RESPONSABILIDADE PENAL
JUVENIL E DEMOCRACIA:
A Desconstrução do Mito da Impunidade
Fabiane da Silva Prestes
Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regio-
nal do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí –,
especialista em Direito Civil e Processual Civil e bacharel
em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões – URI Campus de Santiago. Pesqui-
sadora na linha: Direitos Humanos, Meio Ambiente e Novos
Direitos. Bolsista da CAPES. [email protected]
Resumo
O presente artigo destina-se a analisar o direito penal juvenil, partindo-se de um estudo his-
tórico, desde o período da indiferença total, passando-se pelo período da situação irregular,
até chegar-se ao período da proteção integral. Neste alinhamento, analisam-se questões
sobre a adolescência, conflito com a lei e violência na juventude. O principal objetivo é
compreender que os apelos de endurecimento penal lembram mais práticas retrógradas
do que uma democracia pautada em valores humanitários.
Palavras-chave
Adolescência. Criminalidade. Democracia.
JUVENILE CRIMINAL RESPONSIBILITY AND DEMOCRACY:
The Deconstruction of the Myth of Impunity
Abstract
This article is intended to analyze the juvenile criminal law, starting from a historical study, since
the period of total indifference, passing by the period of irregular, until it comes to the period
of full protection. In this alignment, we analyze questions about adolescence, conflict with the
law and violence in youth. So, the main objective is to understand that the appeals hardening
criminal practices resemble more retrograde than a democracy guided by humanitarian values.
Keywords
Adolescence. Crime. Democracy.
Sumário
1 Considerações Iniciais. 2 De objeto a Sujeito de Direitos – Evolução Histórica dos Direitos da
Criança e do Adolescente. 2.1 Primeira Fase: A Inexistência da Infância e o Caráter Penal Indife-
renciado. 2.2 Segunda Fase: Período de Situação Irregular. 2.3 Terceira Fase: Doutrina da Proteção
Integral. 3 O Adolescente e o Conflito com a Lei. 4 O Fenômeno da Violência na Juventude. 5 A
Democracia e o Plebiscito sobre Redução da Idade Penal. 6 Projetos de Emenda Constitucional
de Redução da Idade Penal. 7 A Desconstrução do Mito da Impunidade: A Insustentável Tentativa
de Endurecimento do Direito Penal Juvenil. 8 Considerações Finais. 9 Referências.
Ano XXIII nº 41, jan.-jun. 2014 – ISSN 2176-6622
p. 123-146
https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate
Fabiane da Silva Prestes
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Atualmente vive-se um momento em que a inversão de valores é muito
presente; uma sociedade que prioriza o ter e não o ser, em que as relações
de solidariedade foram superadas pelas relações de poder, uma sociedade
midiática e consumista, com políticas públicas de enfrentamento e exclusão
baseadas em práticas assistencialistas, na qual é nítido o distanciamento entre as
propostas e as efetividades. Percebe-se o fetichismo exercido pela mercadoria,
as influências da indústria, a pseudoformação oferecida nas escolas, a quase
que inexistência de espaços de lazer, a violência e a criminalidade assumindo
grandes proporções.
Nesse contexto, marcado pela naturalização das diferenças, estão se
“desenvolvendo” os adolescentes, sendo considerados pela mídia os princi-
pais protagonistas, levando a opinião pública a acreditar que o aumento da
violência se deve a eles, suscitando exigências de repressão e de maior rigor
na sua punição, enfatizando que a solução está na segregação desses jovens.
2 DE OBJETO A SUJEITO DE DIREITOS – EVOLUÇÃO HISTÓRICA
DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
2.1 Primeira Fase: A Inexistência da Infância
e o Caráter Penal Indiferenciado
A História da humanidade apenas mostrava a sociedade dos adultos.
O sentimento de insignificância era demonstrado quando se tratava a criança
como um homem em miniatura, que vestia trajes de época e trabalhava como
um adulto (Ariés, 1981, p. 55).
Desde o descobrimento do Brasil até meados do século 19, vigeram as
Ordenações Filipinas, que fixavam que com 7 anos a criança já era capaz de
entender seus atos.
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Quanto à punição dos menores pelos delitos que fizessem, as Ordena-
ções estabeleciam as mesmas penas de Direito Comum, somente resguardando
os menores de 17 anos de idade da pena de morte.
Segundo João Batista da Costa Saraiva (2003, p. 21),
No final do século XIX, quando Dom João VI aportou no Brasil, a
imputabilidade penal iniciava-se aos sete anos, eximindo-se o menor
da pena de morte e concedendo-lhe redução da pena. Entre dezessete
e vinte e um anos havia um sistema de “jovem adulto”, o qual poderia
ser até mesmo condenado à morte, ou, dependendo de certas circuns-
tâncias, ter sua pena diminuída. A imputabilidade penal plena ficava
para os maiores de vinte e um anos, a quem se cominava, inclusive, a
morte em certos delitos.
Percebe-se que a grande preocupação da época era com a punição da
criança: a igreja fixava uma idade que considerava como marco do início da
capacidade penal e, a partir dessa fixação, aplicava as penas.
Por influência da Proclamação da Independência, em 1822, foi ela-
borado o primeiro Código Penal Brasileiro, que entrou em vigor em 1830,
instituindo o sistema biopsicológico, fixando a imputabilidade entre 7 e 14
anos, ficando a critério do juiz a decisão.
O Decreto nº 874, de 11 de outubro de 1890, institui o Código Penal
dos Estados Unidos do Brasil, aplicando o sistema biopsicológico para crian-
ças entre 9 e 14 anos, as quais eram submetidas à avaliação do juiz, que as
classificava como imputáveis ou não, a partir da capacidade de distinguir o
certo do errado. Convém observar que, na época, não existiam instituições
especializadas para atender os jovens considerados culpados, que eram mis-
turados com os adultos nas prisões (Saraiva, 2003, p. 24).
No contexto mundial, o ano de 1896 é marcado pelo Caso Marie Anne,
o qual chegou ao conhecimento público proporcionando um repensar acerca
dos castigos físicos impostos pelos pais, que consideravam os filhos um objeto
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de sua propriedade e entendiam que podiam educá-los como quisessem. A
situação chegou ao conhecimento dos tribunais: a menina de 9 anos era vítima
de agressões, oportunidade em que se descobriu que não havia uma legislação
especializada em defender os interesses de crianças e adolescentes, de modo
que a Sociedade Protetora dos Animais1 ingressou em juízo para defender a
menina (Saraiva, 2003, p. 25).
No ano de 1911 foi realizado em Paris o Congresso Internacional de
Menores, ocasião em que surgiu a preocupação de reformar a justiça de me-
nores, uma vez que não havia um estabelecimento especializado em atender
infratores. Nasce, pois, o caráter tutelar da norma, que dá origem à Doutrina
da Situação Irregular.
2.2 Segunda Fase: Período de Situação Irregular
A partir do século 19, a criança e o adolescente passaram a ser vistos
como instrumentos a serem moldados, e com o qual seria possível transformar
a realidade atual do país com o objetivo de colocar a nação a salvo de todo o
tipo de criminalidade (Rizzini, 1997, p. 203).
A Lei 4.242 de 1921 abandona o caráter biopsicológico adotando um
critério objetivo de imputabilidade penal. Nesse mesmo sentido, a Consoli-
dação das Leis Penais mantém a imputabilidade, considerando que não são
criminosos os que não tiverem 14 anos completos.
O ano de 1927 é marcado pela criação do primeiro Código de Meno-
res: essa era uma lei extremamente minuciosa composta por 231 artigos, nos
quais se determinava nos mínimos detalhes o exercício da vigilância sobre os
menores. Observa-se que, em vista disso, surgiu uma nova categoria jurídica
e social para designar a infância pobre e/ou infratora: o menor.
1
O argumento utilizado pela Associação foi que se aquela criança fosse um animal que esti-
vesse submetido àquele tratamento, teria ela legitimidade para agir, e com maior interesse
tratando-se de um ser humano (Saraiva, 2003, p. 25).
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Nesse contexto, ilustra Martha de Toledo Machado (2003, p. 33),
E assim historicamente se construiu a categoria criança não-escola, não-
-família, criança desviante, criança em situação irregular, enfim, carente/
delinqüente, que passa a receber um mesmo tratamento – e a se distinguir
de nossos filhos, que sempre foram vistos simplesmente como crianças
e jovens –, compondo uma nova categoria, os menores.
[...]
E a nova categoria expressa no binômio carência/delinqüência, aliada
à distinção que se fez entre a infância ali inserida e as boas crianças,
vai conformar todo o direito material da Infância e da Juventude e as
instâncias judiciais criadas para aplicação desse direito especial, que,
ele sim, já nasceu menor.
Ademais, observa-se que, pela determinação do código, qualquer
um com idade maior de 14 anos e inferior a 18, por sua simples condição de
pobreza, abandono ou delinquência, estava sujeito a ser enquadrado na ação
do juizado de menores (Saraiva, 2003, p. 35).
Em 1940 entrou em vigor o Código Penal Brasileiro, que fixou a impu-
tabilidade penal em 18 anos. Ele fundamenta-se na condição de imaturidade
do menor, que está sujeito apenas à pedagogia corretiva da legislação especial.
Em 1959 entra em vigor a Declaração Universal dos Direitos da Criança.
Nesse sentido:
Com la“Dichiarazione dei diritti Del fanciullo” del 1959 vengono introdotti
alcuni principi innovativi a livello normativo riguardanti La protezione
di minori, quali La necessita di affermare Il diritto ad un nome e ad
una nazionalità al fine di assumere uno status bem determinato nella
società, condizione indispensabile per consentire al minore di crescere
e sviluppare la propria personalità in un ambiente sano e sereno, quale
principalmente la famiglia (Gai, 2010, p. 2)
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Em 1964 a Lei 4.513 cria a Fundação do Bem-Estar do Menor, objetivan-
do-se a realização de atendimento por meio de políticas básicas de prevenção
centradas em atividades fora de internatos e medidas socioterapêuticas aos
menores internados.
Saraiva (2002, p. 14) considera a institucionalização desse período como:
[...] grandes institutos para menores, até hoje presentes em alguns se-
tores da cultura nacional, onde muitas vezes misturavam-se infratores
e abandonados, vitimizados por abandono e maus-tratos com autores
de conduta infracional, partindo do pressuposto de que todos estariam
na mesma condição, estariam em “situação irregular”.
Em 1979, quando as Nações Unidas proclamam o Ano Internacional
da Criança, no Brasil é instituído o segundo Código de Menores2, tendo como
fundamentação a Doutrina da Situação Irregular e como objetivo apenas re-
primir crianças e adolescentes em situações patológicas, sendo marcado por
políticas assistencialistas fundadas na proteção da criança e do adolescente
abandonado ou infrator (Volpi, 1999, p. 21).
2.3 Terceira Fase: Doutrina da Proteção Integral
Apesar de a Declaração Universal dos Direitos da Criança ser de 1959, o
Brasil só efetivou a Doutrina da Proteção Integral em 1988 com o surgimento da
Constituição Federal, que trouxe, pela primeira vez, um dispositivo que dá direitos
às crianças e adolescentes. Em 1989 é aprovada a Convenção sobre os direitos da
criança.3 Além disso, em 13 de julho de 1990 foram abençoados por uma lei espe-
2
Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/l6697.htm>.
3
A Convenção dos Direitos da Criança entrou em vigor em setembro de 1990. Em julho de
1991, cento e trinta e nove países já tinham ratificado, assinado e aderido à Convenção.
Sua força decorre de sua flexibilidade para adaptar-se aos distintos enfoques dos diferentes
países. Sem desconsiderar aspectos difíceis, logrou conciliar valores que respondem às
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cífica: o Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabeleceu normas protetivas
que ganharam destaque em virtude da “condição peculiar de desenvolvimento”,
alicerçadas pelo princípio do melhor interesse da criança, assegurando à criança e
ao adolescente todas as oportunidades, a fim de proporcionar um desenvolvimento
físico, mental, moral, social e espiritual com liberdade e dignidade.
Nesse sentido, Méndez (2006, p. 11) afirma:
Por su parte, el modelo del ECA demuestra que es posible y necesario
superar tanto la visión pseudo-progresista y falsamente compasiva de
un paternalismo ingenuo de carácter tutelar, cuanto la visión retrógrada
de um retribucionismo hipócrita de mero carácter penal represivo. El
modelo de la responsabilidad penal de los adolescentes (de ahora en
adelante RPA) es el modelo de la justicia y de las garantias.
De forma semelhante, Mário Volpi, no prefácio do livro de Saraiva
(2002), acrescenta:
A doutrina da Proteção Integral, além de contrapor-se ao tratamento que
historicamente reforçou a exclusão social, apresenta-nos um conjunto con-
ceitual, metodológico e jurídico que nos permite compreender e abordar
as questões relativas às crianças e aos adolescentes sob a ótica dos direitos
humanos, dando-lhes a dignidade e o respeito do qual são merecedores.
Compreende-se que os instrumentos protetivos (em qualquer âmbito),
por meio da Constituição Cidadã e do Estatuto da Criança e do Adolescente,
propiciaram um repensar acerca da adolescência e de como o rumo de suas
vidas pode afetar uma sociedade.
Convém acrescentar o entendimento de Mary Beloff (2006, p. 14): “En
general se abandona la denominación de menores como sujetos definidos de
manera negativa, por lo que no tienen, no saben o no son capaces, y pasan a
ser llamados de manera afirmativa, como niños, niñas y adolescentes sujetos
plenos de derecho.”
necessidades universais das crianças (Trindade, 2002, p. 34).
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Assim, utilizar o termo “menor”, que foi popularizado na linguagem
comum, é uma forma negativa, que remonta ao período da situação irregular.
Além de ser uma forma pejorativa, é também uma maneira de desprezar o ser
em peculiar condição de desenvolvimento.
Não obstante, o que se apresenta como imperativo de lei tarda a
mudar as práticas repressivas históricas introduzidas por considerável parte
do corpo social. A questão do adolescente em conflito com a lei e o sistema
socioeducativo demonstra os resquícios da doutrina da situação irregular ainda
vigente na proteção integral. A atribuição da autoria do ato infracional gera
frequentemente a desqualificação dos adolescentes, como se estes deixassem
de ser sujeitos de direitos e perdessem o estatuto de cidadania, levando-os à
condição de assujeitamento, coisificação.
3 O ADOLESCENTE E O CONFLITO COM A LEI
A criminalidade vem crescendo de forma assustadora. Sabe-se que
ela sempre se fez presente no meio social. São os jovens, entretanto, os princi-
pais a sofrerem as consequências, seja como algozes, seja como vítimas dessa
violência desenfreada.
Nesta direção, Vezzula (2004, p. 56) demonstra que:
A todo momento, o adolescente é discriminado, contrariando o Art.
5º do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois desde o primeiro
momento na delegacia ele é batizado com o concludente e acusatório
nome de adolescente infrator, ainda que a lei não utilize nunca este
nome, somente “ato infracional praticado ou ato infracional atribuído”
e até “adolescente a quem se atribui autoria de ato infracional”. Não há
consciência de que é o sistema judicial que lhe atribui o ato infracional.
Eles são adolescentes, somente essa é sua identidade, a de infrator lhe
é dada erroneamente.
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Nesse sentido, vê-se que os adolescentes em conflito com a lei, os quais
integram a categoria chamada de adolescente infrator, provocam reações e sen-
timentos hostis de grupos sociais que não analisam o contexto socioeconômico,
político e cultural em que vivem. Tais atitudes imediatistas propagam o anseio
de excluir, ainda mais, esta camada da população.
Conforme Xaud (1999, p. 95),
[...] não é rara a crença de que os adolescentes que chegam ao sistema
são desviados pela “própria natureza”, são de índole má, ou seja, eles “não
têm jeito” e, por isto, não são confiáveis. Essa crença é “corroborada” pelas
evidências diárias das atitudes de revolta, indisciplina, má educação, etc.
destes adolescentes, o que justifica uma intervenção apenas superficial e
muitas vezes sem compromisso. Envoltos na crença do “não tem jeito”,
que impede de ultrapassar o perigoso limite das aparências, deixa-se de
contextualizar tanto o adolescente, quanto o delito por ele cometido.
É importante lembrar que está ali não um infrator adolescente e sim um
adolescente, ou por diferentes motivações cometeu um ato infracional.
Enfatiza-se que a adolescência é um processo de desenvolvimento,
caracterizado por veementes conflitos e constantes sentimentos de autoafir-
mação. É o momento em que são alicerçados os projetos de integração social;
período em que a pessoa sente a necessidade de formular um projeto de vida
e estruturar sua identidade pessoal. Ressalta-se que, antes de serem autores
de ato infracional, são adolescentes, com necessidades, conflitos, aspirações
e desejos típicos da fase em que vivem.
Segundo Ranña (2005, p. 42):
[...] todas as dificuldades que envolvem a passagem da infância para
a vida adulta terão de ser vividas pelo jovem solitariamente. Com as
transformações físicas e psicológicas, o adolescente e quem compartilha
de sua vida vêem-se mobilizados a criar formas de se estabelecer na vida
adulta. Sem rituais, cada um vai viver esse processo de forma única.
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Vê-se, pois, que a adolescência, em que pese seja uma invenção relati-
vamente nova, não é um período de fácil compreensão, marcado pela vulne-
rabilidade emocional. A adolescência não pode mais ser definida por critérios
biológicos, jurídicos e psicológicos, posto que varia em cada conjuntura. Desse
modo, a colisão com a lei, ou com o poder, pode ser uma das facetas deste
processo de conflitos e de vulnerabilidade por onde transitam os adolescentes.
A sociedade hodierna é pautada pelas leis de consumo, quando tem
valor quem pode ter objetos valorizados, sendo atribuído a esse objeto um valor
transferível ao sujeito. Bauman (1999, p. 94) salienta que todo mundo pode ser
lançado na moda do consumo; todo mundo pode desejar ser um consumidor
e aproveitar as oportunidades que esse modo de vida oferece, mas nem todo
mundo pode ser um consumidor.
Essa impossibilidade de ser consumidor gera sentimento de frustração,
que pode ser traduzido pela violência e pela prática de atos contrários à lei,
atingindo de forma mais severa os adolescentes por estarem vivendo uma fase
peculiar. Esse consumismo desenfreado torna o adolescente que não consome
um sujeito descartável (Canhoni, 2007, p. 46).
Liliane Saraiva (2006, p. 153) considera,
[...] as repercussões da globalização, quando tudo se integra, e noções
de longe e perto se confundem, ante a velocidade da informação e do
transporte, suscitando que a “aldeia global” projetada na metade do
século XX está definitivamente instalada, impõe que se avalie qual é a
percepção disso por parte do adolescente que é excluído da sociedade
de consumo e que resulta rejeitado e rejeitante do modelo que se busca
incluí-lo.
Observa-se que a situação de exclusão a que está submetida parcela
da população juvenil atingida pelo apelo da mídia, produz revolta e delinqu-
ência, uma vez que a sociedade de consumo os insulta oferecendo o que nega
(Galeno, 1999, p. 19).
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Assim, a maior valorização de quem possui mais informações é mais
célere e este tem maior capacidade de consumir, principalmente de adquirir
objetos de marca. Nesse contexto, jovens provenientes de camadas mais hu-
mildes sofrem por serem excluídos do acesso ao mundo do consumo e pela
deficiência de políticas públicas, adequadas, ao menos, a dar-lhes expectativa
de inclusão. Dessa forma, a violência pode ser entendida como uma estratégia
de afrontar injustiças almejando a inclusão no mercado do consumo.
4 O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA NA JUVENTUDE
Pode-se considerar que a violência é uma forma de autoafirmação,
de se sair da invisibilidade produzida por padrões sociais. Muitas vezes o ato
infracional parece demonstrar uma tentativa de existir, de pertencer, ou mes-
mo de ser acolhido, mesmo que esse acolhimento se dê pelo sistema jurídico.
Grande parte dos adolescentes em conflito com a lei têm uma trajetória de
vida marcada por uma sucessão de faltas e exclusões, fragilidade das referên-
cias familiares, uso de drogas, maus-tratos, e convivência com pais que não
conseguem encaminhar seus filhos, uma vez que há muito tempo perderam o
rumo de suas próprias vidas.
Nesse alinhamento, Anna Maria Serafini (2006, p. XIX) dispõe a po-
sição de Kofi Annan sobre os adolescentes:
Avete diritto a una vita libera dalle minacce della guerra, dell’abuso e
dello sfruttamento. Questi diritti sono ovvii. E pure noi, gli adulti, ab-
biamo fallito nel garantirvi molti di essi. Uno su tre di voi ha sofferto di
malnutrizione prima dei cinque anni. Uno su quattro di voi non è stato
vaccinato contro nessuna malattia. Quase uno su cinque di voi non va
a scuola; e tra quelli di voi che vanno a scuola quattro su cinque non
riusciranno a completare la quinta classe. Sinora, molti di voi hanno visto
violenze che nessun bambino dovrebbe vedere. Tutti voi vivete sotto le
minacce del degrado ambientale.
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Desse modo, entende-se que é grave a situação em que muitas crianças
e adolescentes vivem, cercados por violência, opressão, maus-tratos e carência
de recursos capazes de proporcionar uma vida digna.
Sobre as causa da violência, Marli Marlei Costa (2005, p. 1.261) con-
sidera que:
[...] a violência não é um fenômeno isolado, uniforme, que se abate sobre
a sociedade como algo que lhe é exterior e pode ser explicado através
de relações do tipo causa/efeito como, por exemplo, “pobreza gera vio-
lência” ou “o aumento do aparato repressivo acabará com a violência”.
Assim sendo, estamos lidando apenas com os efeitos da violência e não
com suas causas. A violência multifacetada, encontrando-se diluída na
sociedade sob as mais diversas formas que se interligam, interagem, (re)
alimentam-se e se fortalecem.
Assim sendo, faz-se necessária a compreensão sobre essa violência
responsável pela seleção de quais indivíduos irão desfrutar de uma vida dig-
na e de quais serão postos à margem. Trata-se, pois, da violência estrutural,
construída historicamente, tendo raízes nas relações de poder, fomentando as
desigualdades, agravando problemas sociais e potencializando atos infracionais.
Destaca-se que a violência e a criminalidade assumem proporções
alarmantes, e a participação de jovens, somada à ênfase que a mídia dá em
especial a esses atos infracionais, põe em pauta a necessidade de maior rigor
na “punição” de adolescentes, ignorando-se a existência de um Direito Penal
Juvenil, baseado em uma pedagogia rigorosa e garantista.
5 A DEMOCRACIA E O PLEBISCITO SOBRE REDUÇÃO DA IDADE PENAL
A democracia, assim como o fogo, teria surgido em diversos lugares
em tempos distintos e inventada mais de uma vez, como aduz Dahl (2001,
p. 19),
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Pressuponho que a democracia possa ser inventada e reinventada de
maneira autônoma sempre que existirem as condições adequadas.
Acredito que essas condições adequadas existiram em diferentes épocas
e em lugares diferentes. Assim como uma terra que pode ser cultivada
e a devida quantidade de chuva estimularam o desenvolvimento da
agricultura, determinadas condições favoráveis sempre apoiaram uma
tendência para o desenvolvimento de um governo democrático. Por
exemplo, devido a condições favoráveis, é bem provável que tenha
existido alguma forma de democracia em governos tribais muito antes
da história registrada.
Percebe-se, então, que a democracia surge em determinadas situa-
ções, as quais são favoráveis para seu desenvolvimento. No âmbito mundial,
destaca-se que a democracia pode ser entendida como herança das revoluções
francesas e norte-americanas, sendo o meio mais adequado de o povo exercer
a cidadania a favor de seus interesses individuais e coletivos.
No Brasil, o início da era democrática é marcada pelo governo de
Getúlio Vargas, no período de 1930 a 1934, o qual permanece no poder até
1945, quando é eleito Eurico Gaspar Dutra e promulgada a Constituição de
1946, considerada mais democrática do que a anterior.
No que respeita à proteção à infância, a partir da Revolução de 1930
foram adotadas políticas voltadas para o bem-estar do menor. Em 1934 a nova
Constituição para o Brasil regulamentou o trabalho, fixando a proibição do
labor a menores de 14 anos, de trabalho noturno a menores de 16 e de trabalho
insalubre para menores de 18 anos. Estabeleceu ainda a obrigatoriedade do
ensino primário. Já a Constituição de 1946, no que se referia aos direitos da
criança, manteve a proibição do trabalho infantil e ampliou para dezoito anos
a aptidão para o trabalho noturno.
Assim, é de bom alvitre destacar o entendimento de Irma Rizzini
(2009, p. 262),
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[...] com o golpe de Estado implementado pelo então presidente da
República Getúlio Vargas, o governo federal inaugurou uma política
mais nítida de proteção e assistência ao menor e à infância, representada
pela criação de órgãos federais que se especializaram no atendimento
a essas duas categorias, agora individualmente separadas e específicas:
o menor e a criança.
Desse modo, a criança pobre passou a receber inúmeras ações do go-
verno, como instituições de caráter social, bem como foram criados os Serviços
de Assistência a Menores.
Com o golpe militar em 1964, as forças armadas assumem o poder,
as eleições passam a ser indiretas e os militares comandam definitivamente
a ação de protetores da infância em situação irregular, que passou a ser en-
carada como um problema social; a partir de então, o Brasil adota políticas
de institucionalização, de forma opressora e repressiva. Em substituição aos
Serviços de Assistência a Menores, foi criada a Fundação Nacional do Bem-
-Estar do Menor. De fato, a Ditadura Militar representou um regresso na área
da infância, uma vez que voltam a ser adotadas as medidas punitivas, baseadas
em castigos físicos (Saraiva, 2003, p. 42).
A partir do movimento “Diretas já”, dá-se início a uma nova fase, sendo
perceptível que logo a redemocratização iria se instaurar, o que vem a ocorrer
somente em 1989, com as primeiras eleições diretas.
Atualmente, no Brasil é consagrado o princípio da Democracia Re-
presentativa, o qual é exercido por meio de eleições diretas, sendo comple-
mentado em casos específicos pela Democracia Direta. Desse modo, o povo,
por meio de plebiscito, referendo ou outras formas de consultas populares,
pode decidir diretamente sobre assuntos políticos ou administrativos de sua
cidade, Estado ou país.
No que diz respeito aos direitos humanos incorporados pelas lutas
democráticas, Méndez (p. 4) considera que:
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Es posible, sin embargo, que su comprensión y aceptación como instru-
mento específico de derechos humanos haya jugado un papel fundamen-
tal en su instalación socio-jurídica definitiva. También, es probable que
haya sido decisiva la intuición de algunos grupos de activistas sociales,
en el sentido de que no es solo la democracia la que garantiza la lucha
por los derechos, sino que es también, y fundamentalmente, la lucha
por los derechos lo que garantiza la democracia.
Convém ressaltar as palavras de Reale (1999, p. 2) a considerar o avanço
democrático da Constituição Federal de 1988:
Pela leitura dos Anais da Constituinte infere-se que não foi julgado bastan-
te dizer-se que somente é legítimo o Estado constituído de conformidade
com o Direito e atuante na forma do Direito, porquanto se quis deixar
bem claro que o Estado deve ter origem e finalidade de acordo com o
Direito manifestado livre e originariamente pelo próprio povo, excluída,
por exemplo, a hipótese de adesão a uma Constituição outorgada por
uma autoridade qualquer, civil ou militar, por mais que ela consagre os
princípios democráticos. Poder-se-á acrescentar que o adjetivo “Demo-
crático” pode também indicar o propósito de passar-se de um Estado de
Direito, meramente formal, a um Estado de Direito e de Justiça Social,
isto é, instaurado concretamente com base nos valores fundantes da co-
munidade. “Estado Democrático de Direito”, nessa linha de pensamento,
equivaleria, em última análise, a “Estado de Direito e de Justiça Social”.
O Estado Democrático se funda, igualmente, no princípio da soberania
popular, que impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa públi-
ca, participação que não se exaure, como veremos, na simples formação das
instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado
Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento (Silva, 2007, p. 66).
Percebe-se, logo, que o objetivo do Estado Democrático de Direito
é justamente tornar realidade as promessas não cumpridas, de modo que o
resultado seja satisfatório para a população, numa perspectiva de valorização
e evolução da sociedade.
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Fabiane da Silva Prestes
Nessa linha de pensamento, Canotilho (1995, p. 43) dispõe:
Estado concebe-se hoje como Estado Constitucional Democrático, por-
que ele é conformado por uma Lei fundamental escrita (= constituição
juridicamente constituída das estruturas básicas da justiça) e pressupõe
um modelo de legitimação tendencialmente reconduzível à legitimação
democrática.
Assim sendo, nota-se que o Estado Democrático de Direito é o conceito-
-chave do regime adotado pela Constituição, com a exigência de reger-se por
normas democráticas, em total consonância com os princípios constitucionais, com
o fim de assegurar uma sociedade justa, na qual os cidadãos sejam efetivamente
tratados de forma igualitária, em prol de uma vida digna.
Sob o fundamento da democracia direta, foi proposto o plebiscito para
a redução da maioridade penal. A rede de entidades que elaborou o parecer
técnico ao Projeto de Decreto Legislativo do Senado Federal n. 539/2012
entende que:
Ao promover consulta pública para romper com direitos fundamentais
reputados pétreos pela Constituição da República, o Projeto atual irá
abalar a própria estrutura constitucional brasileira e, não obstante
apresentar-se sob a roupagem de democrático, irá na verdade ruir a
própria democracia. Os constitucionalistas apontam que o que caracte-
riza as democracias modernas é justamente a autoimposição de limites,
como garantia de sua própria sobrevivência. Se não há limites para
a democracia política ou formal, ou seja, se os princípios e garantias
constitucionais podem ser alterados a qualquer momento pela maioria,
sem qualquer limite, a própria democracia coloca-se em risco, pois ela
mesma poderá ser abolida pelo voto da maioria.
Qualquer proposta de consulta pública, portanto, que tenha como
objetivo ameaçar os direitos fundamentais considerados cláusulas pétreas
pela Constituição da República, devem ser refutados, posto que a possível
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Responsabilidade Penal Juvenil e Democracia
realização de um plebiscito poderá abrir um perigoso precedente, o qual
poderá originar a exclusão indeterminada de direitos fundamentais sob o
discurso da democracia.
6 PROJETOS DE EMENDA CONSTITUCIONAL DE REDUÇÃO DA IDADE PENAL
Logo após a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente surgi-
ram críticas de vários segmentos da sociedade, considerando que a legislação
não prevê medidas “punitivas”. Assim, desde 1993 emergem projetos de
emenda constitucional, com a finalidade de alterar o artigo 228 da Constituição
Federal, e, consequentemente, reduzir a idade penal.
Desse modo, foram apensados ao Projeto de Emenda Constitucional
171 de 1993, 18 outros projetos, todos com o objetivo de endurecer o sistema
penal juvenil.
Ademais, encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça e de Cida-
dania o projeto de Emenda Constitucional 33/2012, o qual prevê na sua ementa
a alteração dos artigos 129 e 228 da Constituição Federal, acrescentando um
parágrafo para prever a possibilidade de desconsideração da inimputabilidade
penal de maiores de 16 anos e menores de 18 por Lei Complementar. Ane-
xado a este, encontram-se os projetos 74/2011 e 83/2011. O primeiro prevê
acrescentar o parágrafo único ao artigo 228 da Constituição Federal para
estabelecer que, nos casos de crimes de homicídio doloso e roubo seguido de
morte, tentados ou consumados, são penalmente inimputáveis os menores de
15 anos. Já o segundo pretende estabelecer a maioridade civil e penal aos 16
anos tornando obrigatório o exercício do voto nesta idade.
7 A DESCONSTRUÇÃO DO MITO DA IMPUNIDADE:
A Insustentável Tentativa de Endurecimento do Direito Penal Juvenil
Os mais diversos, ainda que repetitivos, discursos sobre impunidade
e violência dos adolescentes tomam a cena na atualidade, tendo como ponto
comum de entendimento o afastamento do adolescente, a quem se atribui a
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autoria de ato infracional, do convívio social, produzindo talvez corpos dóceis
que ocupam estes estabelecimentos, ignorando-se sua história de vida e os da-
nos que a privação de liberdade pode causar em um adolescente em condição
peculiar de desenvolvimento (Foucault, 1997).
Conforme Foucault (1997, p. 214),
A prisão, essa região mais sombria do aparelho de justiça, é o local onde
o poder de punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto,
organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo
poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se ins-
crever entre os discursos do saber. Compreende-se que a justiça tenha
adotado tão facilmente uma prisão que não fora, entretanto, filha de
seus pensamentos. Ela lhe era agradecida por isso.
Vê-se, pois, que as instituições de internação retiram os indivíduos
das suas famílias, do seu local de convívio, e os internam durante um período
de tempo para moldar suas condutas, utilizando a disciplina como forma de
docilização dos corpos, a fim de que possam voltar à sociedade de forma útil.
Segundo Fajardo (2004, p. 37),
Esta rede vai-se adensando até transformar-se numa malha fina, retendo
sempre os mesmo que, presos num vácuo de tempo e espaço, privados
de liberdade, devem, por suas próprias forças, “resilir” e liberar-se,
através de um comportamento submisso ao “tratamento” técnico e às
normas institucionais. Aos que permanecem nessa malha mais fina da
rede de justiça juvenil, estão preparadas estratégias de administração
da violência, inerentes ao modelo institucional fechado.
[...]
Além disso, a segurança interna, mediante divisão dos espaços em alas,
contenção ambiental (celas cadeadas por fora, isolamento), contenção
física (algemas) e química (medicamentos psicotrópicos), assim como
a segurança externa, através do policiamento e da revista íntima de
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internos e de familiares visitantes foram identificadas, na investigação
empírica, como estratégias de sobrevivência institucional, legitimadas
pela ênfase do controle social.
Observa-se que, em algumas práticas, persiste ainda o caráter prisional,
em contrariedade ao que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente,
que prioriza um atendimento pedagógico e garantista.
De acordo com Porto (2008, p. 92),
A institucionalização do adolescente tem força negativa e carga violenta
de estigma, pois em um ambiente que cerceia a liberdade desse indi-
víduo sem uma proposta pedagógica e planejamento de inserção após
o término do cumprimento da medida não consegue assegurar a sua
conscientização sobre o ato cometido. Nesse espaço de esvaziamento e
de dissolução do sujeito por estigmas, rotulações ou etiquetamentos, a
convivência com outros indivíduos projeta na sua estrutura em formação
mais valores que não condizem com a realidade social.
Assim, esse ambiente cercado por irregularidades, ociosidade e priva-
ções, nada mais é do que um espaço estigmatizante e reprodutor de violência,
que desrespeita a condição especial do adolescente, deixando a dúvida se
garante ou não o mínimo existencial.
Emílio García Méndez (2006, p. 11) assevera que:
El modelo de responsabilidad penal de los adolescentes constituye una
ruptura profunda, tanto con el modelo tutelar, cuanto con el modelo
penal indiferenciado, que hoy se expresa exclusivamente en la ignorante
o cínica propuesta de baja de la edad de la imputabilidad penal.
No que se refere às discussões sobre endurecimento do Direito penal
juvenil, Martha de Toledo Machado (2006, p. 88) considera:
Tal situação tem levantado a indignação de todos aqueles comprometidos
com os valores do Estado Democrático e da Proteção Integral a crianças e
adolescentes. E tem instalado ampla controvérsia sobre a necessidade de
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aperfeiçoamento da legislação e a maneira de fazê-lo, valendo anotar a pre-
sença, dentre as propostas de alteração, de vertente francamente autoritária,
fundada numa concepção de direito penal de segurança máxima, de todo
descompromissada com os valores da democracia e da dignidade humana.
A redução da idade penal é incompatível com a Doutrina da Proteção
Integral; é inconciliável com o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducati-
vo – Sinase; é inconstitucional, posto que é indiscutível a inconstitucionalidade
de qualquer proposta que modifique o sistema constitucional que reconhece
prioridade e proteção especial a crianças e adolescentes; é uma afronta aos
compromissos internacionais assumidos pelo Brasil; uma vez que não restam
dúvidas de que o Estatuto da Criança e do Adolescente adequadamente apli-
cado apresenta bons resultados, e de que são as políticas sociais que possuem
real potencial para diminuir o envolvimento de jovens com a violência.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se, então, ao reduzir a idade penal e privar o adolescente da
liberdade, que se está tirando-lhe o seu bem maior – a dignidade –, potencia-
lizando sua vulnerabilidade, enfatizando o comportamento, no confinamento,
como condição para convivência e sobrevivência após o cumprimento da pena.
Ademais, já se demonstram como suficientes os conflitos nas penitenci-
árias para comprovar as irregularidades dos programas de atendimento, carac-
terizadas pela superlotação e pelas péssimas condições de habitação, higiene e
saúde. Assim, segregar adolescentes, em idade peculiar de desenvolvimento,
representa evidenciar a violação de direitos fundamentais.
Neste contexto, quaisquer pesquisas de opinião pública, no sentido do
endurecimento do Direito penal juvenil, seja com a redução da idade penal,
seja com a ampliação do tempo de internação, merecem ser refutadas, pois
não se pode permitir que práticas abandonadas no início do século passado
voltem a existir.
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Sustentar uma posição contrária a essa redução não significa compac-
tuar com a delinquência, uma vez que inimputabilidade não é um sinônimo de
impunidade. Ser inimputável significa que o adolescente não possui capacidade
de ser penalmente responsável. Não há, entretanto, nada mais inventivo do
que pensar que o adolescente infrator ficará impune, afinal o Estatuto da
Criança e do Adolescente prevê as medidas socioeducativas, que vão desde
uma simples advertência até a privação de liberdade, ou seja, internação, que
muito se assemelha às penas criminais aplicadas ao adulto.
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