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DOSSIÊ ESCRITOS E RE-ESCRITOS DA ARTE AFRO-BRASILEIRA 318
Marcelo Campos
0000-0001-6011-5318
[email protected]
Resumo
Este texto trata de observações e notas recentes e inéditas sobre a relação da arte
produzida por afrodescendentes e seus mecanismos de institucionalidade. De outro
modo, são abordados itinerários que se cruzam com minha própria trajetória na Escola
de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, frente à rara convivência
com pessoas racializadas e a metodologias da história da arte invisibilizadoras da
arte dos artistas afro-brasileiros. Apresento, também, relatos, lembranças, histórias
trocadas com artistas negras, negros e negres da cidade, cuja convivência se dá em
diversos âmbitos, nas salas de aula, ateliês, espaços culturais, resultando em textos,
curadorias, acompanhamentos críticos.
Palavras-chave
Arte. Afrobrasilidades. Rio de Janeiro.
Ativismo. Escola de Belas Artes.
Abstract
This text deals with recent and unpublished observations and notes on the relationship
between art produced by Afro-descendants and their mechanisms of institutionality. Otherwise,
itineraries that intersect with my own trajectory at the School of Fine Arts of the Federal
University of Rio de Janeiro are approached, in face of the rare coexistence with racialized
people and methodologies from the history of art that make art and Afro-Brazilian artists
invisible. I also present reports, memories, stories exchanged with black, and black artists
from the city, whose coexistence takes place in different areas, in classrooms, ateliers, cultural
spaces, resulting in texts, curatorships, critical accompaniments.
PPGAV/EBA/UFRJ Keywords
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
Art. Afro-Brazilians. Rio de Janeiro.
DOI: 10.37235/ae.n43.18 Activism. School of Fine Arts.
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Igor Moraes Simões defendeu em 2019 a tese Montagem fílmica e exposições: vozes negras no cubo
branco da arte brasileira.
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Encontrei no sumário do número 4 da revista, publicado em 1997, o artigo de Felipe Ferreira tratando
da relação entre carnaval e umbanda.
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talvez um dos compêndios de arte dos mais enfadonhos com que tive contato
até hoje. Hauser, para falar de arte, remonta às questões mais amplas, focali-
zando a literatura, comparativamente, sem chegar ao presente, analisando fatos
e recorrências seculares. E eu, interessado nos quintais dos terreiros, nos
barracões e pejis, onde tinha contato, desde criança, com a rica simbologia dos
orixás. De outro modo, a produção escultórica brasileira já existia nos altares
dos candomblés e sob os olhos da crítica. Talvez, como referência, influência
ou, mesmo, de modo mais direto, poderia ter sido dada mais atenção às obras
de Agnaldo dos Santos e Mestre Didi, por exemplo. Desde os anos 1950,
autores se referenciavam aos objetos litúrgicos afro-brasileiros e os chamavam de
“arte”, como, Odorico Tavares (1951) no livro Imagens da terra e do povo. Mesmo
antes, em “As belas-artes dos colonos pretos”, Nina Rodrigues (1935) já citava, em
seu interesse colonialista, as esculturas encontradas nos candomblés da Bahia.
Distante de tudo isso, todo empenho da história da arte na academia era
por fazer o Brasil pertencer às discussões do barroco católico e suas ordens
eclesiásticas, das ruas e bulevares das cidades do século 19 e das questões
internacionais pautadas pela abstração geométrica. Logo, atualizando-as com
a fenomenologia de Merleau-Ponty e os escritos de Mário Pedrosa.3 O contato
mais amiúde, etnográfico, talvez, com fatos sociais particulares, não os “totais”,
como nos termos de Durkheim, se perdia. Maria Auxiliadora, Yedamaria, Madalena
Reinboldt, Magliani, Manuel Messias já haviam constituído décadas no itinerário
entre arte e sociedade. Todes fora das análises acadêmicas.
De outro modo, ao buscarmos a antropologia da arte, muitos estudos de
grande relevância se dedicavam ao lugar etnográfico, ao trabalho de campo, mas
consideravam a arte em sua ascensão mais burguesa; Geertz cita Picasso, por
exemplo, resultando em comparações inconsistentes para a arte contemporânea
racializada. Aqui, se deve destacar o pioneirismo das análises da produção indígena
3
Mário Pedrosa, mesmo criando o projeto do Museu das Origens, mantenedor da fábula das três raças,
não dedicara textos a artistas afro-brasileiros. Ressalva seja feita ao “Discurso aos tupiniquins e nambás”,
no qual demonstra certa revolta sobre os cânones europeus e norte-americanos que periferizam
o Terceiro Mundo. Não podemos afirmar, contudo, que seja um texto sobre arte indígena. No texto
sobre “arte e magia”, por exemplo, assunto fartamente impregnado na realidade brasileira, o autor
começa com o interesse do surrealista André Breton pelo assunto e pensa outras civilizações, mas
em nada se refere aos indígenas e afro-brasileiros.
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nas pesquisas de Berta Ribeiro, Heloisa Fénelon e Lux Vidal, que aplicavam
compreensões formais e etnográficas lançando mão de termos, como forma,
cor, símbolos, ainda correndo o risco de manter a população descendente dos
povos originários em um tempo outro, anônima e bem distante do presente,
como analisa Johannes Fabian (2018).
Refletir sobre o modo como uma líder espiritual das mais importantes no
candomblé carioca, Mãe Beata, mulher preta ativista, que dava aulas sobre
sexualidade em seu barracão, agenciava a arte era, sem dúvida, não a restringir
à história da arte, mas, antes, pensar sua subjetividade, seu trânsito intelectual
e a recepção recorrente dos modos de representação da arte junto aos terreiros.
Interessava-me pensar o modo como a Iyá fora impactada pelas imagens de
Carybé não como uma rendição a um branco estrangeiro, tanto que ainda com
Mãe Beata viva, as mesmas imagens foram apagadas de seu barracão, optando-se
por outro tipo de decoração.
Por outro lado, pensar sobre o assunto, hoje, é rever modos de recepção
exercidos pela academia frente à bibliografia sobre arte brasileira, sobretudo
refutando obras que se apropriavam e inventavam um Brasil preto escrito por
pessoas pretas. Nei Lopes, Helena Teodoro, Kabengele Munanga, Emmanuel
Araujo, Manuel Querino, Muniz Sodré, Joel Rufino ou, mesmo, Rubem Valentim,
Mestre Didi e Abdias Nascimento, três artistas visuais que escreveram sobre
arte, não foram bibliografias estudadas nos bancos da academia. Ao contrário,
foram buscas pessoais, em palestras, no Sankofa,4 na biblioteca do Centro de
Estudos Afro-asiáticos, localizada na Praça XV e, hoje, infelizmente, fechada,
além de outros escritos sobre outros assuntos que não somente a história da arte.
A cara da dura
4
Sankofa, curso sobre a história da África, coordenado por Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento,
ao qual tive a honra de assistir na Uerj, nos idos dos anos 1990.
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“O freio da Blazer”, a “cara da dura”: notas sobre itinerários entre a cidade,
a arte, institucionalidades e ascendências afro-brasileiras
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Com isso, afirma Césaire, a Europa “se refugia em uma hipocrisia tão mais
odiosa por ser cada vez menos capaz de iludir”. E o autor, nascido na Martinica,
em 1913, comunista, cunha a frase que ressoa até os nossos dias: “a Europa
é indefensável” (Césaire, 2022, p. 161). Portanto, se a arte é um dos símbolos
da construção de um suposto processo civilizatório, “entre a colonização e a
civilização”, continua Césaire, “a distância é infinita” (p. 163). Ao observar uma
produção artística forjada em um país colonizado, como o nosso, devemos levar
em consideração esse fosso, essa distância. Não mais usando os métodos de
Hauser, mas, antes, observando, pelo hip-hop, que as consequências, os ecos
da colonialidade permanecem no racismo estrutural, no freio da Blazer, na cara
da dura.
Ir para o Fundão era atravessar o subúrbio do Méier em direção à Ilha
do Governador. O ônibus, 696, fazia ponto final no Jardim do Méier e passava
por bairros e favelas, como Rocha, Jacarezinho, Higienópolis, Benfica, este
último bem próximo de Olaria e Ramos. Há três anos, fui a um ateliê em Ramos
visitar o artista autodidata Wallace Pato. Cria do lugar, Pato faz na pintura uma
espécie de crônica dos costumes suburbanos, pinta o carro que anuncia no
megafone a promoção da caixa de ovo, pinta os botequins e as personagens
do samba, como se atualizasse as pesquisas de Heitor do Prazeres e de Sérgio
Vidal. Pinta a “cara da dura”. Na época dessa visita, Wallace Pato me explicou a
ideia, a expressão, o conceito “cara da dura”. Trata-se de uma expressão usada
entre amigos que reconhecem modos de se arrumar, se pentear, usar determi-
nadas roupas que podem causar a abordagem policial racista no grupo, como
a citada, “freio da Blazer”. Assim, reflito que há muitos modos de se apropriar
do estigma, na fala cotidiana, que atualizam os perigos, escolhendo e se preca-
vendo de situações tão obviamente racistas, como julgar a aparência de pessoas
racializadas a partir de seus cabelos mais ou menos despenteados ou de roupas
mais largadas. Com isso, nossa sintaxe dá conta do que as instituições totais,
nos termos de Foucault, tratarão de encarcerar. Inevitável pensarmos na frase
de Fanon (2021, p. 53): “Se rejeita o homem que tem diante de si, como posso
acreditar no homem que pode estar em você?”. Se o policial preto rejeita a
pessoa preta, como os pretos acreditarão na polícia?
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Figura 1
Mulambö, Reaja, 2019
xarpigrafia sobre capa do
jornal de 1991
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Hoje, vivemos um momento em que, por conta do que foi dito, retornamos
à crônica como teoria. Isso já acontecera, por exemplo, nos escritos de Machado
de Assis, João do Rio, Lima Barreto. A partir de tais ficções, refletimos, filoso-
famos. Ficção é uma palavra ineficaz para refletir sobre o uso tanto de relatos
autobiográficos quanto das narrativas míticas, se pensarmos, por exemplo, os
itãs iorubas. O uso da ficção se faz de modo muito particular nas tradições
afro-brasileiras. Quando ouvimos a passagem de alguma história mítica, um
oriki, pensamos em nossas vidas no presente, procuramos relações, coincidên-
cias, lições. Assim são feitos os jogos divinatórios do Ifá. Cabe aqui muito bem
a observação de Conceição Evaristo (2007, p. 21) ao dizer que não contamos
histórias para ninar a casa-grande, mas para despertá-la: “A nossa escrevivência
não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande e sim para acordá-los
de seus sonos injustos”. Com isso, rezas, bênçãos, são visões de mundo profe-
ridas para efeitos mágicos, míticos, encantados. Por um lado, podemos pensar
que isso sempre foi feito, por exemplo, nos cantos de trabalho, no samba. Ao
ouvir “Sorriso negro”, de dona Ivone Lara, cujos versos afirmam que “negro sem
emprego fica sem sossego”, entoado em missas católicas nas igrejas das irman-
dades negras, coloca-se o canto popular em outra esfera. Estamos dentro das
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a arte, institucionalidades e ascendências afro-brasileiras
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Figura 2
Panmela Castro, Ostentar
é estar viva, 2021
Spray sobre espelho,
160 x 110cm
Fotografia de Edouard
Fraipont
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a arte, institucionalidades e ascendências afro-brasileiras
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Retornando ao Pamplonão
Figura 3
Márcia Falcão, Invasão do
Alemão, 2021
Acrílica, óleo e pastel oleoso
sobre tela, 380 x 300cm
Fotografia de Eduardo Ortega
Cortesia da artista e Fortes
D’Aloia & Gabriel, São Paulo/
Rio de Janeiro, Brasil
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a arte, institucionalidades e ascendências afro-brasileiras
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Figura 4
William Maia, Oní Sáà
Wúre, 2021
Técnica mista sobre tela,
75 x 53cm
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a arte, institucionalidades e ascendências afro-brasileiras
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Referências
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. In: Aimé Césaire. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022.
FABIAN, Johannes. O tempo e o outro emergente. In: O tempo e o outro, como a antropologia
estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 39-70.
FANON, Franz. Por uma revolução africana: textos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
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a arte, institucionalidades e ascendências afro-brasileiras
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KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
MAIA, William Santos. Como dar forma ao caos. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 2022.
MARTINS, Leda Maria. Performances da oralitura. Letras, Santa Maria, n. 26, jun. 2003.
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935
[1905].
SIMÕES, Igor Moraes. Montagem fílmica e exposição: vozes negras no cubo branco da arte
brasileira. Porto Alegre: UFRGS, 2019.
TAVARES, Odorico. Bahia: imagens da terra e do povo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.
Como citar:
CAMPOS, Marcelo. “O freio da Blazer”, a “cara da dura”: notas sobre itinerários entre
a cidade, a arte, institucionalidades e ascendências afro-brasileiras. Dossiê Escritos
e re-escritos da arte afro-brasileira. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ,
v. 28, n. 43, p. 318-338, jan.-jun. 2022. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.
org/10.37235/ae.n43.18. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae