Kalsched Trauma e Alma Introducao1
Kalsched Trauma e Alma Introducao1
Kalsched Trauma e Alma Introducao1
De pé no deck de nossa casa em Newfoundland ao pôr do sol em uma noite de verão, estou
suspenso entre dois mundos. Atrás de mim, através da porta de tela, posso ouvir o locutor da
televisão canadense descrevendo o último atentado suicida em Kandahar Mghanistan - 29 mortos,
50 feridos, sangue e partes de corpos colados nas paredes ao redor, o lamento das mulheres, a
indignação dos homens, os vagos desesperados olhos de crianças trauma inimaginável. Mal
aguento ouvir.
Diante de mim, ao sul, está o selvagem oceano Atlântico, suas ondas ondulantes colidindo
com os penhascos da cabeça de Skerwink, as estrelas esmaecidas pelo dia piscando lentamente
através de um céu azul profundo como as últimas aves marinhas a fazer o seu caminho através
do horizonte para as ilhas em alto mar. O grito trêmulo de um mergulhão ecoa pela água e sobre a
extraordinária beleza desta cena suave, uma buzina de nevoeiro distante sopra sua bênção
calmante. Preso nesta beleza, minha alma se sente em casa e eu estou em paz.
Esses mundos parecem incomensuráveis e eu luto enquanto tento mantê-los juntos. O
primeiro parece "profano", cheio de tragédia humana e do sofrimento mental que vem com a
existência mortal e corporificada em um mundo violento e polarizado. Este mundo me apresenta
a realidade fragmentada do conflito humano – raiva destrutiva que eu simplesmente não consigo
metabolizar – e em reação a ela eu me sinto fechando, fechando, dissociando, deixando meu
corpo: a essência de uma resposta traumática. O segundo mundo parece sagrado, belo, ilimitado e
eterno, abrindo-se em um mistério inefável que acalma a alma – no que Rudolf Otto (1917)
chamou de dimensão numinosa da experiência humana. E quando me abro para essa realidade
mais ampla, posso sentir o "tricotar da manga esfarrapada do cuidado" (Macbeth, 2.2: 35-39) de
minhas ansiedades e problemas cotidianos; no entanto, há uma solidão assombrosa neste mundo
belo e impessoal. Não há pessoas nele, exceto eu.
Como conseguimos viver uma vida plena entre esses dois mundos? Como é possível viver
uma vida de alma após os "Kandahars" de nossas infâncias traumáticas? E como isso é possível
sem usar um dos mundos como uma fuga do outro - sem ignorar as realidades do sofrimento
humano por um lado ou descontando (como meras ilusões) a realidade daqueles mistérios
infinitos e inefáveis que o poeta Czeslaw Milosz (2004) chama de "Segundo Espaço", por outro?
Na linguagem de Heschel, como mantemos nossa "dupla fidelidade" - como honramos nossa
cidadania em ambos os reinos?
O título deste livro é Trauma and the Soul e este título captura os dois mundos (e seu
relacionamento) que desejo explorar nas páginas seguintes. Essa exploração nos levará a alguns
dos aspectos místicos ou espirituais do meu trabalho psicoterapêutico com pacientes que sofreram
traumas na primeira infância. Como prosseguimos através das muitas vinhetas clínicas e
comentários teóricos que as seguem, o lembrete de Heschel de que somos "cidadãos de dois
reinos" e "devemos sustentar uma dupla lealdade" será um fio condutor - uma metapsicologia
binocular, dentro da qual as minhas descrições clínicas irão ser enquadradas e interpretadas. Eu
acredito que qualquer compreensão teórica adequada do self pessoal -e que em tal compreensão
está sempre implícita o fundamento de uma abordagem psicoterapêutica - deve incluir este
alcance infinito e potencial espiritual, bem como suas limitações finitas e determinantes
materiais.
Muitos psicanalistas contemporâneos estão explorando o que William James (1936: 370)
descreveu há muito tempo como "estados místicos de consciência". Sandor Ferenczi (1988) foi
um notável pioneiro, escrevendo sobre estranhas conexões de cura na transferência e
contratransferência com pacientes traumatizados; Wilfred Bion (1965) falou da realidade inefável
do "0" ou da Divindade como a fonte última de transformação na psicoterapia; Neville Symington
(1993) fala abertamente sobre um misterioso "doador de vida" na experiência humana que
participa de uma dimensão infinita do ser, e deve ser escolhido se quisermos atualizar nossa
própria vivacidade; Christopher Bollas (1999: 195) reconhece uma "inteligência misteriosa que se
move pela mente" e diz que "se existe um Deus, é aqui que ele vive". James.Grotstein (2000)
escreveu recentemente sobre um "sujeito inefável" do inconsciente que envia sonhos em
benefício do "sujeito fenomenal", ou seja, o ego ou self. E, finalmente, Michael Eigen (1998: 41-
2), um "místico psicanalítico" declarado, faz um apelo apaixonado para que o trabalho
psicanalítico seja reconhecido como uma vocação religiosa e "santa". Uma revisão de vários
desses teóricos aparece no Capítulo 6.
Como veremos nas páginas seguintes, o trabalho psicanalítico com algumas vítimas de
traumas precoces apóia essas reflexões místicas de maneiras específicas e dramáticas. Quase
todas as "pessoas altamente sensíveis" (Aron, 1996) cujos casos aparecem aqui tiveram
experiências místicas. Muitas vezes eles têm uma conexão comovente com a natureza, com os
animais e com o mito-poético mundo do cinema, teatro, arte e literatura - especialmente poesia.
"tentar. Às vezes, eles relatam terem sido "salvos" por um mundo interior cheio de presenças
sobrenaturais - um mundo que forneceu um recipiente/continente arquetípico para uma parte
inocente de sua alma, agora escondida. Muitas vezes eles relatam experiências "síncronas" que
desafiam a compreensão racional. E muitos deles descrevem uma indefinição das fronteiras entre
a realidade comum e não comum, o que lhes permite um acesso misterioso a uma realidade
imaterial que é inacessível a pessoas mais adaptadas.
Infelizmente, à medida que a vida mística e mitopoética do sobrevivente do trauma se
desenrola, as presenças espirituais benevolentes que parecem ter salvado suas almas começam a
perder seu poder protetor. Sob a pressão de repetidos desapontamentos e desilusões, esses objetos
internos muitas vezes se tornam malévolos. Protetores internos se transformam em perseguidores
(ver Kalsched, 2006) e os "melhores anjos de nossa natureza" são deslocados pelos demônios do
desmembramento, desencarne, amortecimento psíquico e defesa primitiva (ver Capítulos 3 e 9).
Isso também é uma espiritualidade, mas uma espiritualidade de escuridão e pavor; também um
misticismo, mas de violência, possessão demoníaca e perda de alma.
Poucos escritores no crescente campo da psicoterapia e espiritualidade referem-se a esse
aspecto mais sombrio do mundo espiritual. Mas a alma traumatizada, em sua descida sofrida
entre o Céu e o Inferno na psicoterapia, às vezes se vê cercada por poderosas forças obscuras que
resistem à cura, e isso também é um problema espiritual. Como essas resistências são superadas e
como a díade paciente/terapeuta colabora no resgate da alma (e também, ironicamente, na
redenção de seus perseguidores internos) será o foco principal deste livro. Veremos que os
poderes espirituais que ocupam o que Jung chamou de camada coletiva do inconsciente
geralmente parecem apoiar a integração e a totalidade psíquica, mas sem a mediação e o
relacionamento humanos adequados podem se transformar em seu oposto, degenerando em
defesas ameaçadoras à vida que minam a agência do ego. A psicoterapia eficaz oferece a
esperança de devolver esses poderes espirituais à sua natureza e propósito originais, ou seja, ao
seu alinhamento adequado com o que Jung chamou de arquétipo central do Self.
James Hillman (1996: 4-5) observou sabiamente que as pessoas entram em psicoterapia não
apenas para aliviar seus sintomas dolorosos ou traçar as raízes históricas de seus ferimentos
traumáticos, mas também para encontrar uma biografia adequada,com o que ele quer dizer uma
história que honra as fontes inefáveis e os fundamentos comoventes de suas próprias vidas únicas
e insubstituíveis. Além de entender a origem de seus ferimentos e trabalhá-los com o terapeuta,
eles estão procurando uma narrativa nova e mais ampla - a verdadeira história do destino duplo
de sua alma nesta terra como "cidadãos de dois reinos". Ironicamente, os sobreviventes de trauma
estão em uma posição única para reivindicar essa visão mais ampla, porque muitas vezes são
forçados prematuramente para uma "realidade não comum" - um mundo espiritual e muitas vezes
mentalizado que os ajuda a sobreviver à dor insuportável de seus primeiros relacionamentos
afetivos. Eles se tornam o que James Grotstein (2000: 238) chama de "órfãos do real", mas
simultaneamente (como ilustrado nos casos relatados nos capítulos 1 e 2) tornam-se avatares do
"Ultra-Real".
C. G Jung percebeu desde cedo que o mundo mágico e misterioso no qual o sobrevivente do
trauma cai quando a dissociação abre sua psique não é apenas um artefato do processo de divisão,
mas também um mundo arquetípico ou mito-poético que já está lá para pegá-los, por assim dizer.
Este mundo de realidade não comum envolve a alma fraturada com uma dramática história do
repertório arquetípico da psique antiga e Jung ficou fascinado com essas histórias e suas
características universais. Ele passou a acreditar que elas forneciam uma matriz de imagens que
servia como um recurso para a alma. Freud desconfiava dessa formulação (ver Loewald, 1978: 8-
9; McGuire, 1974: 429-30) e queria reduzir os símbolos mito-poéticos a lesões disfarçadas nas
relações humanas, sempre traduzindo-as de volta nas dores e lutas do drama familiar. Até mesmo
Ronald Fairbairn (1981), que desafiou a teoria do instinto de Freud de forma presciente, afirmou
que as imagens personificadas dos sonhos nada mais eram do que relações externas
internalizadas. Nessas teorias, os dois mundos entre os quais nossas vidas estão normalmente
suspensas colapsam em um só.
Esses entendimentos essencialmente reducionistas dos símbolos seguiram a psicanálise ao
longo das décadas, mesmo para especialistas em trauma como DW Winnicott, que, como veremos
no Capítulo 7, extraiu terríveis implicações diagnósticas ("esquizofrenia infantil!") dos primeiros
sonhos e fantasias conturbados de Jung, atribuindo-os ao seu relacionamento com uma mãe
deprimida. Ao criticar a revisão de Winnicott (1964b) da autobiografia de Jung, argumentarei que
Winnicott (e outros psicanalistas também) falham em compreender o papel crucial de um segundo
mundo mito-poético em salvar a alma do sobrevivente do trauma da aniquilação no mundo
interpessoal.
Freud e os primeiros psicanalistas, é claro, não estavam errados ao enfatizar a primazia da
vida pessoal.relacionamentos na vida de uma criança - em contraste com as fantasmagorias do
mundo arquetípico ou espiritual - mesmo que estas muitas vezes sustentassem a vida de seus
pacientes. Esses primeiros analistas perceberam corretamente que os sobreviventes de trauma
muitas vezes supervalorizam a realidade interior e se tornam identificados com os mistérios que
ali encontram como defesa contra afetos insuportáveis vivenciados no mundo interpessoal.
Muitas vezes, eles devem ser "conduzidos" [talked down] de seus andaimes celestes (por assim
dizer) e reconectados à vida "na Terra" e em relacionamentos onde as primeiras lesões/feridas
relacionais podem eventualmente ser lembradas (possivelmente revividas em outro nível) e
reparadas.
Por outro lado, uma psicanálise puramente secular (ou "relacional") também.esquuece/perde
algo importante, a saber, que muitas vezes a história inicial do sobrevivente do trauma é uma
história mitológica antes de ser pessoal, e deve ser recebida como tal. Como um analista disse
recentemente, “o trauma produz um drama intensificado de heróis e vítimas cuja história humana
mais comum está esperando para ser contada” (Trousdale, 2011: 131). Muitas vezes, a história
transpessoal e sagrada contém a dor do sobrevivente antes que uma história humana possa ser
contada. É por isso que os "dois mundos" da realidade comum e não comum - e a "matriz"
imaginária intermediária - são tão importantes para nossa discussão sobre trauma e sua cura.
Outra maneira de dizer isso, de acordo com descobertas recentes em observação infantil e
neurociência, é que, após a dissociação, os fragmentos da experiência (sensações corporais e
estados emocionais primitivos) são depositados apenas na memória implícita e são codificados
em subcorticais primitivos ou áreas límbicas do cérebro. Permanecendo indiferenciados, eles
acumulam realçe/focalizações[enhancement] arcaicos e típicos (arquetípicos) da camada coletiva
do inconsciente (como descrito por Jung) antes que possam ser integrados como memórias
pessoais. Larry Hedges (2000) descreveu as memórias arquetípicas que muitas vezes expressam
as primeiras experiências mãe-bebê, o que ele chama de "período organizador" no
desenvolvimento inicial. De acordo com Schore (2003b: 96) e Wilkinson (2006: 147-9) tais
memórias implícitas são mais prováveis de se tornarem disponíveis através da linguagem
imagética mito-poética de sonhos, metáforas, poesias e histórias do que como lembranças
pessoais (memória explícita). Essa linguagem mito-poética explora um estrato daimônico da
psique- algo típico daqueles padrões coletivos que organizam as camadas profundas da mente.
São camadas impessoais, ou antes, pré-pessoais, do corpo/mente, e eles fornecem uma matriz e
um recurso para a alma traumatizada em "outro mundo" antes que ela possa retornar ou entrar
"neste mundo".
Conforme ilustrado pelas vinhetas de caso neste livro, os sobreviventes de trauma muitas
vezes têm uma compreensão profunda de um·mundo sagrado que os sustenta, mesmo nos
ambientes humanos mais depravados e abusivos. Este mundo não é meramente um subproduto de
laços/vínculos de apego fracassados na infância, nem é simplesmente uma "compensação" pela
negligência ou abuso da mãe-bebê. Este mundo é um fato eterno da experiência da humanidade
no planeta e o sobrevivente do trauma sabe disso melhor do que a maioria. Reconhecer que o
mundo espiritual é real e que, após o trauma, ele é recrutado para fins defensivos - uma posição
que assumo ao longo deste livro - difere de dizer que os anjos e demônios que assombram ou
santificam a imaginação dos sobreviventes de traumas são alucinações ou "nada além de
"derivados-artefatos-de um processo defensivo. Foi dito que não há ateus em trincheiras. Há
também poucos, se houver,
Dois mundos
Para o cristão é o ponto onde Deus e a alma se tocam, a base divina sobre a qual
repousa a individualidade humana. É o que Tauler chama de todo"o chão da alma" e
Eckhart "o pequeno castelo." Catarina de Sena fala da "casa interior do coração"... e
João da Cruz da "casa em repouso... na escuridão e no esconderijo". do meu ser
criado que permanece permanentemente unido ao ato criador de Deus. o santuário
sem imagens, como Plotino o chamava.
A palavra de Jung para este "fundo da alma"era o Self, que vou categorizar/desenvolver ao
longo do livro. A experiência do Self pelo ego é um evento espiritual e ninguém que teve essa
experiência jamais a esquece. Exemplos notáveis de tais encontros ego/Self são dados nos
Capítulos 1, 3, 4, 7, 8 e 9.
A ideia de um segundo mundo espiritual ao lado de nossa realidade material comum não é
amplamente aceita nos círculos científicos e, no entanto, é tão antiga quanto a raça humana.
Povos primitivos em todo o mundo experimentaram a intrusão esporádica de poderes espirituais
superiores em suas vidas, muitas vezes manifestada em eventos ou sonhos incomuns (ver
Bernstein, 2005; DeLoria, 2006). Certos indivíduos nessas primeiras culturas tradicionais-
experimentaram um "chamado" visionário ou iniciação nos mistérios do mundo espiritual e
retornaram com sabedoria especial e poderes de cura para se tornarem xamãs para sua cultura. a
figura mais importante na vida tribal precisamente porque ele ou ela podia (como o iniciado)
negociar "entre os mundos". Istof oi até sugerido (Jensen, 1963: 228-9, 284-5) que é na
experiência de êxtase do xamã primitivo que devemos procurar a origem da ideia de que o
homem é uma dualidade de corpo e espírito.
Assim, através do olho voltado para dentro de nossa escultura inuíte, encontramos o inefável
- os mistérios da alma e do espírito, insinuações do infinito e do eterno. Este mundo é muitas
vezes potencializado por traumas iniciais e, portanto, uma história completa de trauma deve
incluir sua perspectiva. Essa visão "binocular" é importante, acredito, para que o mundo interior
não se abra para nós por CG Jung e outros sejam negligenciados e esquecidos. O campo que nos
cerca no novo "paradigma do trauma" da psicanálise é cada vez mais visto pelo olho aberto de
nossa máscara inuit. Essa visão é cada vez mais "relacional" e interpessoal, cada vez mais
informada pelas descobertas dos estudos de apego mãe-bebê, cada vez mais interessada no
cérebro infantil em formação precoce e especialmente na integração mente-cérebro-corpo. Esses
desenvolvimentos são essenciais para que nosso trabalho permaneça relevante e fundamentado.
Na verdade, eles até oferecem a possibilidade de restaurar a alma encarnada em nosso campo, que
historicamente tem se preocupado com insights desencarnados e "interpretações" excessivamente
dominadas pelo lado esquerdo do cérebro. A análise junguiana tem sido especialmente culpada
por essa ascensão à mentalização e à busca de significado intelectual. Entre outras coisas, os
novos estudos da neurociência (ver Schore, 2011) restauram a centralidade do afeto em nossa
compreensão do que realmente faz a mudança na psicoterapia – algo que nos leva de volta aos
primeiros estudos clínicos do próprio Jung, onde o papel do afeto na a formação complexa era
central (ver Jung, 1907: para. 78).
Mas - e este é o meu ponto - se a neurociência pretende perceber essas possibilidades de
ajudar a fundamentar nosso campo e torná-lo relevante para o tratamento do trauma, ela terá que
se abrir para o fato de que para cada momento relacional eu-outro na psicoterapia, lá é também
um evento interno e não me refiro a um evento interno na fiação ou na escultura do cérebro.
Refiro-me a um evento interior na escultura da alma - no que os junguianos costumam chamar de
relacionamento ego-Self ou eixo ego-Self (ver Edinger, 1972: 1-62). E uma maneira pela qual
sabemos que o eixo ego-Self está implicado em nossas intervenções relacionais é que os.sonhos
nos dizem isso. Nas páginas a seguir contarei muitas histórias sobre esses momentos e descreverei
os sonhos que os acompanham. Esses sonhos nos dizem o que está acontecendo em um espaço
intermediário dentro da personalidade.
Este espaço é "transicional", mas não entre o eu e o outro. Ao contrário, esse espaço é de
transição entre o que James Grotstein (2000) chama de "sujeito inefável do inconsciente" e o
"sujeito fenomenal da consciência". Na linguagem de Jung este é o espaço ou eixo entre o ego e o
Self.
Uma razão pela qual nossa visão binocular é importante é que ela une os dois mundos da
realidade interna e externa em uma terceira coisa viva. Quer descrevamos essa realidade
intermediária como o "terceiro analítico" (Ogden, 1994: 61-95) ou o paradoxal "espaço potencial"
onde estamos mais vivos (Winnicott, 1971: 104-10), ou como a "função transcendente" (Jung,
1916) - o espaço entre a nossa subjetividade privada e nossa intersubjetividade é crucial para
entender a condição humana e também para curar os lugares onde a achamos intolerável e
fugimos para um mundo ou outro. Uma "biografia adequada" de qualquer indivíduo provará ser
um entrelaçamento desses dois mundos - sempre uma combinação de imaginação (interna) e
realidade (externa), parte imaginação e parte fato. Deste modo as nossas vidas tornam-se arenas
em que "diferentes ordens de ser se cruzam conosco e nós com eles" (Romanyshyn, 2002: 105).
Se vamos "individuar" no verdadeiro significado que Jung deu a esse termo, devemos nos deixar
crescer a partir dessas duas raízes.
Sobreviventes de traumas iniciais frequentemente relatam que uma parte essencial de si
mesmos se retirou para um mundo espiritual e ali encontrou refúgio e apoio na ausência de tal
apoio de qualquer pessoa humana. Testemunharemos alguns exemplos comoventes disso ao longo
do livro, especialmente quando o mundo interior dos sonhos se abre em resposta a momentos de
carga afetiva no relacionamento terapêutico. Às vezes, esse mundo espiritual dá ao sobrevivente
do trauma acesso privilegiado a realidades imateriais que permanecem inacessíveis às pessoas
que vivem principalmente em um mundo. Muitos desses pacientes têm dons especiais, poderes
psíquicos, visões xamânicas ou mensagens auditivas de fora do ego, conexões místicas com
animais ou com a natureza, acesso a capacidades de cura, sabedoria intuitiva fantástica, talento
artístico, etc. Por outro lado, às vezes o mundo espiritual também atormenta o sobrevivente do
trauma de maneiras com as quais as pessoas mais bem adaptadas nunca precisam se preocupar.
C. G. Jung era uma pessoa assim. Como veremos no Capítulo 7, Jung lutou toda a sua vida,
dividido entre esses dois mundos. Sofrendo um trauma precoce significativo em sua infância
(revivido novamente após sua ruptura com Freud em 1911), Jung encontrou refúgio no mundo
interior com todas as suas belezas e terrores, mas com um grande custo para seus relacionamentos
externos e sua reputação entre os colegas psicanalíticos. Perto do fim de sua longa e frutífera
vida, Jung encontrou seu caminho de volta à plena encarnação e ao relacionamento, mantendo a
extraordinária sabedoria que descobrira no que chamava de mundo de sua "personalidade nº
2".Como em nossa máscara Inuit, os dois mundos foram finalmente unidos em uma pessoa que
era C. G. Jung. Isto é uma história notável, que contaremos detalhadamente no Capítulo 7 e em
outras vinhetas ao longo do livro. Ao fazê-lo iremos tentar mostrar como a história e a vida de
Jung - inteligível apenas através da apreciação dos dois mundos - foi seriamente mal
compreendida pelos psicanalistas, mesmo por alguém que entendia o trauma e o "espaço
potencial" da vida criativa tão profundamente quanto D.W. Winnicott.
Vale ressaltar que em sua escrita profissional como psicólogo, Jung hesitou em fazer
qualquer afirmação sobre o status ontológico do que chamou de "mundo de Deus", preferindo
permanecer consistentemente fenomenológico, ou seja, limitando-se ao que ele e os
outros.experimentando-o subjetivamente. Epistemologicamente, ele era cauteloso. Nas páginas
seguintes, seguirei seu exemplo a esse respeito. Quando falo da alma nestas páginas, estarei me
referindo a um núcleo vital e animador de nossos eus encarnados – um certo algo essencial que
nos liga (através do amor) ao divino, uns aos outros e às belezas requintadas do mundo. mundo
natural e cultural. Conhecemos a alma quando a experimentamos.
Mas enquanto a alma permanece uma experiência subjetiva, renovada a cada dia em nossas
relações com pessoas e coisas e com o inefável, permanece um mistério completo, não importa o
que eu diga sobre isto nestas páginas. Como o cerne de nossa subjetividade, ela é impossível
definir objetivamente. Preferindo viver "entre os mundos", alma, como mercúrio, deslizando para
longe assim que tentamos entender isto com linguagem. Da mesma forma, quando falo de um
mundo espiritual cheio de poderes "sobrenaturais" que parecem estar intimamente relacionados
com a vida da alma, fortalecendo-a por um lado, ou enfraquecendo-a por outro, estarei falando de
realidades altamente subjetivas que aparecem principalmente em sonhos ou como representações
de afetos irracionais profundamente sentidos dentro do reino imaginário. Os estudos de caso neste
livro demonstram muitas dessas realidades subjetivas como expressões simbólicas das
representações mitopoéticas da psique coletiva, "imagens arquetípicas". Eles são poderosamente
reais. Mas deixaremos de reivindicar status ontológico para essas formas ou presenças
evanescentes, permitindo-lhes sua vida "intermediária" entre os mundos.
O próprio Jung lutou com essa questão de que tipo de realidade as experiências espirituais
ocupam. Ele ficou impressionado com o fato de que muitas vezes experimentamos poderes
espirituais como um mysterium tremendum, inspirando admiração e adoração de algo além do
ego. Para honrar teoricamente essa alteridade, Jung localizou tal experiência não no inconsciente
pessoal, mas em um estrato mais profundo da psique (inconsciente coletivo) e nunca se cansou de
apontar que as realidades espirituais do mito e da religião estavam onde a psique "estava" antes
da psicologia fazer dela um objeto de investigação científica.
O trauma relacional precoce resulta do fato de que muitas vezes recebemos mais
experiências nesta vida do que podemos suportar conscientemente. Esse problema existe desde o
início dos tempos, mas é especialmente agudo na primeira infância, onde, devido à imaturidade
da psique e/ou do cérebro, estamos mal equipados para metabolizar nossa experiência. Um bebê
ou criança pequena que é abusada, violada ou seriamente negligenciada por um adulto cuidador é
dominada por afetos intoleráveis que são impossíveis de metabolizar, muito menos entender ou
mesmo pensar. Um choque na unidade psicossomática da personalidade ameaça despedaçar a
criança em seu âmago - ameaça extinguir aquela "faísca vital" da pessoa tão crucial para a
experiência de vitalidade e tão central para a experiência posterior de "sentir-se real". Tal
destruição da psique infantil seria uma catástrofe inimaginável - "assassinato da alma", como um
investigador o chamou (Shengold, 1989).
Felizmente, esse estilhaçamento quase nunca acontece, pelo menos não completamente. Em
vez disso, ocorre uma divisão que salva vidas, que chamamos de dissociação. A dissociação sela
o não-ser. Impede a aniquilação do eu unitário, substituindo a multiplicidade e uma história
arquetípica que implicitamente mantém as partes unidas. O afeto insuportável é distribuído para
diferentes partes da psique/soma. Essas partes deixam de se conhecer para que a personalidade
não tenha que sofrer o horror indescritível do trauma como um todo.Poderíamos dizer que a
psique se estilhaça ao longo de linhas de "falha" inatas (Balint, 1979) e que descontinuidades ou
lacunas se abrem em nossa experiência. Essas cisões/autodivisões têm valor de sobrevivência
porque salvam uma parte da inocência e vitalidade da criança, separando-a do resto da
personalidade, preservando-a no inconsciente para um possível crescimento futuro e cercando-a
com uma narrativa implícita que acaba sendo explicitada. Em sonhos. Isso permite que a vida
continue, embora a um preço terrível - isto é, perda da animação e vitalidade que sempre
estiveram associadas à vida com alma. Assim, ironicamente, as defesas dissociativas salvam um
núcleo vital do eu ao mesmo tempo que o perdem (ou o perdem parcialmente). Eles preservam a
semente cortando-a da vida neste mundo...pelo menos por um tempo. Veremos exemplos
literários e clínicos disso nos Capítulos 3, 7 e 9.
A evidência desse tipo de divisão interna na psique traumatizada de uma criança é bem
estabelecida pela teoria das relações objetais. Sandor Ferenczi (1933) descreveu tal divisão em
seus pacientes entre um "eu regredido" por um lado, recuando para a mente inconsciente, e um
"eu progredido" que cresceu rápido demais e protegeu o eu regredido. Winnicott (1960a)
diferenciou entre um "eu verdadeiro" e um eu "falso" ou "cuidador" projetado para protegê-lo, e
demonstrou ainda que o eu cuidador geralmente se identificava com a mente, deixando o
verdadeiro eu definhando no corpo, causando doença psicossomática. Fairbairn (1981) derivou
sua compreensão do mundo interior da internalização simultânea do self infantil e de seus
cuidadores negligentes, transposto para o mundo interior como complexo de vítima e perpetrador
(ego libidinal atacado por um sabotador interno). Finalmente, Guntrip (1969) descreveu como a
criança inocente, crescendo em um ambiente negligente ou abusivo, começa a odiar sua própria
imaturidade (identificando-se com o pai "mau") até que ocorre uma divisão entre um "coração
perdido do eu" desaparecendo no inconsciente, atormentado por um "ego antilibidinal".
Todos esses pesquisadores concluíram que a dissociação traumática na criança deixa um
mundo interior dividido entre objetos internos regredidos e progredidos. Normalmente, a parte
regredida da personalidade é representada como uma criança ou bebê, muitas vezes trancada em
um "casulo interior" (Modell, 1984), um "santuário de aprisionamento" (Eigen, 1995) ou um
"retiro psíquico" (Steiner, 1993). ), enquanto a parte progredida pode aparecer como uma figura
tirânica sádica, atacando ou aprisionando a criança (Fairbairn, 1981) ou como um "falso deus",
parte do sistema defensivo narcísico (Symington,2001).
Em meu trabalho inicial como analista, comecei a encontrar esse mesmo padrão no material
dos sonhos de meus pacientes - a mesma "história", mas às vezes com uma diferença notável. Nos
sonhos de certos pacientes, a imagem da parte regredida da personalidade aparecia não apenas
como uma criança, mas como uma criança extraordinária, que parecia ser supremamente sábia,
ou "divina" de alguma forma, talvez cercada por uma natureza sobrenatural. luz ou falando em
parábolas ou mostrando poderes físicos milagrosos. Às vezes, o eu regredido seria um animal
mágico - um pássaro falante, um golfinho ou um pônei, representando uma espécie de alma-
animal para o paciente. Por outro lado, o self progredido/progressivo também pode se tornar
mitificado, aparecendo como um vampiro assustador, um demônio sádico que torturou o paciente
por dentro.
Os poderes mitopoéticos no sistema de autocuidado estão bem representados na ilustração
da Figura 1, que mostra os "anjos bons e maus" de Blake lutando por uma criança aterrorizada. O
anjo do mal está acorrentado em sua escuridão flamejante e seus olhos cegos representam o transe
mortal da dissociação traumática. O bom anjo parece ter arrancado a criança dele ou pelo menos
está impedindo-o de chegar até a criança. Ambos os anjos representam o protetor e/ou lado
persecutório de um sistema defensivo em forma de daimorf. Eles puxam a criança entre duas
antinomias arquetípicas – as torturas do Inferno ou a bem-aventurança e o esquecimento do Céu.
Comecei a perceber que estava observando uma estrutura diádica arcaica e típica
(arquetípica) no material dos sonhos de meus pacientes que era dedicada à defesa, muito
semelhante às descobertas das relações objetais e às imagens coletivas, como a imagem de Blake
acima. Referi-me a essa estrutura diádica típica como "sistema de autocuidado" e, há 15 anos,
escrevi um livro sobre minhas descobertas (Kalsched, 1996)[O Mundo interior do trauma].
Relatada nesse livro está minha descoberta adicional de que esse "sistema" frequentemente
aparecia em sonhos em momentos críticos do processo de psicoterapia, quando uma nova vida de
algum tipo estava surgindo para o paciente - muitas vezes em relação a mim mesmo na
transferência. Esses momentos de esperança emergente e transformação potencial pareciam
desencadear a atividade defensiva de figuras internas diabólicas que então atacavam o ego
vulnerável do paciente em sonhos de pesadelo, tornando o mundo interior tão traumatizado
quanto o exterior. Embora aparentemente projetado para isolar e proteger um núcleo vulnerável
da personalidade, os poderes sádicos neste sistema começaram a atacar os fundamentos muito
animados da personalidade que eles foram originalmente projetados para proteger, assim como a
doença auto-imune ataca o tecido saudável do corpo. Isto era como se uma barganha feita para
salvar a alma-criança vulnerável se tornasse uma barganha faustiana com um demônio
persecutório que mantinha a alma desencarnada e irrealizada.
Na experiência clínica que serviu de base para The Inner World of Trauma, [O Mundo
interior do trauma] fiquei tão impressionado com as forças negativas tirânicas desse sistema e o
poder demoníaco dessas forças para minar a esperança e levar os pacientes à compulsão à
repetição (Freud, 1926) que sugeri que este sistema de autocuidado era, em sua maioria, pouco
educável. Já não tenho uma visão tão pessimista. Experiência clínica adicional e conhecimento
das aplicações atuais da teoria do apego (Wallin, 2007; Knox, 2003), neurociência afetiva
(Schore, 2003b; Wilkinson, 2005; Badenoch, 2008), psicoterapia centrada no corpo (Ogden et al.,
2006; Stanley, 2010), a escola relacional em Nova York (Bromberg, 1998,2008) e a experiência
recente com o modelo e métodos de psicoterapia dinâmica intensiva de curta duração (ISTDP)
como praticado por Patricia Coughlin Della Selva (1996) combinaram para re-informar minha
própria técnica e tornar o trabalho psicoterapêutico que faço com sobreviventes de trauma mais
eficaz, centrado no afeto, corporificado e relacional. Pude testemunhar como as resistências
aparentemente intratáveis do sistema de autocuidado podem se transformar, e o sistema defensivo
pode até libertar seus prisioneiros, ou seja, sua "criança interior”.
Como a psicoterapia é uma relação de apego, muitas das lesões nas primeiras vidas
relacionais de nossos pacientes podem ser revividas em direção a um resultado diferente. Devido
à plasticidade do cérebro, as rígidas redes neurais que estão conectados em padrões defensivos
podem ser reconfigurados e reparados. Os psicanalistas (inclusive eu) começaram a perceber que
o que foi quebrado relacionalmente deve ser reparado relacionalmente. Isso exige um tratamento
focado afetivamente – o que Schore (2003b: 49) chama de comunicação do cérebro direito para o
cérebro direito. O analista "sintoniza" em um nível afetivo essas "lacunas" dissociativas ou locais
de descarrilamento onde a conexão sentimental íntima com o paciente ameaça se romper. Como
demonstra Bromberg (2006: 181-2), o analista deve se tornar um parceiro pleno na "regulação
diádica" do afeto e da cocriação de uma realidade intersubjetiva inteiramente nova. Felizmente,
neste processo, o que o analista diz ou faz será menos importante do que "quão abertamente o que
acontece é processado com o analisando"(Mitchell,1988: x).
Neste livro, o leitor verá vários exemplos vívidos de como a rigidez do sistema de
autocuidado é lentamente transformada através das lutas relacionais da psicoterapia analítica.
Essa transformação é ilustrada em casos estendidos apresentados nos Capítulos 4, 7 e 9, onde o -
leitor observará o funcionamento desse sistema ao longo do tempo, como ele se manifesta na
transferência e a lenta transformação de seu interior daimônico com presenças de forças
malévolas para mais benevolentes. Em cada caso, testemunhamos como uma história arquetípica,
cujo "propósito" original é salvar a alma separando-a do corpo, lentamente (e com grande
resistência) torna-se uma história mais sentimental e pessoal, dando à alma sua encarnação única
em personalidade individual.
Considerando a alma
Tendo estabelecido, para minha satisfação, que o mundo interior do trauma grave era
principalmente dedicado à defesa, a questão então se tornou "o que o sistema estava
defendendo?" Aqui, novamente, comecei a me convencer de que o sistema de autocuidado estava
defendendo algo mais do que o que os analistas de relações objetais chamavam de "eu regredido"
ou "ego libidinal". Eu não tive nenhuma discussão com essa formulação até onde ela foi. Mas
parecia que alguma coisa sagrada estava sendo preservado pelo sistema de autocuidado – alguma
parte basicamente inocente ou pré-traumática do eu essencial dado por Deus – talvez uma criança
– parte do eu que estava sendo protegida de mais sofrimento e possivelmente preservada para um
maior crescimento. Assim, designei essa parte regredida de "espírito pessoal imperecível" e
registrei sua frequente aparição no material dos sonhos como uma "criança" sitiada, às vezes
perdida, muitas vezes milagrosa. Os capítulos 1-4 registram vários exemplos vívidos de encontros
com essa "criança" no decorrer de um trabalho mais recente com pacientes individuais.
Agora,15anos depois, estou tão fascinado e perplexo quanto naquela época por esse núcleo
aparentemente essencial e sagrado da personalidade que aparece continuamente no material do
sonho. No livro atual me refiro a esse mistério como alma, em vez do "espírito pessoal
imperecível". Seja como for que chamemos essa centelha vital, sinto algum conforto no fato de
que muitos psicanalistas se viram preocupados com um "algo" sagrado no cerne de nossa
potencial totalidade como seres humanos.
Winnicott (1963:187), por exemplo, referindo-se a um "centro sagrado incomunicável" da
personalidade também conhecido como o "verdadeiro eu/self", que ele diz, não pode ser definido,
exceto para dizer que isto"reúne os detalhes da experiência de vivacidade (p.148).
Fairbairn(1981: 217) se referiu a um objeto interno semelhante como o "ego libidinal", e Guntrip(
1969: 72-3),em uma metáfora mais poética, como o "coração perdido do eu". Mais tarde, muitos
outros praticantes opinaram sobre este tema: TH Almas (1998: 76) refere-se a uma presença
ontológica na personalidade descrita simplesmente como "essência". Neville Symington (1993:
35),cujo trabalho me refiro com frequência nas páginas que se seguem, chamou esse objeto
interno de "doador da vida".(2000: 165)refere-se a um "eu refém" que freqüentemente aparece em
pacientes abusados ou traumatizados como uma "criança morta-viva" assombrando-os por dentro.
Ele também fala de-seu encontro com um núcleo de "inocência" em certos pacientes e uma vez
observou que "A inocência é o elemento crucial na natureza espiritual de uma pessoa"
(Grotstein,1984: 213.)Finalmente C. G. Jung (1912b) descobriu como era importante apoiar as
regressões terapêuticas de seu paciente até a primeira infância, a fim de fazer contato com um
núcleo do eu que estava oculto no inconsciente. Esse "coração perdido do eu", descobriu Jung,
muitas vezes tinha uma aura de numinosidade ao seu redor, que era um marcador de suas raízes
no inconsciente coletivo e de suas qualidades "espirituais":
Como contra essa ideia [de que a regressão é patológica], a terapia deve apoiar a
regressão e continuar a fazê-lo até que o estágio "pré-natal" seja alcançado. Deve-
se lembrar que a "mãe" é realmente uma imago, uma mera imagem psíquica [não
apenas a mãe pessoal]... Portanto, a regressão leva de volta apenas aparentemente
à mãe;...mas volta além dela para o reino pré-natal do "Eterno Feminino", para o
mundo imemorial de possibilidades arquetípicas onde, "repleto de imagens de toda
a criação", dorme a "criança divina", esperando pacientemente sua realização
consciente. Esse filho é o germe da totalidade e é caracterizado como tal por seus
símbolos específicos.
Na escuridão do inconsciente está escondido um tesouro, o mesmo "tesouro difícil
de alcançar" que...é descrito como a pérola brilhante, ou, para citar Paracelso,
como o "mistério", pelo que se entende um fascinosum por excelência. São essas
possibilidades inerentes de vida "espiritual" ou "simbólica" e de progresso que
formam o objetivo final, embora inconsciente, da regressão. (Jung, 1912b: par.
508-10)
Essa descoberta foi talvez a principal epifania da vida pessoal e profissional de Jung - a
convicção central de toda a sua autoria, a saber, que há uma dimensão sagrada na vida humana
que também é discernível no processo simbólico da psique - se aprendermos a atender em nossos
sonhos, e como entendê-lo. E essa dimensão sagrada muitas vezes se faz presente durante o
sofrimento do processo de individuação na imagem da criança...uma criança inocente
parcialmente divina cuja vida é uma preocupação da mitologia em todo o mundo. A criança
humana/divina, em outras palavras, não pertence inteiramente a "este mundo". E nós também
não.
A imagem desta "criança" é apresentada no Capítulo 2 do presente volume, mas também
atua como protagonista em dois capítulos posteriores, onde exploro o conceito de inocência no
desenvolvimento humano e na psicoterapia. Trauma é sobre um golpe esmagador na inocência
geradora no âmago do eu, e os sobreviventes de trauma muitas vezes sentem que perderam sua
inocência para sempre - até encontrá-la visitando-os em sonhos como uma criança ou um animal
de alma "de outro mundo". " No Capítulo 7, exploramos esse tema da perda e recuperação da
inocência à luz de um caso clínico, por um lado, e de O Pequeno Príncipe, de St. Exupéry (2000),
por outro. O capítulo 8 continua o mesmo tema na vida do próprio CG Jung, enquanto ele vai e
volta entre os dois mundos de sua infância, ou seja, suas personalidades nº 1 e nº 2.isto de uma
nova violação pelo "espírito dos tempos" (Jung, 2009). Ele veio a entender que esta criança eterna
era sua própria alma, e Jung percebeu que sua alma poderia ser perdida por um tempo, então
encontrada novamente.
O desenvolvimento da alma
Um aspecto importante da ideia tradicional da alma humana que a recomenda para nosso
uso neste livro é o fato de que tradicionalmente a alma é sempre uma criatura de ambos os
mundos - divino e humano, limitado ao tempo e eterno, mortal e imortal. Percorrendo esses dois
mundos, a alma é a sede de nosso destino duplo e o lar do que Shakespeare chamou de nossos
"desejos imortais". É também o lar do que Jung chamou de nosso "instinto religioso" (Jung,
1959b: para. 653).
Além disso, como alma entende-se que se desenvolve de sua unidade original com o divino,
para uma condição evolutiva de "dualidade" à medida que reúne a experiência mundana e,
finalmente, à "trindade" à medida que se re-relaciona (re-ligação/conexão como em religeo ou
religião) novamente às suas origens espirituais. Muitos anos atrás, em uma carta a seu irmão
George, John Keats (1891: 255-6) descreveu a evolução da alma da seguinte forma:
Chame o mundo, se quiser, de "O Vale da Criação de Almas". Então você vai
descobrir o uso do mundo....Eu digo "Alma que faz" Alma distinta de uma
Inteligência - Pode haver inteligências ou faíscas da divindade em milhões-mas
eles não são Almas até que adquiram identidades, até que cada um seja
pessoalmente ele mesmo. As inteligências são átomos de percepção - eles sabem
e vêem e são puros, em suma, são Deus-Como então as Almas devem ser feitas?
Como, então, essas centelhas que são Deus para ter identidade são dadas a elas -
para possuir uma bem-aventurança peculiar à existência individual de cada um?
Como, mas por meio de um mundo como este?...Você não vê como é necessário
um mundo de dores e problemas para educar uma inteligência e torná-la uma
alma? Um Lugar onde o coração deve sentir e sofrer de mil maneiras diversas!
...Comovariadas como são as Vidas dos Homens - tão variadas se tornam suas
almas, e assim Deus faz seres individuais, Almas,... das centelhas de sua própria
essência. Isso me parece um fraco esboço de um sistema de Salvação que não
afronta nossa razão e humanidade.
Na visão de Keats, a alma inocente, uma substância ou centelha divina, é moldada pelo
sofrimento ao enfrentar as dores e problemas deste mundo. Considerado deste ponto de vista,
todos nós começamos como um ser humano/unidade divina - uma unidade" , mas o processo de
nosso desenvolvimento humano separado significa a descida ou esvaziamento de nossa
"divindade" (kenose)em particularidade e limitação humana.Istorepresenta uma queda daquele
sentido primordial de unidade no Jardim, para a dualidade. Ao desenvolver um eu,
inevitavelmente nos tornamos autocentrados e autoconscientes. Deixamos o jardim de nossa
inocência e agora, conhecendo o bem e o mal, vivemos no exílio - "leste do Éden", consciente,
mas alienado.
Tal alienação de nossa natureza essencial parece ser o preço necessário e inevitável pago
para nos tornarmos conscientes, e ainda assim permanece dentro de nós uma parte da unidade
original que anseia retornar àquela grande realidade espiritual da qual viemos e da qual nos
esquecemos. .Essa lasca do brilho divino chamamos de alma. A memória da alma de suas origens
é celebrada em muitas histórias religiosas e mitológicas em todo o mundo, e também nos sonhos
dos indivíduos contemporâneos. Uma das mais belas versões culturais é uma história gnóstica
iraniana, O Hino da Pérola, encontrado nos apócrifos Atos do Apóstolo Tomé Gonas, 1963:
112ss.) onde o protagonista deixa seu lar celestial, cai no "Egito" (este mundo), tem amnésia para
sua missão celestial, e deve ser despertado para sua origem e destino divinos por uma carta de seu
pai. Ele se esqueceu de quem ele realmente é, até este chamado de outro mundo.
Um processo semelhante pode acontecer em psicoterapia profunda para os sobreviventes de
traumas precoces. Na psicanálise, as pessoas repassam suas histórias para integrar as múltiplas
partes de si mesmas do passado - enquanto procuram um novo padrão unificador, um novo centro
que pode mudar sua perspectiva sobre si mesmas. Eles estão esperando por aquela carta – aquela
lembrança que os leva além de todas as memórias pessoais para um terreno mais profundo que dá
sentido às suas vidas quando nada mais o fez. Às vezes, a "carta" vem em sonhos. Veremos
exemplos dramáticos nos Capítulos 4, 7 e 9.
Se colocarmos tudo isso na linguagem psicanalítica das relações objetais do
desenvolvimento e da teoria do apego, diríamos que no processo ótimo dessa descida à realidade
do tempo e do espaço, a alma inocente, buscando a experiência, encontra um ambiente empático,
e a alma passa a residir no corpo (apego seguro). Winnicott descreveu o processo como a
"habitação" ["indwelling"] da psique no soma - um mistério que acontece quando a mãe "introduz
e reintroduz a mente e o corpo do bebê um no outro" (Winnic0tt, 1970: 271).
O resultado é que a criança faz uma descida mediada da onipotência ao princípio de
realidade, da inocência à experiência. Este é sempre um processo de desilusão (ver Kohut, 1971),
mas a maternidade "suficientemente boa" significa que não acontece muito rápido e que há uma
"recompensa" na estrutura psíquica ou na crescente força do ego para cada perda de onipotência e
grandiosidade. Junto com a permanência psicossomática, a outra recompensa nesse processo
ótimo é o que Winnicott (1964a: 112) chama de "personalização" [personalization] porque ele
simplesmente significa tornar-se um eu como uma unidade coerente ou pessoa inteira. Uma
pessoa inteira é uma unidade psicossomática que incorpora uma centelha vital no centro de seu
corpo integrado./mente ser. O Capítulo 5 aborda essa questão da totalidade psicossomática - como
o sistema defensivo a compromete e como a psicoterapia de profundidade promete restaurá-la.
O leitor notará que há algo misterioso - até mesmo espiritual - nos conceitos de
personalização e habitação de Winnicott. Winnicott não diz precisamente o que é que desce ao
soma pela mediação da mãe. Às vezes ele chama isso de "mente, “às vezes a “psique”.e encontra-
se naturalmente colocado no corpo, mas pode dissociar-se do corpo" (1970: 271). Em outro lugar
(l969b: 565) ele diz:
Isto não está claro como chamar aquela parte da personalidade que na saúde fica intimamente
ligada ao corpo e suas funções, mas que precisa ser considerada separadamente. Pode-se usar a
palavra "psique", mas isso pode sugerir ao leitor algo que está relacionado com o espírito e até
com o espiritismo.
Nos vários capítulos deste livro, daremos um pequeno passo além de Winnicott aqui e
usaremos sem remorso a palavra alma para representar aquela parte da personalidade "que na
saúde fica intimamente ligada ao corpo”. Isto não nos perturbará se descobrirmos que essa parte
está intimamente "ligada ao espírito e mesmo ao espiritismo".
Desde a publicação de The Inner World of Trauma: Archetypal Defenses of the Personal
Spirit (Kalsched, 1996), minha atenção tem sido cada vez mais atraída para os momentos
salientes do trabalho que parecem ser os mais significativos para mudança e cura.
Surpreendentemente, esses momentos muitas vezes parecem ter um aspecto espiritual e
relacional. Dentro do diálogo psicoterapêutico há momentos em que um mistério cheio de alma
no centro da personalidade é vislumbrado ou compartilhado por ambos os participantes. Muitas
vezes, esses momentos são ocasionados por intenso sofrimento, onde o paciente encontra
coragem para suportar um pouco da dor de seu passado traumático - talvez testemunhado pela
primeira vez (ver Capítulo 1). Ao fazê-lo, ele ou ela rompe para uma perspectiva mais ampla
(totalidade) e um lugar de auto-aceitação, além da culpa ou vitimização. Ou talvez terapeuta e
paciente juntos tenham resistido a uma tempestade emocional e encontrado seu caminho através
de um conflito assustador para um lugar de calma e compreensão onde o amor flui novamente.
Muitas vezes, esses momentos surgem quando somos movidos por um significado mais profundo
ou uma perspectiva mais ampla do que a orientação usual do ego. Talvez a estranha sabedoria de
um sonho emerja na consciência entre os parceiros terapêuticos, enchendo-os de um sentimento
de apreciação pela profunda inteligência e beleza da psique (ver Capítulo 7). Ou talvez ocorra
um evento síncrono, preenchendo ambos os parceiros analíticos com uma misteriosa sensação da
ocultação espiritual/conexões materiais que transcendem os limites claros entre o eu e o outro.
Qualquer que seja sua forma, esses momentos são universalmente curativos e
transformadores. Eles levam ao fortalecimento e personalização da alma - sua "morada" no corpo.
A alma residente confere uma sensação de ser real - uma sensação de que temos o direito dado
por Deus de estar aqui. Na melhor das hipóteses, então, a psicoterapia é em parte uma disciplina
espiritual que ajuda ambas as partes a participar deste mundo como um espaço potencial no qual
as energias materiais e espirituais se apoiam mutuamente em direção ao objetivo do que Jung
chamou de individuação - realizar seu destino, tornar-se quem você realmente é. , tornando-se
uma pessoa com alma.
A interrupção do trauma
Em meu livro anterior, reconheci que o trauma era muitas vezes uma crise espiritual que
exigia a intervenção de poderosas forças arquetípicas do inconsciente e descrevi esses poderes
funcionando como um "sistema de autocuidado". Embora eu tenha apresentado minhas
descobertas como provisórias e provisórias, as ideias apresentadas em The Inner World of Trauma
aparentemente atingiram os psicoterapeutas analíticos e provaram ser um mapa útil para o que
eles encontraram clinicamente (Bernstein, 2005; Sinason e Cone-Farran, 2007). ; Wilkinson,
2006). Outros colegas questionaram minhas formulações, encontrando suas implicações em
desacordo com a posição clássica de Jung sobre o telos integrativo do eu individualizante
(Marlan, 2005) ou levantando questões sobre se as defesas arquetípicas são mais bem pensadas
como "inatas" ou, de preferência, "emergentes" (Marlan, 2005). Knox, 2003: 129-32). Seja qual
for o caso, meu diálogo com esses escritores foi inestimável no processo de esclarecer minhas
idéias.
Ainda mais gratificantes, do ponto de vista pessoal, foram os muitos e-mails e cartas que
recebi de sobreviventes de trauma ao redor do mundo que encontraram meu livro anterior e
encontraram nele uma compreensão simpática e útil de sua própria experiência. Muitas dessas
cartas destacavam um aspecto espiritual do livro - aspectos que eu não pretendia enfatizar. Uma
mulher, por exemplo, lutando contra a depressão, escreveu: “Quando li seu livro, o estranho
dentro de mim veio até a janela e chorou”. A alma - uma parte fugitiva de si mesma que se tornara
uma "estranha" - mas que agora podia retornar de seu lugar de exílio ao limiar entre o mundo
interior e o exterior (a janela), o que, por sua vez, permitiu que ela sentisse sua profunda e tristeza
até então inalcançável, e este foi o primeiro passo para curar sua depressão - para torná-la inteira
novamente.
Assim é com a alma humana. Isto parece precisar de uma imagem ressonante do ambiente
humano ou não humano (Searles, 1960)E se é avançar, algo que reconhece. Podemos imaginar
que o bebê responde repetidamente a essa imagem ressonante, no abraço profundamente
incorporado por sua mãe, e no contato visual e no olhar igualmente cheios de alma que faz parte
de seu jogo mútuo e conexão amorosa. Esses momentos, que agora percebemos são tão críticos
para o posterior "apego seguro" (Bowlby, 1969) e até mesmo para a formação saudável do
cérebro (Schore, 1994, 2003a), são a primeira vivificação da alma, o início mais precoce da vida.
sua "habitação" como diria Winnicott. Mais tarde, outras imagens ressonantes vivificarão a alma
por meio do contato íntimo com outras pessoas no mundo interpessoal da criança.
Ainda mais tarde, e em outros cenários, essa ressonância virá de fontes além do interpessoal
- as belezas da natureza, as impressionantes realidades do cosmos, os olhos cheios de alma de um
animal, a música inspiradora, as idéias elevadas.-até de descrições psicológicas em um livro! A
terapia para a alma vem de muitas formas e de muitos lugares, não apenas na díade mãe-bebê ou
em sua recriação posterior no consultório de um psicoterapeuta.
Mas para aqueles de nós que trabalham nesses consultórios, dia após dia, ter uma teoria que
honre a realidade da alma e a profundidade do espírito se torna importante. Esta teoria nunca
pode ser sistemática ou científica porque a alma e o espírito são realidades mercuriais,
quixotescas, inefáveis e nunca podem ser definidas. Como sede de nossa subjetividade, a alma
jamais poderá ser objeto de investigação e discurso científico. Como a própria luz, ela vive "entre
os mundos" - ora partícula, ora onda - sempre evanescente, fora de alcance, levando-nos ao
mundo e de volta às profundezas de nós mesmos. Se fôssemos sábios, provavelmente ficaríamos
calados sobre a alma e aprenderíamos a ouvir. Mas isso é impossível. Somos obrigados a falar
sobre isso, e assim o faremos.
Assim, nas páginas seguintes contarei histórias de encontros com a alma ou espírito. Essas
histórias são anedóticas e não são passíveis de análise estatística. No entanto, eles são factuais.
Eles são realidades empíricas e, portanto, acredito que eles reivindicam a verdade científica. Eles
realmente aconteceram e, às vezes, são as coisas mais importantes que aconteceram na vida de
uma pessoa ou durante o tratamento psicanalítico. São também as histórias mais interessantes do
planeta - pelo menos para este investigador - então como não contá-las? Talvez o relato deles nas
páginas deste livro permita que o "estranho" dentro de alguns leitores "venha à janela" em
reconhecimento daquela realidade evanescente e tremeluzente que se apresenta em cada interface
"entre os mundos". Chamamos essa realidade de alma humana.