Publicado Metaforas Da Vida Cotidiana

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Estudos Linguísticos e Literários.

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METÁFORAS DA VIDA
CO(T)VIDIANA
METAPHORS WE LIVE (FIGHTING) BY

José Teixeira1
CEH da Universidade do Minho-Portugal

Resumo: A separação tradicional entre denotação-conotação, sentido literal e sentido figurado,


sentido não metafórico e sentido metafórico baseia-se numa longa tradição em que estas
dicotomias são vistas como constituindo dois planos separados. A perceção dos falantes que,
mesmo não sendo linguistas, percebem as diferenças entre os dois planos, reforça esta visão
dicotómica dos dois níveis como instâncias paralelas de significação. Neste texto, através da
explanação e análise à forma como a metáfora PROTEÇÃO (CONTRA O VÍRUS) É GUERRA está
a ser usada pela comunicação social portuguesa, procuraremos demonstrar que esses dois planos
tradicionais não devem ser vistos como planos paralelos, mas antes como níveis com
possibilidade de convergência, em virtude de poder variar o grau de distância semântica (e
figuratividade) entre sentido não metafórico e sentido metafórico.
Palavras chave: Metáfora Concetual; Conotação; Sintonímia; Distância Semântica.

1 Endereço eletrônico: [email protected]

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Abstract: The traditional gap between denotation and connotation, literal sense and figurative sense, non-
metaphorical sense and metaphorical sense is based upon a long tradition in which these dichotomies are
seen as constituting two separate standpoints.
Even though they are not linguists, the perception of speakers reinforces this dichotomous view of the two
levels as parallel instances of meaning.
In this text, through the analysis of how the PROTECTION (AGAINST THE VIRUS) IS WAR metaphor
is being used by the Portuguese media, we will attempt to convey that these two traditional plans should
not be seen as parallel plans, but rather as levels with the possibility of convergence . Furthermore, we argue
that this possibility of convergence is justified because the degree of semantic distance (and figurativeness)
between non-metaphorical and metaphorical meanings may vary.
Keywords: Conceptual Metaphor; Connotation; Syntonymy; Semantic Distance.

1 AS METÁFORAS E A VIDA
Falar, no início de um texto académico, da relação entre a vida e as

metáforas pode parecer uma forma de vencer a síndroma do escritor perante a

angústia do papel em branco.

Mas talvez não seja só isso. A visão tradicional da metáfora reservava-lhe

um papel “especial” dentro da linguagem: era uma “figura de estilo”, um

“desvio”, como genericamente as visões estruturalistas a viam, dotada, também,

da “ininterpretabilidade” que o generativismo lhe atribuiu. Portanto, a metáfora

era tudo menos o funcionamento normal, habitual, da língua da vida cotidiana.

E então aparece a reviravolta lakoff-johnsoniana2.

E até Steven Pinker, não tendo a mesma visão cognitiva de Lakoff e

Johnson, concorda que Metaphors We Live By (LAKOFF; JOHNSON, 1980) é uma

obra “extraordinária”:
A lingüística já exportou várias grandes idéias para o mundo intelectual.
[...] Até por esses padrões, a teoria da metáfora conceitual de Lakoff é
extraordinária. Se ele estiver certo, a metáfora conceitual pode fazer
qualquer coisa, desde virar de cabeça para baixo 2500 anos de equivocada
confiança na verdade e na objetividade no pensamento ocidental. (PINKER,
2008, p. 284)

2Não fica muito elegante o termo e é pouco habitual esta referência àquilo que, normalmente,
se designa por visão ou teoria “lakoffiana” da metáfora. Mas fica mais justa. Convenhamos
que a obra seminal que lhe deu origem é dos dois, embora muitas vezes o segundo autor,
Mark Johnson, fique por referir.

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Lakoff-Johnson vêm trazer a metáfora para a vida do dia a dia porque

conseguem mostrar-nos a metáfora na vida do dia a dia. O maior mérito da obra

de Lakoff e Johnson talvez tenha sido o de provar e focar mais insistentemente

que quaisquer outros anteriores a eles que a metáfora não é algo anormal, mas

um fenómeno do viver/falar da vida cotidiana, não é apenas uma técnica

linguística, mas também um processo percetivo que se espelha em variadas

formas e expressões. E é por isso que se pode aceitar que o título Metaphors We

Live By possa ter sido traduzido, em outras línguas, como Les Métaphores dans la

Vie Quotidienne (Minuit, Paris); Metáforas de la vida cotidiana (Catedra, Madrid) e

Metáforas da Vida Cotidiana, (Mercado de Letras, no Brasil).

Desde o início da obra, Metaphors We Live By sublinha que a metáfora é um

fenómeno da linguagem do cotidiano:

[...] a metáfora interpenetra a linguagem e o pensamento cotidianos -


evidência que não se encaixava em nenhuma teoria contemporânea anglo-
americana sobre o significado, quer dentro da linguística ou da filosofia. A
metáfora tem sido tradicionalmente vista, em ambos os campos, como uma
questão de interesse periférico. Compartilhamos a intuição de que é, em vez
disso, uma questão central, talvez a chave para a explicação mais adequada
da compreensão. (LAKOFF; JOHNSON, 1980, p.7, tradução nossa)3.

Temos, assim, que se a metáfora é um fenómeno do cotidiano irá refletir

as formas mais marcantes dessas vivências. E se o nosso cotidiano (nos tempos

em que este texto está a ser escrito)4 é absolutamente dominado por uma temática

tão global e omnipresente como nenhuma outra o foi na história da humanidade,

então, numa grande parte, as metáforas cotidianas serão metáforas covidianas.

3 “metaphor is pervasive in everyday language and thought—evidence that did not fit any
contemporary Anglo-American theory of meaning within either linguistics or philosophy.
Metaphor has traditionally been viewed in both fields as a matter of peripheral interest. We
shared the intuition that it is, instead, a matter of central concern, perhaps the key to giving
an adequate account of understanding” (LAKOFF; JOHNSON, 1980, p.7)
4 Setembro de 2020.

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2 USOS NÃO METAFÓRICOS E USOS METAFÓRICOS
2.1 Dois planos ou níveis de significado?

Como atrás se referiu, a perspetiva tradicional vê os usos metafóricos

como essencialmente diversos e separados dos usos não metafóricos. Essa

perspetiva permitiu (e permite, para a generalidade) também a separação entre

sentidos denotativos e sentidos conotativos. As palavras (metaforizáveis e não

só), nesta ótica, possuem dois níveis de significado: um assentando

essencialmente na objetividade e referencialidade diretas (sentido denotativo) e

outro apontando para valores diferentes deste sentido, dito denotativo.

É esta a perspetiva dominante e por isso genericamente adotada,

inclusivamente pelo Ministério da Educação e Ciência de Portugal que a explica,

assim, no Dicionário Terminológico que serve de referência para o ensino

secundário:
Denotação: Significado literal e estável de uma palavra ou expressão.
[Não tem exemplos]
Notas: Denotação define-se por oposição a conotação.
Conotação: Significado(s) secundário(s) associado(s) a uma palavra ou
expressão que não corresponde(m) ao seu sentido literal.
Exemplos: Na frase "A minha camisa é vermelha", a palavra "vermelha" tem
valor denotativo; na frase, "Ele é um sindicalista vermelho", a palavra
"vermelho" tem valor conotativo evocando uma filiação partidária ou
desportiva.
Notas: Conotação define-se por oposição a denotação5.

Conotação e denotação, entendidas deste modo, implicam que se veja o

significado de uma palavra como estratificado em dois níveis, separados e

perfeitamente distinguíveis. É interessante consultar as páginas de divulgação e

explicação sobre conteúdos linguísticos e ver como é uma visão de dualidade

inquestionável que opõe os dois níveis de valor que, nesta perspetiva, uma

palavra pode ter:

5 Dicionário Terminológico, Ministério da Educação e Ciência, disponível em:


http://dt.dge.mec.pt/. Acesso em: 11 set. 2020.

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O sentido conotativo é a linguagem em que a palavra é utilizada em sentido
figurado, subjetivo ou expressivo.
Ele depende do contexto em que é empregado, sendo muito utilizado na
literatura. Isso porque, no meio literário, muitas palavras têm forte carga de
sensações e sentimentos.
Por sua vez, o sentido denotativo é a linguagem em que a palavra é utilizada
em seu sentido próprio, literal, original, real, objetivo. Ele é, muitas vezes,
caracterizado como o sentido do dicionário, ou seja, que contém a primeira
acepção da palavra.
Nos dicionários, depois da acepção denotativa há uma abreviação,
normalmente entre parênteses (fig), a qual indica o sentido figurado da
palavra, ou seja, o sentido conotativo.
Exemplos:
Ele comeu bola na prova de matemática. (sentido conotativo)
Depois de jogar bola, nós comemos um churrasco. (sentido denotativo)
Com os exemplos acima, podemos ver que o sentido figurado, ou conotativo,
foi utilizado na primeira oração, uma vez que “comer bola” significa”
cometer um erro. Não poderíamos, no entanto, utilizar essa expressão no
sentido real, uma vez que “comer bola” é algo impensável. (TodaMatéria)6

A partir das definições e exemplos apresentados, pode-se, em esquema,

visualizar os dois níveis separados em que esta perspetiva organiza o significado

linguístico das palavras ou expressões. O elemento DS, no esquema (Figura 1),

procura representar a Distância Semântica que marca a separação entre

denotação e conotação.
Figura 1 - Visão dicotómica tradicional entre denotação e conotação

Fonte: Próprio autor

Obviamente que ninguém quer negar que há uma (grande) distância

semântica entre os usos da mesma palavra/expressão nos exemplos apresentados

e outros que se poderiam apresentar: toda a conhecida metaforização de guerra

6Disponível em: https://www.todamateria.com.br/conotacao-e-denotacao/ Acesso em: 11 set.


2020.

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na linguagem do futebol, por exemplo, demonstra que o falante sabe muito bem

que quando se diz “aquele golo matou o jogo”, “O campeonato é uma guerra que

temos de vencer”, “o tiro de Ronaldo fuzilou o guarda-redes”, “foi um resultado

esmagador” não se está a usar o sentido físico que as palavras matar, guerra, tiro,

fuzilar, esmagar podem ter, como se se tratasse de uma guerra no sentido original7.

Mas será que a organização mental do léxico tem, para cada palavra, duas

“prateleiras”, uma com o significado denotativo e outra com o conotativo, ou que

as palavras têm duas faces, uma denotativa não figurada e outra conotativa,

figurada? Na verdade, na visão tradicional, há sempre uma separação, uma

barreira entre o sentido denotativo (dito “real”) e o conotativo (dito “figurado”).

Embora explicitamente não se afirme isto, a linguística estruturalista e

generativista da análise sémica componencial das Condições Necessárias e

Suficientes (CNS) nunca conseguiu explicar a forma como a mesma palavra (ou

expressão) organiza denotação/conotação, sentido real/figurado, organização

sem nenhuma dificuldade para os utilizadores da língua. Estes problemas da

linguística nunca o foram para os falantes.

2.2 A perspetiva cognitiva integradora dos dois planos

O enfoque cognitivo da análise linguística prefere visões menos

dicotómicas e mais gradualizantes, visões que concebem o fenómeno linguístico

e os seus usos como assentando em modelos mais complexos do que o

mecanicismo do [+X] por oposição a [-X]. Portanto, também aqui, não será de

admirar que se entenda que a metáfora-não metáfora, denotação-conotação

possa ser uma questão de grau ou que a figuratividade da linguagem pode variar

em função de múltiplos fatores presentes na comunicação verbal.

7 O uso da linguagem da guerra no vocabulário do desporto e do futebol é temática


abundantemente estudada. Ver, por exemplo, Teixeira (2010).

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Para a aceitação da não dicotomia radical entre os dois planos de que

temos vindo a falar, contribuem os conceitos de metaforicidade e de figuratividade.

O conceito de metaforicidade ("metaphoricity"), ou seja, o de que há graus

de metaforização numa expressão metafórica, embora possa parecer muito

recente e apenas ligado ao âmbito da metáfora concetual é, na verdade, tão antigo

como a própria visão retórica da metáfora. Na realidade, a distinção tradicional

entre metáforas vivas e metáforas mortas (a figura retórica da catacrese) não é

mais do que o reconhecimento de que as expressões metafóricas vão "morrendo",

vão deixando de ter o funcionamento (cognitivo e linguístico) que "à nascença"

teriam tido. O conceito de metaforicidade pode ir desde o papel que os gestos têm

no uso e processamento metafórico (MÜLLER, 2008), da maior ou menor

intensidade volitiva (MÜLLER, 2011) ou do cerne da questão, de como umas

metáforas são mais metáforas que outras (DUNN, 2011).

A questão da metaforicidade prende-se, inexoravelmente, com a da

literalidade-figuratividade e por isso a noção de figuratividade ("figurativity", em

COULSON; OAKLEY 2005) abarca os dois âmbitos, sendo, na realidade, um

conceito muito semelhante ao de metaforicidade. Cognitivamente, seria

interessante tentar perceber as variadas inter-relações entre o processamento do

sentido literal e do sentido figurado, se tal processamento envolve ou não

estratégias cognitivas diferenciadas. Os dados disponíveis parecem não permitir

conclusões muito definitivas (GIORA, 2002) e talvez no atual estado de

conhecimentos que podemos obter sobre o funcionamento neuro-cognitivo não

seja o aspeto neuronal o mais urgente a querer certificar.

A visão cognitiva resolve a questão dos dois planos do significado sem

grandes problemas, sobretudo pela proposta de substituir a ideia de que a

organização semântica da palavra se faz por traços semânticos necessários e

suficientes (CNS) e oposições duais de presença/não presença, pela ideia das

relações de centralidade prototípica.

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Esta mudança de paradigma que a chamada teoria do protótipo provocou

como teoria para explicar as representações concetuais começa até fora do âmbito

linguístico propriamente dito, mas ligada aos estudos de psicologia de Eleanor

Rosch (ROSCH, 1973; ROSCH, 1975). No entanto, desde cedo a proposta da

prototipicidade é integrada por Lakoff na relação entre a organização categorial

e o funcionamento linguístico (LAKOFF, 1987). Posteriormente, o conceito de

“embodied meaning” ou significado corporizado nas abordagens cognitivas

(LAKOFF, 1995) combina-se com a noção de protótipo para apresentar os

fenómenos ligados ao significado como envolvendo toda a atividade cognitiva

corporal e socialmente integrada.

Nesta visão cognitiva que parte da base concetual dos fenómenos

cognitivos, a organização concetual do significado de uma qualquer palavra não

possui usos dotados sempre do mesmo estatuto concetual, mas usos mais

prototípicos e usos mais periféricos relativamente ao centro prototípico.

Enquanto para a análise componencial todas as ocorrências de cadeira ou pássaro

possuem o mesmo estatuto semântico e o mesmo valor dentro do conceito

(porque partilhariam semas/traços supostamente comuns), para a visão cognitiva

da organização prototípica há umas cadeiras que concetualmente são mais

cadeiras do que outras (e para os pássaros, ou para outro conceito qualquer, a

mesma coisa...)8. Assim, desde os usos prototípicos até aos usos periféricos, há

(podemos chamar-lhe) uma distância semântica que o falante domina e que lhe

permite, sem qualquer dificuldade, verificar se essa mesma distância é maior ou

menor, ou seja, se a palavra está a ser usada no sentido mais ou menos figurado 9.

Imaginemos o esquema da Figura 2 para representar a organização concetual

8Para ver este aspeto sobre a organização prototípica da concetualização, ver Teixeira (2005).
9Pode falar-se também em grau de figuratividade. Não é muito rigoroso, no entanto, associar
denotação/conotação, sentido próprio/sentido figurado a membros ou usos prototípicos/
membros ou usos não prototípicos porque estão implicadas duas visões diferentes do
funcionamento das línguas naturais e da organização lexical. No entanto, globalmente, a
organização prototípica dos usos lexicais abarca, na totalidade, o que tradicionalmente se
dividia entre denotação/conotação, sentido/próprio/sentido figurado.

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prototípica da palavra vermelho. O uso da palavra em casaco vermelho seria um uso

prototípico (V1 ou próximo) ao passo que o uso de vermelho=adepto benfiquista

estaria mais próximo dos valores assinalados como periféricos (V4, por exemplo).
Figura 2 - Esquema representativo da estrutura prototípica

Fonte: próprio autor

Repare-se, no entanto, que esta perspetiva introduz uma visão muito

diferente da visão da denotação/conotação. Agora não há separação de planos,

não há graus ou níveis de significado, mas uma gradação entre os vários valores

ou usos. Não é preciso decidir se o uso é não metafórico ou metafórico, não

figurado ou figurado, denotativo ou conotativo10. É todo um contínuo gradativo

de valores a que se recorre e não a dois planos independentes.

Para mostrar que não há dois planos completamente distintos, mas apenas

um continuum organizado em protótipo, aproveitámos o exemplo da palavra

vermelho dado pela Terminologia Linguística do nosso Ministério da Educação e

Ciência. E é interessante reparar que não é um exemplo do que se considera

metáfora, mas de metonímia (CLUBE POR COR DO CLUBE). Isto acontece

porque o chamado “sentido figurado” engloba um conjunto bastante vasto de

relações semântico-cognitivas. Que metáfora e metonímia não são realidades

separadas, mas fenómenos que se interpenetram, já é pacificamente aceite nos

estudos cognitivos mais recentes. O conceito de metaftonímia baseia-se

10 E, na realidade, os falantes (e muitos linguistas...) têm muita dificuldade em fazer as


distinções sobre se o valor é denotativo ou conotativo quando os usos não são muito
diferenciados.

29  Nº 69, NÚM. ESP.|2020, Salvador: pp. 21-51


precisamente na ideia da gradatividade e implicação entre os fenómenos

metafóricos e metonímicos (GOOSSENS, 1990; BARCELONA, 2000). E, em nossa

opinião, pode ir-se mais longe. A partir de algumas centenas de inquéritos, onde

se analisaram associações que os falantes fazem entre cores e significado (em 9

provérbios portugueses) pode inferir-se que, de forma sistemática, as cores são

associadas pelos falantes inquiridos a expressões e palavras/conceitos, mesmo

quando estes não estão diretamente relacionados com cores. Designámos estas

inter-relações metáfora-metonímia-sinestesia por sintonímia11. Na realidade,

constata-se, sem grande dificuldade, que os valores das cores evocados pelos

provérbios só se explicam pelo funcionamento conjunto daqueles três processos

cognitivos como gradativos, contínuos e não discretos (metonímia, metáfora,

sinestesia). Não é difícil de crer que as associações cognitivas são multifacetadas

e não se dividem rigidamente em, ou apenas metonímia, ou apenas metáfora, ou

apenas sinestesia. A Figura 3 procura representar (1) a visão tradicional da

separação metáfora-metonímia, (2) a integração da metaftonímia e (3) a proposta

da integração sintonímica.
Figura 3 - Esquema da proposta do conceito de sintonímia

Fonte: próprio autor

A nível neurológico, parece também que será mais acertado admitir que

as associações que os neurónios fazem são de múltiplas vertentes, são todas as

possíveis que podem fazer. Pelos dados fornecidos pela neurocognição, parece

11Este aspeto da relação metonímia-metáfora-sinestesia e o conceito de sintoníma, aqui apenas


aflorado, pode ser visto com maior desenvolvimento em Teixeira (2018), Teixeira (2019a),
Teixeira (2019b) e Teixeira (no prelo).

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que os neurónios são viciados em procurarem associações. Sapolsky 12 apresenta

um esquema do funcionamento entrecruzado dos neurónios, em camadas:


O Neurónio A dispara em direção aos Neurónios l, 2 e 3; o Neurónio B
dispara para o 2, 3 e 4, e assim por diante. [...]
O conhecimento do Neurónio 3 é geral e vem da sobreposição das projeções
das primeiras camadas. Os Neurónios 2 e 4 são também generalistas, mas
menos precisos porque só possuem dois exemplares cada.
Então o Neurónio 3 encontra-se no centro convergente dessa rede. E as partes
mais sofisticadas do cérebro estão ligadas, em grande parte, de forma similar
a este circuito de mentira: a um só tempo, o Neurónio 3 é um elemento
periférico nalgum outro circuito e envia projeções para ele — digamos, um
circuito que poderia ser desenhado de forma perpendicular a esta página —
ao passo que o Neurónio 1 está no centro de alguma outra rede na quarta
dimensão, e assim por diante. Todos esses neurónios estão inseridos em
múltiplas redes.
E o que produz isso? A capacidade de fazer associações, metáforas,
analogias, parábolas, símbolos. De relacionar duas coisas díspares, inclusive
de diferentes modalidades sensoriais. De associar homericamente a cor do
vinho com a cor do mar, de entender que tanto «tomate» quanto «batata»
podem ser pronunciados de forma distinta numa música, de notar que uma
língua vermelha de fora nos faz lembrar as músicas dos Stones. E por isso
que associamos Stravinsky a Picasso, dado que os discos (lembra-se disso?)
de Stravinsky pareciam ter sempre uma pintura de Picasso na capa. E é por
isso que um pedaço retangular de tecido com um padrão distintivo de cores
pode representar um país inteiro, um povo ou uma ideologia. (SAPOLSKY,
2018, p. 829-831)

Parece, pois, não ser difícil de admitir que os nossos neurónios procuram

constantemente associações e são essas associações que permitem os fenómenos

que tradicionalmente designamos por metonímias, metáforas, sinestesias como

se fossem fenómenos de âmbito muito diferente, quando não serão mais do que

nomes diferentes que damos aos resultados de variadas associações cognitivas

que a mente processa.

2.3 Há umas metáforas mais metáforas do que outras

A descrição de Sapolsky (2018) reforça a necessidade de não esquecer a

tendência para o correlacionamento que parece ser a caraterística mais

12 Professor de ciências biológicas e neurológicas na Universidade Stanford.

31  Nº 69, NÚM. ESP.|2020, Salvador: pp. 21-51


fundacional dos neurónios. Ou seja, o nosso sistema cognitivo está

constantemente a procurar correlações e a organização concetual e as palavras

que a retratam incorporam essas correlações que, a nível lexical, não são mais do

que as tradicionais conotações. O erro está em concebê-las num plano separado

ao plano “normal” do significado da palavra. Essas “conotações” fazem parte do

significado normal, sem aspas. “Vermelho”, em português (especialmente na

variante do Português Europeu), não significa apenas uma cor ou uma

tonalidade dessa cor, mas significa também “adepto do Benfica”, “simpatizante

de ideologias de esquerda”, “cartão de expulsão de jogadores no futebol”,

“pessoa ruborizada, com as faces avermelhadas” e tantas outras vertentes que

compõe o conceito organizado prototipicamente.

Só que, como atrás vimos (Figura 2), não é necessário supor dois planos de

significado, mas apenas um, em que pode haver maior ou menor distância

semântica entre o centro prototípico e o uso/valor menos central. Isto implica

(como defende a teoria cognitiva do protótipo) que cognitivamente

correlacionamos os sentidos, sabemos automaticamente se eles são muito ou

pouco afastados do núcleo prototípico. Por conseguinte, a distância semântica

entre o sentido prototípico (classicamente, “denotativo”) e os sentidos

correlacionados (classicamente “conotativos/figurados/metafóricos”) pode ser

maior ou menor. O falante pode estruturar um sentido metafórico como estando

perto do sentido prototípico/central, ou vê-lo como bastante afastado dele. “Lutar

pela bola”: para uns, lutar terá um sentido muito metafórico, mas para outros

pode ser pouco metafórico e tendem a interpretá-lo nesta vertente. O jogo de

futebol como luta/guerra pode não ser metafórico no mesmo grau para todos.13

Isto implica que a continuarmos a querer falar de dois níveis de

significado, o do significado prototípico e o dos significados correlacionados

13Basta assistir ao vivo a um jogo de futebol (de preferência nas bancadas dos adeptos comuns,
não nas dos VIPs) para se ver como é pequeno o grau de metaforização ou figuratividade da
metáfora da luta e da guerra no futebol. O comportamento belicoso de muitos adeptos antes
e no fim do jogo acentua esta dimensão do jogo como luta.

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(“conotativos/ figurados/ metafóricos, ...”) temos de aceitar que não se

estruturam em dois planos paralelos, mas em planos com distâncias semânticas

variáveis. Alguns exemplos mostram que esta visão é mais adequada. Na palavra

linha, o valor/uso “linha=linha de coser” tem uma grande distância semântica do

valor/uso “linha em geometria euclidiana”, já que este conceito de linha é anti-

intuitivo porque viola os mecanismos da nossa perceção cognitiva habitual: este

conceito de linha implica aceitar que tem comprimento mas não tem espessura

nem largura, o que é impossível construir pela perceção habitual. Já em “o rei era

a cabeça da nação”, o desvio semântico de cabeça, relativamente ao protótipo

cabeça do corpo humano, é menor: é a habitual atribuição pelos processos que são

sentidos como nítidos processos de metaforização. Mas nestes processos, a

dimensão de metáfora pode variar (e varia), como já atrás assinalámos, entre os

falantes. E assim, a distância semântica será maior entre cabeça do corpo humano e

cabeça da nação do que entre lutar na segunda guerra mundial e lutar pela bola em cada

jogada. Aqui, lutar é “menos metáfora” do que cabeça nos exemplos dados, ou seja,

as duas metáforas possuem diferentes distâncias semânticas entre os respetivos

sentidos prototípicos e os sentidos metafóricos, como na Figura 4 podemos

visualizar.
Figura 4 - Esquema da variação da distância semântica na metaforização

Fonte: próprio autor

Isto equivale a dizer que também o conceito de metáfora é prototípico, ou

seja, que, tal como acontece com os conceitos para as cadeiras, os pássaros ou o

vermelho, há algumas metáforas que são mais metáforas do que outras.

33  Nº 69, NÚM. ESP.|2020, Salvador: pp. 21-51


3 AS METÁFORAS DA VIDA COVIDIANA
Procurámos, até aqui, fazer ressaltar que a distância entre expressão

metafórica e não metafórica não tem sempre a mesma saliência, mas configura

um contínuo que vai da separação nítida até à quase identificação. E, a nosso ver,

os usos metafóricos usados nos média relativos à temática da designada COVID-

19 fornecem indícios suficientemente sólidos de que, na metáfora concetual

dominante, a metáfora da guerra, podemos verificar como ela foi frequentemente

utilizada nesta dimensão: tentar reduzir ao mínimo a distância semântica entre

sentido prototípico, não metafórico, e sentido metafórico.

3.1 “...De uma verdadeira guerra se trata”

As metáforas de guerra podem aparecer aplicadas em vários domínios,

desde o do jogo, como já atrás referimos, até ao da discussão (ARGUMENT IS

WAR, em LAKOFF; JOHNSON, 1980). Não será, portanto, de estranhar que no

domínio da prevenção contra um vírus, ou qualquer doença mais disseminada,

surjam metáforas de luta (“lutar contra a doença”). A especificidade das surgidas

no contexto COVID-19 está em que, mais do que de luta, são metáforas de guerra.

Mais: para determinados atores políticos, convém até que nem sejam vistas como

metáforas, ou seja, que o recetor tenda a interpretar a metáfora como se valesse

pelo seu sentido prototípico, como se o referente não fosse uma situação de não

guerra metaforizada em guerra, mas uma verdadeira guerra o referente real. Ou

seja, estes atores políticos (ainda que talvez não conscientemente) intuíram que a

distância semântica nas metaforizações não é sempre a mesma e que pode ser

encurtada, caso se consiga fazer da expressão metafórica uma expressão

referencial.

É sintomático que o discurso da declaração do Estado de Emergência pelo

Presidente da República portuguesa revele, logo nos primeiros parágrafos, esta

situação. Num contexto de declaração solene ao país, usando precisamente a

figura constitucional do Estado de Emergência (que costuma ser reservado para

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situações de guerra), logo nos primeiros parágrafos, aplica à situação da proteção

contra o contágio a metáfora da guerra, mas reforçando imediatamente que não

é uma guerra metafórica (não usa esta formulação) mas uma guerra real, uma

“verdadeira guerra” (“Esta guerra, porque de uma verdadeira guerra se trata...”).

Quase todo o discurso está imbuído de expressões referentes a guerra,

procurando que os portugueses interiorizem que “de uma verdadeira guerra se

trata” como explicitamente afirma. Perdoe-se o tamanho da exemplificação, mas

ela torna-se necessária para se perceber como as metáforas de guerra usadas o

foram numa contextualização muito convincente sobre as guerras que os

portugueses travaram no passado e que lhes permitiram o milagre da existência

como povo (o destaque é nosso):


[...] Esta guerra, porque de uma verdadeira guerra se trata, dura há um mês,
começou depois (da) dos vizinhos europeus; também por isso pode demorar
mais tempo a atingir os picos da sua expressão. [...]
E os portugueses, com a experiência de quem já viveu tudo, numa história
de quase 9 séculos, disciplinaram-se, entenderam que o combate era muito duro, e
muito longo e foram e têm sido exemplares. [...]
O Governo, que tem entre mãos uma tarefa hercúlea, adotou medidas
tentando equilibrar contenção no espaço público e nas fronteiras e não
paragem da vida económica e social, medidas que todos, presidente,
parlamento, partidos, parceiros sociais, apoiamos, conscientes de que só a
unidade permite travar e depois vencer guerras. [...] [A declaração do estado de
emergência] Não é, porém, uma vacina, nem uma solução milagrosa que
dispense o nosso combate diário [...]
[...] num ponto, os especialistas são claros: depende da contenção nas
próximas semanas o conseguirmos encurtar prazos, poupar pacientes e
sobretudo salvar vidas. Temos, pois, todos de fazer por contribuir para ir o
mais longe e o mais depressa possível nesta luta desigual e quanto mais depressa
formos, mais depressa poderemos salvar vidas [...]
[...] temos de fazer a nossa parte, manter viva a nossa economia: assim é em
tempo de guerra. As economias não podem morrer.
Termino com um pedido
Nesta guerra, como em todas as guerras, só há um efetivo inimigo. Invisível,
insidioso e por isso perigoso, que tem vários nomes: desânimo, cansaço, fadiga
do tempo que nunca mais chega ao fim. Temos que lutar todos os dias contra ele.
Contra o desânimo pelo que corre mal ou menos bem. Contra o cansaço de as
batalhas serem ainda muitas e parecerem difíceis de ganhar. Contra a fadiga, que
tolhe a vontade, aumenta as dúvidas, alimenta indignações e revoltas. Tudo
o que nos enfraquecer e dividir nesta guerra alongará a luta e torná-la-á mais
custosa e dolorosa. Resistência, solidariedade e coragem são as palavras de

35  Nº 69, NÚM. ESP.|2020, Salvador: pp. 21-51


ordem. E verdade, porque nesta guerra ninguém mente nem vai mentir a
ninguém. Isto vos diz e vos garante o Presidente da República [...]
O caminho ainda é longo, é difícil e é ingrato. Mas não duvido um segundo
sequer que vamos vencê-lo o melhor que pudermos e soubermos. Na nossa
história vencemos sempre os desafios cruciais. Por isso temos quase 900 anos
de vida. Nascemos antes de muitos outros e existiremos ainda quando eles
já tiverem deixado de ser o que eram e como eram.
Deixem-me terminar com um exemplo de como somos: o exemplo da neta
enfermeira que no dia em que perdeu o seu avô, a primeira vítima mortal, me
dizia: “presidente, já só faltam 9 dias para eu regressar à luta. Somos assim
porque somos Portugal. (fim do discurso)14.

E a mensagem foi muito eficaz, porque a imprensa, globalmente, aceitou

falar da situação efetivamente como se de uma verdadeira guerra se tratasse,

fazendo títulos de capa (e o estar nas capas é indicador da importância) com a

mensagem de guerra, desde revistas de referência (Figura 5), o mais vendido

jornal diário (Figura 6) e até jornais desportivos (Figura 7).


Figuras 5, 6 e 7 - Capas impressas da revista Sábado e dos jornais Jornal de Notícias e O Jogo

É sintomático o Editorial do jornal diário mais vendido (Jornal de Notícias),

intitulado “Juntos nesta trincheira” (19/3/2020), que corrobora as expressões de

guerra (formalmente metafóricas, mas entendidas como mais próximas da

realidade do que da metáfora): “Como tão apropriadamente o caracterizou o

presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na comunicação solene que

fez ao país para explicar os contornos da declaração do estado de emergência,

14Declaração do Estado de Emergência de 18 de março de 2020. Disponível na Página Oficial


da Presidência da República, http://www.presidencia.pt/?idc=21&idi=176060. Acesso em: 10
fev. 2021.

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estamos no meio de uma guerra.”15 Ou seja: a expressão que o Presidente utilizou,

“estamos no meio de uma guerra”, segundo o jornal, é a expressão que melhor

carateriza a situação (“Como tão apropriadamente o caracterizou”). E o Editorial

termina assim: “Porque não há outra forma de vencer esta guerra que não seja

deste modo: juntos, numa trincheira invisível a disparar coragem sobre um

inimigo que não tem rosto.”16

3.2 Porque é que uma metáfora pode ser vista como “um exagero e um excesso
de linguagem”?

O uso de metáforas e expressões metafóricas de guerra para a situação da

COVID-19, se já o era até aí, tornou-se quase asfixiante na imprensa, dando, por

vezes, a ideia de que parecia estar a falar-se mesmo de uma guerra. Isso levou a

que, na própria imprensa, surgisse o debate sobre até que ponto a guerra

verbalmente expressa poderia ser interpretada como uma guerra real.

No semanário mais conceituado do país (Expresso), o Editorial desse fim

de semana17 abordava a temática:


A declaração do estado de emergência, uma prerrogativa acionada na
quinta-feira e desenhada para o caso de uma guerra civil, serviu que nem
uma luva à narrativa que nos últimos dias usou abundantemente a metáfora
da guerra para o “combate” ao novo coronavírus. Tomar esta pandemia
como uma batalha pode, no entanto, ser um erro, até porque é cada vez mais
provável não ser possível ganhá-la. Pelo menos enquanto não existirem
vacinas. O vírus continuará a viver entre nós e é bem possível que a única
vitória sobre ele seja a sua integração. (Editorial, Expresso 21/3/2020).18

É interessante verificar que, se por um lado o jornal sente que a metáfora

da guerra pode ser nociva porque pode ser tomada como “pouco metafórica” e

15 Editorial na edição impressa e online, disponível em: https://www.jn.pt/opiniao/editorial-


juntos-nesta-trincheira-11951908.html: Acesso em: 10 fev. 2021.
16 Editorial na edição impressa e online, disponível em: https://www.jn.pt/opiniao/editorial-

juntos-nesta-trincheira-11951908.html: Acesso em: 10 fev. 2021.


17 Este jornal/semanário sai apenas ao sábado.

18 Edição impressa e online para assinantes, disponível em:


https://leitor.expresso.pt/semanario. Acesso em: 21 mar. de 2020.

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interpretada como descrevendo uma verdadeira guerra, por outro lado termina

com expressões metafóricas da mesma metáfora concetual, assumindo, mesmo,

que a situação é de guerra. As últimas linhas do mesmo editorial são:


Um dos últimos grandes líderes da história cresceu com o lema: “Na guerra,
determinação; na derrota, resistência; na paz, boa vontade.” Que tenhamos
líderes à altura. Que todos estejamos à altura. (Editorial, Expresso
21/3/2020).19

As expressões de guerra, quanto menos metafóricas e mais “reais” forem

assumidas, mais favorecem as perspetivas da necessidade de comando: destacam

o papel dos líderes a quem se deve dar todo o poder, fazem ver tudo como uma

questão de quem ganha e quem perde, captam a nossa benevolência para confiar

em quem comanda. São metáforas nitidamente de reforço de comando. Não foi

por acaso que todos os chefes de governo subiram em intenções de voto e em

popularidade nas sondagens. Por isso, não é de admirar que esta metáfora não

seja aceite por quem, por questões de princípio ou ideologia, não quer conceder

demasiado poder aos líderes e discordou da declaração oficial do Estado de

Emergência:
Ao contrário do que se diz, isto não é uma guerra. Nas guerras perde-se ou
ganha-se. Nisto, pondera-se o impacto da doença e da cura. E é por isso que
os políticos não podem ser comandados pelo medo das pessoas, por mais
insuportável que seja a pressão. (Daniel Oliveira, Não morrer da cura,
Expresso 21/3/2020)20.

O debate foi bastante generalizado, como resumidamente o jornal Sol

refere:
Marcelo Rebelo de Sousa utilizou oito vezes a palavra guerra, na
comunicação que fez ao país, para definir a crise que estamos a atravessar
devido ao coronavírus. O Presidente da República não tem dúvidas de que
estamos a enfrentar «uma verdadeira guerra». Não foi o primeiro a associar
a Pandemia da COVID-19 a uma guerra, mas há quem considere um exagero
e um excesso de linguagem.

19 Edição impressa e online para assinantes, disponível em:


https://leitor.expresso.pt/semanario. Acesso em: 21 mar. de 2020.
20 Edição impressa e online para assinantes, disponível em:
https://leitor.expresso.pt/semanario. Acesso em: 21 mar. de 2020.

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«É preciso ter cuidado com os excessos», afirmou Pacheco Pereira, na TVI 24.
O comentador e ex-deputado do PSD considera que «não vale a pena estar
com esta linguagem», porque esta pandemia «não pode ser interpretada
como um conflito».
O social-democrata Miguel Morgado também fez um apelo aos políticos para
que «não abusem da analogia da ‘guerra’», porque «nem todas as
catástrofes» são guerras. «Não é só um defeito de imaginação política e
moral. É que o efeito inicial de mobilização da população rapidamente se
desfaz precisamente porque a presente calamidade não é uma guerra».
A ex-secretária de Estado da Educação Ana Benavente também escreveu um
post no facebook a contestar o excesso de linguagem. «As palavras não são
neutras. Guerras implicam armas que matam, militares e tropas, vencidos e
vencedores, campos opostos, barbaridades várias». [...] (Luís Claro, Faz
sentido falar em guerra?, Jornal Sol, 21/3/2020)21.

Esta necessidade sentida de combater a ideia de que não estamos numa

verdadeira guerra denota a intuição do sentimento de que esta metaforização

antivírus estava a ser interpretada quase literalmente, ou seja, não era atribuída

grande distância semântica entre o plano metafórico e o plano referencial. Até

porque os jornais noticiavam constantemente que, em alguns países, havia

muitos mortos, doentes, hospitais onde não cabiam mais pessoas que eram

deixadas sem assistência, a morrer e, mesmo as pessoas sem a doença, impedidas

de sair de casa, tentando, os que podiam, fugir para zonas mais distantes, rurais

e mais isolados dos grandes centros, como acontece numa verdadeira guerra. O

Diário de Notícias resume a situação em Espanha usando um título em que guerra

não está no domínio metafórico: “Em Espanha, o cenário é de guerra” quer dizer

“é mesmo um cenário de guerra autêntica”. E justifica: “Nas últimas 24 horas

morreram quase 400 pessoas. O país vizinho soma neste momento 28573

infetados e 1725 mortos. O primeiro-ministro Pedro Sánchez anunciou o

prolongamento do estado de emergência e os médicos dizem que estão a viver a

21 Jornal Sol de 21/3/2020 impresso; também disponível em:


https://www.sol.sapo.pt/artigo/689908/faz-sentido-falar-em-guerra. Acesso em: 10 fev. 2021.

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‘guerra da nossa geração’” (Catarina Pires, Em Espanha, o cenário é de guerra,

Diário de Notícias, 22 março 2020)22.

Mas por que razão se contesta, então, o uso da metáfora da guerra no

combate ao vírus? Não se discutiria do mesmo modo se é lícito usar a expressão

“o Presidente é a cabeça da nação”, “os teus olhos são estrelas” ou “o teu sorriso

é o meu sol”, embora aqui sim, em rigor haja “um exagero e um excesso de

linguagem”, razão apontada para não se dever referir a proteção contra o vírus

como guerra. Toda a gente sabe que as nações não são uma pessoa, não têm

cabeças, os olhos não são estrelas e o Sol é uma estrela e não um sorriso. Mas a

metáfora é isso mesmo, normalmente “excede” a realidade, até de uma forma

quase absurda ou mesmo absurda sem ninguém se admirar nem querer proibir.

Então, por que razão esta metáfora concetual da guerra covidiana foi (é) polémica

e classificada como “exagero e excesso de linguagem” e vista, por alguns, como

devendo ser evitada? Precisamente porque ela é interpretada quase como não

metáfora, há demasiada proximidade entre o seu valor metafórico e o seu valor

referencial.

Um indício interessante sobre a perceção da situação como de verdadeira

“guerra” foi dado por um comportamento aparentemente inexplicável: o enorme

aumento da venda de armas para particulares nos Estados Unidos, que mesmo a

22 Disponível em: https://www.dn.pt/mundo/em-espanha-o-cenario-e-de-guerra-


11967552.html. Acesso em: 10 fev. 2021. O sentir que se trata “quase” numa verdadeira guerra
não acontece(u) apenas na Europa. Uma aluna chinesa a viver na China, quando lhe perguntei
como era lá transmitida a perceção da situação escreveu o seguinte: “Em relação à metáfora de
guerra, nos jornais chineses é mais ou menos a mesma coisa [que em Portugal]. Na verdade, nos últimos
meses, os médicos e enfermeiros eram elogiados como heróis e foram recebidas com saudação militar
quando entraram nas regiões mais afetadas para ajudarem a população local. Além disso, a sociedade
chinesa tornou num modo de guerra no final de janeiro. O governo bloqueou os movimentos
populacionais (incluindo o transporte público e carros privados) e cancelou todas as atividades públicas.
Foram fechadas a maioria das lojas, exceto alguns supermercados. Até ao início de março, a cada família
foi permitida a saída de apenas uma pessoa para comprar a comida necessária, no máximo, três vezes
por semana. O resto da família deveria ficar em casa. (email de 23 março 2020).

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imprensa portuguesa referiu como uma curiosidade surpreendente23 ou

ironizando com o aparente absurdo (Figura 8).

Figura 6 - Bartoon

Fonte: Jornal Público, 20/3/202024

Mas talvez este facto não seja tão surpreendente se compreendermos a

simbologia social e cognitiva que o uso de armas tem para muitos americanos.

Em situações tidas como de perigo, o inconsciente de muita gente, na cultura

americana, associa a necessidade de segurança, de defesa, ao uso de armas. A

“guerra” ao vírus não se faz com as armas das guerras não metafóricas, mas como

esta “guerra” foi sentida como quase real e pouco metafórica o inconsciente

coletivo buscou na compra de armas a resposta à perceção sentida de uma guerra

real.

A partir do que fomos realçando sobre a forma como na imprensa se

retratam os usos metafóricos de guerra aplicados à situação da COVID-19, pode

23 Site da Agência Efe (https://www.efe.com 9): “as compras impulsionadas pelo medo dos possíveis
efeitos do novo coronavírus também levaram ao aumento nas vendas de armas nos Estados Unidos, com
compradores a aglomerarem-se em estabelecimentos especializados em cidades como Los Angeles.
Longas filas de compradores foram vistas neste fim de semana em frente à loja de armas Martin B.
Retting, em Culver City, no condado de Los Angeles, o que levou o local a publicar uma mensagem na
sua conta do Facebook a pedir desculpas aos clientes por não permitir testes em algumas das armas e por
não poder atender todos.
As vendas de armas também subiram online.
O site "Ammo.com", que vende munições online, também viu um aumento recente nas vendas.
Segundo a empresa, de 23 de fevereiro a 4 de março, as transações aumentaram 68% em comparação
aos 11 dias anteriores, informou o jornal Los Angeles Times.”
Disponível em: https://www.efe.com/efe/portugal/destacada/venda-de-armas-nos-eua-
aumenta-devido-ao-medo-dos-efeitos-do-coronavirus/50000440-4197630. Acesso em: 16 set.
2020.
24 Publicado na edição impressa e também disponível online em:
https://www.publico.pt/bartoon. Acesso em: 10 fev. 2021.

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inferir-se como óbvia (parece-nos) a constatação de que as metáforas podem ser

sentidas como “muito ou pouco metafóricas”, ou seja, os falantes não atribuem a

todas o mesmo desvio semântico, sendo as da guerra covidiana sentidas quase

como expressões de referencialidade direta.

Poderemos, agora, completar o esquema da Figura 4, proposto atrás, com

o esquema da Figura 9, procurando visualizar não apenas como é diferente a

distância semântica entre metáforas com Fontes e Alvos diferentes (para linha,

cabeça e guerra) como também pode variar a diferença semântica em metáforas

com a mesma Fonte e Alvos diferentes (JOGO DE FUTEBOL É GUERRA,

PROTEÇÃO DO CORONAVÍRUS É GUERRA).

Figura 7 - Relação de gradatividade entre os usos prototípicos e não prototípicos

Fonte: próprio autor

Este esquema permite conciliar a perspetiva tradicional, estruturalista,

com a perspetiva cognitiva. Na realidade, aceita os dois planos de significado, a

oposição denotativo/conotativo, não figurado/figurado, conciliando isto com a

teoria do protótipo, já que a noção de Distância Semântica permite compreender

o porquê de haver maior ou menor desvio entre os dois planos.

4 AS METÁFORAS DE GUERRA ENTRE AS METÁFORAS DA VIDA


COVIDIANA

As metáforas de guerra sobre a COVID-19 talvez sejam as que mais

soundbites originam nos média. No entanto, elas nem são as metáforas nucleares

Nº 69, NÚM. ESP.|2020, Salvador: pp. 21-51  42


da rede covidiana veiculada pela imprensa, já que as primárias serão,

naturalmente, as que metaforizam o próprio vírus.

Esta rede metafórica será, como todas, uma estrutura aberta, e nenhum

trabalho de recolha a pode representar completamente. Não será também essa a

intenção deste texto, mas apenas a de, em esquema, situar a metáfora concetual

aqui usada, PROTEÇÃO DO VÍRUS É GUERRA, relativamente à rede metafórica

mais alargada da COVID-19.

Antes de mais, é fundamental reconhecer a utilidade do conceito de

metaftonímia (por isso atrás abordado) para poder entrar na referida rede

metafórica. O nome técnico do vírus é SARS-CoV-2, assim mesmo, com

maiúsculas, uma minúscula e um número. Mas raramente ele é usado para referir

o vírus, preferindo-se coronovírus ou COVID-19, embora, em rigor, não sejam

referências equivalentes. Mas como a linguagem cotidiana não é rigorosa mas

metaftonímica, qualquer destas referências é usada, muitas vezes, como se todos

fossem termos sinónimos. E a prova disso é, por exemplo, aparecer escrito, como

tantas vezes aparece na imprensa e no uso diário, “o COVID” em vez de “a

COVID”, já que COVID equivale a “doença do vírus corona”

(COronaVIrusDesease). Usar o masculino indicia, naturalmente, referência

(metonímica) ao vírus.

Idêntica equivalência metonímica acontece ao dizer-se “infetado por

COVID” (e os exemplos em jornais, sites oficiais -até de centros hospitalares- e

relatos orais são inúmeros25). Não é a doença que infeta, é o vírus. A doença é o

25Apenas a título de exemplo: “Acha que esteve infetado com COVID-19?” (Jornal Correio da
Manhã, disponível em: https://www.cmjornal.pt/mundo/detalhe/acha-que-esteve-infetado-
com-covid-19-conheca-os-sintomas-que-nao-deve-ignorar-e-podem-persistir-apos-recuperar.
Acesso em: 10 fev. 2021; “Sabe o que fazer se alguém em sua casa ficar infetado pelo #COVID-
19?”, site do Hospital Privado de Chaves, disponível em: https://hpchaves.pt/sabe-o-que-
fazer-se-alguem-em-sua-casa-ficar-infetado-pelo-covid-19/. Acesso em: 10 fev. 2021; “Casal
infetado com Covid-19 deu o nó no hospital”, site da RTP, televisão nacional (do estado) de
Portugal, disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/mundo/missao-da-oms-a-china-origem-
do-sars-cov-2-fica-por-determinar_n1296368. Acesso em: 10 fev. 2021. Os exemplos são
inúmeros, basta pesquisar a expressão “infetado com covid”.

43  Nº 69, NÚM. ESP.|2020, Salvador: pp. 21-51


resultado da infeção. Por exemplo, num título que vários órgãos de comunicação

social usaram em 13/9/2020 “Guarda redes do Benfica infetado com COVID-19”26

deveria ser “Guarda redes do Benfica infetado com o vírus corona tem COVID-

19”. Ou ainda títulos que se não fosse o funcionamento metonímico seriam

absurdos, como “COVID-19 ajuda zonas com menos turismo”27. Aqui COVID-19

equivale a vírus ou à situação global criada e não à doença. Não é quem está

doente ou a própria doença que ajudam as zonas que antes da pandemia tinham

menos turismo, mas a situação social (as pessoas procurarem para férias zonas

pouco frequentadas) provocada pelo vírus.

Temos, portanto, que expressões como “vírus SARS-CoV-2”, “COVID-

19”, “coronavírus” e mesmo “pandemia” podem funcionar como metonímias

entre elas, como o esquema da Figura 10 permite visualizar.

Figura 8 - Correspondência metonímica dos termos relativos ao vírus

Fonte: esquema do autor

Esta equivalência metonímica permite que os domínios-alvo (vírus-

pandemia-COVID 19-coronovírus) se fundam cognitivamente e facilitam a

construção de inúmeras metáforas que podem ilustrar o conceito de metáforas em

cascata que David, Lakoff and Stickles (2016) apresentam:

26 Jornal Correio da Manhã online. Disponível em:


https://www.cmjornal.pt/desporto/detalhe/guarda-redes-do-benfica-infetado-com-covid-19.
Acesso em: 10 fev. 2021.
27 O maior título em toda a primeira página do jornal impresso de distribuição gratuita O

Destak de 14/09/2020.

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The novelty of the proposed developments lies in the introduction and
formal implementation of the concept of metaphoric cascades in metaphor
analysis. A cascade is a hierarchically organized conceptual combination of
image-schemas, frames, and metaphors that has been used ofen enough to
become fixed as a single complex entity, though each of its parts continues
to occur separately. (DAVID; LAKOFF; STICKLES, 2016, p. 215)

A partir da forma como a imprensa portuguesa referencia o domínio-alvo

constituído por este vírus fomos recolhendo um corpus que demonstra a enorme

quantidade e variedade de metáforas que servem de domínio-fonte. Não se

podem, aqui, apresentar todas as ocorrências desse corpus, mas, para mostrar

como realmente as metáforas covidianas se organizam em cascata e que, como

refere a proposta teórica de David, Lakoff and Stickles, compõem redes

hierárquicas coerentes (“A noção de cascata baseia-se na observação feita na

semântica de frames de que os frames são conjuntos de papéis coerentes

dinamicamente relacionados uns com os outros”28 (DAVID; LAKOFF;

STICKLES, 2016, p. 215).

Assim, poder-se-á elaborar a estrutura geral das mais salientes metáforas

covidianas encontradas na imprensa portuguesa. Essa estrutura, como não podia

deixar de ser, mostra-se assente nas dimensões cognitivamente mais salientes

atribuídas ao vírus, que constituem as metáforas mais básicas e de nível superior:

VÍRUS É SER QUE SE MOVE; VÍRUS É AGENTE; VÍRUS É (MILITAR)

INIMIGO. E é desta última dimensão que decorrem as metáforas de guerra, que

poderiam verbalizar-se como LUTAR CONTRA O VÍRUS É GUERRA, mas mais

adequadamente como PROTEÇÃO (CONTRA O VÍRUS) É GUERRA29. A Figura

11 representa essa estrutura geral metafórica, e as Figuras 12, 13, 14 e 15 as

28 “The notion of a cascade builds on the observation made in frame semantics that frames
are bundles of coherent roles dynamically related to one another”.
29 Expressões muito frequentes como “proteger-se é a melhor arma”, “distanciamento social é

a melhor defesa”, “ficar em casa é a única arma que temos” mostram a abrangência aqui do
conceito de luta que inclui a proteção de cada um.

45  Nº 69, NÚM. ESP.|2020, Salvador: pp. 21-51


metáforas mais destacadas que encontrámos na imprensa escrita e que

exemplificam e desenvolvem em cascata o referido esquema de base.

Figura 9 - Estrutura global das metáforas covidianas

Fonte: esquema do autor

Figura 10 - Rede de metáforas do ramo VÍRUS É SER QUE SE MOVE

Fonte: esquema do autor

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Figura 11 - Rede de metáforas do ramo VÍRUS É AGENTE

Fonte: próprio autor

Figura 12 - Rede de metáforas do ramo PROTEÇÃO É GUERRA

Fonte: próprio autor

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Figura 13: Rede de metáforas do ramo VÍRUS É AGENTE DE ATIVIDADE

Fonte: próprio autor

5 FOCANDO O ESSENCIAL

Naturalmente que não foi objetivo deste texto a explanação de toda a rede

metafórica usada pela imprensa portuguesa na veiculação das notícias da

situação da COVID-19. Nem sequer se analisaram nem elencaram todas as

metáforas relativas a PROTEÇÃO (CONTRA O VÍRUS) É GUERRA, inúmeras e

muito variadas, como na Figura 14 se pode vislumbrar. O essencial, para este

texto, é o de tentar refletir sobre a difícil questão da tradicional separação entre

denotação-conotação, sentido literal-figurado, sentido não metafórico-sentido

metafórico. A longa tradição em que estas dicotomias assentam alia-se à perceção

dos falantes que, mesmo não sendo linguistas, intuem diferenças entre os dois

planos de significado. Será, portanto, contraintuitivo negar que os dois planos

existem, mas isso não pode significar uma visão rígida que separa esses planos

como instâncias paralelas de significado. Esses planos têm de ser vistos como de

distanciação dinâmica, como de relação dinâmica de significado, dinamismo esse

que relembrando os conceitos de metaforicidade e de figuratividade pode fazer

Nº 69, NÚM. ESP.|2020, Salvador: pp. 21-51  48


variar em grau ou intensidade a distância não figurado-figurado (ou denotação-

conotação, não metafórico-metafórico). Na Figura 9, atrás apresentada,

procuramos que se visualize a forma como se pode conciliar a existência dos dois

planos tradicionais com a perspetiva cognitiva do significado lexical como

estrutura dinâmica assente em modelos de prototipicidade. Até porque esta

variabilidade de intensidade figurativa não afeta a eficácia comunicativa e

cognitiva da metáfora, antes pelo contrário: é a diminuição da distância

semântica entre o metafórico e o não metafórico que dá o extraordinário poder a

estes níveis que tem a metáfora PROTEÇÃO (CONTRA O VÍRUS) É GUERRA.

Por isso, ela estar a ser tão popular em culturas e nações muito diferentes, por

isso ela ser obsessivamente usada, sobretudo por líderes governamentais que lhe

querem dar importância como se dá a um inimigo e assim aparecerem como

verdadeiros salvadores nacionais30., e ampliada pela comunicação social, aceite

e reutilizada popularmente nas conversas do cotidiano.

Metaphors we live by foi a afirmação que iniciou a metáfora concetual. A

pandemia da COVID-19 permite verificar que as metáforas também servem para

lutar, Metaphors we live (fighting) by e que, portanto, também as metáforas da vida

covidiana são, para o bem e para o mal, hoje, metáforas da vida cotidiana.

REFERÊNCIAS

BARCELONA, A. (ed.) Metaphor and Metonymy at the Crossroads: A Cognitive


Perspective, Berlin: Mouton de Gruyter, 2000.
COULSON, S.; OAKLEY, T. Blending and coded meaning: Literal and figurative
meaning in cognitive semantics. Journal of Pragmatics, v. 37, n. 10, p. 1510-1536, 2005.

30Os líderes nacionais (Presidentes Bolsonaro, Trump e poucos mais) que não partilharam
estes frames (podemos dizer, esta estrutura cognitiva) e não quiseram perspetivar o combate à
pandemia como uma guerra, mas como algo banal (“uma gripezinha”, “nada de especial”,
“com o calor o vírus vai morrer”) ou mudaram de opinião ou sofreram fortes perdas de
popularidade.

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set. 2020.

Nota do editor:
Artigo submetido para avaliação em: 11 de novembro de 2020.
Aprovado em sistema duplo cego em: 04 de fevereiro de 2021.

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