Poder e Projeto - Reflexoes Sobre A Agencia - ConferenciaseDialogos
Poder e Projeto - Reflexoes Sobre A Agencia - ConferenciaseDialogos
Poder e Projeto - Reflexoes Sobre A Agencia - ConferenciaseDialogos
CONFERNCIAS E DILOGOS:
SABERES E PRTICAS ANTROPOLGICAS
25 Reunio Brasileira de Antropologia - Goinia 2006
Textos de Barbara Glowczewski Eunice Durham Manuela Carneiro da Cunha Marc-Henri Piault Roberto DaMatta Ruth Cardoso Sherry B. Ortner Verena Stolcke
2007
Copyright 2007 ABA - Associao Brasileira de Antropologia Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, armazenamento ou transmisso de partes deste livro, atravs de quaisquer meios, sem prvia autorizao por escrito.
Transcrio das conversas com autores Fernanda Cardozo, Joana Pagliosa Corona, Nayara Piloni Reviso e correo das provas Fernanda Cardozo Tradutor@s Alex Simon Lodetti, Danilo de Assis Clmaco, Luiz Felipe Guimares Soares, Mariana Joffily, Sieni Campos Secretaria Carmem Vera Ramos Duarte Vieira Apoio presena de conferencistas na 25 RBA: Embaixada Francesa Barbara Glowczewski e Marc-Henri Piault Embaixada Norte Americana Sherry B. Ortner CNPq Verena Stolcke CAPES Eunice Durham, Manuela Carneiro da Cunha, Roberto DaMatta e Ruth Cardoso Fundao Ford Workshops de Teorias Avanadas de Gnero e de Patrimnio FAPERJ Publicao Outros apoios realizao da 25 RBA Universidade Catlica de Gois Universidade Federal de Gois FINEP Secretaria Especial de Polticas Pblicas para Mulheres Ministrio do Desenvolvimento Agrrio Petrobrs FAPESP Livro publicado pela Asssociao Brasileira de Antropologia/Editora Nova Letra com o apoio da FAPERJ Braslia/Blumenau, 2007
SUMRIO
APRESENTAO .................................................................................................... 7 INTRODUO ....................................................................................................... 11
APRESENTAO
Com a publicao de Conferncias e dilogos: saberes e prticas antropolgicas, a ABA torna disponvel, para um pblico mais amplo, algumas das principais atividades que tiveram lugar durante a ltima reunio bianual da Associao, realizada em junho de 2006 em Goinia. Neste aspecto, o livro conjuga a reunio das conferncias proferidas durante a 25 RBA ou em atividades conexas ao evento, com as Conversas com Autores. Foram oito conferncias de quatro colegas estrangeiros e trs conversas com quatro colegas brasileiros, proporcionando acesso em portugus produo recente dos conferencistas e viabilizando um tipo de dilogo pouco comum e bastante enriquecedor com autores importantes para a antropologia brasileira. Abordando relaes de gnero, direitos patrimoniais ou o lugar da imagem na interpretao antropolgica, o conjunto de conferncias pe o leitor em contacto com situaes etnogrficas e com perspectivas diversas. A possibilidade de ouvir em primeira mo pesquisadores que atuam em outros pases e que so formados em diferentes tradies da disciplina sempre uma experincia renovadora com grande potencial de ampliao de nossos horizontes. Isso particularmente verdade no caso em tela, quando sabemos que a 25 RBA reuniu cerca de trs mil pessoas e que os auditrios das conferncias estavam lotados, assim como as reas de extenso, que permitiam o acompanhamento das conferncias via telo. A propsito, boa parte do pblico presente era composto por estudantes nos trs nveis de formao doutorado, mestrado e graduao , e difcil pensar em mecanismos mais eficientes de socializao de jovens pesquisadores do que a oportunidade de ouvir o produto do trabalho de pesquisadores seniores e de dialogar com eles. Evidentemente, isso vale para o conjunto de atividades realizadas durante a 25 RBA, e creio ser esta uma das importantes funes de nosso principal evento bianual, o qual tem colaborado significativamente para a visibilidade e para a ampliao do espao
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ocupado pela disciplina no cenrio nacional, bem como para o carter dinmico de nossa produo e de seu aprimoramento qualitativo. No que concerne aos conferencistas, tambm chama a ateno o fato de serem oriundos das trs tradies que formaram a disciplina e de, cada um sua moda, terem construdo um ngulo singular a partir do qual se situam no campo. Sherry Ortner foi aluna de Clifford Geertz na Universidade de Chicago e ficou conhecida por seus trabalhos sobre religio no Nepal, aos quais mais tarde vieram somar-se pesquisas sobre classe e gnero nos Estados Unidos. Verena Stolcke estudou em Oxford, foi uma das fundadoras do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Unicamp e professora na Universidade Autnoma de Barcelona, tendo-se suas contribuies concentrado nas relaes de gnero, com pesquisas realizadas em Cuba, no Brasil e mais recentemente na Europa. Brbara Glowczewski concluiu seu doutorado na Universidade de Paris 1, sobre aborgines australianos, enfocando a identidade de gnero, conflitos, memria e patrimnio, tendo tambm feito pesquisas na Frana. Finalmente, Marc Henri Piault tambm tem formao francesa, voltada para a produo de filmes etnogrficos com trabalhos na frica e no Brasil, sendo conhecido por suas contribuies sobre a relao entre antropologia e cinema. Em todos os casos, trata-se de pesquisadores com experincia em mais de uma rea etnogrfica e cujas obras refletem o esforo em dialogar com tradies distintas daquelas nas quais foram formados. Na mesma direo, os pesquisadores convidados para as Conversas com autores tambm se caracterizam pela diversidade de formao, de produo e de trajetria, como fica patente no material transcrito no livro e no h necessidade de retomar o assunto aqui. Gostaria apenas de ressaltar nesta apresentao a importncia que todos tiveram na formao de novos pesquisadores, seja na atividade de sala de aula e de orientao em sentido estrito ou por meio da repercusso de suas obras. Alm disso, os quatro pesquisadores se distinguem por terem atuao expressiva tambm fora da academia. Assim, Eunice Durham ocupou posies importantes na rea de educao do governo federal; Ruth Cardoso dirigiu o programa Comunidade Solidria, que viabilizou parcerias relevantes entre o governo e a sociedade civil; Manuela Carneiro da Cunha que presidiu a ABA durante o processo constituinte foi uma articuladora poltica importante na ateno aos
direitos dos povos indgenas na nova Carta e tem atuado em ONGs preocupadas com os direitos relativos aos conhecimentos tradicionais, enquanto Roberto DaMatta notabilizou-se tambm como colunista em jornais de grande circulao e provavelmente o antroplogo brasileiro com maior sucesso nos meios de comunicao de massa e no dilogo com o pblico no acadmico. Essas trajetrias refletem no apenas interesses e orientaes acadmicas diversas entre os autores, mas diferentes possibilidades de carreira e de realizao profissional na rea antropolgica, que devem servir de estmulo aos jovens pesquisadores na formulao de seus prprios projetos. Neste sentido, ao permitir a combinao do tom confessional nos relatos com a informalidade do ambiente e o debate com o pblico, as Conversas com os autores proporcionaram uma experincia de dilogo rara no meio acadmico e extremamente estimulante para os presentes. Finalmente, concluo esta apresentao aproveitando a oportunidade para congratular, em nome de Miriam Grossi, nossa ex-presidente, toda a diretoria da gesto 20042006 pela iniciativa em organizar as atividades que ensejaram a produo deste livro.
INTRODUO
Quando assumimos a diretoria da ABA, em junho de 2004, durante a 24 RBA em Recife, sabamos que teramos uma rdua tarefa pela frente na liderana de uma associao cientfica das mais prestigiadas do Brasil. Mas nos aguardava no apenas a tarefa poltica de liderar uma associao do porte da ABA. Sabamos tambm que teramos o privilgio de coordenar atividades muito significativas na trajetria desta Associao, pois a ABA completava 50 anos de atuao em 2005 e realizaria sua 25 reunio bi-anual em nossa gesto. Foi, portanto, no esprito deste duplo jubileu, de ouro e de prata, que realizamos a 25 Reunio Brasileira de Antropologia em Goinia, de 11 a 14 de junho de 2006. Durante o ano de 2005, realizamos, com o apoio de associados e de membros de nossa diretoria, uma srie de eventos comemorativos ao cinqentenrio de nossa asociao, os quais foram documentadas no livro intitulado Homenagens, ABA 50 anos1 , e demos continuidade s comemoraes da histria da ABA, festejando as bodas de prata das Reunies Brasileiras de Antropologia, na 25 RBA, realizada em Goinia, evento que reuniu cerca de trs mil pessoas em torno do interesse de refletir e de compartilhar aprendizagens relativos ao tema Saberes e Prticas Antropolgicas Desafios para o Sculo XXI, tema escolhido pela diretoria para nortear os trabalhos desta reunio. Acolhida pelos colegas da Universidade Catlica de Gois e da Universidade Federal de Gois sob a coordenao do Prof. Manuel Ferreira Lima Filho, a Associao Brasileira de Antropologia pde ser a protagonista de um encontro riqussimo que reuniu antroplogos brasileiros e estrangeiros, professores, pesquisadores, alunos de ps-
1 Livro organizado por Cornelia Eckert e Emilia Pietrafesa de Godi, publicado pela ABA/Editora Nova Letra, Blumenau, 2006.
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graduao e de graduao que compartilharam quatro intensos dias de atividades acadmicas, polticas e festivas. Alguns dos momentos importantes dessa comemorao foram as Conferncias e as Conversas com Autores, realizadas sempre no final da manh, em um grande auditrio (com telo em outro andar), onde centenas de participantes lutavam por um espao para ver e escutar convidados brasileiros e estrangeiros. Foi to grande a acolhida destes eventos que nos achamos por bem reuni-los agora em forma de livro para compartilhar tais momentos com um pblico maior do que aquele que teve o privilgio de l estar presente. Este livro est dividido em duas partes: na primeira, publicamos as conferncias de colegas estrangeiros; e, na segunda, os dilogos travados nas Conversas com Autores. As conferncias aqui reunidas, foram proferidas por convidados estrangeiros e realizadas durante a 25 RBA e em atividades pr e psevento e publicadas na ordem de apresentao na reunio. Temos inicialmente a conferncia Sherry B. Ortner, professora da Universidade de Los Angeles (EUA), Uma atualizao da teoria da prtica, proferida no primeiro dia da 25 RBA. Nesta conferncia, a autora faz uma vasta reviso de como os conceitos de cultura e prtica tm sido trabalhados no campo da teoria social contempornea. Dialoga com os trabalhos pioneiros de Bourdieu, Sahlins, Geertz, contrapondoos a tericos do poder como Foucault, Scott, William, apontando para as principais lacunas na teoria da prtica, no que diz respeito questo do poder e das possibilidades de transformao da cultura. Na sua segunda Conferncia, intitulada Poder e projetos: reflexes sobre agncia, proferida em atividade ps-evento, o Workshop Teorias Avanadas de Gnero, realizado na cidade de Gois, logo aps a 25 RBA, a autora coloca em alto relevo um dos debates atuais sobre as complexas relaes de poder no mundo contemporneo problematizando a noo de agncia, tendo como eixo os estudos de gnero propostos pelas teorias feministas contemporneas. Na seqncia do livro, temos as conferncias proferidas por Verena Stolcke, professora da Universidade de Barcelona (Espanha). Seu primeiro, texto, intitulado Gnero mundo novo: intersees. A formao dos imprios transatlnticos do sculo XVI ao XIX, foi o tema de conferncia apresentada no segundo dia da 25 RBA. Nele, a autora
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reflete sobre as interseces entre gnero e raa tomando como exemplo documentos e iconografia de Cuba no perodo colonial de casamentos e de filiao. Sua segunda conferncia, Homo clonicus? O sexo da biotecnologia, tambm apresentada no Colquio Estudos Avanados de Gnero, examina os significados e possveis conseqncias das descobertas da fertilizao in vitro e da clonagem para as relaes de gnero, dando especial destaque relao nada produtiva entre o determinismo dos bilogos e as interpretaes simblicas dos cientistas sociais. Parece, ela comenta, como se os bilogos e os economistas, analistas sociais e polticos habitassem universos separados e diferentes. Mas, percebendo claramente que uns e outros operam e pensam no mesmo contexto cultural, reconhece que h pontos de convergncia. Aps percorrer a histria recente dos avanos biotecnolgicos no campo da procriao, chega a temer o fato de que graves conseqncias podem surgir, em especial para as mulheres, devido s possibilidades que essas novssimas tcnicas prometem para a procriao humana alentadas por interesses e por desejos configurados pelas relaes de poder e de gnero vigentes. Barbara Glowczewski, pesquisadora do CNRS junto ao Laboratoire dAnthropologie Sociale e professora na EHESS em Paris, tem aqui publicados trs trabalhos. O primeiro a conferncia apresentada na 25 RBA, intitulada Cruzada por justia social: morte sob custdia, revolta e baile em Palm Island (uma colnia punitiva na Austrlia), na qual relata a grave situao vivida pelos povos tradicionais na condio de espoliao em suas culturas e em seus direitos polticos. Nela a autora reflete sobre a questo da expropriao de terras aborgenes na Austrlia, sobre a violncia do Estado e sobre as lutas dos novos movimentos sociais neste pas, colocando-se claramente ao lado de uma antropologia engajada junto s lutas destes grupos aborgenes expoliados de seus direitos e de suas terras ancestrais. Seus dois outros artigos foram apresentados no colquio sobre Patrimnio, realizado como atividade ps-congresso, na cidade de Gois. Em seu artigo, Linhas e entrecruzamentos: hiperlinks nas narrativas indgenas australianas, Glowczewski relata o processo de elaborao de um texto em suporte multimdia sobre a cosmologia dos grupos aborgenes australianos, problematizando questes ticas de fundo para a antropologia contempornea, no que diz respeito aos direitos autorais
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de saberes de povos tradicionais, tema que tambm abordado de forma mais sinttica no post inscriptum Inalienabilidade dos saberes intangveis, adendo ao texto e produzido como resposta ao debate e aos questionamentos levantados pelos participantes do colquio de Gois. As conferncias de Marc-Henri Piault, professor da cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS) e pesquisador do CNRS (Frana), trazem significativa reflexo sobre o lugar da imagem na antropologia contempornea. A primeira delas, intitulada Um cinema espelho? por uma realidade partilhada, foi apresentada na concorrida mostra em homenagem a Jean Rouch, organizada por Carmen Rial, que se realizou no dia de abertura da 25 RBA. O autor, presidente do jri do Bilan du Cinema Ethnographique do Muse de lHomme, discute um dos principais legados de Rouch, o de uma antropologia compartilhada com os grupos estudados, listando princpios e desafios epistemolgicos, ticos e polticos. No segundo artigo, Uma produo imagtica, para fazer o qu?, apresentada em mesa redonda sobre a questo da imagem, coordenada por Renato Athias, Piault discute os alcances e limites da produo de imagens na antropologia contempornea. Na segunda parte deste livro, trazemos a transcrio das sesses intituladas Conversa com Autor@s, uma experincia das mais ricas vivenciadas na 25 RBA, graas disponibilidade d@s antroplog@s convidad@s para tratar de suas trajetrias acadmicas e de percurso profissional, situando, neste processo, as inspiraes e motivaes em suas experincias profissionais na produo de obras de grande destaque na Antropologia brasileira. Inicialmente, trazemos a primeira conversa, realizada com as professoras Eunice Durham e Ruth Cardoso. Foi um evento marcado pela emoo da escuta, da narrativa da trajetria acadmica cruzada de duas autoras que marcaram a Antropologia produzida na USP nos anos 70/80 do sculo XX. Tanto uma como a outra, provavelmente por razes de modstia, falaram de temas gerais que despontaram nas suas respectivas carreiras enquanto acadmicas e intelectuais com grande influncia na esfera pblica brasileira. Eunice Durham deu destaque para a sua experincia no campo das polticas de educao, e Ruth Cardoso para a sua experincia poltica como Primeira Dama da Presidncia da Repblica, quando pde articular seu conhecimento
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antropolgico com projetos sociais do Estado, vinculados ao setor privado e aos movimentos sociais. No ensejo, ambas comentaram as relaes muitas vezes difceis entre a cincia e os movimentos sociais, dando particular nfase questo candente no mundo contemporneo da complexidade das reivindicaes politicas de respeito s pluralidades culturais, insistindo na importncia da participao dos antroplogos para complexificar estes assuntos mais do que para oferecer solues fceis e imediatas. A conversa com Manuela Carneiro da Cunha, traz a dimenso da trajetria desta antroploga que se destacou na presidncia da ABA quando da elaborao da Constituio de 1988 na defesa dos direitos das populaes indgenas. Conta, em sua narrativa, como se mudou da Matemtica para a Antropologia no laboratrio de Claude Lvi-Strauss em Paris, alm de sua chegada ao Brasil no incio dos anos 70 e de seus primeiros trabalhos com os Krah como doutoranda na UNICAMP. Em seguida, relata sua pesquisa na Nigria, que resultou no seu livro Negros Estrangeiros, e como este mergulho nas questes de identidade lhe foi fundamental quando entrou no debate pblico sobre a questo indgena. Como Eunice Durham e Ruth Cardoso, Manuela Carneiro da Cunha no furtou de aplicar os seus conhecimentos antropolgicos no palco das grandes discusses sobre o futuro da Amaznia e de suas populaes tradicionais. Como elas, encontra-se at hoje ativssima num cenrio que envolve organismos internacionais, movimentos sociais, o Estado e o setor privado, abrindo um caminho que exige a mxima compreenso do predicamento dessas populaes e os seus conhecimentos. Fechamos o livro trazendo a conversa com Roberto DaMatta, colega que tem tido, atravs de sua vasta obra publicada, um papel fundamental na formao de vrias geraes de jovens antroplogos e que tambm tem levado suas idias antropolgicas a um pblico mais amplo, que o l nos jornais da grande imprensa. Sua histria marcada por sua formao e atuao no Museu Nacional, por suas pesquisas com populaes indgenas da regio central do Brasil e por suas incurses em temas relativos identidade nacional brasileira. Conta, em sua narrativa, momentos centrais de sua carreira internacional, assim como seus questionamentos e perplexidades sobre a produo de conhecimento antropolgico. Trata-se de um texto, como os de
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Eunice, Ruth e Manuela, que certamente inspirar muitos de ns, velhos e jovens antroplog@s, nos embates acadmicos e polticos de nossa prtica profissional. Para finalizar, agradecemos, mais uma vez, o inestimvel apoio dos rgos financiadores que nos permitiram trazer estes convidados e realizar com brilho a 25 RBA e as atividades pr e ps-congresso: Embaixadas dos Estados Unidos e da Frana, CNPq, CAPES, FINEP, FAPESP, Petrobrs, Secretaria Especial de Polticas para Mulheres, Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, Fundao Ford e Universidades Catlica de Gois e Federal de Gois. Nosso particular agradecimento FAPERJ, que nos apoiou com os recursos para esta publicao. Esperamos, com estes textos, trazer a antroplog@s brasileir@s, professor@s, estudantes e a outr@s profissionais, estes momentos vivos de produo de saberes e de prticas antropolgicas que configuram o campo de conhecimento da Antropologia no limiar do sculo XXI, assinalando e orientando projetos futuros construdos a partir do trabalho da memria do fazer antropolgico.
Miriam Pillar Grossi (Presidente da ABA, gesto 2004-2006) Peter H. Fry (Vice-Presidente da ABA, gesto 2004-2006) Cornelia Eckert (Secretria Geral da ABA, gesto 2004-2006)
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Primeira Parte
CONFERNCIAS
CONFERNCIAS DE SHERRY B. ORTNER
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Quando a teoria da prtica surgiu, no final da dcada de 1970, a paisagem terica era dominada por trs grandes paradigmas: (1) a antropologia interpretativa ou simblica, lanada pelo trabalho de Clifford Geertz; (2) a economia poltica marxista, cujo principal representante provavelmente era Eric Wolf; (3) e uma ou outra forma de estruturalismo francs, lanado por Claude Lvi-Strauss, mas que, nesse momento, j comeava a ser substitudo por vrios psestruturalismos. Todos eles constituam importantes avanos para alm do funcionalismo, anteriormente hegemnico. O funcionalismo perguntava como as coisas se articulam, e Geertz indagava o que elas significam. O funcionalismo considera o sistema social basicamente benigno e tendente estabilidade, ao passo que os marxistas enfatizam a natureza exploradora do capitalismo e de outras formaes sociais, o que provoca movimentos ininterruptos de desestabilizao e de mudana. E o funcionalismo formulava perguntas sobre a funo prtica das instituies, ao passo que Lvi-Strauss mostrava que tanto as instituies prticas como o parentesco quanto as que aparentemente no o so como o mito funcionam de acordo com uma lgica ou estrutura subjacente.
Conferncia pronunciada na 25 Reunio Brasileira de Antropologia, na cidade de Goinia (GO), Brasil, no dia 12 de junho de 2006 (Traduo de Sieni Campos; reviso de Fernanda Cardozo).
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Agradecimentos: Agradeo, em primeiro lugar, a Timothy Taylor seus comentrios geis, perspicazes e extremamente teis a respeito de vrios rascunhos desta Introduo. Alm disso, apresentei verses anteriores desta Introduo, ento intitulada Serious Games, ao Departamento de Antropologia da Universidade de Stanford, e ao grupo Cultures of Capitalism, na UCLA. Em ambos os casos, recebi comentrios muito penetrantes (que tambm reforaram algumas questes levantadas por um dos leitores annimos) que me levaram a mudar substancialmente a direo do ensaio. Sou muito grata a todos eles.
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Em certo sentido, trata-se de empreendimentos muito diferentes e, em certa medida, opostos uns aos outros. Contudo, sob outro ponto de vista, todos tinham uma coisa em comum: tratava-se essencialmente de teorias da coero. O comportamento humano era plasmado, moldado, ordenado, definido, etc., por foras e por formaes sociais e culturais externas: cultura, estrutura mental, capitalismo. claro que as coeres estruturais de vrios tipos so reais e no esto sendo negadas. Efetivamente, afirmo abaixo que algumas crticas do conceito de cultura deixaram de incluir neste o importante elemento que a coero. Mas uma teoria puramente baseada na coero, sem considerar nem a agncia humana nem os processos que produzem e reproduzem essas coeres as prticas sociais parecia cada vez mais problemtica. Na Sociologia (porm menos no caso da Antropologia), essa perspectiva da coero foi logo questionada no trabalho de Erving Goffman e de outros representantes do chamado interacionismo (1959; 1967). Mas o interacionismo, por sua vez, chegava ao outro extremo, deixando de lado praticamente todas as coeres estruturais e adotando como foco a micro-sociologia da interao interpessoal. O interacionismo nunca assumiu nada como influncia das outras escolas, mas reivindicou e ocupou o espao da oposio, manteve viva a verso da assim chamada oposio estrutura/agncia. A teoria da prtica assumiu o desafio de superar essa oposio. Trs trabalhos-chave foram publicados em um brevssimo espao de tempo no final da dcada de 1970 e incio da de 1980: Pierre Bourdieu, Outline of a Theory of Practice (1978)3 ; Anthony Giddens, Central Problems in Social Theory: Action, Structure, and Contradiction in Social Analysis (1979); e Marshal Sahlins, Historical Metaphors and Mythical Realities: Structure in the Early History of the Sandwich Islands Kingdom (1981). Cada um, a seu modo, conceitualizou as articulaes entre as prticas de atores sociais na vida concreta (on the ground) e as grandes estruturas e sistemas que exercem coero sobre essas prticas e que, ao mesmo tempo e em ltima instncia, podem ser transformadas por elas. Esses autores fizeram isso argumentando, de diferentes maneiras, a favor das relaes dialticas e no de oposio
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Publicado originalmente em francs em 1972 sob o titulo Esquisse dune thorie de la pratique pela Librairie Droz. (n.e.)
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entre, por um lado, as coeres estruturais da sociedade e da cultura e, por outro lado, as prticas o novo termo era importante dos atores sociais. Afirmavam tambm que a perspectiva objetivista (como a economia poltica de Wolf) e a subjetivista (como a Antropologia interpretativa de Geertz) no eram maneiras opostas de fazer cincia social, mas representavam momentos (BOURDIEU, 1978) de um projeto maior que visava a entender a dialtica da vida social. Eram, em suma, imensamente importantes pelo menos por comearem a delinear os mecanismos pelos quais a aparente contradio de que a histria faz as pessoas, mas as pessoas fazem a histria (ORTNER, 2003: 277) no s no uma contradio como talvez seja a verdade mais profunda da vida social4 . Em outras palavras, a teoria da prtica oferecia genunas resolues de problemas que estavam incomodando o campo, alguns deles remontando ao funcionalismo, e outros gerados pelas novas escolas de teoria das dcadas de 1960 e 1970. Devolveu o ator ao processo social sem perder de vista a estrutura mais ampla que exerce coero sobre a ao social (mas tambm a possibilita). A teoria da prtica fundou (grounded) os processos culturais discursos, representaes, o que costumvamos chamar de sistema de smbolos nas relaes sociais das pessoas na vida concreta (on the ground). Seu conceito dessas relaes sociais grounded, por sua vez, era marxista e weberiano (em vrios graus) e no funcionalista, abrindo espao para questes de poder e de desigualdade com as quais eu e muitos outros nos preocupamos cada vez mais na dcada de 1970. Desse perodo em diante, a teoria da prtica tornou-se o marco geral em que eu pensaria o meu trabalho. Apesar da inestimvel contribuio que consistiu em libertar potencialmente o campo das antigas oposies, ela apresentava e como poderia ser de outra maneira? algumas limitaes significativas. Assim, quase desde o
Devido oposio histrica de longa data entre estrutura e agncia nas cincias sociais, assim como maneira como esta oposio parece funcionar como estrutura profunda no sentido que Lvi-Strauss d expresso , houve e continua havendo uma tendncia a ver a prpria teoria da prtica como uma espcie de revival disfarado de teorias que no do nfase suficiente s coeres reais e profundamente sedimentadas sob as quais as pessoas vivem. Oponho-me a este ponto de vista desde minha monografia a respeito da fundao de mosteiros Sherpa, High Religion (1989: 11-18), e s posso dizer que nada poderia estar mais longe da verdade. De fato, a maioria dos leitores de Bourdieu e de Giddens (especialmente de suas primeiras obras) alegaria que, no final, esses dois pioneiros da teoria da prtica tendiam a enfatizar demais a coero estrutural, mesmo quando consideravam as estruturas como produzidas por meio de prticas sociais (nunca livres).
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incio me vi tentando consertar o marco recorrendo a outras mudanas importantes dentro e fora da Antropologia. Isso implica assimilar muito trabalho de outros, mas enfatiza as formas como usei tanto a prpria teoria da prtica como esses outros corpus de trabalho em meus prprios textos, tanto anteriores como os includos no presente livro. Em trs reas principais, estava-se desenvolvendo um trabalho novo e significativo e que me parecia realizar correes/ aperfeioamentos importantes no marco bsico da teoria da prtica. Em primeiro lugar, destaco o que chamarei de mudana do poder (power shift), associada ao trabalho de James Scott, Michel Foucault, Raymond Wiliams e outros, e ligada, de vrias maneiras, ao trabalho dos estudos crticos sobre colonialismo, gnero, raa e etnicidade. A seguir, vinha o que Terence McDonald chamou de guinada histrica (historic turn; 1996), vasto movimento cujo objetivo era historicizar o trabalho nas cincias sociais e, assim, ir alm dos marcos estticos que a teoria da prtica herdou do funcionalismo. Por fim, havia o que chamarei de reinterpretao (reinterpretaes) da cultura. Esta ltima constitui o foco principal do presente volume. Estudei as implicaes da mudana do poder (especialmente em Ortner, 1996) e participei da guinada histrica (especialmente em Ortner, 1989, 1999 e 2003) em trabalhos anteriores, que aqui s abordarei brevemente, embora mantenham sua vital importncia tambm para os textos deste volume. Mas a crtica e as reteorizaes da cultura nas ltimas dcadas ainda precisam ser examinadas em relao a questes de prtica (e de poder e de histria). PRIMEIRAS EXPANSES A Mudana do Poder (Power Shift) Mais ou menos no mesmo perodo em que a teoria da prtica nasceu, surgiu um importante corpus de trabalhos que repensavam as questes de poder. Entre estes, citemos obras to diversas como Raymond Wiliams, Marxism and Literature (1977); Michel Foucault, History of Sexuality Part I (1979); e James Scott, Weapons of the Weak
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(1985). Havia vrias convergncias entre estes ltimos e os florescentes estudos crticos sobre gnero, raa, etnicidade e colonialismo. Dado que trabalhei ativamente na rea da Antropologia feminista e, especificamente naqueles anos, com questes de dominncia masculina, era praticamente inevitvel que percebesse a fraqueza relativa da teoria da prtica neste ponto. A teoria da prtica no ignora o poder, claro, mas nem o tem como central em seu marco terico, como pareceria necessrio a este tipo de trabalho crtico sobre desigualdade, dominao e assim por diante. Retrospectivamente, parece-me que era o meu trabalho sobre desigualdade de gnero que primeiro me empurrava para algum tipo de abordagem terica prtica. Por um lado, eu queria entender a construo cultural das relaes de gnero mais ou menos segundo a maneira clssica de Geertz. Na verdade, na Introduo a Sexual Meanings, Harriet Whitehead e eu adaptamos a famosa frase-marco de Geertz e dissemos que o livro se preocupava com gnero como sistema cultural (1981). Mas, a seguir, afirmamos que estvamos interessadas em algo mais que a lgica e o funcionamento do sistema de gnero e que queramos entender de onde este estava vindo, por assim dizer. Em outras palavras, queramos entender a maneira como esses sistemas estavam fundados (grounded) em relaes sociais de vrios tipos e eu agora diria prticas sociais. Meu prprio artigo naquele volume, intitulado Gender and Sexuality in Hierarchical Societies (1981), levou-me a inventar uma abordagem do tipo teoria da prtica, sem que eu soubesse exatamente o que estava fazendo. Eu ainda no tinha lido nada da teoria da prtica5 , mas, olhando esse texto retrospectivamente, percebo que estava tateando em direo a um mtodo que me ajudasse a resolver alguns dos enigmas das relaes de gnero desiguais e s vezes violentamente desiguais em uma srie de sociedades polinsias. Interessava-me, por exemplo, o tratamento de filhas de chefes, que, por um lado, eram rebuscadamente embelezadas e, por outro lado, mantidas sob um controle paterno muito estrito. Desenvolvi uma
Marshall Sahlins teve a gentileza de enviar-me o manuscrito de Historical Metaphors [...] quando eu estava escrevendo esse texto. Naquele momento, minha leitura visou principalmente a obter dados. Foi apenas em uma releitura posterior que me concentrei em seu marco terico e em suas ressonncias com outras obras da teoria da prtica que estavam sendo publicadas naquela poca. Estabeleci as conexes em Ortner (1984).
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argumentao apontando que essas moas eram pees em um jogo cultural muito elaborado (como eu agora o denominaria) de prestgio masculino. A idia era que, uma vez compreendido o jogo ou seja, a configurao de prticas que envolvem os jogadores em questo, sua lgica subjacente e seu objetivo cultural , os elementos enigmticos fariam sentido. No me atardarei muito resumindo a interpretao. O que quero dizer simplesmente que o meu trabalho, em uma arena particular das relaes de poder a de gnero , estava me levando a algum tipo de marco terico prtico, o que supunha um dispositivo analtico que mais tarde vim a chamar de jogos. Abaixo me estenderei mais a respeito dos jogos. Os primeiros autores da teoria da prtica no ignoravam, como j apontei, as questes de poder. Lidavam com elas de vrias maneiras. A questo , em parte, o peso relativo dado ao poder tal como organizado e incorporado ordem cultural ou institucional que Giddens chama de dominao e o poder como relao social real de atores na vida concreta (on-the-ground) que Giddens chama de poder. Ambos so importantes, mas, quando se d forte nfase ao poder estrutural, tende-se, ironicamente, a um afastamento da questo das prticas reais. Vemos isso com muita clareza em Outline of a Theory of Practice. Mais para o fim do livro, Bourdieu inclui um exame da maneira como os mais velhos da tribo asseguram a conformidade social, ou seja, exercem o poder em sentido prtico; mas esta uma questo relativamente menor no livro, comparada com a elaborao que Bourdieu faz da noo de habitus estrutura profundamente mergulhada nas pessoas, que plasma de tal maneira sua propenso a agir que elas acabam amoldando-se sem que ningum as faa agir assim. Sahlins segue uma configurao similar. Embora descreva prticas de poder interpessoal no caso havaiano, este autor tende a atribuir um papel muito maior a formas impessoais de coero, incorporadas estrutura de assimetria que atravessava todas as relaes nessa sociedade organizada hierarquicamente. Giddens parece um tanto diferente. Desenvolve uma discusso til sobre o que chama de a dialtica do controle (1979: 145), na qual basicamente argumenta que os sistemas de controle nunca podem funcionar com perfeio, porque as pessoas que so controladas tm agncia e entendimento e, portanto, sempre conseguem encontrar maneiras de
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fugir ou de resistir. Seus argumentos ajustam-se bem aos de James Scott, um dos tericos do poder que examinaremos abaixo. A diferena talvez seja que, para Giddens, o poder apenas uma de muitas modalidades de prtica, ao passo que, para Scott e para os outros tericos do poder, ocupa uma posio absolutamente central em seu marco. Vamos ver, ento, os tericos do poder e o que estes tm a oferecer. Minha escolha por tericos aqui Foucault, Scott e Wiliams pode parecer um pouco surpreendente. No mnimo, o leitor talvez esteja perguntando-se por que aqui no h tericos de gnero, de raa ou de dominao colonial. S posso dizer que essas trs figuras oferecem as ferramentas mais gerais para o exame de qualquer forma de dominao e de desigualdade, inclusive de gnero, raa e colonialismo. Assim, Foucault teve um papel importantssimo no trabalho de uma das mais influentes tericas do feminismo, Judith Butler (por exemplo, 1997), e no trabalho da mais eminente figura dos estudos (ps-) coloniais, Edward Said (por exemplo, 1979). O trabalho de Scott gerou uma verdadeira indstria de estudos de resistncia de todo tipo, inclusive e especialmente movimentos de resistncia racial e colonial. Raymond Wiliams o ancestral fundador da vasta escola de trabalho chamada de estudos culturais, que gerou obras sobre as relaes de poder de gnero, raa, classe e juventude. Esses trs tericos podem ser situados ao longo de um espectro que definido por uma das problemticas centrais dos estudos de poder: a questo da penetrao/invaso do poder. Em um extremo, est Foucault, que afirmou que o poder socialmente ubquo, espalhando-se por todos os aspectos do sistema social, e psicologicamente muitssimo invasivo. No h fora do poder. No outro extremo, temos James Scott, que toma a posio de que, embora haja, com certeza, muito poder em jogo na vida social, ele muito menos invasivo mentalmente do que outros afirmam6 . Scott defende que as pessoas dominadas entendem muito bem o que est ocorrendo e que at tm tradies explcitas transcries ocultas de crtica
Ele formula seu argumento contra uma verso exagerada da posio de Gramsci sobre hegemonia, que considera a hegemonia como algo que controla por completo as mentes da parte dominada.
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e de resistncia (1990). Se no resistem ativamente, s porque so refreadas pelo mero poder poltico e econmico do grupo dominante. Por fim, Wiliams (1977) toma uma espcie de posio intermediria, estimando que os atores estejam, at certo ponto, nas mos de hegemonias, mas retomando o argumento de Gramsci de que as hegemonias nunca so totais e absolutas, em diversos sentidos. Nunca so totais em sentido histrico porque, no curso da histria, embora se possa falar de formao/formaes hegemnicas no presente, sempre h tambm hegemonias remanescentes do passado (residuais) e o comeo de outras futuras (emergentes). E as hegemonias tambm nunca so totais em sentido psicolgico, porque as pessoas sempre tm pelo menos algum grau de perspiccia (se no praticamente conscincia plena, como diria Scott) em relao s condies de sua dominao. Todas essas perspectivas so teis para finalidades precpuas, e j utilizei todas elas em um ou outro contexto. Mas achei que a noo de hegemonias de Wiliams/Gramsci fortemente controladoras, mas nunca de maneira completa ou total a mais til em relao a minhas vrias tentativas de injetar mais poder em uma abordagem da prtica (e, como no caso da anlise da Polinsia, que j examinamos, mais prtica em uma anlise do poder). Em Gender Hegemonies (1996b), por exemplo, a noo de hegemonias incompletas permitiu que eu fosse alm de uma noo simplista de dominncia masculina universal, no tanto por encontrar casos de dominncia no masculina, mas por reconhecer que a dominncia masculina sempre coexiste com outros modelos de relaes de gnero o que importante a mistura, bem como as relaes entre os elementos. Ento, ao reunir todo esse material na introduo a Making Gender, comecei a esboar o que chamei de uma teoria da prtica feminista, de minoria, de subalternos, etc., que, em parte, focalizava questes de resistncia direta, mas, sobretudo, a maneira como a prpria dominao sempre estava dividida por ambigidades, contradies e lacunas. Isso significa, por sua vez, que a reproduo social nunca total; sempre imperfeita e vulnervel s presses e s instabilidades inerentes a toda situao de poder desigual. Apliquei esta viso s relaes entre os Sherpa e os alpinistas ocidentais (sahibs) no montanhismo do Himalaia (Life and Death on Mt. Everest, 1999).
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Nesse estudo, pude mostrar, por um lado, a resistncia real: no muito conhecido, no resto do mundo, o fato de que os Sherpa, supostamente felizes em aquiescer, muitas vezes faziam greve durante as expedies ao Himalaia. Mas tambm examino uma contradio central na maneira como os alpinistas ocidentais encaravam e tratavam os Sherpa. Por um lado, eles eram poderosos (como brancos, como ocidentais, como empregadores, como nos primeiros anos lderes quase militares). Por outro lado, muitas vezes nutriam muito afeto e admirao pelos Sherpa com quem trabalhavam. Esta contradio no foi em vo para os Sherpa, que, com freqncia, conseguiam explor-la com bastante sucesso e introduzir transformaes significativas na estrutura das relaes Sherpa-sahib e das expedies ao Himalaia de maneira geral no transcurso do sculo XX. No final, os dois corpus de teoria podem ser facilmente fundidos em um s. Por um lado, os trs tericos da prtica fundadores podem ser enfocados de forma interessante como paralelos s trs posies no espectro da profundidade psicolgica do poder. Bourdieu muito como Foucault, pois sua noo de habitus de uma estrutura profundamente internalizada, fortemente controladora e, em grande medida, inacessvel conscincia (ver tambm De Certeau, 1984). Giddens mais como Scott, pois enfatiza a maneira como os atores so, ao menos parcialmente, sujeitos que sabem (ver, por exemplo, 1979: 5), que so capazes de refletir, at certo ponto, sobre suas circunstncias e, portanto, de desenvolver um determinado nvel de crtica e possvel resistncia. E, por fim, Sahlins bastante como Wiliams: por um lado, concorda com a noo de hegemonias culturais fortes, mas, por outro lado, reconhece certas, digamos, fissuras na estrutura; o caso, por exemplo, quando fala sobre como os tabus alimentares de gnero dos havaianos do sculo XVIII no se impunham s mulheres havaianas com a fora que tinham para os homens (1981: 46) pequena diferena que, a longo prazo, faria uma grande diferena. Encarando as relaes do ponto de vista dos que tratam do poder, h um modo interessante como a integrao com a teoria da prtica a partir do lado desses autores j est (potencialmente) presente. Assim, o interesse de Foucault em situar a produo de poder menos nas
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macro-instituies, como o Estado, e mais nas micro-instituies, como as relaes padre-penitente, tem afinidades bvias com o interesse da teoria da prtica em examinar fontes que esto na base (at ground level) de formaes maiores. O interesse de Scott pela resistncia no seno um modo de perguntar-se como (certo tipos de) prticas podem transformar a estrutura. E Raymond Wiliams sustenta que as hegemonias tinham de ser entendidas no como estruturas externas aos indivduos, mas como a totalidade do processo social vivido (1977: 109), que tem de ser continuamente renovado, recriado, defendido e modificado... [e] tambm sofrer continuamente resistncia, limitaes, alteraes e desafios (1977: 112) que, em suma, ao mesmo tempo tem de ser praticado e alvo de resistncia. De certo modo, seria possvel dizer que todas essas novas teorias do poder tambm eram variedades da teoria da prtica. J apontei que a emergncia de vrias teorias do poder foi mais ou menos simultnea com o incio da teoria da prtica. interessante constatar que tambm o caso da guinada histrica. Retrospectivamente, percebe-se a grande fertilidade terica do perodo entre o fim da dcada de 1970 e o comeo da de 1980. Vamos, ento, dar uma guinada: histrica. A Guinada Histrica Minha percepo da necessidade de historicizar a teoria da prtica proveio basicamente de desenvolvimentos tericos deste lado do Atlntico. Na verdade, houve diversos tipos de guinada histrica na Antropologia, inclusive a economia poltica histrica de inspirao marxista, como em Eric Wolf, Europe and the People without History (1981); certas formas de histria cultural (por exemplo, Geertz, Negara [1980]); e o trabalho inicial sobre histria colonial lanado na Antropologia por Bernard Cohn (1980) e que, mais tarde, se tornaria uma importante empreitada que atravessava numerosas disciplinas acadmicas. A(s) guinada(s) histrica(s) teve (tiveram) imensa importncia tanto metodolgica ao desestabilizar os modos tradicionalmente estticos de investigao etnogrfica , como substantivamente por insistir em que o mundo tradicional de objetos antropolgicos, culturas, no era feito de objetos atemporais e
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intocados, mas de objetos que eram, eles mesmos, produtos do incansvel funcionamento tanto de dinmicas internas (sobretudo relaes locais de poder) como de foras externas (capitalismo, colonialismo, etc.) ao longo do tempo7 . Nos trabalhos seminais de teoria da prtica, Bourdieu insistiu na importncia do tempo, no apenas no desenrolar de interaes prticas e de seus resultados, mas porque confere sentido a estas interaes. Ele cita o famoso exemplo dos significados produzidos pela manipulao da temporalidade no oferecimento de presentes: caso se retribua rpido demais, isto implica uma nsia de fechar os livros e de terminar as relaes. Se a retribuio for demorada demais, isto indica um baixo nvel de interesse na relao ou at um desrespeito ativo (1978). Contudo, Bourdieu nunca tentou realmente escrever teoria histrica da prtica (ou talvez mais acertadamente formulado: histria com teorizao prtica), examinar a maneira como as histrias reais, como duraes e acontecimentos, so plasmadas por prticas que se situam dentro e contra a estrutura existente. A meu ver, entretanto, a teoria da prtica no s foi intrinsecamente temporalizada no sentido de escala relativamente pequena tratada por Bourdieu, como, na verdade, fez para seu melhor trabalho no contexto da anlise histrica em sentido pleno. De fato, em High Religion afirmo explicitamente que uma teoria da prtica uma teoria da histria (1989: 192) isso porque a concretizao dos efeitos das prticas culturalmente organizadas essencialmente processual e muitas vezes lentssima: a construo de sujeitos sociais, muitas vezes desde a infncia; as prticas de vida de jovens e adultos; a articulao dessas prticas com acontecimentos mais amplos do mundo, que, com freqncia, tm um ritmo muito diferente. Embora se possam formular hipteses mais provavelmente conjecturas sobre as implicaes, em longo prazo, de prticas atuais, seus efeitos, em termos de reproduo e de transformao social, s costumam ser visveis, ou interpretveis, algum tempo depois do fato. Dos trs tericos seminais da prtica, s Marshal Sahlins desenvolveu uma forma explicitamente histrica de teoria da prtica.
7 Muito recentemente, William Sewell apresentou, em sua importantssima obra Logics of History (2005), uma teorizao de acontecimentos que no apenas ilumina a possvel teoria da histria (como o autor a designa) de Sahlins como tambm apresenta uma vigorosa teorizao da relao entre pensamente histrico e teoria social e cultural muito mais amplamente.
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Elaborou sua teoria no marco de um caso histrico: o do encontro entre europeus e havaianos nativos no sculo XVIII. Com base neste exemplo, ele teoriza diversas maneiras importantes sobre como a operao das prticas afeta o curso da histria. A primeira que atos e objetos tm significados diferentes no esquema simblico coletivo (1981: 69) e nos planos e intenes interesses dos sujeitos que agem. Sahlins chama isso de diferena entre significados convencionais e intencionais (ibid.). A segunda que as pessoas agem no mundo de acordo com suas prprias concepes culturais, mas o mundo no se sente nada compelido a ajustar-se a essas concepes. Em ambos os casos, da decorre que toda prtica, toda iniciativa, pe essas categorias e concepes culturais em risco, torna-as passveis de reviso e de reavaliao. Portanto, embora a maioria das prticas possa ser conservadora, operando dentro de um marco existente de significado e normalmente reproduzindo esse marco, esses significados podem ser modificados na prtica (especialmente pelos poderosos); e, seja como for, todas as prticas operam dentro de um mundo teimoso (SEWEL, 2005: 179) que ameaa solapar seus significados ou efeitos intencionais. Por fim, Sahlins insiste em encarar a mudana histrica como resultado da articulao entre as dinmicas de poder locais e translocais. Todas as minhas prprias monografias recentes fazem uso deste ponto. Assim, em High Religion (1989), rastreei a histria (local) das fundaes de templos e de mosteiros budistas entre os Sherpa, histria de relaes s vezes violentamente competitiva entre lderes religiosos e outros homens destacados. Mas ficou demonstrado que esta histria est inextricavelmente associada histria poltica em sentido mais amplo: os efeitos variveis (e em diferentes momentos) do Raj britnico na ndia, o Estado do Nepal e as relaes religiosas dos Sherpa com o Tibet. Em Life and Death on Mt. Everest (1999), rastreei a histria das relaes mutveis entre os Sherpa e os alpinistas internacionais no Himalaia, mas, uma vez mais, ancorei essa histria em mudanas na histria em sentido amplo. Assim, em um exemplo, estudei o impacto do movimento feminista global sobre o montanhismo na dcada de 1970, que levou as mulheres, tanto ocidentais como Sherpa, a praticar esse esporte e criou certa confuso tanto nas relaes sociais como nos pressupostos culturais de ambos
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os lados. E finalmente, em New Jersey Dreaming (2003), rastreei as diferentes histrias de mobilidade social de membros da classe de 1958 da Escola Mdia Weequahic, na cidade de Newark, estado de Nova Jersey, como embutidas em diferentes relaes de classe, de raa, de etnicidade e de gnero. Mas ancorei essa histria em movimentos culturais/polticos nos Estados Unidos o movimento Beat da dcada de 1950 e, nas de 1960 e 70, os movimentos pelos Direitos Civis, a contracultura, os movimentos de mulheres e outros. No presente volume, a guinada histrica menos visvel do que nas monografias completas e muito obviamente histricas que acabo de comentar. Mas aqui ela visvel de maneira mais sutil, pois, afinal de contas, a histria no se refere s ao passado, nem feita apenas de mudana. Pode ser feita de durao, de modelos que persistem por longos perodos de tempo, o que o caso do modelo examinado tanto em Identities como em Reading America (ambos neste volume), a saber, a relativa ausncia de um discurso de classe na cultura hegemnica americana. Tambm pode consistir em situar uma anlise ou interpretao em um momento particular, historicamente compreendido, algo que tambm ser visvel em vrios dos artigos, mas especialmente em Generation X. Aqui, estudo a emergncia da idia de Gerao X e as caractersticas especficas que tanto so atribudas a seus integrantes (por exemplo, indolentes) como as que so manifestadas por eles (sobretudo ansiedade em relao a seu futuro financeiro). O artigo tem uma seo de histria reconhecvel, que rastreia as mudanas na representao pblica da Gerao X ao longo do tempo. Mas todo ele implicitamente histrico, pois esse fenmeno s emerge em um determinado momento, e esse momento em si o comeo da polarizao da estrutura de classes dos EUA, ainda hoje em curso que a chave da interpretao. provavelmente bvio, com base no que foi dito acima, que a historicizao da teoria da prtica no foi totalmente distinta da mudana do poder. Questes de histria eram, em grande medida, questes da reproduo ou de transformao das relaes de poder e de desigualdade. O mesmo ser verdade para as questes de cultura, de que tratarei a seguir.
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A CULTURA NA PRTICA Em seu incio, a teoria da prtica, particularmente tal como desenvolvida por Bourdieu e por Giddens, no tinha um conceito identificvel de cultura. Nenhum dos dois autores apresentou uma percepo da maneira como a prpria prtica era culturalmente organizada, de forma explcita ou implcita, por coisas tais como mitos de origem (SAHLINS, 1981), esquemas culturais (ORTNER, 1989; SEWEL, 2005), scripts culturais (ALEXANDER, 2004), jogos srios (ORTNER, 1996a; Power and Projects [neste volume]) e outras semelhantes. Nenhum dos dois percebia (ou talvez no lhes interessasse) o modo como os movimentos culturais (como o advento do protestantismo, tal como analisado por Max Weber [1958]) remodelaram tanto as prticas como as subjetividades. Existem certos elementos culturais nos marcos tericos de ambos os autores (o habitus, sem dvida, um tipo de formao cultural, e Giddens tem um captulo sobre Ideologia e Conscincia); mas, desde o comeo, fica claro pelo menos para esta antroploga que a teoria da prtica precisava de uma concepo muito mais plenamente desenvolvida de cultura e do seu papel no processo social. Mas de que tipo de cultura se precisa? Responder a esta pergunta significa mergulhar nos debates culturais recentes e tentar ver as vrias maneiras como este velho e persistente conceito est sendo repensado e remodelado. Como hoje praticamente todos os antroplogos sabem, a crtica do conceito de cultura na Antropologia centrou-se basicamente (embora no exclusivamente) em torno do problema do essencialismo. A Antropologia clssica tendeu a retratar grupos de pessoas como tendo uma cultura, como estando presas cultura e agindo de maneiras que podiam ser explicadas, em grande medida, com referncia cultura. O trabalho (cultural) do antroplogo, pelo menos na tradio dominante neste campo quase desde o comeo, era desenterrar a cultura de um povo, desvendar sua lgica e coerncia e mostrar de que maneira ela era a base da maioria das prticas formalizadas (por exemplo, rituais), dos padres de prticas (por exemplo, criao das crianas) e do comportamento ordinrio e extraordinrio dos integrantes do grupo. Embora o desenvolvimento inicial de um conceito antropolgico de cultura tenha nascido de intenes impecveis como alternativa ao conceito de raa, como
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maneira solidria (sympathetic) de pensar sobre a diferena e como uma forma positiva de lograr um entendimento transcultural , foi difcil conter o conceito dentro deste marco basicamente liberal. Assim, cultura, em sentido clssico, poderia, em uma mentalidade poltica diferente, facilmente se transformar em um esteretipo (tnico, racial, de classe), e s vezes um esteretipo, de fato, perigoso pode-se atribuir etiquetas a grupos (e at traar o seu perfil), afirmando-se que sua cultura faz com que sejam intrinsecamente propensos a este ou quele (bom ou ruim, minorias-modelo ou terroristas) padro de comportamento. Por esta e por outras razes, ao longo das ltimas vrias dcadas, muitos antroplogos defenderam o abandono de qualquer conceito de cultura 8 . Ironicamente, contudo, acadmicos de outras reas intelectuais passaram ao largo de todo esse embarao antropolgico e comearam tanto a usar como a transformar o conceito de maneiras empolgantes e vigorosas. Pode-se identificar pelo menos trs tendncias distintas, porm superpostas, que tambm tm suas razes essencialmente no mesmo perodo que todos os outros trabalho examinados neste texto final da dcada de 1970, incio da de 1980. A primeira est associada original Escola de Birmingham de estudos culturais, que abrangia tanto um trabalho etnogrfico (por exemplo, Willis, 1977) como estudos sobre a mdia (por exemplo, Hall et al., 1980). Em segundo lugar, os estudos sobre a mdia, em si, transformaram-se em uma tendncia de grande porte; alguns de seus trabalhos iniciais importantes vieram do mbito acadmico feminista (por exemplo, De Lauretis, 1984), mas agora essa tendncia j atravessa praticamente todos os campos da cincia social, inclusive a Antropologia (por exemplo, Ginsburg et al., 2002). E, por fim, no bojo da reteorizao do prprio conceito de Antropologia, foi fundada a publicao cientfica Public Culture em 1988. A misso desta publicao, tal como anunciada em seus primeiros editoriais, era enfocar a cultura no como algo que estaria vinculado a determinados grupos de pessoas e que as definiria, mas como parte de fluxos culturais globais (1988: 1) e da ecumene cultural global (1988: 3).
Para uma viso geral das questes, ver Ortner (2000); ver tambm Fox (1999).
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Estas abordagens novas da cultura tinham diversas coisas em comum que as diferenciava coletivamente da viso clssica de cultura na Antropologia. A primeira o seu envolvimento muito estreito com a mudana do poder. Todas elas enfocam a cultura como sendo altamente politizada ou como elemento de um processo poltico. Alm disso, todas elas tentam, de vrias maneiras, afrouxar as relaes entre cultura e grupos especficos de pessoas. Embora talvez haja epicentros de determinadas formaes culturais (o que, no passado, teramos pensado como sendo culturas), a cultura tornou-se, ao mesmo tempo, um objeto pelo menos parcialmente mvel. No apenas transita (como a mdia) por fronteiras sociais, culturais e polticas. Alm disso, tambm e talvez por causa dessa mobilidade , pode ser vista como algo que se desdobra e que apropriado de maneiras muito mais variveis do que se supunha ser o caso da cultura em sentido clssico. Expresses como cultura pblica ou, nos termos de James Clifford, cultura viajante (1997) do conta dessa viso mais mvel das formas e das foras culturais9 . A estas mudanas importantes, eu acrescentaria mais uma, que exemplificarei, junto com as outras, nos artigos desta coleo. Retornarei um momento aos primeiros tempos da Escola Birmingham de estudos culturais, que, na verdade, incorporava duas tendncias um tanto diferentes uma da outra. Por um lado, havia o trabalho de estudos sobre a mdia, que tratava a cultura como um conjunto de textos pblicos a ser analisado no intuito de verificar a maneira como eram construdos como formaes ideolgicas. No presente livro, tanto Identities: The Hidden Life of Class como Reading America: Preliminary Notes on Class and Culture essencialmente seguem essa estratgia. Renem uma variedade de textos culturais, incluindo etiquetas para grupos (em Identidades), romances (em Reading America), etc., e perguntam que tipos de formaes ideolgicas esto sendo construdos neles e por meio deles especificamente, o quase apagamento de classe do discurso americano dominante10 . Identidades tambm vai
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O grau em que a mdia d ateno a questes de classe varia bastante ao longo do tempo. Recentemente, por exemplo, o New York Times apresentou uma srie em vrias partes a respeito de classe nos EUA. Mas, no plano da conscincia popular, classe algo sobre o que praticamente no se pensa e nem se fala. Ver Ortner, 2003.
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alm e pergunta teoria da prtica que tipos de dinmica social estiveram em jogo para fazer e manter uma verso especfica desse padro discursivo, no qual as categorias tnicas muitas vezes esto no lugar das categorias de classe. Entretanto, a outra tendncia existente nesse momento inicial dos estudos culturais era trabalhar com algo suspeitamente semelhante ao conceito clssico de cultura, mas modificando-o por meio de sua incorporao a um tipo de histria diferente, a um tipo de contexto diferente. Isso quer dizer que o conceito em si no foi realmente retrabalhado. Ele ainda contm a noo, que fazia parte do conceito clssico, de que cultura tanto facilita (permite que as pessoas vejam, imaginem e entendam algumas coisas) como exerce coero (tira das pessoas a capacidade de ver, sentir, imaginar e entender outras coisas). Mas este conceito de cultura relativamente no retrabalhado assume uma expresso muito diferente quando embutido em narrativas de poder e de desigualdade. Vemos isto em Learning to Labor, por exemplo. O conceito de cultura de Willis no realmente diferente do modelo americano clssico a cultura fornece um conjunto de marcos e valores por meio dos quais os rapazes vem o mundo e atuam sobre ele. Seu conceito nem visto como ideolgico em si e por si, ou pelo menos Willis no o trata basicamente nestes termos. Ele se pergunta, antes, como ele permite/favorece certo conjunto prazeroso de prticas de resistncia cotidiana aos rapazes na escola enquanto, ao mesmo tempo, lhes tira a capacidade de ver que esto agindo de um modo que, em longo prazo, contrrio a seus prprios interesses. Em outras palavras, Willis faz com que o conceito velho e relativamente no reconstrudo faa novos tipos de trabalho; o autor consegue isso incorporando-o a uma narrativa de reproduo capitalista: como os garotos da classe trabalhadora conseguem empregos de classes trabalhadoras11 . Chamarei isto de novo-velho conceito de cultura. Diversos textos desta coleo fazem uso deste procedimento de incorporao e deste novo-velho conceito de cultura. Devo apontar aqui que tambm me atrai muito a idia de cultura pblica no sentido
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mais mvel, e talvez mais global, examinado acima; retomarei a questo no final desta seo. Em alguns desses ensaios, contudo, tento ater-me aos elementos fortes do antigo conceito de cultura enquanto, ao mesmo tempo, procuro ultrapassar suas limitaes, desdobrandoos no seio de diferentes tipos de narrativas, narrativas de poder e de desigualdade. Vou comear com a idia de que cultura algo coercitivo, o que faz parte do antigo conceito de cultura: a idia de que as pessoas de uma determinada sociedade so compelidas por seu marco cultural a serem como so e a agirem como agem. Quando a cultura era vista atravs de lentes relativistas, e como essencialmente benigna, esta idia de coero cultural era, em si, uma idia relativamente benigna. Contudo, a questo da coero assume uma fisionomia muito diferente em um tipo diferente de narrativa. Assim, em Subjectivity and Cultural Critique, persigo a idia de coero cultural passando pela idia de que a cultura plasma a subjetividade das pessoas no tanto como membros de determinados grupos (embora isso no seja totalmente irrelevante), mas sob regimes histricos de poder especficos. O regime em questo, no caso desse texto, o do capitalismo tardio, e me baseio no trabalho de Fredric Jameson e Richard Sennett para investigar as formas essencialmente infelizes de conscincia culturalmente produzidas sob esse regime. Vale a pena apontar, neste caso, que a ancoragem da cultura a determinados grupos afrouxada no tanto pela mobilidade geogrfica, que o que a perspectiva dos estudos sobre a mdia tende a enfatizar, nem pela idia de cultura viajante, e sim pela mobilidade temporal. Isso sugere que pensemos a guinada histrica como outra forma de tornar a cultura um fenmeno mais mvel, mas nem por isto perder a possibilidade de investigar o seu poder s vezes e para algumas pessoas profundamente coercitivo. Vejamos agora a idia de cultura como algo que favorece/ facilita (enabling). Tambm isto faz parte do conceito clssico de cultura. Esta idia era central na discusso que Geertz apresenta em The Growth of Culture and the Evolution of Mind, em que o autor sustenta que, sem cultura sistema externo de smbolos e de significados , as pessoas no seriam capazes de pensar (1973a). Essa idia tambm foi central na sua discusso das funes da religio, que, quando funciona, permite que as pessoas lidem com o sofrimento,
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a falta de sentido, e assim por diante (1973b). Uma vez mais, contudo, insiro questes do funcionamento enabling da cultura em narrativas de poder e de desigualdade. Assim, em Resistance and the Problem of Ethnographic Refusal, baseio-me na noo das transcries ocultas, de James Scott (1990), como recursos culturais que permitem o surgimento da prpria idia de resistncia, assim como de suas muitas formas especficas. E, em Power and Projects: Reflections on Agency, investigo a construo cultural da agncia ao mesmo tempo como uma espcie de empoderamento e como a base que permite que se persigam projetos dentro de um mundo de dominao e de desigualdade. Por fim, um dos textos do presente volume rene (ou pelo menos inclui dentro de seu marco nico) questes de cultura pblica e questes de cultura/subjetividade no sentido novo-antigo comentado acima: Generation X: Anthropology in a Media Saturated World. Por um lado, dedico tempo cultura pblica, representao da Gerao X na mdia, que a v como grupo especfico, com sua prpria conscincia distintiva. Rastreio as maneiras como as representaes mudam com o tempo e ao longo do espao social, medida que vo passando por diferentes mos (romancistas, demgrafos, interesses de publicidade e marketing, comentaristas sociais, jornalismo popular). Por outro lado, investigo por meio de etnografias publicadas e de algumas entrevistas com integrantes da Gerao X que realizei no incio da dcada de 1990 a cultura da prpria Gerao X. Aqui adoto o procedimento comentado acima, usando um conceito de cultura razoavelmente no reconstrudo como algo que produz certas subjetividades (especificamente certas ansiedades), mas inserindo-o em outra narrativa do capitalismo tardio: a da estrutura de classes mutvel dos Estados Unidos. O texto (e, com ele, este livro) termina ali, e a idia de Gerao X, agora plida, j recuou, em grande medida, para uma posio obscura na cultura pblica. Hoje raro ver referncias a ela. Mas, na verdade, aquela gerao agora est chegando ao poder em determinadas indstrias culturais-chave e, especificamente para os fins do meu trabalho, na produo da mdia. Jovens, homens e mulheres, de 35 a 40 anos de idade, agora esto chegando a cargos criativos importantes em Hollywood. Podemos nos perguntar: embora
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ningum esteja mais escrevendo sobre o tema, ser que existe uma sensibilidade distintiva da Gerao X que se est manifestando em pelo menos um segmento identificvel da produo da mdia de Hollywood? Entrevistas preliminares com personagens da Gerao X em Hollywood sugerem que eles com certeza acham que sim. Seja como for, encaro isto como ponto de partida de um projeto em que continuarei a combinar questes de cultura (no sentido novo-antigo), de poder e de histria ao examinar a produo desses artefatos culturais eminentemente mveis: as produes de mdia de Hollywood. CONCLUSES: CULTURA / PODER / HISTRIA J assinalei que todos os desenvolvimentos tericos examinados no presente texto foram praticamente contemporneos uns dos outros, com publicaes-chave em cada uma das reas principais teoria da prtica, mudana do poder, guinada histrica e estudos culturais , sendo lanadas entre o final da dcada de 1970 e comeo da de 1980. Todas eram importantes, e realmente poderamos comear por qualquer uma e ir incluindo as outras. A teoria da prtica pareceu-me ser a que mais interpelou sua poca. Trata-se de uma teoria geral da produo de sujeitos sociais por meio da prtica no mundo e da produo do prprio mundo por intermdio da prtica. A primeira parte no me parece nova. Minha formao weberiana-geertziana foi, em grande medida, sobre a produo de sujeitos/subjetividades e feita de um modo que achei mais rico e interessante que, digamos, o conceito de habitus de Bourdieu (embora o termo venha a calhar). Mas a segunda parte a produo do mundo por meio da prtica humana pareceu-me nova e muito vigorosa; fornece uma sntese dialtica da oposio entre estrutura (ou mundo social tal como est constitudo) e agncia (ou as prticas interessadas de pessoas reais) que antes no fora conseguida. Alm disso, a idia de que o mundo feito em sentido muito amplo e complexo, claro por intermdio da ao de pessoas comuns tambm significava que ele poderia ser desfeito e refeito. Ou seja, a teoria da prtica tinha implicaes polticas imediatas que entraram em sintonia com minhas preocupaes feministas. E, finalmente, a teoria da prtica era atraente porque era () um marco terico muito amplo
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e espaoso. Faltava-lhe muita coisa, mas tudo que faltava uma teoria da cultura melhor, um papel mais central para o poder, pelo menos algo de histria (em Bourdieu e Giddens) era, ao mesmo tempo, implicado pelos termos da teoria. Enquanto isso, em outras partes da paisagem intelectual, realizava-se um trabalho empolgante em todas essas reas que faltavam. A mudana do poder foi gerada pela imensa politizao do mundo real que comeou no final da dcada de 1960 e que inclua tanto os movimentos sociais como os estudos acadmicos voltados para vrias formas de dominao e de desigualdade, particularmente gnero e raa. A guinada histrica apresentou a mesma ligao com os movimentos sociais e os acontecimentos do mundo real das dcadas de 1960 e 1970. O vnculo mais bvio era o que existia entre o crescente interesse acadmico pelo colonialismo e as lutas (ou algo pior) contemporneas nas numerosas naes ps-coloniais em que os antroplogos tradicionalmente haviam trabalhado. Mas, na Introduo de The Historic Turn in the Human Science, Terrence McDonald vincula a guinada histrica tambm aos movimentos sociais de seu prprio pas:
A ascenso do movimento pelos direitos civis, a redescoberta da pobreza e o prosseguimento da guerra do Vietn revelaram... a incapacidade que tinham as teorias de consecuo de consenso e status, abundncia e modernizao de explicar os acontecimentos em curso. Os movimentos sociais nacionais surgem em resposta a esses acontecimentos o caso, por exemplo, dos movimentos pelos direitos civis, contra a guerra, por direitos ligados ao bem-estar, assim como dos movimentos paralelos pelos direitos das mulheres e outros tornam a colocar tanto a agncia como a histria de volta na agenda (MCDONALD, 1996: 5).
Sustentei, ento, que a teoria da prtica, em suas primeiras verses europias (hegemonicamente, as de Bourdieu e de Giddens), precisa desesperadamente tanto da histria como de uma percepo mais elaborada do jogo do poder na vida social. Em sua a-historicidade e em seu interesse relativamente reduzido pelas questes de poder e a despeito de uma agenda terica radicalmente diferente , poderia parecer tratar-se de um retrocesso ao marco esttico e apoltico do
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funcionalismo. Esta impresso reforada pela nfase dada reproduo social, e no transformao social, nos trabalhos de ambos os autores12 . Uma vez mais, o propsito e o significado desta nfase so muito diferentes; mas, mesmo assim, ali parece ecoar a preocupao do funcionalismo com a estabilidade, a coerncia e a continuidade sociais. Sahlins foi uma exceo forte nas duas dimenses poder e histria e, assim, d-nos uma histria de transformao social radical, pois o poder dos chefes havaianos, os tabus religiosos e as desigualdades de gnero foram desfeitos e/ou refeitos no transcurso de um encontro histrico prolongado entre partes desigualmente poderosas. E a cultura? Por que a teoria da prtica precisa da cultura, como os artigos da presente coleo exemplificam de muitas maneiras diferentes? Esta pergunta s pode ser respondida remetendo-se s questes de poder, de histria e de transformao social com que comecei este texto, pois o significado profundo de transformao social no apenas um rearranjo de instituies, mas implica a transformao da cultura, tanto em seu sentido novo-antigo como em seu sentido mais novo. Se tomarmos a cultura no sentido novo-antigo como os esquemas (politicamente infletidos) por meio dos quais as pessoas vem o mundo e atuam sobre ele e as subjetividades (politicamente infletidas) por meio das quais as pessoas tm sentimentos (emocionais, viscerais, s vezes violentos) sobre si mesmas e sobre o mundo , a transformao social implica a ruptura desses esquemas e subjetividades. E, se tomarmos a cultura no sentido mais novo pblica, mvel, viajante , a transformao social funciona, em parte, por meio da constante produo, contestao e transformao da cultura pblica, da mdia e de outras representaes de todos os tipos, incorporando e procurando plasmar antigos e novos pensamentos, sentimentos, ideologias. Em ambos os sentidos, ento, diremos, parodiando um velho ditado: a transformao social deve ser tambm transformao cultural, ou no ser nada.
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Bourdieu, mais tarde (em 2000), modificou e/ou defendeu seus argumentos at certo ponto. Ao longo de todo este ensaio, refiro-me basicamente a suas primeiras obras, nas quais o autor apresentou seus traos bsicos para uma teoria da prtica (para cunhar uma expresso): 1978 e 1990.
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PODER E PROJETOS:
REFLEXES SOBRE A AGNCIA1
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Estas reflexes sobre agncia fazem parte de um projeto mais amplo centrado em um conceito que, em outros contextos, chamei de jogos srios (ORTNER, 1996; 1999). A idia de jogos srios representou uma tentativa de basear-nos nos importantssimos insights da teoria da prtica, mas, ao mesmo tempo, de ir alm destes. O pressuposto fundamental da teoria da prtica que a cultura (em sentido muito amplo) constri as pessoas como tipos particulares de atores sociais mas atores sociais mesmo assim , embora sua vivncia concreta de prticas variveis reproduza ou transforme normalmente um pouco de cada a cultura que os fez. Assim, reduzida a seu esqueleto, a idia parece simples, mas no . A elaborao terica e a aplicao emprica dos conceitos da teoria da prtica j provaram sua fora e mostraram suas lacunas. Como resposta, a idia de jogos srios visava a movimentar questes de teoria da prtica em vrias direes. Assim como na teoria da prtica, a vida social, sob a perspectiva dos jogos srios, vista como algo ativamente jogado, voltado para metas e projetos culturalmente constitudos e envolvendo tanto prticas de rotina como
Texto apresentado em Workshop realizado como parte das atividades da 25 Reunio Brasileira de Antropologia, em Goinia (GO), Brasil, no ms de junho de 2006 (Traduo de Sieni Campos; reviso de Fernanda Cardozo).
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Agradecimentos: Eu gostaria de agradecer a Oscar Salemink e a seus colegas e alunos da Vrije Universiteit de Amsterd a hospitalidade calorosa e os comentrios teis sobre um primeiro rascunho deste trabalho. Gostaria de agradecer tambm a Laura Ahearn, Andrew Apter, Alessandro Duranti, Antonius C.G. Robben e Timothy Taylor, em virtude de seus comentrios adicionais, extremamente valiosos, que me serviram de apoio.
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aes intencionalizadas. Mas a perspectiva dos jogos srios, como analisarei em parte do presente trabalho, permite-nos dar nitidez a formas mais complexas de relaes sociais, especialmente relaes de poder, e a dimenses mais complexas da subjetividade dos atores sociais particularmente, para os fins deste texto, as que envolvem intencionalidade e agncia. Algumas observaes antes de prosseguir. Primeiro, preciso dizer imediatamente que os jogos srios no tm nada a ver com a teoria dos jogos formalista, popular nas cincias sociais mais duras3 . As interpretaes da vida social por meio de jogos srios no envolvem a modelagem formal da teoria dos jogos e no envolvem o seu pressuposto de que prevalece uma espcie de racionalidade universal em praticamente todos os tipos de comportamento social. Ao contrrio, os jogos srios so, bem enfaticamente, formaes culturais, no modelos de analista. Alm disso, a perspectiva dos jogos srios pressupe atores culturalmente variveis (e no universais) e subjetivamente complexos (e no predominantemente racionalistas e interessados em si mesmos). Sei que a metfora dos jogos srios desencadeia associaes com a teoria dos jogos em muitos leitores (e so associaes ruins, porm por boas razes), mas s posso esperar que o leitor mantenha a mente aberta neste ponto. Tambm preciso dizer aqui e direi de novo mais adiante que a idia de jogos (srios) no pretende, de modo algum, substituir uma teoria de processos sociais e culturais de grande escala. Embora parea concentrar-se na micropoltica, seu propsito, no final das contas, sempre entender as foras, formaes e transformaes mais amplas da vida social. De fato, no desenrolar normal dos tipos de anlises sociais e culturais em que estou interessada, trabalha-se no sentido oposto: comeando pelas formaes maiores e depois tentando retroceder em direo a seus jogos srios subjacentes. No entanto, o presente trabalho focaliza uma parte especfica da idia de jogos srios: a questo da agncia e da intencionalidade dos atores. Os jogos srios sempre implicam o jogo de atores vistos como agentes. Contudo, a prpria palavra agncia tem algo que remete ao ator autnomo, individualista, ocidental. De fato, as prprias
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Para um exemplo mais recente na Antropologia, no entanto, ver Acheson & Gardner (2004).
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categorias que historicamente esto por trs da teoria da prtica, a oposio entre estrutura e agncia, parecem sugerir um indivduo herico O Agente enfrentando uma entidade tipo cyborg chamada Estrutura. Mas nada poderia ser mais distante da maneira como enfoco os agentes sociais, encarando-os como estando sempre envolvidos na multiplicidade de relaes sociais em que esto enredados e jamais podendo agir fora dela. Assim sendo, assume-se que todos os atores sociais tm agncia, mas a idia de atores como sempre envolvidos com outros na operao dos jogos srios visa a tornar praticamente impossvel imaginar-se que o agente livre ou que um indivduo que age sem restries. Mas a insero social dos agentes, central idia de jogos srios, pode revestir diversas formas. Por um lado, o agente sempre est inserido em relaes de (pretensa) solidariedade famlia chegada, amigos, parentes, esposos/companheiros, filhos, pais, professores, padrinhos, e assim por diante. importante destacar este ponto, porque alguns dos crticos do conceito de agncia os que encaram agncia como um conceito burgus e individualista baseiam-se, em grande medida, na maneira como o conceito parece desconsiderar a boa insero dos agentes: os contextos de solidariedade que atenuam a agncia em suas formas individualistas e egostas. Por outro lado, o agente est sempre enredado em relaes de poder, de desigualdade, de competio e assim por diante. Sem ignorar as relaes de solidariedade, a onipresena do poder e da desigualdade na vida social central para a prpria definio de jogos srios4 . Assim, o presente captulo enfoca especificamente as relaes entre agncia e poder. O PROBLEMA DA AGNCIA A idia de agncia padece de muitos dos mesmos problemas que a idia de sujeito (ver Subjetividade e Crtica Cultural). H certo tipo de pensador/escritor anti-humanista que sente uma antipatia reflexa por toda aluso a qualquer um desses dois fenmenos suspeitos. Mas existe uma representao mais matizada do tipo de ansiedade
Verses anteriores da teoria da prtica no ignoraram totalmente as questes de poder, mas no h dvida de que essas questes no estavam no centro do marco.
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intelectual que essas categorias despertam: encontrei-a na excelente introduo a Ethnography and the Historical Imagination (obra abaixo citada como EHI), de John e Jean Comaroff (1992). Os Comaroff no so o que costuma ser chamado de anti-humanistas. No lhes interessa banir o sujeito social de seus modelos tericos, nem os indivduos de suas histrias etnogrficas. No lhes interessa argumentar a favor da causalidade estrutural ou discursiva como oposta aos efeitos dos sujeitos e dos atores histricos teoricamente definidos. No entanto, a Introduo a EHI pode ser caracterizada como uma espcie de preocupao ampliada com a a virada humanista (COMAROFF & COMAROFF, 1992: 36) e nossa atual obsesso conceitual com agncia (Idem: 37). Na Introduo a EHI, o casal Comaroff tenta desenvolver um marco terico geral para uma histria antropolgica. Os autores tm duas preocupaes gerais em relao nfase excessiva dada agncia nas anlises antropolgicas e histricas. A primeira que, salvo quando manejada com muito cuidado, a agncia volta a profundos etnocentrismos:
[...] muitos antroplogos desconfiam de ontologias que do precedncia aos indivduos em relao aos contextos, pois estas repousam manifestamente em pressupostos ocidentais: entre estes, o de que os seres humanos podem triunfar sobre seu contexto por meio apenas da fora de vontade, [e] de que a economia, a cultura e a sociedade so o produto agregado da ao e da inteno individuais (Idem: 10).
A segunda, que, de certa maneira, mais central ao seu projeto, o fato de que focalizar demais a agncia de indivduos e/ou de grupos resulta em uma simplificao grosseira e excessiva dos processos envolvidos na histria. Em si, essa simplificao excessiva assume pelo menos duas formas. A primeira simplesmente que as foras sociais e culturais em jogo, em qualquer situao histrica, so infinitamente mais complexas do que pode ser captado quando se olham apenas as intenes dos atores:
A motivao da prtica social [] sempre existe em dois nveis distintos, embora relacionados: primeiro, as necessidades e desejos (culturalmente configurados) dos seres
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humanos; e, segundo, o pulsar das foras coletivas que, empoderadas de maneiras complexas, trabalha atravs deles (Idem: 36).
So o exame e a anlise minuciosos do pulsar de foras coletivas que, ao ver dos Comaroff, comeam a ser negligenciados quando o peso do esforo analtico se desloca para a agncia, e isso resulta em um relato profundamente inadequado do que realmente est acontecendo.
[O problema] torna-se particularmente visvel quando examinamos movimentos epocais como o colonialismo europeu, no qual a ao herica e intencional era um motivo central, at um impulso motor. Em nossa perspectiva, contudo, no basta esse impulso para dar conta da determinao dos processos envolvidos ou mesmo para dizer muita coisa a respeito da narrativa histrica (Idem: 36).
A segunda dimenso de complexidade perdida , de certa forma, uma extenso da primeira. Se uma anlise que focaliza excessivamente as intencionalidades dos atores perder de vista as foras sociais e culturais de grande escala que esto em jogo, tambm perder de vista temem os Comaroff as relaes complexas, e altamente imprevisveis, entre intenes e resultados. Especificamente, os autores recordam aos leitores a importncia e a prevalncia dos resultados no intencionais em qualquer processo histrico. Os autores do projeto Of Revelation and Revolution (Jean e J.L. Comaroff, 1991; J.L. e Jean Comaroff, 1997) enfatizam em que medida os processos de transformao cultural constantemente funcionam de maneira imprevista:
Todos os sinais dispersos resgatados [na pesquisa] apontavam para transformaes sociais mais amplas trazidas inconscientemente pelos missionrios. Sob muitos aspectos, essas transformaes ocorreram, na verdade, em sentido contrrio aos seus prprios desejos e motivaes (COMAROFF & COMAROFF, 1992: 36, itlicos no original).
Sugere-se aqui que desejos e motivaes, que so os ingredientes da inteno e da agncia, s vezes so irrelevantes para os resultados, mas no mnimo guardam com estes uma relao
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complicada e altamente mediada. Uma vez mais, essa complexidade temem os autores tende a perder-se na obsesso com a agncia. Falo por mim mas acredito que tambm em nome de muitos outros tericos interessados em questes de agncia quando digo que s posso concordar com o fato de que esses perigos so sempre potencialmente reais e de que, sem dvida, certos tipos de trabalho caem nas vrias ciladas descritas pelo casal Comaroff. Mas h um importante corpus de trabalho terico que foi desenvolvido precisamente para teorizar os desejos e motivaes e prticas de pessoas reais no processo social (1) sem dar precedncia aos indivduos em relao aos contextos; (2) sem importar pressupostos ocidentais, tais como a idia de que os seres humanos podem triunfar sobre seu contexto por meio apenas da fora de vontade, [e] de que a economia, a cultura e a sociedade so o produto agregado da ao e da inteno individuais; (3) sem desconsiderar o pulsar das foras coletivas; e (4) reconhecendo sempre a onipresente probabilidade de conseqncias no intencionais. O leitor reconhecer aqui o marco com que iniciei este trabalho, o marco da teoria da prtica, na qual nem os indivduos nem as foras sociais tm precedncia, mas na qual h, contudo, uma relao dinmica, forte e, s vezes, transformadora entre as prticas de pessoas reais e as estruturas da sociedade, da cultura e da histria. interessante constatar que a idia de agncia no foi muito desenvolvida em dois dos trs textos-chave do incio da teoria da prtica: Pierre Bourdieu, Outline of a Theory of Practice (1978), e Marshall Sahlins, Historical Metaphors and Mythical Realities (1981). Embora no de Bourdieu haja discusses que consideram que os atores apresentam o que chamaramos de agncia, este termo no teorizado nessa elaborao da teoria nem em outras posteriores do autor (1990). Essa omisso pode ser intencional, mas as especulaes a respeito (por exemplo, sobre um anti-humanismo remanescente na obra de Bourdieu) nos levariam muito alm dos limites do presente trabalho. Tambm pode ser pertinente, contudo, o fato de aparentemente no existir termo em francs para o que os tericos sociais americanos e britnicos querem dizer com agncia, como fiquei sabendo recentemente, quando um trabalho meu foi traduzido
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em francs5 . O termo tampouco est presente em grande parte do livro de Marshall Sahlins, a meu ver parcialmente devido influncia francesa na obra de Sahlins, e em parte porque seu interesse pela transformao histrica levou o autor a estender-se no a respeito de agentes e de agncia, mas de acontecimentos e suas dinmicas. No entanto, agncia foi importante para o terceiro dos textos fundacionais Anthony Giddens, Central Problems in Social Theory (1979). Tem igualmente sido importante para o trabalho dos americanos que continuaram a trabalhar com teoria da prtica: William H. Sewell Jr. e eu6 . O vis anglo-americano em relao agncia na literatura da teoria da prtica confere algum crdito idia de que agncia uma forma de individualismo ocidental (leiase americano). No entanto, creio que seria um grave erro desqualificar o conceito de agncia alegando que se trataria apenas de uma criao da etnopsicologia americana, no extensvel a outros contextos culturais, nem mesmo humanidade em geral. Vou sondar mais profundamente o que est subjacente a este conceito do ponto de vista terico e filosfico. DEFINIO DE AGNCIA A melhor maneira de abordar as questes envolvidas na definio de agncia talvez seja equacionando uma srie de componentes: (1) a questo de se agncia implica inerentemente intenes ou no; (2) a universalidade da agncia e, ao mesmo tempo, o fato de esta ser culturalmente construda; e (3) as relaes entre agncia e poder. Direi algumas palavras sobre como cada um desses pontos foi abordado por outros, e tambm indicarei minha prpria posio a este respeito7 .
Por isso, a meno ocasional deste termo em tradues da obra de Bourdieu em ingls pode representar uma escolha terminolgica do tradutor. Creio que a expresso mais prxima em francs para o termo agency action, que contm um conjunto de conotaes um tanto diferentes. Contudo, Bourdieu usa o termo agent de forma intercambivel com ator; isso no parece representar uma escolha terica significativa de sua parte.
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Tambm h um crescente corpus de trabalhos sobre agncia na arqueologia americana, em que se tornou uma espcie de tema quente. Ver, por exemplo, Dobres & Robb (2000) e Dornan (2002).
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No pude comentar todos os pensadores que trataram de um ou outro aspecto da questo da agncia, mas mencionaria, em particular, Keane (2003).
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Antes de prosseguir, reafirmarei que agncia nunca uma coisa em si, mas sempre faz parte do processo do que Giddens chama de estruturao: o fazer e refazer de formaes sociais e culturais mais amplas. Como a presente seo est voltada para a definio de agncia, esta pode parecer um objeto psicolgico autnomo, mas esta impresso (equivocada) ser corrigida na parte final do trabalho. (1) Comeo com a questo da intencionalidade porque, de algum modo, leva ao cerne do que agncia significa. Intencionalidade, aqui, pretende incluir uma ampla gama de estados, tanto cognitivos como emocionais, e em vrios nveis de conscincia, que esto orientados para algum fim. Assim, em agncia, intencionalidade poderia incluir enredos, planos e esquemas altamente conscientes; metas, objetivos e ideais um pouco mais nebulosos; e, finalmente, desejos, vontades e necessidades que podem variar de profundamente encobertos a bastante conscientes. Em suma, intencionalidade como conceito quer incluir todos as maneiras como a ao aponta, cognitiva e emocionalmente, para algum propsito. Quando se trata dessa pergunta, os tericos tendem a situar-se ao longo de um continuum. Em um de seus extremos est o que chamo de definies soft de agncia, nas quais a inteno no um componente central. Eis alguns exemplos: a percepo de que o self um ser social autorizado (ORTNER, 1996: 10); a capacidade scioculturalmente mediada de agir (AHEARN, 2001: 112); a propriedade das entidades (i) que tm algum grau de controle sobre seu prprio comportamento (ii), cujas aes no mundo afetam outras entidades e (iii) cujas aes so objeto de avaliao (DURANTI, 2004: 453); um fluxo de intervenes causais, efetuadas ou contempladas, de seres corpreos no processo contnuo de acontecimentos-no-mundo (GIDDENS, 1979: 55). Em alguns casos, as pessoas que formulam essas definies soft no tratam, em absoluto, da questo da intencionalidade. Giddens, porm, faz uma discusso da relao entre intencionalidade e agncia; mas , de certo modo, uma relao soft. Giddens reconhece o carter intencional ou consciente do comportamento humano, mas, ao mesmo tempo, enfatiza a intencionalidadecomo processo. Essa intencionalidade uma caracterstica rotineira da conduta humana e
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no implica que os atores tenham metas conscientemente mantidas no foco da ateno enquanto desenvolvem suas atividades 1979: 56). Em outras palavras, reconhecer a intencionalidade como disposio geral dos humanos como agentes uma posio aceitvel; ver a intencionalidade como metas conscientemente mantidas no foco da ateno mais problemtico8 . Isto assim por vrias razes: primeiro, porque o que apresentado discursivamente pelos atores como intenes so freqentemente racionalizaes ps-fato (Idem: 57); segundo, porque e aqui a palavra problemtica consciente Giddens quer deixar espao para o inconsciente freudiano em uma teoria da ao (Idem: 58); e, por fim, porque como os Comaroff tambm alegam o foco excessivo nas intenes obscurece o fato de que a maioria dos resultados sociais , na realidade, feita de conseqncias no intencionais da ao (Idem: 59). No discordo destas ponderaes. preciso ter cuidado com a intencionalidade por todas as razes que Giddens (e os Comaroff) apontaram. Contudo, quando se soft demais em relao intencionalidade, perde-se a distino, que me parece necessrio manter, entre prticas de rotina, por um lado, e, por outro lado, agncia, vista precisamente como ao mais intencionalizada. No outro extremo do continuum, esto os pensadores que tm a inteno (em vrios sentidos) como algo muito mais central para o seu conceito de agncia. Charles Taylor, por exemplo, afirma, no em seu trabalho sobre agncia (1985a), mas em The Concept of a Person: dizer que as coisas importam para os agentes significa dizer que podemos atribuir-lhes propsitos, desejos e averses (1985b: 99). Mas a apresentao mais desenvolvida desta posio a de William H. Sewell Jr., em seu trabalho que j um clssico, A Theory of Structure: Duality, Agency, and Transformation (1992). Suas definies de agncia so sempre cheias de intenes no sentido mais amplo, ou seja, sempre parecem projetadas para frente: se no para metas definidas, ao menos de maneira mais ativamente motivada do que as prticas de rotina. Assim, o autor define agncia primeiro como os esforos e transaes motivadas que constituem a superfcie vivenciada da vida social (SEWELL, 1992: 2). Define a capacidade de agncia como a
Duranti (2004) segue Giddens em grande medida neste ponto. Mas, em trabalho a ser publicado (n.d.), o autor se desloca para o extremo mais hard do espectro.
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capacidade de desejar, formar intenes e agir criativamente (Idem: 20). Finalmente, ao discutir os modos como a agncia pode ser coletiva e tambm individual, diz que agncia acarreta a capacidade de coordenar as prprias aes com outros e contra outros, de formar projetos coletivos, de persuadir, de coagir... (Idem: 21)9 . Concordo com a concepo hard de agncia de Sewell pela razo apontada acima, ou seja, que o forte papel da intencionalidade ativa (embora no necessariamente totalmente consciente) que, a meu ver, diferencia a agncia das prticas de rotina. claro que no h limites ntidos e imediatos entre as duas; existe, antes, um continuum entre as prticas de rotina, que ocorrem com pouca reflexo, e os atos de agncia, que intervm no mundo com algo em mente (ou no corao). Mas me parece que vale a pena tentar manter a distino que define os dois extremos do espectro. (2) Sobre a questo da construo cultural da agncia, h uma concordncia geral entre os tericos de que a agncia , de certa forma, universal, e faz parte do que caracteriza a humanidade de modo fundamental. William Sewell diz explicitamente que a capacidade de agncia [...] inerente a todos os humanos (1992: 20). Alessandro Duranti (2004: 467) aponta que todos os idiomas tm estruturas gramaticais que parecem destinadas a representar a agncia. Charles Taylor usa indiferentemente os termos agente, pessoa, self e ser humano (1985: passim)10 . Ao mesmo tempo, tambm h uma concordncia geral a respeito de que a agncia sempre cultural e historicamente construda. Sewell
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Em algum ponto entre esses pontos de vista mais soft e mais hard do papel da intencionalidade na agncia, encontra-se a questo da improvisao, que uma categoria central na teoria da prtica desde o incio. Em Bourdieu, representa-se a idia de que o habitus o sistema internalizado de disposies culturais para a ao no um conjunto de regras ntidas e de fcil identificao, e sim um conjunto de limites dentro dos quais os atores podem improvisar. Contudo, a improvisao em si tem o que pode ser pensado como um extremo soft e outro hard. Em seu extremo soft, guarda semelhanas com a improvisao no jazz uma espcie de jogo/execuo com as possibilidades inerentes forma musical, pelo puro prazer emocional e esttico que proporciona. No extremo hard, contudo, est estreitamente ligada intencionalidade. O ator tem alguma inteno em mente; talvez haja uma maneira cultural padro de realizar essa inteno que, por algum motivo, est bloqueada; assim, o ator improvisa uma soluo alternativa no intuito de realizar essa inteno. Aqui, a improvisao mais como o bricolage em Lvi-Strauss: o uso criativo de possibilidades que esto ao alcance da mo para atingir alguma meta ou propsito. Merece destacar-se que a maioria dos exemplos de improvisao apresentados por Bourdieu desta ltima natureza. Ver tambm a histria maravilhosa da mulher que subiu em uma casa, em Holland et. al. (1998). Ver tambm Mohanty (1989).
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usa a analogia da capacidade de linguagem. Assim como todos os humanos tm capacidade de linguagem, mas precisam aprender a falar um idioma em particular, todos os humanos tm tambm capacidade de agncia, mas as formas especficas que esta assume variam nos diferentes tempos e lugares. Os autores variam na nfase que do capacidade que tm os diferentes mbitos da vida social de plasmar a agncia. Charles Taylor, de modo muito geral, e Laura Ahearn e Alessandro Duranti, de maneiras muito mais especficas, focalizam as relaes entre idioma e agncia. Para Giddens, o nvel mais pertinente o das prticas e das interaes sociais. Sewell tambm aponta a importncia dos esquemas que fazem parte de qualquer repertrio cultural, que so tanto impostos como usados para plasmar formas de desejo, maneiras de agir e assim por diante (1992: 8). A noo de esquemas culturais, neste sentido, tambm foi central em alguns de meus prprios trabalhos, de minhas primeiras discusses a respeito de cenrioschave (ORTNER, 1972) a meu trabalho sobre esquemas culturais (Sherpa) High Religion (1989). E, por fim, a agncia diferentemente plasmada, e tambm nutrida ou tolhida, em diferentes regimes de poder, o que nos leva dimenso final da definio de agncia. (3) A relao entre agncia e poder11 : h tericos da agncia que no dedicam muito tempo a questes de poder, alm de uma espcie de noo geral de que agncia a capacidade de afetar coisas. Em minha prpria viso, porm, agncia e poder social, em sentido relativamente forte, esto muito estreitamente relacionados. Assim, aqui farei um rpido estudo apenas dos autores que dedicam a esta questo uma ateno sistemtica. Laura Ahearn, em primeiro lugar, abre seu ensaio sobre Language and Agency com a pergunta por que agncia agora?, e a responde, em parte, relacionando-a com a emergncia de movimentos sociais e polticos a partir da dcada de 1970. Isso equivale a dizer que, desde o incio, o surgimento de uma agncia problemtica teve suas razes em questes de poder.
No tentarei definir poder de modo sistemtico, caso contrrio este trabalho seria interminvel. Espero que as diferentes maneiras como uso o termo sejam esclarecidas pelo contexto.
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Em parte como resultado dessa histria, agncia veio a ser equiparada, no entender de muita gente, idia de resistncia. Porm, Ahearn afirma com razo que agncia de oposio apenas uma de muitas formas de agncia (2001b: 115). Mesmo assim, claro que as questes de poder mais amplamente concebidas so centrais no pensamento de Ahearn a respeito de agncia. O que essa autora quer dizer no que dominao e resistncia sejam irrelevantes, e sim que, no seio de relaes de poder e de desigualdade, as emoes humanas, e, por conseguinte, as questes de agncia, so sempre complexas e contraditrias (2001b: 116)12 . Ali onde Ahearn trata da complexidade de motivaes e de intencionalidades geradas nas relaes de poder, Giddens torna a inserir a discusso de agncia e de poder em sua teoria mais ampla da estruturao (1979). Por um lado, afirma que o conceito de ao [termo que o autor s vezes usa intercambiavelmente com agncia] est logicamente ligado ao de poder, sendo que a primeira noo entendida como capacidade de transformao (GIDDENS, 1979: 88, em itlicos no original). Por outro lado, a capacidade de transformao dos agentes apenas uma dimenso de como o poder opera nos sistemas sociais. Tambm opera como o que ele distingue como dominao, ou seja, poder tal como incorporado a estruturas objetivadas instituies, discursos, etc. Os dois so, por sua vez, interligados por meio de sua noo da dualidade de estrutura (Idem: 91-92), tal como mediada por recursos. Mas aqui a discusso fica bastante obscura. Em sua discusso a respeito da noo de recursos de Giddens, Sewell primeiro nos assegura de que a confuso no est s na mente do leitor: concordo com Giddens em que qualquer noo de estrutura que ignore as assimetrias de poder radicalmente incompleta. Mas [usar] uma noo de recursos insuficientemente teorizada [...] s leva a confundir as coisas (1992: 9). Ento, o autor esclarece o que quer dizer com recursos, como estes esto implicados no poder e como tudo isto est ligado ao que queremos dizer com agncia:
[...] por mais desigualmente que estejam distribudos os recursos, alguma parte destes, tanto humanos como no
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humanos, controlada por todos os membros da sociedade, por mais destitudos e oprimidos que sejam. De fato, parte do que significa conceber os seres humanos como agentes est em conceb-los como empoderados pelo acesso a recursos de um ou de outro tipo (SEWELL, 1992: 9-10).
Sewell volta novamente a questes de poder na parte intitulada Agncia. Afirma (concordando, neste ponto, com Giddens) que agncia no se ope a estrutura, mas [...] um componente desta (Idem: 20). aqui que o autor ressalta o que apontamos acima a respeito da universalidade da agncia humana, mas vai alm e fala sobre diferenciais de poder e sobre as maneiras como estes afetam as capacidades e as formas de agncia das pessoas:
[...] importante [...] insistir em que a agncia exercida por diferentes pessoas est longe de ser uniforme, em que a agncia difere enormemente tanto em tipo como em extenso. Os tipos de desejos das pessoas, as intenes que elas formam e toda espcie de transposies criativas que realizam variam intensamente de um mundo social para outro. As estruturas [...] empoderam diferentemente os agentes, o que tambm implica que encarnam tambm diferencialmente os desejos, intenes e o conhecimento dos agentes. As estruturas, assim como as agncias humanas que elas conferem, esto carregadas de diferenas de poder (Idem: 20-21).
Ahearn, por um lado, e Giddens e Sewell, por outro, abordam a articulao agncia/poder de maneira bastante diferente. Mas o que pretendo no tanto ressaltar o contraste (embora este exerccio pudesse ser interessante), mas simplesmente concordar com todos eles em que uma teoria forte da agncia (e, mais amplamente, uma teoria da prtica transformada) deve ser estreitamente ligada a questes de poder e de desigualdade. Na continuao deste trabalho, a questo a natureza desse vnculo. Muitos dos principais exemplos apresentados na discusso a seguir so tirados da rea de gnero. Isso no foi totalmente intencional; inicialmente, no tive a inteno de escrever um trabalho sobre agncia como questo marcada pelo gnero. Contudo, indiscutvel que, em muitssimos casos, os exemplos mais vvidos das relaes entre agncia e poder so encontrados na rea das relaes
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de gnero. Mas claro que as questes de agncia vo muito alm das relaes de gnero. Assim, gnero, aqui, no representa apenas a si mesmo, mas a toda uma gama de outras formas poder e de desigualdade, como ficar claro no transcurso da discusso. TRS MINI-ENSAIOS SOBRE AGNCIA E PODER Em termos gerais, pode-se dizer que a noo de agncia tem dois campos de significado, ambos j assinalados acima. Em um campo de significado, agncia tem a ver com intencionalidade e com o fato de perseguir projetos (culturalmente definidos)13 . No outro campo de significado, agncia tem a ver com poder, com o fato de agir no contexto de relaes de desigualdade, de assimetria e de foras sociais. Na realidade, agncia nunca meramente um ou outro. Suas duas faces como (perseguir) projetos ou como (o fato de exercer ou de ser contra) o poder ou se misturam/transfundem um no outro, ou mantm sua distino, mas se entrelaam em uma relao de tipo Moebius. Alm disso, o poder, em si, uma faca de dois gumes, operando de cima para baixo como dominao, e de baixo para cima como resistncia. Assim, a fita de Moebius torna-se ainda mais complexa. Tudo isto pode parecer bastante denso; os exemplos desenvolvidos abaixo visam a demonstrar como estas afirmaes se apresentam na prtica. 1. A construo textual da agncia Comeo com uma interpretao de alguns contos de fadas de Grimm14 . Como j apontei acima, a agncia , em certo sentido, uma capacidade de todos os seres humanos, ao passo que sua forma e, por assim dizer, sua distribuio sempre so construdas e mantidas culturalmente. Substancialmente, ento, este exerccio nos permitir ver, com algum grau de detalhe, o que poderia ser chamado de poltica da agncia, o trabalho cultural envolvido na construo e na
Uso projetos no sentido sartriano, especialmente tal como discutido em Search for a Method (Questions de mthode) (1968). Este importante livro afasta-se decisivamente da nfase que Sartre inicialmente d liberdade do sujeito que age.
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Uma verso condensada desta discusso foi publicada sob forma de uma seo de Ortner (1996). A presente verso, mais completa, desta discusso remete ao texto de um trabalho indito (ORTNER, 1991).
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distribuio da agncia como parte do processo que cria pessoas apropriadamente definidas em termos de gnero e, assim, entre outras coisas, diferencialmente empoderadas15 . Os irmos Grimm retrabalharam e redigiram os contos em um tempo e lugar particulares a Alemanha do sculo XIX. Seria, sem dvida, possvel fazer muitas perguntas acerca da relao entre seus atos de inscrio e seu contexto histrico, mas seria um exerccio muito diferente. Tambm seria possvel fazer muitas perguntas acerca dos diferentes modos como esses contos foram ouvidos, interpretados e usados na prtica social comum, porm, uma vez mais, seria um exerccio muito diferente. Meus objetivos aqui so mais modestos estou simplesmente interessada em examinar o que poderia ser chamado de polticas narrativas envolvidas na construo de agncia em um corpus particular de histrias, algo que, ao menos para mim, praticamente salta aos olhos ao ler esses textos. Como veremos, a agncia ou sua ausncia nos contos se expressa, em grande medida, por meio de uma linguagem de atividade e passividade. Atividade implica perseguir projetos; passividade implica no apenas no perseguir projetos, como evitar, de certo modo, at o desejo de faz-lo. Apontemos primeiro que, na maioria dos casos, as nicas personagens femininas consistentemente ativas nos contos so ms as madrastas/bruxas que tm projetos maus e procuram realiz-los por meios maus. Voltarei ao tema mais adiante. Aqui, quero concentrar-me nas heronas, as menininhas e jovens princesas que so as protagonistas das histrias16 . A maioria dessas heronas est no modo que o folclorista V.I. Propp (1968) chama de heris vtimas: embora sejam as protagonistas, a ao da histria se desenrola em virtude de coisas ruins que lhes acontecem, e no pelo fato de as protagonistas tomarem a iniciativa de aes, como no caso da maioria dos heris masculinos. Assim, a passividade est, at certo ponto, incorporada maioria dessas meninas desde o incio.
Os contos foram interpretados muitas vezes (ver especialmente BETTELHEIM, 1977); muitos dos trabalhos mais recentes focalizaram especificamente questes de gnero (por exemplo: BOTTIGHEIMER, 1987; BARZELAI, 1990; ZIPES, 1993; ORENSTEIN, 2003).
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interessante observar que o nmero de contos que tm protagonistas masculinos e o nmero de ontos que tm protagonistas femininos so aproximadamente iguais.
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No entanto, um olhar mais atento aos contos mostra que at mesmo muitas dessas heronas vtimas assumem papis de agncia ativa nas primeiras partes da histria. Embora seus infortnios iniciais possam ter-lhes ocorrido por agncia externa, elas s vezes se apoderam da ao e a promovem, tornando-se brevemente heronas no sentido ativo, habitualmente reservado aos heris masculinos. Mas e este o ponto crucial da poltica de agncia (marcada pelo gnero) invariavelmente so castigadas por isso. A ao dos contos fora-as sistemtica e, muitas vezes, impiedosamente a renunciar a essa postura ativa, fora-as a renunciar possibilidade de formular e de perseguir projetos, mesmo quando estes so altrusticos. No nvel mais simples, considero essas histrias como contos de passagem, de sada da infncia para a idade adulta. Para os heris meninos, a passagem geralmente envolve a concretizao bem sucedida da agncia resolver um problema, achar um objeto perdido, matar o drago, salvar a donzela em perigo. Para todas as protagonistas femininas, contudo, a passagem implica quase exclusivamente a renncia agncia. As meninas com agncia, as que se apegam demais ao, so castigadas de um de dois modos apontados a seguir. Vejamos primeiro a forma menos comum de punio, que a negao da passagem para a idade adulta. Cinco dos contos tm heronas que so plenamente ativas e bem sucedidas na realizao de seus projetos. Em uma verso de Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, a menina e sua av sobem no telhado e conseguem matar o lobo e transformlo em salsicha. Em Joozinho e Maria, Maria quem mata a bruxa. Nestes e em outros casos17 de herosmo ativo especificamente bem sucedido da herona, a menina no consegue o que a imensa maioria das heronas de Grimm atinge a marca de maioridade feminina, o casamento. Em vez disso, voltam para a casa da me no fim da histria, no conseguem fazer a passagem. No conto feminino mais comum, a herona se casa no final. Mas, se tiver sido ativa no incio do conto (e s vezes mesmo se no tiver sido), tem invariavelmente de passar por vrias provaes severas
Em Os Sete Corvos, a menina sai para procurar seus irmos, encontra-os e os resgata com muito engenho, praticamente sem ajuda. Em O Noivo Ladro, a menina recebe ajuda de uma mulher idosa e, juntas, tramam a execuo do ladro e de seu bando. E, em Fundevogel, a menina salva, de forma ativa e engenhosa, seu irmo de uma velha malvada.
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antes de merecer casar-se com o prncipe ou com qualquer homem. Essas provaes sempre envolvem smbolos e prticas de profunda passividade e/ou total inatividade, assim como prticas de humildade e de subordinao. Em Amado Roland18 , a herona salva habilmente sua pele no princpio, e depois salva tanto a si mesma quanto ao seu amado; mas, para seu pesar, ele fica noivo de outra mulher. A herona reage transformando-se primeiro em pedra (totalmente inerte), depois em flor (forma em que diz esperar ser pisada e esmagada) e, finalmente, torna-se faxineira de um pastor durante algum tempo antes de se casar com o amado. Em Os doze irmos e Os Seis Cisnes19 , a herona parte em uma aventura ativa para salvar seus irmos. Apesar de suas boas intenes, porm, prejudica os irmos como resultado de seus esforos para salv-los e passa por um perodo de sete anos de completo silncio e gravidade (inclusive, em um caso, fazendo camisas para os irmos e, no outro caso, simplesmente fiando durante sete anos) antes de casar-se no final. Se qualquer tipo de agncia deve ser punido, at mesmo no caso das boas meninas, o castigo at pior para as personagens femininas ruins: bruxas e madrastas ms. Estas mulheres apresentam alto nvel de agncia: tm projetos, planos, tramas. ocioso dizer que todas tm fins terrveis. Depois de tentar e no conseguir matar Branca de Neve, por exemplo, a madrasta/bruxa convidada para o casamento de Branca de Neve com o Prncipe, mas l obrigada a danar calando chinelos incandescentes at cair morta. Dado que ela e as personagens semelhantes fizeram coisas ms, seus castigos parecem moralmente justificados; contudo, dentro do padro geral de punir qualquer tipo de agncia feminina, parece justo sugerir que elas so castigadas tanto pela agncia excessiva quanto por seu contedo moral. Em suma, podemos ver esses contos como formaes culturais que constroem e distribuem agncia de modos particulares, como parte da poltica cultural que cria pessoas apropriadamente definidas em termos de gnero em um determinado tempo e lugar. Do ponto de vista do ator, o projeto da histria o projeto de crescer, de fazer as coisas apropriadas para se tornarem homens e mulheres adultos.
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Dentro da poltica cultural de diferena e de desigualdade de gnero que informa os contos, porm, crescer significa que as duas partes desta relao que, no final das contas, desigual no podem ter agncia. Isso expresso em uma linguagem de (complementaridade de) atividade e passividade. O prncipe no pode ser heri se a princesa puder salvar-se a si mesma20 ; at pior, o prncipe no pode ser heri se a princesa puder salv-lo21 . Mas o exame de textos como os contos de fadas de Grimm estreitou nosso foco sobre a construo cultural de sujeitos sociais como agentes (ou no), ou seja, estreitou nosso foco psicologia culturalmente constituda dos jogadores dos jogos srios. No restante deste trabalho, porm, quero passar para o nvel mais amplo em que as relaes entre agncia e poder so organizadas e includas nos jogos srios da cultura e da histria. 2. Projetos nas Bordas do Poder Por muito tempo, interessou-me a questo de como as pessoas mantm uma vida culturalmente significativa em situaes de dominao em larga escala por parte de outros poderosos escravido, colonialismo, racismo, etc. Este foi um tema central em, por exemplo, Life and Death on Mt. Everest (1999), em que discuti o modo como os Sherpas, embora muitssimo afetados por um sculo de estreito envolvimento com alpinismo no Himalaia, mantm mbitos de vida culturalmente autntica. Com isso, no quero dizer que esses mbitos no tenham sido tocados pela presena macia de alpinistas, mas simplesmente que so menos moldados pelo encontro com os alpinistas e mais pelas prprias relaes sociais e polticas dos Sherpas, e por suas prprias intenes, desejos e projetos culturalmente
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Ver tambm minha discusso sobre Shabano em Resistance and the Problem of Ethnographic Refusal (1995).
Vale a pena refletir, por um momento, sobre os diferentes lugares de poder nos contos de fadas e suas diferentes relaes com a agncia. Por um lado, agncia diretamente equiparada a poder no caso das madrastas ms; entretanto, no caso dos meninos e meninas, prncipes e princesas, a relao entre agncia e poder mais oblqua e indireta. O poder que confere agncia aos meninos e o retira das meninas no est nas mos de nenhum agente em particular, e sim incorporado ordem cultural mais ampla, tal como codificada, entre outras coisas, nos contos de fadas. Esta uma clara ilustrao da distino que Giddens estabelece entre poder, que interpessoal, e dominao, que estrutural. Obviamente, os dois nveis ou modalidades alimentam-se um do outro: as prticas de poder reproduzem a dominao estrutural, ao passo que a dominao estrutural permite e, poderamos dizer, empodera as prticas de poder. Trata-se de um exemplo perfeito de um circuito prtica-teoria da reproduo social.
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constitudos. Podemos resumir esta idia por meio da expresso vida cultural nas margens do poder. Durante este perodo longo em que as histrias, muitas vezes ligadas entre si, da Antropologia e do colonialismo esto sendo elaboradas e em que, luz dessas histrias, as prprias prticas da Antropologia esto sendo repensadas, importante prestar ateno questo da autenticidade cultural sombra de formas de poder macias e culturalmente (assim como fisicamente) hostis. Uma resposta de muitos antroplogos foi enfatizar o grau em que o colonialismo formou e deformou as sociedades em questo e ressaltar que o que os antroplogos viram posteriormente em trabalhos de campo praticamente no tem autenticidade cultural alguma, que se trata, em grande medida, de um produto ocidental/colonial. Esta posio, em sua forma extrema, claramente tenderia a reproduzir, no plano intelectual, os pecados do prprio colonialismo histrico22 . Contra esta posio, importante procurar diferentes maneiras de pensar essas questes23 . O exemplo de poder para a presente finalidade o colonialismo na frica meridional, tal como discutido por Jean e John Comaroff em Of Revelation and Revolution, Volumes I e II24 . O casal Comaroff trabalha brilhantemente a longa conversa entre missionrios metodistas e sujeitos Tswana e a maneira como, com o passar do tempo, a conscincia Tswana foi transformada pelas idias e prticas introduzidas pelos missionrios. Aqui, porm, desejo tirar algo diferente desse material. Ao observar seus dados, achei til distinguir amplamente duas
Said (1978) assinalou que boa parte dos trabalhos acadmicos ocidentais arrasta pressupostos colonialistas. No entanto, o autor provavelmente no observou a situao irnica de que esses tipos de pressupostos colonialistas s vezes so recriados por acadmicos bem intencionados que esto justamente tentando superlos.
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O melhor trabalho em uma linha alternativa talvez seja o de Robin D. G. Kelley sobre a cultura popular, poltica e musical afro-americana (por exemplo, o de 1997).
23 24 Esta seo foi tirada de um texto chamado Specifying Agency: The Comaroffs and their Critics, trabalho apresentado nas reunies AAA de 1998 em um painel sobre Of Revelation and Revolution, Vol. II. O casal Comaroff escreveu uma resposta a todos os trabalhos, e tanto estes como a resposta foram publicados em um nmero especial de Interventions (2001). Na verso de meu trabalho que apresentei nas reunies, e na verso posterior publicada, formulo meus comentrios como uma crtica a algumas das discusses de RRII. No desejo continuar naquele veio, em parte porque fui convencida por algumas das defesas de seu prprio texto feitas pelos Comaroff na rplica, e em parte porque, a longo prazo, creio que estamos no mesmo lado das questes intelectuais e polticas de que se trata, mesmo se as abordamos de maneira diferente.
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modalidades de agncia, como esboamos no princpio deste texto. Em uma modalidade, a agncia est estreitamente relacionada com idias de poder, incluindo tanto dominao como resistncia; em outra, est estreitamente relacionada com idias de inteno, com projetos de pessoas (culturalmente constitudas) no mundo e com sua habilidade de inici-los e de realiz-los. Devo enfatizar novamente que estas no so duas coisas diferentes, embora a terminologia possa parecer apresent-las como tais. No plano epistemolgico, o contraste entre o que chamei acima de dois campos de significado. No plano etnogrfico, contudo, o que est em jogo um contraste entre o funcionamento da agncia dentro de relaes macias de poder, como o colonialismo ou o racismo, e no o funcionamento da agncia em contextos em que essas relaes podem ser mesmo se momentaneamente, mesmo se parcialmente mantidas sob controle. Aqui menos uma questo de coisas do que de contextos. Retornemos, por um momento, s categorias e digamos algo mais sobre agncia como poder. Em seu uso provavelmente mais comum, o termo agncia pode ser praticamente sinnimo das formas de poder que as pessoas tm sua disposio, de sua capacidade de agir em seu prprio nome, de influenciar outras pessoas e acontecimentos e de manter algum tipo de controle sobre suas prprias vidas. Agncia, neste sentido, pertinente tanto no caso da dominao quanto no da resistncia. As pessoas em posies de poder tm legitimamente ou no o que poderia ser considerado muita agncia, mas tambm os dominados sempre tm certa capacidade, s vezes muito significativa, de exercer algum tipo de influncia sobre a maneira como os acontecimentos se desenrolam. Portanto, resistncia tambm uma forma de agncia de poder, e j temos um repertrio terico bem desenvolvido para examin-la. Inclui tudo: de rebelies sinceras em um extremo, passando, no meio, por vrias formas do que James Scott (1985) to bem chamou de fazer corpo mole, at no outro extremo um tipo de aceitao complexa e ambivalente das categorias e prticas dominantes que sempre so modificadas no exato momento em que so adotadas. Podem encontrar-se exemplos de todo o espectro da resistncia embora os Comaroff evitem o termo em todo o trabalho Revelation and Revolution, mas o ltimo tipo que mais central para o livro e mais plenamente desenvolvido ali: a
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aceitao ambivalente de categorias e de prticas dos missionrios por muitos indivduos Tswana, junto com sua constante remodelagem e reenquadramento em termos de sua prpria maneira de ver o mundo e de nele agir. A agncia de poder (desigual), tanto da dominao como da resistncia, pode ser contrastada com o segundo modo principal de agncia anteriormente apontado: o de intenes, propsitos e desejos formulados em termos de projetos culturalmente estabelecidos. Essa agncia de projetos , sob certos ngulos, a dimenso mais fundamental da idia de agncia. isso que perturbado e desaprovado para subordinados, como no exemplo do que acontece com as meninas ativas e com inteno nos contos de fadas de Grimm. Tambm isto que floresce como poder para os poderosos cuja dominao sobre outros raramente um fim em si, mas est, antes, a servio da realizao de seus prprios projetos. Finalmente, isto uma agncia de projetos que os menos poderosos procuram alimentar e proteger ao criar ou proteger lugares, literal ou metaforicamente, nas margens do poder. Como seriam, ento, esses projetos culturais? Muitos so simples metas de indivduos, como no caso da herona de conto de fadas que deseja crescer, casar-se com o prncipe e viver feliz para sempre. Aqui, a noo de agncia como inteno e desejo individuais vem para o primeiro plano, embora nunca se deva perder de vista o fato de que o todo da meta culturalmente constitudo. Muitos projetos, contudo, so jogos srios plenamente desenvolvidos, envolvem o intenso jogo que multiplica sujeitos posicionados que perseguem metas culturais dentro de uma matriz de desigualdades locais e diferenciais de poder. Como exemplo deste ltimo, recorrerei s longas discusses de poltica, parentesco e casamento pr-colonial Tswana25 . Aqui vemos o forte valor cultural investido em carreiras polticas masculinas, nas quais os homens Tswana procuram melhorar suas posies em relao s famlias reais, aos rivais locais, etc. Sabemos que esses homens procuram comer seus rivais e estabelecer-se como protetores com uma srie de clientes a seu servio. Vemos como as relaes de parentesco e as transaes de casamento so administradas de maneira ligada ao avano nessas carreiras.
Ver especialmente J.L. Comaroff e Jean Comaroff (1981); J.L. Comaroff (1987); Jean e J.L. Comaroff (1991: Cap. 4).
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Este um exemplo, antes de mais nada, de agncia principalmente no sentido da realizao de projetos (culturais). No tem a ver com atores hericos ou indivduos singulares, nem com estratgia burguesa, tampouco tem a ver totalmente com as prticas cotidianas de rotina que ocorrem com pouca reflexo. Tem a ver, antes, com a vida (relativamente comum) socialmente organizada em termos de projetos culturalmente constitudos que infundem vida com significado e propsito. As pessoas procuram realizar coisas valorizadas dentro do contexto de seus prprios termos, suas prprias categorias de valor. Mas esta tambm no agncia livre. As prprias rivalidades polticas so geradas por vrias ordens de assimetrias e/ou rivalidades sociais e polticas entre chefes e pessoas comuns, homens livres e servos, pais e filhos, homens e mulheres, agnatos e afins, e assim por diante. Em outras palavras, os desejos ou intenes culturais emergem de diferenas estruturalmente definidas entre categorias sociais e diferenciais de poder. Assim, como j apontei h pouco, esses projetos culturais so jogos srios, o jogo social de metas culturais organizadas em e em torno de relaes locais de poder. Assim, a questo no que a realizao de projetos culturais seja algo completamente inocente de relaes de poder muito pelo contrrio, como vimos h pouco no exemplo da poltica dos homens Tswana. Mas a finalidade da distino entre agncia no sentido de poder e agncia no sentido de (perseguir) projetos que a primeira organizada em torno do eixo dominao/ resistncia, e, assim, definida, em grande medida, pelos termos da parte dominante, ao passo que a segunda definida pela lgica local do bom e do desejvel e de como persegui-los. Em um segundo exemplo, ligeiramente mais complicado, vamos ver o caso das mulheres Tswana. Os primeiros textos de Comaroff nos dizem que as mulheres tinham algumas desvantagens significativas dentro da sociedade Tswana. Na diviso tradicional do trabalho, as mulheres faziam todo o labor agrcola. O trabalho era bastante laborioso em si mesmo, e sua laboriosidade era aumentada por certos tipos de poderes de chefe e de exigncias de chefes em relao agricultura. Alm disso, as mulheres eram culturalmente vistas e ritualmente refeitas como inferiores e subordinadas (COMAROFF, J.L., 1984; COMAROFF, Jean, 1985). Uma
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caracterstica especfica dos ritos de iniciao era que as meninas fossem treinadas na obedincia passiva e na dcil resignao (COMAROFF, Jean, 1985: 115-116). Esses dados tm ressonncias muito fortes com os contos de fadas europeus discutidos acima. Os ritos Tswana construam as meninas precisamente como sujeitos de quem qualquer vestgio de agncia idealmente eliminado. Nessas circunstncias, boa parte da agncia das mulheres que aparece at nos primeiros trabalhos reativa ao poder, uma agncia de poder como resistncia. Durante os ritos de iniciao, por exemplo, no momento em que eram construdas como corpos dceis prontos para o sexo, o casamento e o rduo trabalho agrcola, as mulheres expressavam resistncia a relaes de gnero estabelecidas: canes e danas provocadoras, barulho invasivo e acusao explcita (COMAROFF, Jean, 1985: 117). Embora no contexto tradicional esses gestos paream ter tido um impacto relativamente secundrio, Jean Comaroff sugere que representavam uma corrente oculta, reprimida, porm contnua, de descontentamento feminino no sistema prcolonial, que desempenhou um papel significativo na reao entusistica das mulheres [Tswana] misso metodista (1985: 118). Aqui, ento, a agncia de tipo poder como resistncia desliza em direo a algo mais ativo, semelhante a um projeto. Pareceria que, ao abraar o metodismo, muitas mulheres Tswana comearam a abraar uma viso de um mundo alternativo que ia alm da oposio reativa dominao dos homens e/ou dos chefes. Porm, alm disso, podemos talvez pinar uma agncia de projetos, uma percepo das mulheres promovendo suas prprias intenes (culturalmente constitudas), mesmo no contexto prcolonial. Isto mais difcil de se ver, em parte porque, como apontado acima, no se esperava que as mulheres tivessem agncia neste sentido. Contudo, h indcios, nos textos, de que seria possvel ver a relao das mulheres com seu trabalho agrcola, por exemplo, sob esta tica. As mulheres no s faziam todo o trabalho agrcola, mas tambm tinham a propriedade de terras como filhas ou esposas (COMAROFF, Jean, 1985: 64). Elas parecem ter investido muito orgulho e planejamento em suas atividades agrcolas; ocasionalmente, tentavam escapar ou resistir regulao dos chefes sobre as atividades
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agrcolas (COMAROFF & COMAROFF, 1997: 128); e, finalmente, quando os missionrios procuraram ativamente fazer da agricultura um trabalho de homens, no de mulheres, estas resistiram fortemente mudana (Idem: 136-137). Chamo a ateno aqui menos para a resistncia em si do que para a probabilidade de que resistncia tenha sinalizado um mbito importante dos projetos de orgulho e de identidade das mulheres, nos quais os missionrios estavam interferindo. Talvez a resistncia sempre seja desta natureza: proteger projetos ou o direito de ter projetos. Mais uma vez, ressalto que a distino entre agncia de poder e agncia de projetos , em grande medida, heurstica. Na prtica, os dois modos costumam ser inseparveis. Esses dois exemplos as prticas polticas dos homens e as prticas de fertilidade das mulheres (havia uma ligao cultural estreita entre a fertilidade agrcola e a fsica [COMAROFF, Jean, 1985: 65]) so exemplos do que estou chamando de agncia de (perseguir) projetos. A agncia de projetos no est necessariamente relacionada com dominao e resistncia, embora algo disso possa existir. Tem a ver com pessoas que nutrem desejos de ir alm de suas prprias estruturas de vida, inclusive o que muito central de suas prprias estruturas de desigualdade; tem a ver, em suma, com pessoas que jogam, ou tentam jogar, seus prprios jogos srios, mesmo se partes mais poderosas procuram desvaloriz-las ou at destru-las. J dissemos acima que, de certa maneira, a noo de projetos talvez seja a dimenso mais fundamental da idia de agncia. Na discusso dos contos de fadas de Grimm, poder consistia em destruir a agncia das meninas precisamente no sentido de sua capacidade de perseguir projetos ativamente. Nesta parte do trabalho, coloquei a discusso em um nvel diferente, contrastando as formas de agncia encontradas dentro da dialtica de dominao e resistncia com as formas de agncia existentes quando os atores esto engajados em projetos culturais, jogos srios cujos termos no so fixados principalmente por aquela dialtica. Est mais uma vez em debate a importncia de questionar o efeito totalizador de formaes como o colonialismo e o racismo, bem como a de tentar ver de que maneira os atores dominados mantm a agncia de duas formas: resistindo
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dominao por meio de uma srie de maneiras, mas tambm tentando sustentar seus prprios projetos culturalmente constitudos, fazer ou sustentar certo tipo de autenticidade cultural (ou, no caso, pessoal) nas margens do poder. 3. A Estrutura Elementar da Agncia Na seo anterior, enfoquei a agncia como poder e a agncia como projetos quase como se ocupassem dois espaos diferentes. Foi proposital, pois tentei pensar a dinmica da agncia local diante da dominao de forasteiros e de Outros poderosos. Aqui, porm, desejo olhar para a organizao dos prprios projetos e pensar sobre algo a que aludi no caso da poltica dos homens Tswana: a maneira como a agncia de projetos agncia que implica a busca de fins culturais significativos quase sempre, e quase necessariamente, envolve relaes internas de poder. Marx viu este aspecto com bastante clareza: para jogar o jogo srio do capitalismo, obter lucro e derrotar a concorrncia, os capitalistas tiveram de sujeitar e explorar os trabalhadores. A agncia de projeto depende intrinsecamente da agncia de poder. Esta pequena estrutura que interrelaciona projetos e poder extremamente difundida. por isso que a estou chamando, com um leve toque de ironia, de a estrutura elementar da agncia. Comearei esta parte final do trabalho simplesmente ilustrando o modo como esta estrutura atua em diversos casos etnogrficos e histricos. Depois de apresentar alguns exemplos, porm, complicarei o quadro considerando a instabilidade das relaes de poder e, assim, os modos como a resistncia espreita de dentro dessa estrutura elementar, mesmo se nem sempre concretizada. Um exemplo que a maioria dos antroplogos provavelmente conhece pode ser visto nos jogos de honra entre homens, presentes em muitas culturas. A honra do homem em relao a seus oponentes aumenta ou diminui conforme sua habilidade de manter a autoridade e o controle sobre suas mulheres e, em menor medida, sobre seus homens mais jovens. O sucesso nos mbitos pblicos da honra depende do poder nos mbitos privados do gnero, da famlia e do parentesco26 .
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Mas nem todos os jogos culturais so jogos de homens (embora, dado um vis masculinista bastante difundido nas diversas culturas, muitos o so), e nem todos os jogos culturais dependem do controle das mulheres (embora, pelo mesmo raciocnio, muitos dependam)27 . Um exemplo que depende de um eixo de poder diferente e que, uma vez mais, poderia ser tirado, com variaes, de um grande nmero de culturas seria o fenmeno do casamento arranjado. O caso que usarei aqui do trabalho de Laura Ahearn sobre alguns Magar da aldeia de Junigau, no Oeste do Nepal28 . Tradicionalmente, as pessoas da rea em que Ahearn trabalhou reconheciam trs tipos de casamento arranjado (o mais prestigioso), por fuga (que acarretava alguma perda de prestgio para a famlia) e casamento por captura, que uma situao violenta, com pouqussima margem de legitimidade, em que o grupo familiar do homem raptava a futura noiva e a levava para casa para que o noivo a estuprasse ou consumasse o casamento (muito mal considerado). Quanto aos casamentos arranjados, o fato de arranjar um bom par para seus filhos este o jogo (ideal) proporcionava prestgio e respeito famlia dentro da comunidade. Poderamos abordar a intrincada poltica de negociaes entre os parentes do noivo e da noiva, ou seja, o jogo tal como jogado entre as famlias. Isto est certamente muito presente e de fato complexo e delicado. Mas este tema desvia a ateno das relaes de poder subjacentes que o tornam possvel: os pais precisam ter bastante controle e autoridade sobre seus filhos para que estes aceitem os arranjos, e os filhos tm de estar dispostos a aceitar o cnjuge escolhido pelos pais. preciso assinalar que os diferenciais de poder dentro do que se supe serem grupos ou entidades sociais (no caso, as famlias) com
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As referncias clssicas aqui so da rea mediterrnea, tal como foi estudada e interpretada na dcada de 1960 ver especialmente Peristiany (1966). Estou a par das crticas da literatura da honra e da vergonha, no sentido de que honra e vergonha foram usadas para homogeneizar e estereotipar toda uma regio (ver especialmente Appadurai [1996]). Nada do que digo aqui visa a estereotipar a regio, mas apenas a ilustrar, por meio de um padro etnogrfico conhecido, a maneira como, para ser bem sucedida, uma parte de um jogo cultural a competio entre homens baseia-se na subordinao de outros. Ver Ortner (1981) para outro exemplo do padro e tambm para uma tentativa inicial minha de teorizar a idia de um jogo subjacente. Agora me impressiona a coincidncia de datas entre esse trabalho e a primeira literatura da teoria da prtica. Ahearn examina o caso basicamente em termos de questes de agncia de mulheres; ver tambm Kratz (2000). Aqui, estou usando o material de Ahearn para desenvolver uma idia ligeiramente diferente.
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metas compartilhadas tambm so, em ltima instncia, a base da instabilidade de todos os jogos. Aqui, temos de introduzir a terceira pea da estrutura elementar: a onipresente possibilidade de resistncia. A possibilidade de resistncia uma das partes mais nebulosas e, obviamente, nem sempre percebida da estrutura, mas , de todo modo, parte da estrutura. Isto verdade porque os atores subordinados nunca so completamente destitudos de agncia, exceto talvez nos contos de fadas. Este , sem dvida, o caso em que o fato de jogar o jogo gera a tendncia a reproduzir tanto as estruturas pblicas de regras e de pressupostos como a subjetividade/conscincia/hbitos privados dos jogadores, e assim que o fato de jogar o jogo como Bourdieu infeliz e criticamente insiste29 quase sempre resulta em reproduo social. Contudo, no final das contas, os jogos mudam, s vezes por causa da entrada de alguma externalidade que no pode ser digerida, mas s vezes tambm devido instabilidade das relaes internas de poder de que o jogo depende para dar certo. Realmente, as externalidades podem ser indigestas precisamente porque empoderam alguns dos sujeitos normalmente subordinados e abrem a possibilidade de rebelies, grandes e pequenas. O caso dos Magar tambm ilustra muito bem tudo isso. O poder/ autoridade dos pais sobre os filhos claramente instvel, pois, mesmo dentro do sistema tradicional, os jovens podiam fugir para se casar e de fato o faziam , frustrando os planos dos pais, ou uma filha teimosa conseguia resistir a um arranjo e se dispunha a ser capturada. Mas Ahearn rastreia a injeo no sistema de uma nova tecnologia, que dava ainda mais poder aos jovens e que solapava ainda mais a capacidade que tinham os pais de controlar os casamentos dos filhos: a escrita. medida que os jovens homens e mulheres Magar adquiriam mais educao e controlavam a ferramenta da alfabetizao, germinou o fenmeno social sem precedentes que o das cartas de amor. Embora seu comportamento fsico ainda fosse estritamente monitorado, os jovens, homens e mulheres, cada vez mais podiam trocar cartas, e eram capazes de arranjar (e, de certo modo, realmente
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Ver, por exemplo, a discusso sobre habitus da classe trabalhadora em Distinction (1984).
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incitados a faz-lo) seus prprios casamentos. Era claro que o jogo estava mudando30 . Vejamos um ltimo exemplo, neste caso ainda envolvendo outros diferenciais de poder: classe e etnicidade. Tirei este caso do estudo de Nicole Constable sobre trabalhadoras domsticas filipinas em Hong Kong (1997). O jogo dominante, aqui, o do sucesso capitalista; os jovens casais ambiciosos de Hong Kong trabalham fora e esto no mercado ganhando dinheiro e procurando adotar estilos de vida muito requintados. Trata-se da mais moderna alta burguesia: tanto os maridos como as esposas tm carreiras que lhes consomem muito tempo, e seu sucesso depende da contratao de servio domstico para limpar e manter a casa e, sobretudo, para cuidar das crianas. Entram em cena as trabalhadoras domsticas filipinas, que, evidentemente, tm seus prprios projetos, procurando ganhar os salrios mais altos, pagos em Hong Kong, para oferecer uma vida melhor s suas prprias famlias. O sucesso poltico e/ou financeiro do casal prximo ao poder depende, sem dvida, de seu prprio trabalho rduo, de suas redes sociais, e assim por diante. Mas depende tambm, embora de maneira muito mais invisvel, de sua capacidade de controlar suas domsticas. No caso de Hong Kong, como em muitos outros, o diferencial de poder exacerbado pela posio jurdica fraca de muitas das trabalhadoras, que ou entraram ilegalmente, ou permaneceram aps o vencimento de seu visto, ou so vulnerveis ao poder do Estado de algum outro modo. Ao mesmo tempo, o controle das trabalhadoras por seus patres pode ser bastante literal as domsticas filipinas s vezes sofrem agresso fsica, s vezes so trancadas em seus quartos, etc. O poder dos empregadores parece ser praticamente total. Contudo, uma vez mais, esse poder instvel, como, afinal de contas, toda relao de poder. Os empregadores so altamente controladores, mas vem-se a si mesmos como sujeitos modernos esclarecidos, no como senhores de escravos. Assim, as domsticas das Filipinas e de outros pases tm um dia de folga por semana, normalmente o domingo, e criaram o hbito de reunir-se aos domingos
Mesmo se, do ponto de vista histrico/de processo, pode-se dizer que o jogo est mudando, do ponto de vista etnogrfico, em um determinado momento, ele vai aparecer como conflito de jogos culturais/histricos entre pais e filhos (AHEARN, comunicao pessoal).
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em uma determinada praa. Esses encontros tm todas as caractersticas de um carnaval de Bakhtin. Desfruta-se da sociabilidade, celebram-se caractersticas culturais comuns. Ao mesmo tempo, compartilham-se histrias sobre as freqentemente infelizes condies de trabalho, d-se apoio mtuo; e acima de tudo informaes sobre direitos e organizaes que as apiam so postas disposio do grupo. Muitas das mulheres envolveram-se em organizaes como a Unio Asitica das Trabalhadoras Domsticas e Filipinos Unidos em Hong Kong. Constable cita vrios jornalistas que reclamam do excessivo fortalecimento do poder dos trabalhadores (1997: 164). H muitssimo exagero nesse tipo de ponto de vista, mas no h dvida de que muitas domsticas no esto mais dispostas a tolerar os maus tratos e aprenderam a defender seus prprios direitos individual e coletivamente. Uma vez mais, ento, o jogo est mudando. Esses exemplos visam a apontar diversas questes. A primeira, que enfatizei no incio, diz respeito maneira como os jogos no ocorrem apenas entre famlias, grupos, classes, etc., opostos, mas so construdos com base em relaes de poder em um micro-nvel. Estas muitas vezes so invisveis em antropologias que permanecem no nvel das formaes polticas de grande escala colonialismo, Estado, etc. e no pem, por assim dizer, o p no cho. A segunda decorrente da primeira; as relaes internas de poder so to fortemente policiadas precisamente por terem o potencial de perturbar partidas particulares do jogo no caso de indivduos e a prpria continuidade do jogo como formao social e cultural a longo prazo. No entanto, por fim temos de retomar a distino, mas tambm a articulao, entre agncia de projetos e agncia de poder. Vimos como o exerccio do poder sobre subordinados costuma estar a servio da realizao de algum projeto. O poder raramente um fim em si mesmo. Mas os subordinados inevitavelmente tm seus prprios projetos. Estes podem ser bastante evidentes, como no caso de culturas subordinadas sob o colonialismo ou, no caso de trabalhadores como as domsticas filipinas, sob o capitalismo global. Contudo, tambm podem estar ocultos, como no caso das transcries ocultas dos escravos, tema to bem discutido por James Scott (1990), ou nas formas mais incipientes de insatisfao de mulheres/esposas que costumam ser encontradas em sistemas de gnero aparentemente estveis31 . Assim, se o poder e a subordinao
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de outros sempre est a servio de algum projeto, tambm o caso da resistncia; toda a prpria dialtica da dominao/resistncia faz sentido como choque entre projetos de pessoas, suas intenes culturalmente constitudas, desejos e metas. GUISA DE CONCLUSO Vimos que, em um nvel, agncia um tipo de propriedade dos sujeitos sociais. culturalmente plasmada por meio das caractersticas que vm para o primeiro plano como de agncia por exemplo, atividade versus passividade nos contos de fadas de Grimm, ou selvagem versus domesticado nas classificaes sociais usadas no ensino mdio americano (ORTNER, 2003). E a agncia quase sempre distribuda de forma desigual algumas pessoas conseguem t-la, e outras no; algumas pessoas conseguem ter mais, e outras menos. No primeiro exemplo, a agncia parece ser, em grande medida, uma qualidade investida em indivduos32 . Mas os indivduos/pessoas/sujeitos sempre esto inseridos em teias de relaes, de afeto ou de solidariedade, de poder ou de rivalidade, ou, muitas vezes, em alguma mescla dos dois. Seja qual for a agncia que paream ter como indivduos, na verdade se trata de algo que sempre negociado interativamente. Neste sentido, nunca so agentes livres, no apenas no sentido de que no tm liberdade para formular e atingir suas prprias metas em um vazio social, mas tambm no sentido de que no tm capacidade de controlar completamente essas relaes para seus prprios fins. Como seres sociais fato verdadeiro e inescapvel , s podem atuar dentro de muitas teias de relaes que compem seus mundos sociais. Alm disso, a agncia, em sentido abstrato, parece ser uma propriedade de sujeitos (diferencialmente empoderados), porm isto (uma vez mais) menos uma propriedade psicolgica ou capacidade em relao a si mesmos, e mais uma disposio em relao realizao de projetos. Do ponto de vista do sujeito, esta disposio para a realizao de projetos parece provir dos desejos de cada um: quero....
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Ver Jean Comaroff novamente (1985); Ahearn (2000); ver tambm Ortner (2003: cap. 11).
Ou grupos. A questo da agncia de grupo menos problemtica do que parece. Os grupos no tm agncia em sentido psicolgico (como os indivduos), mas os grupos certamente tm tanto projetos como poder.
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Mas, do ponto de vista do analista cultural, so os projetos que definem os desejos. Assim, Antropologia da agncia no tem s a ver com a maneira como sujeitos sociais, como atores empoderados ou desempoderados, jogam os jogos de sua cultura, mas tambm com o fato de desnudar o que so esses jogos culturais, a ideologia subjacente a eles, e tambm com o fato de que jogar o jogo os reproduz e os transforma. Finalmente, temos a questo da relao entre agncia e poder, que foi o tema central deste trabalho. Em um nvel, a prpria agncia pode ser definida como uma forma de poder; os agentes poderiam ser descritos resumidamente apenas como sujeitos empoderados. Isto funcionaria para a anlise, relativamente simples, dos contos de fadas de Grimm, em que os meninos so construdos precisamente como sujeitos empoderados, agentes, ao passo que as meninas so sistematicamente desempoderadas por meio da des-construo de sua agncia. Em sees subseqentes, este trabalho revelou relaes mais complexas entre os dois fenmenos. Na parte em que usa o material dos Comaroff sobre os homens e mulheres Tswana, tentei fazer uma distino entre agncia em Tswana, tal como funciona dentro da relao missionrio-cum-colonial, e agncia tal como funciona nas margens dessa relao. Chamei a primeira de agncia de poder, porque tende a ser quase totalmente definida pela dialtica dominaoresistncia, e, portanto, quase completamente nos termos da parte dominante. Chamei a segunda de agncia de projetos (culturais), porque quis ressaltar o modo como os homens e mulheres Tswana poderiam/deveriam ser vistos como estando jogando, ou tentando jogar, seus prprios jogos srios, mais definidos por seus prprios valores e ideais, apesar da situao colonial. Acho til distinguir, e no apenas em situaes de dominao colonial, agncia como forma de poder (incluindo questes relativas ao empoderamento do sujeito, dominao de outros, resistncia dominao e assim por diante) e agncia como forma de inteno e de desejo, como o fato de perseguir objetivos e de realizar projetos. Acho til porque, no nvel mais simples, creio que se trata de usos bastante distintos do termo, diferentes campos de significado. Mas tambm acho til porque, ao separ-los, podem-se examinar as articulaes entre
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ambos. Foi o que tentei mostrar na seo final deste trabalho, quando afirmei que, no contexto do que tenho chamado de jogos srios, a realizao de projetos necessariamente acarreta, para alguns, a subordinao de outros. Mas estes outros, nunca completamente destitudos de agncia, tm poder e projetos prprios, e a resistncia (da mais sutil mais evidente) sempre uma possibilidade. Ento, tanto a dominao como a resistncia sempre esto, a meu ver, a servio de projetos, da autorizao ou do empoderamento para perseguir objetivos e fins culturalmente significativos, sejam estes para o bem ou para o mal. E, assim, os jogos continuam. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ACHESON, James M. & GARDNER, Roy J. Strategies, Conflict, and the Emergence of Territoriality: The Case of the Maine Lobster Industry. In: American Anthropologist, 2004, 106(2): 296-307. AHEARN, Laura. Agency. In: Journal of Linguistic Anthropology, 2000, 9(1-2): 12-15. __________. Invitations to Love: Literacy, Love Letters, and Social Change in Nepal. Ann Arbor, MI: University of Michigan Press, 2001a. __________. Language and Agency. In: Annual Review of Anthropology, 2001b, 30: 109-137. APPADURAI, Arjun. Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalizazation. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996. BARZELAI, Shuli. Reading Snow White: The Mothers Story. Signs, 1990, 15(1): 515-34. BETTELHEIM, Bruno. The Uses of Enchantment: The Meaning and Importance of Fairy Tales. New York: Vintage Books, 1977. BOTTIGHEIMER, Ruth B. Grimms Bad Girls and Bold Boys: The Moral and Social Vision of the Tales. New Haven: Yale University Press, 1987. BOURDIEU, Pierre. Outline of a Theory of Practice. Trans. R.
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GNERO MUNDO NOVO: INTERSEES. A FORMAO DOS IMPRIOS TRANSATLNTICOS DO SCULO XVI AO XIX*
VERENA STOLCKE Universitat Autnoma de Barcelona Dois mundos Deus colocou nas mos de nosso soberano catlico, e o Novo no se assemelha ao Velho, nem em seu clima, nem em seus hbitos, nem em seus habitantes; ele tem um outro corpo legislativo, outro modo de governo, sempre porm com o fim de torn-los semelhantes. Na Velha Espanha apenas uma casta de homens reconhecida; na Nova, muitas e diferentes (Arcebispo Francisco A. Lorenzana do Mxico, de 1766 a 1772, citado em Ilona Katzew, 1996, p. 8).
Abertura
Em 1752 um Dr. Tembra do Mxico emitiu a seguinte opinio sobre se um matrimnio desigual poderia ou no ser celebrado sem o consentimento dos pais:
Se a donzela deflorada por uma promessa de casamento to inferior em status, que cause maior desonra linhagem dele, no caso de ele se casar com ela, do que aquela que recairia sobre ela no caso de ela permanecer deflorada (como quando um Duque, Conde, Marqus ou Cavalheiro de conhecida
* Conferncia proferida na 25a Reunio Brasileira de Antropologia. Publicado em MEADE, Teresa A., and WIESNER-HANKS, Merry E. (eds.). A Companion to Gender History. Oxford: Blackwell, 2003. Blackwell Companions to History Series e na Revista Estudos Feministas (2006). Traduzido por Luiz Felipe Guimares Soares e publicado com autorizao da autora e da editoria da Revista Estudos Feministas.
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nobreza seduz uma menina mulata, uma china [descendente da mistura de negro e indgena com negro1 ], uma coyota [descendente de ndio e mestia2 ] ou a filha de um carrasco, um aougueiro, um curtumeiro)... Neste caso, ele no dever se casar com ela porque a injria para ele e para toda sua linhagem seria maior do que aquela em que a donzela incorreria ao permanecer sem salvao, e deve-se sempre escolher o mal menor [...] pois o ltimo caso uma ofensa individual e no causa danos para a Repblica, enquanto o primeiro uma ofensa de tal gravidade que ir denegrir uma famlia inteira, desonrar uma pessoa proeminente, difamar e manchar toda uma linhagem de nobres e destruir algo que oferece esplendor e honra Repblica. Mas se a donzela seduzida de status apenas levemente inferior, de diferena no muito marcante, de forma que sua inferioridade no cause uma desonra marcante para a famlia, ento, se o sedutor no deseja recompens-la, ou se ela simplesmente rejeitar a compensao na forma de doao, ele deve ser forado a se casar com ela; porque nesse caso sua injria pode prevalecer sobre a ofensa infligida famlia do sedutor, j que eles no sofreriam um dano grave com o casamento, enquanto ela sofreria se no se casasse.3
Esta uma das mais eloqentes ilustraes das intersees que se desenvolveram no imprio colonial espanhol entre relaes de gnero, concepes de sexualidade feminina, honra familiar e a ordem do Estado. Na sociedade colonial o corpo sexuado tornou-se fundamental na estruturao do tecido scio-cultural e tico engendrado pela conquista portuguesa e espanhola e pela subseqente colonizao do Novo Mundo. At recentemente, porm, as/os pesquisadoras/es em geral deram pouca ateno para o papel crucial que o controle da sexualidade das mulheres, por parte do Estado, da Igreja e o domnio dos homens, teve na construo da sociedade colonial. Neste artigo, vou enfocar minha ateno na forma como as mltiplas normas morais, sociais, jurdicas e religiosas relativas
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sexualidade e s relaes entre mulheres e homens interagiram dialeticamente com desigualdades scio-polticas, na poca em que a sociedade colonial se estruturava no poltico e se representava no simblico. A experincia colonial Ibrica permite assim transcender as justaposies e aliteraes convencionais dos critrios de identificao de classe, raa e gnero. O gnero no trata de mulheres como tais. Refere-se aos conceitos que prevalecem em uma sociedade sobre o que so as mulheres em relao aos homens enquanto seres humanos sexualmente identificados. O Novo Mundo proporciona um exemplo especialmente claro das intersees dinmicas entre as idias e os ideais contemporneos sobre sexo/gnero, raa/etnicidade e classe social que se refletem nos novos sistemas de identificao, classificao e discriminao social que se forjaram na consolidao da sociedade colonial bero-americana. Torna-se exemplo tambm das conseqncias que a moralidade sexual e os esteretipos de gnero prevalentes tiveram para todas as esferas da vida das mulheres. O imprio colonial espanhol e seu correspondente portugus foram os pioneiros na expanso europia na frica e na Amrica, o que para Adam Smith foi o evento mais significativo da histria humana. Seus imprios sobreviveram, de maneira mais homognea do que divergente, at o sculo XIX, quando seus sucessores, os imprios ingls e francs, foram aos poucos adquirindo sua fisionomia definitiva. At 1815, Portugal e Espanha no s monopolizaram a expanso martima da Europa, mas tambm ensinaram ao Velho Mundo como conquistar e colonizar vastos territrios no Novo Mundo e tornar lucrativos seus enormes recursos naturais e humanos. As colnias espanholas no Mxico e no Peru foram as primeiras colnias mistas, onde uma minoria de colonos ibricos criou um tipo inteiramente novo, at ento desconhecido, de sociedade, composta de toda uma gama de categorias incomuns de povos, resultante da subjugao da populao indgena e da explorao de enorme contingente de escravos negros importados da frica. A prtica histrica que se tornou convencional foi explorar as sociedades coloniais americanas de maneira isolada. Mas os contrastes entre os projetos e as experincias de espanhis e portugueses, de um lado, e de ingleses e franceses, de outro, so mais marcantes do que
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foram suas bvias semelhanas.4 No Brasil, Portugal criou a primeira plantation, cuja mo-de-obra foi formada pelo maior contingente de escravos africanos j transportado para as Amricas, sob o controle de uma pequena minoria de colonizadores europeus que, como fizeram os espanhis em suas colnias mistas, se esforou para impor sua civilizao metropolitana, suas instituies e sua cosmologia. Apesar das dificuldades de comunicao e controle, dadas as distncias enormes que separavam os assentamentos coloniais de suas metrpoles, Portugal e Espanha se obrigaram a um rgido sistema de administrao direta que contrastou com o posterior governo colonial britnico, muito mais solto.5 O principal objetivo da empresa colonial era sem dvida lucro pessoal e riqueza nacional. Mas num tempo em que a religio era inseparvel da poltica, a Igreja Catlica teve um papel to importante quanto o da Coroa na formao da poltica colonial das Amricas portuguesa e espanhola, e tambm nas relaes com os povos indgenas, at ento prtica ou totalmente desconhecidos, e com o contingente de escravos africanos que crescia de forma acelerada. Uma perspectiva transatlntica indispensvel para se compreender e levar em conta o padro scio-poltico que moldava esses novos tipos de povos, bem como o projeto poltico e econmico de colonizao e explorao de recursos humanos e naturais nos novos territrios nos sculos que se seguiram conquista. Isso porque tal padro era o resultado de uma interao dinmica entre os princpios administrativos metropolitanos e os valores espiritual-religiosos e sociais relativos a honra e hierarquia social, sustentados por ideais de gnero relativos ao casamento e moralidade sexual. O cdigo moral universalista da Igreja Catlica, reforado pela Contra-Reforma, associou explicitamente virgindade e castidade femininas, honra familiar e proeminncia social, sempre de acordo com a doutrina religiosa da limpieza de sangre. Essa doutrina estruturou poltica, moral e simbolicamente as identidades e hierarquias sociais, bem como os seus modos de reproduo, mas tambm estabeleceu novos dilemas polticos e conceituais na sociedade colonial emergente. Para situar a questo de gnero no contexto colonial portugus e espanhol,
4 Nicholas CANNY e Anthony PAGDEN, 1987; e PAGDEN, 1995. 5 David FIELDHOUSE, 1982.
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necessrio examinar uma dupla conexo scio-poltica histrica. A conquista americana no aconteceu num vcuo cultural histrico, mas ela deve muito ao passado cultural e social dos prprios colonizadores ibricos. E, por serem construtos scio-polticos, os esteretipos e as relaes de gnero no podem ser dissociados do ambiente sciopoltico e conceitual mais amplo em que se desenvolveram. O sexo da conquista Nos primeiros anos da conquista, colonos ibricos, oficiais da Coroa e at o clero se apropriaram de terras indgenas, submeteram a populao local a trabalhos forados nas minas e a servios pessoais de vrios tipos, empenharam-se em colonizar suas mentes e sujeitaram mulheres indgenas a todas as maneiras de abuso sexual, o que teve um enorme custo humano e social. Uma das conseqncias disso foram os deslocamentos em massa e o dramtico declnio da populao indgena, resultantes da conquista militar, da disseminao de doenas trazidas pelos colonos e da fome, o que acabou por destruir as bases da organizao scioeconmica local. Outra conseqncia quase imediata da conquista foi a mestiagem,6 resultado da explorao sexual feita pelos colonizadores. Em sua Nueva crnica y buen gobierno, relato mpar escrito no incio do sculo XVII a fim de chamar a ateno do Rei Phillip para a brutalidade e a incompetncia dos administradores, o etngrafo andino Guamn Poma de Ayala, de pai espanhol e descendncia materna da nobreza inca, fornece uma descrio detalhada da organizao social, econmica e poltica dos Andes, enquanto denuncia a destruio que encomenderos, mineiros, administradores e o clero espanhol estavam promovendo entre a populao indgena. Os quatrocentos desenhos que ilustram a crnica retratam cenas chocantes de abuso sexual e trabalhos forados de mulheres indgenas sob o jugo de oficiais da Coroa, colonos e missionrios.7
6 inadequado o uso do termo miscigenao para a relao sexual entre colonos europeus e a populao indgena nos dois primeiros sculos aps a conquista porque, como mostro mais abaixo, a categoria moderna de raa, e portanto a idia da mistura racial a que a miscigenao se refere, s apareceram no incio do sculo XVIII. 7 Rolena ADORNO e Ivan BOSERUP, 2003; e Felipe Guaman POMA DE AYALA, 1980.
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No sculo XVII estava claro que o primeiro projeto da Coroa de estabelecer duas repblicas distintas, de ndios e de hispnicos, havia fracassado. Os contatos estreitos que resultaram da explorao da mode-obra, dos servios pessoais, e especialmente dos abusos sexuais de mulheres indgenas e africanas pelos colonos europeus, produziram um nmero crescente de mestizos (filhos de hispnicos com ndias) e mulatos (filhos de hispnicos com africanas). A sociedade colonial espanhola logo se tornou um confuso mosaico humano formado por desigualdades scio-econmicas e legais e por diferenas tnicas perceptveis. Ao contrrio da Amrica espanhola, o Brasil foi colonizado de forma muito esparsa at o fim do sculo XVI, quando as fazendas de cana-de-acar, primeiramente no Nordeste, comearam a absorver um nmero crescente de escravos africanos. Logo em seguida comea a explorao sexual de escravas, no incio ainda pouco numerosas, por seus proprietrios. A capitania da Bahia, ampla regio que circunscreve a Baa de Todos os Santos, dominada pela cidade de Salvador, capital da colnia brasileira de 1549 a 1763, tornou-se a primeira e mais importante regio de posse de escravos das Amricas. Em meados do sculo XVI as fazendas de cana em expanso no Recncavo Baiano se tornaram um importante terminal do trfico de escravos do Atlntico. A mudana do trabalho escravo de ndios para africanos teve razes no s econmicas como tambm geopolticas e culturais. Escravos africanos se firmaram como uma fora de trabalho mais produtiva, por estarem disponveis em abundncia e por se sujeitarem a uma disciplina rgida, enquanto a relativamente pequena populao indgena fugia muito facilmente pela vastido da terra. No s escravos mas tambm escravas trabalhavam nos moinhos de cana e nos campos, sempre sob vigilncia masculina, prestando tambm servios domsticos na casa-grande, onde se tornavam presas das aventuras sexuais de seus senhores.8 O retrato seminal, feito por Gilberto Freyre, da benevolncia patriarcal dos senhores em relao a seus escravos, segundo a qual a explorao sexual de escravas por colonos portugueses evidenciava uma surpreendente ausncia de preconceito, que distinguia o Brasil da Amrica espanhola colonial, acabou se mostrando uma falcia.9 No Brasil, de forma semelhante ao
8 Stuart SCHWARTZ, 1985.
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que aconteceu na Amrica espanhola, a populao em veloz crescimento de mulatos correspondia na sua maioria a filhos de fazendeiros da canade-acar; estes engravidavam suas escravas domsticas, raramente se mostrando dispostos a legitim-las pelo casamento. Como apontou Roger Bastide, raa implicava sexo. Quando a mestiagem acontece dentro do casamento ela de fato indica ausncia de preconceito. Mas do modo como a mestiagem ocorreu no Brasil, ela transformou toda uma raa em prostitutas.10 Antecedentes metropolitanos Misturas tnicas no eram novidade para os colonizadores portugueses e espanhis. A descoberta do Novo Mundo coincidiu com a queda da prevalncia muulmana em Granada e com a converso compulsria ou a expulso de judeus e muulmanos, processo que arrematou a conquista crist e a unificao poltico-religiosa da Espanha. Um sculo depois (1609-1614), os moriscos (muulmanos convertidos) foram igualmente expulsos. As inusitadas categorias scio-tnicas que surgiram do encontro colonial entraram em contradio, no entanto, com os ideais medievais metropolitanos de honrarias, proeminncias e discriminaes sociais tpicas da vida corporativa. A diferena cultural-moral dos indgenas desafiou as certezas cosmolgicas e teolgicas dos administradores das colnias, e os filhos misturados dos colonos estabeleceram novos dilemas legais, polticos e religiosos. Primeiro os colonizadores empregaram noes culturais da metrpole para entender a realidade americana. Com o tempo, aquela dinmica social sem precedentes da sociedade colonial modificou noes metropolitanas de nobreza, honra social e hierarquia, famlia e moralidade sexual.11
9 FREYRE, 1933; e SCHWARTZ, 1985. 10 BASTIDE, 1959, p. 10-11. 11 SCHWARTZ e Frank SALOMON, 1999.
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transmitia vcios e virtudes religioso-morais de uma gerao para outra.13 A pureza do sangue era avaliada atravs de investigaes genealgicas que procuravam determinar a f religiosa num contexto em que o catolicismo, considerado a nica f verdadeira, era concebido como a origem suprema do significado e do conhecimento da ordem da sociedade e do universo. Uma verdadeira obsesso com a genealogia enquanto prova da descendncia de ancestrais cristos atravs das geraes imps um nus especial conduta sexual das mulheres crists como garantia de origem pura e legtima. A Inquisio espanhola, como a nica Corte com jurisdio sobre a limpieza de sangre, fazia a mediao entre os tericos da excluso e o povo, popularizando a idia de que todos os convertidos eram suspeitos. A Inquisio foi criada por uma bula promulgada pelo papa Sisto IV em 1478, autorizando os monarcas catlicos a nomear padres para investigar e punir os herticos, especialmente os convertidos suspeitos de prtica clandestina do judasmo.14 J em 1348 as leis espanholas Las Siete Partidas haviam declarado os judeus como uma nao estrangeira. A esse estigma seguiram-se vrias leis que revelavam a crescente animosidade aos judeus, como em toda a Europa. At o sculo XIV judeus e muulmanos viviam pacificamente na Pennsula Ibrica, geralmente em estreita associao com a Corte e com a nobreza. Mas ento uma onda de ataques s juderas (bairros judeus) e de massacres sangrentos de judeus comeou a se espalhar por Castela, Arago, Catalunha, Valncia e Sevilha, em meio a novas tenses polticas entre nobres e membros da Corte.15 Para escapar da perseguio, da perda de propriedade e at da morte, os judeus se viram obrigados, ou a se converter ao cristianismo, ou a procurar refgio em Portugal, onde a atmosfera em relao aos judeus era menos repressiva. Em 1449, aps uma nova revolta popular, o primeiro estatuto de pureza de sangue foi adotado pelo Conclio de Toledo. Dessa vez a ira popular foi dirigida contra cristos novos (judeus convertidos) abastados, cujas propriedades foram confiscadas. Considera-se que essa revolta foi detonada por um novo e pesado imposto cobrado pela Coroa, que alegou ter sido levada a isso por um
13 ZIGA, 1999, p. 429-434. 14 Henry KAMEN, 1985; e Charles BOXER, 1978. 15 David NIRENBERG, 2001.
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mercador convertido muito influente. Em 1536 um ramo portugus da Inquisio foi fundado e passou a perseguir judeus convertidos ao cristianismo. Provas de sangue comearam a ser exigidas, de modo que qualquer cargo civil, eclesistico ou militar com alguma distino social ficava restrito a cristos velhos. Alianas via matrimnio entre cristos velhos e cristos novos eram um meio para os ltimos adquirirem status social disfarando suas origens. Os estatutos da limpieza de sangre exigiam tambm dos cristos a apresentao da prova de sangue para poderem se casar. A Inquisio, no entanto, podia cancelar as autorizaes de casamento sempre que o passado das famlias envolvidas desse margem a dvidas. Conseqentemente, qualquer pessoa nascida fora do casamento se tornava suspeita de impureza.16 Obedecendo aos preceitos cristos, a converso ao catolicismo, tido como a nica verdadeira f, poderia apagar a mancha que estivera impressa nos no-crentes. Atravs do batismo, judeus e muulmanos poderiam equivaler aos gentios.17 Esses gentios eram entendidos no como pagos, mas como genunos nefitos, por terem sido ignorantes em relao s leis de Deus at a converso. Os estatutos da limpieza de sangre no permaneceram livres de contestao. Os conflitos entre oficiais da Inquisio, e tambm entre as elites, sobre a aplicao dos estatutos eram intensos, porque a nobreza, tanto quanto as pessoas comuns, costumava antes realizar seus casamentos tambm com muulmanos e judeus; os cristos velhos genunos acabaram assim se tornando muito raros. No sculo XVII, os desastrosos efeitos polticos das investigaes sobre a pureza de sangue para a unidade poltico-religioso-nacional do imprio espanhol eram cada vez mais evidentes para muitos pensadores. Os opositores alertavam sobre as conseqncias econmicas e demogrficas negativas dos estatutos, j que um grande nmero de convertidos fugia da Pennsula. Eles condenavam os estatutos de limpieza de sangre por consider-los contrrios lei civil ou cannica, e tambm tradio bblica, ao negarem aos convertidos o benefcio da redeno
16 Maria Luiza CARNEIRO, 1988, p. 99. 17 Diaz de Montalvo, citado por KAMEN, 1985, p. 158.
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pela purificao do batismo. As opinies entraram em choque: a pureza de sangue seria uma questo de prtica religiosa ou se referiria a algum tipo de trao inato, essencial? Apesar dessa discusso, no entanto, tornou-se impossvel para a Espanha se livrar daquilo que se tornou uma ansiedade obsessiva relativa a honrarias e distines sociais, intensificando as preocupaes com o casamento, com a legitimidade e conseqentemente com o controle sobre os corpos das mulheres.18 A Inquisio espanhola estava em seu apogeu no sculo XVII. Em Portugal, o Santo Ofcio foi dissolvido em meados do sculo XVIII, e a distino entre cristos velhos e novos foi abolida em 1773 pelas reformas pombalinas. Na Espanha dos Bourbons, a Inquisio sobreviveu at o incio do sculo XIX, quando tambm as provas de sangue deixaram de ser exigidas para o casamento. Velhas idias no Novo Mundo As repercusses das idias metropolitanas de pureza de sangue no mundo colonial so mais bem documentadas nas colnias espanholas do que no Brasil, embora a preocupao com a limpieza de sangre tenha sido parte do cotidiano em ambos os imprios coloniais. De qualquer forma, a Inquisio portuguesa nunca estabeleceu um tribunal em sua colnia; apenas enviava comissrios em visitas ocasionais.19 Desde o incio, nem a Espanha nem Portugal permitiram a mouros, judeus, seus filhos, ciganos, nem [a] qualquer pessoa em desacordo com a Igreja que passasse pelas ndias Ocidentais, embora um nmero no conhecido de cristos novos tenha de fato ido para a Amrica. Estes foram particularmente para o Brasil, onde encontraram uma discriminao prevista em lei, porm mais amena na prtica, tendo assim maiores chances de passar como cristos velhos e ascender na escala social.20 Nas colnias ibricas, a doutrina da limpieza de sangre permaneceu se referindo a uma qualidade cultural-religiosa at o sculo XVIII. Estudiosos das sociedades coloniais portuguesa e
18 SICROFF, 1979, p. 259-342. 19 BOXER, 1978, p. 85. 20 CARNEIRO, 1988, p. 195 et seq.
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espanhola tenderam, no entanto, a interpretar a limpieza de sangre como uma ideologia da pureza racial e da excluso desde o incio da colonizao, sendo os termos raa, etnia e identidade tnica intercambiveis em boa parte da literatura do imprio.21 Na Amrica espanhola a obsesso com a pureza de sangue esteve em seu apogeu no sculo XVIII, quando finalmente sofreu uma importante mudana de significado, precisamente quando estava perdendo fora na metrpole, onde a intensificao do poder real, o racionalismo e as polticas anticlericais, em Lisboa e Madri, colaboraram, depois de 1750, para reduzir o poder e a influncia da Inquisio.22 Em suas anlises dos sistemas de classificao e estratificao social na sociedade colonial em desenvolvimento, e suas implicaes sobre o gnero, alguns pesquisadores tm privilegiado a raa e/ou a classe social como princpio estruturador dominante.23 Quanto a isso, reveladora a recente anlise que Ann Twinam24 fez de peties de legitimao do sculo XVIII, dirigidas administrao colonial, em seu estudo sobre a dinmica das honras sociais, casamento, legitimidade e gnero na Amrica colonial espanhola. Pessoas de nascimento ilegtimo sofriam discriminao social por conta das incertezas que cercavam sua limpieza de sangre. Twinam teve o grande mrito de prestar ateno aos precedentes metropolitanos das noes coloniais de identificao e honra social. Ela indica que no sculo XVIII o elo entre limpieza, legitimidade e honra era plenamente institucionalizado, j que as tradies discriminatrias da histria espanhola haviam sido absorvidas.25 Mesmo assim, ela no deixa claro o sentido que o sangue tinha a essa altura na sociedade colonial. Ela na verdade usa as noes de raa e de limpieza de sangre indistintamente, como acontece quando afirma que os estatutos de pureza de sangue impediam os ilegtimos e os de raa mista de assumirem cargos na
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Kamen sugere igualmente para a Pennsula Ibrica que aquilo que comeou como discriminao religiosa e cultural se transformou, em meados do sculo XVI, em uma doutrina racista do pecado original da mais repulsiva espcie (KAMEN, 1985, p. 158). BOXER, 1978, p. 92.
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Susan SOCOLOW, 1978; Silvia ARROM, 1985; SOCOLOW, 1987; Irene SILVERBLATT, 1987; Patricia SEED, 1988; Asuncin LAVRIN, 1989; Guiomar DUEAS VARGAS, 1996; e Mara Imelda RAMIREZ, 2000.
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Espanha, j nos fins da Idade Mdia.26 Patricia Seed,27 ao contrrio, mostra que no Vice-Reinado do Mxico, nos dois primeiros sculos aps a conquista, a oposio pr-nupcial dos pais ocorria predominantemente entre grupos de hispnicos e crioulos scioeconomicamente prximos, por motivos de sade, enquanto a limpieza de sangre no era questo prpria a uma sociedade estruturada pela raa. S no fim do sculo XVIII, quando a legislao real exigiu explicitamente a prova da limpieza de sangre para que a oposio dos pais ao casamento se efetivasse, os motivos para a disputa eram, a sim, a disparidade racial.28 Nos anos 1980, em mais uma controvrsia sobre a estrutura social colonial, defensores da viso tradicional de que a identidade tnica condicionava o posicionamento social do indivduo nos ltimos tempos da sociedade colonial criticaram historiadores que, como Seed, sustentavam que classe teria se tornado, na poca, to ou mais importante que raa.29 Schwartz e Salomon, assim como Ziga, so notveis excees a essa tendncia a-histrica geral de interpretar a doutrina da limpieza de sangre como ideologia racial. Eles insistiram, com razo, em afirmar que, nos primeiros tempos da era colonial, o uso da linguagem genealgica de sangue e nascimento para definir fronteiras sociais precisa ser diferenciado do racismo moderno, que s apareceu no sculo XVIII.30 Por uma srie de razes, nada h de trivial na compreenso dos sentidos simblicos das categorias de posicionamento social que se desenvolveram na sociedade colonial ibrica sobre o pano de fundo de seus precedentes metropolitanos. Primeiro porque a anlise histrica corre o risco do anacronismo ao aplicar ao passado sentidos culturais do presente. As categorias de posicionamento que eu examinei no s possibilitavam a identificao e o tratamento da populao indgena e dos escravos africanos, junto com seus filhos misturados, e no s limitavam suas chances de ascenso social de forma peculiar. Elas tinham tambm conseqncias imediatas para
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TWINAM, 1999, p. 47, grifo meu. SEED, 1988. SEED, 1988, p. 330; e Daisy ARDANAZ, 1977. Juan Carlos GARAVAGLIA e Juan Carlos GROSSO, 1994, p. 39-42; e ARROM, 1985. SCHWARTZ e SALOMON, 1999, p. 443-478; SCHWARTZ, 1995; e ZIGA, 1999.
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as relaes de gnero. Conforme argumentarei abaixo, na sociedade colonial ibrica durante os dois primeiros sculos aps a conquista, a doutrina da limpieza de sangre era uma forma cultural-religiosa de posicionamento social e de discriminao. Isso no torna a hierarquia de honrarias da poca nem melhor nem pior, em termos morais, do que o racismo, mas pe em destaque seu contexto histrico especfico. Mesmo quando pesquisadores usam o controverso termo raa num sentido mais descritivo do que analtico, isso se torna historicamente temerrio por esquivar a questo fundamental sobre como os povos da Amrica entendiam a identidade e a excluso social de sua prpria poca. Segundo porque os modos de classificao e identificao social que estruturam uma sociedade determinam tambm a forma pela qual sua reproduo social organizada; o sentido simblico com o qual a limpieza de sangre era estabelecida determinava a maneira pela qual as concepes e as relaes entre homens e mulheres eram construdas scio-politicamente. Como mostrarei abaixo, sempre que o status social tem por base o nascimento, o sangue, ou seja, a descendncia, em vez de mritos ou aquisies scio-econmicas individuais, o que se torna decisivo para os homens em suas disputas por honrarias sociais so as mulheres e o controle de sua sexualidade. S as mulheres, afinal, poderiam, nessas circunstncias, certificar que o nascimento era legtimo. Como diz o velho adgio, mater semper certa est. Finalmente, interpretar como racista qualquer ideologia que fundamenta qualidade e status social no nascimento, na genealogia, na linhagem ou na descendncia nos levaria, em ltima anlise, insustentvel concluso de que todas as sociedades pr-modernas, incluindo aquelas tradicionalmente estudadas por antroplogos, eram organizadas de acordo com a raa.31 Os novos povos da Amrica Idias ibricas e ideais de posicionamento social eram, no entanto, quase imediatamente desafiados no Novo Mundo. Ao contrrio do que acontecia na Pennsula Ibrica, nas colnias
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americanas o jogo entre a metafsica do sangue e as funes scioeconmicas promoveram uma gradao das posies sociais em vrios nveis, ao invs de uma polaridade estrita entre status social puro ou impuro. Os povos indgenas no se encaixaram facilmente no esquema classificatrio cultural-religioso da limpieza de sangre e muito menos os filhos misturados dos colonos. Os ndios eram formalmente considerados vassalos da Coroa, mas se distinguiam dos conquistadores e colonos espanhis em sua conduta moral e em sua crena, sistemas que conflitavam com preceitos religioso-morais cristos. J no sculo XVI a Igreja e as Coroas ibricas proibiram a escravizao de ndios, uma nova categoria inventada pelos colonizadores. Sendo ignorantes em relao s escrituras sagradas, eles eram vistos como menores dependentes, mais ou menos como as mulheres, que dependiam da proteo e da orientao, ou seja, do controle, de seus homens. As almas pequeas dos ndios precisavam da tutela da Coroa e da Igreja, que se tornavam responsveis por instrulos na nica verdadeira f.32 Em termos legais, os povos originais da Amrica espanhola e seus descendentes desfrutaram da qualidade de gentios conferida a eles pela Coroa. Como estabeleceu um decreto real em 1697, sua pureza de sangue [...] sem mistura ou infeco de outro grupo repudiado reservava-lhes todas as prerrogativas, dignidades e honras desfrutadas na Espanha por aqueles que tinham sangue puro. As escolas deveriam se estabelecer para ensin-los a lngua castelhana, e eles deveriam ser evangelizados.33 O fentipo era irrelevante na poca para definir a posio social. O que importava eram crenas religiosas e condutas morais. S os ndios que se recusavam a se converter ao cristianismo tinham sangue impuro, podendo ento ser escravizados.
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Richard KONETZKE, 1962, III, 1, p. 66-69 e 21. Ao contrrio da legislao que regulava direitos e deveres dos africanos, que at o sculo XVIII foi extraordinariamente repetitiva e escassa, as leis referentes aos ndios eram abundantes. Por exemplo, a Coroa insistia sempre, como em 1734, que todas as distines e honrarias (sejam elas eclesisticas ou seculares) atribudas a castelhanos nobres sero oferecidas a todos os caciques e seus descendentes; e a todos os ndios menos ilustres e a seus descendentes que sejam limpios de sangre, sem mistura ou [infeco] de um grupo condenado [...] e por essas determinaes reais eles passam a ser qualificados por Sua Graa para qualquer emprego honorfico (KONETZKE, 1962, III, 1, p. 217).
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No Brasil, o status formal da populao indgena menos claro na pesquisa acadmica disponvel. No Brasil portugus, os ndios parecem no ter recebido a ateno que seus irmos receberam na Amrica colonial espanhola, possivelmente porque, com o aumento do trfico de escravos, sua importncia como fora de trabalho em potencial declinou muito mais cedo do que no caso de escravos africanos. Inicialmente a Coroa e a Igreja protegeram-nos da escravido, mas num determinado momento eles se tornaram um obstculo expanso da fronteira agro-pastoril, o que os condenou ao extermnio. No Brasil, o preconceito de sangue pesava sobre judeus, mulatos, negros e mouros. Os inquisidores no se davam ao trabalho de investigar antecedentes de ndios e caboclos (descendentes de ndios e portugueses), j que eram considerados pessoas absolutamente primitivas, frgeis e infantis. A preocupao com o sangue negro, no entanto, era intensa.34 Na prtica, a populao indgena e o significativo grupo intermedirio de mestios na Amrica espanhola colonial eram, no entanto, economicamente desprivilegiados e socialmente discriminados at o fim do sculo XVI. Sua igualdade formal em relao aos hispnicos no evitou que suas terras lhes fossem brutalmente arrancadas, nem que eles acabassem concentrados em povoados indgenas (pueblos de indios) para serem mais facilmente disciplinados e explorados como fora de trabalho. Ainda assim eles eram livres. Depois de uma fase de apreenso, a Coroa permitiu casamentos entre ndios e tambm aceitou que hispnicos e seus descendentes se casassem com ndios e mestios, ainda que fosse para reverter o dramtico declnio das populaes indgenas.35 Na maioria das vezes, porm, a mestiagem foi resultado predominantemente de sexo casual ou unies extra-conjugais de espanhis, que em geral no se viam muito inclinados a se casar com ndias. Como diz um provrbio colombiano: la palabra de mestizo se entiende de ilegtimo (o termo mestio significa nascimento ilegtimo). 36 Embora os mestios derivassem de duas naes puras e castas, eles eram desdenhados,
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CARNEIRO, 1988, p. 216 e 220; e SCHWARTZ, 1996, p. 21. ARDANAZ, 1977, p. 230-236. DUEAS VARGAS, 1996, p. 54.
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tornando-se tambm progressivamente inelegveis para o sacerdcio e para o trabalho pblico honorrio.37 E na segunda metade do sculo XVI eles perderam tambm seus direitos polticos, j que sua lealdade era dividida entre seus pais, geralmente encomenderos, a quem deviam suceder no comando das terras, e seus parentes ndios, cujas rebelies alguns mestios apoiavam ou mesmo lideravam. O status poltico-cultural de escravos africanos na sociedade colonial tambm se define a partir de precedentes da metrpole. Mas em contraste com o que aconteceu com os ndios, a escravizao de africanos era encarada como perfeitamente legtima. Os africanos trazidos ao Novo Mundo como escravos, e seus descendentes, eram vistos como genuinamente impuros e infectados, por carregarem o peso da horrvel mancha do vil nascimento como zambos, mulatos e outras castas piores, com as quais homens da esfera intermediria ficam envergonhados de se misturar.38 Enquanto o sangue espanhol era tido como prevalente sobre o sangue ndio aps trs geraes de mestiagem, a mancha do sangue negro era considerada indelvel.39 Na Amrica espanhola colonial, o princpio de limpieza de sangre identificava os escravos negros, e todos aqueles suspeitos de descender deles, e os separava do resto da populao. Sangue negro significava sangue impuro, correspondente a uma contaminao indelvel dos africanos que, de acordo com idias de Aristteles assumidas por europeus, eram inaceitveis na pulitia, ou seja, na civilizao, porque eles descendiam dos africanos negros brbaros da Guin. Uma
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KONETZKE, 1962, III, 1, p. 185 e 107. A palavra casta, hoje associada ao sistema de castas indiano, foi introduzida no sul da sia como um conceito ibrico referente a pessoas definidas pelo sangue. Na Amrica espanhola, casta primeiro indicava o cotorno natural das desigualdades de poder e de status entre os colonizadores espanhis, os ndios e os escravos africanos. Mas com o tempo, a casta se transformou num termo genrico referente ampla coorte das pessoas misturadas (SCHWARTZ e SALOMON, 1999, p. 444).
39 KATZEW, 1996, p. 11-12. Katzew cita o seguinte trecho da Idea compendiosa del Reyno de Nueva Espaa (1774), de Pedro Alonso OCrouley: [...] las calidades y linajes de que estas castas se originan; son espaol, indio y negro, sabido es que de estas dos ltimas ninguna disputa al espaol la dignidad y estimacin, ni alguna de las dems quiere ceder a la del negro, que es la ms abatida y despreciada [...] Si el compuesto es nacido de espaol e indio sale la mancha al tercer grado, porque se regula que de espaol e indio sale mestizo, de ste y espaol castizo, y de ste y espaol sale ya espaol [...] porque se encuentra que de espaol y negro nace el mulato, de ste y espaol morisco, de ste y espaol tornatrs, de ste y espaol tenteenelaire, que es lo mismo que mulato, y por esto se dice y con razn que el mulato no sale del mixto, y antes bien como que se pierde la porcin de espaol y se liquida en carcter de negro, o poco menos que es mulato. Por lo que respecta a la confeccin de negro e indio sucede lo mismo; de negro e indio, lobo: de ste e indio chino, de ste e indio albarazado, y todos tiran a mulato (KATZEW, 1996, p. 109).
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fisionomia negra ou mulata era o sinal visvel dessa herana genealgica brbara em termos culturais e morais. Ainda que isso seja pouco conhecido, a escravido foi parte da sociedade espanhola do sculo XVI, especialmente na Andaluzia.40 Pensadores contemporneos, polticos e a Igreja, em Portugal e na Espanha, no sentiram qualquer dseconforto moral em relao escravizao de africanos negros, nenhum deles questionou a justificao aristotlica de sua escravido natural, ao contrrio do que aconteceu com a escravido de ndios, que provocou calorosas discusses na Pennsula, em nome de uma imaturidade racional indgena que os seus senhores ajudariam a superar. Os portugueses dominaram o trfico de escravos para a Pennsula Ibrica, que recebeu as primeiras cargas desse contingente em meados do sculo XV. A maioria dos escravos importados, por exemplo, para Granada durante a primeira metade do sculo XVI veio da regio ento conhecida como Guin, que compreendia toda a regio que hoje inclui Senegal, Gmbia, Guin Bissau, Repblica da Guin, parte de Mali e Burkina Fasso. Houve tambm escravos berberes muulmanos capturados por piratas espanhis no norte da frica. E quando os mouros (muulmanos convertidos) se rebelaram na noite de Natal de 1568, 70 anos depois da conquista de Granada pelos cristos, eles tambm se tornaram aptos a serem escravizados porque, como o Nncio de Madri escreveu na poca, mesmo batizados eles so mais muulmanos do que seus irmos norte-africanos.41 No sculo XVI a escravido atingiu o pice, com os escravos, na maioria mulheres empregadas em servios domsticos, totalizando 14% da populao de Granada. Os senhores exploravam suas escravas sexualmente, mas em grau menor do que era comum nas Amricas coloniais. Aos olhos dos contemporneos, no existia casta mais baixa do que a dos negros escravos vindos da Guin. Traficantes portugueses de escravos, em Luanda por exemplo, consideravam os escravos africanos negros como brutos desprovidos de compreenso inteligente e quase, pode-se dizer, seres irracionais.42 Escravos do norte da frica, muulmanos
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Aurelia MARTN CASARES, 2000. MARTIN CASARES, 2000, p. 176. Citado por BOXER, 1963, p. 29.
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africanos, tiveram o duvidoso benefcio de pertencer cultura muulmana, que era desprezada ainda que considerada como algo superior em relao aos escravos que vinham da Guin. Escravos negros libertos, negros nascidos livres ou mulatos traziam a mancha de sua descendncia de escravos brbaros. Na viso popular, a cor escura de suas peles revelava esse carter cultural manchado. O nmero de escravos em Granada s decaiu a partir do sculo XVIII, poca em que escravos africanos foram ficando cada vez mais numerosos nas plantations das colnias caribenhas, da Nova Espanha, da costa do Peru e da Colmbia; nessa poca sua importncia econmica crescia, e a categoria moderna de raa comeava a se estabelecer. A moralidade sexual da honra social e do casamento O sistema de identificao e classificao social desenvolvido na sociedade colonial marcou as relaes de gnero e a experincia das mulheres. Eu venho insistindo em que, durante os dois primeiros sculos depois da conquista, a limpieza de sangre se referiu mais a qualidades cultural-morais do que a qualidades raciais, j que a categoria moderna de raa foi introduzida apenas no incio do sculo XIX. Fragilidades culturais e morais podiam ser remediadas pela educao. Posteriormente, autoridades no estudo das raas previam que nenhuma melhoria social poderia ser garantida pelo chamado branqueamento. Ainda assim, esses princpios conceitualmente distintos de classificao social tinham em comum que ambos atribuam o status scio-poltico genealogia. A hierarquia social era baseada em linhas de descendncia, embora o que se pensava ser transmitido pelo sangue tenha mudado de uma conduta moralreligiosa remedivel para distines sociais inatas, devidas a manchas indelveis. Justamente por se acreditar que a posio social era determinada precipuamente pela origem genealgica, a norma reprodutiva na sociedade colonial ibrica era o casamento endogmico entre pessoas de mesmo status social. Zelando pela garantia da honra social associada pureza de sangue, as elites coloniais aspiravam casar-se entre si para assegurar a pureza social condicionada ao nascimento legtimo de sua prole. Sob tais circunstncias, as ordens inferiores
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dificilmente poderiam se casar de outra forma. Relaes sexuais entre parceiros de status sociais distintos no raro aconteciam fora do casamento. Os filhos ilegtimos eram excludos das honrarias sociais do ascendente mais bem colocado, normalmente o pai, e ento eram criados em casas comandadas pelas mes, de status mais baixo. As elites coloniais reproduziam o cdigo de honra metropolitano, em que a busca por pureza dependia daquela moralidade sexual em que a virgindade e a castidade das mulheres apareciam como o valor maior, adaptando tal cdigo ao novo ambiente colonial. Esse elo entre pureza social e virtude sexual feminina era claro numa ideologia de gnero que atribua aos homens o direito e a responsabilidade de controlar os corpos e a sexualidade de suas mulheres. Isso era assim precisamente porque o valor social de um indivduo, em vez de ser algo adquirido atravs de aes ou comportamentos, dependia primordialmente de seus antecedentes genealgicos. Os homens podiam obter honrarias sociais atravs de feitos hericos, mas eles precisavam seguir o cdigo de honra para no perd-las depois, enquanto as mulheres podiam apenas perder sua honra ou virtude. O sistema de parentesco da Pennsula Ibrica e da Amrica colonial era bilateral, com as crianas definindo sua descendncia tanto pelo pai quanto pela me, alm de ser compreendido como relacionado a parentes consangneos de ambos os ascendentes na mesma medida. Por ser a origem genealgica traada bilateralmente, o casamento entre pessoas socialmente equivalentes teve esse papel central na perpetuao das honrarias sociais. No caso de filhos de unies mistas, no entanto, era sempre o ascendente inferior, independentemente do sexo, que determinava o status da criana. Como vou mostrar mais abaixo, dada a importncia atribuda virtude sexual das mulheres para a honra familiar, era inconcebvel a uma mulher da elite se casar, e muito pior, manter uma unio sexual com um homem de pureza social inferior, porque isso poderia contaminar toda sua famlia. Assim, encontros sexuais mistos eram normalmente hipergmicos (entre homem de classe alta e mulher de status inferior). preciso destacar, entretanto, que, apesar do peso social da genealogia na determinao do status social, a sociedade colonial nunca teve uma ordem hierrquica impermevel e fechada. No sculo XVIII, as sociedades coloniais portuguesa e espanhola se tornaram
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uma complexa e fluida gradao de desigualdades resultado do jogo entre raa e critrio moderno de classe. O surpreendente aumento no nmero de peties de legitimao oficial Coroa, particularmente no Caribe e no norte da Amrica do Sul, reflete a intensa preocupao da elite com a genealogia e com a pureza sangnea, especialmente nas regies onde o nmero de escravos africanos ainda crescia no fim do sculo XVIII. Casamento e nascimento legtimos no eram apenas provas da qualidade moral dos ascendentes. A pureza do sangue adquiriu nova relevncia porque os filhos no puros de unies sexuais espordicas e da concubinagem de europeus e crioulos com mulheres ndias ou mestias, ou ainda com aquelas de descendncia africana, borraram as fronteiras visveis de grupo, num tempo em que o fentipo se tornou um indicador importante de qualidade social. As aspiraes desses filhos misturados ascenso social eram vistas pelas elites como ameaas a sua proeminncia social e a seus privilgios.43 Mais do que nunca, o nascimento ilegtimo era sinal de infmia, mancha e defeito, como declarou um decreto real de legitimao de 1780.44 Os cuadros de castas produzidos nos anos 1780, predominantemente na Nova Espanha (Mxico), por pintores do cotidiano so sintomticos das agudas sensibilidades sociais que trs sculos de mestiagem, em vez de diminuir, serviram s para intensificar. Esses quadros aparecem normalmente em conjuntos de dezesseis, cada um retratando um casal com cores de pele e fisionomias diferentes, acompanhados de um filho misturado. Esses quadros no apresentam, primeira vista, taxonomias scio-raciais, mas representam processos de reproduo scio-racial ao documentar mltiplas formas de estabelecimento de misturas coloniais. Os quadros mostram meticulosamente o grande leque de matizes, texturas de cabelo, vestidos e at condutas morais que os contemporneos percebiam em meio ao grande nmero de povos de sangue misturado, sugerindo assim a crescente instabilidade social da colnia no que diz respeito a sua fluidez scio-racial.45 nesse contexto da fluidez social e da instabilidade que a linguagem da
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TWINAM, 1999, p. 258-260. KONETZKE, 1962, III, 2, p. 173. KATZEW, 1996; e SCHWARTZ e SALOMON, 1999, p. 493.
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limpieza de sangre obtm nova relevncia, perdendo sua conotao religioso-moral prvia e adquirindo um sentido racial. Para dar conta da mudana no sentido simblico da pureza de sangue para esse sentido racial, e tambm da fluidez crescente da sociedade colonial, temos que novamente voltar os olhos para a Europa. Ali, a disseminao do individualismo moderno que acompanhou o declnio da monarquia fez surgir novas teorias sobre como os indivduos devem ser agrupados de acordo com seus aspectos naturais.46 O advento da filosofia natural experimental na Europa do fim do sculo XVII buscou descobrir as leis naturais que governavam a condio humana e abandonou a ontologia teolgica anterior. Depois da publicao de trabalhos de William Petty, Edward Tyson e Carl Linnaeus sobre a ordem da natureza, a humanidade deixou de ser um todo perfeito criado por Deus e passou a ser dividida entre dois, trs, talvez mais, graus em potencial de seres humanos, ou seja, raas. A preocupao dos naturalistas era com seres humanos enquanto criaturas fsicas e enquanto membros de sociedades organizadas. A nfase no recaa mais sobre a unidade humana, mas sobre diferenas fsicas e culturais. O interesse em tipos plurais de seres humanos iria ressoar por geraes atravs de tratados e volumes variados sobre teoria racial e social.47 Um artigo annimo publicado no Journal des Savants, na Frana, em 1684, percebe um dos primeiros usos do conceito de raa num sentido que se aproxima de seu significado moderno. Seu autor distinguia quatro ou cinco espcies ou raas de homens, diferenciadas atravs de caractersticas antropolgicas, sendo cruciais entre estas a cor da pele e o habitat geogrfico, embora o autor hesitasse em conceber ndios americanos como uma raa separada. O Journal de Savants estava entre os principais peridicos europeus. O artigo era um sinal dos tempos.48 Incidentalmente, essa nova noo de raa se desenvolveu paralelamente ao novo modelo bissexual, no qual o tero naturalmente torna a mulher fadada maternidade e vida domstica.49 difcil dizer exatamente quando essa noo de raa foi
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Guillaumin citado por Ann Laura STOLER, l995, p. 37. Margaret HODGEN, 1964, p. 418 et seq. GUSDORF, 1972, p. 362-363. Thomas LAQUEUR, 1990, p. 155.
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transposta para o Novo Mundo, mas no h dvida de que ela o foi, principalmente devido intensa ansiedade das elites coloniais em relao pureza genealgica. Apesar do novo sentido racial, a linguagem da qualidade menos palpvel da pureza de sangue persistiu nas colnias ibricas, porque no sculo XVIII o fentipo se tornou um signo muito pouco confivel da herana genealgica de uma pessoa.50 A Igreja, obviamente, no era indiferente aos costumes ligados ao casamento e ao sexo. At fins do sculo XVIII a Igreja tinha autoridade exclusiva sobre os casamentos. E sua poltica de casamentos servia apenas para intensificar as preocupaes das elites coloniais quanto ao status social. Embora a Inquisio tenha sido contra os contratos de casamento de cristos velhos com novos na metrpole, o princpio doutrinal que regulou a prtica eclesistica nas colnias era o da liberdade de casamento, que garantia aos jovens o direito de escolher livremente suas esposas e rejeitar a oposio dos pais ao casamento por motivos de pureza de sangue. A partir do sculo XVI, porm, h exemplos documentados de que alguns pais tentaram impedir os casamentos de seus filhos por motivos de desigualdade social, a fim de manter a pureza da famlia.51 Mas embora a doutrina moral cannica de fazer a virtude sexual prevalecer sobre honrarias sociais tenha desafiado a hierarquia social, a Igreja era liberal apenas na aparncia. A Igreja ignorava desigualdades sociais, mas impunha o mais estrito controle sexual, particularmente sobre as mulheres. Para a Igreja, a virtude sexual feminina virgindade antes do casamento e castidade depois era o maior de todos os bens morais. A conseqncia da preocupao da Igreja com a proteo da virtude moral era portanto o controle sexual: a salvao da alma dependia da submisso do corpo aos preceitos religioso-morais. Mesmo assim a Igreja nunca conseguiu erradicar a explorao sexual de mulheres consideradas de baixa posio social e sangnea, e os religiosos, notrios por seus prprios abusos sexuais nas colnias, no cumpriam estritamente esses preceitos. Apesar de tentativas isoladas de casar casais que viviam em pecado, unies socialmente desiguais eram,
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na maioria, consensuais como eram chamadas eufemisticamente na poca. Isso teve outras conseqncias. Hoje est perfeitamente estabelecido que oportunidades e experincias de mulheres diferem de acordo com o nvel social reservado a elas na sociedade. Ao exaltar a virtude sexual, a Igreja fomentou a discriminao de diferentes tipos de mulher em termos sexuais: de um lado, mulheres abusadas sexualmente por homens que, devido ao alto status social, no se casariam com elas (essas eram posicionadas em um status inferior e, mais do que isso, penalizadas por estarem, assim, vivendo em pecado mortal); de outro, mulheres virtuosas (de famlias respeitveis) cuja sexualidade era severamente controlada por homens em nome da famlia e da pureza social. Em meados do sculo XVIII, no entanto, a Igreja se viu ameaada por dois lados. Ela enfrentou o Estado, que estava limitando os tradicionais poderes eclesisticos e os privilgios econmicos da Igreja, e tambm entrou em choque com a Coroa quanto jurisdio sobre os efeitos civis de casamentos considerados desiguais. As coroas ibricas aprovaram uma nova legislao sobre casamentos que refletia suas preocupaes com a livre escolha de cnjuges pelos jovens, e com isso a Igreja passou a encarar dificuldades cada vez maiores para defender o casamento livre contra a oposio pr-nupcial dos pais. Uma lei portuguesa de 1775 reforou um decreto de 1603 que autorizava os pais a deserdar a filha que se casasse sem consentimento, estendendo a exigncia de consentimento paterno aos filhos homens. Na Espanha, Charles III promulgou a Sano Pragmtica de 1776 que, do mesmo modo, buscou prevenir o abuso dos contratos de casamentos desiguais por filhos e filhas. Essas leis suprimiram a livre escolha de casamentos, enquanto o Estado assumia o controle. Da em diante, os casamentos s puderam ser realizados com consentimento paterno, ficando os filhos sob ameaa de serem deserdados, de acordo com o consagrado princpio patrimnio pelo matrimnio.52 Pode ser paradoxal que as coroas portuguesa e espanhola tenham introduzido simultaneamente suas formas severas de controle sobre o casamento num tempo de reforma poltica e modernizao, quando
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o princpio de status genealgico de limpieza de sangre, alm de tudo, perdia validade na Pennsula Ibrica. Mas absolutamente nada tem de atpico o fato de as reformas de secularizao liberal serem acompanhadas de novos controles sociais. portanto plausvel ver nessas leis de casamentos uma tentativa, por parte do Estado, de conter as potenciais conseqncias sociais das reformas num clima poltico que em toda Europa j estava ameaando hierarquias sociais estabelecidas. Na Amrica espanhola, como j mencionado, o princpio da limpieza de sangre foi retomado. Em 1778, o rei estendeu a Sano Pragmtica s colnias,
considerando que efeitos iguais ou piores so causados por esse abuso [de casamentos desiguais] em meus reinos e nos domnios das ndias, levando em conta seu tamanho, a diversidade de classes e castas de seus habitantes [...] e o srio dano que vem sendo experimentado em meio a essa liberdade absoluta e desordenada com a qual os casamentos vm sendo contratados por jovens impetuosos e desajustados de ambos os sexos.
Excludos da Sano Pragmtica estavam mulatos, negros, coiotes [filhos de africanos e ndios] e indivduos de castas e raas assumidas e publicamente reputadas como tais, que presumivelmente no tinham qualquer honra que valesse a pena proteger.53 Tendo a Coroa portuguesa buscado refgio no Brasil, o Brasil seguiu a lei de matrimnios portuguesa de 1775, que foi incorporada ao Cdigo Criminal do Imprio de 1831.54 No sculo XVIII, juzes brasileiros ainda se preocupavam com a igualdade entre parceiros para o casamento, mas como Murial Nazzari mostrou, em relao a So Paulo, essa preocupao mudou no sculo XIX, quando a idia de igualdade das esposas j perdia a importncia que teve em sculos anteriores; a preocupao passou ento a ser a competncia do marido para sustentar a esposa.55 Ao contrrio do que acontece com Cuba no sculo XIX, no h
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KONETZKE, 1962, III, 1, p. 438-442. NAZZARI, 1991, p. 132. NAZZARI, 1991, p. 138-139.
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infelizmente informao disponvel sobre o Brasil quanto aos efeitos da desigualdade scio-racial sobre o casamento, e tambm parece no ter havido proibio legal de casamento inter-racial. A implementao da Sano Pragmtica espanhola encontrou dificuldades considerveis nas colnias espanholas. Vrios decretos reais adicionais relativos a casamentos desiguais se seguiram ao de 1778 para resolver conflitos entre a Coroa e autoridades coloniais quanto poltica de casamentos. O problema crucial, nesse momento, era o casamento inter-racial. No incio no estava claro se apenas pessoas de idade legal e reconhecida nobreza, ou se pessoas de sangue puro em geral, precisavam de autorizao oficial para se casar com membros das castas. Um decreto de 1805 resolveu essa questo exigindo que todas as pessoas de reconhecida nobreza e de reconhecida limpieza de sangre que, tendo atingido a maioridade, desejarem se casar com um membro das ditas castas (negros, mulatos e outras) se dirigissem s autoridades civis coloniais, que poderiam conceder ou negar as licenas correspondentes, enquanto ndios e mestios puros [eram] livres para se casar com brancos ou hispnicos.56 Isso no era apenas equivalente a uma virtual proibio do casamento de hispnicos ou crioulos com os negros e seus descendentes: o casamento inter-racial se tornou um problema de Estado. O que estava em questo no eram s os interesses das famlias, mas tambm a estabilidade da ordem social. Cuba foi a mais valiosa das colnias espanholas no sculo XIX. Em seu apogeu econmico como produtor de acar, o pas explorou uma populao escrava que crescia, tornando-se o lugar privilegiado da aplicao dessa legislao sobre o casamento, ainda que o rigor das autoridades coloniais na proibio do casamento inter-racial tenha variado. Particularmente na primeira metade do sculo, era freqente pais dissidentes discordarem em relao limpieza de sangre. Repetidas vezes eles falavam da absoluta desigualdade do casal, de sua prpria reconhecida pureza de sangue e da mancha evidente e transcendental em sua reputao, da degradao dos filhos e da desgraa e insatisfao que o casamento traria famlia. Nas colnias espanholas, a estabilidade social representava a preservao da
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hierarquia social fundada no jogo entre as condies relativas a escravido, qualidade racial e virtude sexual feminina.57 No sculo XIX, a pureza de sangue era usada no sentido racial moderno para distinguir pessoas de origem africana/escrava daquelas de origem europia/livre. Pessoas livres de cor eufemismo cubano para pessoas de descendncia africana eram porm igualmente discriminadas. No entanto, no caso de pardos (mulatos) nascidos livres, a proibio do casamento inter-racial era aplicada com grande lenincia por terem eles escapado mais evidentemente da cor negra e da escravido. 58 Cor de pele e classe eram combinadas na determinao do status social da pessoa. Pele clara e sucesso scioeconmico podiam amenizar a mancha genealgica da descendncia de escravos at um certo ponto. No eram freqentes os casamentos entre homens brancos e mulheres de cor, como forma de oposio concubinagem, mas as autoridades permitiam-nos a homens brancos de poucos recursos se eles quisessem se casar por amor ou para legitimar uma relao sexual anterior e o filho dela resultante. Como j foi indicado, a sociedade colonial no era uma ordem hierrquica impermevel. A parafernlia legal sobre o matrimnio era necessria justamente porque, apesar da preocupao com a limpieza de sangre, sempre houve mulheres e homens brancos prontos a desafiar a ordem poltico-racial e seus valores sociais e morais, casando-se contra as recomendaes da tradio. Havia limites, porm, para a compensao do status racial pelas conquistas econmicas em relao ao casamento. A endogamia scio-racial era a forma de casamento preferida, oficialmente e socialmente, entre brancos e pessoas de cor em Cuba no sculo XIX. A maioria dos casamentos obedecia a esse padro. Mas quando um casal jovem decidia desrespeitar as normas estabelecidas, podia solicitar s autoridades civis uma licena suplementar de casamento, compensando a objeo dos pais, ou podia, mais dramaticamente, fugir para casar. Ao encarar o fait accompli da perda da virtude sexual da mulher, era de se supor que os pais achassem muito mais difcil manter suas objees iniciais. Mas quando o casal era visto como pertencendo a uma raa diferente,
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os pais brancos em desacordo geralmente preferiam tolerar uma filha desonrada a deixar que sua linhagem fosse poluda. Um pai branco argumentou quanto a isso da seguinte forma:
[O pretendente teve] a audcia inconcebvel de seduzir, levar e talvez at estuprar uma moa branca de respeito [...] tornando-se assim culpado, aos olhos da lei, de uma ofensa extremamente grave, uma ofensa do tipo que exige ser levada diante das cortes da Ilha de Cuba a qualquer custo. Este um pas em que, dadas suas circunstncias excepcionais [isto , a escravido], torna-se necessrio que a linha divisria entre os brancos e as raas africanas seja muito bem demarcada, porque qualquer tolerncia, que em alguns casos pode ser elogivel, trar desonra s famlias brancas, revolta e desordem ao pas, e talvez at o extermnio de seus habitantes; [ele] nunca aprovar um casamento de sua filha com um mulato, porque isso estaria recobrindo uma mancha com outra muito maior e ainda mais indelvel; ao contrrio, melhor elas engolirem a dor e a vergonha em silncio do que autoriz-las publicamente.59
Tais desafios ao status quo social indicam que, paralelamente norma da hierarquia scio-racial tpica de uma sociedade escravocrata, existia um ideal de liberdade individual, de liberdade de escolha. Esse ideal liberal moderno de liberdade individual, enraizado na noo de igualdade bsica de todos os humanos vinda da renascena europia, era a raison dtre da ideologia da limpieza de sangre, tanto no sentido religioso-cultural prvio quanto no sentido racial posterior, que serviu para justificar e dar conta da desigualdade social real. Apesar das diferenas regionais, o ethos universalista cristo, segundo o qual todos os seres humanos seriam iguais diante de Deus, dominou a sociedade ocidental mais ou menos at o sculo XVIII. Desde ento, o iluminismo europeu estabeleceu uma mudana conceitual que foi progressivamente substituindo a ontologia teolgica anterior pelo ideal secular segundo o qual todos os seres humanos nascem livres e iguais perante a lei. Mas ambos os conceitos de humanidade foram constantemente contrariados pela realidade das desigualdades sociais.
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De acordo com o princpio genealgico da limpieza de sangre, cujo sentido histrico est sempre mudando, a desigualdade social, em vez de resultar do acesso desigual a recursos econmicos e ao poder, era vista como algo que est no sangue. Assim, se desde o incio os valores poltico-morais igualitrios possibilitavam mudanas na ordem social desigual, a ideologia da limpieza de sangre desqualificava moralmente essas potenciais mudanas e as neutralizava politicamente ao atribuir a hierarquia social, seja lei divina, seja s diferenas naturais fsicas e/ou raciais. Era o elemento ideolgico igualitrio que fornecia tambm a brecha para aqueles casais que, diante da oposio dos pais, sentiam-se encorajados a fugir para casar. Embora a endogamia fosse a norma prescrita para perpetuar o status quo hierrquico, o casamento inter-racial, mesmo condenado, de fato ocorria excepcionalmente, justo porque o consenso em relao legitimao da ordem social e da endogamia racial estrita era nulo. Que conseqncias essas concepes genealgicas de pureza social e status tm para as mulheres e para as relaes de gnero? Aqui a linha geral de meu argumento pode ser reiniciada. Sempre que o posicionamento social numa sociedade hierrquica atribudo ao nascimento e descendncia, e enquanto o sexo no puder ser dissociado da gravidez, ser essencial para os homens da elite controlar a sexualidade de suas mulheres a fim de garantir a reproduo adequada de seu status social atravs de um casamento apropriado. Na sociedade colonial do sculo XVIII, o casamento intra-racial aparecia como a forma ideal de casamento, a partir da norma segundo a qual no pode haver casamento se no h igualdade de linhagem.60 A explorao sexual por homens, embora muito danosa para a mulher envolvida, literalmente no trazia qualquer conseqncia para a honra da famlia. Ao reforar a noo metafsica do sangue como veculo do prestgio familiar e como ferramenta ideolgica usada para salvaguardar a hierarquia social, o Estado, numa aliana com as famlias que exigiam sangue puro, submetia suas mulheres a uma rgida vigilncia de sua conduta sexual enquanto seus filhos se deleitavam livremente com mulheres consideradas sin calidad. A desdenhada imagem da mulata, sntese da mulher irresistivelmente
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sedutora e moralmente depravada, eximia homens brancos de qualquer responsabilidade, culpando em vez disso a mulher. O ditado cubano do sculo XIX no hay tamarindo dulce ni mulata seorita (no existe tamarindo doce, nem mulata virgem) expresso dramtica dessa lgica de gnero distorcida. O valor moral especial atribudo virtude sexual das mulheres no se devia, no entanto, a suas caractersticas sexuais biolgicas especficas. A sexualidade feminina se tornou to valiosa porque as circunstncias scio-ideolgicas permitiram s mulheres o papel crucial de transmissora dos atributos de famlia de gerao a gerao. Os homens, como guardies das mulheres da famlia, assumiam a funo de cuidar da transferncia socialmente satisfatria desses atributos, atravs do controle estrito da sexualidade das mulheres. O confinamento domstico das mulheres e sua subordinao geral em outras esferas sociais eram conseqncias de sua centralidade reprodutiva. E isso era assim porque, como bem observou um jurista espanhol do sculo XIX, s as mulheres poderiam introduzir bastardos no casamento. Entendia-se o bastardo como uma criana ilegtima nascida de uma relao sexual ilcita entre parceiros que, de acordo com as normas sociais, no poderiam se misturar. Referncias bibliogrficas ADORNO, Rolena, and BOSERUP, Ivan. New Studies of the Autograph Manuscript of Felipe Guaman Poma de Ayalas Nueva Crnica y Buen Gobierno. Copenhaguen: Museum Tusculanum, 2003. ARDANAZ, Daisy Rpodas. El matrimonio en Indias. Realidad social y regulacin jurdica. Buenos Aires: Fundacin para la Educacin, la Ciencia y la Cultura, 1977. ARROM, Silvia M. The Women of Mexico City, 1790-1857. Stanford: Stanford University Press, 1985. BASTIDE, Roger. Dusky Venus, Black Apollo. Race. The Journal of the Institute of Race Relations, v. 1, n. 1, 1959. p. 10-19. BOXER, Charles R. Race Relations in the Portuguese Colonial Empire, 1415-1825. Oxford: Clarendon Press, 1963.
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Segundo todos os informes dos meios de comunicao, o determinismo gentico o paradigma cuja poca aqui e agora; todo o mundo se encontrar melhor, ao mesmo tempo em que seus bioterapeutas vo se enriquecendo (STROHMAN, 1997: 196). No sei se existem muitos homens que se paream a mim com respeito a isso, mas sempre desejei, inclusive quando adolescente, levar em meus braos uma menina que fosse de meu sangue. Sempre pensei que isso me provocaria um tipo de plenitude sem a qual minha existncia de homem ficaria incompleta (MAALOUF, 1993). Cloning is the only predictable way to reproduce... Sexual reproduction is a crapshoot by comparison (N.MYHRVOLD, 1997) 2 .
A sensacional e (ao mesmo tempo) inquietante notcia da criao da ovelha clnica escocesa Dolly em fevereiro de 1997 parecia confirmar que, se o sculo XX foi o sculo da fsica, o sculo XXI ser o sculo da biologia (CRAIG VENTER e COHEN, 1997: 32). A ovelha
O presente texto baseado no artigo El sexo de la biotecnologa, publicado no livro coordenado por Alicia Durn & Jorge Riechmann, intitulado Genes en el laboratorio y en la fbrica (1998, Madrid: Editorial Trotta Fundacin 1 de Mayo, pp. 97-118). A conferncia pronunciada pela Dr. Stolcke durante o IX Congrs dAntropologia FAAEE (Federacin de Asociaciones de Antropologa del Estado Espaol) se apoiou fundamentalmente neste texto e, por esta razo, o introduzimos nesta publicao, com algumas modificaes pontuais a cargo da autora, que retomou o tema, de modo atualizado, tambm durante o Workshop promovido durante a 25 Reunio Brasileira de Antropologia, em Gois, Goinia (Traduo de Danilo Assis Clmaco; reviso de Fernanda Cardozo).
1
Citado por Stuart N. Newman (Newman, 1997: 488). O bilogo celular Newman faz parte da comisso executiva do Conselho para uma Gentica Responsvel. Nathan Myhrvold o chefe tecnolgico de Microsoft, uma das principais empresas no campo da informtica, que agora est realizando fortes investimentos em biotecnologia.
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clnica Dolly s um exemplo dos vertiginosos avanos na biotecnologia, impulsionados pela fascinao que exerce, entre geneticistas moleculares, a conquista dos segredos ltimos da vida. Tanto faz que, de momento, a clonagem em humanos seja uma mera eventualidade3 : poder-se-ia dizer que finalmente chegou o momento em que o homem poder redesenhar sua prpria espcie. Pelo menos isso o que aparentemente esperam as empresas farmacuticas, os laboratrios biotecnolgicos e os especuladores na bolsa, que investem altos valores na pesquisa genmica4 . O mundo acadmico tampouco permanece alheio ao irresistvel encanto da biotecnologia. Apenas nascida Dolly, Lee Silver, professor de gentica molecular da Universidade de Princeton, por exemplo, anunciava, em tom presumidamente futurista, um seminrio no qual se explorariam procedimentos contemporneos, tais como o aborto seletivo por diagnstico gentico, teros de aluguel, mercados de espermas e de vulos, bancos de embries congelados e a seleo gentica de bebs futuros em bancos de embries. Alm disso, seria examinada a evoluo biolgica e cultural do sexo e seu vnculo novo com a reproduo e se estudariam tambm possveis cenrios de um futuro no muito distante que abarcam a maternidade ou paternidade gentica compartilhada por casais homossexuais, perfis de embries gerados em computador disposio de pais potenciais, e o contrato de seguro para clulas germinais (SILVER, 1997: 1)5 . Houve quem reagisse contra o alarme biotico suscitado pela aplicao potencial da clonagem a humanos, desqualificando estes temores como sendo de cincia-fico. Ainda reconhecendo que seja tecnicamente factvel, Ian Wilmut, o pai da ovelha Dolly, minimizou
De fato, o primeiro experimento de clonagem humana de que se tem notcia aconteceu em 1979, quando L. B. Shetles, da Universidade de Columbia, Nova York, transplantou clulas germinais masculinas em ovcitos humanos (BLANC, 1981). No mesmo ano, os evolucionistas F. J. Ayala e J. W. Valentine condenavam a clonagem em humanos por constituir uma ameaa para uma sociedade democrtica (Mundo Cientfico, 180; 1997: 545). E em fevereiro do ano em que nasceu Dolly, quando a revista Nature estava por publicar o artigo da equipe do Instituto Roslin que descrevia o procedimento de clonagem da ovelha Dolly, um cientista annimo da Universidade de Harvard chamava a ateno a respeito de que era provvel que a clonagem de humanos com clulas adultas seria factvel dentro de um a dez anos, solicitando que a revista no o publicasse pela falta de debate e clareza sobre as implicaes bioticas deste avano da cincia (Annimo, Caught napping..., 1997; MARIO, 1997: 3).
3
Ver Annimo, Biotechnology..., para uma anlise detalhada da ampla gama de empresas que investigam a estrutura do genoma humano e os recursos implicados.
4
O professor Lee Silver faz parte, igualmente, da Comisso Coordenadora de Cincia, Tecnologia, tica e Poltica da Universidade de Princeton.
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os riscos da clonagem em humanos relegando o clonar pessoas [...] ao terreno da cincia-fico (KOLATA, 1997a, 30; Annimo, Lhypothse...). Como cientista apaixonado, destacou, no obstante, que os benefcios do descobrimento superavam seus possveis riscos e que, de todos os modos, no possvel deter o avano da cincia pensando no que poderia acontecer (RAMOS, 1997: 6). E o Instituto Roslin, onde se criou Dolly, em princpios de maio de 1997 solicitou o registro da patente de seu procedimento de clonagem no s para animais, mas tambm para humanos (CNN, 1997). A clonagem transtornou os procedimentos naturais da procriao em mamferos. A equipe de Wilmut conseguiu que um ncleo de clula adulta retrocedesse ao seu estado primitivo multipotente e o implantou em um ovcito enucleado. O ncleo da clula somtica transferido se fundiu com o vulo mediante uma pequena descarga eltrica e comeou a diferenciar-se novamente. A transferncia nuclear substituiu a fecundao sexual tradicional. Ao recopilar informao sobre clonagem, de imediato me chamou poderosamente a ateno um paradoxo: o determinismo gentico que, desde os anos 1950, predomina nas cincias da vida contrasta com o indeterminismo anticientfico dos relativismos, culturalismos, diferencialismos e multiculturalismos que caracterizam uma boa parte das interpretaes scio-polticas atuais das fraturas de um mundo atormentado e instvel contemporneo. Parece como se os bilogos e os economistas, analistas sociais e polticos habitassem universos separados e diferentes. O descobrimento da estrutura do DNA por Watson, Crick e Rosalind Franklin, nos anos cinqenta, deu origem inicialmente a uma teoria circunscrita ao gen, que, com o passar dos anos, se converteu em um determinismo genrico mecanicista rigidamente molecular. Assim, ainda que existam vozes dissidentes e que se possa detectar uma embrionria revoluo epigentica, as cincias biolgicas entraram em uma fase de glorificao dos genes6 (STROHMAN, 1997;
Um dos crticos mais destacados do determinismo gentico atual o clebre geneticista R. C. Lewontin (LEWONTIN, 1991). Como ressalta Strohman, professor emrito do departamento de biologia molecular e de clulas da Universidade da Califrnia, Berkeley, existe uma falta de correspondncia notvel entre mudanas genticas e evolutivas. A interao entre o DNA, as protenas e a determinao de funes orgnicas muito mais complexa do que pretende a teoria do gen, pois, como sustentam os defensores de uma teoria epigentica, nela intervm uma espcie de retroalimentao pela regulao da expresso gentica a partir do ambiente (STROHMAN, 1997).
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GOODMAN & ARMELAGOS, 1996). Como Watson declarava, quase quatro dcadas mais tarde pensvamos que o destino estava nas estrelas, agora sabemos que, em grande medida, est em nossos genes (WATSON, 1989). Por contraste, a crise nos anos 1980 dos grandes modelos tericos universalistas modernos do liberalismo, do humanismo e do marxismo provocou um profundo ceticismo ante o conhecimento objetivo e toda uma gama de culturalismos subjetivistas. A Antropologia scio-cultural, por exemplo, ao se transformar em uma disciplina humanista e moral, tem dificuldades para se situar frente a fenmenos biolgicos que parecem pr em questo seu enfoque interpretativo relativista convencional. Da mesma forma, na medida em que avanava a globalizao no mbito do econmico, o atrincheiramento poltico do Ocidente ante a periferia progressivamente mais pobre deu lugar a uma retrica culturalista exclusivista. Os escritos do clebre politlogo estadunidense Samuel Huntington sobre o que ele denominou o choque de civilizaes talvez sejam a ilustrao mais destacada deste fenmeno. Segundo Huntington, as fraturas entre civilizaes leia-se culturas religiosas constituiriam as frentes de batalha na ordem poltica do futuro, batalhas em que o Ocidente se veria enfrentado com o resto do mundo. Da mesma forma, a direita e o centro polticos, em particular na Europa, tendem a justificar a excluso dos imigrantes pobres do chamado Terceiro Mundo com argumentos fundamentalistas culturais, pois discursos explicitamente racista-genticos ficaram desacreditados pelo holocausto (STOLCKE, 1995). Mas reduzir o consenso determinista gentico nas cincias biolgicas a uma mera pseudo-teoria desenhada para legitimar desigualdades e excluses scio-polticas seria uma simplificao. O desafio terico-poltico de fundo que revela, no meu parecer, o divrcio atual entre paradigmas biolgicos e doutrinas sociais e polticas consiste precisamente em identificar o ponto em que ambas as vises do mundo convergem. evidente que a cincia e a tecnologia esto influenciadas por seu entorno, pelos interesses e pelas relaes sciopolticas que as engendram e que, simultaneamente, as transformam. Do que se trata de identificar as conexes mais profundas entre a pesquisa gentica e biomdica e a sociedade, entre a oferta biotecnolgica e a demanda social de novas tcnicas e curas
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biomdicas. A clonagem oferece uma oportunidade privilegiada para descobrir os pontos de interseco entre determinismo gentico e pressupostos scio-culturais, entre os avanos biotecnolgicos e seus contextos scio-simblicos. Dolly, a ovelha clonada, a imagem emblemtica da confiana que os cientistas da vida tm na natureza e de seu constante esforo por transcend-la. A biotecnologia um campo to fascinante porque rene os dois mbitos que a cosmologia ocidental moderna dissociou pelo menos desde Descartes: o da natureza e o da cultura. Aqui me centrarei, em concreto, nos motivos scio-cientficos que podem conduzir clonagem em humanos e nas conseqncias materiais que tal clonagem teria em socavar biolgica e culturalmente as diferenas de sexo em relao procriao, bem como nas conseqncias que isto implicaria para as consagradas noes ocidentais sobre a concepo e, em especial, para as mulheres. Isto planteia, tambm, uma questo metodolgica crucial: a de analisar a materialidade das transformaes biotecnolgicas a partir de uma perspectiva construtivista. O prmio Nobel de medicina Franois Jacob reagiu ante a ovelha Dolly com prudente ironia. Constatou que, durante muito tempo, tentou-se ter prazer sem ter crianas. Com a fecundao in vitro, tmse crianas sem prazer. E agora possvel fazer crianas sem prazer e sem espermatozides (...). Evidentemente, isto mudou um pouco a estrutura familiar, pelo menos e at agora, entre as ovelhas (NODLANGLOIS e VIGY, 1997). Enquanto as instituies clamam por uma regenerao da sagrada famlia e das responsabilidades familiares e nos pases ricos se apela s mulheres para que tenham mais filhos , as novas tecnologias reprodutivas mais antigas (a inseminao artificial e a fecundao in vitro), com efeito, no apenas eliminaram o genuno prazer de fazer sexo em boa companhia, como obrigaram a uma redefinio jurdica e social das relaes familiares. A clonagem reveste-se de um aspecto espetacular e simblico. Como ressaltei, significa a desapario da reproduo sexual em mamferos e, com isto, o fim da participao do homem na fecundao. No podemos, no entanto, deixar-nos levar pelo clamor sensacionalista dos meios de comunicao, nem cair em interpretaes conspiratrias no que diz respeito aos efeitos potenciais deste novo giro na espiral tecnolgica em matria de procriao para os humanos, em geral, e
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para as mulheres, em particular. Os avanos cientficos e tecnolgicos, sem dvida, tm uma poderosa lgica prpria, ainda que no aconteam em um vazio scio-cultural. Por conseguinte, podem ter conseqncias que transcendem seus objetivos manifestos especficos. Com a imaculada concepo da ovelha clnica Dolly, os cientistas franquearam outro umbral na criao da vida7 . A primeira ovelha clnica provocou alarme em mbitos cientficos, sociais e polticos, principalmente pelo mau uso potencial da clonagem, em particular em humanos. Os defensores liberais da clonagem minimizam os riscos, pois, alm de ressaltarem os benefcios mdicos que dela podem advir, sustentam que, ainda que seja tecnicamente factvel tambm em humanos, no quer dizer que ser realizada. Os crticos, pelo contrrio, insistem em que o cientificamente possvel costuma colocar-se em prtica e exigem que se proba a clonagem em humanos8 . Em meio a todo este clamor tico e cientfico a respeito das repercusses que pode ter a clonagem em mamferos para a humanidade e da linguagem antropomrfica que se costuma empregar para descrever este avano fala-se de me de aluguel, de me gentica, de me gestante , salvo algumas aluses jocosas a um futuro sem homens, no consta meno sria alguma do que isto poderia significar, em particular, para as mulheres. Uma exceo o semanrio alemo Der Spiegel, segundo o qual a revista feminista de Colnia, Emma, celebrava este avano da cincia por abrir um novo caminho em direo a uma sociedade de mulheres9 . Pode ser que isto no seja mais do que manipulao misgina, inspirada por obscuros temores que as novas tecnologias conceptivas e contraceptivas provocam nos homens, pela liberdade que propiciam s mulheres para decidir sobre sua faculdade reprodutiva. Mas, alm dos efeitos deletrios que tem a clonagem ao reduzir a biodiversidade, e, portanto,
7 A revista The Economist definiu assim o transplante de ncleo de uma clula diferenciada que continha toda a informao gentica a um ovcito enucleado no fecundado, na clonagem da ovelha Dolly (Annimo, Genetic...). 8
Mas, como Mike Fainzilber, do Molecular Neurobiology Laboratory de Estocolmo, escrevia na revista Nature, as objees ticas parecem muito pouco eficazes para frear o desenvolvimento cientfico e tecnolgico, pois a histria mostra que o conhecimento cientfico utilizado e desenvolvido sem informar as implicaes ticas que possa ter (FAINZILBER, 1997: 431). Annimo, Jetzt.... Parece que a imprensa inglesa tambm fez eco desta viso fantasmagrica.
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a capacidade de adaptao e a sobrevivncia das espcies, um futuro procriador assexual de nenhuma maneira inauguraria um mundo de mes livres e felizes. Dolly uma ovelha normal, salvo em sua concepo, pois no se alterou sua dotao gentica, que substancialmente a de uma ovelha adulta10 . Tem trs mes, mas nenhum pai. Contriburam para a clonagem a ovelha adulta objeto de clonagem, da qual foi extrada uma clula mamria com sua dotao gentica, e outra ovelha adulta doadora de um ovcito clula no fecundada, cujo ncleo foi extrado e substitudo pelo ncleo da clula mamria. A fuso do ovcito enucleado com o ncleo da clula mamria se obteve mediante uma pequena descarga eltrica que permitiu que esse vulo manipulado se desenvolvesse at um embrio. Finalmente, implantou-se o embrio no tero de uma terceira ovelha para sua gestao. Na medida em que a agitao miditica provocada por Dolly se serenava, da multido de cenrios mais ou menos fantsticos restava um aspecto de peso a saber, como ressaltou a revista Nature Biotechnology, as discusses aparentemente mais realistas sobre infertilidade, ou seja, sobre as possibilidades que a clonagem pode oferecer para tratar certos tipos de infertilidade em humanos11 . E a National Bioethics Advisory Commission do presidente Clinton, ao recomendar uma lei que proibisse a clonagem de embries para a implantao, advertiu que a histria do tratamento da infertilidade em especial da fecundao in vitro demostra que, quando existe uma demanda to considervel e bem financiada por um novo servio, haver profissionais que estejam dispostos a oferec-la (WADMAN, 1997: 644). Para vislumbrar como a clonagem pode alterar os procedimentos naturais de procriao ao intensificar as diferenas de sexo e, por conseguinte, transmutar nossas noes sobre concepo e sobre
Um modo de minimizar os riscos da clonagem, enquanto procedimento de rplica gentica, parece consistir em pr em entredito a total identidade gentica do clone com o mamfero doador do material gentico. Como ressalta a revista Mundo Cientfico, os clones assim produzidos sero muito parecidos ao adulto do qual se tomem as clulas, mas no totalmente idnticos devido inevitvel diferena do entorno e, tambm, do papel ainda pouco conhecido que tem o citoplasma do ovcito receptor no momento da fuso. Mas, apesar de tudo, quase idnticos em qualquer caso, muito mais parecidos do que pela via normal de reproduo sexuada, que introduz diversidade gentica (POSTEL-VINAY e ANNETTE MILLET, 1997: 540).
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Annimo, Thinking about.... Cabe notar que a clonagem pode resultar atraente tambm para lesbianas.
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relaes de gnero, instrutivo fazer memria a respeito da evoluo da biotecnologia. A clonagem em mamferos adultos , de fato, mais do que um novo avano das novas tecnologias reprodutivas e, sobretudo, da fecundao in vitro 12 . O desenvolvimento das biotecnologias e, em especial, das tecnologias reprodutivas constitui uma condio sine qua non em todo o campo da experimentao embriolgica a servio da pesquisa biogentica impulsionada pela vontade de se descobrirem os ltimos segredos da vida. O campo e o material privilegiados para a experimentao em embriologia molecular so, portanto, os vulos, os teros, os corpos das fmeas. Isto j era sugerido por Franois Jacob em 1970, quando antepunha em seu livro clssico, La lgica de la vida, uma citao proftica tomada da Conversao com DAlembert, de Diderot: Voc v este ovo? Voc pode derrotar com ele todas as escolas de teologia, todas as igrejas do mundo (JACOB, 1973). A clonagem, como reproduo assexual, magnificaria o valor do vulo. H muito, o homem tem desejado criar vida em um recorrente sonho de onipotncia13 . At o ps-guerra europeu, a fecundao extrauterina em humanos era uma fantasia, reflexo da ambio do homem ocidental moderno em conhecer e dominar a natureza. J por 1770, o mdico italiano Spallanzani havia mostrado que a fertilizao em mamferos requeria o contato do lquido seminal com o ovcito e, pouco mais tarde, conseguiu inseminar artificialmente uma cadela. Dada a simplicidade da inseminao artificial, em 1799 o mdico ingls Hunter conseguiu fecundar uma mulher com o smen de seu marido, e, em 1804, Thouret, na Frana, repetiu a faanha. Em 1884, Pancoast, nos Estados Unidos, realizou a primeira inseminao artificial por doador, motivada pela azoospermia do marido. costume referir-se clebre distopia de Mary Shelley, Frankenstein a histria de um mdico que, ao apropriar-se do poder de criar vida, produz um monstro sem nome ou quela obra de
Os pais dos primeiros bebs de proveta, obviamente, tambm se manifestaram sobre as implicaes da clonagem. Enquanto o mdico britnico Robert Edwards opina que a reproduo de clones permitiria dispor de cepas celulares para fabricar rgos de recmbio em caso de doena ou acidente, Jacques Testart, o pai do primeiro beb de proveta francs, mostrou-se mais crtico (POSTEL-VENAY e MILLET, 1997: 546).
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Para uma anlise mais detalhada da evoluo histrica das tcnicas reprodutivas, ver Stolcke (1988: 5-19). Uma verso mais breve deste artigo est publicada em Stolke (1987: 87-129).
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Aldous Huxley, Admirvel Mundo Novo, como advertncia perante os riscos que implica uma cincia amoral. Mais pertinentes e profticas foram, no obstante, as utopias eugnicas do incio do sculo vinte de dois distintos bilogos ambos apoiaram a repblica durante a guerra civil espanhola como voluntrios. Trata-se do britnico J. B. S. Haldane e do prmio Nobel de medicina estadunidense H. J. Muller. Em 1923, Haldane publicou Daedalus, a descrio (em perspectiva) utpica de uma sociedade na qual se consegue a perfeio eugnica mediante a procriao seletiva ectognica (HALDANE, 1923). Muller publicou, em 1936, Out of the Night. A Biologists Wiew of the Future, em que apresenta uma sociedade integrada por uma raa supremamente inteligente e solidria, criada mediante a inseminao artificial, o cultivo e a armazenagem de esperma de grandes homens (seus heris eram Lnin, Newton, Da Vinci, Pasteur, Beethoven, Omar Khayyam, Pushkin, Sun Yat Sen e Marx), a recuperao de vulos para a fecundao extra-uterina, a transferncia de embries e a seleo sexual, com o fim de eliminar defeitos genticos e determinar o sexo, tudo a servio de uma nova cincia eugnica que, ao aperfeioar as qualidades intelectuais e morais humanas, acabaria com as desigualdades de classe e a competitividade entre os humanos. Muller estava convencido de que isto no um sonho ocioso. No apenas possvel faz-lo, eu acho que certamente se far (MULLER, 1936: 145-155). Nem Haldane nem Muller eram darwinistas sociais liberais. Compartilhavam o entusiasmo eugnico de seus contemporneos, traduzindo-o em programas de procriao planificada. Muller condenou o uso fascista da gentica, mas nunca questionou o essencialismo elitista de sua prpria teoria, nem o ideal eugnico de uma raa perfeita. Ainda que advogasse para as mulheres a liberao do martrio de uma maternidade involuntria, tampouco duvidou em instrumentalizar as mulheres a servio de seu sonho eugnico14 .
Haldane e Muller no foram excees. A partir dos anos 1950, uma srie de cientistas preconizou procedimentos de reproduo planificada inspirados por um elitismo gentico. William Shockley, prmio Nobel da fsica em 1956, era partidrio de criar um banco de esperma para obter filhos de prmios Nobel. Joshua Lederberg, outro prmio Nobel de medicina, defendeu, em 1966, a clonagem de humanos para reproduzir indivduos superiores. Joseph Fletcher, em 1974, propugnava a criao de clones humanos especializados em certas tarefas especficas, e MacFarlane Brunet, tambm prmio Nobel de medicina, em um livro publicado em 1978, defendia as vantagens da seleo gentica sistemtica de indivduos (POSTELVENAY e MILLET, 1997: 545).
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Nos anos trinta, iniciou-se o desenvolvimento da fecundao in vitro, ainda que o avano da pesquisa com ovcitos humanos fora inicialmente lento. A utilizao das tecnologias reprodutivas na criao de gado com o fim de melhorar sua qualidade e rentabilidade sempre precedeu a sua aplicao em humanos. Nos anos sessenta, a fecundao in vitro de ovcitos de mulheres recebeu um novo impulso, e, em 1978, nascia na Inglaterra a primeiro beb in vitro, Louise Brown, por transferncia de embries. Desde ento, nasceram milhares de meninos e de meninas por fecundao assistida, como veio a denominar-se eufemisticamente esta tcnica. primeira vista, poderia parecer que a fecundao in vitro s um passo alm no af cultural e sexualmente neutro de conquistar os princpios da vida a servio de necessidades e desejos humanos. Porm, as novas tecnologias reprodutivas significaram no apenas um salto qualitativo no controle mdico-tcnico da procriao humana. Ao oferecerem uma cura para a infertilidade, transformaram-na em uma condio patolgica cujos objetos privilegiados so as mulheres, na medida em que, devido s diferenas fisiolgicas reprodutivas, quer dizer, s diferenas de sexo, estas tecnologias requerem principalmente a manipulao do corpo feminino15 . As novas tecnologias reprodutivas respondem a interesses mltiplos: os imperativos do progresso da cincia, e em especial da biomedicina, que normalmente so fomentados pelas ambies e competio entre cientistas, com a fama e os lucros econmicos em jogo. Mas, tambm, est o desejo dos casais infrteis por ter filhos, idealmente, do prprio sangue ou genes, como se diz hoje em dia , pelo menos o de uma das partes. Em 1984, o Informe Warnock ingls sobre as implicaes legais e ticas das novas tecnologias reprodutivas j expressava, com clareza, as motivaes subjacentes a este desejo por uma paternidade biolgica, mediante a maternidade tecnificada:
O no ter filhos, inclusive para aqueles que escolheram no t-los, pode ser uma fonte de tenso. Parentes e amigos
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Ver Marcia C. Inhorn & Frank Van Balen (2002) para uma comparao muito valiosa das concepes e tratamentos da infertilidade em nvel mundial.
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freqentemente esperam que um casal constitua uma famlia e manifestam esta expectativa de modo aberto ou velado (...). Alm da presso social para ter filhos, existe tambm para muitos o desejo intenso de perpetuar seus prprios genes atravs de uma nova gerao. Este desejo no pode ser satisfeito pela adoo (WARNOK, 1984: 8-9).
Mas em que se fundamenta este desejo intenso de perpetuar os prprios genes? Ser que tambm est nos genes? Apesar de que os processos biolgicos de procriao e o papel diferente que tm mulher e homem neles, por serem naturais, so universais, as noes de maternidade e paternidade associadas com concepes sobre a concepo resultam, no obstante, culturalmente variveis como a Antropologia o demonstrou. A distino analtica entre sexo e gnero pela teoria feminista teve sua utilidade na medida em que serviu, precisamente, para desarmar as racionalizaes biologicistas de sistemas de poder e de hierarquia de gnero que so manifestamente histricos. A dissociao do natural e, portanto, do universal e do imutvel das ordens simblicas arraigadas na cultura e, portanto, variveis permitiu conhecer a enorme diversidade histrico-cultural dos sistemas simblicos de gnero. Mas, ao prestar ateno privilegiada s construes simblicas de gnero, ficou pendente a pergunta fundamental com respeito qual , afinal de contas, a relao entre estas e as diferenas de sexo16 . Em um nvel puramente biolgico, as diferenas de sexo so inevitveis. Mas, ao ser uma dimenso da vida na sociedade, no tem sentido pens-las margem dela, pois de imediato adquirem significados scio-culturais e podem converter-se em potentes causas de dominao. Se, como assinalou Pascal, a natureza no mais do que uma primeira cultura, cabe ao menos duvidar de que o dismorfismo sexual e suas conseqncias tais como a maternidade e a paternidade na forma como estas so percebidas e vividas estejam dissociados
Phillips ressaltava, em 1992, que uma coisa advogar por incorporar a heterogeneidade e diversidade a nossas teorias da igualdade e da justia; muito diferente aceitar a diferena e reformular nosso pensamento a respeito dela, e sugeria que, apesar das dificuldades conceituais inerentes diferena entre sexo e gnero, necessitamos encontrar um modo de desentranhar diferenas que so inevitveis das que so escolhidas e daquelas que so simplesmente impostas (PHILLIPS, 1992: 23; Ver tambm STOLCKE, 2003: 69-96; 2004: 77-105).
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de significados culturais, inclusive quando aparentem aproximar-se realidade biolgica emprica17 . A prpria concepo do que natural relativa, na medida em que, como mostra a Antropologia, diverge segundo as culturas. O senso comum ocidental moderno singular no que diz respeito a distinguir o mbito da natureza, quer dizer, do que naturalmente determinado, inato, daquele da cultura, que entendido como criao humana em sociedade, como se tratasse de duas dimenses evidentemente diferentes da experincia humana. Contrastam com este arraigado dualismo, que subjacente tambm prepotncia ocidental de dominar a natureza, para ficar em um exemplo, as cosmologias amaznicas, que supem uma viso de continuidade entre o mundo humano e o no humano, dotando animais e plantas de traos humanos (DESCOLA, 1996: 62-67). Uma variabilidade cultural similar se encontra em concepes acerca da concepo e de noes de maternidade e paternidade. Na tragdia clssica grega La Oristada, Atena justificava seu voto a favor de Orestes quando este era julgado por haver dado morte sua prpria me em vingana pelo assassinato de seu pai por esta. Apolo explicava o acertado do voto argumentando que:
A me no a progenitora do que chamamos filho: apenas a ama de leite da semente que nela se semeou. Engendrador quem a fecundou; ela conserva s o broto, a menos que os deuses o murchem. A prova te darei de quanto digo: pode existir um pai sem que a me exista. E muito perto temos uma testemunha, a prpria filha de Zeus, rei do Olimpo. No foi gestada nas trevas de uma entranha materna, e, no entanto, que deusa conseguira dar luz a um rebento semelhante? (ESQUILO, 1979: 361).
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H bastante tempo, Pascal aludiu a essa indeterminao entre cultura e natureza na experincia humana ao ressaltar que o costume uma segunda natureza que destri a primeira. Mas o que a natureza? Por que o costume no ele mesmo natural? Eu muito temo que aquela natureza no seja, ela mesma, mais do que um primeiro costume, assim como o costume uma segunda natureza (LVI-STRAUSS, 1985: 1). E Martin mostrou, h pouco, como valores culturais de gnero influem na maneira como os cientistas plasmam o que descobrem sobre o mundo natural. Ainda que todos os manuais cientficos descrevam os rgos reprodutivos femininos e masculinos como sistemas de produo de substncias valiosas, tais como os vulos e os espermatozides, a fisiologia reprodutiva valorada de modo muito diferente, segundo se trate do homem ou da mulher. Um livro de texto descreve a menstruao, por exemplo, como uma desintegrao catica de matria, enquanto a produo de certos milhares de espermatozides e sua corrida por fecundar um vulo apresentada como uma proeza magnfica (MARTIN, 1997: 85-89).
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Essa noo clssica da concepo um dos exemplos mais acabados do ideal monogentico patriarcal. Um caso inverso ocorre com a noo de concepo trobriandesa, uma sociedade matrilinear do Pacfico ocidental descrita pelo distinto antroplogo Malinowski nos anos vinte, o exemplo mais clebre de um modelo monogentico feminino18 . Teorias semelhantes foram encontradas entre os aborgines australianos. Todas estas concepes negam a participao de um genitor masculino na fecundao, representando, assim, uma viso simetricamente aposta da doutrina apolnea. A doutrina apolnea entusiasmou os pensadores decimonnicos quando se afanavam por demonstrar a vitria da razo patriarcal sobre uma pretrita ordem natural matriarcal. A concepo trobriandesa que, por certo, nada tem a ver com o conhecimento emprico nativo dos processos biofisiolgicos da fecundao, mas que simboliza o princpio estrutural matrilinear suscitou rspidas controvrsias entre antroplogos que, at os anos 1960, a atriburam ignorantia paternitatis, da qual os primitivos deviam padecer ao aparentarem desconhecer o fato natural da paternidade. Do mesmo modo, esses antroplogos tampouco tinham percebido que o sistema de prestgio masculino mediante intercmbios de objetos de valor coexistia, entre os trobriandeses, com intercmbios funerrios e matrimoniais, por parte das mulheres, de importncia vital para essa sociedade (WEINER, 1976). Frente ao ideal tipicamente ocidental de imortalidade gentica, paradoxal, no obstante, que a fecundao assistida, ao tornar possvel a participao de terceiros e de quartos em um ato de fecundao, tenha posto em entredito essas noes biolgicas de filiao e de herana e, sobretudo, de paternidade, como acontece em especial no caso da fecundao por doador e no aluguel de tero. A maternidade se converteu, pelo contrrio, em mais natural. A vasta
Segundo a cosmoviso trobriandesa, depois da morte o esprito se translada ilha dos Mortos, onde goza de uma existncia prazerosa de eterna juventude. Quando um esprito se cansa desse perptuo rejuvenescimento, pode, no entanto, regressar ao mundo dos vivos. Ento, retrocede nos tempos e se converte em um pequeno menino no nascido. Estes meninos-espritos normalmente regressam s ilhas Trobriand com a ajuda de outro esprito. Como relata Malinowski, um menino flutua por cima de um tronco. Um esprito v que bonito. Ela (o esprito auxiliar) o recolhe. Ela o esprito da me ou do pai da mulher grvida. Ento, o menino colocado na cabea, nos cabelos, da mulher grvida que padece dor de cabea, de vmitos, e sente uma dor no ventre. Ento, o menino desce ao ventre e ela est realmente grvida. E ela diz: o menino j me encontrou; os espritos j me trouxeram o menino (MALINOWSKI, 1927: 31-32).
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literatura jurdica sobre a fecundao por doador trata principalmente da legitimidade da prognie, a situao jurdica do/da doador/a, e a responsabilidade do mdico19 . Quem se ope fecundao por doador costuma sair em defesa dos direitos do pai e/ou da criana, ignorando, pelo contrrio, os interesses das mulheres. Assim, em 1980, o jurista Balcells Gorina, do Opus Dei, repudiava a fecundao por doador porque opinava que, alm de que os bancos de smen significavam uma autntica desumanizao da paternidade, constitua adultrio (GORINA, 1980)! Esta preocupao em proteger a paternidade tem adeptos tambm entre juristas e o prprio Estado, pois, como se adverte, estas tcnicas dotam as mulheres de instrumentos para deslocar o marido20 . Com certeza, nem todos os juristas apoiariam controles reprodutivos em defesa de uma paternidade gentica normativa. Ainda assim, as comisses parlamentares europias que examinaram as conseqncias legais da fecundao assistida manifestaram uma clara preocupao por salvaguardar uma paternidade que tivesse, pelo menos, indcios de autenticidade, advogando, por exemplo, pela similitude fenotpica dos doadores com o pai! A Comisin Especial de Estudio espanhola introduziu, inclusive, um tipo de adultrio tecnolgico ao estipular que o homem de um casal estvel, cuja mulher tivesse realizado uma fecundao por doador sem seu consentimento, poderia renunciar (leia-se repudiar) o filho assim nascido, que seria, ento, registrado como sem pai21 . A fecundao in vitro permite tambm que um vulo de uma mulher, fecundado em laboratrio, seja implantado para sua gestao no tero de outra mulher, o que pode suscitar conflitos ps-parto entre estas mulheres, como demonstrou
Os casos de gravidezes mltiplas por fecundao in vitro eram conseqncia da implantao de vrios embries no tero da mulher para aumentar a possibilidade de gravidez. Segundo as normas atuais, para evitar gravidez mltipla, deve implantar-se apenas um dos embries em mulheres menores de 35 anos e trs ou quatro em mulheres de maior idade e, portanto, menos frteis, ainda que haja mdicos que implantem um nmero maior para assegurar o xito de uma fecundao in vitro (Annimo, Un embarazo de sextillizos...).
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Assim sustentava, por exemplo, um jurista alemo que o desejo de ter filhos prprios nasce de um desejo natural e original da maioria das pessoas (...), ainda que (...) a inseminao heterloga no costuma significar, em contraste com o adultrio, que a unio conjugal se rompa (...), sim que dissolve o vnculo que, segundo a Constituio, existe entre a unio sexual, a filiao biolgica e a adscrio social. indiscutvel que exista uma proteo constitucional do desejo de ter filhos se este desejo no se cumpre dentro do matrimnio e da famlia (...) Pode no ser aconselhvel uma tecnologia como a inseminao heterloga que dota as mulheres de instrumentos socialmente aceitas para descartar o marido (BALZ, 1980: 21-22).
A inseminao artificial de mulheres solteiras legal e se apia na Constituio, que probe a discriminao de mes solteiras e lhes permite a adoo (Congreso de los Diputados, 1986: 129).
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o clebre conflito jurdico em torno ao beb M. nos Estados Unidos acerca de quem era sua me. Mas a participao biolgica de ambas no processo de procriao dificilmente pode ser ocultada. As possibilidades reprodutivas que a fecundao assistida oferece, porm, tornaram o papel dos homens-pais mais precrio. Mas a biotecnologia parece ter encontrado tambm um remdio para estas dificuldades paternas. Passaram-se quase duas dcadas desde o nascimento da primeira beb de proveta, e a fecundao assistida avanou a passos gigantes, principalmente no campo da paternidade biolgica assistida. Quando estava procurando informao sobre clonagem, descobri que, em fevereiro 1997, nascia uma menina concebida graas combinao de duas tcnicas de vanguarda: o congelamento de um ovcito e sua inseminao mediante um espermatozide injetado no citoplasma. Essa nova tcnica de fecundao in vitro, denominada ICSI (IntraCytoplasmic Sperm Injection), permite que homens com esperma anormal, inclusive aqueles que so incapazes de produzir espermatozides maduros, podem procriar. Enquanto a fecundao da mulher com esperma de um doador era, at o momento, a nica opo que tinham casais em que o homem era infrtil, devido m qualidade ou ao baixo nmero de espermatozides, possvel agora, em tais circunstncias, que um homem procrie um filho biolgico mediante a injeo de um s espermatozide diretamente no ovcito. notvel, como me comentava um mdico que trabalha no campo da fecundao assistida, que haja homens que estejam dispostos a submeter-se a at oito intervenes cirrgicas para extrair um s espermatozide de seus testculos. O desenvolvimento e a ampla aceitao da ICSI no uma mera questo biotecnolgica. Tem a ver, como ressaltou o geneticista francs Alex Kahn,
(...) com o poderoso avano social e psicolgico atual de um desejo fantico por parte dos indivduos no apenas de ter filhos, mas de assegurar que estes filhos estejam dotados de seus prprios genes, ainda quando se interponha o obstculo da infertilidade (...). Caracteriza a sociedade atual uma crescente demanda pela herana biolgica, como se esta fosse a nica forma de herana que merece tal nome. Uma razo
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que a personalidade dos indivduos, lamentavelmente, se percebe cada vez mais como determinada primordialmente pelos genes (KAHN, 1997)22 .
Esta concepo bio-genealgica da filiao e este desejo de uma paternidade e maternidade genticas soam familiarmente eugnicos. O que tem de novo esta vitria biotecnolgica da paternidade biolgica e, como sugeriu Fox Keller, um individualismo eugnico acentuado (FOX KELLER, 1992: 291-293). Mas, ainda que com a ICSI, um s espermatozide seja suficiente para que um homem procrie, os corpos das mulheres, com seus teros e ovcitos, continuam sendo imprescindveis para uma paternidade biolgica. A ateno miditica que a criao da ovelha Dolly atraiu se concentrou primordialmente na clonagem reprodutiva. Mas, ante o alarde social e moral que provocou a possibilidade de clonar seres humanos, se difundiu, nos crculos cientficos, uma distino taxonmica entre clonagem reprodutiva por exemplo, de seres humanos completos e a clonagem teraputica de embries com fins curativos, mediante a obteno de clulas germinais para o cultivo de tecidos e de rgos para transplantes. Esta distino , no obstante, apenas aparente, na medida em que ambos os procedimentos biotecnolgicos so idnticos, salvo quando se implanta o embrio clonado no tero para se obter um organismo maduro completo. A intensa controvrsia que est tendo lugar sobre a investigao com embries humanos evidncia deste temor de que inclusive a clonagem teraputica possa conduzir a uma clonagem reprodutiva. E, em outro giro lingstico mais recente, os pesquisadores substituram a noo de clonagem teraputica pela de SCNT (transferncia nuclear de clula somtica), que descreve o procedimento, mas evita a conotao ominosa da clonagem, ou simplesmente transferncia nuclear. Agora, a condio limite para a clonagem, em geral, a de disponibilidade de ovcitos. E a experimentao em biologia molecular, o desenvolvimento da biotecnologia e de novos procedimentos de engenharia gentica individual requerem, todos eles, para criar
Axel Kahn o diretor do laboratrio INSERM para a Pesquisa sobre Patologias Genticas e Moleculares do Instituo Cochim de Gentica Molecular de Paris. Este artigo foi encomendado pela revista Nature para acompanhar a publicao em web dos artigos da revista sobre a clonagem de ovelhas.
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embries, de ovcitos que so escassos. Em 1971, James Watson que, junto com Crick e Rosalind Franklin, decodificou, h exatamente cinqenta anos, a estrutura molecular do DNA lamentava-se ainda que o passo decisivo da embriologia humana a saber, o desenvolvimento extracorpreo do embrio tenha lugar no tero inacessvel de uma fmea humana. Como ressaltava Watson, ali cresce o feto praticamente fora do alcance de quase qualquer manipulao, exceto no caso de aborto. J naquela poca, Watson confiava, no obstante, que os pesquisadores conseguiriam, em breve, penetrar no espao protegido do tero feminino. Isto permitiria embriologia no s realizar uma grande variedade de experimentaes, mas tambm inauguraria uma corrida frentica para conseguir a manipulao experimental de ovcitos humanos, uma vez que estes teriam sido convertidos em uma mercadoria de fcil obteno (WATSON, 1971: 51-52). Watson foi proftico com respeito manipulao biotecnolgica do processo de procriao, mas se equivocou com respeito disponibilidade de vulos. A experimentao com embries est na ordem do dia; mas, como os ovcitos so imprescindveis para criar embries, estes ltimos se converteram em vulos de ouro. Desde que se tornou possvel o congelamento de ovcitos, so cada vez mais freqentes os anncios que apelam ao altrusmo feminino, ao solicitar a mulheres que ajudem outras mulheres a ter filhos doando vulos para a fecundao assistida em troca de recompensa monetria pelas molstias que a colheita de vulos implica. Estes anncios so pouco explcitos, no obstante, com respeito aos procedimentos mdicos requeridos a saber, uma intensa estimulao hormonal com o fim de obter ao menos seis ou sete vulos. A soma estipulada como recompensa igualmente equvoca, pois esta se fixa por colheita, em lugar de recompensar-se cada vulo, o que pode significar precisamente uma corrida para obter quantos mais vulos melhor. legtima, alm do mais, a dvida com respeito a se a demanda de vulos doados se deve exclusivamente fecundao assistida ou se responde tambm s necessidades da experimentao embriolgica em geral. Reveladora a este respeito a recente notcia aparecida em El Pas de que uma equipe cientfica da Universidade de Pensilvnia (EUA) conseguiu gerar um cultivo de vulos de clulas germinais
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embrionrias de ratos ressaltando que, se os resultados obtidos (...) podem repetir-se em humanos, as doaes de vulos deixaro de ser um fator limitante para investigar a clonagem teraputica, e talvez tambm para conseguir gravidez em mulheres com deficincias de ovulao (SAMPEDRO, 2003)23 . Em suma, peas-chave da investigao no campo da embriologia e da medicina reprodutiva mediante o desenvolvimento da biotecnologia so o corpo e o material reprodutivo das mulheres. Como ressaltei previamente, as novas tecnologias reprodutivas costumam aplicar-se, primeiramente, na criao de gado. Referindo-se clonagem de gado, o Dr. Alain Nivot, chefe do laboratrio francs Procrea FIV chamava a ateno, j em1997: os pecuaristas necessitaro de teros, mais ainda que na fecundao in vitro ou na transferncia de embries, e, portanto, necessitaro de vacas, mas os machos no sero mais do que animais a copiar, modelos que se compraro por unidade (DUPARCQ, 1997)24 . Este fantico desejo de imortalidade atravs de uma prole do prprio sangue est inspirado em uma concepo cultural biologista do parentesco e da maternidade e da paternidade como vnculos de naturais que tipicamente ocidental25 . Encontra-se estreitamente vinculada, como ressaltei em outra ocasio, com a naturalizao da identidade social na sociedade de classes, refletida em doutrinas tais como o darwinismo social, a eugenia, o racismo clssico, a sociobiologia (STOLCKE, 1992). Mas, enquanto a metfora familiar tradicional era a de sangue, no imaginrio contemporneo parece ser como se os genes fossem os portadores da identidade das pessoas. Ante esta viso familiar gentica, no de se surpreender que a questo sobre o que constitui a identidade de uma pessoa ocupe um
Em agosto de 2005, cientistas nos EUA informaram que haviam aberto una via para criar clulas germinais sem usar embries (nem vulos): ...Hay que seguir investigando en la clonacin teraputica, pero la ventaja de la nueva ruta (el cultivo de clulas similares a las embrionarias a partir de muestras de piel) es que no necesita vulos. No lo digo por motivos religiosos o ideolgicos, sino porque los vulos son caros, hay pocos y son difciles de manejar genticamente... (El Pas, 23 de agosto de 2005).
23 24 Em julho do presente ano, foi anunciado, inclusive, el esperma sin macho. Como informava El Pas: Cientficos britnicos logran crear espermatozoides a partir de clulas madre obtenidas del embrin de un ratn. (12 de julho de 2006). 25
Um exemplo disso o caso recente do desejo de uma mulher inglesa de ser fecundada com o material reprodutivo do marido morto (FERRER, 1997).
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lugar destacado no debate sobre as perspectivas de clonagem em humanos. Assim, um jornalista alemo pode perguntar a Wilmut se Dolly no era, de certo modo, uma reencarnao da ovelha adulta doadora do material gentico (Annimo, Jetzt..., 1997). Ainda que esta pergunta fosse seguramente capciosa, ela evidencia supostos identitrios geneticistas implcitos. No deixa de ser irnico a este respeito que quem se ope a que a clonagem em humanos seja proibida por lei, com o propsito de desacreditar os receios daqueles que denunciam seu abuso potencial, denunciando precisamente as iluses deterministas genticas, professem dvidas com respeito a que a identidade em humanos seja geneticamente predestinada (MARIO, 1997: 1-6; NEWMAN, 1997: 488). Como argumentou um defensor destas biotecnologias, se Einstein tivesse sido criado em uma tribo amaznica, seguramente no teria chegado a ser o gnio da fsica que foi. A imagem ocidental da mulher primordialmente como me est associada com a da hegemonia determinista gentica. Esta concepo da mulher, cuja essncia estaria determinada por sua faculdade procriadora, insere-se em um entorno ideolgico no qual as estruturas de poder tpicas da sociedade liberal de classes so neutralizadas politicamente, sendo interpretadas como dados da natureza, em um contexto do saber no qual a natureza entendida como a fonte ltima da verdade. O paradoxo central do liberalismo moderno consiste precisamente em que, quanto mais se exalta a unidade humana, a igualdade de oportunidades e a liberdade dos indivduos, tanto mais acentuada a suposta natureza das mltiplas desigualdades sociais, que so atribudas a diferenas biolgicas reais ou inventadas (ver GOLDBERG, 1993). Esta uma manifestao da profunda tenso na sociedade liberal de classes entre uma tica universalista, segundo a qual o sujeito se faz a si mesmo, livre de determinaes naturais, e as insuperveis desigualdades sociais. A tica meritocrtica liberal, ao atribuir a condio e os privilgios sociais a supostas deficincias ou mritos inatos, outorga s mulheres o papel fundamental de mesreprodutoras das diferenas de mrito, quer dizer, das desigualdades sociais. Pois mater semper certa est, ou, como bem diz o provrbio brasileiro: me tem uma s, pai tem em cada esquina. Para assegurar uma paternidade singular e exclusiva, preciso o controle da
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maternidade 26 . A proeminncia do tero, receptculo da semente masculina nas representaes vitorianas do corpo feminino, pertence ao argumento segundo o qual as mulheres estariam governadas e definidas por sua faculdade procriadora natural, sendo o homem-pai, pelo contrrio, a quinta-essncia da razo humana. (POOVEY, 1986: 145). Ainda que a sociedade de classes no tenha mudado em sua essncia, a revoluo sexual do ps-guerra e a contracepo parecem ter destrudo, pelo menos nos pases ricos, todo este emaranhado de controles do corpo das mulheres, enquanto a clssica famlia nuclear monogmica est se descompondo a olhos nus. At certo ponto, isto certo. Neste mundo neoliberal e em uma sociedade cada vez mais competitiva e individualista, fragmentada pela diviso do trabalho, agora em nvel global, em uma infinidade de funes organizadas de modo hierrquico, o mrito e a funo individuais so concebidos como a base mesma da posio social. Precisamente pela suprema importncia que se d ao desempenho pessoal, o lugar que o indivduo ocupa na diviso do trabalho social e as desigualdades sociais se atribuem, contraditoriamente, talvez mais do que nunca, sua dotao e/ou a seus talentos naturais. Os determinismos genticos atuais so evidncia disto27 . Nas sociedades industriais avanadas, as mulheres tendem a ser definidas agora de forma imediata por suas caractersticas sexuais como mes, quer dizer, como as outras, incomensurveis aos homens em um sentido essencial gentico28 . A crescente gama de tecnologias reprodutivas que esto disponveis no mercado alimenta essas convices biologicistas e genticas. As mulheres so consideradas
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Essa imagem da mulher-me, cuja essncia residiria em sua faculdade procriadora, refletida por aquele mdico vitoriano ingls, para quem parecia como se o Todo-poderoso, ao criar o sexo feminino, tivesse pegado um tero e tivesse construdo uma mulher em torno a ele (POOVEY, 1986: 145).
27 Assim, a revista New Scientist informava, em 1997, que um estudo de 240 pares de gmeos idnticos suecos, de pelo menos oitenta anos de idade, havia mostrado que, apesar de uma longa vida cheia de vivncias diversas, havia um 62% de variao em suas atitudes cognoscitivas gerais que poderia ser atribudo a fatores genticos, de modo que depois de oitenta anos ou mais de condicionamento, pelo entorno social, a natureza emerge de forma crescente (HOLMES, 1997: 16). Os meios de comunicao tendem, alm do mais, a vulgarizar estes achados cientficos alimentando preconceitos geneticistas. El Pas publicou tambm esta notcia (Annimo, La gentica influye ...).
A revista Nature informava, em 1997, sobre um estudo segundo o qual as melhores atitudes sociais das mulheres, em contraste com os homens, teriam uma base gentica (MCGUFFIN & SCOURFIELD, 1997: 652).
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agora inferiores aos homens em si mesmas, pois, devido sua funo natural como mes, so supostamente incapazes de competir no mercado com eles como diferentes/iguais. A dupla carga das mulheres que trabalham por um salrio, a discriminao no mercado de trabalho, os salrios desiguais, as dificuldades das mulheres para participarem na poltica, assim como o apelo para que as mulheres regressem ao lar para solucionar a crise do Estado de Bem-Estar, ilustram esta situao (STOLCKE, 1992: 87-111). Os contraceptivos dissociaram o sexo da procriao e nos permitem maior liberdade para gestionar nossas faculdades procriadoras. As novas tecnologias conceptivas confundem as tradicionais noes de filiao. O mais recente giro biotecnolgico acentua as diferenas de sexo. As novas tcnicas reprodutivas convertem os teros e os ovcitos no bem mais apreciado e precioso e os dissociam das pessoas a quem pertencem. A oposio clonagem em humanos se centra no risco que ela implica para a biodiversidade e no fato de que atenta contra a dignidade das pessoas ao transformlas em meios, em lugar de fins. Aqueles que defendem os avanos nas tcnicas reprodutivas e na clonagem ressaltam seus benefcios para o diagnstico de doenas hereditrias, para a produo de novos frmacos e de rgos para transplante e para a engenharia gentica. Mas, enquanto um microbilogo britnico, por exemplo, celebrava o mrito do debate sobre a clonagem em pr freio tendncia atual de exagerar o determinismo gentico (POSTEL-VINAY & MILLET, 1997: 547), o bilogo francs Kahn advertia precisamente que o desejo fantico de ter filhos genticos poderia converter-se na razo mais poderosa para permitir a clonagem em humanos, como mtodo para solucionar a infertilidade masculina, no caso de homens que carecessem de esperma devido displasia ou grave atrofia testicular:
Aplicando a tcnica utilizada por Wilmut em ovelhas diretamente a humanos, se criaria um clone de pai. No obstante, para a mulher o ato de gestar um feto pode ser to importante como ser sua me biolgica. O extraordinrio poder de tal reapropriao materna evidente na forte demanda de gravidez por parte de mulheres ps-menopusicas, e pela doao de ovcitos e embries para curar a infertilidade feminina (...). Isto sugere que, provavelmente, no podemos
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desestimar a possibilidade de que a opinio pblica se dispor a legitimar o uso da clonagem em casos em que o homem de um casal seja incapaz de produzir gametas (KAHN, 1997)29 .
Ainda que as novas tecnologias contraceptivas e conceptivas tenham brindado s mulheres, ao menos nos pases ricos, maior liberdade para decidir sobre nossos corpos, reforaram tambm a maternidade como destino e responsabilidade das mulheres. As gravidezes de mulheres ps-menopusicas parecem sugerir uma estreita associao entre plenitude existencial como mulheres e maternidade (KOLATA, 1997b: 1 e 11). Em um sentido mais amplo, as tcnicas reprodutivas se converteram em instrumentos tecnolgicos a servio de interesses que, com freqncia, no so os nossos. As polticas de controle de populao implementadas no Terceiro Mundo, por exemplo, dirigem-se quase exclusivamente s mulheres. A ICSI, como novssimo mtodo de curar a esterilidade masculina, igualmente instrumentaliza os corpos das mulheres. Ao eliminar a fecundao sexual, a clonagem acentuaria esta tendncia. Mas h mais. Paradoxalmente, a clonagem desafia a prpria concepo monogentica patriarcal ocidental de procriao ao tornar, por fim, patentemente imprescindveis as mulheres na procriao. A clonagem introduziria um procedimento de concepo inversamente monogentico, quer dizer, centrado na mulher-me, fragilizando o homem da maneira mais radical, como j advertia aquele jurista alemo. Ao converterem-se, assim, nas reprodutoras por excelncia, tornar29 A Comisso Nacional Assessora em Biotica (National Bioethics Advisory Commission) dos Estados Unidos, convocada pelo presidente Clinton para propor polticas sobre clonagem humana, escutou uma ampla gama de opinies de cientistas e bioticos que abarcavam desde chamadas a que se considerasse a clonagem simplesmente como uma forma a mais de reproduo assistida, at graves preocupaes por parte de ativistas na defesa dos direitos e do bem-estar dos animais. Enquanto Kass, professor de pensamento social da Universidade de Chicago, sustentava que a clonagem humana seria impossvel sem realizar experimentos antiticos e apresentava uma ameaa inadmissvel para a identidade e individualidade humanas, dois especialistas em biotica argumentavam que seria inaceitvel proibir a clonagem por significar uma proibio liberdade cientfica e reprodutiva protegidas ambas pela constituio dos Estados Unidos. Deveria protegerse a clonagem do mesmo modo que outros mtodos no-coitais de reproduo assistida (US senators urge caution on cloning ban, 1997).
Por outra parte, h indcios de que o desejo de ter filhos genticos pode tambm dar margem a todo tipo de fraudes difceis de controlar. Uma seita religiosa internacional, denominada Movimento Raeliano, que acredita que a vida na Terra foi criada por extraterrestres, criou uma empresa chamada Clonaid para promover a pesquisa em clonagem humana e oferecer a seus clientes, por 200.000 dlares, a possibilidade de clonarse, ainda que sem garantia de xito (COHEN, 1997: 12; Annimo, A triumph of hope...). Segundo El Pas, esta seita est oferecendo, por internet, produzir filhos por clonagem a casais infrteis ou homossexuais, atravs de uma companhia com sede nas Bahamas (Annimo, Una secta...).
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se-ia bastante mais difcil representar as mulheres como meras gestantes das substncias genticas masculinas. Mas essa potencial conceptualizao monogentica feminina da procriao, ao dotar de especial valor reprodutivo as mulheres como portadoras de teros e ovcitos, pode ter conseqncias perversas. A contrapartida deste apoderamento materno seria, por uma parte, o controle mdico e, por outra, o controle dos homens. O caso mencionado por Kahn da criao de um clone de pai o ilustra bem. Esta nova proeminncia como responsveis privilegiadas da procriao, resultante da feminilizao simblico-tecnolgica da procriao, pode desembocar em novos controles por homens que so pais frustrados, por cientistas, pelo Estado em escala mundial, se no se alterarem as estruturas de poder sociais, internacionais e cientficas vigentes. A clonagem de humanos sem prazer e sem espermatozides, como apontava Franois Jacob ser seguramente, durante anos, uma operao complexa, ainda que a biotecnologia faa grandes progressos. Cientistas dos Estados Unidos e do Japo conseguiram, ambos, clonar bezerros e outros mamferos (Annimo, Cientistas...). Mas o decisivo que nossa concepo biolgica do parentesco, junto com esse reduto de convices eugnicas, so um solo frtil para estes avanos biotecnolgicos. Porm, como o Dr. Nivot advertia com respeito aos riscos para a biodiversidade na criao de gado, ainda que se conseguisse uma boa taxa de xito na clonagem, seria necessrio, de todas as maneiras, continuar criando raas rsticas para recuperar velhos genes e realizar novas mestiagens, adaptadas evoluo do mercado. Isto resulta tranqilizador (DULARCQU, 1997). Cabe perguntar-se quem procriaria e quais seriam essas raas rsticas reserva dos genes antigos em humanos. Assim, na Espanha, por exemplo, dezenas de mulheres imigrantes se oferecem atravs da Internet como doadoras de vulos sob prvio pagamento que oscila entre mil e trs mil euros representado como compensao, j que o comrcio com material reprodutivo ilegal (El Pas, 30 de julho de 2006: 34). Outras imigrantes se anunciam por Internet como mes de aluguel, cedendo seu tero por cerca de quinze mil euros. Uma destas mulheres bolivianas explicava que veio Espanha porque no tinha trabalho em seu pas e no podia criar sua filha. Os casais interessados costumam viajar ao pas da me de aluguel, onde se
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realizar o processo, pois na Espanha no permitido (El Pas, 30 de julho de 2006: 33). Concluindo, deveria ter ficado claro que as novas e novssimas tecnologias reprodutivas constituem um dos pontos crticos para onde converge o determinismo gentico de hoje com os pressupostos culturais e polticos vigentes. As diferenas de sexo e suas conseqncias para a procriao constituem o substrato que o pensamento simblico trabalha e transforma, engendrando uma multiplicidade de sistemas de concepo e de parentesco histricos (HERITIR, 1996). Mas o desenvolvimento das biotecnologias no um mero fenmeno cultural devido ao af tipicamente ocidental por conhecer e controlar os segredos da vida. O determinismo gentico impulsiona o avano das biotecnologias que, por sua vez, transformam esse substrato material, a concepo sexual. Ao abrirse uma nova brecha tecnolgica, podem surgir graves conseqncias, em especial para as mulheres, devido s possibilidades que essas novssimas tcnicas prometem para a procriao humana alentadas por interesses e por desejos configurados pelas relaes de poder e de gnero vigentes. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ANNIMO. A special report on cloning. In: Time, 10 de maro de 1997 (pp. 36-49). ANNIMO. A triumph of hope..., editorial. In: New Scientist, 31de maio de 1997 (pp. 3). ANNIMO. Biotechnology: betting on the genome. The genomics gamble. In: Science, 275; 1997 (pp. 767-775). ANNIMO. Caught napping by clones. In: Nature, 385; 1997 (http://www.nature.com/Nature2). ANNIMO. Cientficos de Estados Unidos y de Japn clonan dos terneros. In: El Pas, 8 de agosto de 1997 (pp. 19). ANNIMO. Dollys parents want patent - with human cloning included. In: CNN, 8 de maio de 1997, http://www.yahoo.com/.
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CRUZADA POR JUSTIA SOCIAL: MORTE SOB CUSTDIA, REVOLTA E BAILE EM PALM ISLAND (UMA COLNIA PUNITIVA NA AUSTRLIA)1
BARBARA GLOWCZEWSKI CNRS/LAS, Frana James Cook University, Austrlia2
A pesquisa que estou apresentando hoje faz parte de um programa internacional que acabamos de criar com pesquisadores franceses, australianos e brasileiros sob o ttulo Antropologia da percepo: produes de alteridade pela mdia, pelas cincias e pelos atores envolvidos.3 Procuramos identificar a maneira como essas trs instncias de discurso mdia, cincias, atores servem-se de imagens para fabricar diferenas. Os atores freqentemente reivindicam uma alteridade outra que aquela que a mdia e as cincias projetam sobre eles. Estou falando aqui tanto dos aborgines e de outros autctones quanto dos atores das periferias francesas, ou de toda populao territorializada ou desterritorializada, que so objetos de uma estigmatizao miditica, social ou poltica. Qual o lugar dos antroplogos diante das contradies que surgem com freqncia na apresentao de tenses sociais tais como so analisadas pela mdia, pelas cincias ou pelos atores implicados?
Conferncia pronunciada na 25 Reunio Brasileira de Antropologia, na cidade de Goinia (GO), Brasil, no dia 15 de junho de 2006 (Traduo de Mariana Joffily; reviso de Fernanda Cardozo).
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Essas contradies so freqentemente fundadas sobre um malentendido: as diferenas sociais, culturais, religiosas ou raciais so geralmente pensadas como um problema a ser ultrapassado ao preo de sua negao. Ora, a Antropologia nos lembra, atravs da riqueza das criaes humanas que ela estuda, que preciso, ao contrrio, aceitar a diversidade cultural que to essencial quanto a biodiversidade. A resposta s injustias sociais no apenas de ordem ideolgica: , antes de tudo, uma questo de anlise de prioridades, e de oferecer dispositivos sociais nos nveis local, nacional e internacional que permitam s vtimas afirmar-se como sujeitos em posse de sua liberdade de tomar decises e de cuidar de si prprios: o empowerment. Hoje em dia, se existem atitudes inventivas de todos os discriminados do mundo, elas so sistematicamente passadas pelo moedor de carnes da mdia, dos poderes pblicos ou de instituies e de ONGs humanitrias que tentam manipular, desviar, at confiscar esses espaos de ao dos atores em questo. Tornei-me uma advogada, ao longo dos anos, daquilo que chamo de uma antropologia das redes, com uma abordagem reticular, na qual preciso mudar constantemente de posio para examinar a configurao de uma situao social e abord-la tal qual uma teia de aranha. Os pontos de observao da Antropologia so hoje, mais do que nunca, definidos pelo cruzamento dos diferentes olhares de produtores de imagens: mdia, cincia ou atores. No contraste das posies de enunciao, emergem efeitos de sentido e de no sentido, que podem, s vezes, cristalizar-se em injustias flagrantes, que iluminam processos ao mesmo tempo estruturais e conjunturais de discriminao. Para analisar essas discriminaes, a implicao no me parece apenas uma questo de tica que repousaria sobre uma compaixo ou um fenmeno de identificao com os autores observados; trata-se, sobretudo, para mim, de uma questo de integridade, que, em vinte e sete anos de pesquisa, se tornou praticamente existencial: no posso continuar a fazer Antropologia se esse trabalho de investigao no me parece til. O que produzimos como antroplogos deveria servir aos atores em questo, com os quais um acordo de pesquisa oficial ou oficioso deve ser estabelecido assim que se comea a trabalhar em conjunto. Trata-se no propriamente de uma Antropologia aplicada, mas de
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um observatrio social e de um alerta. A pesquisa antropolgica, dessa maneira implicada, deve engajar-se num debate com todas as disciplinas que se apiam sobre a Antropologia passada freqentemente um pouco fora do tempo, segundo a expresso de Nicholas Thomas para construir seus paradigmas. Em terceiro lugar, o trabalho de investigao antropolgica deveria dirigir-se a todos os pblicos no pas observado e fora dele: precisamos todos de mltiplos esclarecimentos sobre as situaes locais para poder deslocar nossos preconceitos dentro da apreenso do global em que estamos inseridos. O Campo de Pesquisa Australiano: polcia e justia em relao aos aborgines Acabei de passar dezoito meses em Townsville, cidade do nordeste da Austrlia, de onde partem numerosos soldados australianos, mobilizados no Iraque, ou como mediadores dos conflitos do Pacfico. Sete mil soldados americanos tambm foram l treinados em 2005. A vinte minutos de avio ou a duas horas de barco, encontrase a ilha de Palma, onde residem em torno de trs mil aborgines, que vm regularmente para a cidade fazer suas compras ou visitar seus familiares no hospital ou na priso. Mais de 70% da populao encarcerada na cidade so, de fato, aborgines: a maioria dos prisioneiros est l por delitos menores, como embriaguez. No dia 19 de novembro de 2004, na ilha de Palma, a morte sob custdia de um aborgine, Mulrinji Doomadgee, preso algumas horas antes por embriaguez, provocou uma agitao miditica e o apoio de personalidades internacionais. A populao da ilha reunia-se todos os dias na praa pblica com a esperana de obter o resultado da autpsia e de que fosse aberta uma investigao a respeito dessa morte. Ao final de uma semana, chegou um relatrio que foi lido pela prefeita aborgine diante da populao reunida: a vtima havia morrido de uma perfurao do fgado e apresentava quatro costelas quebradas ferimentos devidos, segundo a polcia, a uma queda sofrida durante a deteno. Os mdicos especialistas diriam, mais tarde, que uma queda no poderia explicar a gravidade do estado da vtima. A prefeita, que anunciava essa notcia, tinha perdido seu prprio filho sob custdia,
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alguns anos antes, sem que a investigao tivesse chegado a qualquer resultado. Pessoas ligadas vtima tomaram a palavra no microfone para pedir justia. Um grupo, revoltado, iniciou uma passeata rumo delegacia da ilha. Essa passeata foi logo classificada como uma revolta. De acordo com o delegado chamado mais tarde como testemunha de acusao, ela reunia em torno de noventa crianas, sessenta mulheres e perto de trinta homens, que comearam a jogar pedras sobre o teto da velha barraca que servia de delegacia policial. Um incndio foi identificado na residncia de um policial, vizinha da delegacia. Imagens gravadas pela polcia no interior da delegacia mostram os agentes em pnico, carregando suas armas sob o barulho de pedras caindo no teto. Depois, gritando assustado, um jovem policial pede a seu chefe que no saia do posto para no ser morto. O delegado acabara de aceitar o convite para negociar com um homem aborgine, situado atrs da grade fechada do ptio do recinto policial. Assim que o agente deixou o prdio para ir ao seu encontro, as pedras pararam de cair. Todas as testemunhas disseram no tribunal que bastou que esse aborgine estendesse a mo para que todos se acalmassem. Ele pediu que os policiais evacuassem a delegacia e deixassem a ilha. Os policiais deixaram o posto policial, que queimou em chamas, e dirigiram-se ao hospital para pegar um avio, sem que houvesse reao agressiva por parte da populao. Em seguida, vimos as imagens na sala do tribunal, mostrando os policiais andando muito tranqilamente, sem correr como aconteceu nas manifestaes de Paris. Nas horas seguintes, chegou a Townsville uma brigada de interveno de urgncia, vestida para o combate. Logo antes do amanhecer, enquanto todo mundo dormia, foi organizada uma operao para entrar fora na casa de algumas famlias e prender dezessete pessoas. Nos dias seguintes, uma centena de depoimentos foi solicitada; e outros aborgines, presos. O paradoxo aqui que a capacidade daquele que conseguiu parlamentar com o delegado, de obter a calma, transformou-o em bode expiatrio. Ao ser preso, ele foi o nico a receber uma descarga eltrica do oficial de brigada de interveno, embora tivesse sado de sua casa com as mos levantadas, sem oferecer nenhuma resistncia. O oficial confessa, durante as audincias no tribunal, ter ficado muito surpreso com a reao do acusado descarga
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eltrica de sua arma: ele deveria ter cado de dor e, no entanto, no se moveu. O promotor dispunha de trs tipos de documentos filmados, que os acusados de revolta comentaram em sua defesa durante as audincias: 1) as imagens gravadas pelos policiais, 2) outras cenas gravadas no momento por um jovem aborgine, 3) imagens veiculadas pela televiso. Durante as audincias de inquirio, cada testemunho deveria colocar as fitas de vdeo no aparelho, par-las ou faz-las avanar de acordo com os pedidos do juiz, do procurador ou dos advogados, que recebiam instrues dos prprios acusados, procura de rostos e de locais cujo significado se tratava de decodificar com a ajuda dos outros indcios. De tanto repetir essas imagens, as testemunhas arroladas acabavam sendo desmentidas, e os acusados saam parcialmente inocentados, suscitando a simpatia da sala, principalmente em razo de seu senso de humor. Vrios interrogatrios revelaram que as testemunhas de acusao no se exprimiam da maneira afetada que se lia em seus depoimentos. Os advogados dos revoltosos questionaram, assim, as condies dentro das quais esses depoimentos haviam sido recolhidos e assinados. Algumas testemunhas de acusao pediram para reler seus depoimentos que haviam sido feitos ou pouco depois da revolta (trs meses antes da audincia) ou mais recentemente , mas emaranharam-se em contradies e foram, por sua vez, acusadas pelos advogados de defesa de estarem pura e simplesmente mentindo. Assim, uma testemunha de acusao que declarava no ter participado da revolta aparecia na tela, graas a uma pausa da imagem mostrando a multido da revolta. Uma outra testemunha denunciava um acusado vestido com uma camiseta amarela, enquanto o filme mostrava que essa pessoa estava vestida, naquele dia, com uma camiseta vermelha, etc. As imagens registradas pela jovem aborgine seguem uma multido de pessoas nas ruas do vilarejo da ilha observando a delegacia em chamas: um grupo de aborgines se agita em torno do caminho de bombeiros para tentar apag-lo, mas no consegue, porque a mangueira versa apenas um magro fio de gua. Um vazamento ocorrido naquela manh no fora estancado. Nem as imagens do jornalista nem as dos policiais mostram algum aborgine tentando acender o incndio que destruiu a delegacia. Alm disso, nenhuma
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das noventa testemunhas de acusao da revolta designou um responsvel. significativo que as imagens mobilizadas pelo promotor, como provas da culpabilidade dos suspeitos, tenham acabado servindo defesa. O desafio aqui analisar e compreender o estatuto de verdade das gravaes que cada autor de imagens e seus intrpretes, aborgines ou no, projetam. Interrogados no tribunal sobre suas aes, os policiais apareceram na condio de atropelados pelos acontecimentos, destitudos de sangue frio e de profissionalismo. Esse diagnstico foi confirmado quando foi feita uma investigao judicial sobre as condies da morte sob custdia. Os responsveis da brigada de interveno que efetuaram as prises dos revoltosos horas aps a revolta reconheceram no tribunal que sua chegada e interveno na ilha no eram realmente justificveis. O exame da morte sob custdia mobilizou, igualmente, as imagens: a cmera de segurana instalada dentro da clula filmou os vinte minutos de agonia da vtima deitada sobre o solo. O policial responsvel pela deteno entra e d um pontap em sua vtima para verificar o seu estado e depois sai, tomado de pnico, sem pensar em fazer uma respirao artificial, pois de acordo com sua confisso no tinha sido recentemente treinado a faz-la. De acordo com o mdico convocado cela, a interveno durante esses minutos cruciais teria permitido que a vtima fosse salva. A investigao foi interrompida por meses para examinar o dossi anterior desse policial com dezenas de queixas e foi retomada em abril de 2006. Esse caso poderia criar um precedente: nenhum policial na Austrlia foi condenado por violncias. Townsville conheceu um caso de Ku Klux Klan, com soldados divulgando uma foto humilhante na imprensa e publicando declaraes degradantes num site da Internet. Os aborgines so regularmente vtimas de abusos: uma brincadeira adolescente consiste, por exemplo, em acelerar um carro durante a passagem de um aborgine. Um jovem colegial foi, dessa maneira, atropelado, e o motorista foi condenado a apenas quatro meses de priso: a famlia da vtima acabou de criar a fundao Wyle, para agir em favor do respeito aos direitos humanos. Nesse clima de tenses raciais, muitas comunidades aborgines encontram-se num estado de deteriorao insustentvel: depresso,
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alcoolismo, drogas variadas, inalao de gasolina pelas crianas, brigas e estupros. A autodestruio atinge propores alarmantes, tanto pelas doenas e suicdios quanto pelas violncias cometidas contra os familiares. A resposta dos diversos servios governamentais particularmente nos nveis da sade, da educao, da polcia e da justia freqentemente inadequada e est em crise. A polcia regularmente suspeita de abuso; e outras investigaes judicirias, na seqncia de dezenas de mortes sob custdia, no deram em nada. A inflao de injustias sociais inscreve-se dentro de uma longa e dolorosa histria colonial que mostra que os aborgines sofreram e, em certos casos, continuam sofrendo um verdadeiro genocdio4 . Palm Island, uma colnia punitiva transformada em um laboratrio social: a greve de 1957 Palm esteve no corao da atualidade, nos anos 1990, quando, aps a longa pesquisa de Roslyn Poignant (mulher do fotgrafo Axel Poignant), foram identificadas, em um museu americano, as ossadas de um aborgine que fazia parte de um grupo de nove pessoas que haviam sido seqestradas da ilha em 1883 para serem exibidas como animais em um circo ambulante atravs do mundo durante trs anos. Outros membros morreram no decorrer da turn e nunca foram reencontrados, entre eles o menino mais jovem, desaparecido em Paris. Foi preciso esperar at 1996 para que os restos do homem morto nos Estados Unidos fossem encontrados e para que as ossadas fossem oficialmente restitudas por esse museu s famlias originrias de Palm. A restituio serviu de pretexto para a organizao de uma cerimnia funerria implicando, entre outras coisas, o rito do smoking, um fogo perfumado com a funo de fumigar os locais e os participantes para proteg-los do esprito do morto e garantir, a este, a paz de repousar na terra e no alm. A histria da famlia roubada de Palm, que dormia em jaulas e era obrigada a comer carne crua para agradar aos visitantes, foi objeto de uma exposio itinerante, Captive Lives, apresentada em 1993 na Biblioteca Nacional de Canbera e, em seguida, em vrios outros pases. Na Frana, o comissrio Roger
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Boulay inseriu um enorme painel contando esta histria em sua exposio Cannibales et Vahines, no MNAAO (Museu Nacional das Artes Africanas, Amerndias e Ocenicas), em 2001. Os aborgines apresentam-se sob o nome de seu povo, que normalmente o nome de sua lngua h mais de duzentos na Austrlia, como Yawuru em Broome, Ngarinyin no norte de Kimberley, Walmajarri ou Kukatja no deserto do oeste. Em certas regies, grupos de lnguas diferentes identificam-se pelos nomes regionais: Koori para o sudeste (Sidney, Melbourne), Murri para todo o Queensland (Brisbane, Cabo York), Nyoongar para o sudoeste (Perth), Yapa no deserto central. O termo aboriginal (aborgine como nome prprio) veio a englobar todos esses termos e se justaps ao termo Torres Strait Islanders (TSI), que abrange todos os autctones das ilhas australianas do estreito de Torres, situado diante da Nova Guin, melansios l instalados h vrios milhares de anos. Na virada do sculo XXI, o governo e diversas personalidades polticas empregam freqentemente o termo Indigenous Australians para substituir os dois termos Aboriginal e Torres Strait Islanders. Embora mesmo nas menores comunidades a reivindicao de uma identidade local seja freqentemente destacada, em nome da cidadania australiana que os aborgines reivindicam a justia social diante das polticas governamentais. A morte sob custdia de um aborgine, seguida de uma revolta de duzentas, trezentas pessoas numa pequena ilha australiana no dia 26 de novembro de 2004, poderia ter sido apenas mais uma ocorrncia, como as centenas de outras mortes sucedidas sob custdia ou em priso, que pontuam a histria criminal australiana dos ltimos vinte anos. Acontece que esse episdio assumiu uma outra proporo, ao mesmo tempo simblica, social e poltica. De fato, os atores desse movimento descendem de homens, mulheres e crianas que foram deportados aps terem sido capturados nos quatro cantos do Queensland, em regies nas quais se falavam mais de quarenta lnguas aborgines diferentes. A deportao de mil seiscentas e setenta pessoas entre 1918 e 1960 transformou a ilha em uma colnia dita de punio, que se tornou uma espcie de barmetro das tenses sociais, raciais e polticas na Austrlia. O governo deslocou a populao originria da ilha e das
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pequenas ilhas vizinhas para o continente com o intuito de abrir espao para a colnia punitiva que acolheu dezenas de famlias deportadas de todos os cantos do enorme estado do Queensland. Hoje em dia, os descendentes perfazem em torno de trs mil pessoas, mas alguns partiram, e outros retornam. H igualmente novas famlias, originrias particularmente das ilhas Torres, que, por terem tido uma educao melhor, so freqentemente empregadas em cargos administrativos e recebem, assim, salrios mais altos. Essa situao cria cises na ilha, e at mesmo abusos de corrupo. Uma outra fonte de conflitos a oposio em relao aos descendentes das famlias que foram exiladas da ilha no continente e que o governo reconhece como sendo os nicos guardies da ilha habilitados a negociar o futuro de suas propriedades. Essa oposio entre os proprietrios tradicionais (que vivem, em sua maioria, no continente) e a populao dita histrica (descendentes dos deportados instalados na ilha) envenenada pela postura governamental que reconhece apenas os direitos de propriedade dos donos de terras tradicionais, contanto que estes tenham mantido uma continuidade das prticas culturais. O exame das razes que levaram s antigas deportaes mostra que as acusaes so raras: houve, por exemplo, muitos bebs, alguns de pele clara, roubados de suas mes por possurem um pai europeu. A maioria da populao de Palm , entretanto, muito pouco mestia. Na realidade, muitos adultos foram para l levados porque resistiam colonizao ou simplesmente, como o diz com convico a atual lder da igreja catlica aborgine de Townsville, Mary James, uma mulher extraordinria, deportada para a ilha nos anos 1930 com todo o seu cl de uma zona de florestas chuvosas dos Tablelands: penso que, no fundo, eles nos prenderam aqui porque queriam a terra de nossas florestas. De fato, essas regies do Queensland constituam, na primeira metade do sculo XX, um verdadeiro Eldorado para as plantaes de cana-de-acar (que, alis, faziam trabalhar em seus campos kanaks e outros insulares do Pacfico sul, tambm deportados de suas prprias ilhas), para as companhias de madeiras e para as fazendas de gado. Hoje em dia, so as minas e o turismo que alimentam os bancos. A reserva de Palm Island era administrada como um campo de prisioneiros. Os aborgines no tinham o direito de ir ao continente.
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Os bebs eram abandonados em uma ilha anexa que servia de leprosrio, onde, ao crescer, muitas meninas foram violadas pelo pessoal da equipe mdica: h um filme da diretora aborgine Donna Ives, Memory, que conta, com muita sensibilidade, a memria assombrada por esses traumas. Como em outras reservas e misses, os meninos tambm sofreram violncias sexuais por parte dos administradores. Meninos e meninas no podiam dirigir a palavra uns aos outros. Eram punidos ao serem vistos juntos. As meninas tinham o seu cabelo raspado; os meninos eram encerrados em celas. Os jovens tinham de solicitar o direito de se casar ao administrador, sem ter o direito de conviver antes desse pedido. A carne, a farinha e o ch eram distribudos por peso: a insuficincia das raes foi uma das razes da revolta das mulheres em 1957. Os homens pediam um aumento do dinheiro que recebiam, que no permitia s famlias comprar outras raes para saciar a sua fome. Redigiram uma carta de reivindicaes endereada ao governo, que foi enviada ao administrador por algo em torno de trinta homens, acompanhados de suas mulheres e filhos. Eles deram um prazo de uma semana para ter a resposta do departamento das questes aborgines e decidiram fazer greve enquanto aguardavam. Quando chegou um barco com os vveres semanais, os grevistas ficaram muito desapontados por no terem recebido nenhuma notcia e recusaram-se a descarregar os pacotes, essencialmente destinados aos colonos. Isso foi filmado, e as imagens dos brancos penando para carregar suas bagagens chocou a Austrlia da poca. O administrador no havia encaminhado as reivindicaes, mas chamou a polcia, que deteve vinte e cinco lderes grevistas: estes foram deportados da ilha, e cada um enviado a um campo diferente do Queensland. Lex Wotton, cujos pais foram deportados ilha de Palm, encanador e pai de cinco filhos, apresentado como o provvel ring leader da revolta de 2004 por ter parlamentado com o delegado e sustado as pedras. Ele me contou, durante a sua liberdade condicional em Townsville, que ficou muito impressionado, quando era criana, com um documentrio gravado com os aborgines de Palm que representaram o papel de seus ascendentes durante a greve de 1957. Ele descobriu, assim, que seu povo possua uma histria de resistncia. O ttulo desse filme famoso, realizado em 1975 por Alessandro Cavadini e sua esposa, Protected (Protegidos), designava o sistema
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administrativo colonial que colocava todos os aborgines da Austrlia sob a tutela dos Protetores do Estado, muitas vezes policiais, magistrados, missionrios ou notveis, que tinham o direito de decidir sobre a vida das pessoas. Decidiam sobre a transferncia de populaes, as separaes de pais e filhos, as permisses ou recusas dos pedidos de casamento entre aborgines e com no aborgines, a deportao para colnias punitivas como a de Palm, a designao de aborgines para executar trabalhos forados, ao servio dos colonos ou do funcionamento das colnias, assim como a atribuio ou no de certificados permitindo aos aborgines educados de tornarem-se cidados. At os anos 1970, de fato, os aborgines que no possuam esse certificado no tinham nem direito a um salrio, nem o de se deslocar livremente fora das colnias, mesmo quando eram esportistas de renome mundial. Alguns eram remunerados, mas a maioria no recebia o dinheiro depositado pelos empregadores diretamente nos Departamentos de Protetores; estes redistribuam somente uma pequena parte desses salrios, essencialmente sob forma de alimentos, cobertores e roupas. Com os anos, o Queensland produziu vrios militantes aborgines que foram viver em diversos lugares da Austrlia. Muitos aborgines de Palm tornaram-se trabalhistas depois da estada de um aborgine de Sidney que l se instalou e lanou um jornalzinho local: Bob Rossner tambm escreveu o livro This is Palm Island, denunciando num estilo romanesco, mais para manifesto a histria e os abusos cometidos na ilha nos anos 1970. Ele tirou fotos das celas punitivas e do estado dos alojamentos dos trabalhadores aborgines que, na poca, no possuam mveis e dormiam diretamente sobre o cimento. Em 1974, houve uma nova greve, seguida, em 1985, da sada da administrao da colnia e do estabelecimento de um conselho aborgine que recebeu na ilha a denominao de DOGIT (Deed of Grant in Trust). Desde os anos 1990, um movimento chamado Stolen Wages (Salrios Roubados), lanado por uma mulher de Palm Island, Yvonne Butler cuja famlia toda muito ativa na transmisso da cultura dos grupos litorneos , reuniu centenas de antigos trabalhadores aborgines para reivindicar, junto ao governo, o pagamento dos salrios retidos. O governo respondeu com a oferta de uma indenizao de
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trs mil dlares por ex-trabalhador. Ora, a estimativa dos salrios devidos, de acordo com os pagamentos feitos pelos fazendeiros, pelos patres de empregados domsticos negros, pela administrao dos caminhos de ferro e das obras pblicas, que empregavam operrios aborgines, etc., giravam, geralmente, em torno de trinta mil dlares. Os querelantes recusaram, em sua maioria, a oferta do governo e apelaram a advogados que assumiram as causas, pensando em ganhar uma porcentagem no momento do pagamento das somas reivindicadas. Trs anos depois, ningum ganhou nenhum desses pedidos. O partido trabalhista fez uma campanha de reivindicao dos salrios roubados dos aborgines imprimindo cartes pr-escritos para assinar e enviar ao governo do Queensland. O primeiro-ministro do Estado mandou responder com uma carta endereada a cada signatrio, explicando que as pessoas que pediam compensaes deveriam aceitar os trs mil dlares, pois, como estavam em idade avanada, no teriam tempo de ver o fim de seus processos. Lex Wotton, processado por revolta, havia pedido demisso do antigo conselho de Palm Island por denunciar sua corrupo. Ele faz uma anlise bastante crtica do sistema de dependncia governamental, que impede um verdadeiro autogoverno aborgine:
Pelo que entendi, a greve (de 1957) dizia respeito questo dos salrios e exigncia de um tratamento justo (being treated fairly). A comunidade, na poca, no podia (por exemplo) andar em determinadas reas da ilha (reservadas aos brancos). Bom, hoje, com os direitos de propriedade, pode-se fazer um mapa do Native Title (ttulo de propriedade autctone), mas continuamos desprovidos de direitos mnimos (por exemplo, organizar um baile nas terras da ilha ou montar uma empresa qualquer). Sim, economicamente estamos muito ultrapassados. (...) Tenho contatos com os mais velhos, que participaram da greve, mas nunca falei do que realmente aconteceu. Mesmo na comunidade propriamente dita, tanto ela oprimida. Ela vive o dia-a-dia do que acontece em torno dela e no em relao ao mundo maior. O que as pessoas (de Palm) vem do mundo o que passa na televiso, e, na maior parte do tempo, no expresso da maneira como fazemos quando samos do continente (mainland). Eles vo apenas para passar o dia no shopping ou para trabalhar e pegam a barca para
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voltar. tudo o que conhecem fora da casa deles. um estilo de vida aceito. (...) Eu sinto que o governo sabe e acredita que a melhor maneira de mant-los dependentes do governo. As famlias no se abriram muito sobre os direitos da poca. uma histria que deve ser contada e ensinada pelas pessoas que a viveram e que tiveram essa experincia. Ouo muitas coisas atravs da famlia de minha mulher (in-laws) sobre o que se passou na poca. Os parentes de minha mulher estavam entre aqueles que lutaram pelos salrios. Anos mais tarde, obtiveram a vitria. (...) Hoje em dia, ao crescer, ns vemos coisas que para mim no so justas. Alm da opresso, tem, voc sabe, falta de moradia, de profisses, de todas as coisas. Os problemas sociais dentro desta comunidade existem, pois algum no faz o que deveria, mas esse algum, ou essa coisa, acredita que a maneira pela qual as pessoas daqui deveriam ser tratadas. Quando se olha a colonizao e seu genocdio, o genocdio continua, mas sob uma outra forma.
Estou traando um paralelo entre a midiatizao estigmatizante dos aborgines e a observao cotidiana durante o ano de 2005 e as entrevistas feitas com diversos aborgines. No decorrer das audincias e dos depoimentos das testemunhas de acusao policiais; habitantes da ilha, majoritariamente aborgines e insulares de Torres , os suspeitos de deflagrar o incndio aparecem cada vez mais admirveis: vinte homens e trs mulheres, entre as quais uma av detida por insulto a um agente, aps a priso de seu filho, Lex Wotton, o lder presumido da revolta. O processo deveria ter ocorrido em abril de 2006, ao trmino esperado da investigao judiciria sobre a morte sob custdia que, de acordo com numerosos observadores, deveria inculpar o policial como responsvel dessa morte e, assim, atenuar a acusao dos revoltosos. Com o incndio da delegacia, eles correm o risco de serem condenados priso perptua, por sua reao a essa injustia. Em junho de 2006, a investigao e o processo foram novamente adiados. At hoje, apenas dois aborgines foram absolvidos. David Sibley,
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cuja mulher teve um parto prematuro pouco aps a sua deteno, foi liberado seis meses mais tarde, em parte graas s imagens gravadas pela televiso em que aparecia tentando acalmar o seu cunhado, Lex Wotton, que caminhava furioso rumo delegacia. Convidado a falar de sua experincia na Universidade James Cook, David Sibley lembrou que as revoltas raciais com migrantes nas cidades do sul da Austrlia podem durar vrios dias, os confrontos provocar feridos, o que no foi o caso na suposta revolta da ilha de Palm. Ora, a acusao de atentado aos bens do Estado foi utilizada em Palm, mas nunca nas revoltas violentas das cidades do sul. O paradoxo que, no caso de Palm Island, a polcia fez apelo a uma brigada de interveno de urgncia, treinada para lidar com atentados terroristas. assim que essa imagem de terrorista, sem dvida pela primeira vez na histria da Austrlia, foi projetada sobre os aborgines. O falso amlgama aborgines/ terroristas alimenta-se, provavelmente, da intensificao de uma poltica securitria em relao ao que percebido como uma ameaa do Outro, seja este autctone ou estrangeiro: h dois anos, os aborgines da Austrlia, que haviam perdido seu prprio ministrio, foram passados para a tutela do Ministrio da Imigrao. No transcorrer das semanas de audincia de inquirio das testemunhas de acusao em 2005, jornalistas, policiais ou guardas de segurana espantaram-se com a civilidade dos acusados. Aps o primeiro ms de priso, estes haviam obtido uma liberdade condicional com restries bastante duras: proibio de voltar para a sua ilha, toque de recolher das sete horas da noite s sete horas da manh, obrigao de se apresentarem no departamento central de polcia todos os dias, proibidos de coabitar (incluindo uma me e seu filho de quatorze anos) e de se reunir (dois suspeitos no podiam nem mesmo ir ao departamento policial dentro do mesmo carro). Eram ainda perseguidos, todas as noites, por rondas noturnas e acabavam deixando as famlias que os alojavam na cidade para no incomodlas. Assim, alguns logo retornaram priso, por no terem respeitado essas restries: no entanto, assistiam sistematicamente s audincias, procurando olhar seus acusadores de frente, na esperana de que a verdade aparecesse. Vi o rapaz de quatorze anos estudar as transcries das acusaes como nunca havia estudado na escola! preciso dizer que os aborgines implicados na mquina judiciria, que no passaram
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da escola primria e freqentemente tm dificuldade de ler, conhecem muito mais o direito e os processos jurdicos que muitos outros cidados. As audincias foram um verdadeiro fator de revelao para os acusados. Uma nova solidariedade criou-se entre eles, uma maneira de recuperar um pouco de self-esteem graas colaborao com seus advogados: uma nova esperana de superar os conflitos que afligem a ilha de Palm h vrios anos. Diversos jornais publicaram, na primeira pgina, uma foto de Lex Wotton sentado com os braos em cruz, como um Cristo, diante de um desfile de duas mil pessoas caminhando em silncio para apoiar os acusados de Palm e homenagear o morto sob custdia. A multido emocionou-se ao v-lo; e a irm do morto, com alguns outros militantes e crianas pintadas, que danavam ao ritmo do didjeridu, na abertura do cortejo, lanaram-se em sua direo. A imprensa intitulou a matria inspirada na exclamao da irm de Doomadgee: You are my warrior! (Voc meu guerreiro!). Alguns jornalistas sugeriram que seria necessrio, entre as condies impostas para a sua liberdade provisria, que o impedissem de participar de toda e qualquer manifestao coletiva. Ele respondeu que estava simplesmente sentado diante da delegacia na qual devia apresentar-se todos os dias como os outros suspeitos em razo de sua liberdade condicional. A imprensa tambm ironizou o fato de a passeata no ter sido silenciosa, pois foi seguida de uma manifestao. Ora, justamente a ausncia de palavras de ordem na passeata criou uma forte impresso nas pessoas da cidade, que esperavam, todas, que a manifestao degenerasse. A passeata de dezembro de 2004 foi, portanto, seguida de um encontro no parque da cidade, no qual, durante horas, homens e mulheres deram o seu testemunho, incitando-se, uns aos outros, a passar para a ao, no apenas em relao ao governo, mas tambm para retomar o futuro de sua comunidade, freqentemente confrontada a enormes problemas sociais. Sentada em meio multido, confesso ter ficado extremamente tocada, no esperando ouvir tanta dor, anlises muito articuladas e projetos construtivos, testemunhando uma nostalgia de solidariedade perdida h uma gerao. A manifestao havia sido organizada por diversos militantes locais do grupo de justia aborgine, da rdio aborgine da regio (4K1G =, que soa como For Kwanji, heri da resistncia colonial). A reunio preparatria
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tinha reunido por volta de quatrocentos participantes na igreja catlica aborgine da cidade de Townsville. Naquele sbado de manh, haviase espalhado, entre os habitantes no aborgines do bairro, um boato de que era preciso trancar-se em casa e esconder os carros nas garagens, pois mil aborgines iriam descer da igreja para quebrar tudo. No houve nenhuma violncia. Em revanche, durante essas horas de discusses coletivas, uns e outros fizeram sua auto-crtica, para tentar entender como tinham chegado quele estado de desmobilizao depois de alguns anos. Um maori chegou a danar, para dizer a seus aliados aborgines que era preciso reencontrar sua alma guerreira. Do encontro, a imprensa reteve apenas o discurso de um ativista, Yanner Murrandoo, primo de Mulrunji Doomadgee, a vtima de morte sob custdia, que tinha chegado do norte do Queensland para enterrar o corpo e dar o seu apoio ao movimento. Seu discurso foi um apelo ao num estilo to inflamado e guerreiro ele apelou para os sistemas tradicionais de payback e feitiaria que alguns polticos elogiaram a sua potencialidade de liderana. A me daquele que era tido como o dirigente da revolta, Agnes Wotton, e sua filha caula, Fleur, de vinte anos, foram igualmente inculpadas, mas foram autorizadas a continuar a morar na ilha exceto durante as audincias, quando devem residir na cidade. Elas retomaram o tema do guerreiro num grande painel que pintaram com a lista de todos os homens presos. Esse painel foi erguido na ilha diante de todas as mdias, no momento em que comeou a investigao judiciria sobre as condies da morte sob custdia. A imagem do guerreiro afirma uma nova identidade, que, ao mesmo tempo, se ancora numa tradio de lutas (como as greves de 1957 e de 1974 em Palm) e nos heris locais mais antigos, que marcaram a histria colonial do Queensland. Entre os deportados da ilha, encontravam-se originrios de aproximadamente quarenta grupos de lnguas diferentes do continente, sendo que em torno de trinta eram de Kalkatungu. Tratase de uma tribo da fronteira do territrio do norte que foi praticamente toda exterminada durante a batalha de 1884, opondo seiscentos guerreiros com lanas de madeira e bumerangues e a polcia indgena, montada a cavalo e armada de fuzis. Esse confronto entendido como um dos episdios de uma longa guerra de resistncia. Tornou-se objeto
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de um culto celebrado sob a forma de uma cerimnia secreta, no apenas pelos grupos vizinhos, que adotaram algumas crianas que fugiram da regio, mas tambm por tribos aborgines bastante distanciadas, especialmente no deserto, que receberam esses rituais atravs dos canais de troca tradicionais unindo tribos de lnguas diferentes, separadas por centenas de quilmetros. Esses canais de comrcio de ferramentas, armas, cantos e rituais percorriam em rede toda a Austrlia e funcionavam ainda de maneira eficaz a despeito de todas as mudanas nos anos setenta. Serviram notadamente para manter solidariedades polticas, por exemplo, na ocasio da oposio nacional prospeco de petrleo de uma reserva do Kimberley, no norte da Austrlia, em 1980 (GLOWCZEWSKI, 2004). H trinta anos, muitos dos antigos aborgines que conheciam esses canais de aliana faleceram. Tive a oportunidade e a honra de encontrar alguns no deserto central em 1979 e nos anos seguintes. Esses homens e mulheres ensinaram-se a pensar a situao contempornea com o distanciamento de sua sabedoria. Muitas lideranas jovens procuram encontrar uma ancoragem nesses ensinamentos para melhor responder presso burocrtica que os sufoca desde os anos 1970 e inventar novas formas de governo. Hoje, a autodeterminao poltica, econmica e social dos aborgines freqentemente minada pelas medidas governamentais e pelos interesses privados. Na inaugurao de um programa de criminologia na Universidade de James Cook em agosto de 2005, Chris Cuneen lembrou que o representante do governo australiano na ONU insistiu, h alguns anos, para que, na carta de diretos autctones, em cuja elaborao uma delegao aborgine participa desde 1974, o termo self-determination, adotado pelos outros autctones do mundo, fosse substitudo por self-management a Austrlia recusava aceitar uma soberania aborgine. Mas, ento, o que significa a self-governance da ltima moda burocrtica: aprender a ser um bom empresrio, administrando a sua comunidade ou famlia como uma empresa (business corporation), ao invs de retomar a liberdade de viver em coletividade, implicada no self-empowerment? O futuro inquietante: os aborgines talvez sejam simplesmente o sintoma do que ameaa um grande nmero de seres humanos nesse planeta. No de se espantar que estejam furiosos.
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Herana colonial e globalizao moda australiana: terras espoliadas, geraes roubadas (stolen generations) e crise de governabilidade Quando os colonos ingleses chegaram, h dois sculos, todo o continente australiano era ocupado pelos aborgines. difcil avaliar o seu nmero os especialistas hesitam entre quinhentos mil e trs milhes , pois foram rapidamente dizimados no litoral, tanto por epidemias quanto pela violncia do contato. No incio do sculo, estimava-se que no havia mais de sessenta mil aborgines. Hoje em dia, o crescimento demogrfico retomou o valor de quinhentos mil, ou seja, 2% da populao total menos que no Brasil, pois esses 2% compreendem todos os descendentes de aborgines declarados, incluindo os numerosos mestios, que, em razo da histria colonial, se identificam como aborgines. A esperana de vida muito curta, e a mortalidade infantil chocante em comparao com a boa sade dos aborgines destacada por todos os observadores do sculo passado. Os aborgines do deserto conheceram ondas sucessivas de secas que os obrigaram a refugiar-se perto das minas ou das fazendas instaladas em suas melhores terras. Muito dos exploradores devem sua sobrevivncia ao saber dos guias aborgines. A indstria de gado repousou inteiramente na utilizao dos stockment (cowboys), aborgines que aprenderam a montar a cavalo e que sabiam sobreviver no cerrado. Os grupos aborgines, vendo suas fontes de gua ameaadas pelo gado, tentaram impedir que os animais bebessem sua gua. Em represlia por um boi morto lana, famlias inteiras foram assassinadas. Massacres, envenenamento das fontes de gua com arsnico, estupros sistemticos, crianas desmioladas, torturas e abusos de todos os tipos abundam nos arquivos da colonizao. Houve algumas tentativas de resistncia armada, mas o que podiam as lanas contra os fuzis? Contrariamente aos autctones da Amrica do Norte, nenhum tratado foi jamais assinado com os aborgines. A Austrlia havia sido declarada Terra Nullius, desabitada; os aborgines, relegados condio de fauna e flora, eram tratados pior do que animais. No tiveram acesso s armas importadas pelos colonos, e seu nmero reduzido os tornou muito vulnerveis. Assassinados, deportados e encerrados em colnias, sofreram um regime de campo de
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concentrao, sob a gide de missionrios (de todas as ordens) ou de administradores laicos que, durante dcadas, sufocaram, na base, qualquer tentativa de governabilidade, especialmente separando as crianas dos pais, para que no aprendessem a lngua e no fossem iniciados s leis de seus ancestrais. Os homens que tentaram resistir ou simplesmente pareciam bons candidatos para os trabalhos forados eram acorrentados uns aos outros pelo pescoo e deportados para prises de trabalhos forados, instaladas nas ilhas. No final do sculo XIX, as cerimnias secretas transmitidas de grupo em grupo sob a forma de iniciao tentaram dar uma resposta por meios mgicos ao desapossamento e destruio de suas sociedades. Os aborgines integraram em seus rituais, por exemplo, certos efeitos do contato a deportao, o roubo de crianas ou ainda a chegada de novos produtos de consumo, como o ferro, a comida embalada, etc. para redefinir sua Lei e encontrar estratgias de resistncias que invocassem o testemunho de seus ancestrais. Aps uma longa histria de greves (desde os anos 1940) e movimentos de luta contra as discriminaes raciais, o referendo de 1967 deu o direito de cidadania aos aborgines, autorizando sua sada das colnias e o direito de serem assalariados. Em 1976, uma lei (Northern Territory Land Rights Act) permitiu, a numerosos grupos do Territrio do Norte, reivindicar seus direitos de propriedade na justia e recuperar terras, nas quais instalaram acampamentos sazonais (outstations). Esse retorno terra provocou um alento extraordinrio nos anos 1980. Parecia, ento eu tinha acabado de iniciar minhas pesquisas antropolgicas no deserto central , que os aborgines poderiam, enfim, ser mestres de seu destino. O entusiasmo decaiu em dez anos, com uma srie de medidas pretensamente de self-determination, que, na realidade, eram armadilhas, obrigando os conselhos aborgines a depender cada vez mais do dinheiro do Estado e de sua burocracia. Esta impunha uma gesto complexa, com prestaes de contas em mais de quarenta agncias de financiamento e normas governamentais que paralisavam a maior parte das decises tomadas pelos aborgines e a liberdade de suas aes. Os aborgines que haviam trabalhado como instrutores comunitrios em suas prprias lnguas no tinham mais o direito de
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exercer sua profisso, pois no possuam os diplomas reconhecidos pelo Estado. As mulheres no podiam mais parir nas comunidades, pois deviam ir ao hospital da cidade. As famlias no podiam mais construir suas casas, fazer reparos no encanamento, pois era preciso seguir as novas normas, que eram conhecidas apenas por operrios especializados no aborgines. Toda uma gerao se viu, assim, completamente negada no saber que havia adquirido. Ela foi paralisada por verbas a que os aborgines chamavam com humor dinheiro para ficar sentado. Suas crianas se viram diante da televiso e de programas de formao nunca levados a termo, por causa da falta de educadores, do lcool, das drogas e de todo tipo de violncias, incessantemente pontuadas pela opresso racial dos no aborgines. Os anos 1990 viram, no entanto, trs iniciativas muito positivas, impulsionadas por ativistas aborgines e no aborgines. Primeiro, em 1992, a vitria de Eddie Mabo, da ilha Mar, no estreito de Torres, que, aps dez anos de processo, obtinha o reconhecimento da propriedade de suas terras ancestrais: esta deciso em alta corte invalidou o princpio de terra nullius e permitiu o reconhecimento, numa escala que abrangia todo o continente, do que foi chamado de Native Title (ttulo de propriedade indgena). A Lei Mabo (Act) de 1993 estabeleceu, ento, um Native Title Tribunal para estudar, caso por caso, as demandas de reivindicaes de propriedade efetuadas sob esse princpio: mais de mil foram registradas. Treze anos mais tarde, apenas um punhado delas foi aceito. Em 1992 terminavam tambm as longas investigaes da Comisso real sobre as mortes aborgines sob custdia (Royal Commission on Aboriginal Death in Custody). Centenas de aborgines presos, de fato, perderam a vida em circunstncias suspeitas ou em suicdios cometidos dentro de celas. Trezentas e noventa e nove recomendaes definidas pelos grupos de trabalho aborgines em todos os nveis da sociedade propuseram reformar, atravs de medidas muito simples, tanto as prises, a justia e a sade quanto a educao, mas muito poucas dessas propostas foram aplicadas, a no ser para construir novas prises mais sofisticadas, nas quais os presos detidos, na sua maioria, por alcoolismo tinham o direito de assistir televiso, mas continuavam sem assistncia para sair do crculo infernal da auto-destruio. As recomendaes propostas para remediar o trauma
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coletivo que atingiu todas as famlias tm muita dificuldade de serem aplicadas, no somente por falta de verbas, mas de eficincia. Ao constatar, por exemplo, a ausncia de psicoterapeutas e de psiquiatras em Kimberley, instalaram um sistema de vdeo-conferncia para que os aborgines com sofrimentos psquicos pudessem ser diagnosticados ao dialogar com dois ou trs especialistas conectados pela tela a partir de Perth, Sidney ou Melbourne um exemplo de inadequao entre a demanda de escuta e de diretos humanos e a resposta burocrtica. A morte de Doomadgee em Palm Island, filmada em sua cela, mostrou igualmente a ineficincia de seus sistemas de monitoramento por vdeo, que no so nem mantidos, nem utilizados como se deve: no caso de Palm, o som no funcionava mais, embora os habitantes da ilha ouvissem os gritos de agonia atravs das barras. Alm disso, os jovens policiais no so culturalmente preparados para trabalhar junto aos aborgines, ainda que, quando os programas de formao organizados pelos aborgines so aplicados, a criminalizao dessas comunidades diminua consideravelmente. Em 1995, a Comisso real sobre as Geraes Roubadas (Stolen Generations) publicou o relatrio Bringing them Home, cujos testemunhos tocantes iriam mudar a imagem que os prprios australianos tm de seu pas. Milhares de testemunhos contaram sua histria: como eles mesmos, seus pais ou avs haviam sido retirados de seus prprios pais e internados fora em orfanatos nos quais lhe afirmavam brutalmente que suas origens aborgines deveriam ser esquecidas, pois a educao tribal era ruim. Um grande nmero de filhos daqueles que haviam sido roubados e aos quais fizeram crer ou que suas mes no queriam saber mais deles ou que no eram aborgines comearam, ento, a procurar suas famlias: alguns foram viver em comunidades distantes, nas quais foram com freqncia acolhidos com os braos abertos, mas no sem sofrer todo tipo de presso para servirem de intermedirios com a sociedade no aborgine. Um longo processo coletivo chamado de healing (cura) comea, ento. Prova disso, por exemplo, o livro autobiogrfico de Doris Pilkington e Nugi Garimara, que deu origem ao filme Rabbit Proof Fence (intitulado na Frana como O caminho da liberdade e no Brasil como Gerao roubada) sobre a travessia do deserto, nos
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anos 1930, de trs meninas deportadas para uma instituio e que fugiram para reencontrar sua famlia. Mas, em 2000, o primeiro ministro Howard negou o perdo a essas geraes perdidas, vtimas da poltica sistemtica de afastar os filhos dos pais entre 1905 e 1970. Manifestaes de apoio aos aborgines ocorreram em vrios lugares; mas, desde ento, o governo tem reforado as medidas que recusam o reconhecimento da especificidade das necessidades histricas e culturais dos aborgines. Em maio de 2006, discusses parlamentares sugeriram recomear a retirar as crianas de seus pais devido desintegrao social de numerosas comunidades e violncia familiar. A esperana de salvao que simboliza a Lei tradicional ainda est presente nas comunidades que praticam os rituais. Mas a estrutura social que permitia aos antigos aborgines fazer com que essa Lei funcionasse foi to distorcida pelas intervenes governamentais e pelo racismo ambiente que as comunidades se encontram, hoje em dia, em um estado de deteriorao insustentvel. A depresso atinge todas as geraes a tal ponto que a maioria soobra no lcool e em drogas diversas no caso das crianas, cheirar gasolina ou tinta de cromo. A autodestruio atinge propores alarmantes, tanto pelas doenas, pelos suicdios, quanto pelas violncias contra familiares, especialmente abusos sexuais das crianas, problema que atinge tambm outras populaes no aborgines. A resposta dos diversos servios gover namentais particularmente aos nveis da sade, da educao, da polcia e da justia completamente inadequada e est em crise. Prefere-se colocar as pessoas na priso a procurar escutar o que tentam dizer. Muitos dos prisioneiros esto muito afetados mentalmente, mas no recebem nenhuma orientao psicolgica, ainda que o peam. A polcia est constantemente sob suspeita de cometer abusos, e, de fato, inmeras investigaes judiciais, aps diversas mortes sob custdia, demonstram a violncia de tratamento por parte de uma polcia que no formada como deveria para esse tipo de situao e no interior da qual a corrupo de alguns de seus membros parece intocvel. Quando a autoridade pblica a polcia, o governo, ou mesmo os hospitais descrita como corrompida em todas as mdias australianas, no se pode espantar-se que a enorme mquina de servio pblico financiada em milhes para representar os aborgines tenha,
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aps quinze anos de funcionamento, estourado em escndalos e abusos. A LAboriginal and Torres Straight Islander Commission (ATSIC), que reagrupava quinze conselhos regionais aborgines eleitos e uma administrao de funcionrios gerenciando todas as verbas aborgines, foi simplesmente fechada pelo governo em 2004, como uma cirurgia extirpando um tumor social, esquecendo as ramificaes vitais. A supresso do ATSIC, para alm da transferncia de certos funcionrios para as agncias mainstream, deixou desempregados muitos aborgines e, principalmente, suprimiu todos os representantes eleitos: no h, portanto, mais nenhum rgo de representao aborgine. Os militantes responderam com um apelo para formar jovens lideranas: alguns ingressaram nos partidos polticos, outros propuseram formar uma coalizo5 . Com o fechamento da ATSIC, o governo lanou, no ano passado, o princpio dos Shared Responsability Agreements, acordos ditos de responsabilidade compartilhada, em comunidade por comunidade. Entre as centenas de comunidades envolvidas, em torno de quarenta os haviam assinado. No final de 2005, por exemplo, na Austrlia do oeste, Mulan aceitou dar banho nas crianas todos os dias em troca de um posto de gasolina, e Balgo se comprometeu a enviar as crianas escola para ter uma piscina (no school, no pool). Esses acordos, denunciados como paternalistas, respondem a anos de tentativas dos aborgines locais no sentido de alertar o governo a respeito de suas respectivas disfunes, mas a resposta repousa, no momento, mais num acordo simblico que numa soluo de fundo (PEARSON, SULLIVAN). Em 2006, a estratgia governamental mudou novamente: uma lei vai autorizar a propriedade privada nas terras comunais. Diante das violncias e disfunes sociais, as polticas preconizam o esvaziamento das comunidades de seus moradores para transferi-los para as cidades. A medida acompanhada da suspenso dos financiamentos da maior parte dos programas que favorecem o desenvolvimento das culturas aborgines um relatrio, por exemplo, acaba de recomendar a suspenso do ensino de lnguas aborgines, sob o pretexto de que isso impediria a sua assimilao. Foi o mesmo
Ver o site, na Internet, da Australians for Native Title and Reconciliation, ANTAR : http:// www.antar.org.au/).
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raciocnio que acompanhou a lgica colonial. Sabemos que, no nvel psicolgico, a negao das origens culturais produz traumas que podem repercutir sobre vrias geraes. No atual discurso dos polticos, que preconizam a grande limpeza tnica, est em jogo, entre outras coisas, a possibilidade de um desenvolvimento turstico ou a explorao das minas de reas afastadas, livrando-se da populao local. Como um governo pode justificar esse genocdio enquanto a Austrlia se vende no exterior promovendo sua imagem pela arte dos aborgines, por exemplo, com a participao de oito artistas aborgines na arquitetura interior da livraria, do teto e da fachada dos prdios administrativos do museu do cais Branly, inaugurada com grande pompa em Paris, em junho de 2006? O reconhecimento da arte dos primeiros australianos como herana nacional seria o corolrio da morte das sociedades que a criam? um desafio que os poderes dominantes endeream aos descendentes de todos os patrimnios herdados da colonizao. Enquanto antroplogos, ns temos uma parte da responsabilidade da maneira com que, hoje em dia, os povos de origem de todos esses criadores podem ou no exprimir e viver seus direitos palavra e ao para retomar o seu destino em mos. Lembro que, se os aborgines constituem menos de 2% da populao australiana, eles representam 40% do mercado de arte australiana, com obras extraordinrias que so, h vinte anos, utilizadas como uma imagem identitria de toda a Austrlia. Ora, para os aborgines, essas obras constituem novas formas de reconstruo histrica e identitria que sondam o passado colonial e as razes da cultura. Os famosos pintores do deserto ou da Terra dArnhem mostraram ao mundo a importncia de sua ligao com a terra e com seus ancestrais do Dreaming. Os artistas urbanos trabalham, por sua vez, sobre a gerao roubada uma criana, em cinco, retirada de seus pais entre 1905 e os anos 1970 , a luta pelos direitos de propriedade, as discriminaes raciais, freqentemente com uma esttica enraizada e muito bem-humorada. Muitos aborgines esto convencidos de que o reconhecimento da histria e da justia social so a condio no apenas para uma reconciliao nacional, mas principalmente para superar os problemas sociais num processo coletivo e teraputico. O dia nacional aborgine
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foi batizado como Sorry day (Dia de desolao). Sorry, em ingls, significa sinto muito mas, no universo aborgine, diz-se tambm sorry business referindo-se a cerimnias funerrias e a todas as prticas que devem acompanhar a seqncia de um falecimento, um processo ritual de luto, que pode durar anos. Portanto, o sorry day comemora a histria dolorosa, o luto das geraes passadas, vtimas da colonizao. A noo de sorry como perdo tornou-se uma reivindicao muito simblica durante os Jogos Olmpicos de Sidney, pela recusa do primeiro ministro em dizer sorry (perdo) pela histria colonial, o que provocou uma passeata e um movimento de apoio aos aborgines. Note-se que a mesma recusa de perdo reproduziu-se em 2005, quando houve a descoberta de mais de duzentos australianos presos por engano em centros de deteno para refugiados sem documentos. Um lobby aborgine decretou, no ano passado, que j era tempo, diante do bloqueio governamental, de afirmar uma posio de sujeito contra o estigma de vtima que parece paralisar a ao aborgine: eles propuseram substituir o nome do dia nacional aborgine para Healing day (Dia de cura). O baile das ex-debutantes: vtimas e sujeitos polticos Algumas semanas aps a morte sob custdia de Mulrinji Doomadgee, no dia 19 de novembro de 2004, e antes de o segundo laudo de autpsia vir a pblico, o primeiro-ministro do Queensland, Peter Beatie, oferecia ao conselho aborgine de Palm Island suspender uma dvida de oitocentos mil dlares se os membros aceitassem inaugurar a nova sala de esporte construda para os jovens e administrada pela polcia (PCYC). O conselho, de fato, recusava-se a inaugurar esse prdio enquanto a investigao judicial no tivesse terminado. Apesar da recusa, o primeiro-ministro dirigiu-se ilha e convocou o conselho com essa proposta. O conselho recusou a suspenso da dvida e revelou imprensa essa chantagem na inaugurao da sala de esportes, explicando: 1) essa dvida era do conselho precedente que havia justamente sido demitida de suas funes por sua m gesto; 2) os moradores da ilha no estavam preparados para tais comemoraes; 3) a sala de esportes no podia mascarar os verdadeiros problemas, tais como a necessidade de
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moradia quando casas em runas abrigavam dezessete pessoas. Os moradores da ilha haviam tambm recusado a inaugurao porque estavam de luto. No queriam festejar nada enquanto no tivessem o resultado da nova autpsia (o que levou mais de dois meses) e a promessa de uma investigao judicial. Esta comeou trs meses mais tarde e ainda no terminou, sendo que se passou um ano e meio desde as revelaes feitas ao pblico, que no parecem inocentar o policial. Os familiares de Doomadgee fizeram uma cerimnia de fumigao, girando em crculo na fumaa de uma fogueira; sua irm cobriu as mos de ocre e marcou, com sinais e linhas, as runas dos prdios queimados, para liberar o esprito da vtima. Os acusados da revolta do dia 26 de novembro de 2004 correm o risco de serem condenados priso perptua pela destruio de um prdio do Estado, smbolo de uma justia que funciona muito mal h anos. Ningum foi ferido, mas os aborgines assustam uma certa populao branca. De acordo com alguns, a delegacia de polcia queimou porque no podia continuar l como vestgio dessa morte. J fazia quatro anos que essas velhas barracas deveriam ter sido demolidas e estavam em pssimo estado. Os regulamentos tradicionais de conflitos possuem seus protocolos: a contenda deve ser apagada no final do confronto, para poder passar para outro assunto. essa reconciliao que os aborgines demandam de corpo e alma ao governo australiano hoje em dia: por que ele no toma as providncias para promover esse processo salutar? A acusao de corrupo do primeiro-ministro pelo Conselho de Palm, por sua chantagem na inaugurao da sala de esportes e festas, foi examinada pela comisso governamental encarregada de examinar tais situaes no Queensland, que concluiu que no havia ilegalidade: talvez Peter Beatie no lhes devesse ter feito a proposta de suspender uma dvida de oitocentos mil dlares, mas isso no era da ordem da corrupo. Em contrapartida, a ministra dos assuntos aborgines do Estado, Liddy Clark, foi obrigada a pedir demisso pouco aps a revolta, porque ela havia oferecido pagar duas passagens de avio entre Townsville e a ilha para convidar como mediadores dois ativistas aborgines ligados aos habitantes da ilha mas que viviam em outro lugar. Embora eles no tenham tomado o avio para essa reunio, a oferta das passagens foi julgada como corrupo, fazendo o
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regalo da imprensa e dos lares durante as frias de Natal de 2004. Devese precisar que esta ministra havia conseguido conquistar uma certa confiana das lideranas aborgines, especialmente em relao aplicao de programas para tentar resolver o problema do alcoolismo. Sua partida foi, assim, lamentada pelos aborgines, que o afirmaram na imprensa e que a viam como uma black sheep sacrificada (bode expiatrio). Para encerrar, gostaria de mostrar-lhes uma montagem no acabada que fiz com um cineasta aborgine, Ralf Rigby, professor da James Cook University. Filmei, no dia 24 de setembro de 2005, um baile que foi organizado pelas ancis da ilha para mostrar que os aborgines de Palm no se resumem a presas de caa para policiais. A narradora principal do filme Agnes Wotton, a av acusada, juntamente com seu filho Lex e sua filha Fleur, pela revolta de novembro de 2004. Em Palm, apenas Agnes e algumas outras avs tiveram a oportunidade e o tempo de participar deste costume bastante australiano, ainda em vigor, que consiste em fechar o ltimo ano do ensino mdio com um baile de debutantes. Agnes ganhou, com dezesseis anos, o prmio de a mais bela do baile do colgio catlico da ilha. O baile de 2005 ocorreu simbolicamente nesta sala de esportes oferecida pela polcia e que havia sido boicotada pelo conselho aborgine da ilha, que demandava uma comisso de investigao sobre a morte sob custdia. As ancis estimaram que, mesmo que a investigao judiciria no tivesse chegado a termo, a evoluo dos meses passados permitia a utilizao desse espao. O baile, num sentido mais amplo, tinha um carter poltico. Os ensaios do baile se desenrolaram durante as semanas que precediam a noitada, contrapondo-se agressividade noturna que agita a ilha todas as noites, com sua horda de alcolatras e de violncias domsticas. Fazer um baile de debutantes, para as ancis, pontuava algo de seu desejo no de integrao, porque o termo pode ser discutido durante horas, mas do direito de se viver na Austrlia como cidados completos: se vocs podem pendurar quadros aborgines nas suas paredes, ns tambm somos capazes de danar as suas danas, porque queremos que as crianas no sejam expulsas da escola. Toda a comunidade de Palm encarou o baile como uma vitria
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contra o impossvel. Dezenas de cpias das prvias da filmagem circularam entre as famlias da ilha e na cidade. Mas as mdias no transmitiram nada, e nenhum jornalista foi enviado, tal a falta de correspondncia entre o evento e a imagem esperada dos aborgines. O sucesso do baile foi to grande que muitas comunidades aborgines convidaram as ancis de Palm para irem organizar um em sua localidade e ensinar-lhes a danar. No filme, v-se o deputado representante do partido trabalhista da regio, Michael Reynolds, elogiar essa iniciativa como sendo seu melhor baile. Uma senhora levanta-se muito dignamente e se volta para a sala, apontando o ginsio: agora ns temos o hall e lana What next? (O quer vir em seguida?). Dirigindo-se ao deputado, ela aponta o dedo e diz: We are all going to be pushed off the island! (Seremos todos expulsos da ilha!). Michael Reynolds ri, volta-se para a sua vizinha, outra anci da ilha, e diz: Probably! (Provavelmente!). Trs meses depois, enquanto a ilha sofria uma tal seca que os habitantes foram orientados a tomar banho no mar e a beber gua de garrafa, um poltico anunciava na televiso que o nico remdio para a seca, o alcoolismo e as violncias da ilha era simplesmente deportar os trs mil aborgines da ilha para o continente. Por qu? Sem dvida, porque uma ilha paradisaca, cuja paisagem atrai um certo nmero de empresas que teriam o interesse de construir hotis para turistas, como em uma outra ilha, a Magnetic Island, onde praticamente no h mais aborgines. Um mito local conta que o rio Ross, que atravessa a cidade de Townsville, uma serpente que engoliu uma jovem que a recusava. Como a jovem que recusava a serpente, os aborgines tentaram, durante dcadas, recusar as sedues do Ocidente. Foram capturados pelo sistema colonial, deportados, encerrados sob o regime dito de assimilao. A jovem foi vomitada pela serpente, que acabou com o corpo separado da cabea, na forma de duas ilhas Palm e Magnetic ao longo do recife de coral. Os aborgines tambm foram divididos em dois, decapitados em nome de suas vises do Dreamtime, visto como uma filosofia de alto nvel, que nos seduz atravs das fantsticas pinturas aborgines, da msica vibrante e das danas dos corpos pintados, que supostamente nos transportam ao imaginrio de nossas
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origens. A sociedade aborgine est dividida: o pensamento de um lado a cabea boiando que nos faz sonhar , e o corpo social de outro, cujos sofrimentos e mltiplas tentativas de sobrevivncia so incessantemente ridicularizados. A assimilao no deu certo: a serpente da colonizao e do consumismo no pra de regurgitar apartheid no lugar de uma aliana invocada das profundezas do esprito, do que um antroplogo dos anos trinta, Loyd Warner, descreveu como uma civilizao negra. Trata-se justamente de uma civilizao, em um momento em que, apesar de suas diversas mestiagens, as populaes autctones dos quatro cantos do mundo se reconhecem entre elas, com uma viso comum, da qual depende a sobrevivncia de uma diversidade cultural to vital quanto a biolgica.
The first thing that needs to take place is that the community needs to get together. The whole community sit down and discuss whether we need a council, whether we need alcohol, whether we need all these other things and start to come to some agreement and put it on paper that this is what the community is saying: one part of the community is saying this, and another this, so we need to solve our own problems. And we need to start to Reconcile in our differences also. Its a learnt process, put our anger, our frustration against one another out, our hate towards one another is a learnt process, some of this is a generational stuff too. We need to put aside those differences and look forward. There is a saying eh: Children are our future but we do nothing about it, the future. At this present moment we do nothing about it. We need to change things and make things work. We know we got to do it on our own without government interference and that, when we have all these things in the right place, then the government needs to start pay some real action towards making sure that we will reach these goals (Lex Wotton, abril, 2005, Townsville).
Lex Wotton, sua me Agnes, sua irm Fleur e vinte outros aborgines de Palm Island correm o risco de serem condenados priso perptua por terem ousado dizer no injustia social. Um ano e meio aps a sua deteno, todos ainda esperam o desenrolar de seu processo, ao passo que a investigao sobre a morte sob custdia de Mulrinji Doomadgee, encontrado, no dia 19 de novembro de 2004, com o fgado partido em dois e o bao perfurado, foi novamente adiada. Hoje, dia 30 de junho de 2006, quando o Conselho dos Direitos
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humanos acaba de votar, por trinta votos contra dois (e doze abstenes), a adoo da Declarao dos Diretos Autctones (Declaration on the Rights of Indigenous Peoples)6 , s se pode esperar que a Austrlia se por mais escuta de seus povos autctones, no respeito da justia social e dos direitos humanos.
It is my hope that the Australian government will join with the overwhelming majority of nations around the world in endorsing the Declaration at the General Assembly and work with Indigenous peoples in Australia to faithfully implement its provisions (Tom Calma, Social Justice Commissioner, 2006).
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Agradecimentos Agradecimentos calorosos s famlias de Palm que me acolheram; a Ralf Rigby, cineasta aborgine da School of Indigenous Australian Studies de James Cook University (JCU), que montou o filme; a Jowandi Wayne Barker, diretor, compositor e intrprete aborgine que aceitou a utilizao de sua msica We can live together na trilha sonora; a School of Anthropology Sociology and Archeology (JCU), que me convidou como Adjunct Professor e emprestou-ma a cmara; Rosita Henry, diretora da SAAS/JCU, pelos seus preciosos conselhos. Toda a minha gratido a Pierre Brochet, pelos seus comentrios crticos; a Lise Garond, por ter me mantido a par da situao nos ltimos seis meses; e a todos aqueles que, em Townsville ou em outros lugares, pelas suas reunies de apoio ou por seus textos, mostram que a cruzada contra a injustia social no intil. Todo o meu reconhecimento tambm a Miriam Grossi e a Cornelia Eckert, que me convidaram a apresentar essa pesquisa na 25 Reunio Brasileira de Antropologia (RBA), que sua equipe organizou em Goinia em 2006: um intenso evento de discusses tericas e de trocas de pesquisas de campo que provam que a Antropologia pode ser, ao mesmo tempo, cientfica e engajada.
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Introduo Desde a dcada de 1980, povos indgenas da Austrlia tm estendido suas ferramentas de expresso locais para redes globais: exibies, festivais, imprensa, rdio, documentrios, pequenos dramas, filmes de longa metragem e pginas na internet (LANGTON, 2001). Muitos desaprovam os abusos do mercado de arte, que, apesar do surpreendente sucesso de pinturas aborgines, ainda parece beneficiar mais os distribuidores do que os artistas, cujo estilo de vida muitas vezes sujeito a condies miserveis do Quarto Mundo. Na era da tecnologia da informao, um meio para a sobrevivncia de culturas indgenas achar maneiras de controlar a circulao e a manufatura de produtos da criatividade indgena em velhas e em novas mdias, assim como a histria destas culturas e de casos correntes. Em relao a tal empoderamento indgena, a responsabilidade de antroplogos e de outros pesquisadores crtica. A restituio de nossa pesquisa envolve no s o retorno dos dados coletados, mas uma reinterpretao destes dados de uma maneira que os mesmos possam ser usados para o aprendizado, para a transmisso e para o prazer
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Barbara Glowczewski diretora de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), Laboratrio de Antropologia Social, Paris, e Professora Adjunta na Escola de Antropologia, Arqueologia e Sociologia, James Cook University, Townsville.
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atravs da esttica e do entretenimento, assim como para o preenchimento espiritual, em um processo crtico e tico. O caso de um aporte tico ao prazer no implica uma ordem religiosa ou moral, mas propriamente uma constante reavaliao de como cada imagem ou representao de qualquer cultura contempornea (indgena, musical, profissional, digital, etc.) impacta a justia social, a equidade, a tolerncia e a liberdade (TREND, 2001). Eu apresento, aqui, duas tentativas de restituio antropolgica desenvolvidas com povos aborgines para uma audincia mista. O primeiro um CD-ROM focado em uma comunidade central australiana, enquanto o segundo um DVD interativo justapondo quatro regies da Austrlia. Eu desenvolvi ambos os projetos para explorar e aumentar as fundaes culturais da maneira reticular pela qual muitos povos indgenas australianos mapeiam seu conhecimento e experincia de mundo em uma teia geogrfica virtual de narrativas, imagens e performances. Eu concluo discutindo um nmero de questes relacionadas a jogos on-line srios de multijogadores. Pensando em Redes Quando inicialmente vivi entre aborgines do deserto em Lajamanu, fiquei estarrecida pela estranha confluncia entre sua maneira tradicional de pensamento e o desenvolvimento de inteligncia artificial: esta interface de idias me fez intitular um artigo de 1983 como Tribes of the Cybernetic Dream (Tribos do Dream Ciberntico). A percepo, por parte de povos aborgines, da memria como um espao-tempo virtual e a maneira como eles projetam o conhecimento em uma rede geogrfica, tanto fsica quanto imaginria, estavam comeando a ecoar com a rede e com programas de hiperlink dos primeiros computadores ainda em sua infncia naqueles dias. A aplicao do pensamento reticular se expandiu universalmente atravs do desenvolvimento da internet. Provavelmente no uma coincidncia que o mercado contemporneo de arte se tenha apropriado da exploso de formas de arte aborgines que precisamente transpem trilhas costuradas em redes. Este fenmeno ilustra uma conexo universal entre formas e idias, mesmo que a conexo no seja expressa por aqueles que sejam seduzidos por tais obras de arte.
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O ambiente circundante realmente nos deixa olhar e escutar variaes culturais de uma maneira muito diferente daquela usada por ocidentais h um sculo. Esta tambm uma das razes para a corrente atrao por world musics3 e especialmente pelo didjeridu o instrumento ancestral inventado pelo povo aborgine e tocado, por mais de uma dcada, por milhares de fs mundialmente, os quais agora esto criando seus prprios sites na internet. O povo aborgine tambm tem seus prprios stios na rede. Eles os usam para promover sua arte, suas turns de msica e de dana ou a organizao de festivais e de trilhas de arbustos para os turistas aventureiros. Eles tambm ensinam em vrias lnguas e colocam arquivos sobre variados temas polticos e jurdicos on-line. Tal desenvolvimento foi possvel porque a Austrlia equipou suas escolas com computadores e est subsidiando um certo nmero de organizaes indgenas para instalar tal tecnologia e providenciar treinamento em seu uso. Entretanto, muitos povos aborgines ainda vivem em condies de Quarto Mundo e no tm acesso a esses servios. Como expressado por povos indgenas ao redor do mundo, essencial facilitar o extensivo uso de tais meios de comunicao. Computadores parecem facilitar, de sua prpria maneira, a circulao de sistemas culturais de conhecimento. Para serem transmitidos, estes sempre dependeram de performances orais e visuais, tanto como de prticas ativas de sobrevivncia no meio. Hoje em dia, tal transmisso , muitas vezes, ameaada quando novos estilos de vida dominados por escrita, televiso e consumo passivo so impostos. No o suficiente gravar, estocar e colocar dados audiovisuais on-line ou em mdia digital para que se tornem uma fonte de informao e de aprendizagem sobre uma certa cultura. Bases de dados e sites na internet pressupem a construo de mapas cognitivos, que devem respeitar e refletir as maneiras como diferentes mdias de ensino se relacionam entre si e tambm os vrios nveis de conhecimento e de expertise, alguns dos quais devem manter-se secretos. possvel relacionar tudo a priori; entretanto, para entender as relaes que produzem um sentindo em uma lgica social e cultural dada, necessrio conhecer as regras de
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associao que constituem a filosofia, a tica e os imperativos de sobrevivncia de um grupo particular. Durante estas ltimas dcadas de expanso audiovisual e de circulao quase instantnea de variadas informaes, tivemos uma mudana de paradigma, particularmente em relao nossa compreenso acerca do funcionamento da memria, a relao entre matria e esprito, entre o real e o virtual. Tal mudana nos fora a considerar diferentemente o que as populaes chamadas primitivas expressam sobre sua relao com o mundo. Tome-se, por exemplo, o debate acerca de povos australianos pr-contato serem ignorantes em relao s conseqncias do intercurso sexual, pois eles insistiam na necessidade da manifestao de um esprito-criana para a mulher engravidar. O postulado acadmico que ope esperma a esprito parte da glria da concepo imaculada Crist, que acha difcil reconciliar o corpo com a mente4 . Para os aborgines, desnecessrio dizer que algo do homem mais algo da mulher necessrio para fazer uma criana, mas no suficiente: uma virtualidade da vida tambm deve manifestar-se, um desejo de viver que, por vezes, se anuncia em um sonho, assim capturando a me ou o pai. Os Warlpiri do deserto central ainda dizem hoje que, para capturar seus futuros pais, os espritos das crianas que querem nascer vivem uma existncia virtual na terra e utilizam um propulsor de sonhos para realizar seu nascimento5 . Essa afirmao Walpiri iluminadora e talvez apropriada para pessoas que hoje lutam contra infertilidade. Desde que a psicanlise nos acostumou a aceitar o poder do inconsciente sobre o corpo, ns temos tudo a aprender de teorias do sonho e a relao entre matria e esprito entre povos aborgines6 .
A concepo imaculada se refere ao dogma mandatrio catlico (1854) que diz que Maria nasceu livre do pecado original e crena de que ela era virgem quando Jesus nasceu isso , no houve ato sexual necessrio para a concepo. O paradigma da Virgem Maria tem regulado muitas vezes inconscientemente um preconceito antropolgico ocidental que continua opondo a dimenso do esprito dimenso fsica, enquanto muitas culturas indgenas combinam os dois.
4 5 Espritos criana so ngampurrpa, desejantes de vida, agentes em seu vir a ser como humanos (GLOWCZEWSKI & GUATTARI, 1987).
Cosmologias aborgines podem informar a teoria psicanaltica e a medicina ao mostrar, por exemplo, maneiras mais holsticas de tratar a esterilidade e outras desordens mentais ou corporais.
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Conhecimento do Sonho: ritmo, relaes e memria Eu tinha uma cmera Pathe Webo de 16 mm uma antigidade hoje em dia com trs lentes giratrias e um magazine para rolos de trs minutos. Ela era mecnica, portanto se podia apenas gravar trinta segundos de cada vez e, ento, tinha de se rebobinar a mola de tenso com uma manivela para gravar novamente. Eu no tinha problemas com isso porque, antes de vir para a Austrlia, fazia filmes experimentais e s estava interessada em gravar seqncias muito pequenas para produzir efeitos de inconstncia e de rapidez entre a informao gravada em cada frame parado. Subseqentemente, eu trouxe meus filmes para Lajamanu em 1979. Aps verem um filme apresentando uma rpida seqncia de diferentes geraes de minha famlia fotografadas em diferentes lugares da Polnia e da Frana, algumas pessoas velhas disseram: este bom, esta sua famlia, este seu pas.... Ento, filmei diferentes rituais das mulheres Warlpiri em um estilo similar e, aps um ms de trabalho de campo, mandei a filmagem para Sydney, onde Ian Dunlop generosamente a organizou para ser processada e a enviou de volta para mim. Eu organizei uma exibio com o projetor da misso Batista, e o filme causou uma comoo: por que voc nos fez parecer to bobas?! disseram as mulheres. O filme mostrava mulheres danando em diferentes ritmos, com superimposies, vises focais mltiplas da paisagem, algumas vezes ao contrrio uma tentativa de traduzir o efeito de condensao do sonho. Prometi filmar diferentemente e, ento, gravei os rituais das mulheres de uma maneira mais convencional. A velocidade da imagem aumentou consideravelmente nos filmes desde a dcada de 1980, e a conveno da edio atravs da produo de clipes musicais modificou radicalmente a relao cognitiva das audincias com o filme em todos os lugares do mundo. Clipes de vdeo, por exemplo, usam efeitos que desaparecem rapidamente para sugerir diferentes nveis de subjetividade e para desconstruir o espao e o tempo em nveis imaginrios. Entretanto, alm da conveno do tempo do ritmo do filme, permanece uma questo: qual a lgica para este ritmo e qual a legitimao para se conectarem duas imagens? Para os Warlpiri, ritmo demonstra tanto informao til quanto a fala ou movimentos de dana. culturalmente importante: algum
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no pode simplesmente brincar com isto. Similarmente, conexes produzem sentido, sendo que no se pode editar duas imagens conjunta e aleatoriamente. Esta foi minha primeira lio acerca de um sistema de conhecimento indgena que perpassa todo um campo de sentidos e de cdigos que no so apenas culturalmente relevantes mas que nos ensinam sobre o efeito do ritmo (produzido por uma repetio linear) e das conexes (organizadas em trilhas que se entrecruzam). Tais cdigos indgenas de tempo e de hermenutica cultural no so apenas teis para interpretar dana ou para guiar o bem-estar: elas so tambm chaves para memria e sobrevivncia. Por exemplo, trilhas oferecem tanto informao de tempo quanto de espao. Se a pegada de um animal tem um dia, deve-se avaliar se vivel segui-la; mas, se a pegada fresca, tem-se a escolha de se tomar seu tempo ou de se mover para peg-lo antes que se esconda. A concepo e a experincia do tempo no deserto so relativas, quase de uma maneira no-Euclidiana. Por exemplo, uma trilha juntando trs buracos dgua (watering holes) espalhada por cem quilmetros relativamente maior que uma outra trilha de cem quilmetros cruzando um campo sem nenhum buraco dgua. Esta relatividade advm da velocidade com a qual se precisa viajar de maneira a sobreviver. preciso ir rpido para atingir o prximo buraco dgua antes de se estar com muita sede, mas se pode ir mais devagar ou parar se existe gua no caminho. Ento, quando o povo aborgine do deserto canta uma trilha conhecida por sua falta de gua, eles podem cant-la aceleradamente (fast forward) em uma forma ritual, como uma maneira de aprender como sobreviver naquela terra. Pessoas continuaram a realizar este tipo de interpretao e de transmisso de conhecimento atravs do ritual mesmo estando localizadas em reservas administradas pelo governo. Elas continuaram a viajar usando rituais, reproduzindo uma representao udio, visual e mental da paisagem. Graas a estes tipos de performance, incorporadas em uma memria cinestsica e de procedimento, uma vez que o povo do deserto se movesse de volta sua terra para colonizar estaes de fronteira, eles conseguiam achar seu caminho. Neste sentido, conhecimento de sobrevivncia no enciclopdico, mas reticular. Dados que ns gravamos de experincias
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de pessoas so fotografias vistas atravs dos olhos da pessoa que descreve estas experincias. Nunca pode ser a descrio geral de uma sociedade, mesmo que a sociedade seja holstica, porque a abordagem holstica acessar o todo de qualquer parte sempre relacionada a lugares singulares. como ter centenas de culos diferentes que se pode trocar de acordo com o lugar onde se situa. Ver a realidade deste ponto de vista ser diferente do que seria visto de outro, mas so necessrios estes dois, trs, ou muitos pontos de vista para fazer alianas, para realizar um ritual, para regenerar uma sociedade. Este pensamento reticular, que evoca o rizoma de Deleuze e de Guattari, tambm experimentado ao se navegar pela World Wide Web quando usurios conversam, se encontram, criam e conectam seus stios. O pensamento reticular parece articular a lgica aborgine do mito, das relaes familiares e da propriedade de terra, mesmo quando so costurados atravs de outras estruturas e topologias (BENTERRACK et al.,1984; GLOWCZEWSKI & GUATARRI, 1987; ROSE, 1992; RUMSEY, 2002; GLOWCZEWSKI, 2004). Milhares de histrias e de canes apresentam entidades separadas (um dreaming, um ancestral, um grupo, uma pessoa, um animal, uma planta), mas elas se entrecruzam, e os pontos de encontro produzem singularidades. Essas entidades podem ser lugares sagrados, encontros com conflito ou aliana e emergncia de novos significados. Elas podem ser novas manifestaes, como o esprito criana nascendo em uma criana, ou uma nova cano ou pintura sendo sonhada para aquele lugar. Pensamento no-linear ou reticular principalmente exalta o fato de que no h centralidade para o todo, mas uma viso multipolar de cada rede recomposta dentro de cada singularidade por exemplo, uma pessoa, um lugar, um dreaming propiciando a emergncia de novos sentidos e performances, encontros e criaes como novos fluxos autnomos. Retornando dados: linhas de histria e stios de conexo De volta a Lajamanu, em 1984, optei por uma cmera fotogrfica e um gravador de fitas analgico. Destes dados, quinhentos slides e trs horas de som em Warlpiri foram selecionados para um projeto digital de restituio que eu desenvolvi dez anos depois. Restituio,
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para um antroplogo ou para uma antroploga, no exatamente o mesmo que repatriao. Quando pessoas praticam suas cerimnias, suas danas, suas canes, eles no precisam delas de volta. O que precisam do conhecimento anexado a estas, que muitos vem como roubados pelos cientistas, pois sua expresso est gravada em mdia material (papel, fita, filme). Antroplogos se deparam com isto em todos os lugares do mundo. O que esto realmente retirando? Esto retirando o direito de falar no nome de pessoas de quem recebem o conhecimento. O que deve ser devolvido? No o contedo em si, mas como ele expresso: eu estive l, eu vou lhe dizer como eles vivem, o que fazem, quem so. Pessoas que estudamos nos perguntam: o que voc est dizendo sobre ns? Devolva-nos, pois queremos saber o impacto que tem. uma reivindicao legtima para qualquer grupo, para qualquer indivduo; mas, no caso de povos indgenas, essa reivindicao uma ferramenta poltica de empoderamento. Para devolver minha pesquisa aos Warlpiri, decidi, em 1995, desenvolver uma ferramenta multimdia conectando imagens de rituais e de paisagens, fotos e pinturas em acrlico e gravaes sonoras de mitos e de canes. A estrutura original foi desenvolvida em HTML, mas posteriormente a convertemos para Macromedia. A idia era constituir algo como um mapa mental o que chamo de mapa cognitivo que daria um insight sobre como elementos de conhecimento se conectam entre si no processo de aprendizagem dos Warlpiri. Minha convico era de que convidar os usurios a conectar imagens, danas e msicas com lugares, linhas de histria e trilhas da maneira que os Warlpiri fazem deveria ajudar qualquer um a entender como estas conexes trabalhavam como uma rede significante: hiperlinks poderiam, idealmente, sugerir como entrecruzar linhas de histria e camadas de significado. Eu desenhei um mapa esquemtico com cinqenta topnimos e superpus quatorze maneiras de se conectarem alguns destes stios de acordo com histrias do dreaming que eu havia gravado. Ento, quatorze linhas do dreaming iriam aparecer, mas nunca ao mesmo tempo. Este mapa virtual feito de quatorze camadas de conexes tornou-se o portal interativo para cerca de quatorze horas de dados audiovisuais. O usurio pode clicar em qualquer stio ou linha para adentrar a constelao relevante dos dreamings e explor-los do ponto
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de vista de centenas de hiperlinks propostos, alguns se abrindo como pequenas janelas, e outros o levando a novas trilhas. O mapa uma teia invisvel, pois os entrecruzamentos das linhas no aparecem simultaneamente. As conexes so apenas descobertas quando a narrativa de uma linha de histria que indica conexes para outras trilhas revelada. Em outras palavras, cada linha autnoma, e cada cruzamento ou hiperlink requer a interao do usurio. O CD-ROM Dream Trackers (GLOWCZEWSKI, 2000) inclui uma pequena metamorfose: uma fotografia de uma colina sagrada Kurlungalinpa no Deserto de Tanami se torna uma pintura do dreaming deste lugar pela artista Warlpiri Margaret Nungarrayi Martin. A pintura mostra o mesmo lugar como uma rede de linhas conectando o stio sagrado a outros cinco lugares da mesma linha de cano, Ngarrka ou Homem Iniciado. A artista Warlpiri e outros supervisores de outros dreamings amaram a idia de a animao transmitir a mesma identidade e o poder de transformao de uma imagem em outra. Eles ficaram satisfeitos, pois era a pintura certa para o lugar certo. Uma metamorfose com uma pintura de outro lugar no teria funcionado. A escrita reticular do script multimdia permitiu que eu testasse primeiro com os ancios (que no lem ou escrevem) se as conexes audiovisuais que eu havia delegado eram apropriadas e, ento, convidar os usurios mesmos para que conectassem os elementos acumulados atravs de suas exploraes. Para respeitar o sistema Warlpiri de conexes significantes, cada palavra Warlpiri leva a outros conceitos Warlpiri; cada pintura conecta-se a canes e a histrias; cada artista conecta-se a outros artistas do mesmo dreaming; e certos lugares ligam-se a outros lugares. Quando o usurio viaja em uma linha de histria e chega a um stio em que os heris de uma linha de dreaming encontram heris de outra linha de dreaming, eles podem mudar de trilha clicando no nome do lugar. A multimdia permite a experincia de viagem reticular como um processo de aprendizagem. Muitas coisas podem ser conectadas, mas deve ser feito de maneira que cada vez a razo cultural para aquela conexo seja aprendida. Canes, dana, histrias e pinturas, todas se relacionam com lugares, ento os CD-ROMs Yapa ou Dream Trackers se tornaram mapas-mentais Warlpiri nos convidando assim como as pessoas jovens na escola de Lajamanu para explorar algumas
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destas conexes. Ns tambm tivemos de desenvolver um dispositivo para impedir o acesso as imagens de pessoas recentemente falecidas adaptando a revelao da imagem do falecido ao tempo ritual. Assim como apontado pelo artista Warlpiri Jimmy Jampijinpa Robertson, o CD-ROM Yapa traz todos para a mente (GLOWCZEWSKI, 2001). Yapa, significando aborgine povo indgena em Warlpiri (oposto de kardiya, no-indgena) , foi o ttulo provisrio deste processo de restituio multimdia. A UNESCO Publishing, aps assinar uma parceria de distribuio e copyright intelectual com o Centro de Arte Lajamanu, Warnayaka, pediu um ttulo mais descritivo. Eu escolhi Dream Trackers porque o trilhar realmente o ncleo da maior parte da filosofia aborgine. Um lugar marcado pela trilha no significa que a trilha apenas uma metfora: um acesso ao todo, uma chave para investigar aes passadas, presentes e futuras. Uma trilha ou pegada como uma impresso para um prottipo a partir dela, pode-se reconstituir a performance. A trilha ou pegada no s um momento fixo no tempo: o trao deixado por algo que est se movendo, danando ou andando um dinamismo essencial na cultura aborgine. Muitas vezes, a interpretao da arte aborgine limitada porque reduzida viso semitica dos signos, do contedo e da forma. Ela perde o que mais importante: o trao como prova de passagem de algo mais, algum lugar diferente. A prova daquela pegada fsica se relaciona com todas as narrativas que se pode construir atravs dela, o que expressa as reais relaes das pessoas com a terra. Aprendendo atravs do jogar com uma fico interativa Para tentar alcanar mais fundo o sabor narrativo do contar histrias aborgines e seu potencial multidimensional para mltiplas conexes, eu queria construir um DVD interativo, um filme de drama cuja visualizao total requereria que a audincia jogasse uma srie de jogos conectados a diferentes episdios. Cada um destes segmentos de drama convidaria o usurio a explorar uma comunidade aborgine de diferentes regies da Austrlia em termos de paisagem, arte, cultura e linguagem, histria colonial e situao atual. Passei semanas desenhando vrios mapas mentais para testar os contedos e as conexes apropriados para a narrativa do filme. O primeiro rascunho
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era muito complexo, desenhado como um filme de estrada, entrecruzando toda a Austrlia com variaes programadas levando o usurio do DVD para diferentes lugares e eventos na linha de histria. A histria era construda como uma rede de conexes virtuais que iriam atualizar a si mesmas dependendo da maneira como o jogador fosse jogar um jogo. Por exemplo, se os usurios pontuassem bem em relao misso de sobrevivncia envolvendo o reconhecimento de animais, plantas, estaes do ano e mapeamento, eles seriam convidados a explorar o deserto. Mas, se a pontuao fosse melhor em relao misso do museu, envolvendo identificao de arte local, artefatos culturais e histria da arte urbana, o usurio seria convidado a explorar outra regio. Se tivesse sucesso em identificar diferentes formas de dana, canto e linguagem, ele seria convidado a ir a Arnhem Land (Terra de Arnhem), e assim por diante. Tambm havia diferentes opes oferecidas de acordo com a escolha do gnero do jogador ou da jogadora. Como estas variadas opes estavam tomando em conta a performance do usurio e o processo de aprendizagem atravs de jogos, eles iriam requerer a escrita de uma complexa srie de dramas de maneira que os diferentes episdios localizados pudessem ser editados em uma ordem diferente sem que se perdesse a continuidade das histrias nem seu contedo relevante. As linhas de cano do dreaming aborgine podem ser experimentadas em qualquer performance dada com similar adaptao ao contexto. Por exemplo, segmentos de histrias so omitidos quando uma pessoa morre, s vezes o mesmo episdio repetido em dois diferentes lugares ou mais, e, em outras vezes, a ordem da ao revertida, como um loop, mesmo que, por vezes, haja uma cronologia e uma evoluo dos personagens que so os heris da linha de cano: ancestrais Wallaby ou Snake, e povo Rain ou Plum. A questo era: como representar tanto agentes humanos como agentes do dreaming? O uso de animao pode desvelar histrias baseadas na realidade atual, mas tambm alguns aspectos do mundo do dreaming. A animao pode integrar tais elementos no processo de aprendizagem de um jogo por exemplo, a ajuda de animais totmicos ou o manejo de foras espirituais manifestas atravs de vento, fogo e chuva. Mas produzir tal projeto era (e ainda ) incrivelmente caro, especialmente se um time de pessoas aborgines composto de peritos de diferentes reas
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(arte, msica, dana, sobrevivncia, parentesco), estivesse envolvido na locao. Eu pensei, naquele momento, que filmar com atores pudesse ser uma melhor opo em vez de um filme animado. Ns formamos um pequeno time de contribuintes voluntrios para o projeto durante trs anos. Selecionamos cinco regies o Deserto Oeste (Western Desert), Leste de Arnhem Land, Parque Gariwerd em Victoria, a Cidade de Perth na Austrlia Ocidental, e Laura no Cabo York e cinco tpicos arte, festivais, centros culturais, histria familiar e sobrevivncia na natureza. Meu marido, cineasta aborgine e cantorcompositor, Wayne Jowandi Barker, escreveu um script de drama de uma hora em 2000 que interligava as cinco regies e tpicos7 . O filme foi concebido como cinco episdios, cada um de dez minutos, que requeriam da audincia realizar uma tarefa para poderem continuar a ver a histria. Esta opo parecia a mais fcil para o usurio, pois lhe permitiria entender as complexidades da histria aborgine e o dilema pessoal e cultural ao acompanhar uma histria. Fomos a Arnhem Land com uma pequena cmera digital e trouxemos de volta afirmaes de uma famlia Yolngu de Bawaka que nos fez modificar a linha da histria para que enfatizasse a presena espiritual como um agenciamento animando os personagens (BARKER & GLOWCZEWSKI, 2002). Outras cinco propostas de jogos educacionais foram escritas como ferramentas interativas conectando a histria do filme. O envolvimento do usurio nestes jogos objetivava a ajuda dos dois atores ou atrizes principais na aprendizagem de como identificar arte, dana, msica e fatores culturais, arquivos de histria familiar e grupos de linguagem, paisagens e seus recursos. O primeiro jogo, desenvolvido por Laurent Dousset (2000-05), um antroplogo e webmaster com uma longa experincia sobre o povo do Deserto Ocidental (Western Desert) e sobre anlise de parentesco, consistia em aprender como procurar em arquivos de histria familiar para a identificao de um dado grupo lingstico e sistema de parentesco. O segundo jogo, desenvolvido por John Stanton, diretor do museu de
Uma jovem mulher de Perth procura pela famlia de sua me, que foi levada como vtima da gerao roubada. Ela encontra um danarino Yolngu de Arnhem Land no centro cultural Gariwerd. Os dois jovens seguem uma busca diferente, mas ambos viajam pela Austrlia e se encontram em outros lugares: um museu em Perth, o festival Garma em sua terra natal e na comunidade do deserto de Balgo, onde a jovem mulher encontra sua famlia.
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Antropologia Berndt em Perth, convidava o jogador a organizar uma exibio aborgine escolhendo entre uma srie de tpicos ou se focalizando em uma das cinco regies e em seu povo. O terceiro jogo, criado por Jessica de Largy Healy (2004), que estava, ento, trabalhando com o Centro Cultural Aborgine Brambuk, do Parque Nacional Gariwerd, explorava as diferentes funes de um centro cultural: de um simples lugar de preservao seguro, at um lugar de grande herana e precinto turstico. O quarto jogo foi proposto por Fred Viesner, que fez trabalho de campo com o povo Anangu para seu doutorado; seu objetivo era de introduzir o usurio a alguns sistemas indgenas de conhecimento em relao sobrevivncia na natureza: seguir trilhas para caa, identificar plantas comestveis ou medicinais, encarando a condio de seca, mas tambm lidando com a economia atual em relao minerao, proteo de lugares, gerenciamento de outstations (estao situada em local longnquo) ou centros de arte. Rosita Henry (2000), uma antroploga que estudou o processo do festival de dana Laura por mais de vinte anos, sugeriu um tour virtual de diferentes festivais culturais para o ltimo jogo, introduzindo ao observador protocolos ticos a serem respeitados por performers e por audincias. Eu me aproximei de agncias de fomento Australianas e Francesas em filme, multimdia, cincia e cultura em vo: aquela espcie de DVD interativo que ns queramos criar coletivamente no era um filme, nem um jogo ou uma base de dados, ento no existiam fundos correspondentes para seus requerimentos. Uma pequena concesso foi eventualmente liberada por minha instituio em Paris, o CNRS Centre National de la Recherche Scientifique (Centro Nacional para Pesquisa Cientfica) , e pelo Muse du Quai Branly para fazer uma demonstrao de uma hora para exibir um projeto de filme cultural interativo. Como no podamos arcar com a filmagem de um novo filme, ns utilizamos gravaes previamente feitas por Wayne Jowandi Barker para outros projetos. Juntos, ns editamos um filme de dez minutos organizado em dezesseis sees, simulando grandes jornadas atravs de quatro regies da Austrlia: a Pennsula Dampier, o Plateau Kimberley, Deserto de Tanami e o Nordeste de Arnhem Land. Havia uma nfase na relao entre diferentes paisagens, assim como em relao arte, dana e ao canto
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relevante. Esta demonstrao de cinqenta minutos, chamada Quest in Aboriginal Land, foi premiada e apresentada em muitos lugares, mas falta de mais fundos impediram que o projeto original se completasse8 . Curiosamente, mesmo que a mdia DVD tenha dominado o mercado do vdeo, h poucos documentrios interativos disponveis em DVD. Apenas grandes companhias de produo e canais de TV podem arcar com os custos de tais produes digitais, incluindo o pagamento de copyright para distribuio. Esta limitao financeira muito danosa ao futuro da Antropologia visual e de filmes etnogrficos, pois o formato DVD interativo perfeito para documentao e anlise. Ele permite a incluso na mesma mdia de diferentes verses editadas, de diferentes duraes, com ou sem uma trilha sonora, um comentrio, uma legenda em uma ou vrias lnguas, incluindo milhares de pginas de arquivos escritos, visualizao de fotos, e at mesmo links de internet para maiores informaes ou atualizaes. Alm do mais, pode oferecer ensino cultural baseado em jogos de simulao para construir pequenos eventos e contextos evoluindo baseados em arqueologia, mitologia, histria ou vida contempornea. Jogos multijogadores de interpretao Jogos 3D de busca em CD-ROM ou em DVD e jogos multijogadores de interpretao de papis na internet evoluram consideravelmente, tanto em rea como em termos de copyright. Alm dos donos de software que vendem direitos de licena ou mensalidades e inscries on-line, jogadores que criam suas prprias ferramentas como parte e campo de jogar tais jogos so hoje reconhecidos donos de copyright de suas criaes digitais e podem vender s vezes por uma incrvel quantidade de dinheiro tais artefatos virtuais. Milhes de personagens fantsticos e criaturas hbridas guiadas ocupam a
Premiado como Melhor ilustrao de cincia para uma grande audincia no Festival de Filmes de Pesquisadores, em Nancy, 2003; projetado em um loop em duas gigantescas telas flutuantes como parte da exibio de arte Aborgine Rves Arc-em-Ciel no Museu Nacional de Histria Natural, em Lyon, 2004, e na International Union of Anthropologists Conference (Conferncia da Unio Internacional de Antroplogos) em Florena, 2003. A demonstrao da Quest in Aboriginal Land est inclusa no DVD que acompanha este nmero de MIA.
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internet hodiernamente, com armas imaginrias e variados truques mgicos. Muitos inventores tomam inspirao de lendas e de mitos, misturando todos os perodos e regies. Alguns jogos como Civilization so baseados em muitas figuras histricas que provem algumas estratgias histricas como opes no jogar visando a desenvolver uma civilizao de maneira que cidades se expandam com comida suficiente, dinheiro e entretenimento. Tal modelo muito baseado em uma idia evolucionria deste mundo virtual que, em uma maneira reducionista, simplesmente mistura diferentes perodos histricos mas pouca diversidade cultural. At o momento, o povo indgena da Austrlia no foi usado como exemplo de civilizao digital. Mas a tendncia para desenvolver os chamados jogos srios est crescendo. Em 2002, eu recebi um e-mail de um estudante estadunidense afro-descendente que, como parte de sua graduao no MIT Comparative Media Studies Department (Departamento de Estudos Comparativos de Mdia do MIT), queria desenvolver um jogo multijogador via internet baseado em sua percepo do dreaming em uma comunidade aborgine da Austrlia Central. Ele intitulou seu projeto Dream Trackers, como meu CD-ROM (GLOWCZEWSKI, 2000), do qual ele havia retirado idias e dados juntamente com dados de outro antroplogo (MEGGITT, 1962), e de um lingista e contador de histrias Warlpiri (CATALDI & ROCKMAN, 1994). A grande preocupao do estudante era desenvolver um jogo que pudesse provar a possibilidade de se aprender sobre uma cultura atravs de uma abordagem ldica de jogabilidade. Os jogadores teriam de evoluir em diferentes estgios de iniciao para aprender sobre cultura aborgine. A moldura do jogo era MMORPG Massive Multiplayer Online Role-Playing Game (Jogo On-line Massivamente Multijogador de Interpretao de Papis) , como Dungeons and Dragons ou outro tipo de quest games em que centenas e at milhares de jogadores podem se juntar on-line, disfarando-se em suas personas como avatares, encarando diferentes testes, trocando ferramentas informacionais e virtuais entre eles. Em sua apresentao escrita, o estudante reconheceu a histria colonial do povo indgena, a importncia da tica, o respeito do conhecimento secreto, o equilbrio de gnero e a especificidade da cultura do dreaming aborgine. Mas o script do jogo
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em si, construdo ao redor de estgios de iniciao, inclua rituais secretos que no deveriam ser comentados publicamente. Eu escrevi de volta com grandes crticas em relao ao uso dos dados diferentes e insisti em que nenhum jogo deveria ser desenvolvido neste projeto sem a negociao de uma parceria assinada com os povos aborgines relevantes que mantinham o copyright intelectual do uso de sua informao e prticas culturais aplicadas ao jogo. Este princpio tico foi aceito tanto pelo estudante como por seu supervisor9 . Eplogo A questo principal a ser discutida em um produto multimdia ou em um jogo de aprendizagem sobre uma cultura o que os usurios ou jogadores tm de aprender sobre esta cultura. No CD-ROM Dream Trackers, eu propus uma experincia do pensamento reticular indgena atravs da navegao da teia Warlpiri de histrias e canes entrecruzadas do dreaming. No projeto de drama em DVD interativo Quest in Aboriginal Land, ns tentamos produzir condies virtuais de drama, suspense, desafio e diverso, para uma explorao motivada de fatos apresentados diretamente no DVD ou atravs de links propostos para stios existentes com recursos indgenas como a Biblioteca AIATSIS, o Projeto Histrico Familiar em Adelaide (Family Hystory Project in Adelaide), a Unidade de Ttulo Nativo (Native Title Unit), o Centro Indgena DOCIP em Genebra, outras ONGs e organizaes aborgines. A idia de ambos os projetos era encorajar a explorao para que os usurios pudessem entender como negociar conhecimento existente usando um mtodo reticular. Pensamento nolinear e reticular geralmente aponta para o fato de no haver centralidade para o todo, mas uma viso multipolar de cada rede recomposta dentro de cada singularidade uma pessoa, um lugar, um dreaming , propiciando a emergncia de sentidos e de performances, de encontros e de criaes como novos fluxos autnomos originais. Pensamento reticular ou em rede eu argumento uma prtica indgena muito anci, mas ela ganha, hoje, uma incisiva atualidade
A bolsa de estudos do estudante era parte de um pacote de fundos para o Projeto Games-to-Teach que a Microsoft i-campus estava patrocinando no MIT em troca de prottipos para desenvolver produtos dos quinze scripts propostos por estudantes. A proposta de jogo Dream Trackers of the Dream Time Community (2002-04) era a nica na rea de antropologia cultural
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graas ao fato de que a nossa assim chamada percepo cientfica da cognio, da virtualidade e da performance social se modificou atravs do uso de novas tecnologias. Reconhecimentos Agradecimentos especiais a todos os artistas e contadores de histria Lajamanu que participaram no CD-ROM Dream Trackers (1995-2000); a Jowandi Wayne Barker, Jssica De Largy Healy, Laurent Dousset, Rosita Henry, John Stanton e Fred Viesnet, ao povo Yolngu de Bawaka e ao Festival Garma, que contriburam para o projeto Quest in Aboriginal Land (2000-2002); e a Julien Stiegler por desenvolver a animao interativa. A seo Pensando em Redes foi traduzida pela autora de seu livro (GLOWCZEWSKI, 2004) e reproduzido por cortesia da editora, Terre Humaine. Outros materiais foram apresentados em Novembro de 2003 na conferncia da AAA, em Chicago, e no MIT, em Boston. Zachary Nataf deu sua permisso para apresentar seu projeto de jogo cultural do MIT (2002-2005). Toda minha gratido a Rosita Henry por comentrios no artigo e escola de Antropologia, Arqueologia e Sociologia da James Cook University em Townsville, onde este artigo foi escrito. Post-scriptum - Inalienabilidade Dos Saberes Intangveis10 Em 2003, a UNESCO decidiu homenagear uma tradio de desenho sobre a areia do Vanuatu, concedendo-lhe o prmio do patrimnio intangvel: a tcnica consiste em traar tramas simblicas perfeitamente simtricas sem levantar o dedo da areia. O resultado assemelha-se aos traados obtidos apertando dois botes de uma lousa mgica, ou a redes de computadores, com suas linhas perfeitamente paralelas, que formam ns a cada cruzamento. Se a impresso visual desses desenhos evoca nossas ferramentas tcnicas mais modernas, tambm uma explorao ancestral das analogias formais e simblicas que ligam intimamente os homens quilo que figuram: animais, plantas ou espaos rituais. H igualmente fractais africanos
(www.educationarcade.org/gtt/proto.html). Texto escrito aps os debates sobre o texto apresentado no Workshop de Patrimnio realizado em Gois aps a 25a RBA. Traduo de Mariana Jofilly; reviso de Fernanda Cardozo.
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reproduzidos em tecidos de roupas, tranas de cabelo ou ainda na arquitetura de recintos e de cabanas de aldeias: esses procedimentos visuais de junes correspondem a um modo de raciocnio cosmolgico muito antigo, cuja contemporaneidade esttica provm, no Ocidente, de novas descobertas matemticas e de computao grfica. Podemos dizer que a prtica do mito concedeu a essas culturas um certo copyright intelectual sobre essas formas fractais que hoje em dia assinalam, de certo modo, sua especificidade cultural: arquitetos africanos contemporneos adaptaram, assim, os antigos fractais decorao e prpria estrutura de prdios modernos (EGLASH, 1996). Os povos indgenas do Pacfico, como outros autctones, procuram hodiernamente controlar a representao de sua cultura difundida pelos antroplogos, pelos museus e pelas mdias. As conseqncias da re-apropriao da cultura material foram abundantemente discutidas nos Estados Unidos e na Austrlia. Mas foi mais recentemente, aps o projeto de Carta sobre os Direitos Indgenas, desenvolvido pela ONU, que a questo da propriedade intelectual dos saberes indgenas veio a questionar o estatuto e o destino da produo antropolgica. Em outubro de 2006, deve ser ratificada, pelos pases membros da UNESCO, a conveno sobre a propriedade do patrimnio intangvel. O princpio de copyright reconhecido a todos os pintores do mundo, no que tange reproduo de suas obras em livros ou em outros usos; nesse sentido, pintores aborgines obtiveram a suspenso da fabricao de um tapete por uma empresa da Indonsia que havia utilizado a estampa de uma pintura sobre cortia, sem pedir autorizao a seu autor. A questo gira em torno do copyright de motivos que, antes da comercializao dos suportes introduzidos como telas (ou ainda carros, fachadas, solos ou tetos de prdios, etc.), eram mentalmente perpetuados pela realizao de obras efmeras, que no eram jamais copiadas, apenas rememoradas: com efeito, o desenho sobre o corpo, a areia e at sobre tbuas de cera permitiam desenhar dentro de uma dinmica ativa, cuja fora espiritual residia precisamente na destruio do desenho como parte integrante do prprio ritual de sua fabricao. Apesar dessa ausncia de suportes fixos ou, talvez, graas recusa em utilizlos , os motivos passavam de rito em rito e de gerao em gerao, memorizados como mapas mentais que criptografavam vrios outros
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saberes no transcritos e, no entanto, transmitidos: sobre as estaes, os animais e as plantas e todas as correspondncias perceptveis no meio-ambiente por exemplo, entre o som e a imagem. Os motivos desenhados ou cantados so inalienveis e colocam um problema em termos da legislao do patrimnio intangvel: segundo a atual lei do copyright, os direitos sobre um patrimnio so transferidos quele que os fixa sobre um suporte (gravao, fotografia, transcrio publicada de uma narrativa). Ora, os aborgines e outros autctones afirmam que os contedos desses saberes ancestrais, assim como as novas criaes iniciadas no despertar ou no sono, lhes pertencem e no podem ser apropriados por outrem. Lutam, h dcadas, para que narrativas, cantos, motivos ou objetos sagrados, que consideram secretos, no sejam difundidos. O dinheiro gerado pela comercializao freqentemente constitui muito mais uma fonte de enriquecimento para aqueles que compram o copyright do que para os seus criadores ou para os descendentes destes. Para garantir a reapropriao, pelos autores, da renda gerada por essas produes, a livre circulao pode ser, s vezes, uma soluo. Trata-se de um desafio intelectual interessante que a lgica de inalienabilidade na circulao de motivos pintados, cantados ou danados se aproxime de um universo do audiovisual muito distinto, que emergiu com as novas tecnologias: com efeito, os criadores dos softwares livres pensam estar mais bem protegidos com a circulao livre de suas criaes do que com a garantia de um copyright, que apaga a inalienabilidade de seus direitos em proveito de algumas grandes empresas. O patrimnio autctone, que, durante sculos, circulou de povo em povo, em trocas complexas de doaes contra doaes, poderia encontrar uma forma de reconhecimento equivalente dos programadores, que, ao mesmo tempo em que reconhece a sua criao, lhes retorna eventuais proveitos? Atualmente, o sistema absolutamente no funciona quando os beneficirios principais so os museus ou os colecionadores.
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Entre a lio surrealista e as vias africanas do conhecimento, e especificamente do conhecimento do invisvel, Jean Rouch encontra a lanterna mgica do cinema: subitamente, ele faz surgir este duplo que nos segue incessantemente e que perseguimos, este eu no outro e este outro em ns que o antroplogo tenta fazer dialogar, a fim de que se encontrem mas no se devorem. Escreve: o cinema, arte do duplo, j a passagem do mundo do real para o mundo do imaginrio, e a etnografia, cincia dos sistemas de pensamento dos outros, uma travessia permanente de um universo conceptual a um outro, ginstica em que perder p o menor dos riscos2 . Uma frica contempornea Voltando a sua ateno, a partir dos anos 40, para os eventos contemporneos de uma frica em plena transformao econmica e poltica, Jean Rouch evidenciava desde logo a autonomia dos comportamentos africanos, e buscava descrever atitudes e reflexes locais sobre uma evoluo que, sendo muitas vezes imposta, no era necessariamente vivenciada passivamente.
Conferncia realizada na sesso de Exibio de Vdeos intitulada Mostra Especial Homenagem a Jean Rouch, durante a 25 Reunio Brasileira de Antropologia, em Goinia (GO), Brasil (reviso de Fernanda Cardozo). A primeira verso desse texto encontra-se disponvel em: MOUROUX, V. & LOUVET, A-C. (ed.). Hommage Jean Rouch. Paris: Ministrio de Assuntos Exteriores, 2005 (pp. 40-48).
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Jean Rouch, une rtrospective. Paris : Ministrio de Assuntos Exteriores, 1981 (pp. 31).
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Testemunha lcida dessas transformaes que se realizavam sob o olhar vigilante dos deuses, Jean Rouch filmava em Accra, capital da Gold Coast, que se tornaria a primeira colnia a obter a sua independncia, sob o nome de Gana. Com trabalhadores imigrantes oriundos do Nger e do Mali, ele realizava um filme fundador, um dos filmes-cultos do cinema e da Antropologia, Matres Fous, no qual descrevia, dentre jovens trabalhadores, imigrantes songhay, um avatar ento relativamente recente dos cultos de possesso que haviam sido os seus primeiros temas de estudo. Possesso, migraes e alienao colonial so os temas dominantes deste filme, e a perspectiva decididamente dinmica: as transformaes no so um acidente dramtico que se abateria inesperadamente sobre as sociedades africanas. Os trabalhadores imigrantes no so apenas vtimas: reagem, defendem-se, reorganizam as suas crenas e os seus sistemas de vinculao, ligando, assim, o presente e as suas transformaes s prticas anteriores que garantem uma adaptao ao contexto. A religio em ato e se enquadra no decurso de uma histria qual responde. No so absolutamente deuses imveis, na eternidade marmrea dos mitos, cuja anlise fazia (e ainda, por vezes, faz) a glria dos etnlogos clssicos. A autonomia do tema O Outro etnologizado deixa de ser uma curiosidade arqueolgica: assume o estatuto de um tema e, por vezes, tem a possibilidade de se dirigir queles que o observam. Tal ser necessrio para que o observador nos responda s perguntas e deixe de se atribuir apenas o direito preeminente de as formular e de interpretar as respostas. Esta antropologia partilhada, muitas vezes reivindicada mas poucas vezes realizada, descreve o insupervel paradoxo da alteridade que a Antropologia tem justamente a funo de assumir: como mostrar e apreender a diferena sem a tornar irredutvel e sem a reduzir ao idntico. a experincia de um cinema que no pretende ser nem uma simples mquina registradora, nem um todo-poderoso sistema de descrio de uma realidade por fim revelada. Ele tenta afinar e enriquecer os meios de uma percepo sensvel, oferecendo nossa ateno o debate iniciado pelo etnlogo no campo do outro e que levado adiante conosco.
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Ser uma das mais fortes propostas do filme Moi un Noir: os atores do filme falam em seu prprio nome, dizem a sua vida e os seus sonhos, mas contemplam tambm para alm da tela, em direo ao espectador. Quando o protagonista do filme, Oumarou Ganda tambm conhecido por Edward G. Robinson , nos interpela logo ao surgirem as primeiras imagens para apresentar Abidjan e seu bairro de Treichville, no se trata de uma artimanha hbil de cineasta para neutralizar as questes sobre a atuao dos atores, a eventual teatralidade, o carter fictcio dos fatos e das pessoas. No se trata de um simples efeito de estilo, de uma habilidade formal, mas de uma advertncia dirigida queles que, at ento (e durante quando tempo ainda?), imaginavam constituir um saber independente das condies da sua busca e da sua restituio. Com um s movimento, sem fanfarronada e com uma inocncia fingida, Jean Rouch d a palavra queles que ele mostra, e esta palavra interpela diretamente o espectador, deixando-o julgar o espetculo, mas obrigando-o a levar em conta este discurso como inteno deliberada e no exposio ingnua ou at mesmo ignorante dos riscos a que se exporia. Esta palavra ultrapassa bruscamente o espao-tempo da colonizao, enunciando uma revoluo em marcha, a futura autonomia seno independncia dos pases colonizados. Uma Antropologia na primeira pessoa e a realidade como filme Tendo previsto, h alguns anos, a evoluo tecnolgica, Jean Rouch declarava que os sonhos de Vertov e de Flaherty se combinariam em uma cmera participante olho-ouvido, que passaria naturalmente para as mos dos que at ento se tinham sempre mantido diante da objetiva. Assim dizia ele , o antroplogo deixaria de monopolizar a observao, e, por sua vez, ele e a sua cultura seriam objeto da observao do outro3 . Essas reciprocidades entraram pouco a pouco nos usos e costumes, e contribuem para o questionamento de todas as respostas... Percebe-se, atravs de todas essas maneiras de atuar como etnlogo e cineasta, que Jean Rouch implementa uma verdadeira filosofia da
3 ROUCH, Jean. La camra et les hommes. C. de France (ed.). Pour une anthropologie visuelle. Paris: LaHaye, New York, Mouton, 1979 (pp. 53-71).
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ao. Este impenitente trickster, este mgico sorridente, este intrigante sedutor, este caador de sonhos, este contrabandista de gneros sempre inventou a frica e no ter tambm inventado a Antropologia de hoje, fazendo o seu cinema? Uma resposta a esta pergunta surge atravs da experincia desenvolvida em colaborao com Edgar Morin para o filme Chronique dun t, realizado na poca da dramtica descolonizao do Congo Belga, quando as tropas da ONU haviam desembarcado e quando se delineava o fim da guerra da independncia da Arglia. Uma espcie de investigao sociolgica serve de pretexto para a entrada na cena do filme, em que uma srie de personagens pouco a pouco se expe. Atitudes e comportamentos compem-se imagem quer dos atores quer dos realizadores, que desempenham o seu prprio papel. Os mtodos de trabalho, o lugar ocupado pela cmera, o seu efeito na sinceridade ou no natural dos protagonistas por vezes diretamente questionados fazem parte da trama do filme, que se constri a partir da sua prpria construo. H um deslize da reflexo ao; da instaurao de uma situao, de um clima psicolgico ao prprio desempenho. Neste filme, v-se o surgimento da atuao ativa dos protagonistas, a multiplicidade das aes em curso e das motivaes em marcha para exprimir um determinado tipo de sentimento, para manifestar um determinado tipo de atitude, para iniciar ou extinguir um determinado tipo de situao. So essas mesmas atuaes que ordenam a narrativa, criando a sua tenso dramtica. Chronique dun t no apenas o advento do cinema direto na Frana e a marca de uma aventura em comum desenvolvida com e por outros nos Estados Unidos, no Canad, na Austrlia e na frica. Trata-se de um verdadeiro filme-ao, em que se criam situaes reais, relaes efetivas entre protagonistas reunidos de maneira mais ou menos artificial; diz respeito ao desenvolvimento em imagem de uma penetrante meditao sobre o saber-ver e fazer-sentir a partir do momento em que se percebem as relaes instauradas no prprio decurso da realizao do filme. A histria do filme , assim, a ordem subjacente s aparncias narrativas de um roteiro mais ou menos realizado. A inteligncia de Jean Rouch e de Edgar Morin a de terem permitido que o espectador seguisse os meandros do envolvimento dos atores e dos realizadores uns com os outros,
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propondo, desta maneira, uma espcie de Antropologia ntima e dinmica de um grupo em formao, de uma sociedade emergente, em que o realizador j no demiurgo ou sbio mostrador das sombras, mas mediador envolvido pelos efeitos do seu empreendimento. Um ponto de vista assumido Jean Rouch no tenta, porm e no queria , retrair-se ou at mesmo fazer crer que no o autor dos seus filmes: reivindica a especificidade da sua prpria percepo, a orientao particular de uma compreenso pessoal do que mostra. Ningum pode enganar-se: a Pyramide Humaine um filme de Jean Rouch, Jaguar ou La Chasse au lion larc so filmes que exprimem uma certa viso, uma percepo prpria a Jean Rouch, embora aqueles que se exprimem nesses filmes falem em seu nome prprio e no sejam submetidos a um roteiro concebido previamente, contribuindo, assim, para a sua elaborao e participando na construo de um mbito antropolgico de questionamento. Neste espao a priori abstrato da investigao antropolgica, ser criada uma situao concreta, uma histria se desenrolar: a histria do encontro de pessoas que no pertencem mesma cultura e que questionam abertamente entre elas as suas vinculaes, os seus desejos, os seus prazeres e as suas obrigaes. Vemos, assim, a lio de Jean Rouch seguir no sentido de Vertov: a percepo armada, a do cineasta mas, sobretudo, do etnlogo para devolver ateno perceptiva a sua capacidade de surpresa, de espanto e, por conseguinte, de questionamento ntima o que se questiona a si prprio antes de questionar a legitimidade do outro. O universo do afeto e do sentimento, que fica prudentemente, por longo tempo, fora das preocupaes etnolgicas, abre-se de repente. Bataille sur le grand fleuve, Jaguar, Moi un Noir, La chasse au lion larc so filmes que exprimem os sentimentos, que descrevem e fazem sentir a realidade vivenciada do visvel e do invisvel, propostas para campos de investigaes incrivelmente novos na poca: migraes internacionais, relaes inter-raciais, relaes de gnero, dados de comunicao no verbal, constituio do ordinrio e do extraordinrio, etc. Lembremos que isso se passa h cinqenta anos, numa poca em que, pelo menos na Frana, etnologia custava extirpar-se das vias do exotismo; quando o seu destino parecia, de uma vez por todas, ser o de
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consagrar-se queles que j no eram primitivos, mas infelizes habitantes de pases em vias de desenvolvimento Jean Rouch, ento, apresentava uma Antropologia da contemporaneidade e de tudo o que vivo. Reciprocidade da percepo, relatividade do saber Jean Rouch solicita a multiplicao das vias e dos mbitos de observao. Os seus contos filosficos maneira de Montesquieu, os seus aventureiros ingnuos em busca de moinhos de vento, no propem um quadro traado s pressas, em que subitamente alguns sarcsticos africanos nos refletiriam a imagem do estranho: no espelho apresentado, a nossa imagem assume, por vezes, mais a forma de uma careta do que de um sorriso! O orgulho do nosso saber e o seu imperialismo impenitente confrontam-se duramente com a exigncia daqueles que s vem um interesse na cincia se ela realmente atender s suas necessidades. Ao mesmo tempo em que parecem ter grandes expectativas relativamente aos produtos dos nossos laboratrios e s nossas tcnicas, os viajantes do sonho de Petit Petit, os descobridores de Madame lEau e da Holanda do queijo e dos moinhos reduzem as realizaes dos nossos conhecimentos ao que so, logo que uma outra lgica de existncia prevalece: instrumentos suprfluos e dificilmente utilizveis; na melhor das hipteses, elementos de um cenrio surrealista, construes abandonadas beira do rio Nger, testemunhas do absurdo de um pensamento que se toma pela totalidade do real. Quando novos persas os companheiros de Rouch Lam, Tallou ou Damour desviam o uso dos nossos objetos ou do nosso idioma, obrigam a descolonizar o nosso pensamento, que poder, por fim, ser desorientado e tomar uma outra direo: o desvio, o contorno so atalhos para passar de uma cultura a outra, para uma Antropologia que se preocupe mais com questes acertadas e pertinentes do que com respostas definitivas.
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Os antroplogos se contentaro, por muito tempo, em utilizar, de maneira minimalista, cmeras e gravadores como instrumentos de observao e de registro sem levar em considerao qualquer problemtica relativa realizao. Permanecero na posio ingnua de espectadores, identificando a imagem ao que ela representa. Essa captao fixista e objetivante corresponderia, de fato, a uma representao das sociedades etnologizadas como sociedades sem histria. So, na verdade, os sistemas de pensamento prprios nossa sociedade que estruturam os olhares sobre a alteridade em questo. As reflexes dos cineastas propriamente ditos e as diversas realizaes documentrias exploram, de uma certa maneira, o que me preocupa aqui: a anlise de seus procedimentos e de suas realizaes permite apreender melhor o que seria a ambio legtima de uma Antropologia audiovisual, quer dizer, a transcrio na e pela imagem e som da construo do ser humano em sociedade. Para alm da apreenso das regras e dos sistemas sociais, das intenes e dos valores, trata-se de atingir as construes vividas, de transcrever o estabelecimento de relaes interpessoais e suas diferentes modalidades; trata-se tambm de dar prosseguimento provao (e a suas provas) de sociabilidade e de socializao e de esclarecer as
Apresentao realizada no Simpsio Especial intitulado Vdeo, imagens, vozes e ao poltica: discursos e prticas, durante a 25 Reunio Brasileira de Antropologia, em Goinia. Reviso de Fernanda Cardozo.
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Alguns elementos tratados aqui j apareceram no livro do mesmo autor intitulado Anthropologie et Cinema (Paris: Nathan, 2000) e no artigo Espao de uma antropologia visual (In: ECKERT, C. & MONTE-MOR, P. [ed.]. Imagem en Foco. Rio Grande do Sul: Editora da Universidade, 1999 [pp. 13-30]).
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condies de uma construo da pessoa atravs de diferentes modos sociais, bem como atravs das diferentes formaes sociais. Trata-se de se aproximar ao mximo, em suma, da experincia vivida, sentida e interpretada que os seres humanos possuem da e na sua especificidade. Depois de tentar explicar e, em seguida, compreender, aparecero, afinal, as abordagens de identificao e de compreenso do mundo estabelecendo permanentemente uma relao entre o sujeito que descreve e aquele que observa: no mais possvel dissociar a descrio da interpretao, e o que produzimos no uma simples reproduo do real, mas necessariamente uma impregnao de sentido. Trata-se do que Husserl identifica como uma permanente intencionalidade do olhar a partir do qual se percebe o mundo como espao de co-existncia. Iniciada como uma tcnica de registro e de representao, o audiovisual como produo antropolgica , em seguida, constitudo como objeto no conjunto categorial da representao. Ele participava, assim, da deriva do modernismo, identificando o significante ao signo e tomando as palavras pelas coisas. Hoje ns tentamos dar conta da abordagem enquanto tal; na apreenso, na transferncia que ele busca do vivido s suas representaes, o audiovisual encontra uma outra abordagem: aquela a quem e a que ele se dirige e que, no entanto, o observa e o interroga. Em direo a espaos de entendimento e a uma hiper-cenografia do provvel Finalmente, o movimento de ir e vir entre a idia de objetividade e a proposio de uma Antropologia compartilhada e do cine-transe ofereceu poucas vezes ao objeto observado a possibilidade de aceder ao estatuto de sujeito ativo e autnomo no prprio processo de filmagem: permanecia sempre submetido ateno decisiva do realizador, sua escolha inicial de interveno. A emergncia do sujeito enquanto tal, o questionamento do projeto de captao e de realizao por eles mesmos, que so os protagonistas designados, um fenmeno bem recente e sobre o qual no direi que ele tenha sido tomado em considerao e, sobretudo, experimentado em todas as suas dimenses. No se trata, com efeito, de um simples
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estabelecimento de um dilogo ou de um questionamento recproco que permitiria desvelar a inteno de realizao e de submet-la crtica autctone. Um debate deveria instaurar-se onde a natureza do projeto estaria no centro de uma discusso entre parceiros diferentes. Os efeitos, seno as prprias condies deste debate, deveriam ser perceptveis na realizao e na mis-en-scne de sua evoluo. Tratarse-ia, em suma, de um filme jamais acabado ou, ento, de sries nas quais os episdios se responderiam mutuamente sem cessar, permitindo a cada um exprimir seu ponto de vista sobre o real e os efeitos dessa posio sobre os protagonistas de uma situao em permanentes reajustamentos. Assim enunciado, sem dvida, trata-se de um projeto nada realista. No entanto, poder-se-ia tomar uma tal sugesto como tendo uma funo utpica. Ela visaria a colocar, assim, uma espcie de princpio ou de orientao paradigmtica, permitindo identificar o que desvela a abordagem de uma Antropologia audiovisual e quais deveriam ser suas condies de possibilidade. Com efeito, trata-se de propor uma abordagem que seria, de alguma maneira, a passagem de uma realidade complexa, confusa e sentida aquela da percepo inicial do mundo a uma realidade complexa, difusa, mas reconhecida e constantemente questionada enquanto tal. Compreenda-se bem: no se trata mais de um processo de conhecimento que passaria por uma reduo do complexo ao simples, nem do simples ao complexo. Ns no queremos tomar em considerao o argumento racionalista da necessidade de cortes arbitrrios no que seria a totalidade de um real para chegar progressivamente a se dar conta deste. De fato, estes argumentos pressupem precisamente a existncia de uma totalidade ou de uma formulao mais ou menos explcita do real no qual de alguma forma, com acomodaes, poderia reconstituir-se a soma e o ser com os procedimentos de reduo temporrios e/ou de reconstruo progressiva. O nosso propsito, ao contrrio, no ter nenhum pressuposto e iniciar nossa investigao a partir de uma nica constatao, qual seja, da permanncia de uma problemtica da distino e do pertencimento: v-se que se trata de uma posio generalista e que no implica somente uma Antropologia visual, mesmo se esta a sua procedncia. Neste processo de re-conhecimento, a abordagem de explorao no se pode subtrair, ela prpria, da
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interrogao a respeito de suas finalidades e de sua pertinncia, tanto do ponto de vista do espao observado quanto do ponto de vista do mundo que observa. Pode-se mesmo pretender que este pr em situao antropolgico um momento essencial para transitar de um universo submetido a uma ignorncia perigosa, angustiante e geradora de alienao, para aquele de uma explorao sistemtica de proximidades e de distncias apreensveis hoje e em tal lugar em particular, hic et nunc. O procedimento que toma a imagem como instrumento privilegiado daquilo que no ele prprio permite, com efeito, passar por todos os estados de identificao dessa alteridade e da relao que nos vincula a ela ou que dela nos separa. neste sentido que a reflexo conduzida a partir de uma instrumentao audiovisual no pode conduzir a no ser a uma considerao sobre o que a observao em geral e sobre o que o processo de saber que ela instrui. A pretenso de atingir uma realidade sobre a qual uma linguagem poderia perfeitamente dar conta que seria, de alguma maneira, um espelho adequado significaria que um sistema universal de conhecimento se confunde com aquilo que se desvela e conhece. Uma tal atitude o que Richard Rorty designa como uma pretenso a uma comensurao universal, quer dizer, a fundao de um discurso nico, necessariamente consensual e que negaria, em ltima anlise, todas as possibilidades de outras posies, de outras proposies do real. A imagem da qual a Antropologia audiovisual trata no responde obrigao na qual inicialmente se acreditava: a de que ela era suscetvel de assumir e que era capaz de produzir uma realidadeem-espelho, desvelamento sem discurso de uma verdade do mundo sobre o qual no haveria somente uma boa maneira de dar conta. No serviria de nada juntar a ele um discurso que orientaria o olhar e tomaria conta do no-visto da imagem para alcanar o sentido. Isso seria simplesmente voltar ao texto, modo privilegiado de entendimento, o qual a imagem ilustraria para lhe dar uma parte de sua dimenso sensvel, ausente da palavra. Este tipo de comentrio pela imagem volta a colocar, a afirmar a unicidade da compreenso. Seria fazer a hiptese de um quadro de referncias universal, permanente, prvio ou produzido in fine, independente de todos os pontos de vista, neutro de algum modo. Este quadro de referncia poderia, ento, ser
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considerado o cu em direo ao qual se desenvolveria uma teoria do conhecimento suscetvel de colocar um termo diversidade das interpretaes do real em produzindo um modo de conhecimento da verdade. Nesta perspectiva, um comentrio acompanha a imagem e a submete a seu enunciado, que toma geralmente a forma de: h ..., ...., isto se chama.... Estas afirmaes de ser e de existncia so pontuadas com porqus e por portanto, ao mesmo tempo em que os verbos saber e compreender reasseguram constantemente o espectador sobre o que ele deve ver e sobre o que ele partilha com os outros espectadores, porque eles possuem precisamente em comum o mesmo comentrio direcionador e seus pressupostos referenciais. Seu autor seria, alis, detentor do verdadeiro saber pelo fato de deter uma experincia que autentificaria um estatuto profissional e cientfico atestado pelas instituies: o saber fazer tcnico de uma realizao e o investimento econmico que ela representa. Na realidade, o que ns descobrimos pouco a pouco interrogando a imagem produzida que ela no , em nenhum caso, um reflexo, mas que ela reproduz, isto , que ela constitui, que ela fabrica um objeto particular, novo em sua natureza e em sua significao em relao ao que ele evoca. Uma tal descoberta pode conduzir a um deslocamento da ateno em direo s condies mesmas da produo de imagens e ao privilegiamento da relao instaurada no quadro de uma situao antropolgica. O que , ento, que ns chamamos de passagem imagem? Da observao elaborao do protocolo de descrio, da categorizao do Outro nos termos que no lhe pertencem iluso do partilhamento, o percurso, no entanto, prolonga-se e conduz a uma interrogao recproca, a uma forma talvez de conversao indefinida. No preciso que se esteja num relativismo absoluto, mas, sobretudo, num momento transitrio cuja indeterminao final no deveria, de modo algum, interromper. Estes dilogos mantidos, estas conversaes nas quais se reconhecem as alteridades e as alternncias, constroem espaos de compreenso em que uns no se reduzem aos argumentos e s categorias dos outros, mas elaboram e mantm espaos de entendimento nos quais se pode prosseguir e renovar as interrogaes. Para que a imagem possa continuar o seu trabalho de questionamento e de incertezas, o silncio no deve estabelecer-se de modo definitivo. Eu no posso me contentar de deslocar o problema da
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objetividade jogando com as palavras e aceitando, depois de ter abandonado a pretenso de reproduzir o real em si mesmo, que a imagem seja ela mesma o objeto, o que em definitivo conduzir, se a tomarmos um tanto estritamente demais, expresso segundo a qual o cinema no uma simples reproduo de um real mas ele mesmo produo do real. No se encontra s em jogo a questo do real, mas a de que este interrogado a respeito do que transmite a imagem flmica. Ela no um instrumento de transporte que permitiria deslocar objetos de um lugar a outro; ela no tambm um simples suporte de anlise ou, ainda, um microcosmos atravs do qual um observador advertido apreenderia o que sustenta as situaes e as relaes sociais na sua verdade ntima e ltima. J se passaram cinqenta anos desde quando Jean Epstein, realizador de Finis Terrae e de Tempestaire, descobria que o cinema, como toda abordagem cientfica, um dispositivo experimental que no fazia nada alm de inventar uma imagem plausvel do universo. Ele mostrava que o cinema era consagrado a tornar o real a combinao de um espao com o tempo; mas, segundo ele, esta realizao era, de fato, uma trucagem cuja elaborao se aproximaria do procedimento segundo o qual o esprito humano se fabrica geralmente uma imagem ideal2 . As posies de Epstein recobrem minhas proposies visando a constituir o procedimento de registro imagem-som nele mesmo como uma abordagem-conhecedora, como processo cognitivo, e no simplesmente como um mtodo de abordagem e de recolhimento de dados. O saber produzido uma interpretao plausvel de dados da experincia, cuja colocao contribui para caracterizar as formas como os significados. Documentar o real um empreendimento que no pode esvaziar os meios da ficcionalizao. O ato potico da descoberta, o estabelecimento de relaes entre elementos que at ento estavam separados , de fato, o empreendimento ficcional cujo uso e reconhecimento devem ser reivindicados na produo audiovisual da Antropologia. A experincia no se interrompe a porque, como j indicamos, ela est submetida interpretao (potencialmente) permanente dos
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EPSTEIN, Jean. Lintelligence dune Machine. Paris: Jacques Merlot, 1946 (pp. 194).
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espectadores e reinterpretao crtica daqueles que teriam sido seus protagonistas. Vai-se em direo constituio em definitivo de uma espcie de hiper-texto, ou melhor, de uma hiper-cenografia do provvel ou do possvel. Convm que ns possamos refletir a respeito da sua significao hoje, ao mesmo tempo em que sobre a sua pertinncia relativa s interrogaes contemporneas, concernentes a uma universalizao dos instrumentos e, portanto, s formas do discurso. Nosso empreendimento se caracteriza da mesma maneira que o historiador Paul Veyne situa a propsito da histria, sobre a qual ele afirma que uma crtica que diminui as pretenses do saber e que se limita a dizer verdades sobre as verdades, sem presumir que existe uma poltica verdadeira ou uma cincia com letra maiscula. Desta maneira, portanto, uma Antropologia audiovisual se constituiria como uma argumentao constante a propsito das condies de possibilidade, das condies de produo e das condies de utilizao, de aproximaes particulares de situaes especficas. Ento, haveria, deste modo, o estabelecimento de um plano de interrogao espaotemporal (a imagem produzida concretamente espacializada e se desenrola, desenvolve-se, dura...) cuja ambigidade seria a sua virtude profunda: tratar-se-ia, com efeito, de uma aproximao assinttica de uma alteridade supostamente perceptvel, aproximvel, disposta comunicao e, no entanto, sempre irredutvel a ela.
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Segunda Parte
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Miriam Grossi: Agora vamos comear uma nova atividade aqui na 25 RBA, uma conversa com duas autoras, as professoras Eunice Durham e Ruth Cardoso, que todos vocs conhecem muito bem, mas que sero apresentadas brevemente pelo professor Peter Fry. Peter Fry: Eunice Durham e Ruth Cardoso so, para mim, as duas mais antigas amigas que tenho no Brasil. Chegando em 1970, Eunice e a Ruth eram as nossas antroplogas da USP junto com Joo Batista Borges Pereira. Desde o incio, logo que as conheci, tive uma relao muito prxima. Havia pouqussimos doutores em Antropologia na poca, de tal maneira que ns todos que tnhamos doutorado tivemos de iniciar os novos. Assim, eu participei da banca da Ruth e depois participei da banca do Gilberto Velho e do Antonio Augusto Arantes, que est aqui na sala tambm. Bom, vou apresentlas muito brevemente. De fato, as duas, naqueles anos to difceis na dcada de 70 e 80, seguraram a Antropologia da Universidade de So Paulo, mudando, inclusive, de rea: passando da Antropologia para a Cincia Poltica. A Ruth e a Eunice so exemplares porque sabem ouvir e sabem tecer comentrios que tm o sentido de prolongar a discusso e nunca de estanc-la. Quem teve o privilgio de participar de algum seminrio das duas sabe disto. Devo dizer tambm que ambas tiveram um papel fundamental no estabelecimento da respeitabilidade poltica na Antropologia. A Antropologia, naquela poca, sofria de acusaes de ser uma cincia pequeno-burguesa que estudava coisas
Transcrio feita por Nayara Uber Piloni e Joana Pagliosa Corona com reviso de Miriam Grossi e de Fernanda Cardozo
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irrelevantes. Naquela poca, em que ns ramos todos dominados por uma srie de hegemonias, ns, antroplogos, tivemos de nos defender e mostrar como ramos relevantes no cenrio brasileiro. Na medida em que as velhas teorias se mostravam caducas, no desenrolar do processo social a Antropologia surgiu trazendo dados mais qualitativos sobre a vida social do pas, sobretudo das camadas, populaes e segmentos populares urbanos. Miriam Grossi: Passo, agora, a palavra s nossas convidadas para nos contarem um pouco sobre o trabalho delas, e evidentemente ns vamos abrir platia, para fazer perguntas, comentrios sobre essa obra que todos ns conhecemos to bem, mas que certamente os mais jovens no conhecem em tantos detalhes como ns. Eunice Durham: Eu agradeo muito o convite e, como a Ruth, sinto-me um pouco embaraada porque nenhuma de ns tinha muita idia de como organizar esta interveno, pois no sabamos quais seriam as expectativas da platia. Alm disso, fico muito constrangida em ficar falando sobre a minha carreira, sobre o que eu fiz no passado. A avaliao de minha carreira deve ser feita pelos outros. Eu fiz o melhor que eu podia, mas no sei se foi suficiente. Se algum estiver, por acaso, interessado na minha carreia, publiquei, no ano passado, um livro intitulado A Dinmica da Cultura2 , no qual h uma introduo que se chama Uma viso muito especial sobre 50 anos de Antropologia, pois eu estava completando cinqenta anos de carreira naquele momento. Nesta interveno, achei melhor fazer alguma coisa um pouco diferente e colocar minha viso sobre o campo da Antropologia, respondendo a uma pergunta que me foi colocada pela Miriam Grossi numa reunio da ABA que ocorreu no ano passado em Campinas com os ex-presidentes da ABA. A pergunta dizia respeito relevncia atual da Antropologia. Vou repetir um pouco o que disse naquela ocasio, cujo texto est agora publicado no livro Homenagens 50 Anos da ABA3 . Neste texto, eu falo sobre algumas tendncias que se generalizaram nos ltimos anos, as quais considero muito
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ECKERT, Cornelia & PIETRAFESA DE GODOI, Emilia. Homenagens 50 anos da ABA. Florianpolis/ Blumenau: ABA/Nova Letra, 2006.
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preocupantes. Provavelmente, estas preocupaes so partilhadas pela velha gerao, a qual aquele grupo dos ex-presidentes da ABA reunido em Campinas representava. Os mais jovens talvez pensem de forma diferente o problema. A minha preocupao com uma tendncia moderna na qual os antroplogos so extraordinariamente cobrados a respeito da utilidade imediata das coisas que estudam. As pessoas que vo trabalhar com indgenas, com negros, com mulheres, com populaes urbanas, com favelados, tm de retribuir com alguma coisa, e a idia que antroplogo os ajude a resolver seus problemas. Eu no nego que a Antropologia e os antroplogos tambm possam e, s vezes, at mesmo devam fazer isso. Mas eles podem faz-lo porque adquiriram um conhecimento especfico. Para que serve a Antropologia? Ela no serve tanto para salvar o mundo; ns nunca conseguimos fazer isso no passado, embora muitos de ns tivssemos esta pretenso. Pensvamos, ento, que deveramos contribuir para uma revoluo socialista. Pensava tambm que no s a Antropologia mas que as Cincias Sociais em geral seriam capazes de prever o futuro e que nos diriam o que iria acontecer. A ltima iluso que eu tinha desapareceu com a queda da Unio Sovitica: ningum a previu e, de repente, ela ocorreu assim como se, de um cu azul, casse uma brutal tempestade. Ser que, no tendo salvado o mundo nem profetizado o futuro, somo inteis? No que sejamos. Alis, esta cobrana parece ocorrer mais na Antropologia do que nas demais cincias humanas. Por exemplo, na Histria, ningum espera que os estudos tenham uma relevncia imediata. Tomemos como exemplo mais especfico os estudos sobre a Inquisio: no salvaram nenhuma vitima, no tiveram nenhuma utilidade nesse sentido. Mas por que eles foram importantes? Porque eles mostraram e nos deram uma certa viso de uma poca do desenvolvimento da nossa prpria sociedade e nos alertaram para problemas semelhantes que podem surgir na nossa poca. No adianta ficar reclamando contra a Igreja Catlica do sculo XVI. necessrio que entendamos exatamente qual foi a dinmica desse processo, mesmo no podendo aprov-lo. No a salvao dos hereges que vai ser o resultado da nossa pesquisa. Na Literatura, tambm, h obras engajadas; mas, quando se examina o valor da grande literatura internacional, ele no decorre diretamente de um engajamento poltico,
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ou seu valor est no que ela revela sobre ns prprios, sobre as dinmicas da nossa psique. Um autor tambm revela alguma coisa sobre a sociedade do seu tempo, mas no o valor documental que transforma um livro numa grande obra literria. E na Filosofia, tambm, ningum fica estudando Plato e Aristteles para dizer que eles eram escravistas. Sim, o problema da escravido na Grcia tambm analisado, mas a gente no l o Plato nem o Aristteles em funo de denunciar ao escravismo ns os lemos porque eles constituem o bero da cultura ocidental, do uso da razo na investigao sobre o prprio homem. Da Antropologia, o fundamental que construmos uma grande viso da variedade cultural do mundo que no era conhecida anteriormente. Vou dar dois exemplos pessoais para mostrar a relevncia do conhecimento que a Antropologia produz e tentar mostrar o que significa esse conhecimento. Eu tinha quinze anos quando li um livro do Malinowski. Eu o li porque tinha em casa, e foi, para mim, uma revoluo intelectual, s comparvel minha leitura de um livro de Wallace sobre a teoria darwinista da evoluo. Esse livro de Malinowski, que foi uma extraordinria revelao, se chamava A Vida Sexual dos Selvagens. E, se no aprendi muito sobre o sexo dos selvagens, aprendi muito sobre uma outra coisa. A revoluo que este livro fez em mim foi a revoluo do relativismo: foi verificar que h outras variedades de experincias e que aquilo que tomamos como natural outros povos tomam como no naturais. H um antigo manual de Antropologia, cujo ttulo eu aprecio muito, que se chamava Antropologia: Um Espelho para o Homem. Na verdade, o que a Antropologia faz quando se debrua sobre o outro? Ela interpela a cada um de ns sobre ns mesmos e sobre a nossa sociedade. Isso representa uma total alterao de mundo para qualquer pessoa que tenha sido criada dentro de certos dogmas a respeito do que bom, do que ruim, do que certo e do que errado no que elimine a necessidade de voc se orientar eticamente na vida, mas a Antropologia traz uma viso um pouco diferente. E, para mostrar um pouco isto, eu queria citar um outro exemplo: foi num seminrio do qual participei no Departamento de Cincia Poltica faz uns vinte e cinco anos, mais ou menos em pleno apogeu do marxismo na USP. Todo mundo s falava de classe social, de revoluo, de lutas de classes e tambm do processo de redemocratizao necessrio. Na verdade,
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era muito complicado conseguir a ateno de qualquer audincia se no se citava Marx. Neste seminrio ao qual me refiro, todo mundo falava de classe, e eu, muito timidamente, levantei um problema que, para mim, tinham um interesse poltico fundamental: era levar em considerao o problema das minorias tnicas e dos movimentos religiosos. Ainda me lembro daquele momento: foi um escndalo! Naquela poca ainda no tnhamos o problema do terrorismo islmico, nem da luta da Srvia contra Kosovo ou dos Tutsis contra os Hutus. Mas eu citei aquele movimento extraordinrio de fundao da Europa moderna, que consistiu na conteno da expanso islmica, no sculo VI, quando o Isl j havia tomado todo o norte da frica, invadindo a Espanha e Portugal e depois invadindo a pennsula Balcnica, de modo que o que sobrou do cristianismo daquele tempo estava cercado. Era, ento, uma referncia bsica para pensar o Estado moderno, a construo da nacionalidade. Isso dava, na verdade, toda uma outra compreenso da sociedade europia da poca, do comeo da ascenso do Ocidente, que vem exatamente no momento em que os europeus comeam a derrotar os rabes que estavam na Europa. E depois falei tambm alguma coisa a respeito dos bascos e da Irlanda, onde esta questo j era um problema naquela poca. A reao a esta interveno no seminrio foi como se eu fosse um ET que tivesse cado no meio da reunio de Cincia Poltica, pois no viam relevncia alguma no que eu estava falando. O que eu colocava no tinha nada a ver com a luta de classes. No posso dizer que eu tenha ficado satisfeita, depois, com o banho de sangue que aconteceu, mas pelo menos confirmei que, mesmo naquela poca, havia alguma utilidade nessa viso antropolgica Essa questo de se ter uma viso diferente, de lidar com tradies culturais que se opem, tradies culturais que se confrontam, isso que eu chamo o valor de conhecimento antropolgico: a mudana de uma viso de mundo. Fui professora de introduo Antropologia por muitos anos, e, naquele tempo, podamos observar, eu e Ruth, como as aulas de Antropologia freqentemente criavam um choque cultural que levava o aluno, de repente, a perceber uma outra viso, diferente da Sociologia tradicional, da Cincia Poltica e da ideologia da poca. Hoje isto no se nota mais, porque o estranhamento da Antropologia foi enormemente vitorioso. Hoje, a idia de relativismo cultural e de
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direitos das minorias j so apresentados desde a escola primria; ele faz parte agora da nossa ideologia, e, fazendo parte da nossa ideologia, ela no causa mais surpresa. Mas, na medida em que ela passou a fazer parte da nossa ideologia, ela tambm comeou a incorporar uma poro de dogmas. Aquilo que era, na verdade, o problema a ser analisado a natureza das diferenas e a natureza das relaes entre as diferenas comeou a ser simplesmente tomado como uma simples questo de postura moral. Hoje as questes envolvendo o vu, a burca e a poliginia so problemas em relao aos quais j somos todos relativistas. Os islmicos na Frana podem atuar contra os princpios para que os direitos sejam reconhecidos juridicamente? uma batalha grande, e eu acho que estas batalhas nos recolocam o problema de pensar nessas questes. Ns temos de pensar mais claramente o que so essas diferenas culturais, como so construdas e como so manipuladas politicamente. Temos de ir alm de simplesmente denunciar preconceitos. Fazemos isso h mais de um sculo e temos de entender muito melhor a dinmica desses processos de conflito tnico porque entender fundamental. Acredito que a relevncia que ns temos hoje vem exatamente do fato de termos construdo conhecimento. Nossa relevncia no vem certamente e imediatamente do engajamento. Nosso engajamento s , na verdade, eficaz quando ns temos o conhecimento, a partir do qual discutimos o problema. Da a importncia dos antroplogos. Por exemplo, nossa importncia na questo indgena vem do fato de que o conhecimento sobre as culturas indgenas que construmos d o ponto a partir do qual o antroplogo pode falar e que, se confundimos as coisas e achamos que nosso conhecimento s vlido se for imediatamente til, perdemos exatamente a base da qual podemos falar como antroplogos e no apenas como militantes. E esta base que usamos para discutir o problema da mulher, o problema das minorias necessria para se desenvolver uma perspectiva crtica. Isto no significa fazer como uma jovem antroploga que apresentou um trabalho num congresso sobre a ao missionria dos padres capuchinos do Maranho no sculo XVIII. O trabalho consistia numa denncia dos capuchinos por no terem uma compreenso do relativismo cultural. Quer dizer que ela denunciava os capuchinos do
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sculo XVIII, cobrando deles uma noo que s iria surgir no sculo XX e que apenas hoje aceita como base do nosso pensamento sobre a nossa sociedade. Ter uma viso crtica significa tentar atingir um certo grau de objetividade. A busca de objetividade marcou enormemente a minha perspectiva. Eu realmente me preocupo com a idia de que como acontece nos Estados Unidos , para estudar um grupo indgena, tenhamos de submeter o trabalho a eles para que o censurem antes que possamos public-lo. Desta forma, invalidamos as bases do nosso trabalho. Um cientista poltico, por exemplo, que esteja estudando o sistema partidrio brasileiro, jamais acharia necessrio obter o aval dos polticos para publicar seu trabalho. O caminho da Antropologia constitui em construir uma compreenso mais aprofundada das diferenas culturais, e, na base desse conhecimento, acredito que mudamos a viso da sociedade ocidental. Mas no podemos descansar sobre os louros dessa vitria, porque vejo tambm, com um pouco de preocupao, que as coisas se transformaram em dogmas, como ocorre com a questo do relativismo da diversidade cultural e dos direitos humanos. necessrio trabalhar com a anlise dos direitos humanos na perspectiva de que eles esto historicamente colocados. Os direitos humanos so valores construdos pela nossa prpria cultura e so historicamente datados. No so valores de todas as sociedades. De certa forma, podemos dizer que a luta pelos direitos humanos implica a imposio de valores da sociedade ocidental sobre as demais. Eu tambm sou a favor dos direitos humanos, mas no se pode analisar a violao deste ou aquele direito, nesta ou naquela sociedade, como se fosse um pecado original. Quero deixar, aqui, a mensagem de que o conhecimento uma coisa importante; que esta a tarefa da cincia; que dela decorrem possibilidades de ao. Disso tambm decorrem terrveis dilemas, quando h a necessidade de voc se engajar numa luta quando tudo que voc conhece mostra que aquele caminho um invivel. Para terminar, eu vou citar o Piaget, que foi um autor muito importante para mim porque ele pode ser usado para minha compreenso na Antropologia a partir de sua anlise sobre o desenvolvimento infantil. Quase todo mundo j ouviu falar do Piaget e sabe que ele diz que, ao redor dos sete anos, h uma mudana
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fundamental no desenvolvimento mental e afetivo das crianas. As crianas passam, ento, de um estado egocntrico para um estado descentrado: a criana comea a poder perceber o mundo, no apenas em funo dela prpria, mas comea a ver a posio dos outros e sua prpria posio em relao aos outros. Antes dessa idade, muito difcil realizar jogos coletivos com crianas, especialmente se forem jogos competitivos para jogar bem, voc precisa saber o que o outro est pensando e como pode reagir sua jogada. Eu acho que a Antropologia uma disciplina voltada para a descentrao do Ocidente. No como a Antropologia do sculo XIX, que via a civilizao ocidental como o pice da evoluo. Trata-se de uma descentrao que decorre do fato de a Antropologia ter construdo, ao longo de sua histria, a conscincia de que no ocupamos mais, enquanto civilizao ocidental, o lugar de pice e de fim da evoluo. Mas isto no significa jogarmos nossa civilizao na lata do lixo e a culparmos por tudo de mal que acontece no mundo. Nem somos a encarnao do mal, nem as outras culturas so a encarnao do bem. Temos de ser, ao mesmo tempo, crticos e tolerantes com os descaminhos nossos e deles. isso que a Antropologia nos ensina. Ruth Cardoso: Eu queria comear por contar para vocs que ns trabalhamos trinta anos juntas e que, nesses trinta anos, temos a fama de que pouco concordvamos e de que discutamos muito, o que evidentemente solidificou nossa amizade. Ns somos muito amigas at hoje. Isto fez com que fssemos professoras mais ou menos eficientes, porque nunca tivemos problemas em discutir e em colocar idias diferentes, e ns dvamos cursos assim, em que ns discutamos. Vocs viram que ela disse: eu vou falar do Piaget; porque havia autores dos quais eu no gostava ou dos quais ela gostava mais, e eu menos; e isso criou um clima que foi muito positivo para a nossa atividade universitria e, hoje em dia, talvez a gente tenha at dificuldade de encontrar esse tipo de liberdade de discusso intelectual. Evidentemente, em relao ao bsico do que ns pensvamos, ns concordvamos e concordamos hoje, e posso dizer que exatamente tudo que a Eunice colocou aqui hoje o que eu tambm penso a respeito da Antropologia. Por que a Antropologia cresceu no Brasil? E qual o
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papel que ns temos de desempenhar? Ento, eu vou, inclusive, aproveitar e seguir na mesma linha, porque eu acho que eu tenho uma experincia pessoal que pode acoplarse muito bem a essa preocupao bsica do que o saber, do que a poltica e de qual o papel que ns temos, tendo uma formao acadmica. Hoje em dia, cresceu tanto o ensino da Antropologia, o nmero de antroplogos, de modo que ns no vamos ser todos professores universitrios e, portanto, reprodutores deste conhecimento e desta forma de conhecer. Muitos aqui vo trabalhar realmente em implementao de polticas, mas a nossa expectativa e nisso eu concordo inteiramente com toda a posio da Eunice que essa passagem pela academia seja uma passagem importante e que marque os limites do saber e da interveno e que sirva como uma bssola para esse trabalho de interveno na sociedade, seja ele qual for. Eu acho que a Antropologia cresceu no Brasil, e o caminho que a Eunice traou muito pertinente. Na verdade, ns nos beneficiamos da benevolncia com que fomos tolerados depois desse olhar que ela contou segundo o qual, se voc no falasse ou no fizesse uma meno de que aquilo que voc estava pesquisando tinha a ver com classe social, a gente era muito discriminada politicamente. Eu acho que isso foi passando, foi passando, e ns vivemos essa passagem. Nos anos 80, quando eu comecei a estudar movimentos sociais, associaes de bairro nas favelas, nos bairros de So Paulo trabalhvamos juntas tambm nessas pesquisas , isso tudo era realmente secundrio. Pois , as pessoas achavam que a gente acabaria percebendo algumas coisas mais ou menos interessantes. Os temas dos antroplogos que se trabalham at hoje (eu estava vendo o programa da 25 RBA, que de uma riqueza incrvel, a gente fica com vontade de ir a todos esses lugares), um est falando de sexualidade, mas est falando de uma pesquisa com um grupo especfico; todos esto falando de um bairro, mas esto falando de um bairro especfico quer dizer, ns temos ainda, e felizmente acho que no Brasil se manteve a tradio do trabalho de campo, essa tradio da observao e da metodologia que nos leva a um olhar especfico e prximo. Eu acho que isso a Antropologia brasileira guardou para si, foi isto que a legitimou. Como a sociedade se transformou nessa
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sociedade multicultural e fragmentada? Isso no fomos ns que produzimos das diferentes identidades, de como a sociedade se mexe. Isso foi produto de uma transformao enorme pela qual passaram todas as sociedades do mundo que resultou na globalizao, cuja base , na verdade, a grande revoluo tecnolgica que faz com que a comunicao seja intensa, constante e interativa. Ento, essa base que mudou o ritmo produtivo, que mudou tambm a vida das diferentes sociedades. Portanto, ns, antroplogos, ganhamos um lugar de extrema importncia porque a gente estava olhando para esses fragmentos sem que eles tivessem, naquele tempo, uma possibilidade de uma universalizao. De repente, ns vimos que no h universalizao, que essa fragmentao fundamental em si mesma. No que no tenha nada de universal, no isso que eu estou dizendo; mas, na verdade, esse conhecimento mais prximo ganhou uma enorme relevncia. Ns estvamos todos preocupados, diante de toda essa tradio de pensamento antropolgico, com a dinmica da cultura (hoje ns escutamos uma belssima conferncia de Sherry Ortner sobre isto), exatamente porque tambm faz um pouco a histria dessa preocupao com a comunicao, com a mdia, que comea a ter um efeito diferente e a interferir no modo pelo qual a cultura se muda. Quer dizer, eu acho que tudo isso foi a base que nos deu uma outra posio e o crescimento, a qualidade do trabalho dos antroplogos, mas essa capacidade do antroplogo de olhar para a dinmica da cultura. No toa que o livro da Eunice chama A dinmica da cultura: o nome de um trabalho que est l, mas a preocupao essa, o tempo todo, e isto que eu acho que deu e que deve continuar a dar relevncia ao trabalho dos antroplogos: quando ns olhvamos para esses particulares. Eu me lembro at hoje, tambm no to longe... Vou dar um exemplo, como a Eunice deu, de uma vez em que eu apresentei no CEBRAP o primeiro projeto que eu fiz, nos anos 90, sobre juventude. Foi assim: todo mundo achou interessante, mas no havia perguntas, quer dizer, interessante, inteligente, uma coisa nova, mas o que isso? Hoje, h milhares de pesquisas, existem milhares de programas, est todo mundo interessado; mas, naquele tempo, no se via nada. Eu vou contar mais uma coisa: eu fiz nove pequenos projetos, porque a minha idia era pegar a juventude em vrios aspectos, mas o nico
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para o qual eu consegui financiamento foi um sobre os estudantes universitrios, porque ele tinha um vis claramente poltico, porque se pretendia, naquela poca hoje no se faz mais isso , discutir a participao poltica dos estudantes e porque ela teria arrefecido do padro antigo e tal. Ento, esse foi financiado, s esse, todos os outros no tiveram financiamento, ningum se interessou na poca. Agora, hoje, tudo isso tem relevncia, porque hoje est claro, para qualquer um que vive nessa sociedade, que a sociedade uma sociedade dividida, que as identidades esto a, que os grupos tm valor. Ento, o que se coloca a questo que a Eunice colocou j h muito tempo, quer dizer, como ns vamos utilizar esse nosso conhecimento que est baseado na idia da receptividade, da multiculturalidade? Porque est na base da nossa metodologia de conhecimento e ns no podemos abrir mo; se ns abrirmos mo disso, ns no estaremos mais fazendo Antropologia estamos fazendo outra coisa, mas no estamos fazendo Antropologia. Entretanto, mais do que nunca, a questo do universal e da universalidade passa a ter uma importncia enorme. Essa questo, eu acho que ns a estamos tentando nos colocar e que todos ns a estamos debatendo. Os exemplos que a Eunice deu so claros; eu vou retom-los. Por exemplo, ela falou da Frana, dessas restries e de como, por uma viso falsamente universalista, se pretende proibir o uso do vu. Proibiram na Frana, e se pretende, ento, agora est em discusso proibir a clitorizao das meninas. Isso bem complicado. Bom, o que eu acho que ns temos de fazer e que obrigao de quem tem uma formao que ns temos diante disso. Ns temos de dizer que essas duas coisas no so iguais: uma que proibir o vu e eu sou absolutamente contrria a essa proibio; eu sei que muitas feministas so a favor, ela evidentemente um smbolo que pode ser visto aos nossos olhos universais como dominao masculina, mas ela no s isso. E a entra o antroplogo: ns temos de mostrar que a simbologia muito mais sutil e complexa do que a identificao com um mecanismo de dominao. Os mecanismos de dominao, que tambm ns vimos hoje na conferncia de Sherry Ortner e a que Eunice se referiu, so muito mais complexos. Ento, uma mulher ou uma adolescente de dezoito anos usa o vu, que o que elas comearam a fazer na Europa voltaram a usar o vu para ir para a escola. Ser que no h um ladinho
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de ato voluntrio que a gente deixa de lado? Ser que tudo dominao? H esse lado, mas h o outro tambm: h uma escolha, uma identidade a que entramos ns; ns entramos na sutileza e no simplesmente para afirmar: olha, isso um smbolo de dominao. Vamos deixar que a mdia j faz isso muito bem! Acho que ns temos uma tarefa mais complexa. Se ns pensarmos com essas categorias a questo como que se faz a clitorizao?, a sim o mecanismo de dominao inelutvel, porque uma criana no se defende. A realmente uma dominao masculina clara; ento, ns temos de lidar. O que eu estou dizendo no que ns temos de ser a favor ou contra isso ou aquilo devemos nos posicionar a favor ou contra, mas depois de uma anlise um pouco mais sofisticada, porque o mecanismo de dominao no simples e, quando passa pelas categorias culturais, ele se torna mais complexo ainda. Foi muito interessante o que nos falou Sherry Ortner sobre isso tambm, e acho que a est um ponto muito importante e esse o ponto que permite tratarmos da questo da relatividade e da questo da universalidade, porque todos ns somos a favor dos direitos humanos, no de que isso no tenha nenhuma relativizao, mas preciso entender que certas categorias universais devem ser preservadas de todo modo. Para no demorar muito, eu acho que, neste mundo globalizado, se tornaram muito importantes. Acho que a Antropologia tem algo bem particular a dizer, mas precisa trabalhar bem com essa relao entre saber e interveno, saber e o que a gente faz com esse saber. Evidentemente eu no estou aqui defendendo a idia de que o saber uma torre de marfim e que a academia se tem isolado muito e ficado fazendo suas pesquisas no isso; isso nem teria propsito dizer, porque ningum mais acredita nisso no mundo de hoje. Ns vamos at buscar os nossos temas de pesquisa, porque ns temos um interesse prtico, ns temos um interesse de interveno, ns temos um interesse qualquer de mudar as coisas. Ento, claro que mudar o estado de coisas absolutamente fundamental, mas qual o lugar do saber nisso? Ontem, tambm tivemos, na abertura da 25 RBA, na meno do nio Candotti4 , essa questo, e eu at fui cumpriment-lo por ter colocado isso que eu achei extremamente importante ele colocou a relao dos movimentos sociais e o saber acadmico, a cincia em geral.
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Presidente da SBPC.
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Esse um tema que eu acho que merece toda a ateno, porque ns devemos discutir mais seriamente se queremos mudar o mundo com pura ideologia e com concepes j feitas: isso dominao, isso opresso, ns no estamos contribuindo, isso no o papel do cientista e da cincia. Cincia tem de abrir fronteiras, tem de abrir caminhos, tem de entender melhor. E esse mundo, com a sua globalizao, tecnificao, fragmentao, um mundo novo, um mundo que os polticos tambm no esto entendendo, todos esto um pouco perplexos diante desses processos que so processos muito recentes, de modo que eu achei muito interessante essa colocao do nio Candotti, que vem exatamente na mesma direo daquilo que a Eunice colocou. Eu acho que saber, cincia e movimentos sociais tm relaes tambm muito diferentes.Vocs vo ver que a minha posio aqui defender cada vez mais o relativismo, a especificidade do conhecimento, que o que ns fazemos, o que ns sabemos fazer. Ento vou dar s dois rpidos exemplos. Se ns pegarmos a relao dos movimentos anti AIDS, anti HIV, no Brasil, esses movimentos sempre tiveram, desde o seu nascimento, uma intensa relao com a cincia e com a pesquisa cientfica. Foram movimentos nascidos na classe mdia, hoje no so s de classe mdia, mas nascidos na classe mdia, com pessoas mais ou menos ilustradas e com conhecimento acadmico, e eles nasceram como uma relao de presso sobre os cientistas porque as pesquisas se desenvolveram em determinadas direes e continuam atuando assim: pressionam por recursos para pesquisas e pressionam por polticas pblicas de um determinado tipo de resposta. Esse movimento teve muitos momentos de tenso e de conflito com as descobertas, os caminhos ou os tipos de pesquisas pelos quais os cientistas enveredavam, mas continuaram pressionando. O que eu quero dizer que sempre houve uma valorizao do conhecimento cientfico por esses movimentos sociais. As razes so bvias, pelo modo como o movimento nasceu e pela necessidade de conhecimentos novos, rpidos, imediatos, em termos de enfrentar uma causa. Se ns pegarmos um outro movimento social que foi tambm muito bem sucedido no Brasil, que foi o movimento ecologista, a relao diferente: ele muito mais fragmentado, tem muito mais grupos com ideologias diferentes. Para os grupos ecologistas, a relao com o saber diferente, uma relao de desconfiana: eles no dizem
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olha, ns estamos aqui do lado de vocs para ver o que vocs esto fazendo, cientistas; no pra fazer qualquer coisa, no pra ficar pesquisando coisa que no tem interesse, mas ns acreditamos que atravs do conhecimento que a nossa prtica pode enriquecer. No o que acontece com a maioria dos grupos ecologistas, pois h uma desconfiana na cincia. Eu acho que uma coisa trazida de outras praias para c sem muito exame, mas h uma certa desconfiana da cincia. Por qu? Porque, se voc pega os discursos sobre transgnicos, por exemplo, os cientistas esto falando uma coisa, e o movimento est falando outra, e no h dilogo, no h ponte para esse dilogo. Isso complicado complicado para a cincia e complicado para o movimento social, porque ele se perde em inmeros caminhos que realmente, provavelmente, se ns acreditamos que a cincia vale alguma coisa e eu acredito , no vamos chegar a resultados to positivos como poderamos chegar. Quer dizer, as aes no sero aes dirigidas contra realmente aquilo que precisa ser discutido, aquilo que precisa ser at destrudo em muitos casos, mas vo por outros caminhos que so definidos sem uma anlise que leve em conta os conhecimentos que j existem. E, no entanto, os cientistas brasileiros no esto ausentes da preocupao ecolgica. Pode ser que alguns no queiram saber disso, mas a grande maioria tem uma adeso s questes levantadas pelo movimento ecolgico, mas essa desconfiana paira. Bom, ento, se ns somos antroplogos e vamos estudar os movimentos sociais e se ns estamos interessados nessa questo da universalidade e da relatividade e de como esse saber pode ser produtivamente utilizado na sociedade, eu acho que a nossa tarefa, sem dvida, entender essas diferentes dinmicas, entender a especificidade de cada movimento e quase nunca tentar fazer uma teoria social, uma teoria geral dos movimentos sociais, porque, at agora, no deu certo, porque eles so, por sua prpria natureza, muito especficos, e na sua especificidade que o que ns sabemos olhar que eles tm alguma grande contribuio tambm para dar, e ns para trazermos para a sociedade. Eu acho que essa realmente a questo, uma questo que eu tive, e aqui eu vou dar um depoimento quase pessoal, sobre algo que eu tive de enfrentar pessoalmente quando vim para Braslia numa circunstncia inesperada na minha vida. Eu tinha de inventar alguma coisa e, como antroploga, tendo passado os ltimos anos estudando
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movimentos sociais, estudando associaes de bairro e tal, eu tinha uma viso da sociedade brasileira que, naquele momento, no era nada compartilhada nem pelo mundo poltico nem pela mdia. Ento, quando eu dizia: eu vou trabalhar para estabelecer parcerias entre todos os nveis do governo e sociedade civil, eu levei um ano e meio, marcado no meu calendrio, e s depois de um ano e meio pararam as perguntas... Mas, toda vez que algum vinha me entrevistar, perguntavam: a senhora acha que os empresrios brasileiros tm responsabilidade social? A senhora acha que a sociedade vai colaborar e que as ONGs vo se unir para fazer alguma coisa em conjunto?. Essa era a idia. Bom, eu acho que eu acreditava nisso porque eu vinha de ter estudado as classes populares nas grandes metrpoles, eu insisti e valeu a pena porque deram certo os programas que ns fizemos partindo da premissa de que a sociedade tinha mobilizao, de que a sociedade brasileira no amorfa, de que ela mvel, quer dizer, ora ela est mobilizada, ora ela no est isso da natureza do movimento. Mas, como todo mundo olha para o movimento social querendo ver nele um partido poltico, toda vez que ele arrefece a gente diz que ele acabou, e no acabou. Ento, eu acho que essa experincia foi importante porque eu utilizei alguma coisa que vinha da minha vida acadmica; eu no estava l para continuar fazendo pesquisa, nem poderia: eu estava l para tentar usar o que eu sabia e usar tambm fazendo um planejamento adequado para as finalidades que a gente conseguia definir. Os temas, os problemas que a gente ia enfrentar no foram definidos s por mim, mas eu acreditava em algumas idias nas quais ningum estava acreditando porque eu tinha um conhecimento que eu trouxe da academia, e, com isso, a gente pode tambm fazer planejamentos adequados, que outra coisa pela qual eu continuo lutando: que esses projetos de interveno social no so apenas obras da nossa boa inteno, mas que eles tm de ser resultado tambm de um planejamento adequado, coisa que se faz com boa gesto, com bom conhecimento, com conceitos adequados. E eles tm de medir os resultados, porque ns no fazemos nenhuma interveno sem objetivo, no ? Tudo isso tem um objetivo, que comum a todos ns mudar a sociedade, de melhorar a sociedade , e, para isso, ns vamos saber se estamos ou no estamos melhorando. Este um outro ponto muito importante: o saber acumulado na
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academia, entre todos ns, esse que pequeno, fragmentado, cada um estuda um grupo, mas isso pode oferecer uma viso geral da sociedade. Agora, se ela adequada ou no, isso ns s sabemos quando ns medimos os resultados. Isso tambm uma coisa que ns precisamos levar muito a srio quando passamos do nosso papel puramente acadmico para um papel de interveno. Eu sou a favor de que esse papel exista, mas, se somos antroplogos, se somos acadmicos, se acreditamos no conhecimento, ns temos de usar o conhecimento para essa interveno e, portanto, ns temos de avaliar se ns estamos ou no corretos. Quando vamos estudar um grupo qualquer, ns no podemos analisar qualquer coisa: ns usamos metodologias, parmetros, restries. Ento, para a nossa atuao, tambm seno ns ficamos, nesse caso, como eu acabei de dar o exemplo dos movimentos sociais, que uns sabem e conseguem resultados positivos porque tm uma relao positiva com o conhecimento, e outros, ao contrrio, ao se afastarem, abrem vrios caminhos conflitantes entre si e perdem a sua prpria capacidade de mobilizao, porque, afinal de contas, eu acho que o conhecimento serve para alguma coisa, por isso que ns estamos todos aqui discutindo isso. Debate a partir dos questionamentos do pblico Miriam Grossi: Gostaria que vocs retomassem um pouco do que vocs produziram sobre a questo das mulheres, da famlia e da reproduo nos anos 70 com a produo de pesquisas e organizao de GTs nas reunies da ABA. Estas questes so hoje reconhecidas como questes de gnero, e os trabalhos que vocs fizeram foram importantes para a construo deste campo, que hoje muito reconhecido no Brasil. Eunice Durham: Eu gostaria de retornar a algo que um pouco complementar ao que falou Ruth. So dois conjuntos de preocupaes aqui: uma questo a respeito da interveno e outra a respeito do saber antropolgico. Esta ltima vem da minha relao com a Educao. Precisa ser um saber fundamentado, uma pesquisa bem feita, uma metodologia observada, porque seno ns no temos, na verdade, um conhecimento antropolgico. Ento, a questo da formao, a questo da disciplina do trabalho, a questo da metodologia, a questo
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do tamanho das amostras, a questo dos levantamentos estatsticos, so questes que fazem parte da construo do saber. s vezes, as pessoas tm a impresso de que basta ir para um lugar qualquer, ficar conversando com as pessoas e da voc tem constri o saber; mas no s isso: tem de ser um saber contextualizado. O que quero dizer tambm que o saber que o antroplogo constri a respeito de uma populao que estuda no o saber que aquela populao tem sobre si prpria, e ela no precisa desse tipo de saber para viver. A gente vive com um saber do senso comum. Para construir um saber antropolgico, preciso investigar como o saber popular produzido e reproduzido e que relao esse saber popular tem com a vida das pessoas, com suas condies sociais e econmicas. Para isso, preciso um trabalho muito cuidadoso. Um moo me perguntou esses dias se o conhecimento que ele possui certo ou errado. Normalmente, quando trabalhamos com uma populao especfica ou com um grupo social, verificamos que as pessoas possuem uma capacidade enorme de aproveitar qualquer abertura que lhes d a possibilidade de melhorar de vida como o ingresso num movimento social. Isso, entretanto, no exatamente o que o antroplogo est analisando: o que o antroplogo est analisando entender como que esses movimentos sociais ou, digamos, essas transformaes e a, por exemplo, a questo de gnero surgem, o que elas representam, qual efetivamente a amplitude dessa realidade. Eu defendo muito que ns temos de ter uma slida formao em qualquer que seja o campo em que a gente se coloque. Ento, eu estou trazendo, aqui, a idia de que ns realmente temos de insistir em que os alunos adquiram uma boa formao, que leiam a teoria, que aprendam a fazer pesquisa, aprendam a ler tabela, pois tudo isso absolutamente fundamental (...). Mas eu gostaria de falar a respeito da Educao. A preocupao com a Educao surgiu para mim como resultado de uma tradio familiar: uma herana de meu pai, que foi um grande educador foi professor de escola rural, de grupo escolar, de ginsio e colgio de escola normal, do Instituto de Educao e da Faculdade de Filosofia da USP. Durante minha vida inteira, discutia-se, em casa, a escola e o ensino. Isto se complementou com minha atuao poltica na USP. Quando eu comecei a militar no movimento dos docentes, antes de ter-se transformado em sindicato, havia o propsito de mudar a Universidade. O movimento no era
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sindicato, mas estava voltado para pensar e agir em funo de melhorar a Universidade, cujas mazelas atribumos ao governo militar. Ento, descobri que no sabamos nada sobre a Universidade para alm do conhecimento do senso comum, diferente do conhecimento que resulta de uma pesquisa. Cada um tinha uma viso bastante boa do seu departamento, da sua unidade, mas no se sabia como a Universidade era governada, no se tinha idia da amplitude do sistema, no se sabia da variao do sistema dentro do Brasil. Se se quer propor uma reforma, preciso conhecer o sistema de ensino superior, sem o que a reforma que no vai funcionar porque no haver um conhecimento dos problemas que precisam ser enfrentados. Ento, comecei a trabalhar e a investigar, levantando dados estatsticos a respeito do nmero de instituies, do nmero de alunos matriculados, onde estavam, a diviso entre pblico ou privado, a histria do sistema de Educao do ensino superior no Brasil, como que acontece nos outros pases, qual a peculiaridade do nosso sistema educacional. Esta a profisso de um pesquisador: no desistir de tentar melhorar esse sistema, mas atuar a partir de uma reflexo sobre o sistema educacional. Acredito que podemos avaliar em que medida uma pesquisa boa na medida em que formos capazes de descobrir coisas que sabamos. Essa a questo: se se pretende fazer uma pesquisa para confirmar o seu ponto de vista, isso no uma pesquisa. necessrio descobrir coisas que no se sabia antes e partir do reconhecimento de que h muita coisa que no sabemos. Quando eu comecei a trabalhar com imigrantes rurais, a minha pergunta era: como uma pessoa sai do interior do Piau, analfabeta, chega a So Paulo e arruma um emprego?. E, no caso da Educao superior, caminho pelo qual eu comecei, a questo era: se para fazer a reforma do ensino superior, temos de conhecer a natureza desse sistema que pretendemos reformar, temos de analisar as mudanas que ocorreram, diagnosticar os problemas como a ineficcia, o burocratismo, o corporativismo, a qualidade de ensino (que extremamente heterognea), a quantidade e qualidades das pesquisas (que tambm so muito heterogneas). Temos de fazer uma proposta pensando nessa heterogeneidade. Do meu interesse pelo ensino superior, parti para a questo do ensino mdio, porque descobri uma coisa fundamental: ns tnhamos mais vagas no ensino superior do que jovens se formando no ensino mdio.
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Ento, toda a grande crise que se fazia a respeito do pequeno nmero de estudantes universitrios no podia aumentar mesmo. No podia ser resolvida aumentando a oferta, mas ampliando e melhorando o ensino mdio. Peter Fry: Eunice, voc disse que uma das maneiras de voc saber se voc descobriu uma coisa nova a fria das pessoas na reao sua descoberta. Eu fiquei pensando que uma das coisas que j se discute sobre a questo da relao da cincia e dos movimentos sociais que, muitas vezes, a ira que se produz ao conhecimento antropolgico um sinal de algum tipo de descoberta, porque, se no fosse uma descoberta, as pessoas no levariam to a srio, no ficariam to iradas; e, quando a Eunice comeou a falar desse trabalho na Universidade de So Paulo, esse trabalho incomodou muito, no ? Eunice: E incomoda at hoje. Ruth: Toda a minha colocao era exatamente para dizer que o vu pode ser uma contestao, mas no s isto. Voc disse: eu quero os direitos humanos dos ndios X. Eu quero os direitos humanos que tm universalidade, que a carta dos direitos humanos garantir uma srie de direitos que no esto sendo garantidos agora. Agora, preciso que a gente os estude e saiba o que est faltando, como isso se adapta ao especfico, mas sem abandonar a idia de que ns temos de ter o mnimo de universalidade pela qual ns mesmos vamos nos pautar. E o vu, eu dei o exemplo exatamente do vu porque eu acho que o mais claro no sentido de que ele tem um significado de dominao e um significado de contestao e que muito difcil a gente avaliar, porque h meninas que esto indo para a escola de vu porque o pai obriga ou porque o irmo obriga, e h outras que esto indo para marcar uma identidade. Ento, essa ambigidade que o nosso terreno de antroplogo, isso que ns temos de estudar. Portanto, deveria tambm decorrer em aes polticas de interveno mais sutis, e no simplesmente vitimizando umas e endeusando outras, porque a realidade mais complexa. Cada vez que a gente simplifica, a gente estraga a nossa interveno: ela no chega ao resultado que ela tinha de ter. Bom, depois voc me perguntou a questo que voc colocou
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sobre os gestores pblicos, como o exemplo do Ibama e a cincia [referindo-se ao questionamento de um dos membros da platia]. Bom, a uma luta de que Foucault j falou muito, sobre os micropoderes. Quer dizer, entre um que advogado e o outro que pesquisador, eu acho que a no nem uma questo do conhecimento como um todo e do movimento social, quer dizer, algo que est no nvel de como a gesto pblica aproveita o saber. Eu no falei nisso, eu falei mais da academia e movimentos. Mas isso interessantssimo; h uma bibliografia cada vez mais interessante nos EUA sobre isto, porque h realmente uma dificuldade, e essa dificuldade ns temos de encarar tambm, do lado da academia, como ns teremos de lidar com ela, porque o que se mostra que, digamos, quando uma instituio governamental pede um estudo, um consultor agora isso est muito na moda , o consultor faz uma pesquisa no vazio de todas as limitaes que o sistema poltico impe. Ento, esse estudo, em geral, cria um grande problema para o gestor pblico, mesmo que ele seja um cara muito bem intencionado, ele incapaz de entender, o que deveria fazer parte da pesquisa. O antroplogo faria um pouco isso se perguntando quais so os limites que a poltica do momento impe. Por exemplo, voc tem um prefeito X que no gosta de amarelo, ento ns no vamos dizer para fazer um cartaz amarelo, para poder dizer de uma maneira simples. Ns temos tambm de encarar que esse nosso conhecimento tem de estar situado dentro de um contexto, evidentemente para mud-lo. Isso no quer dizer que a gente tenha de ser conformista com o contexto poltico, mas, em geral, os acadmicos tm muito essa atitude de pensar: se eu compactuar, se eu na disser que na minha pesquisa eu tenho de acabar com essa forma de atuao, eu no estou sendo correto. Eu acho que ns temos limites ticos muito claros e conhecidos de todos. Alis, quando eles so violados, sabemos que estamos violando limites ticos. Mas entender aqueles limites que o prprio gestor pblico tem importante, e aqui que cabe. H um monte de bibliografia sobre isso que muito interessante nesse desentendimento do dilogo entre os consultores acadmicos e os gestores pblicos, a h essa dificuldade tambm complicada. E o que eu estava discutindo e que tambm foi colocado que esse dilogo entre academia e sociedade tambm muito difcil. E muito difcil tambm pelo lado da academia, no s pelo lado dos movimentos.
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Acho que, no meu exemplo, talvez tenha ficado um pouco mais sobre as dificuldades que vm dos movimentos, mas do lado da academia tambm existe isso, porque tambm no se levam em conta exatamente quais so os limites, os contextos e o que ns podemos contribuir com o nosso conhecimento. Eu acho que exatamente porque difcil, complicado e a gente no tem a soluo. Mas a questo que ns estamos colocando para, daqui para frente, pensarmos nesses termos e pensarmos que nem sempre ns estamos ajudando quando concordamos. O que disse o Peter muito importante: quando a gente descobre alguma coisa de novo, sempre h uma reao, algum est contra, porque as coisas estabelecidas esto sendo mexidas. [Sobre os estudos de gnero e o movimento feminista], eu acho que essa absolvio foi importantssima. E por que ela foi importantssima? Porque ela veio efetivamente de fora para dentro. No foi na academia que eu comecei a me interessar pela questo foi na participao do movimento feminista. Quer dizer, foi de fora para dentro que o tema chega, e a h evidentemente essa dificuldade de ser efetivamente absorvido como fazendo parte daquilo que voc pode trabalhar cientificamente, pode dar uma contribuio, etc. Esse um bom resultado, porque vemos que, sobre o movimento feminista tambm fora do Brasil, a academia comprou o tema, e o resultado muito bom, porque hoje reconhecidamente as feministas nos EUA tm trabalhos tericos da maior relevncia, elas so reconhecidas pela academia pela qualidade terica dos seus trabalhos, alm do movimento, porque ningum escreve sobre mulher e no pratica alguma coisa em termos de uma prtica a mais de motivao. Eu acho que isso que a gente esquece, porque as coisas passam to depressa no Brasil, mas ainda ontem, anos 80, no havia curso de gnero em lugar algum; reconhecer um instituto ou um pequeno ncleo era uma dificuldade e a verdade que, at hoje, no temos muito apoio, quer dizer, apoio de recursos, etc. Ainda bastante, um assunto de segunda categoria... Eunice: Eu queria comentar uma coisa que o Peter disse sobre o que eu estava dizendo, que temos de tentar descobrir o novo, temos de perguntar alguma coisa sobre o que no sabemos e duvidar daquilo que precisamos saber (ele disse que, quando a gente descobre o novo,
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realmente todo mundo contra). Mas h uma outra questo para avaliar se estamos fazendo uma boa pesquisa: quando descobrimos alguma coisa que nos mostra que estvamos errados.
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Peter Fry: Boa tarde! Vou falar muito pouco porque o tempo est curto. Apenas queria dizer que, do meu ponto de vista, no h nada mais agradvel, que mais prazer d, do que ver algum passar do status de aluno para uma carreira brilhante. Ento, eu penso que a Manuela o caso e um caso muito especial. Manuela chegou a Campinas ela vai nos contar com uma carta do Lvi-Strauss. Ns ficamos apavorados, Verena e eu que isso?. Olhando para trs, acho que uma das coisas mais incrveis dessa amizade que produziu uma espcie de casamento entre aquela Antropologia Social Britnica, muito calcada nas relaes sociais, e o Estruturalismo Francs, que a Manuela nos trouxe. Ento, foi muito eficaz; a gente conseguiu pensar a relao entre essas Antropologias. A Manuela vai contar a experincia dela, eu no vou contar. S para dizer que atualmente ela oscila entre a Amaznia, So Paulo e a Universidade de Chicago. Ento, a palavra est contigo, Manuela. Manuela Carneiro da Cunha: Muito obrigada por essa carinhosa apresentao. Muito obrigada, Miriam, e toda a Diretoria da ABA, por esse convite que me deixou evidentemente muito contente. Eu queria comear dizendo que, se eu no me engano, a primeira vez que acontece esse negcio de dilogo com o autor. E, portanto, no existe um formato certo? para isso. Ento, eu estava um tanto vontade, porque assisti, no ano passado, a um dilogo desses na ANPOCS, que foi onde surgiu essa idia, me parece. Esse evento na ANPOCS foi em torno do Sergio Miceli, e foi muito
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informal, sem mesa. Talvez porque o horrio coincidisse com o de outros eventos na ANPOCS, havia relativamente pouca gente, e era mais ou menos isso que eu estava esperando aqui na reunio da ABA. Portanto, eu no me preparei mesmo. Achava que ia ser muito simples e agora estou numa saia-justa, porque h muita gente. Agradeo a presena de todos e aviso que vo ter de agentar uma conversa absolutamente no preparada. Mas achei que falar da minha vida era fcil, sobretudo falar da minha vida numa situao que no igual de um memorial, em que voc tem de dar coerncia sua obra, quer essa coerncia exista ou no. Ento, eu vou simplesmente falar das coisas de que eu me lembro, e vai haver tempo para perguntas depois se vocs quiserem expandir certos temas. Bom, como vocs j devem ter adivinhado, eu nasci em Portugal, e tenho um sotaque que no suficiente para me fazer reconhecer como portuguesa em Portugal mas que suficiente para ser imediatamente classificada como portuguesa aqui, no Brasil, o que uma situao engraada, porque se acaba ficando entre duas cadeiras. Eu nasci em Portugal. Acho que relevante e que cabe nessa pequena biografia. Meus pais eram judeus hngaros que foram para Portugal antes da guerra, felizmente. Foi um lance de gnio da minha me. Meu pai havia lutado na Espanha do lado bom, evidentemente [risos] e adorava Barcelona, queria voltar pra l depois que Franco fosse embora. Minha me sabiamente lhe disse: pode demorar um pouquinho. Vamos para um pas de que provavelmente voc nunca ouviu falar, que se chama Portugal, que fica bem do lado da Espanha, e que eu acho que no vai entrar na guerra. Isso foi em 1939. Meus pais tinham acabado de se conhecer e foram os dois para Portugal, onde minhas duas irms e eu nascemos. Ento ns somos gatos nascidos no forno, de certa forma. No tnhamos, portanto, parentes em Portugal, mas fizemos muitos amigos. Meus pais vieram para o Brasil, para So Paulo, em mil novecentos e cinqenta e... No devia falar isso, porque agora vou revelar a minha idade [risos]. Eles vieram em 54, quando eu tinha onze anos. Faam as contas. E chegamos ao Brasil uns dias antes do suicdio do Getlio Vargas. Foi um grande impacto, como vocs podem imaginar, embora eu s tivesse onze anos. Outra coisa que acho relevante que a famlia dos meus pais era judia e ficou, em grande parte, na Hungria. Muitos morreram, infelizmente, mas alguns se
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salvaram alis, por causa de uma proteo do governo portugus que minha me conseguiu para sua famlia e para a de meu pai: ela tinha uma irm mais jovem, que est viva at hoje e que passou toda a guerra na Hungria. Essa irm era recm-casada e perdeu o marido na guerra. Curiosamente, foi essa irm quem induziu minha me a esquecer o judasmo. Ela disse: no passe essa cruz para os seus filhos cruz, eu acho que ela no usou, mas... [risos]. Deve ter usado estrela de David. Meus pais eram completamente no-praticantes, embora a famlia de minha me fosse mais religiosa. Minha me havia sido sionista e socialista em sua juventude. Em suma, nem meu pai nem minha me eram praticantes e no parecem ter visto grandes problemas em se converter. Minhas irms e eu fomos batizadas e, embora minha me voltasse ao judasmo no fim de sua vida, ns no conhecemos praticamente nada do judasmo. O pouco que sei, eu aprendi com o meu primeiro marido, que, por sinal, no era judeu, mas que conhecia muito o judasmo, Marianno Carneiro da Cunha. Ele estudou em Jerusalm e sabia hebraico. Falava com o meu av materno, porque meu av no falava portugus. Isso eu vou contar daqui a pouco. Eu fiz o primrio em Portugal, no Liceu Francs, e, chegando a So Paulo, fui para colgios brasileiros. O colegial, eu at o fiz numa escola de freiras, o des Oiseaux tanto que meus pais tiveram de se casar no religioso para eu poder entrar nesse colgio, quando eu tinha quatorze anos. Meu pai queria que eu fosse mdica dizem que toda famlia judia gosta de ter mdicos na famlia. Ento, eu me preparei para a faculdade de Medicina. [Profa. Manuela expe sua aproximao com Claude Lvi-Strauss a quem solicita orientao acadmica. Relata como foi este encontro]. Eu falei para Lvi-Strauss: sou formada em Matemtica. Ele ficou realmente interessado. Foi porque eu vinha da Matemtica que ele me aceitou, e uma das primeiras coisas que eu tive de fazer foi apresentar, num seminrio dele, uma tese muito interessante de um canadense, Franois Lorrain, que aplicava lgebra das categorias ao livro As Estruturas Elementares do Parentesco. Fui aluna do Lvi-Strauss durante acho que trs anos, e ele me aceitou inclusive para fazer uma thse dEtat com ele. Vocs no podem fazer idia do que era uma thse dEtat naquela poca. Eram duas teses... S para vocs avaliarem: As
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Estruturas Elementares do Parentesco era originalmente a parte principal de uma thse dEtat. E ainda havia, naquela poca, obrigao de escrever uma segunda tese, menor, para se obter uma thse dEtat. Adoraria ter escrito uma thse dEtat, mas no tinha a menor condio de faz-la. Lvi-Strauss foi sempre encorajador, realmente foi um estmulo muito grande. A eu tive o meu primeiro filho, Mateus, em Paris... E os meus pais estavam me pressionando para eu voltar. Estava ficando realmente muito difcil ficar em Paris com um filho pequeno. Quando Marianno, meu marido, terminou a tese de assiriologia dele, ns voltamos para o Brasil, e Lvi-Strauss escreveu uma carta: a famosa carta que voc [referindo-se a Peter Fry] citou e que foi meu passaporte. A carta dizia o que ele tambm me tinha dito: agora hora de voc voltar para o Brasil, fazer trabalho de campo. Eu sabia muito pouco ainda de Antropologia na verdade, porque eu tinha lido algumas coisas, mas eu tinha vindo da matemtica. Tambm segui outros cursos da Ecole des Hautes Etudes: o de Hans Dietschy, um etnlogo suo, e o de Julian Pitt-Rivers. Mas, enfim, meu aprendizado foi muito atomizado, no havia um currculo, uma formao de antroplogo. Isso, alis, foi um treinamento que mais tarde se organizou na Frana, mas naquela poca no havia. Cheguei aqui, soube da existncia do Mestrado que tinha acabado de ser aberto na UNICAMP, pelo Peter Fry, pela Verena Stolcke e pelo Antnio Augusto Arantes, e resolvi que ia tentar ir para l. Fui da primeira turma de ps-graduao, e foi timo, aprendi muitssimo, de uma forma muito mais sistemtica, e aprendi um outro tipo de Antropologia. Alm dos trs que eu j mencionei, havia professores convidados: Francisca Vieira Keller, do Museu Nacional, que falava sobre a fronteira, e Roberto DaMatta. Quando estava l, escrevi meu primeiro artigo; lembro-me de t-lo mostrado para Peter, que leu e disse: no entendi nada. Fiquei meio chateada. Mas a eu mandei para Lvi-Strauss, que gostou muito. E ele mandou para a Revista LHomme, dizendo tenho certeza de que vo publicar.... E realmente publicaram. Eu fazia, nesse artigo, uma anlise de um movimento messinico que aconteceu em 1963 entre os ndios Canela e que tinha sido documentado por Bill Crocker, um antroplogo de Washington, americano. Comparava esse movimento messinico com o mito de Auk, o mito de origem do homem branco entre vrios
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grupos J, inclusive os Canela. E mostrava, com excesso de detalhes o excesso de detalhes mostrava bem que era meu primeiro artigo, porque tinha notas e mais notas e mais notas e mais notas , que o movimento messinico era uma inverso estrutural do mito de Auk. Eu acho que era uma confirmao da teoria estrutural de que o mito serve para ser manipulado, de que ele parte de uma famlia de transformaes e de que, de certa forma, a gente poderia usar o mito para pensar um acontecimento histrico e entender a razo mtica de um acontecimento histrico. Muito mais tarde, eu mandei esse artigo para Marshall Sahlins, que no o tinha lido, e ele me mandou uma carta muito simptica, dizendo que sua teoria j estava toda ali. No estava. O que ele estava dizendo era que as idias que ele mais tarde publicou sob o ttulo Metforas Histricas e Realidades Mticas j estavam contidas ali, nesse meu artigo de 1973. Ele foi muito simptico de dizer que estava tudo ali, mas no estava. E o que no estava ali? Sahlins foi mais adiante. O que eu mostrei foi que o mito estava sendo invertido e usado na ao, no movimento messinico. Sahlins deu mais um passo: mostrou como a prpria estrutura transformada ao ser usada, e isso certamente no estava no meu artigo. A inverso do mito no modifica sua estrutura; pelo contrrio, por ser parte do seu grupo de transformaes, a inverso uma instanciao da mesma estrutura. Lembrei isso para dizer que h uma certa consonncia minha com o que o Sahlins viria a fazer. Esse foi meu primeiro artigo, e acho que foi um insight frutfero. Depois disso, eu fiz minha tese. Eu tinha muito pouco pesquisa de campo, porque meu filho Mateus, quando eu podia ir para campo, tinha s onze meses, e eu no queria nem podia ficar longe dele. A minha tese de Doutorado, que foi publicada no livro Os Mortos e os Outros, baseou-se em um quantum de etnografia minha e apoiou-se essencialmente na etnografia de Julio Cesar Melatti. Essa tese foi feita sob a gide de Peter Fry e essa ele no s entendeu como deu muitas dicas importantes. Eu acho que isso que o Peter mencionou, essa interao entre Estruturalismo e Antropologia Social Britnica, foi dando-se aos poucos. Os Mortos e os Outros, de certa forma, j traz essa marca, pelo menos para tomar seu contrap. E, no trabalho subseqente, que resultou no livro Negros Estrangeiros, ainda muito mais se v essa presena da Antropologia Britnica. Voltando: Os Mortos e os Outros, como eu disse, valeu-se
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muito da excelente etnografia do Melatti e das etnografias disponveis. Foi uma reflexo que tinha muito pouca etnografia prpria. Mas o que eu fiz l teve uma certa importncia nos estudos americanistas da Amaznia, das terras baixas da Amaznia, que um sub-campo da Antropologia extremamente ativo e importante no Brasil e particularmente central no Museu Nacional, mas no s. Em Os Mortos e os Outros, eu me vali da Antropologia Britnica, que, em larga medida, se construiu sobre etnografias de sociedades africanas os Nuer, os Tallensi, etc. Essa Antropologia Britnica clssica est sempre falando da continuidade das linhagens e da presena social importante dos mortos, dos ancestrais, na vida dos vivos. Os ancestrais so personagens sociais focais, de acordo com essas monografias africanistas. O que eu fiz foi mostrar como a lgica dos grupos amaznicos das terras baixas era diferente da dessas sociedades africanas, e como os mortos, longe de serem um prolongamento da vida dos vivos, eram, na realidade, completamente afastados do mundo dos vivos; que havia, entre eles e os vivos, uma ruptura radical. E no s isso: que os mortos eram, de certa forma, assimilados, tinham alguma coisa a ver, estavam no campo de qu? Dos afins. Quer dizer, a morte operava como uma ruptura que tornava os consangneos afins. Essa foi uma idia que teve uma certa repercusso. Mais tarde, Eduardo Viveiros de Castro a retomou de uma maneira at mais ampla. Recentemente me pediram para fazer o prefcio de um livro que vai sair nos Estados Unidos cujos artigos so todos de especialistas da Amaznia. Alguns dos artigos ali, para minha surpresa, esto contestando essa minha reflexo completamente, e outros esto mostrando que tem alguma relevncia, quer dizer, mesmo onde se poderia pensar que h ancestrais estou falando do mundo amaznico , mesmo ali esses ancestrais no so como os ancestrais africanos, e contm fortes conotaes de afinidade. Isso uma coisa muito tcnica e pode parecer muito esotrica para muitos de vocs, mas para mim foi uma surpresa ver que essa questo ainda estava sendo discutida. Essa foi minha tese de Doutorado, que virou o livro Os Mortos e os Outros. Depois disso, eu fui para a Nigria. Jack Goody costumava dizer que o lugar geogrfico em que ele trabalhava dependia da mulher dele... Ele teve vrias mulheres... E, disse ele, foi para um lugar (acho
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que para o Gana) por causa de uma, foi para no sei onde por causa de outra. Eu fui para a Nigria por causa do meu marido, Jos Marianno Carneiro da Cunha. E, desde 1983, eu vou para o Acre por causa do meu marido Mauro Almeida. Fui para a Nigria acompanhando meu marido, com meus dois filhos pequenos. E pensei: estou aqui, vou fazer alguma coisa. Foi quando fiz a pesquisa que resultou nos Negros Estrangeiros. Comeou com uma pesquisa l na Nigria sobre descendentes de escravos que voltaram para o que hoje a Nigria no sculo dezenove, incio do sculo vinte, e que tipo de sociedade eles formaram l. Marianno morreu em 1980, e eu parei de mexer nesse assunto durante um tempo. Depois, voltei ao assunto durante um ano que passei em Cambridge, e trabalhei l na primeira parte desse livro querendo entender por que essa gente voltou. Muitos desses exescravos libertos j tinham nascido no Brasil, nem todos eram nascidos na frica. Por que eles voltaram? Saudade no explicao. Fui olhar o que era a vida dos libertos no sculo dezenove e o que poderia explicar essa volta. Isso acabou sendo a primeira parte do livro e foi escrita muito depois da segunda. Agora, o livro como um todo que foi, alis, minha livre-docncia na USP continha uma tese que, em seu incio, era muito britnica. Em que sentido? Eu achava que esse era um caso clssico, tpico, paradigmtico de questes de identidade tnica, porque, se vocs pensarem bem, uma histria de iorubs, que so trazidos escravos para o Brasil e que aqui se tornam os guardies da religio dos orixs, enquanto l, no que era, ento, chamado de Costa do Benim, se tornam os catlicos paradigmticos. So os primeiros catlicos, formam uma comunidade extremamente ciosa de si como catlicos e brasileiros em todas as cidades costeiras, desde Uid, Porto Novo, Bagri e Lagos. Apesar de muitos retornados serem muulmanos, brasileiro e catlico passam a ser sinnimos nessas cidades. O problema evidente o seguinte: a mesma populao, so todos iorub de origem. O que faz com que sejam brasileiros e catlicos l e aqui africanos e adeptos do candombl e de outras religies afro-brasileiras? O que diz isso sobre a questo da identidade tnica? Foi isso que eu tentei trazer discusso, introduzindo idias estruturalistas. Onde entra o estruturalismo nisso? Todo mundo sabe que a identidade tnica contextual, no nenhuma novidade. Mas como contextual? O que explica que, na frica Ocidental, esses
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libertos se tenham afirmado como brasileiros e catlicos? A chave, creio eu, o que se poderia chamar a linguagem local em que expressa a diferena. No totemismo, essa linguagem, como mostrou Lvi-Strauss, a do contraste entre espcies naturais, que posto a servio, isto , que fornece a linguagem para falar de diferenas sociais. Mas h muitas outras linguagens possveis para falar de diferenas sociais. Nas cidades iorub, essa linguagem j existia, eram os contrastes entre orixs. Simplificando bastante, poder-se-ia dizer que a religio, sempre pensada como exclusiva a cada grupo social, era, nesse contexto, a linguagem da diferena. O catolicismo tornou-se o apangio exclusivo dos retornados. Exclusivo mesmo: os missionrios franceses, que, na dcada de 1860, tanto se tinham alegrado de encontrarem uma comunidade catlica na costa, acabaram por perceber que essa comunidade no tinha inteno alguma de espalhar sua f e converter seus vizinhos. O catolicismo dos retornados do sculo XIX tornou-se uma religio local, exclusiva, enquanto no Brasil a religio dos orixs se tornou universalista, o que mostra que no basta olhar as formas de uma religio: suas prticas de recrutamento so pelo menos to eloqentes para se entenderem mudanas e continuidades. Grupos revivalistas apegam-se s primeiras e ocultam a si mesmos estas ltimas. Os antroplogos no podem incorrer no mesmo ocultamento; tm de entend-lo. Muitos anos mais tarde, vim a saber que, mais ou menos na mesma poca em que eu tinha escrito sobre identidade tnica e totemismo, John Comaroff tinha escrito um artigo exatamente sobre o mesmo tema, mas numa perspectiva evidentemente nada estruturalista, obviamente. Bem, essa foi a minha segunda pesquisa mais alentada. Fiquei na Nigria por menos de um ano. E voltei para o Brasil no auge de uma campanha de que talvez alguns mais velhos se lembrem. Em 1978, o ministro do interior, chamado Rangel Reis, encaminhou uma proposta de lei para o Congresso de emancipao dos chamados ndios aculturados basicamente era isso. Isso criou uma enorme polmica, porque essa emancipao no fundo resultava em uma emancipao das terras; as terras indgenas so garantidas, mas so garantidas para quem? Para ndios. Se os ndios deixam de ser ndios legalmente, as terras deles tambm poderiam deixar de ser garantidas. Essa era, em poucas palavras, a idia. Ento, houve uma enorme mobilizao no
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pas inteiro isso era na poca da ditadura militar. Vocs imaginem o que era mobilizao naquela poca e os riscos que se corriam. Curiosamente, e talvez justamente por causa desses riscos, que essa causa indgena chamou para si uma inimaginvel manifestao de solidariedade da sociedade, talvez pelo simples fato de que outros temas fossem tabus. No se podia falar de vrios outros temas. Essa questo indgena foi um desaguadouro de todo tipo de protesto. E o Peter se lembra muito bem, porque ele estava l. E a ABA tambm. Eunice Durham, ento presidente da ABA, teve um papel muito importante. Foi um novo momento para a ABA, em que se deu um salto em termos de presena poltica da associao: Eunice conferiulhe uma fora e uma visibilidade que no tnhamos antes. Ela inaugurou nessa poca, com muita coragem pessoal e determinao, uma tradio de militncia da ABA enquanto instituio. Na seqncia disso, eu assumi a presidncia da Comisso Pr-ndio de So Paulo. Foi uma poca de pipocarem comisses desse tipo, comisses prndio. A maioria j acabou, mas ainda existem vrias importantes, como notadamente a Comisso Pr-ndio do Acre. Com o protesto contra o projeto de emancipao do Ministro Rangel Reis, a questo da identidade tnica, que eu tinha estudado de forma terica em cima de material dos sculos dezenove e vinte, tornou-se, de repente, uma questo poltica central sobre a qual eu me manifestei na imprensa. Essa coincidncia, em larga medida casual, entre o que eu estava estudando e um debate de polticas pblicas teve um impacto importante na minha vida e no que eu vim a fazer a seguir. O que eu vim a fazer depois? Por um lado, militei, juntamente com vrias outras pessoas por exemplo, Lux Vidal, Aracy Lopes da Silva, Dominique Gallois, Beto Ricardo, Rubens Santilli, Ailton Krenak, Claudia Andujar, Eunice Paiva, Carlos Mars, etc. , na Comisso Pr-ndio. Dalmo Dallari e Jos Afonso da Silva, ambos professores da Faculdade de Direito da USP, foram um apoio jurdico fundamental. ramos extremamente ativos, organizvamos protestos, escrevamos em jornais e sacrificvamos nossas vidas familiares em longussimas reunies. Por outro lado, eu tambm estava preocupada com os subsdios que o mundo acadmico poderia trazer para as demandas territoriais indgenas. Mesmo dentro da Comisso Prndio, organizamos um setor jurdico e comeamos a estudar a histria
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da legislao indigenista. Um dia, Rubo, meu amigo o mdico Rubens Santilli, que, poucos anos mais tarde, morreu num acidente estpido de helicptero quando estava prestando assistncia aos Yanomami , trouxe-me um livrinho que ele tinha comprado num sebo. Eram conferncias de 1911 do grande jurista Joo Mendes Jr. sobre os direitos territoriais indgenas. Joo Mendes Jr. sustentava que os direitos indgenas eram originrios, ou seja, antecediam a prpria Constituio. Constituio, cabia reconhec-los, no outorg-los. Colocamos essa tese para circular novamente e, alguns anos mais tarde, conseguimos que fosse expressamente aceita na Constituio de 1988. Nessa poca, at 1985, pesquisa de cunho poltico no se podia fazer dentro da Universidade: dava-se nas ONGs. Quando foi possvel voltar a fazer pesquisa na academia, criei, juntamente com John Monteiro (ento na UNESP), com Dominique Gallois e com vrios outros colaboradores a essas alturas, em 1984, eu j tinha ido para a USP , o Ncleo de Histria Indgena do Indigenismo. Esse Ncleo de Histria Indgena e do Indigenismo era o brao acadmico de uma pesquisa que pretendia justamente subsidiar grupos indgenas nas suas demandas territoriais. Por qu? Porque estava trazendo tona documentos histricos e instrumentos de pesquisa para estabelecer a imemorialidade da ocupao indgena. Essa militncia me ocupou muitssimo, durante muitos anos. Em 1986, fui eleita presidente da ABA e segui o exemplo de Eunice Durham, de Gilberto Velho, enfim, de todos os presidentes que vieram depois da Eunice, de fazer da ABA uma instituio presente politicamente. Coincidiu que era a poca da Constituinte. Em 1987, em preparao para a Constituinte, publiquei, juntamente com vrios colaboradores para quem passei, alis, a maior parte da documentao , Direitos do ndio, um livro que mostrava qual era a tradio histrica dos direitos indgenas no Brasil desde a poca colonial, sobretudo em relao a direitos territoriais e a direitos civis. O que se conseguiu no captulo dos ndios na Constituio de 1988 foi um grande sucesso. Em grande parte, isso foi devido a uma experincia acumulada durante dez anos com casos concretos envolvendo direitos indgenas, ao trabalho de pesquisa sobre legislao indigenista e a uma relao de confiana que se estabeleceu entre juristas como Dalmo Dallari, antroplogos, SBPC, movimento indgena, parlamentares e tambm, curiosamente, os gelogos, ou
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melhor, a Coordenao Nacional de Gelogos. Por que eles foram importantes? Porque o grande problema das terras indgenas naquela poca hoje a coisa menos gritante, mas ainda persiste eram as pretenses minerais para a explorao da Amaznia. A aliana dos gelogos com a coalizo pelos direitos indgenas e contra o lobby das empresas mineradoras foi extremamente importante. Para os gelogos, proteger as terras indgenas da minerao correspondia a um anseio nacionalista de constituir reservas minerais para o futuro. Tambm contamos com uma bancada parlamentar muito eficiente, na qual, alis, havia um ex-aluno nosso de Antropologia da Unicamp, Jos Carlos Sabia, do Maranho, que foi deputado constituinte; Mrcio Santilli, ex-deputado; mas, sobretudo e acima de todos, o senador Severo Gomes, que foi um articulador extraordinrio. Foi graas a essa conjuno que temos hoje, na Constituio brasileira, os artigos 231 e 232, os quais apresentam uma definio de terra indgena que ultrapassa em muito tudo o que se v em outras constituies Latino-Americanas (...). Para retomar o fio de meus livros, houve um outro livro que saiu em 1987, Antropologia do Brasil, que uma reunio de vrios artigos. Depois disso, fizemos um esforo conjunto no Ncleo de Histria Indgena e publicamos Histria dos ndios no Brasil, que saiu em 1992, no quinto centenrio da viagem do Colombo. No sei se bom ou se ruim, mas parece que os historiadores chamam o livro de Manuelo [risos]: para nossa grande surpresa, j est na dcima reedio. Tornou-se uma espcie de livro de consulta. Isso era nossa inteno; quisemos fazer um estado da arte em relao a esse assunto que era, em larga medida, ignorado at ento, particularmente nas escolas, mas nunca pensamos que realmente fosse ser to utilizado. Vrias pessoas que esto aqui uma gerao mais prxima da minha contriburam, e um livro que continua em circulao. Em 1991, fui convidada como professora visitante pelo departamento de Antropologia da Universidade de Chicago. Passei seis meses l. Em outubro de 1994, tornei-me professora desse departamento em que ensino at hoje. Intelectualmente, foi um grande choque, porque no me reconhecia em muito do que estava sendo discutido nos Estados Unidos. Chicago ficou a salvo das crises de conscincia que assolaram a
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Antropologia norte-americana, que a voltaram para seu umbigo e a estilizaram durante bastante tempo, mas os alunos de Doutorado j chegavam imbudos de ps-modernismo, o que tornava necessria uma cura de desintoxicao. Demoraram anos at que eu soubesse situar-me naquilo. Ao final, acho que entendi a produtividade do pragmatismo da Antropologia norte-americana. Pragmatismo remete a Pierce, remete a James, mas o ponto importante e simples, que acho que incorporei aos poucos, que essas categorias nas quais eu sempre estive interessada enquanto estruturalista, fundamentalmente estruturalista, no fundo se definem e existem pelo seu uso. uma idia muito simples, j presente no melhor de Malinowski (que, alis, tinha influncia de James), mas tem muitas implicaes do ponto de vista da anlise. Vou terminar com o que est me interessando agora, de uns anos para c. Esqueci-me de dizer que tambm organizei, juntamente com Mauro Almeida, meu marido, a chamada Enciclopdia da Floresta, que trata do conhecimento tradicional do alto Rio Juru e que contou com a colaborao de vrias pessoas: seringueiros, ndios, bilogos e antroplogos, alguns dos quais esto nesta sala hoje. Essa empreitada tambm foi ligada a uma campanha poltica; no surgiu do nada. Surgiu de um movimento no qual o Mauro teve um papel essencial, pela criao das primeiras reservas extrativistas para os seringueiros do Acre. A primeira reserva extrativista, no por acaso, foi criada no Alto Rio Juru, onde a gente participou ele, sobretudo, eu mais no papel de guarda-costas de uma intensa mobilizao. Guarda-costas mesmo, porque Chico Mendes tinha acabado de ser assassinado. Mauro era, na poca, assessor do Conselho Nacional de Seringueiros, tinha participado de famosos embates com Chico Mendes e Marina Silva. O Chico, quando vinha a So Paulo, costumava ficar na casa do Mauro. E o Mauro estava mesmo ameaado. A histria engraada, vale a pena a pena contar. A me do Mauro era uma mulher extraordinria: ela terminou sua carreira como diretora de colgio em Braslia, mas ela tinha nascido no seringal e comeado como professora primria, no Acre. J aposentada, por volta de 1990, foi chamada pelo governo para organizar as escolas do Acre. Havia muito tempo que ela no ia l. Foi recebida com um churrasco por vrias pessoas que queriam
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homenage-la. E, no meio desse churrasco, ela ouviu a seguinte conversa: olha, aquele sujeitinho, aquele professorzinho da Unicamp est se metendo onde no deve, e a gente vai dar uma lio para ele. Na mesma hora, ela se levantou e disse: olha aqui, essa pessoa de quem vocs esto falando meu filho. E, se algum tocar num fio de cabelo dele, eu venho aqui e mato vocs. E vocs sabem que eu fao [risos]. Deu as costas e foi embora do banquete, no voltou mais l. Mas, antes de sair, ela chamou um compadre dela no seringal e encomendou dois capangas para proteger o filho cada vez que ele fosse a Rio Branco. De volta a Braslia, ela me telefonou e disse: Manuela, cada vez que o Mauro for a Rio Branco, voc me avisa para eu mandar os capangas. O Mauro a pessoa mais distrada que vocs podem imaginar. Nunca percebeu que havia dois capangas cuidando dele... A partir da e agora eu chego ao final , passei a me interessar cada vez mais pela questo dos conhecimentos tradicionais e da legislao que concerne a eles. Essa questo dos conhecimentos tradicionais tem muitas dimenses: uma delas tem a ver com o exerccio da nossa prpria profisso como vocs sabem, no se faz mais Antropologia como antigamente... Graas a Deus, alis. Mas tem dimenses muito interessantes que dizem respeito a polticas e a suas conseqncias sociais nos povos tradicionais. E tornou-se um tema de uma importncia enorme na esfera internacional. A questo dos conhecimentos tradicionais, dos direitos intelectuais dos povos tradicionais est presente no s na Conveno da Diversidade Biolgica, mas tambm em todos os organismos das Naes Unidas (UNESCO, UNCTAD, FAO, OMPI, etc.), o que seria de se esperar, mas, alm disso, tambm nos lugares menos evidentes, como os bancos multilaterais (Banco Mundial, o Banco Inter-Americano) e, sobretudo, na Organizao Mundial do Comrcio. uma questo, em suma, que percorre todas as escalas e que tem profundo impacto nas populaes tradicionais. Esse o tema que eu tenho andado estudando... Estudando e militando ao mesmo tempo, novamente. Militando, por exemplo, no projeto sobre secreo de sapo no Acre, talvez vocs j tenham ouvido falar nisso: uma tentativa de construir um exemplo positivo de cooperao entre cincia, indstria e populaes tradicionais. Isso foi um pedido do Ministrio do Meio Ambiente. Posso falar mais sobre isso, se quiserem, mais tarde. Alm de militar, tambm tento refletir
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sobre o tema e, sobretudo, sobre suas implicaes para as populaes tradicionais. A minha ltima publicao tem a ver com isso. [Algum da platia comenta: ltima ou mais recente?]. Isso, mais recente, obrigada... Espero que no seja a ltima [risos]... a mais recente publicao to recente que ainda est no prelo , que a publicao de uma conferncia [Marc Bloch] que eu dei dois anos atrs em Paris sobre a questo da cultura e sobre como a cultura se pratica e aqui vocs vem o vis norte-americano entrando no meu arsenal. Qual o efeito do uso da noo de cultura que existe nos grupos tnicos, que existe nos instrumentos internacionais e que est presente fortemente na questo dos direitos intelectuais e dos conhecimentos tradicionais? Qual a relao entre cultura, a saber, do discurso reflexivo sobre a cultura, e a noo de cultura dos antroplogos? Vou parar por aqui e estou aberta a perguntas... Vocs desculpem se me alonguei demais. Debate com a autora Tadeu: Voc uma das poucas pensadoras acadmicas brasileiras, e at militantes brasileiras, que tm olhado para ambas as situaes de contato de administrao indgena, tanto a nos Estados Unidos quanto a no Brasil. A minha pergunta tem a ver com isso. No caso das relaes raciais, o Brasil sempre encobre o ndio, como os Estados Unidos sempre encobrem o negro, mas s quando o vis branco e negro; quando o vis branco e ndio, um silncio! Por exemplo, quando voc vai para livrarias ou a conferncias, voc v vrios livros sobre questo racial. Mas, quando a gente puxa o eixo para indgena, parece que o pensamento sobre um universo nacional apaga qualquer registro do outro. Ou seja, voc exclui ndios no Brasil, voc exclui negros nos Estados Unidos. E fruto disso que vrias coisas que tm acontecido nos Estado Unidos que poderiam ter dado subsdios para debate sobre indigenismo no Brasil tm passado despercebido. Estou pensando particularmente no caso de vocs na Constituinte de 1988, que muito parecido com o caso nosso em 1858. E no houve nenhuma discusso, pelo que eu percebi, no Brasil sobre essas questes. Muitas vezes, as polticas que os americanos usam voltam para c, vice-versa... A minha pergunta para a senhora : qual o porqu disso? Por que a gente, que to vido a traar
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relaes entre Estados Unidos e Brasil quando a questo negro, quando a questo ndio joga as mos para cima e esquece? No publicam, no traduzem, no pesquisam? Alexandre: Eu gostaria que voc falasse desse seu trnsito entre a Antropologia Francesa, Inglesa e Americana, que um pouco tambm da nossa formao aqui no Brasil, de certa maneira. Desse seu trnsito, o que resultou fundamentalmente? Porque uma experincia muito importante [a juno dessas] trs formaes tericas, n? Ento, gostaria que voc dissesse rapidamente, em termos da teoria antropolgica, o que resultou no final, hoje, nesse momento, para voc? Manuela Carneiro da Cunha: Acho muito oportuna a sua pergunta [referindo-se ao primeiro a questionar-lhe]. Em 1978, ns usvamos o exemplo norte-americano para mostrar o que tinha acontecido nos Estados Unidos um sculo antes como uma situao bastante anloga. O (mau) exemplo norte-americano foi usado politicamente. Mas voc tem toda razo de que no h essa comparao entre a produo sobre indigenismo norte-americano e indigenismo no Brasil. Eu acho que h vrias razes histricas para isso, mas queria lembrar tambm que h excees e que o primeiro estudo feito sobre o SPI foi feito por um americano [Tadeu cita o nome do pesquisador]. Exatamente [Tadeu diz e que depois sumiu]. Sumiu, concordo inteiramente. Mas interessante que foi o primeiro... At onde eu sei, foi o primeiro estudo sobre o SPI. Acho que a razo dessa ausncia, na realidade, pode ter sido estratgica, j que a questo comparativa que tomou a dianteira e est na pauta desde finais de sculo XIX a que contrasta as relaes inter-raciais negros e brancos no Brasil e nos Estados Unidos isso desde pelo menos o projeto UNESCO, e, na realidade, bem antes, com Gilberto Freyre, e com o prprio Nina Rodrigues. , voc tem razo [dirigindo-se a Peter Fry], Nina Rodrigues j traz essa questo como a questo poltica a ser tratada comparativamente. E, quanto ao Alexandre, essa uma pergunta para uma nova conferncia. Eu acabei de dar algumas indicaes de como essas coisas convergiram no meu trabalho mais recente. Mas terei o maior prazer em ir a Belm e falar sobre isso e responder sua pergunta.
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CONVERSA
COM
ROBERTO DAMATTA1
Goinia, 14 de junho de 2006
Lia Zanotta Machado: Apesar de sabermos que o Prof. Roberto DaMatta dispensa apresentaes, de to conhecido que , de to importante que sua obra, eu passo a palavra Prof. Carmen Rial, que vai fazer sua apresentao. Carmen Rial: fcil (e muito difcil) apresentar o professor Roberto DaMatta. Fcil porque no h quem no o conhea no auditrio e porque, se fssemos realmente entrar nos detalhes de seu currculo, perderamos grande parte do precioso tempo dessa Conversa com o Autor. Difcil porque muito do que fez ficar sem ser dito. O professor Roberto DaMatta, como todos ns sabemos, ensinou durante muitos anos no Museu Nacional, onde tambm foi chefe de departamento. Foi professor na Universidade Federal Fluminense, ocupou uma prestigiosa ctedra na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, da qual detm o ttulo de Professor Emrito. Hoje atua na PUC do Rio de Janeiro e membro titular da Academia Brasileira de Cincias. Entre os seus mais de vinte livros, que fizeram dele o antroplogo brasileiro contemporneo mais citado, devemos destacar Carnavais, Malandros e Heris, traduzido em vrios idiomas e de uma importncia enorme na Antropologia Brasileira, pois colocou o Prof. Roberto DaMatta em uma prestigiosa linhagem de pensadores que interpretaram o Brasil, ao lado de Gilberto Freyre e de Srgio Buarque de Holanda. E citamos ainda Ensaios de Antropologia Estrutural; Exploraes: ensaios de antropologia interpretativa;
1 Texto transcrito por Fernanda Cardozo e revisado por Miriam Grossi.
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Relativizando; Conta de Mentiroso, Torre de Babel; O que faz o brasil, Brasil e, mais recentemente, Tocquevilleanas: notcias da Amrica. Em tempos de Copa do Mundo, imperativo mencionar o recm lanado A bola corre mais que os homens. Seu livro A casa e a rua, que est na sua quinta edio, talvez seja o mais conhecido fora do campo da Antropologia. E esse um dos grandes mritos de Roberto DaMatta: o de conseguir fazer passar a Antropologia para alm dos nossos muros acadmicos, atravs de inmeras entrevistas mdia impressa e televisiva e, de modo mais sistemtico, de uma coluna semanal publicada em vrios jornais, entre eles o Estado de So Paulo (da qual sou leitora assdua e imagino que o mesmo ocorra com muitos aqui presentes). Da Matta realizou pesquisas etnolgicas entre os ndios Gavies e Apinay e investigou o Brasil como sociedade e sistema cultural por meio do carnaval, do futebol, da msica, da comida, da cidadania, da mulher, da morte, do jogo do bicho e das categorias de tempo e de espao. Ento, com a palavra, Prof. Roberto DaMatta, e nossos agradecimentos por essa possibilidade de conversar com o autor. Roberto DaMatta: Muito obrigado pela carinhosa recepo. Eu fico muito feliz de ver vocs aqui no auditrio, tanta gente amiga, tantos companheiros de jornadas iniciais e, sobretudo, o pessoal mais novo, os jovens com os quais esto as nossas esperanas na vida acadmica. Isso uma coisa que eu descobri acho que muito cedo... Antes de fazer vida acadmica, eu tinha mais ou menos uma intuio de que eu era uma pessoa que ia passar a vida inteira defendendo as causas perdidas. E as causas perdidas so as nicas causas que vale a pena defender, porque defender causa ganha mais ou menos o que os polticos brasileiros tm feito sistematicamente nos ltimos vinte anos. fcil. Mas voc abraar a vida acadmica e, dentro da vida acadmica, resolver fazer um trabalho de reflexo, etc., e, mais ainda, arriscar a publicar o trabalho, que todos ns sabemos que um processo difcil, porque escrever um mtodo, um dilogo interior complexo, um encontro com foras inconscientes, que so s vezes muito poderosas, muitas vezes negativas, algumas vezes destrutivas... E preciso ter muita coragem, um pouco de resignao, tambm muita compaixo consigo prprio, um pouco de narcisismo, mas no precisa
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chegar ao Darcysismo, aquela figura mpar e magnfica de nossa Antropologia, pois, sem um mnimo de narcisismo, no se publica coisa alguma nada se escreve se voc for crtico demais de si mesmo. Ento, eu queria comear agradecendo Presidncia da ABA, Diretoria da ABA, o convite, que muito honroso, porque eu no fiz nenhum projeto de me transformar num autor, mas o meu papel hoje nessa mesa o de autor. E o papel no um papel que caiu na minha cabea por acaso, porque realmente eu tenho publicado de maneira ostensiva, para alguns at de maneira arrogante, porque, como j se disse ou se diz, quem publica muito, s pode estar escrevendo besteira, porque est escrevendo muito ou o que d mais ou menos no mesmo est se repetindo. Isso eu j sei. Que eu estou me repetindo, eu sei, porque no h autor que no o faa. Como diz o grande Gabriel Garca Mrquez, os grandes escritores esto sempre escrevendo as mesmas histrias. E ele tem razo, porque h uma temtica, uma preocupao que todos tm e que, no meu caso, me persegue, porque a gente escreve sobre coisas, mas tem uma escolha relativamente limitada sobre o que escreve. O primeiro livro que eu escrevi foi em parceria com o Roque Laraia; era um texto intitulado ndios e Castanheiros. Ele escreveu uma parte do livro, eu escrevi a outra. Foi o resultado de uma das nossas primeiras experincias antropolgicas no incio da dcada de 60, estudando os ndios Gavies; e ele, os ndios Surui, que ele estudou naquela poca. E o resultado foi um relatrio que Roberto Cardoso de Oliveira que era nosso professor, mentor e diretor desse projeto pediu que a gente escrevesse. Ns escrevemos; o relatrio ficou bom era, como disse o Roberto, um relatrio publicvel , e saiu esse livro, ndios e Castanheiros. Nesse livro e quando a gente escreve e faz previses muito interessante , eu dizia que os ndios Gavies estavam em processo de extino; que eles, simplesmente, iam acabar. A, quando saiu a segunda edio, eu tive a oportunidade de fazer um prefcio em que dizia que realmente tinha errado redondamente, porque o meu palpite felizmente errado decorria de arrogncia da teoria. A teoria sempre produz uma certa arrogncia. A sabedoria, eu no sei, mas tambm deve ter, porque tudo o que tem teoria, sabedoria e tudo o mais tudo que termina nesse ia acaba produzindo arrogncia. Ento, nessa segunda edio, eu tive a oportunidade de tentar
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entender onde tinha falhado. E a falha a vida, no ? a bola que corre mais que os homens [referindo-se ao seu ltimo livro]. Existem as teorias que a gente usa mas no entende direito. Mas existe tambm o caso das teorias que no prestam. Prestam para certas coisas, no prestam para outras no prestam para tudo. Como as ideologias polticas: no h nenhuma que seja perfeita, no ? Tem de ser ajustada. Ento, as ideologias so, igualmente, causas perdidas. Tentar entender a nossa prpria sociedade ou outras sociedades uma tarefa que se produz constantemente. Dito isto, eu queria mencionar um livro que eu escrevi sozinho, que foi Um Mundo Dividido baseado na minha tese de Doutorado, cujo subttulo A estrutura social dos ndios Apinay e que era um exerccio de estudar a organizao social e poltica dessa sociedade este grupo que no est mais em Gois e nessa Goinia que era o ponto de partida de nossas expedies. As pessoas me perguntaram: a primeira vez que voc vem a Goinia?. Eu vim a Goinia muitas e muitas vezes, desde 1961! De sessenta e um at mais ou menos setenta e pouco, a gente passava muito por Goinia. Toda vez que subia o Tocantins, a gente parava em Goinia. Saa do Rio, ia para Belo Horizonte, de l para Goinia e a subia. Os avies da antiga Real faziam essa rota, companhia que acabou, assim como a Cruzeiro do Sul. Agora parece que a Varig tambm vai acabar, uma companhia com a qual eu tenho ligaes pessoais, porque o meu filho mais velho, Rodrigo, que na poca sequer tinha nascido ou estava por nascer, comandante da Varig, ento ele est vivendo uma turbulncia, um drama2 . Na poca, a gente subia o Tocantins, parando em Porto Nacional, Cristalndia, etc... Agora, a minha memria no mais a mesma, no vou me lembrar de todas as cidades. Em Tocantinpolis, a gente descia. E eu escrevi meu primeiro livro solo sobre os Apinaj, esse Um Mundo Dividido, porque a referncia era o universo dualstico dos ndios G-Timbira, que ns tnhamos estudado com Melatti, com Terence Turner, com uma equipe realmente e extraordinariamente dedicada e brilhante e muito entusiasmada com a etnologia. Todos fizeram etnografias muito melhores do que a minha. E cada um tinha um grupo, uma experincia concreta com uma sociedade, de modo
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No dia 27 de julho de 2006, Rodrigo Augusto da Matta morreu subitamente em Niteri (RDM).
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que era uma excitao quando nos reunamos para discutir. Era um projeto fundamentalmente comparativo, extremamente moderno, mesmo para os dias atuais; muito interessante, porque a gente se reunia para discutir mitologia, discutir o sistema poltico, discutir parentesco, sob a gide de David Maybury-Lewis, que foi um professor extremamente importante para o desenvolvimento da Antropologia Brasileira, com todos os reveses que existem quando a gente faz essas coisas. Mas, enfim, esse livro foi o que me deu mais trabalho, foi o livro mais difcil que escrevi. Era muito complicado pegar notas de campo que so colhidas no calor da hora, porque voc entrevista pessoas, voc ouve coisas, voc anota num caderno, voc registra num gravador, depois voc transcreve aquelas fitas e a comea a produzir dados, exemplos de um modo de vida. Ento, voc se questiona sobre problemas bsicos, tipo: como que fulano, como que um grande antroplogo escreveu sobre famlia? Como que um grande antroplogo estruturou o seu livro sobre a sociedade tal?. Isso foi uma tarefa complicadssima para um rapaz de vinte e poucos anos, lutando com seu projeto intelectual, lutando com seu projeto de vida, com a responsabilidade de sustentar uma criana que estava nascendo, com o pagamento do aluguel e guardando dinheiro para a conduo numa Niteri sempre em greve. Enfim, a vida. Mas eu estou falando isso agora para vocs porque os jovens querem saber como que se faz. Mas no existe a frmula. Frmula, se h, o trabalho. Trabalho, trabalho, discusso, escrever, ler, rasgar... Eu tive a felicidade, o privilgio de, em 1963, passar um ano na Universidade de Harvard, l em Cambridge, Massachussets, na poca em que essas grandes universidades americanas eram realmente verdadeiras goras gregas. Ento, a Cambridge que eu vivi era assim. Era um lugar sossegado em 1963, e a vida era linda e maravilhosa naquele tempo em que s usvamos uma mquina de escrever. Lembro-me de que a primeira coisa que eu fiz em sessenta e trs foi comprar uma mquina de escrever, porque era um negcio difcil... O que eu mais invejava nos colegas americanos era o fato de que todos eles tinham muitos livros de Antropologia e mquinas de escrever novinhas em folha, perfeitas. E tinham pilhas de fita, porque a mquina de escrever era fita, no ? E, acabava a fita, a gente no tinha, mas os americanos tinham tudo em abundncia.
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A gente tinha um lpis, eles tinham quarenta. Eu tinha uma inveja mortal daqueles caras [risos]. A eu comprei a mquina de escrever, levei a mquina de escrever l para o apartamento em que eu fiquei, porque o Maybury-Lewis era um sujeito muito generoso, muito simptico, e me deu a chave do apartamento. Naquela poca, ele era professor assistente e era tutor de uma casa dos estudantes de Harvard, a Adams House. Ento, ele me deu a chave, eu peguei a chave com a senhora que era secretria do Departamento e, sozinho, fui para l para iniciar minha temporada americana. Essa visita de estudos e de pesquisa deu-me essa possibilidade de elaborar, de comear a trabalhar esses dados Apinaj em contato com pessoas que faziam outras perguntas para esse material, o que tambm desesperador, porque pessoas me perguntavam coisas bsicas, por exemplo: eles comem isso, assim, assim?; e eu pensava: p, eu nunca perguntei isso, cara. Devo ser, alm de dbil mental, um pssimo antroplogo. Eles fazem isso?; nunca perguntei, no sei, acho que fazem. um negcio difcil, complicado, e voc no pode voltar, porque est muito longe para voltar. S se pegar um nibus ou um avio e voltar para saber. No h telefone. possvel que hoje voc possa at pegar um celular, telefonar para o seu informante e falar: , fulano, como que vocs fazem, assim, assim?. Mas, mesmo que voc possa fazer essa pergunta, ela uma pergunta feita fora do contexto, o que complicado. Enfim, naquele perodo, eu fui realizando esse processo de montagem. Terminei esse trabalho em 1970 um trabalho que comeou no incio da dcada de 60. Em 1971 e 1972, eu terminei de escrever essa tese, j de volta ao Museu Nacional. Foram dez anos. Por isso que eu reitero: foi um trabalho muito sofrido. Para terminlo, eu envolvi minha famlia; a minha mulher maravilhosa, Celeste, foi comigo, jamais reclamou... Alis, at interessante, porque quem ficava reclamando era eu. Ela achava tudo timo, porque morava em fazenda, gostava do cheiro de coc de boi. Olha que maravilha: bosta, merda de boi, achava aquilo uma delcia [risos]. Estava acostumada. Fazia de tudo. Transformava as nossas cabanas em casas. Eu achava aquilo desesperador, porque fui criado em cidade, e o mximo que eu me aventurava era brincar no quintal. Eu sempre morei em cidades. Em So Joo Nepomuceno, tive um pouco dessa experincia rural porque aluguei uma casa que tinha um milharal no quintal. Mas eu
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achava detestvel esse negcio de comer milho. Eu no sou muito da natureza, esse negcio de natureza, de serto, essas coisas. Eu estou longe. Eu no mereo, eu no mereo, eu mereo outras coisas. Mas ela gostava. Ento me ajudou muito. Mas, como Celeste estava com as crianas, minha me ficou desesperada. Alguns dos meus colegas achavam que eu estava imitando o padro americano, porque o Maybury-Lewis viajou com a famlia, mas eu deveria viajar sozinho. Havia um pouco tambm revelador, eu acho do componente machista da profisso de antroplogo, tal como ela era interpretada no Brasil naquela poca. Eu no sei se ainda existe, porque eu no sei mais nada sobre esse vosso mundo ps-moderno, eu s sei das coisas antigas. Mas, naquela poca, havia esses componentes. Eu ainda trabalhava com ndio (outros com negros, e outros tantos com comunidades). O modelo era o do heri. O cara que vai sozinho, entra num sistema extico, faz o trabalho e volta para casa, mas a mulher fica trancada l a sete chaves. Mas eu levei a mulher, e tudo ficou meio complicado. E levar crianas, ento, mais complicado ainda. Mas no aconteceu nada demais com as crianas. Alis, h coisas at curiosas. Por exemplo, Celeste teve tifo em plena Niteri. Mas, na aldeia, no houve nada! D para entender? Teve tifo, uma doena contagiosa, e ningum teve nada. Ento, na aldeia, o relacionamento com os ndios foi maravilhoso; melhorou muito, porque, se voc leva a sua famlia, sinal de confiana extrema. Ento, os meninos j estavam comeando a falar algumas frases e palavras em Apinay. Dessa experincia, nasceu esse livro, que eu sofri muito para fazer porque foi um trabalho que realmente envolveu mais do que consultas bibliogrficas, do que horas e noites de trabalho, mas envolveu tudo isso: risco, carne, sangue, envolveu muita coisa. Ento, a publicao de O Mundo Dividido foi um aprendizado fundamental para mim em termos de aprender a fazer um livro, porque eu descobri que eu tinha de criar os personagens; eu tinha de inventar os atores que iam ser colocados no livro e com os quais eu iria trabalhar; eu tinha de manter um enredo. E o meu enredo era o problema que eu queria resolver. Ento, eu armei uma histria. Est l no livro. E chegava ao ponto final. Porque isso bem difcil quando voc escreve um trabalho acadmico como uma tese: um arremate, chegar a um ponto final. Voc vai ter uma concluso? Que tipo de concluso? Uma
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concluso que tem a presuno de anunciar que o mundo acabou com o seu trabalho; ou no? Ou vai deixar alguma coisa para os colegas ou para as geraes futuras resolverem? Porque h antroplogo que j resolveu tudo, no ? Alis, j comea com tudo resolvido. Ento, um processo que voc deixa para o leitor para ele adivinhar alguma coisa. O fato de ser muito novo fazia com que eu acreditasse nisso. Eu sempre fui uma mistura de uma pessoa muito no-prtica e sonhadora, mas jamais deixei de lado o meu lado prtico. Escrevendo esse livro, eu me realizei como escritor. Eu sou um escritor. E, se Deus quiser, ainda terei tempo para fazer fico, porque eu comecei minha vida intelectual nos anos 50, escrevendo fico. E eu queria fazer fico, mas acabei no fazendo literatura porque fui seduzido pela Antropologia e com ela eu podia reunir dados e inventar, no sentido clssico do termo. Eu podia conciliar o desejo de criar histrias e de viver situaes com alguma coisa relativamente mais... eu no falaria objetiva porque uma palavra tola, mas alguma coisa mais sistemtica, mais disciplinada. Sistemtico no sentido de que voc tem a experincia dos outros relativamente ao seu dispor e balizado por essa experincia. So os livros que esto na biblioteca e que constituem mais ou menos o patrimnio da disciplina, da Antropologia, e que a gente, quando bem informado, que est em um bom programa, a gente l, e que, quando a gente um bom antroplogo, mesmo que o professor no tenha lido, a gente l. Ento, mais ou menos isso. Esse dado um dado importante: eu nunca divorciei a Antropologia da Literatura. Agora, uma outra coisa que eu aprendi e que mais importante ainda o seguinte: quando voc escreve seu primeiro livro, especialmente um livro muito difcil de ser feito, voc acha que seus crticos vo gostar do livro, porque voc gostou do livro. uma projeo. Freud nmero um, primeira aula do Freud. Voc gosta, acha que bom, ento todo mundo vai gostar. Mas no verdade, meus queridos amigos! Aprendam isso! [risos]. Acontece exatamente o contrrio: voc gostou, os crticos odeiam. Ento, os crticos vo decepar voc, ou pior ainda: no vo nem falar que o livro existe, e, assim, o livro passa em brancas nuvens [risos]. O livro passa em brancas nuvens, porque primeiro voc tem uma populao, uma elite, que gosta de comprar discos. E os nossos intelectuais, as pessoas
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que mais questionam na mdia, so os nossos compositores, que tm opinio sobre poltica, sobre filosofia, porque so pessoas inteligentes. No estou falando isso para depreciar, no. Porque depois dizem: o DaMatta foi l pra esculhambar indiretamente o Caetano Velloso, o Chico Buarque [gargalhadas da platia]. No, no. Eu estou falando srio. So as pessoas que debatem. Mesmo porque h muitos intelectuais, muitos de ns, que acham que muito arriscado dar uma opinio sobre alguma coisa fora da chamada academia. E, de qualquer maneira, tambm j est no mundo. No est escondido em lugar nenhum, est no mundo. A gente evita opinar. Se a gente no d opinio, vai discutir o qu? Ento, ningum l. E o que acontece. Agora, alm de no ler, ou ento l e pau na obra. Agora, a dor e a decepo de ver o livro duramente criticado algo triste e deprimente. E no foi s no Brasil, mas tambm fora do pas, em resenhas que, naquela poca, condenavam, de maneira radical, liminar, o chamado estruturalismo. Com isso, eu aprendi o seguinte. Voc escreve um livro e comea a ter trs problemas: 1) a decepo pelos colegas especialistas, que pode ser dolorosa; 2) logo em seguida, voc descobre tambm que no vai mudar o mundo, o mundo no vai mudar nada, difcil um livro que mude o mundo; 3) muita gente, usa e desusa as idias que aparecem no livro e que ningum faz a referncia a voc. Ento uma causa perdida. uma outra causa perdida. Quer dizer, difcil. um vale de lgrimas. um sofrimento muito grande. Agora, o outro lado desse sofrimento uma grande beatitude, um grande prazer de criar, de inventar, de se descobrir potente e poderoso e com a imaginao indo alm do teu quarto, do teu escritrio sei l onde, cada um escreve num canto, no ? H pessoas que escrevem no banheiro [risos]. Banheiro, alcova, onde voc estiver, porque a realmente uma sensao muito grata e muito gostosa. Ento, eu fui descobrindo; a Antropologia me deu essa obrigao de escrever, e eu desenvolvi uma familiaridade com a escrita. Eu fui descobrindo que tinha o prazer, que gostava de escrever. uma coisa que eu fao toda semana. Escrevo para o Estado e tenho de inventar um tema para escrever sobre o que vou escrever? Por onde vou comear?. s vezes, fico mais angustiado, s vezes fico menos angustiado. Mas eu fao isso sistematicamente. Ento, essa primeira fase a fase, digamos assim, do grande aprendizado de juntar materiais brutos que eu mesmo
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inventei porque eram entrevistas que eu fazia, eram dados que eu colhia nas cidades em que existiam registros sobre os ndios com os quais eu estava trabalhando com algumas teorias que eu tinha lido com os meus professores, com os meus colegas, com pessoas que me ajudaram a fazer esses primeiros relatrios. Depois voc vai ganhando mais autonomia, vai ganhando mais confiana e vai fazendo outros trabalhos. O outro livro que marcou tambm muito a minha vida foi um livrinho chamado Ensaios de Antropologia Estrutural. Na minha sofreguido, na minha ambio, na minha cobia para ser uma pessoa famosa, para ser uma pessoa conhecida, para me tornar uma celebridade, todo mundo saber meu nome, eu queria logo fazer um livro. Decidi reunir alguns artigos. Tinha l uns trs, uma meia dzia de ensaios; reuni, juntei alguns desses trabalhos, mas a coisa ficava muito pequena. Ento, tinha de colocar mais um esse mais um foi um artigo chamado O carnaval como rito de passagem e foi um ensaio que me levou para um outro rumo na minha carreira. Coisa curiosa: eu ia fazer um mero artigo sobre Carnaval, e esse trabalho mudou o foco da minha carreira. O que escrever sobre o Carnaval? A idia original era fazer um estudo da msica Noite dos Mascarados, mostrando como ela estava em consonncia com a teoria dos rituais desenvolvida por Vitor Turner, nome que ouvi pela primeira vez atravs de um professor de Harvard que primeiro me instruiu em Antropologia Simblica e que foi muito importante na minha carreira nos anos de 63, 64. Seu nome era Thomas Beidelman; ele era um africanista que, naquela poca, admirava muito o Turner. Meu raciocnio era o seguinte: essa msica perfeita, porque descreve as etapas de um ritual de inverso. E trabalhei com o Carnaval no como um evento sem conseqncia, ou como festa, como faziam os jornalistas, mas como um ritual. At ento, ningum e Gilberto Freyre a grande exceo estudara essas instituies que, como o Carnaval, no tm pedigree acadmico no Brasil, como futebol, a msica popular, a saudade e o jogo do bicho. Ento, eu escrevi esse trabalho sobre o Carnaval. Se vocs pegarem esse ensaio, que comea com a anlise de Noite dos Mascarados, depois passa para msicas de carnaval, depois fala de mscaras, depois fala de comportamento, depois fala das inverses, etc., vocs vo encontrar todo um programa
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de pesquisa que, consciente ou inconscientemente, explcita ou implicitamente, desenvolvi paralelamente a outras coisas. Esse trabalho chegou s mos do Vitor Turner, que, na poca, era professor de Chicago. Quando ele preparou uma conferncia sobre rituais, eu fui creio que por intermdio do Terence Turner convidado. A era preciso um outro trabalho sobre carnaval. Era uma conferncia internacional de grande porte, para a qual foram convidados muitos nomes que estavam na minha biblioteca, devidamente encadernados e mortos, como o Max Gluckman, o John Middleton, o Erving Goffman, o Evon Vogt (de quem fui assistente em Harvard), o velho M. N. Srinivas (decano da Antropologia Social indiana), Chie Nakane, Jack Goody, Elizabeth Colson e Terry Turner, entre outros. L descobri que o Goffman era um maluco completo que, como os ndios do folclore, no se deixava fotografar. Como um nativo com medo de ter sua alma capturada, Goffman corria do fotgrafo at que a Coordenaro teve de intervir para que no fossem s vias de fato. Assim sendo, Goffman est fora dessa foto de praxe, marca de todas as reunies que ocorriam no Burg Warteinstein, um castelo na ustria local adorado pelos americanos, porque era o smbolo de uma aristocratizao da vida acadmica e um alto sinal de prestgio intelectual. Lembro-me bem da viagem: sa do Rio, fui para Hamburgo. Logo que sa do avio, vi que havia um sujeito me esperando, com um Mercedes preto. Entrei no Mercedes, estava muito cansado e dormi. Fui acordado pelo motorista, que, como nos filmes de terror, apontava para o alto de uma elevao, dizendo num ingls carregado: look! The castle, the castle!. A eu olhei e vi o castelo, um castelo iluminado. S que, no castelo, no acontecia nada interessante, a no ser um bando de antroplogo discutindo furiosamente ritual. Nessa reunio, descobri, a olho nu, o radicalismo dos tericos americanos e ingleses. Algo que se manifestava numa enorme competio e que tinha dimenses interessantes, para no dizer infantis. Por exemplo, no meio da semana, Jack Goody declara que, para ele, a palavra ritual no possua qualquer validade heurstica ou instrumental. Para a surpresa um tanto kafkiana dos seus colegas, descobrimos que ele queria abolir a palavra ritual dos estudos rituais. O que vocs acham? Invivel, n? Querida, estou louco para fazer sexo com voc, porm sou terminantemente contra o sexo [risos]. Nada mais
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razovel, no ? Ento, a discusso com ele era essa: tudo o que voc falava era errado, no dizia nada, porque ritual era uma palavra carregada de significado. Como se existisse alguma palavra sem o peso do seu sentido! Mas era um grupo realmente excepcional. A ficamos uma semana inteira discutindo. E eu tive de escrever um outro trabalho, porque seno no vai. Vou escrever o qu? Fiz uma comparao entre o desfile carnavalesco e a parada de Sete de Setembro. Alis, um trabalho que tinha apresentado tambm na USP, no Departamento de Sociologia da USP, e l me falaram que era um trabalho que eu no podia fazer. Este no pode. No podia fazer. Podia fazer qualquer coisa, mas esse negcio de comparar parada militar com desfile carnavalesco no era possvel, disse-me uma professora da USP, extremamente centrada... Mas, apesar de criticado, eu escrevi o trabalho assim mesmo, e o artigo foi discutido. Nele eu fazia uma comparao entre o Carnaval e o Sete de Setembro. O Sete de Setembro um ritual histrico; o Carnaval um ritual a ou anti-histrico um ritual, inclusive, difcil de conceituar. De fato, o que o Carnaval comemora? At hoje, essa uma pergunta que vale um milho... de qu? Hoje eu no sei qual seria a moeda antropolgica mais valiosa. Um milho de Nuers? Um milho de Lvi-Strauss? Quem trocaria quatro Dumonts por cinco Lvi-Strauss? Qual o cmbio do prestgio? Max Weber ou Marx? Qual o valor de troca? No sei mais [risos]. Hoje, com a distncia do tempo, vejo que esse trabalho foi a base de uma outra carreira. Fui convidado para outras reunies. E, como sabemos, a ocasio faz o ladro, no ? A partir da, comecei a escrever sobre o Brasil lido por seus ritos, tema pelo qual havia uma demanda implcita num determinado segmento da teoria antropolgica, na cabea de alguns antroplogos que queriam tentar escapar do estudo exclusivo de sociedades tribais, usando o que neles se aprendeu para compreender determinados fenmenos da sociedade da qual eles vinham e falavam. A partir da, comecei a fazer uma trajetria que tradicionalmente seria uma trajetria feita pelos folcloristas. Por isso, h, no meu trabalho, a presena constante de certos folcloristas, sobretudo do grande Cmara Cascudo, porque eles eram os estudiosos com quem eu dialogava, ao lado de alguns escritores, como Jorge
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Amado e Guimares Rosa. Era, sobretudo, uma fonte maravilhosa de dados. Quando eu ia para a Sociologia Clssica, eu no encontrava dados. E eu queria trabalhar com comida... Como que o Brasil se exprime? Que latitude essa? Que faceta essa? O que isso fala do Brasil? Quando o brasileiro est discutindo comida, o gosto da comida, o arroz com pequi uma delcia , essa discusso no sobre o arroz com pequi. Essa discusso sobre o que est dentro e o que est fora, sobre o que pertence e o que no pertence; sobre o que faz parte do meu panorama de gostos, que me reconfortam e confirmam a minha identidade de maneira concreta, sensvel, gustativa, digestiva, etc., e uma pessoa que no quer fazer essa experincia junto comigo, que no quer compartilhar comigo essa experincia. a mesma coisa no futebol: eu no vou assistir a Brasil X Crocia. Ns s vamos assistir estria do Brasil, se o Brasil vai continuar dando certo como pentacampeo ou no. Ou se ns estamos decidindo quem sabe? o prenncio de um fracasso. S que, lembrem-se, meus queridos amigos, ningum vai tirar o penta-campeonato da gente, no. Ns somos penta. Isso no vai acabar [risos]. Mas a gente to inseguro, e o nosso desejo de auto-flagelao to grande, que a gente gostaria de perder os cinco campeonatos mundiais e voltar a zero porque a, sim, confirmamos: , aquela merda de economia... no vale nada. Mas, voltando minha obra, alguns amigos me falaram que eu deveria escrever sob pseudnimo com o que eu tendo a concordar, sobretudo se eu inventasse um pseudnimo estrangeiro, no ? Algo como um Jean-Pierre Roger, Bill Blackman. Ia ser um sucesso absoluto, no ? [risos]. Porque ia vender muito mais. Outro dia, eu falei para o meu editor, o Paulo Roberto Rocco um sujeito educado e delicado, gentleman carioca. Ento eu falei para ele: Paulo, eu queria escrever um livro de aconselhamento sexual para casais que tenham feito mais de trinta anos de casados, mas com um pseudnimo [risos]. Eu vou inventar um Professor americano, um nome desses a... Paul Wood, Md., PhD, FF... o ttulo no tem importncia [risos gerais]. O pblico brasileiro adora ttulos e lugares estrangeiros. Formado na Universidade no sei o qu, professor em tal lugar... e a eu publico o livro. Mas ele delicadamente mudou de assunto. Mas eu inventei um professor que meu amigo, que aparece nas minhas crnicas: o Professor Richard Moneygrand, que uma
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homenagem ao Richard Morse e ao Tom Skidmore. Disse-me ele que, quando conheceu o Sergio Buarque de Holanda, ele foi chamado de Skidless pelo pai do Chico da eu ter, em oitenta e poucos, inventado o Richard Moneygrand quando fui substituir a Marilena Chau naquela pgina 2 da Folha de So Paulo. Escrevi durante uns nove meses, o tempo suficiente para nascer um mau cronista e um eventual bom comentarista do Brasil debaixo de uma figura de fico. Moneygrand foi inventando quando escrevi uma sria de crnicas sobre o trnsito. Eu perguntava para o Moneygrand: por que esse tema? E ele me respondia que no se tratava de engenharia de trnsito, que no resolve nada. Eu quero entender como que vocs, brasileiros, pensam quando vocs entram no automvel e esto no trnsito. A ele explicava as situaes sociologicamente. Um dia eu recebi um telefone do DETRAN de So Paulo: era a secretria do diretor do DETRAN querendo que eu desse para ela o endereo do Professor Moneygrand, para uma eventual assessoria. Vocs acham que o complexo colonial acabou? Que o governo do PT... Que acabou o complexo colonial? Agora o governo Lula ns estamos a, com nosso companheiro Hugo Chvez, companheiro Evo [imitando Lula]. complicado. Queriam que eu fosse o Moneygrand. Eu disse: eu no posso fazer isso; mas voc no pode por qu?; porque o Moneygrand sou eu. Eu inventei o cara. Se vocs quiserem um dia escrever um artigo e botar um nome de um professor estrangeiro, um nome plausvel, a pessoa vai procurar na livraria para comprar porque estrangeiro. Se for brasileiro, , por definio, ruim! Onde que eu estava? Comida, trnsito... e, em seguida, em 80 porque isso tem a ver com esse livro que acabou de sair. Um dia, se eu no me engano foi em oitenta e seis uma das Copas do Mundo em que a gente se deu mal , veio um rapaz, que depois ficou meu amigo, da Folha de So Paulo, entrevistar-me l no Museu sobre futebol. Quando estava visitando a Universidade de Wisconsin, em Madison, entre 79 e 80, convidado pelo Skidmore e pelo Departamento de Antropologia, eu escrevi um trabalho sobre esporte e sociedade que apresentei na Smithsonian Institution, convidado pelo Richard Morse! Depois esse trabalho foi sendo refinado. Nesse livro novo, A bola corre mais que os homens, ele est ainda mais refinado. Nele, eu estudo a relao entre modernidade e esporte. O esporte como o jogo o
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jogo do bicho, esperando que d zebra. So reas vazias, opacas, no so muito pensadas: o jogo, o jogo e o azar, e o esporte. H coisas interessantes sobre esporte, mas podia ser mais aprofundado. Mas veio o reprter da Folha, e ele queria porque queria que eu dissesse que futebol era o pio do povo, e eu no aceito essa tese do pio do povo, sobretudo em relao ao futebol. Eu acho que o contrrio: o futebol nos torna alerta em relao ao Brasil. Voc pode dizer: ah, mas o Brasil do futebol. . Mas j um Brasil. Para quem no alerta para Brasil nenhum, j uma grande coisa. Para quem no quer ser alerta para o Brasil e acha que todos os pases so melhores que o Brasil, j uma grande coisa. um fsforo num quarto escuro. Ento, eu no aceitava. E consegui convenc-lo provavelmente por minha didtica, por minha retrica, por meu poder pedaggico de que a tese de que o futebol o pio do povo uma burrice do tamanho de um bonde e que no se aplicava ao futebol. Podia at se aplicar a outras reas, mas no se aplicava ao futebol, porque o futebol um veculo de amor ao Brasil, e voc no muda o que voc no ama, voc no muda o que voc no gosta. Vocs me perdoem a veemncia, mas, por causa desse livro, eu j dei mais de vinte entrevistas, e essa pergunta recorrente. As pessoas no entendem que o futebol foi, tem sido e provavelmente continuar sendo o maior professor de auto-estima que o Brasil j teve at hoje. A propaganda que o futebol faz no exterior do Brasil maior do que todos os embaixadores, secretrios de embaixadas, que s fazem comprar vinho e gastar o nosso dinheiro naquelas embaixadas em Paris, em Londres, etc., porque o menino que viu o Ronaldinho jogando faz o que ns fizemos quando vimos um russo pianista tocando Chopin e da pegamos mapa e descobrimos a Rssia. a mesma coisa que os meninos alemes, que os meninos ingleses fazem em relao ao Brasil onde que fica o Brasil? O Brasil um pas da Amrica do Sul. A Amrica do Sul parece um tringulo virado para baixo, apontando para um plo, o plo sul. E esse negcio de plo sul e plo norte: na projeo ocidental, o plo Norte a cabea; o plo sul a parte da cintura; o Equador a linha; o plo sul so os rgos genitais. Os americanos falam down there, Im going down, Im going down. South, South America o sul, so os avies para o sul, os avies para o sul so os avies para baixo, que o que desce, o jogar no lixo, jogar para baixo; se jogar para cima, no
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tem problema... Se for pesado, quebra a cabea do cara que jogou. Ento, foi essa a descoberta. E eu mostrei para o rapaz; eu disse: olha, no assim. Eu tinha esse trabalho e pensei: eu vou pegar esse trabalho, vou mexer nele. Fiz o trabalho. Alguns dos meus alunos daquela poca eram Arno Vogel, Lus Felipe Baeta Neves, Simoni Lahud Guedes, mais um a gente sempre esquece; esse negcio de citar um, o problema que a gente tem de citar todos, seno vem o famoso voc no me citou. Ento, algum faz a intriga: o DaMatta citou todo mundo mas no citou voc. Est faltando algum, mas, enfim, est no meu corao, no na minha cabea. um livrinho pequeno. Fui curador de uma exposio. E a tambm so as supresas, porque aparecem pessoas de fora, porque carnaval e futebol so temas que mobilizam, que fazem parte da paisagem cultural brasileira... Eu fui curador de uma exposio sobre o Carnaval. Descobri numa exposio de pintura sobre o Carnaval que existem poucas pinturas sobre o Carnaval. muito pouco diante do fenmeno carnavalesco. H muito pouca literatura sobre o Carnaval, diante da presena e do tamanho do fenmeno carnavalesco. Outro dia eu fui bienal Rubem Braga, l em Cachoeira do Itapemirim, que Rubem Braga nomeou capital secreta do mundo. Fui falar de Rubem Braga e o Carnaval. Procurei tudo o que podia encontrar, na minha biblioteca, alguma coisa do Rubem Braga, que um cronista maravilhoso, todo mundo deve ler, de um lirismo incrvel, super-moderno, fantstico. E o Rubem Braga tem um conto ele tem mais de dois mil e, entre eles, uma ou duas crnicas sobre o Carnaval. Eu fiz uma apresentao em cima dessa crnica. Era mais uma prova: um cronista popular escreve pouco sobre o Carnaval; o Carnaval passa em branco, no um tema nobre, no para ser levado a srio, porque o Carnaval no quer ser levado a srio, e ns, brasileiros, no levamos o Carnaval a srio. No caso do futebol, idem. H a Copa do Mundo, os cronistas esportivos falaram muito de futebol, so os donos do futebol. Mas, entre outras categorias de formadores de opinio e de intelectuais, h muita pouca coisa. Eu fiz a exposio de Carnaval, e depois houve uma exposio de futebol; tambm muito pouca pintura. Portinari tem muito, mas no bem futebol: so meninos brincando com a bola na cidade natal dele. H pouca coisa sobre futebol. Sobre fotografia, h muita coisa, porque fotografia notcia, a mdia moderna. Fizemos essa exposio do
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futebol. E esse livro, Universo do Futebol, de que fui editor e organizador, foi provavelmente um dos primeiros trabalhos que apareceram no cenrio da Cincia Social brasileira, da Sociologia, que trabalhava com o tema de uma maneira mais moderna, mais em dilogo com teorias que eram teorias mais relevantes no momento. Ento, fizemos o livro, esse Universo do Futebol. Do futebol, eu fui seguindo viagem e fiz um estudo da msica popular que, embora primria ou elementar, tambm foi uma experincia interessantssima. Escolhi revelar a msica de Carnaval como um gnero especial de msica popular no Brasil. Peguei Mame, eu quero brinquei muito Mame, eu quero, n? e resolvi analisar. Feito o trabalho, apresentei a anlise numa comunicao numa ANPOCS nem lembro onde. Lembro-me da sala, mas no me lembro da cidade. Apresentei Mame, eu quero para uma professora que tambm me disse que eu no podia fazer aquilo, no podia. Msica no era do departamento de Sociologia; minha anlise estava errada. Coloquei esse trabalho num livro chamado Conta de Mentiroso: sete ensaios de Antropologia Brasileira, que tem notas de rodap, que obviamente eu no sei se vocs se deram o trabalho de ler, provavelmente no leram. Provavelmente no leram, porque, se fosse um trabalho de Peter Burke, j teria sido lido e relido, discutido o trabalho do professor Peter Burke. A eu fiz notas de rodap inventadas. Eu coloquei l uma Professora de Sociologia que foi fazer uma pesquisa no Rio de Janeiro, a foi para o baile do High-Life, no tempo antigo, encontrou l o meu Tio Marcelino. Ento eu inventei. A o seguinte: o que eu estou fazendo agora? O que eu estou fazendo agora o seguinte: eu estou tirando esse negcio todo de letra. Ento, a etapa que eu estou propondo como ponto revolucionrio na 25 ABA, aqui em Goinia, que a gente comece a fazer fico mesmo direto, porque voc fica mais feliz porque tudo inventado; se no leram, tudo bem, ou, se leram, vo aprender tudo errado. E a gente acaba ficando mais feliz, mais satisfeito, e deixa de ficar correndo tambm atrs de autores que devem ser lidos, quem no vai ser lido, quem tem a ltima palavra, qual o ltimo livro do Professor Robert Darnton, e se agora a burguesia como um projeto intelectual ou se pode ser protegido poltico como negcio [risos]. E a gente toma uma liberdade maior porque a gente se v um pouco mais livre desses
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parmetros que pesam sobre as nossas costas. Ento, se vocs perguntarem para o autor que vai parar de falar agora qual a prxima etapa, a prxima etapa a seguinte: fazer fico, inventar um pouco mais de... alguns professores que no existem, alunos que no existem, temas que no existem ou melhor, que existem mas que podem ser trabalhados de uma maneira mais solta e de maneira mais ldica, mais interessante, porque um caminho glorioso e, de qualquer maneira, eu desejo a todos vocs, que vieram naturalmente ver como que , que vocs saiam daqui sabendo como que no , porque escrever Antropologia como cincia uma causa perdida. E as grandes causas so as causas perdidas, ento vocs esto comigo. Agora, que difcil, , porque precisa de um flego, precisa de uma cota de esperana muito grande, e tambm de muita caridade. F, esperana e caridade. Muito obrigado. Debate a partir dos questionamentos do pblico Vou comear pela pergunta aparentemente mais complicada, mas mais fcil, que a questo do MLST [respondendo a uma pergunta da platia referente a suas declaraes de no concordncia com o ato do Movimento de Libertao dos Sem-Terra, que, dias antes, invadira a Cmara dos Deputados, em Braslia]. Eu acho que, numa democracia, a violncia no tem lugar. Eu acho que uma coisa no justifica a outra. A estrutura latifundiria do Brasil pode ser protestada, contestada, de outra maneira, no quebrando coisas, quebrando laboratrio, destruindo propriedade. A minha opinio essa. Voc pediu a minha opinio sobre esse assunto, e eu dei. Eu acho que a violncia sempre cria mais violncia. Democracia no se faz quebrando o Congresso Nacional para protestar contra uma coisa que eles nem sabiam o que era. Democracia a gente faz dialogando, usando a lei como regra. Isso como a gente joga futebol. As grandes partidas de futebol so grandes, e cada uma diferente da outra, exatamente porque as regras do futebol esto l, e todos esto submetidos s regras. Se algum juiz roubou, a gente pega o juiz, tira, processa, substitui e continua fazendo o jogo. Essa a minha opinio. A segunda pergunta, sobre teoria brasileira [referindo-se a um questionamento acerca da possibilidade de criao de uma anti-teoria na tentativa de se construir uma teoria nacional desvinculada das teorias
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estrangeiras]: eu acho que, para se fazer uma boa teoria brasileira, precisa-se combinar as teorias estrangeiras, porque uma das razes pelas quais eu fui um tanto irnico, porque pelo amor de Deus... Eu sou narcisista, mas no sou cretino, compreende? H uma grande diferena entre voc ser narcisista e ser cretino e ser narcisista e no ser cretino. Ento, eu poderia passar duas horas ou trs horas, alis podia estar falando at agora sobre a minha obra. Eu no fao isso, no por a. O meu negcio nesse mundo no esse. No isso que eu quero passar para os outros, no isso que eu quero ensinar para os meus filhos, para os meus amigos, compartilhar com as pessoas de quem eu gosto, que eu respeito. O que eu quero passar que todos ns somos pessoas comuns, e que voc passar a ser, de certo modo, incomum, dependendo de uma coisa chamada trabalho, aplicao, que foi exatamente o que eu fiz. Ento, eu quis me referir ao primeiro livro que eu escrevi, que foi um duro danado, foi um trabalho de sangue, suor e lgrimas; dedicao, ir para campo, malria, volta, risco de ser mordido por cobra. Passei por tudo isso. Para mim, tranqilo fazer a ironia porque h algumas teorias sociolgicas... Eu estudei com bons professores, tive a felicidade de estudar numa boa Universidade que na poca tinha um excelente Departamento, e eu dominei teorias com uma certa tranqilidade. Ento, s vezes voc encontra uma certa ingenuidade terica colonial que, alis, o prprio Gilberto Freyre denuncia, porque ele chama os socilogos deterministas do sculo XIX que os intelectuais brasileiros usavam porque naquela poca nenhum intelectual brasileiro tinha sado do Brasil para estudar em um grande centro no exterior, com rarssimas excees de sub-socilogos. Ento, voc encontra as pessoas entusiasmadas com o ltimo livro que saiu em Paris, que saiu l em Londres, que sub-antropologia ou sub-sociologia, a voc vai fazer... que teoria vai ser? Para fazer teoria nacional, voc tem de dominar, de certo modo, o que est acontecendo no exterior. Eu acho que, nesse ponto, talvez a Antropologia talvez tambm alguns setores da Economia brasileira se tenham sado muito bem, conseguiram fazer isso. Eu acho que a Antropologia brasileira, hoje, do meu ponto de vista, melhor do que a Antropologia feita em grandes centros americanos, famosos, respeitveis, embora a diferena, a desproporo de aporte material, de recursos, seja infinitamente menor no caso do
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Brasil em termos de salrio, em termos de condies de trabalho, tudo isso. Ento, eu acho que voc est fazendo isso... Ento, voc vai criar uma teoria para a Antropologia brasileira, e teoria teoria. Como que voc vai criar uma teoria brasileira? S se dominando as grandes teorias estrangeiras. Casa Grande e Senzala [reflexo desenvolvida a partir de uma das perguntas]: escrever intervir na realidade. Eu estou intervindo na realidade brasileira. Estou convencido disso. Agora serei realista, talvez um tanto imodesto, mas serei realista: os meus artiguinhos, as minhas crnicas no Estado, elas tm pautado. Eu uso determinada palavra, daqui a pouco a palavra aparece em outro contexto. So certos conceitos que voc pauta, voc influencia, ento tem um impacto na sociedade voc apresentar opinies, as suas opinies no meu caso, algumas opinies so informadas teoricamente, com teorias do Brasil, com teorias do liberalismo... eu sou liberal, eu sou conservador, no me envergonho disso. Eu no acho que seja fcil transformar uma sociedade. Eu vivi isso, eu vi isso acontecer debaixo do meu nariz: eu decretei o fim de uma sociedade tribal. E essa sociedade tribal no acabou. Pelo contrrio. Eu revisitei os ndios Gavies nos anos 80, e eles esto l. Transformaram-se, modificaram-se, mas continuam com a mesma identidade (...). Nesse sentido, eu acho que a gente tem limites. Quem estuda Antropologia e Sociologia deve estar consciente de uma coisa que o velho Durkheim chamava de social, o social como um fato, o social como um fato capaz de exercer coero, de determinar certos tipos de comportamento, de obrigar voc at mesmo a ir contra a sua vontade, a se submeter a regras. Quer dizer, eu acho que isso faz parte da nossa profisso. Se ns no conseguirmos transmitir isso e no acreditarmos nisso, no vai ser com os economistas que ns vamos fazer mudanas sociais mais razoveis, no caso do Brasil. E, como diz o Marshall Sahlins, Deus expulsou Ado e Eva do paraso; o pessimismo no calvinismo e no protestantismo imenso coisa que ns no percebermos na nossa crtica ao protestantismo e que rege sociologicamente muito pequena; depois que Deus nos deu esse pessimismo todo, Ele foi generoso com a gente: Ele inventou os economistas e a Teoria Econmica. Se ns no tivermos as preocupaes de pelo menos discutir as coeres que vm daquilo que a gente chama de coletivo, do cultural, do simblico, e tentar entender
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esses mecanismos, como aconteceu ontem, no Brasil inteiro estava o Brasil inteiro assistindo a esse jogo de futebol , a o cara vem perguntar para mim: voc no acha que isso um exagero?. Voc no acha que um exagero que as pessoas acreditem em Deus? Voc no acha que um exagero acreditar que Deus existe, acreditar em Jesus Cristo? Sacrificar-se por Nosso Senhor Jesus Cristo, achar que ele realmente existiu... No acha que isso um exagero? No acha que exagero acreditar que um dia vai existir um mundo em que as pessoas sejam igualitrias, em que a propriedade e as necessidades sejam mais bem atendidas do que no mundo em que vivemos hoje? Voc no acha que isso exagero? Voc no acha que exagero que existem pessoas que acham que fazer caridade um negcio bacana? A gente tratar os outros como gostaria de ser tratado, que a gente ame os outros. No caso do Brasil, nem o prximo: amar os outros como a gente ama os nossos filhos. Se a gente gostasse dos outros como a gente gosta dos nossos filhos, esse mundo seria bem diferente. Vocs acham que isso besteira? Amar os filhos? bobagem? Enquanto a gente no for capaz de entender isso, quem que vai entender? Se a gente no for capaz de pelo menos respeitar isso, o que no significa que essas coisas no podem ser transformadas, que no podem ser modificadas, que no podem ser politizadas e conseqentemente transformadas. A questo da razo e da emoo uma questo complicada [dirigindo-se a uma pergunta acerca da relao entre emoo e razo e da possibilidade de exerccio da cincia nesse contexto]. Da a dificuldade que a gente tem quando a gente deixa de estudar uma sociedade tribal, como faz parte da minha experincia, da minha trajetria, deixa de estudar uma sociedade tribal, na qual voc escrevia para quatro ou cinco pessoas, e passa a estudar um fenmeno como o Carnaval, que no s reuniu centenas de milhares de pessoas mas vivido por milhes de pessoas, e todo mundo tem uma opinio. Ento, fazer uma conferncia falando do sistema funerrio Apinaj uma coisa; falar de um funeral no Brasil outra completamente diferente, porque todo mundo j participou de um funeral, todo mundo tem uma opinio. E tem uma opinio radical, forte, porque a emoo est envolvida. Quanto mais distante, mais razo, menos emoo. Quanto mais perto, mais complicada fica essa relao. Agora, uma questo muito complexa. Agora, quais so aqui as diferenas entre a inveno e a fico
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[referindo-se a mais uma indagao da platia]? So coisas um pouco diferentes. No meu caso, por exemplo, quando eu falei do Brasil, falei do Carnaval, falei mais precisamente do caminho, do percurso, falei do sabe com quem est falando?, da nossa dificuldade de lidar com a impessoalidade, que bate com a questo do jeitinho do Congresso Nacional [tambm se dirigindo a outra pergunta da platia]. Quer dizer, a nossa dificuldade de lidar com os limites... Porque a gente gosta da lei, ns somos excelentes legisladores. O que ns no conseguimos fazer matar o facnora usando a lei. Matar o facnora, bem entendido, no pegar e dar um tiro na cabea do sujeito, no. Matar o facnora, que eu digo, tirar o cara de circulao. Mas ns somos excelentes legisladores. Quando houve o problema nos presdios, os nossos deputados e senadores se reuniram vinte e quatro horas em Braslia e criaram legislao para presdio, provavelmente a mais avanada do mundo. Mas fazer a legislao no papel uma coisa. Aplicar a legislao outra, onde h a falha. Ento, quando eu estava estudando isso, a palavra que estava na minha cabea no era inveno; a palavra que estava na minha cabea era uma tentativa de traduzir aquilo que acontecia na realidade brasileira para um sistema que me permitisse compreender melhor aquela realidade. E, nesse sentido, eu estou inventando. uma inveno porque eu estou abrindo um caminho, eu estou criando uma outra interpretao do Brasil. O livro Carnavais, Malandros e Heris teve um impacto na sociedade brasileira em 1979, quando ele foi publicado, porque ele retomava o ensaio, que era uma coisa muito importante na cincia social brasileira e que tinha sido praticamente esquecido, se no morto, porque estudo de Antropologia no Brasil era estudo de comunidade. A gente tinha de entender o Brasil com estudo de comunidade. No havia a retomada de interpretaes mais ambiciosas, mais arriscadas... voc no tinha. Ento, o que aconteceu com Carnavais, Malandros e Heris foi que ele recolocou isso. Eu me lembro de crticas de alguns colegas, dizendo que o romantismo... onde que aparece o romantismo? No sentido de que eu estava atrs de alguma especificidade brasileira. E a gente encontra especificidades brasileiras. Foi inventada por mim? No. A maneira de falar foi inventada, mas existe no Brasil e se reproduz tanto se reproduz que at hoje ns somos as vlvulas do nepotismo, com o jeitinho e com o sabe com quem est falando?. No acabamos com
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isso, nem, portanto, com a corrupo numa forma mais geral do termo. Ento, nesse sentido, eu diria que eu no estava fazendo fico; eu estava fazendo uma inveno no sentido de abrir o caminho para entender certas coisas, porque os materiais que eu estava usando tambm no eram materiais nobres: eu no estava falando de famlia, eu no estava falando de colonizao, eu no estava falando de histria social. Eu estava falando de instituies banais, triviais, e algumas at incmodas, como o sabe com quem est falando? eram incmodas. Mas eu vou tambm por um lado mais erudito, porque eu pego a questo religiosa, a religiosidade brasileira, atravs do renunciador, que eu acho que um termo importante ainda a ser explorado na sociologia brasileira: a renncia. A renncia do mundo que comum na retrica poltica: poltico diz que quer se candidatar mas que no quer ganhar o dinheiro de ningum, quer trabalhar para o povo. Ento, so formas de renncia diferenciais. Agora, voc pode fazer fico no sentido de que voc pode ter-se inspirado, porque no teve jeito de escapar da inspirao no nosso horizonte cultural, mas no tem disciplina. O que eu quero dizer com disciplina? Voc no tem nenhuma fonte que esteja fora do seu imaginrio pessoal. Voc no quer checar coisa nenhuma, voc no quer pegar nenhum outro livro que seja da mesma linhagem epistemolgica. Eu no sei como te responder. A uma questo complexa. para a gente fazer uma mesa-redonda, um grupo de trabalho. De qualquer maneira, eu agradeo todas as perguntas; agradeo, emocionado, a presena. Uma das maiores recompensas que a gente pode ter na carreira no ganhar prmio, ter esse prmio, que a presena de vocs com o autor a despeito dele prprio.
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SOBRE
OS AUTOR@S E ORGANIZADOR@S
Barbara Glowczewski Diretora de pesquisa no CNRS, Laboratoire dAnthropologie Sociale, Collge de France, Paris/Frana e Professora Adjunta na James Cook University/Austrlia. Cornelia Eckert Professora do Departamento de Antropologia e do PPGAS/IFCH, UFRGS. Secretria Geral da ABA na gesto 2004-2006. Eunice Ribeiro Durham Professora titular de Antropologia na Universidade de So Paulo (USP). Presidente da ABA durante a gesto 1980-1982. Professora-visitante na Universidade de Chicago (2003). Ruth Corra Leite Cardoso Professora da Universidade de So Paulo (USP). Membro do Conselho Cientfico da Associao brasileira de Antropologia. Foi presidente do Conselho da Comunidade Solidria e atualmente presidente da Comunitas. Manuela Ligeti Carneiro da Cunha Professora no Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago. Foi professora na UNICAMP (1973-1984) e professora titular na Universidade de So Paulo (1985-1995). Foi presidente da Associao Brasileira de Antropologia durante a gesto 1986-1988. Marc Henri Piault Professor de Antropologia na Universidade Paris X, EHESS, Aix-enProvence, Paris I-Sorbonne e na UERJ. Diretor de Pesquisa honorrio no CNRS e Presidente do Comit do Filme Etnogrfico em Paris. Miriam Pillar Grossi Professora no Departamento de Antropologia e PPGAS e DICH na UFSC. Presidente da Associao Brasileira de Antropologia durante a gesto 2004-2006.
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Peter Henry Fry Professor Titular de Antropologia na UFRJ. Tesoureiro da Associao Brasileira de Antropologia na gesto 1980-1982 e Vice-presidente na gesto 2004- 2006. Roberto DaMatta Professor no Museu Nacional (UFRJ), UFF e Professor Emrito da Universidade de Notre Dame, Indiana, Estados Unidos. Atualmente professor Associado da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Sherry B. Ortner Professora na Universidade da Califrnia Los Angeles. Verena Stolcke Professora de Antropologia Social na Universidad Autnoma de Barcelona, Espanha. Foi Professora do Programa de Ps-graduao em Antropologia Social da UNICAMP (1973-1976).
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