Processos Criativos em Laboratorio
Processos Criativos em Laboratorio
Processos Criativos em Laboratorio
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103422021e0118
1
Processos criativos em Laboratório: A produção de intimidade no território disruptivo do tecnovívio
Martha de Mello Ribeiro
Resumo
Abstract
1
Pós-Doutorado em Teatro pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP - FAPESP, 2010). Estágio de
Pós-Doutorado na Università di Bologna (CAPES, 2015-2016). Doutora em Teoria e História Literária pela
UNICAMP, com período sanduiche na Università di Torino (2007). Professora Associada no Departamento de
Arte do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Docente no Programa
de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos. [email protected]
http://lattes.cnpq.br/1477601900273409 https://orcid.org/0000-0001-9272-1013
Resumen
enfrentar, no estar junto dos corpos (pois teatro é corpo com), os agenciamentos
deste complexo sistema biopolítico e de representação contemporâneo. A palavra
corpo-teatro é usada para dar nome ao corpo plural e difuso que se projeta no
acontecimento teatral, instaurando, no território de sua singularidade, uma
experiência entre corpos diversos. A pergunta que nos fazemos é: O que esse
corpo, que é o teatro, tem a nos dizer ou ensinar sobre o isolamento social?
Entendendo o corpo-teatro como um campo de forças que se expande nos
encontros, uma cartografia de afetos que transforma a realidade visível,
apontamos que é no encontro, justamente, que se constitui uma potência
selvagem. Força capaz de derrubar instâncias de poder e de controle, pois
ninguém é capaz de prever o que acontece num encontro. E é justamente essa
imprevisibilidade que faz possível a realização de novos mundos, novas realidades.
Uma nova realidade que se forma com a ruptura da tríplice regulagem do sistema
representativo. O sistema de forças que controla o fazer, o dizer e o saber se
desfaz assim na alegria de um mundo-festa: um território complexo onde se forma
um comum feito de singularidades e contradições, onde se extrai uma verdade
ética capaz de subverter a ordem vigente. Corpos juntos são extremamente
subversivos, ocupações são subversivas, a escola é subversiva, o teatro é
subversivo, as manifestações são extremamente subversivas. Há nessas
aglomerações uma conjunção de corpos diversos que se juntam produzindo
experiência, memória, invenção e afetos que se imprimem nos corpos, refazendo
esses corpos.
“Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as
realidades das contradições?”2, escreve Ligia Clark a Mário Pedrosa em 1967.
Destaco essa interrogação da artista justamente por descrever de forma muito
aguda a metodologia que venho buscando para pensar e problematizar no campo
das artes/cena o corpo enquanto um campo de batalha de forças que o
atravessam, na busca de uma ética dos afetos decolonizadora. As escritas e os
diferentes usos dos corpos nas artes nos interessa na medida em que
problematiza o corpo enquanto potência de transmutação e refazimento, pois
todo corpo se faz com, daí seu poder de gênese. Esse com pode ser traduzido nas
relações materiais e imateriais, não orgânicas ou orgânicas de afectibilidade do
corpo, no poder do corpo em afetar e em ser afetado. Todo corpo produz
linguagem e um campo de virtualidades, de ressonâncias, campo que Antonin
2
Lygia Clark, carta a Mário Pedrosa, 1967; in Sonia Lins, Artes, 1996. S/p.(Grifo meu). Disponível em
http://www.sonialins.com.br/ pdf/artes.pdf. Acesso: 20 abr. 2021.
Artaud nomeou como corpo sem órgãos, corpo que se faz duplo do corpo
orgânico. Todo corpo é uma multiplicidade, todo corpo é uma singularidade, todo
corpo é um dentro e um fora, todo corpo é também virtualidade ou um não-corpo
que cria conexões subterrâneas, ainda invisíveis, com as forças externas que se
dobram sobre ele. Certos experimentos artísticos, como por exemplo os Objetos
Relacionais da brasileira Lígia Clark3 criam paisagens (ambiências) que formam
fissuras no sistema de representação, colocando em relevo as forças de
espessamento dos corpos. Criando densidade e opacidade no compartilhamento
de vivências, esses experimentos modificam a posição do olhar ao inventar ou
possibilitar novas relações, novas percepções e consequentemente diferentes
afectibilidades, ampliando o que denomino como mapa de afetos do corpo. Essas
experiências tão diferentes se aproximam, ao nosso ver, em seu desejo de
convocar um tempo do olhar: um tempo que reivindica um esquecimento, uma
distração ou mesmo um esvaziamento de nossas marcas perceptivas, ao mesmo
tempo em que abrem passagens para outras conexões, mais “selvagens”. Essas
experiências convocam um olho não especialista e mais afetivo para a constituição
de um corpo autopoiético. Limpar o olho para convocar esse tempo do olhar, na
duração e intensidade das coisas ínfimas do mundo, é o que iremos pensar neste
ensaio, convocando como ideia o corpo-teatro.
3
Os Objetos Relacionais da (artista) propositora Lygia Clark é uma obra realizada entre 1976 a 1981, com
algumas incursões até 1984.
4
Suprimi o nome do Laboratório seguindo às normas de uma apresentação cega; essa referência será
acrescentada depois da avaliação dos pares.
Conviver é uma arte, uma arte do encontro e, mais especificamente, uma arte
do conflito. Entendo o conflito como um elemento fundamental para a construção
de uma sociedade plural, justamente por evitar falsas relações consensuais que
promoveriam o apagamento de modos diversos de existência, de produção
imaterial, simulando uma romântica ideia de apaziguamento. A afirmativa de uma
arte do conflito vai se desdobrar na pergunta: Como viver juntos, na complexidade
de saber-nos sujeitos fraturados? Dilema que poderia se desdobrar em muitos
outros pontos de interrogação, pois conviver é esse inefável dispositivo de
produção de emoções, de afetos e de partilhas que nos levam a tantas outras
perguntas que provavelmente não teriam respostas. Mas talvez, e essa é nossa
aposta, o teatro possa provocar uma experiência excepcional para enfrentarmos
a pergunta-dilema !Como viver juntos?”, em seus múltiplos tensionamentos ético-
políticos. E aqui cabe a pergunta, especialmente neste momento de isolamento
social: O que o teatro teria para nos dizer ou ensinar sobre o convívio? Enquanto
5
Compreendendo o desgaste da palavra alma em nosso sistema de mundo, destaco que seu uso aqui não
busca retomar uma anacrônica divisão entre corpo e alma, ao contrario. O sentido que buscamos é
justamente pensar na impossibilidade de uma divisão entre alma/corpo/linguagem.
A obra de Antonin Artaud é mesmo esse bisturi afiado que penetra no tecido
da realidade, desviando e subvertendo sua lógica. Esse bisturi é feito da verdade
ética do desejo e se faz na escuta do corpo e seus saberes. O trabalho de Antonin
Artaud, em sua disposição para se conectar ao corpo, um corpo refeito em uma
nova anatomia, traz para a arte do ator uma abertura fantástica. O ensaio Um
atletismo afetivo, escrito pelo poeta ao final de 1935, descreve o ator como um
“atleta do coração”, aquele que em seu processo de trabalho “exercita” não os
músculos, mas os afetos, isto é, a capacidade do corpo em afetar e em ser afetado.
Palavras que instigam o ator a se lançar numa busca experimental,
improvisacional, intuitiva e rigorosa de escuta do corpo, do que o corpo tem a nos
dizer e a nos ensinar, fora da experiência do sujeito, de uma palavra soprada e
introjetada. A obra viva de Artaud nos ajuda a pensar a arte da cena como território
processual para reativar essa escuta do corpo, uma escuta que a cultura ocidental,
com seus arranjos e dispositivos, tenta silenciar, concentrando e validando a
experiência na centralidade do sujeito, no aspecto perceptivo, sensorial da vida
concreta, escravizando o desejo em representações mortas. A ideia artaudiana de
E o que resta nesta operação entre corpos? Se nos é difícil dizer sobre o que
há, sabemos dizer o que não é. O que resta não é uma estrutura “copiável”, da
6
" os ensaios sempre foram a grande aventura”, dirá Grotowski em depoimento no vídeo Cinque sensi del
teatro, produzido pelo Workcenter em 1992. O vídeo integra meu acervo particular.
7
Disponível em: https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/estadodearte.pdf. Acesso em: 01
dez. 2020.
8
O termo tecnovívio é usado por Jorge Dubatti como dispositivo para pensar o teatro enquanto uma arte do
convívio. São duas experiências muito distintas, já apontadas pelo autor: a experiência do convívio e a
experiência do tecnovívio. Ver: Dubatti, 2016.
9
O vídeo se encontra disponível no YouTube. A supressão da referência ao canal, assim como o nome de seus
realizadores, segue as indicações da revista para uma avaliação cega. Tais informações serão acrescidas na
edição final do texto.
10
Primeira produção do Laboratório criada e produzida em modo remoto, contando com artistas de diversas
partes do Brasil.
11
Esse exercício se encontra registrado em vídeo na plataforma Youtube.
Cada teaser que montei me deixei guiar pela percepção do mapa de afeto
preponderante de cada grupo. Assim, cada um deles recebeu um subtítulo,
correspondente ao agrupamento afetivo e narrativo que escolhi destacar,
contaminada pelas imagens e conversas que tínhamos sobre o isolamento, nossas
fragilidades, os diferentes atravessamentos das múltiplas e desencontradas
emoções diante da ameaça do vírus e das incertezas sentidas e provadas, mas
principalmente o enfrentamento da solidão. São eles: teaser 1 (lua); teaser 2 (
janelas); teaser 3 (desencontros); teaser 4 (mentiras). Cada subtítulo desse buscou
entrever os afetos que se cruzavam nesse percurso autoficcional de todo mundo.
No território disruptivo do tecnovívio, com nossos corpos fisicamente separados,
buscamos, nestes 5 meses de processo, forjar alianças entre nós: fomos
conhecidos, amigos íntimos, desconhecidos, rivais e amantes nessa rede de
imagens simuladas de nós. O título do vídeo - !Fala comigo!” - nos diz sobre tantas
vozes anônimas que numa garrafa de náufrago (a tela/janela) buscam encontrar
outras vozes para se juntar e atravessar esse oceano de simulacros de um mundo
em ilusão e convulsão.
12
Todo o processo de “Fala comigo! uma autoficção de todo mundo” se fez remotamente. Durante cinco
meses (março à agosto de 2020). Na terceira etapa de criação, anterior à produção do vídeo final, montei 4
teasers, organizando os colaboradores em equipes, para uma maior produção de intimidade entre eles. Cada
equipe se fez com um líder, pesquisadores do Laboratório.
Com as ações “histórias inventadas” , nas quais cada grupo tinha como meta
inventar uma fábula, busquei ativar certos mecanismos comuns à construção do
dramático, mecanismos de valores morais estabelecidos, para que de alguma
forma ocorresse algum levante ético entre os colaboradores. Pedi a cada grupo
que inventasse romances, traições, reconhecimentos e personagens entre eles,
chegando ao assassinato do narrador, que sou eu. Com esse dispositivo pensei em
“burlar” a ilusão narcísica de um eu soberano, produtor absoluto de imagens de si,
totêmicas, dos atores e de mim mesma (em minha violência no uso das imagens).
O experimento ficcional, sem que os colaboradores soubessem, buscava com a
invenção de personagens morais, o levante de novas subjetividades e a
desconstrução das certezas morais que tendem a conservar a realidade, a
existência. Mas não creio ter atingido o objetivo em sua plenitude, qual seja, a
criação autoficcional como potência para o refazimento do corpo e revelação de
uma verdade ética, um comum que possa nos juntar. Foi fácil para os
colaboradores caírem na armadilha das representações e de suas leis morais.
Ainda que o Banquete antropofágico tenha mostrado um caminho possível,
justamente por sua ousadia, ainda assim foi uma construção mental, articulada,
artificial, incapaz de criar vida.
Referências
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
ARTAUD, Antonin. Ouevres complètes, tomo XV. Cahiers de Rodez. Paris: Gallimard,
1981.
BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
COMITÊ INVISÍVEL. Aos nossos amigos. Crise e Insurreição. São Paulo: n-1 edições,
2016.
CORNÁGO, Óscar. Biodrama: Sobre el teatro de la vida y la vida del teatro. Latin
America Theatre Review: Kansas, v.39, n.01, p.05-28, 2005. Disponível em:
https://journals.ku.edu/latr/article/view/1515. Acesso em: 10 jan. 2019.
DUBATTI, Jorge. O teatro dos mortos, introdução a uma filosofia do teatro. São
Paulo: SESC, 2016.
FERAL, Josette. Teatro, teoria y páctica: más allá de las fronteras. Galerna: Buenos
Aires, 2004.
GIL, José. O Corpo Paradoxal. In_ Movimento total. Lisboa: Relógio D’água: 2001.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
PELBART, Peter Pál. Biopolítica. Sala Preta. São Paulo: USP, V. 7, s/n, p.57-66, 2007.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57320.
Acesso em: 10 abr. 2020
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São
Paulo: n-1 edições, 2018.
ROLNIK, Suely. Por um estado de arte a atualidade de Lygia Clark. In: Núcleo
Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos, São Paulo: Fundação Bienal de
São Paulo, 1998.
ROLNIK, Suely. O corpo vibrátil de Lygia Clark. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo.
São Paulo. Abril, 2000.