao invés de nos alegrar
permanentemente, passa a nos incomodar e até pode nos causar danos, pelos
espinhos, nossos e do outro. Assim, nos afastamos e nos isolamos novamente, até
que chegue outra vez o frio ou a solidão e tentamos de novo voltar ao convívio,
repetindo o mesmo resultado.

Como habitar um mundo real, se ainda gostaríamos de acreditar que o


melhor dos mundos é aquele onde não se estabelece conflitos? Como sair do
espetáculo narcísico se permanecemos fechados em nosso repertório, entre
ilusões e semelhanças sem devir? Para criar e trabalhar passagens entre nós,
fabricando rasgaduras nessa realidade ilusória e deserta de real, é necessário uma
boa dose de coragem para se arriscar para fora da caverna. Sair do invólucro social,
econômico e politico ilusório, alienante e arriscar-se numa experiência do fora de
si é o que me parecia o mais complexo a se conseguir nessa experiência remota.
E reverberando Suely Rolnik (2018, p.25): !o regime colonial-capitalístico exerce
essa sua sedução perversa sobre o desejo cada vez mais violenta e refinadamente,
levando-o a se entregar ainda mais gozosamente ao abuso”. E o abuso é o poder
dos agenciamentos sobre nossos afetos e desejos, impedindo a criação de novas
formas de realidade, impedindo o olhar cruel sobre nós, dessa necessária e
rigorosa crueldade política e poética sobre nós mesmos, que Artaud convocou em

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palavras supliciadas. O vídeo ganha então um propósito: ser um convite à


crueldade, na aceitação de nossa infinita ignorância sobre nós, sobre o outro e
sobre essa ilusão de mundo, à partir da montagem de imagens complacentes que
refletem uma micropolítica colonial dos corpos e do pensamento, projetada em
versões líquidas de nós

“Fala comigo! uma autoficção de todo mundo”10 é um experimento em vídeo


que se desenvolveu desconstruindo modelos de vídeo-criação que se fazem com
roteiros pré-determinados. À partir de ações diversas que direcionei à cada grupo
(4 no total) ou a cada um dos indivíduos participantes, solicitei aos colaboradores
que as executassem em seu espaço de isolamento e que as registrassem em
vídeo, usando a câmera de seus celulares ou que gravassem os encontros
coletivos, organizados na plataforma Google Meet ou no Instagram. Montei cada
vídeo (5 tesears e 1 vídeo completo) usando as cenas auto-filmadas de forma
livre, muitas vezes descontextualizando o que foi pedido ou apresentado,
realizando novas combinações e fusões, intervindo de forma violenta sobre as
imagens. Amalgamei as ações de forma a construir um roteiro posterior ao arquivo
das imagens captadas, buscando empregar uma voz narrativa (minha própria voz)
que tecesse essas “atrações” mantendo a fragmentação das imagens, inventando
com a narrativa uma história de amor interrompida. A narrativa de um suposto
desencontro amoroso se colava assim a uma conjunção de imagens e arquivos
fragmentados sem estabelecer um vínculo descritivo entre palavra e imagem, em
ressonância ao triste jogo da vida que se faz nas redes sociais.

Como exemplo dos exercícios/ações propostas, citamos: !Movimentos

aleatórios para contatos autoficcionais”11; !Contato com a lua”; !Sons corporais e

cotidianos”; !Janelas e portas”; !Pergaminho do ovo”; !Lives”; !Encontros e cuidados

de si”; !histórias inventadas”; etc. Cada exercício desse provocava um turbilhão de


imagens e sons enviados pelos colaboradores, cada qual oferecendo um ponto de
vista singular e diverso sobre os exercícios e ações pedidas, aumentando ainda

10
Primeira produção do Laboratório criada e produzida em modo remoto, contando com artistas de diversas
partes do Brasil.
11
Esse exercício se encontra registrado em vídeo na plataforma Youtube.

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mais a complexidade da montagem. Optei por realizar pequenos vídeos (teasers),


um de cada grupo, como forma de melhor organizar o plano final de montagem.
Em !Fala comigo!”, o processo se organizou em três módulos de criação/ação
afetivas e cognitivas, no espaço interior da casa de cada um dos colaboradores.
Ações que, todas elas, apontavam para um desejo de reconexão com o outro, com
o mundo e com a natureza e, principalmente, uma busca por si, entre tantas
imagens e versões virtuais. Montei, pedaço por pedaço, selecionando pequenos
intervalos (anotados num papel, antes de passar para o operador de edição)
diversos fragmentos das cenas fílmicas que os colaboradores foram produzindo,
instigados pelos exercícios que propus ao longo dos encontros. Os módulos de
criação assim se dividiram: 1. casa organismo/imagens, sons e cores; 2. Afetos de
isolamento e Narrativas ficcionais/romance, traição, reconhecimento, assassinato
do narrador; 3. Montagem dos vídeos/introdução da voz narrativa.

Cada teaser que montei me deixei guiar pela percepção do mapa de afeto
preponderante de cada grupo. Assim, cada um deles recebeu um subtítulo,
correspondente ao agrupamento afetivo e narrativo que escolhi destacar,
contaminada pelas imagens e conversas que tínhamos sobre o isolamento, nossas
fragilidades, os diferentes atravessamentos das múltiplas e desencontradas
emoções diante da ameaça do vírus e das incertezas sentidas e provadas, mas
principalmente o enfrentamento da solidão. São eles: teaser 1 (lua); teaser 2 (
janelas); teaser 3 (desencontros); teaser 4 (mentiras). Cada subtítulo desse buscou
entrever os afetos que se cruzavam nesse percurso autoficcional de todo mundo.
No território disruptivo do tecnovívio, com nossos corpos fisicamente separados,
buscamos, nestes 5 meses de processo, forjar alianças entre nós: fomos
conhecidos, amigos íntimos, desconhecidos, rivais e amantes nessa rede de
imagens simuladas de nós. O título do vídeo - !Fala comigo!” - nos diz sobre tantas
vozes anônimas que numa garrafa de náufrago (a tela/janela) buscam encontrar
outras vozes para se juntar e atravessar esse oceano de simulacros de um mundo
em ilusão e convulsão.

O principal dispositivo que usei para pensar a montagem do vídeo


experimental foi o conceito de !montagem das atrações” de Eisenstein, associado
à exercícios ficcionais remotos e ações que propus aos colaboradores durante o

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processo, que durou aproximadamente cinco meses12. Na montagem dos vídeos


parti de uma construção experimental baseada no conceito de! "sinfonia de
formas” de Eisenstein, quadros autônomos sobrepostos e simultâneos. Minha
intenção foi, neste território do tecnovívio, de composição e de artifícios, contrapor
o experimento de montagem à realidade do isolamento, simulando encontros
afetivos virtuais e autoficcionais. A montagem funciona como uma zona/território
que, na composição das imagens, se faz reveladora e transformadora de afetos,
de emoções: uma composição na qual marulham desejos e sintomas, que
provocam novas e diversas percepções e emoções em quem assiste. Se um dos
sintomas mais significativos dos processos colonizadores e dos múltiplos
agenciamentos que sofremos desde o nosso nascimento é a obediência à uma
voz exterior que, aparentemente, detém um saber que não temos, como
provocação, encarnei essa voz. Passei a solicitar aos colaboradores ações que
tinham data e hora para serem realizadas, invadindo e interferindo na rotina diária
de cada um deles mais enfaticamente. Claro que tudo foi sentido como um jogo,
excitante e sedutor.

Mas se por um lado serviu como dispositivo para incrementar os exercícios,


e provocar a execução das atividades, por outro lado revelou o quanto estamos
disponíveis para continuarmos reféns, gozosamente servis ao desejo do outro e
confortavelmente alienados de nós. E comecei a solicitar de forma mais firme as
ações, inclusive com vídeos de mim mesma solicitando sua execução. A partir
deste momento algo absolutamente interessante ocorreu: foi quando os
colaboradores começaram a se juntar mais, a criar um organismo provisório entre
eles. Mesmo sem nenhum deles dizer uma palavra, eu já sabia que eu era uma
espécie de !divindade” (ou "inimiga”) que eles precisavam responder
coletivamente. Mas não estamos falando aqui da construção de uma verdade ética
que se impõe contra uma lei artificialmente inventada como dispositivo de
obediência e sim na revelação de um estado reativo do desejo, que ao se ver
desafiado, dissociado de sua posição narcísica, se deixa guiar pela bússola do

12
Todo o processo de “Fala comigo! uma autoficção de todo mundo” se fez remotamente. Durante cinco
meses (março à agosto de 2020). Na terceira etapa de criação, anterior à produção do vídeo final, montei 4
teasers, organizando os colaboradores em equipes, para uma maior produção de intimidade entre eles. Cada
equipe se fez com um líder, pesquisadores do Laboratório.

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poder. Artifícios para a culpabilidade do outro e do gozo da autocomplacência,


pelos quais se aceita o papel de reféns, e a profunda alienação de si. Solicitei então
a morte dessa voz, minha morte, e foi surpreendente como essa se deu: um
banquete antropofágico no qual eu era a carne a ser devorada. Os colaboradores
com essa manobra me devolveram a alegria, dissipando um dos meus maiores
temores ao dirigir e montar esse vídeo: me deixar seduzir pela voz autoritária e
embrutecedora, ao revés de tudo que busco com o Laboratório e nos processos
de treinamento dos atores.

Mas seria possível ter uma experiência autoficcional libertadora e reveladora


de um !comum" (ou de uma verdade ética) neste território do tecnovívio?

Ter uma experiência coletiva entre lugares (atores, espectadores, técnicos) é


o que separa o convívio do tecnovívio. Gosto de pensar o tecnovívio como uma
espécie de impressão narcísica do ponto onde chegou (ou parou) nossa
humanidade ou cultura, sem, no entanto, ser capaz de uma real experiência de
criação. A criação sempre é da ordem de um tensionamento entre o singular e o
coletivo ou entre o estranho e o familiar. O tecnovívio não nos ensina o convívio,
essa difícil arte do conflito, reveladora de nossa vulnerabilidade diante das forças
que nos atravessam e que, por isso mesmo, se constrói como um campo próprio
para a transmutação. Nossa fragilidade diante das forças que se dobram sobre
nós, traz desconforto, mas esse desconforto é o sinal que juntos estamos em
movimento, e o movimento é criação de vida, é o que se opõe à conservação
narcísica identitária. O tecnovívio é um registro identitário do ator, um documento
informativo, um arquivo final e fechado de nós mesmos que podemos consultar a
qualquer momento, sem nenhum enfrentamento com a fragilidade, o desconforto,
a perplexidade ou mesmo a morte. Como não há morte também não há luto no
tecnovívio, não há espanto, não há trabalho inventivo. No território do convívio,
corpos se amalgamam numa zona conflituosa de forças, há a produção de um
terceiro corpo, plural e inefável. Em nossa singularidade fazemos parte deste coro
de enlutados e no luto afirmamos a potência da vida.

O modo identitário é um grande aliado dos organismos de poder e suas


articulações biopoliticas, de controle regulador da sociedade. O sistema absorve
como modelo a identidade de uma figura com algum poder de sedução para

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desviar o desejo legitimo de nossa força vital e simular desejos-função. Caricaturas


para impor um tipo de funcionamento ao desejo, cafetinado pelos processos
civilizatórios, disciplinares e de uma biopolítica que nos impõe uma individualidade
determinada. Essa identidade produz uma pseudo subjetividade, especificamente
criada para a sujeição obediente, que se impõe como modelo de uma desejada
subjetividade perdida. Contra o modo identitário, de subjetividades
autocomplacentes e vazias, Rolnik (1996, p.10) lança como arma de guerra o
inconsciente maquínico-antropofágico: “força de resistência política à regra geral
da homogeneização, engrenagem imprescindível do sistema em que vivemos”.
Todo organismo resiste à invenção. A diferenciação será sempre uma força, uma
luta. A invenção é uma das dimensões da vida, diria que se trata da própria
potência vital. Invenção e vida não estão em contradição, ao contrário. Assim como
não é possível arrancar todos os ossos de nossa carne e continuarmos de pé,
também não é possível arrancar a invenção da vida. A invenção são os ossos da
vida: laço inexorável da vida com a invenção, aparência cheia de intensidades reais.

Com as ações “histórias inventadas” , nas quais cada grupo tinha como meta
inventar uma fábula, busquei ativar certos mecanismos comuns à construção do
dramático, mecanismos de valores morais estabelecidos, para que de alguma
forma ocorresse algum levante ético entre os colaboradores. Pedi a cada grupo
que inventasse romances, traições, reconhecimentos e personagens entre eles,
chegando ao assassinato do narrador, que sou eu. Com esse dispositivo pensei em
“burlar” a ilusão narcísica de um eu soberano, produtor absoluto de imagens de si,
totêmicas, dos atores e de mim mesma (em minha violência no uso das imagens).
O experimento ficcional, sem que os colaboradores soubessem, buscava com a
invenção de personagens morais, o levante de novas subjetividades e a
desconstrução das certezas morais que tendem a conservar a realidade, a
existência. Mas não creio ter atingido o objetivo em sua plenitude, qual seja, a
criação autoficcional como potência para o refazimento do corpo e revelação de
uma verdade ética, um comum que possa nos juntar. Foi fácil para os
colaboradores caírem na armadilha das representações e de suas leis morais.
Ainda que o Banquete antropofágico tenha mostrado um caminho possível,

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justamente por sua ousadia, ainda assim foi uma construção mental, articulada,
artificial, incapaz de criar vida.

A pergunta que me fiz, precisa de pelo menos uma tentativa de resposta:


“Mas é realmente possível ter uma experiência autoficcional libertadora e
reveladora de um “comum" neste território do tecnovívio?” Não conseguimos
encontrar uma resposta definitiva para a pergunta, apenas podemos falar dessa
nossa primeira experiência. Sem nenhuma dúvida sinto um incômodo diante deste
território disruptivo ao fazer teatral (que entendo como a arte do convívio) e aos
processos de experimentação de si que conduzo no Laboratório, justamente por
não ser possível a presença real do corpo. No território do tecnovívio, como esse
das redes sociais e dos aplicativos (que utilizamos em todo o processo de
experimentação), não há um conflito real, não há presença, não há alteridade ou
uma singularidade outra que possa nos atravessar, só existem versões
artificialmente “melhoradas". Consequentemente, não acontece uma real
conscientização do ator de seu mapa de afetos e menos ainda processos
decolonizadores. O lugar da fala se estabelece na hipertrofia de um Eu narcísico
tagarela, que fala para si mesmo, produzindo imagens de si para si mesmo, ou
seja, não se estabelece o diálogo conflituoso transformador, não se acessa a via
para uma experiência do estranho-familiar. Com essa minha experiência no
território do tecnovívio, afirmo o espelhamento narcísico, identitário, incapaz de
atingir as camadas e dobras de nossos processos de subjetivação, ou seja, nosso
mapa de afetos, impossibilitando qualquer criação de uma nova vida, transmutada
com a potência da revelação de uma verdade ética.

Referências

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

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Recebido em: 07/06/2021


Aprovado em: 25/09/2021

Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC


Programa de Pós-Graduação em Teatro – PPGT
Centro de Arte – CEART
Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas
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