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DOSSIÊ ESCRITOS E RE-ESCRITOS DA ARTE AFRO-BRASILEIRA 318

Arte & Ensaios


vol. 28, n. 43,
jan.-jun. 2022

“O freio da Blazer”, a “cara da dura”: notas sobre


itinerários entre a cidade, a arte, institucionalidades
e ascendências afro-brasileiras
“The Blazer’s brake”, the “face of the police approach”: notes
on itineraries between the city, the art, institutionalities and
Afro-Brazilian ancestries

Marcelo Campos
0000-0001-6011-5318
[email protected]

Resumo
Este texto trata de observações e notas recentes e inéditas sobre a relação da arte
produzida por afrodescendentes e seus mecanismos de institucionalidade. De outro
modo, são abordados itinerários que se cruzam com minha própria trajetória na Escola
de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, frente à rara convivência
com pessoas racializadas e a metodologias da história da arte invisibilizadoras da
arte dos artistas afro-brasileiros. Apresento, também, relatos, lembranças, histórias
trocadas com artistas negras, negros e negres da cidade, cuja convivência se dá em
diversos âmbitos, nas salas de aula, ateliês, espaços culturais, resultando em textos,
curadorias, acompanhamentos críticos.
Palavras-chave
Arte. Afrobrasilidades. Rio de Janeiro.
Ativismo. Escola de Belas Artes.

Abstract
This text deals with recent and unpublished observations and notes on the relationship
between art produced by Afro-descendants and their mechanisms of institutionality. Otherwise,
itineraries that intersect with my own trajectory at the School of Fine Arts of the Federal
University of Rio de Janeiro are approached, in face of the rare coexistence with racialized
people and methodologies from the history of art that make art and Afro-Brazilian artists
invisible. I also present reports, memories, stories exchanged with black, and black artists
from the city, whose coexistence takes place in different areas, in classrooms, ateliers, cultural
spaces, resulting in texts, curatorships, critical accompaniments.
PPGAV/EBA/UFRJ Keywords
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
Art. Afro-Brazilians. Rio de Janeiro.
DOI: 10.37235/ae.n43.18 Activism. School of Fine Arts.
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Comentando recentemente com meu companheiro sobre o conceito


“freio da Blazer”, imediatamente, o sobrinho dele que estava próximo começou
a cantar: “a cara do freio da Blazer/ ahn/ Hoje ela quer tá do lado/ ahn/ Sempre
com bolso lotado/ ahn”, rap interpretado e escrito por Ajaxx e L7NNON. O menino,
negro, Davi, morador do subúrbio de Padre Miguel, convive em uma cidade onde
todos os dias meninos e meninas negras são assassinados nas ruas e favelas.
Essa mesma cidade, contudo, continua falando (apesar de), cantando (apesar
de) e criando revoluções que não esperam a institucionalidade dos brancos
que permanecem gerindo o mundo. Na letra, a realidade de Davi se aproxima
mais do que talvez seja imposto a ele pelas aulas na escola do bairro. Certa-
mente, sua proximidade ao rap demorará a se formalizar como estudo, pesquisa,
reflexividade nas instituições de sua vida adulta, se é que um dia isso acontecerá.
Ajaxx, produtor de vários raps e hip-hops de sucesso, conta com mais de 100
milhões de streamings na plataforma do Spotify. Lennon dos Santos Barbosa
Frasseti (L7NNON) é um rapper brasileiro, com 28 anos, nascido em Realengo
− como o menino Davi, que sabe sua música de cor − e com mais de oito milhões
de seguidores na rede social do Instagram. Todos pertencentes a uma mesma
cidade que continua inventando gírias, criando códigos, sonhando, desejando
e conquistando o sucesso, a grana, os objetos de consumo, mas que, mesmo
assim, permanece fora não só das aulas do Davi, mas das aulas de estética, de
história da arte, de história do Brasil. Em tempo, a expressão “freio da Blazer”
se refere às abordagens policiais racistas ao frear o carro da Chevrolet Blazer,
usado oficialmente pela Polícia Militar do Rio de Janeiro como camburão, para
revistar pessoas em sua maioria pretas, nas blitz pela cidade.
A responsabilidade em escrever este artigo para a Arte & Ensaios me fez
hesitante frente aos diversos itinerários possíveis e às distintas abordagens
teórico-metodológicas. Voltar à EBA é relembrar as travessias diárias entre o
Méier e a Ilha do Fundão, passando por bairros e favelas da Zona Norte carioca.
Ao mesmo tempo, publicar em uma revista, da qual participei em 1999, ainda
como mestrando do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas
Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, programa que me formou
mestre e doutor em artes e com o qual convivi durante sete anos de formação
e dois anos como professor convidado, é rever posicionamentos intelectuais e de
vida. Por outro lado, ter sido chamado por Igor Moraes Simões, hoje, uma referência
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na pesquisa e na compreensão das trajetórias de artistas racializades “no cubo


branco da arte brasileira”1 (Simões, 2019), atuante no Rio Grande do Sul, como
professor da UFRGS, reposiciona a forma como este texto seguirá seu percurso.
O que apresento aqui é resultado de observações e notas muito atuais diante
de um corpus teórico e de um estado da questão, sobretudo, posicionados por
gestos conquistados em um certo ativismo conceitual na tentativa de empretecer
a bibliografia, incluir vozes antes não consideradas no âmbito universitário e, ao
mesmo tempo, exercer a liberdade de uma escrita que se dá a partir de uma
trajetória de quase 30 anos de pesquisa em arte.
No artigo de 1999, publicado no sexto número da revista Arte & Ensaios,
analisei a produção de um artista branco, estrangeiro, que, como muitos, se
interessou pelos temas afro-baianos presentes nas ruas e terreiros de candomblé
da cidade de Salvador e que construiu 40 anos de produção iconográfica sobre a
Bahia e sua população. Naquele momento, já seduzido pela etnografia, pesquisei
o terreiro da saudosa ialorixá Mãe Beata de Iemanjá, a quem peço a bênção e
licença para citar seu luminoso nome. Nas paredes do terreiro de Mãe Beata,
diversas ilustrações de Carybé eram ampliadas e assumidas positivamente como
representantes das passagens míticas dos orixás nagô-iorubás. Com isso, ainda
que não possamos dizer que Carybé tenha feito arte afro-brasileira, conside-
ração que já observei naquela época, o grupo ao qual o artista se referiu, muitas
vezes, assumiu seus desenhos, cores, suas informações coletadas com as mais
velhas da religião, como autoimagem, o que tornara tudo mais complexo.
Assim, em um ambiente afrodiaspórico, como o terreiro de Mãe Beata, a arte
e, mais especificamente, o trabalho de Carybé se apresentavam como indício
de um trânsito entre mundos que me interessavam: arte, candomblé, etnografia,
pensamento mítico. Fato é que aquele talvez tenha sido o segundo artigo da Arte
& Ensaios a tratar de questões ligadas às ascendências afro-brasileiras;2 nesse
caso citado, ao terreiro Ile Omiojuarô, em uma revista universitária pertencente
a um programa de pós-graduação em artes. A arte, no âmbito institucional da

1
Igor Moraes Simões defendeu em 2019 a tese Montagem fílmica e exposições: vozes negras no cubo
branco da arte brasileira.
2
Encontrei no sumário do número 4 da revista, publicado em 1997, o artigo de Felipe Ferreira tratando
da relação entre carnaval e umbanda.
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cidade do Rio de Janeiro, não era tratada a partir da ascendência afrodiaspórica.


Muito ao contrário, o que tínhamos em grande proporção eram os estudos sobre
o barroco, o século 19 e escassos exemplos de arte do século 20, incluindo a
chamada arte popular. Ou, então, conceitos filosóficos que se sobrepunham
a diversos exemplos de obras, artistas e momentos da história da arte, todos,
inevitavelmente, nos remetendo à Grécia e a Roma. Quem estudava arte contem-
porânea, nos idos dos anos 1990 nesta cidade, se concentrava em tratar da
modernidade branca e, no máximo, da passagem do moderno ao contemporâneo,
restringindo-se a fatos históricos, como, a querela entre concretistas paulistas e
cariocas, a I Bienal Internacional de São Paulo, além de um ou outro estudo sobre
o minimalismo norte-americano, estes últimos concentrados na PUC-Rio, pois
a EBA, na época, restringia-se a estudar temas e artistas brasileiros.

O cobertor curto da arte popular e da antropologia da arte


como saída para estudos racializados

Seguindo a lógica do interesse por assuntos relativos às questões afro-bra-


sileiras, por muito tempo o campo de estudos mais próximo seria a antropologia
ou a sociologia, além das pesquisas sobre a cultura popular. Já se destacavam
as publicações de Clifford Geertz e James Clifford, que circulavam em uma
ou outra bibliografia das pós-graduações. Estávamos, porém, já naqueles anos
1990, com artistas indígenas, como Jimmie Durham, e afrodescendentes, como
Rosana Paulino e Ayrson Heráclito, em franca produção. Assim como acontecera
com Estevão Silva ou os irmãos Thimóteo da Costa, esses citados contemporâneos
poucas vezes eram racializados nas análises. E, por consequência, podemos
refletir que a saída de incluir produções, digamos, mais identitárias, vinculadas
ao popular ou ao naify não cabia a muitos que produziam arte contemporânea.
O que tem de arte popular no trabalho de Paulino, Durham e Heráclito? Nada.
Portanto, pouco restava para suas inserções nas análises da história da arte. A
escola formalista das artes, aquela que se arrepiava à citação de textos literários,
estudos sociológicos ou referências às identidades nacionais, jamais abrira campo
para que pudéssemos relacionar arte e cultura sem que caíssemos em discussões,
bibliografias, construções metodológicas ligadas a autores distantes de quem
estudava sociedade; inevitavelmente, autores da sociologia da arte eram laterali-
zados frente a Giulio Carlo Argan, por exemplo. A mim diziam “leia Arnold Hauser”,
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a arte, institucionalidades e ascendências afro-brasileiras
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talvez um dos compêndios de arte dos mais enfadonhos com que tive contato
até hoje. Hauser, para falar de arte, remonta às questões mais amplas, focali-
zando a literatura, comparativamente, sem chegar ao presente, analisando fatos
e recorrências seculares. E eu, interessado nos quintais dos terreiros, nos
barracões e pejis, onde tinha contato, desde criança, com a rica simbologia dos
orixás. De outro modo, a produção escultórica brasileira já existia nos altares
dos candomblés e sob os olhos da crítica. Talvez, como referência, influência
ou, mesmo, de modo mais direto, poderia ter sido dada mais atenção às obras
de Agnaldo dos Santos e Mestre Didi, por exemplo. Desde os anos 1950,
autores se referenciavam aos objetos litúrgicos afro-brasileiros e os chamavam de
“arte”, como, Odorico Tavares (1951) no livro Imagens da terra e do povo. Mesmo
antes, em “As belas-artes dos colonos pretos”, Nina Rodrigues (1935) já citava, em
seu interesse colonialista, as esculturas encontradas nos candomblés da Bahia.
Distante de tudo isso, todo empenho da história da arte na academia era
por fazer o Brasil pertencer às discussões do barroco católico e suas ordens
eclesiásticas, das ruas e bulevares das cidades do século 19 e das questões
internacionais pautadas pela abstração geométrica. Logo, atualizando-as com
a fenomenologia de Merleau-Ponty e os escritos de Mário Pedrosa.3 O contato
mais amiúde, etnográfico, talvez, com fatos sociais particulares, não os “totais”,
como nos termos de Durkheim, se perdia. Maria Auxiliadora, Yedamaria, Madalena
Reinboldt, Magliani, Manuel Messias já haviam constituído décadas no itinerário
entre arte e sociedade. Todes fora das análises acadêmicas.
De outro modo, ao buscarmos a antropologia da arte, muitos estudos de
grande relevância se dedicavam ao lugar etnográfico, ao trabalho de campo, mas
consideravam a arte em sua ascensão mais burguesa; Geertz cita Picasso, por
exemplo, resultando em comparações inconsistentes para a arte contemporânea
racializada. Aqui, se deve destacar o pioneirismo das análises da produção indígena

3
Mário Pedrosa, mesmo criando o projeto do Museu das Origens, mantenedor da fábula das três raças,
não dedicara textos a artistas afro-brasileiros. Ressalva seja feita ao “Discurso aos tupiniquins e nambás”,
no qual demonstra certa revolta sobre os cânones europeus e norte-americanos que periferizam
o Terceiro Mundo. Não podemos afirmar, contudo, que seja um texto sobre arte indígena. No texto
sobre “arte e magia”, por exemplo, assunto fartamente impregnado na realidade brasileira, o autor
começa com o interesse do surrealista André Breton pelo assunto e pensa outras civilizações, mas
em nada se refere aos indígenas e afro-brasileiros.
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nas pesquisas de Berta Ribeiro, Heloisa Fénelon e Lux Vidal, que aplicavam
compreensões formais e etnográficas lançando mão de termos, como forma,
cor, símbolos, ainda correndo o risco de manter a população descendente dos
povos originários em um tempo outro, anônima e bem distante do presente,
como analisa Johannes Fabian (2018).
Refletir sobre o modo como uma líder espiritual das mais importantes no
candomblé carioca, Mãe Beata, mulher preta ativista, que dava aulas sobre
sexualidade em seu barracão, agenciava a arte era, sem dúvida, não a restringir
à história da arte, mas, antes, pensar sua subjetividade, seu trânsito intelectual
e a recepção recorrente dos modos de representação da arte junto aos terreiros.
Interessava-me pensar o modo como a Iyá fora impactada pelas imagens de
Carybé não como uma rendição a um branco estrangeiro, tanto que ainda com
Mãe Beata viva, as mesmas imagens foram apagadas de seu barracão, optando-se
por outro tipo de decoração.
Por outro lado, pensar sobre o assunto, hoje, é rever modos de recepção
exercidos pela academia frente à bibliografia sobre arte brasileira, sobretudo
refutando obras que se apropriavam e inventavam um Brasil preto escrito por
pessoas pretas. Nei Lopes, Helena Teodoro, Kabengele Munanga, Emmanuel
Araujo, Manuel Querino, Muniz Sodré, Joel Rufino ou, mesmo, Rubem Valentim,
Mestre Didi e Abdias Nascimento, três artistas visuais que escreveram sobre
arte, não foram bibliografias estudadas nos bancos da academia. Ao contrário,
foram buscas pessoais, em palestras, no Sankofa,4 na biblioteca do Centro de
Estudos Afro-asiáticos, localizada na Praça XV e, hoje, infelizmente, fechada,
além de outros escritos sobre outros assuntos que não somente a história da arte.

A cara da dura

Aimé Césaire, em “O discurso sobre o colonialismo”, texto dos anos 1950,


argumenta que a civilização ocidental, europeia, “é incapaz de resolver os dois
principais problemas [...] o problema do proletariado e o problema colonial”.

4
Sankofa, curso sobre a história da África, coordenado por Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento,
ao qual tive a honra de assistir na Uerj, nos idos dos anos 1990.
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Com isso, afirma Césaire, a Europa “se refugia em uma hipocrisia tão mais
odiosa por ser cada vez menos capaz de iludir”. E o autor, nascido na Martinica,
em 1913, comunista, cunha a frase que ressoa até os nossos dias: “a Europa
é indefensável” (Césaire, 2022, p. 161). Portanto, se a arte é um dos símbolos
da construção de um suposto processo civilizatório, “entre a colonização e a
civilização”, continua Césaire, “a distância é infinita” (p. 163). Ao observar uma
produção artística forjada em um país colonizado, como o nosso, devemos levar
em consideração esse fosso, essa distância. Não mais usando os métodos de
Hauser, mas, antes, observando, pelo hip-hop, que as consequências, os ecos
da colonialidade permanecem no racismo estrutural, no freio da Blazer, na cara
da dura.
Ir para o Fundão era atravessar o subúrbio do Méier em direção à Ilha
do Governador. O ônibus, 696, fazia ponto final no Jardim do Méier e passava
por bairros e favelas, como Rocha, Jacarezinho, Higienópolis, Benfica, este
último bem próximo de Olaria e Ramos. Há três anos, fui a um ateliê em Ramos
visitar o artista autodidata Wallace Pato. Cria do lugar, Pato faz na pintura uma
espécie de crônica dos costumes suburbanos, pinta o carro que anuncia no
megafone a promoção da caixa de ovo, pinta os botequins e as personagens
do samba, como se atualizasse as pesquisas de Heitor do Prazeres e de Sérgio
Vidal. Pinta a “cara da dura”. Na época dessa visita, Wallace Pato me explicou a
ideia, a expressão, o conceito “cara da dura”. Trata-se de uma expressão usada
entre amigos que reconhecem modos de se arrumar, se pentear, usar determi-
nadas roupas que podem causar a abordagem policial racista no grupo, como
a citada, “freio da Blazer”. Assim, reflito que há muitos modos de se apropriar
do estigma, na fala cotidiana, que atualizam os perigos, escolhendo e se preca-
vendo de situações tão obviamente racistas, como julgar a aparência de pessoas
racializadas a partir de seus cabelos mais ou menos despenteados ou de roupas
mais largadas. Com isso, nossa sintaxe dá conta do que as instituições totais,
nos termos de Foucault, tratarão de encarcerar. Inevitável pensarmos na frase
de Fanon (2021, p. 53): “Se rejeita o homem que tem diante de si, como posso
acreditar no homem que pode estar em você?”. Se o policial preto rejeita a
pessoa preta, como os pretos acreditarão na polícia?
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Assim, chegamos ao que Jota Mombaça (2021) chama de redistribuição da


violência, fato que sempre alarmou os mandatários brancos como um medo a ser
controlado. O sistema prisional lida a todo instante com rebeliões. A academia,
hoje, se espanta com a cobrança de alunes racializados em querer ver seus
iguais nos slides da aula. Os movimentos americanos de conscientização, que
hoje nos chegam nas iconografias de Emory Douglas, já anunciados por Abdias
Nascimento, foram invisibilizados por aqui, como as imagens pertencentes ao
Partido dos Panteras Negras e que, algumas vezes, influenciaram as capas dos
jornais do Movimento Negro Unificado (MNU). Uma dessas foi recentemente
apropriada pelo artista Mulambö que interveio em cor no cartaz de 1991 que traz
os dizeres “Beije sua preta em praça pública”. Contudo, a suposta ideia falaciosa
da “democracia racial” jamais nos deixou expressar o que Jota chama de
redistribuição da violência. Luiz Gama, muito antes, dissera: “todo escravo que
mata o senhor age em legítima defesa”. Ao contrário, a fábula das três raças
formadoras do Brasil, muito presente em exposições e livros de arte, procurou
amenizar quaisquer indícios de revolta popular, contribuindo, aliás, para a
dócil compreensão do folclore, da arte popular, da arte naïf, jamais racializados.
Se conferirmos o crivo da racialidade para artistas ditos naïfs, como, Chico da Silva,
Mestre Guarany, Mestre Vitalino, entre tantos outros, perceberemos que sempre
houve artistas indígenas e negros na história do Brasil. Mas, antes, o empenho
foi outro. Infantilizou-se o popular, usando requintes de amabilidade, nas teorias
de Gilberto Freyre ou, mesmo, no armorial de Ariano Suassuna. Nas teorias dos
intelectuais da USP, como, Florestan Fernandes, estudou-se A integração do
negro na sociedade de classes. Por que não a revolta? Na promoção da arte
popular, omite-se o erotismo dos cordéis, evita-se a fala politizada, cria-se a
dicotomia de certa família tradicional (casais heteronormativos), crianças vindas
das cegonhas. E as traições, os homens cornos, as mulheres adúlteras? A zoofilia?
Está tudo lá, dito, escrito, atualizado. E, hoje, mesmo em lugares como a Lyra
Nordestina, gráfica de cordéis das mais antigas no Brasil, situada em Juazeiro
do Norte, CE, já encontramos casais LGBTQIAP+ nas histórias. O catolicismo
convive, ali, com os mitos afro-brasileiros, orixás, nossas senhoras, exus, todos
virando personagens.
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Mulambö, Reaja, 2019
xarpigrafia sobre capa do
jornal de 1991
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Enquanto isso, a academia nos forma em outras direções; os textos e


artigos acadêmicos possuem regras próprias; talvez o modo de Jota Mombaça
escrever, antes de ser publicada em livro, não passasse pelas regras qualis da
Capes, pois seus textos são curtos, deixando a reflexão muito mais no sentido
performativo e, com isso, fora dos colóquios e congressos. Por muito tempo,
pensamentos como o de Nei Lopes e Abdias Nascimento não seriam conside-
rados próprios às referências e ao rigor metodológico. Textos sem bibliografia e
referência. O curioso é que, de certo modo, intelectuais que, hoje, tardiamente
nos influenciam, como Frantz Fanon, Aimé Césaire, W. B. Dubois, Bel Hooks
também não seguiram essas regras. São excertos, máximas, poemas, pensa-
mentos, notas. Mas, assim também não foram as retóricas de Sócrates, Platão
ou, mesmo, Saussure, cuja obra foi compilada a partir de apontamentos de
seus discípulos? Por que para os pretos não foi dado o mesmo direito, já que a
“oralitura”, nos termos de Leda Maria Martins (2003), sempre nos foi própria?

A crônica como teoria

Hoje, vivemos um momento em que, por conta do que foi dito, retornamos
à crônica como teoria. Isso já acontecera, por exemplo, nos escritos de Machado
de Assis, João do Rio, Lima Barreto. A partir de tais ficções, refletimos, filoso-
famos. Ficção é uma palavra ineficaz para refletir sobre o uso tanto de relatos
autobiográficos quanto das narrativas míticas, se pensarmos, por exemplo, os
itãs iorubas. O uso da ficção se faz de modo muito particular nas tradições
afro-brasileiras. Quando ouvimos a passagem de alguma história mítica, um
oriki, pensamos em nossas vidas no presente, procuramos relações, coincidên-
cias, lições. Assim são feitos os jogos divinatórios do Ifá. Cabe aqui muito bem
a observação de Conceição Evaristo (2007, p. 21) ao dizer que não contamos
histórias para ninar a casa-grande, mas para despertá-la: “A nossa escrevivência
não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande e sim para acordá-los
de seus sonos injustos”. Com isso, rezas, bênçãos, são visões de mundo profe-
ridas para efeitos mágicos, míticos, encantados. Por um lado, podemos pensar
que isso sempre foi feito, por exemplo, nos cantos de trabalho, no samba. Ao
ouvir “Sorriso negro”, de dona Ivone Lara, cujos versos afirmam que “negro sem
emprego fica sem sossego”, entoado em missas católicas nas igrejas das irman-
dades negras, coloca-se o canto popular em outra esfera. Estamos dentro das
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igrejas, rezando, cantando, rogando que as palavras proferidas no samba


dentro daquele lugar sagrado nos ajudem. Em qual categoria estética coloca-
remos esse acontecimento?
Por conta dos fatos expressos nessas observações, a cidade do Rio de
Janeiro tem exercitado outros tipos de teoria: a pedagogia da encruzilhada,
de Luiz Rufino, o pajubá, a escrevivência de Conceição Evaristo, o encanta-
mento das ruas, nos escritos de Luiz Antônio Simas. São, todas, teorias insur-
gentes, nas quais se invocam exus, mães ancestrais, encantados. Por outro
lado, por dentro da própria inserção de brancos nas religiões afro-brasileiras,
passamos, agora, pelo reencantamento dos ensinamentos banto, nos escritos de
Nei Lopes, por exemplo, já que o chamado nagocentrismo direcionou os estudos
acadêmicos aos iorubás, invadindo terreiros ketu Brasil afora, em detrimento
das visões de mundo jeje e banto. Ou seja, por dentro da própria invisibilidade
negra, há outras disputas por protagonismo.
Nesse sentido, podemos destacar a centralidade de textos e falas de Ailton
Krenak e Conceição Evaristo em disciplinas, teses e dissertações universitárias.
Escritos que são imagens. Refletindo sobre o que fazer para adiar o fim do mundo,
Krenak (2019, p. 30) propõe: “Vamos aproveitar toda nossa capacidade crítica e
criativa para construir paraquedas coloridos”. Enquanto isso, Conceição nos encanta:
“Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas,
que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre as faces”
(Evaristo, 2016, s.p.). Mesmo que a Academia Brasileira de Letras cuspa na xícara
de chá que Machado de Assis bebeu, não contemplando escritores negros com
seus fardões, seus escritos já promovem mudanças profundas, em uma amplitude
muito maior do que o número dos convidados para os salões da casa do literato
preto. A revolução já está acontecendo e continuará inevitável.
Estamos tratando de outros mundos. Krenak (2019, p. 51), fala, por
exemplo, em “reconhecer essa instituição do sonho não como experiência
cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no
sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia”. Kehinde, protago-
nista do romance de Ana Maria Gonçalves (2018, p. 786), diz “sonhei muito
com você, na maioria dos meus sonhos você aparecia crescido sentado a uma
secretária, escrevendo coisas lindas de se ler”. E Kehinde, em verdade, Luiza
Mahin, sonha com seu filho, retirado dela e escravizado, Luiz Gama, escritor,
poeta, considerado o primeiro jurista negro da história do Brasil. Ou seja, nossa
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tarefa é promover, no tempo, imagens e reflexões que a colonialidade tentou


desfazer, nas quais o sonho e a realidade não sejam mais dicotomias.

Entre desejo, consumo e vivência

São muitos os exemplos de artistas e obras que atravessam a história da


atualidade em construções próprias, entrando e saindo das salas de aula,
frequentando o sistema de arte, ora protagonizando, ora sendo por ele fetichi-
zados. A sedução pelas grifes, pelo consumo e a publicidade fazem parte
dessas trajetórias. Maxwell Alexandre, O Bastardo, Elian Almeida, Panmela
Castro são artistas cuja visibilidade inclui o pensamento sobre estar ou não em
foco. Certa vez, aprendi com Yhuri Cruz que periferização dos racializados não
seria um motivo de resistência, mas de fetichização e encarceramento do chamado
lugar de fala. Yhuri construiu um trabalho em que dizia: “nenhuma direção a não
ser ao centro”. Ou seja, pensar em circuitos alternativos, se apropriar de materiais
precários, manter somente a crítica mordaz, julgar seus iguais por pertencer ao
mainstream seriam ações inseridas em estratégias brancas de encarceramento
estético dos racializados. Com isso, bailes no Copacabana Palace, festas patroci-
nadas pela Gucci ou pela Chanel pertencem, hoje, à chamada lacração. Tais
sintomas estão presentes nas capas da Vogue de Elian Almeida, na afirmação de
Panmela Castro: “Ostentar é estar viva”, escrita sobre um espelho. São muitas as
declarações de que consumir pode ser um gesto de revolta para quem nunca
teve seu corpo prospectado pela publicidade. Sem ficar em cima do muro, vou
dizer, por que não? Ninguém está cumprindo somente a lógica da ilusão. Sobre
isso, em exposição recente, Paulo Nazareth exibiu uma foto, em que segura
uma criança e uma placa, onde se lê: “negros na piscina”. Imediatamente,
artistas pretes “do rolê” incorporaram e posaram com camisetas que osten-
tavam a mesma frase. Ou seja, se pensam que estão nos fetichizando, estamos
de olho. E ainda é motivo de estranhamento ver pessoas negras no lazer? A
síndrome de Wilson Simonal parece assolar parte da postura dos intelectuais
do sistema de arte no Brasil. Simonal, com carro do ano, uma mulher loura,
“gastando na beca”, sofreu e assustou a elite e seus iguais. Mano Brown (2022)
em conversa com Sueli Carneiro, vai dizer que os pretos precisam tudo justificar:
relacionamentos, consumos etc. (Brown, 2022). Se não há gente preta nas artes,
os espelhos do sucesso de muitos são os ídolos do rap e do hip-hop: BK, Djonga
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a arte, institucionalidades e ascendências afro-brasileiras
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fazem a cabeça de Maxwell Alexandre. Qual o problema? Se ele tentasse se ver


nos artistas, encararia, provavelmente, no balneário carioca, a centralidade de
Iberê Camargo na pintura brasileira. E, mais do que isso, o diapasão, ainda
retumbante, de quem gosta de aferir e refutar qualidade às produções artís-
ticas e não consegue ouvir a turba. São os pretos, porém, que ouvem o freio da
Blazer. Fato é que para os brancos sempre foi possível fazer arte de vários modos
e separar forma e vida cotidiana. Enquanto Pollock se jogava sobre seu próprio
drama, na mesma época, a tão proclamada referência do concretismo brasileiro,
Max Bill, encomendava sua Unidade tripartida aos metalúrgicos. Para os brancos,
sempre tudo pode. Ser expressivo não é a condição única para se fazer pintura ou
escultura. Há cem anos já sabemos disso. Quando Naum Gabo disse que queria
ser tão frugal na arte quanto na vida, a lição já estava dada. Se um automóvel
de corrida pode ser mais belo do que a Vitória de Samotrácia, as regras do
jogo já haviam mudado para Marinetti, em 1909. O distintivo da qualidade e da
expressão continua, contudo, separando forma e biografia; esse pensamento
ainda acompanha grande parte da crítica de arte, agora acuada, do Brasil.

O uso da violência para agradar as elites

Um uso recorrente, quando as discussões envolviam a inclusão dos povos


originários e afrodiaspóricos nas coleções e exposições de arte, foi o da violência.
Assistindo ao artista Alberto Pereira apresentar seu trabalho Supernanny Brasil,
criado em 2016, em que substitui o rosto de uma babá negra pela imagem da
escrava Anastácia, o ouvi dizer que estava, a partir dali se esquivando de usar a
violência como mote. Em substituição a isso, Alberto propunha o uso de imagens
de crianças negras sorrindo e brincando, por exemplo, em plotagens pelos muros
da cidade. O artista lembrou que, ao trabalhar no bairro do Leblon, reduto da elite
carioca, percebia pessoas negras que passavam em condições subalternizadas às
dos brancos, como o número significativo de babás. Supernanny faz referência a
um famoso programa estrangeiro, no qual crianças brancas bagunceiras são
controladas por uma superbabá, para alívio dos pais. Aqui no Brasil, essa função
cabe e coube às mulheres negras, aquelas que, segundo Conceição Evaristo,
foram usadas para ninar a casa-grande. Alberto Pereira, porém, ficara atento ao
fato de que uma elite gostava de ver tais imagens violentas, uma elite, provavel-
mente, pertencente ao mesmo contingente que faz uso dos serviços das babás.
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Figura 2
Panmela Castro, Ostentar
é estar viva, 2021
Spray sobre espelho,
160 x 110cm
Fotografia de Edouard
Fraipont
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Podemos, então, fazer uma digressão para lembrar que na arte e na


história da arte, o uso mais comum da imagem de pessoas pretas e indígenas
está na escravidão, na pobreza e na subserviência Debret, Rugendas, Victor
Frond, Christiano Júnior. Ou seja, mesmo que não tenhamos visto nos slides
das aulas de história da arte, artistas negros e indígenas, as imagens dessas
pessoas passaram em cenas da escravidão, quando, provavelmente, os professores
estavam ocupados em nos explicar o neoclassicismo. O uso de tais imagens,
das correntes e elementos de tortura, dos documentos da escravidão, portanto,
não resolveu o racismo estrutural que continua a acionar o freio da Blazer.
Ninguém se espantou. Se não funcionou para denunciar, funcionou para
ilustrar, para compor, ornar os salões da elite. Contra isso Grada Kilomba se
revolta, afirmando que tais imagens precisam constar nos autos criminais,
não nas coleções dos museus e exposições. Em Memórias da plantação, Kilomba
(2019, p. 33) vai nos dizer da máscara sobre a qual ela ouvira falar “muitas
vezes” durante a infância, imagem que ela refuta e liberta, expondo os meca-
nismos de silenciamento da mulher negra na figura de Anastácia. Libertemos
Anastácia, como nos propôs Yhuri Cruz!

Retornando ao Pamplonão

Estamos em franco processo de mudança. Por todos os lados, os


crivos de racialidade, gênero e classe social refazem as antigas questões
da identidade. Patrícia Hill Collins (2021) lembra que “identidade” era o
único conceito que nos aproximava das discussões, por exemplo, relativas
às mulheres negras:

a identidade foi uma dimensão importante para o surgimento da


interseccionalidade como forma de investigação e práxis críticas
– é o caso, por exemplo, das negras brasileiras que politizaram a
identidade negra e feminina que desvalorizava ambas as coisas
(Collins, 2021, p. 187).
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Figura 3
Márcia Falcão, Invasão do
Alemão, 2021
Acrílica, óleo e pastel oleoso
sobre tela, 380 x 300cm
Fotografia de Eduardo Ortega
Cortesia da artista e Fortes
D’Aloia & Gabriel, São Paulo/
Rio de Janeiro, Brasil
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Na pintura, vivemos, hoje, distintas leituras de mulheres artistas negras,


como, Márcia Falcão, Kika Carvalho, Okun, Laís Amaral, Juliana dos Santos, Ana
Cláudia Almeida, entre tantas outras, cujas discussões não cabem em uma única
concepção. Racializá-las é, apenas, um primeiro passo para compreender suas
produções. Discutem-se a abstração, o corpo fora dos padrões impostos pela
mídia, a maternidade, os símbolos dos orixás, a cor, a religiosidade, entre muitas
outras pautas. Nos idos de 2005, fui professor substituto na EBA e, entre as
alunas, estava Márcia Falcão. Recentemente, a reencontrei e acompanhei sua
inserção em um circuito mais oficial das artes. Márcia Falcão elabora uma
compreensão sobre o lugar periferizado e suburbano da cidade do Rio de
Janeiro, comentando uma Zona Norte violenta e tomada por milícias. De outro
modo, ela atravessa a cidade para acompanhar cursos livres na Zona Sul carioca
e sobrepõe sua vivência de artista ao fato de ser mãe de duas meninas pequenas.
A pauta social interseccional é, portanto, incorporada como experiência própria. O
corpo da artista se apresenta, recorrentemente, em suas pinturas, ora como mãe,
ora mimetizando-se com o vermelhão dos pisos e ladrilhos usados no subúrbio.
Em Invasão do Alemão, de 2021, Falcão aparece adornada por um adereço de
cabeça, como “mulata”, antiga nomeação das passistas das escolas de samba
do Rio de Janeiro. Com seu corpo nu, contudo, segura nas mãos uma camisa
com a logomarca da prefeitura da cidade, o que nos remete às crianças que
estudam em escolas públicas. Imediatamente, nossa compreensão da cena
se altera, pois percebemos se tratar de uma das operações policiais na favela
do Alemão. Vemos uma mãe carregando a camisa da escola de um filho, uma
imagem recorrente na imprensa para registrar as balas que matam essas mesmas
crianças, muitas vezes, a caminho da escola. Aqui, academia e práxis se
encontram, como nos sugere Collins, pois, a interseccionalidade está bem
mais conectada com “os enigmas do mundo social” em que vivemos do que
com os “empreendimentos disciplinares estabelecidos”. Com isso, quero
destacar que a chamada pintura histórica, desde a Revolução Francesa, já
conectou os mundos vividos e narrados. A intersecção entre gênero, raça e
classe permanece nos conferindo pinturas históricas como comentários do
presente. E das aulas do Pamplonão, na Escola de Belas Artes da UFRJ, saíram e
saem, ainda hoje, tais comentaristas.
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Figura 4
William Maia, Oní Sáà
Wúre, 2021
Técnica mista sobre tela,
75 x 53cm
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Terça-feira, 12 de julho de 2022

Por volta das 9h50 da manhã, salto do carro em direção ao Prédio da


Reitoria da UFRJ. Ali, passei parte da minha vida acadêmica, ainda na graduação,
pois fui aluno de pintura por dois anos, entre 1991 e 1993. Chego ao Pamplonão,
local em que aulas de desenho e pintura estão concentradas. Encontro Lorraine
Mendes, pesquisadora e curadora com quem troco conversas sobre as questões
que envolvem arte e racialidade. Lorraine é doutoranda do PPGArtes e também
comporá a banca de avaliação. Caminhamos um pouco pelo Pamplonão, pouco
antes de nos encaminhar para a banca do trabalho de conclusão de curso de
William Maia, pintor, usando recursos da colagem, que foca sua observação
sobre o corpo negro, a religiosidade e a insurgência. Outra colega, Raquel
Barreto, pesquisadora de autoras e artistas dos ativismos sociais que atravessaram
Figura 5
William Maia, Por mais que o pensamento social norte-americano, como os do Partido dos Panteras Negras, já
eu ande pelo Vale da Sombra havia me falado sobre o trabalho de William. Orientado por um colega de longa
da Morte, 2020
Técnica mista sobre tela,
data, Pedro Meyer, William se apresenta com cabelos dread, bata africana e conta
152 x 286cm de santo, Oxóssi. Nos sentamos e percebemos uma plateia majoritariamente
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negra na defesa da graduação de William. Nada me alegra mais do que estar


no mesmo local em que percorri caminhos acadêmicos e ver que outras vozes,
agora, estão ressoando. Mesmo se houver uma longa demora na alteração do
pensamento colonizado da arte e da história da arte entre nós, nossos corpos
farão a revolução. William Maia (2022) sabe disso e está preparado, pois, em
sua dedicatória, nos comove: “Esse trabalho é dedicado a todos que vieram
antes de mim e abriram os caminhos para que eu pudesse estar aqui e aos
meus guias e orixás que seguem assegurando o passo firme nesta caminhada”.
Me sinto contemplado.

Marcelo Campos é professor associado do Departamento de Teoria e História


da Arte do Instituto de Artes da UERJ e dos Programas de Pós-graduação em
Artes (PPGArtes) e em História da Arte (PPGHA). Curador-chefe do Museu de
Arte do Rio. Doutor em Artes Visuais pelo PPGAV da Escola de Belas Artes/
UFRJ. Possui textos publicados em periódicos, livros e catálogos nacionais e
estrangeiros. Autor de Escultura contemporânea no Brasil: reflexões em dez
percursos. Curador de diversas exposições, como, Crônicas Cariocas (2021)
com Amanda Bonan, Conceição Evaristo e Luiz Antônio Simas, no MAR; Casa
Carioca (2020) com Joice Berth no MAR; À Nordeste (2019) com Bitu Cassundé
e Clarissa Diniz no Sesc 24 de Maio; O Rio do Samba: resistência e reinvenção
(2018) com Nei Lopes, Evandro Salles e Clarissa Diniz, no MAR.

Referências

BROWN, Mano. Mano a Mano (podcast). 2022. Disponível em: https://open.spotify.com/


episode/2eTloWb3Nrjmog0RkUnCPr.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. In: Aimé Césaire. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022.

COLLINS, Patricia Hill. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de


minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos A. (org.). Representações performáticas brasileiras:
teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p. 16-21.

FABIAN, Johannes. O tempo e o outro emergente. In: O tempo e o outro, como a antropologia
estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 39-70.

FANON, Franz. Por uma revolução africana: textos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
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GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2018.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:


Cobogó, 2019.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

MAIA, William Santos. Como dar forma ao caos. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 2022.

MARTINS, Leda Maria. Performances da oralitura. Letras, Santa Maria, n. 26, jun. 2003.

MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da


violência. In: Ñ V nos matar. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935
[1905].

SIMÕES, Igor Moraes. Montagem fílmica e exposição: vozes negras no cubo branco da arte
brasileira. Porto Alegre: UFRGS, 2019.

TAVARES, Odorico. Bahia: imagens da terra e do povo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.

Dossiê recebido em junho de 2022 e aprovado em julho de 2022.

Como citar:

CAMPOS, Marcelo. “O freio da Blazer”, a “cara da dura”: notas sobre itinerários entre
a cidade, a arte, institucionalidades e ascendências afro-brasileiras. Dossiê Escritos
e re-escritos da arte afro-brasileira. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ,
v. 28, n. 43, p. 318-338, jan.-jun. 2022. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.
org/10.37235/ae.n43.18. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae

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