Documentação Pedagógica em Educação Infantil

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SEÇÃO TEMÁTICA: Infância, Política e Educação

Documentação pedagógica em uma


experiência formativa na educação infantil:
um olhar para o princípio estético1
Luciane Pandini-Simiano2
ORCID: 0000-0001-8378-2359
Anna Carla Luz Lisboa3
ORCID: 0000-0001-7264-6773

Resumo

O presente texto tematiza a documentação pedagógica e o princípio estético estabelecido


nas diretrizes da educação infantil. Tem por objetivo analisar em que medida o percurso
de documentar contribui para ampliar a sensibilidade, a produção de sentidos e as
possibilidades de viver em companhia na educação infantil. A pesquisa, desenvolvida em
uma perspectiva qualitativa, parte da seguinte questão: o gesto de documentar sensibiliza
as professoras para o encontro e o viver junto na educação infantil? O estudo realizado
no âmbito do mestrado em educação teve como sujeitos um grupo de dez professoras que
atuam na educação infantil e que participaram de uma experiência formativa realizada
a partir de um curso de extensão tecido pelo percurso de documentar. A observação
participante, registros escritos, fotográficos, audiovisuais, as documentações e, sobretudo,
o estar junto com as professoras foram os instrumentos de pesquisa. A partir do diálogo
entre as diretrizes normativas e diferentes autores, destaca-se o princípio estético no gesto
de documentar, porque o encontro com o sensível permite o alargamento de fronteiras,
a possibilidade de afetação e a busca por significados e sentidos nas  relações tecidas
entre crianças e adultos no cotidiano educativo. A experiência formativa com professoras,
construída pela via do percurso de documentar, possibilita questionar pressupostos
naturalizados na prática pedagógica, realizando deslocamentos importantes nas formas
de ser, estar e viver em companhia na educação infantil.

Palavras-chave

Educação infantil – Documentação pedagógica – Princípio estético.

1- Agradecimento à Fundação de Amparo à Pesquisa em Santa Catarina (FAPESC) pelo financiamento da pesquisa.
2- Universidade do Sul de Santa Catarina. Tubarão, Santa Catarina, Brasil. Contato: [email protected]
3- Universidade do Sul de Santa Catarina; Rede Municipal de Educação de Florianópolis. Florianópolis, Santa Catarina. Brasil. Contato:
[email protected]

https://doi.org/10.1590/S1678-4634202248246869por
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Educ. Pesqui., São Paulo, v. 48, e246869, 2022. 1


Luciane Pandini-SIMIANO; Anna Carla Luz LISBOA

Pedagogical documentation in a formative


experience in early childhood education: a look at
the aesthetic principle*

Abstract

This article discusses the pedagogical documentation and the aesthetic principles
established in the guidelines of early childhood education. It aims to review to what extent
the documenting path contributes to expanding sensitivity, the production of meanings and
the possibilities of living together in early childhood education. The research, conducted in
a qualitative perspective, stems from the following question: Does the documenting gesture
make teachers aware of meeting and be together in early childhood education? The study
carried out within the scope of a master’s degree in education had as sample a group of
ten teachers who worked in early childhood education and who participated in a formative
experience carried out in an extension course woven along the course of documenting.
The survey instruments included participants’ observation, written, photographic and
audiovisual records, documentation and, above all, being together with the teachers.
From the dialogue between the normative guidelines and different authors, the aesthetic
principle in the gesture of documenting is highlighted, because the encounter with the
sensitive allows the expansion of borders, the possibility of affectation and the search for
meanings and senses in the relationships woven between children and adults in everyday
education. The training experience with teachers, built through the path of documenting,
makes it possible to question assumptions naturalized in pedagogical practice, making
important shifts in the ways of being and staying together in early childhood education.

Keywords

Early childhood education - Pedagogical documentation - Aesthetic principle.

“Pensar é um ato. Sentir é um fato.” (Clarice Lispector).

As proposições legais da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e da Lei


de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96 (BRASIL, 1996) constituíram-
se em um grande marco na educação infantil. A partir delas começa-se a discutir a
creche como espaço público de educação coletiva, de direito das crianças. As Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs) inscrevem na letra da lei o
desejo de que se possa produzir uma educação sustentada pelos princípios éticos, políticos
e estéticos (BRASIL, 2010). Construir uma proposta educativa pautada por esses princípios
requer fazer resistência ao meramente funcional, ao imediatamente útil, reivindicando
sensibilidade, qualidade de escuta, abertura, cuidado e disposição para acolher a voz do
outro. Uma configuração que implica concepções diferenciadas de trabalho docente e

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Documentação pedagógica em uma experiência formativa na educação infantil: um olhar para o princípio estético

formação de professores, envolvendo questionamentos: como acolher aquele que chega à


educação infantil? Em que consiste a especificidade da ação pedagógica na creche? Quais
dispositivos pedagógicos são capazes de produzir efeitos constitutivos para sustentar
relações educativas pautadas nos princípios propostos pelas DCNEIs?
No Brasil são recentes os estudos que investigam tais questões. Podem-se citar,
por exemplo, Rossetti-Ferreira (1988), Schmitt (2009) e Pandini-Simiano (2018), ao
afirmarem que as crianças bem pequenas são ativas e competentes nas relações e apontam
a socialização, as interações e as aprendizagens entre adultos e crianças como pilares que
sustentam uma “pedagogia da educação infantil”. Estes processos acontecem em todas as
atividades cotidianas, mas, por serem sutis, ainda permanecem invisíveis, despercebidos.
A fim de construir outro horizonte compreensivo, busca-se estabelecer um diálogo
com a abordagem italiana de educação para a primeira infância.4 Tal pedagogia nasceu
após a Segunda Guerra, em 1945, quando famílias italianas devastadas pelo conflito se
organizaram para construir instituições educativas a partir dos escombros da cidade. Loris
Malaguzzi (1995) foi o precursor de tal proposta educativa, e junto à comunidade se propôs
a construir uma educação especialmente dirigida às creches e pré-escolas, que tem como
proposta “oferecer uma educação com qualidade, plural, aberta ao mundo e criando nas
comunidades e nas famílias uma concepção de criança potente e de instituição educativa
como lugar de encontro e vida comum” (MELLO; BARBOSA; FARIA, 2017). Trata-se de
uma pedagogia caracterizada por uma experiência educativa pautada nas relações. No
encontro entre crianças e adultos.
Dentre as estratégias políticas e pedagógicas da pedagogia italiana, uma tem sido
imprescindível para o sucesso dessa proposta, a documentação pedagógica. Pandini-
Simiano (2015), em diálogo com os estudos da abordagem italiana para a educação
infantil e a filosofia benjaminiana, propõe pensar a documentação pedagógica como uma
peculiar narrativa tecida no encontro entre adultos e crianças. Pequenas histórias vividas,
registradas, inventadas, documentadas, narradas no cotidiano.
O presente texto aborda tais questões, ao analisar em que medida o percurso
de documentar contribui para ampliar a sensibilidade, a produção de sentidos e as
possibilidades de viver em companhia na educação infantil. As indagações e reflexões
estão pautadas em elementos de uma pesquisa de mestrado em educação, realizada em
2019, que contemplou uma instituição de educação infantil situada na região sul do
estado de Santa Catarina (LISBOA, 2019). Trata-se de uma pesquisa qualitativa (ANDRÉ,
2003), cujo enfoque privilegiado de análise é uma experiência formativa realizada a
partir de um curso de extensão5, com duração de oito meses, ofertado a um grupo de
dez professoras que atuam na educação infantil. No total, o curso foi realizado em oito
encontros, cujas temáticas estavam pautadas no processo de documentação pedagógica.
A proposta consistia em oferecer um tempo e espaço intervalares capazes de convidar ao

4- Enfatiza-se que tal abordagem não se refere a todo o contexto educativo italiano. Utilizar-se-á essa expressão para referir-se principalmente
às abordagens localizadas na região da Toscana e Emilia-Romanha.
5- O curso de extensão foi proposto a partir do Grupo de Pesquisa Educação, Infância e Gênero (GEDIG), por meio do projeto “A documentação
pedagógica no contexto de educação infantil: perspectiva para docência e formação de professores”. Tal projeto é coordenado pela profa. Dra.
Luciane Pandini-Simiano e financiado pela FAPESC.

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Luciane Pandini-SIMIANO; Anna Carla Luz LISBOA

diálogo, à construção de documentações em que as professoras pudessem narrar sobre


suas práticas educativas.
O ponto de partida foi a seguinte questão: o gesto de documentar sensibiliza as
professoras para o encontro e o viver junto na educação infantil? Os passos metodológicos
da pesquisa foram construídos entre idas e vindas, no encontro com os sujeitos. Um
caminhar orientado pelo princípio ético/estético do cuidado, do sensível e da atenção com
o outro. Ao longo do percurso a observação participante, registros escritos, fotográficos,
audiovisuais, as documentações pedagógicas produzidas pelas professoras, sobretudo, o
estar junto e com, foram instrumentos de pesquisa.
Escolher um percurso de pesquisa por meio de uma experiência formativa que tem
como via a documentação pedagógica é um caminho que não é reto, nem direto, pois “[...]
a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de
antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem
‘pré-ver’ nem ‘pré-dizer’...” (LARROSA, 2002, p. 28). Nesse sentido, compreende-se, com
Benjamin (1986), que método é desvio, outra racionalidade do fazer investigativo. Pandini-
Simiano (2018) explica que entender o método como desvio envolve um pensamento
minucioso e hesitante que sempre volta ao seu objeto por diversos caminhos. A autora
aproxima tal perspectiva do que Benjamin (1986) chama de contemplação, ou seja, uma
espécie de atenção ao mesmo tempo leve e intensa, a qual indica um sujeito que saiba
deter-se admirado, respeitoso, hesitante e talvez perdido, em que as coisas para se ver se
dão lentamente. Essa perspectiva permite tecer os fios da pesquisa com/no vivido.
A análise dos dados coletados durante a realização do curso de extensão implicou
diferentes exercícios de seleção e categorização das anotações, cenas, fotos e documentações.
Como eixo de análise destacam-se, neste texto, no percurso de documentar, o sensível, a
produção de sentido e possibilidades de viver em companhia na educação infantil.

Notas sobre princípio estético e documentação


pedagógica na educação infantil

A palavra estética apresenta uma polissemia de sentidos, do uso cotidiano à


filosofia. Diante de tal amplitude, buscar-se-á iniciar com sua origem na Grécia Antiga, e
o princípio que ainda vibra na palavra aisthesis. Segundo Duarte Júnior (2000):

Aisthesis: em grego, significa a capacidade humana de sentir o mundo, de senti-lo organizadamente,


conferindo à realidade uma ordem primordial, um sentido - há muito sentido naquilo que é
sentido por nós. Em português aisthesis, tornou-se estesia, com o mesmo significado dado pelos
gregos (sendo anestesia a sua negação, a incapacidade de sentir). E desse termo originou-se
também a palavra estética, que não deixa de guardar o sentido geral de uma capacidade de corpo
sensível sentir a si próprio e ao mundo num todo integrado. (DUARTE JÚNIOR, 2000, p. 25).

Sensação. Sensível. Sentido. O princípio de uma palavra não é apenas a origem de


seu surgimento, mas o sentido que nela permanece e lhe confere especificidade. Assim,
compreende-se que a estética tem uma profunda relação com o sentir, com a busca por

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Documentação pedagógica em uma experiência formativa na educação infantil: um olhar para o princípio estético

significados e sentidos no encontro com o sensível. Portanto, está intimamente relacionada


“[...] a um processo de empatia que coloca em relação o sujeito com as coisas e as coisas
entre si” (VECCHI, 2017, p. 28). Nessa direção, a aisthesis associa-se aos sentidos e às
qualidades de um objeto que podem ser percebidas.
Contemporaneamente é comum que a estética esteja associada com arte e beleza,
no entanto, ao se estabelecer um diálogo com os estudos benjaminianos, pensa-se esse
conceito dissociado de belo. Walter Benjamin foi um dos primeiros filósofos do século
XX a pensar e problematizar criticamente a estética tradicional, pautada no juízo do
gosto, da “harmonia das belas formas” (BENJAMIN, 2009). No Ensaio que discorre sobre
“As afinidades eletivas de Goethe”, o autor elabora uma crítica à estética tradicional do
belo, permitindo redimensionar essa concepção a partir da proposição de uma estética
sublime (BENJAMIN, 2009). É no contexto dessa estética do sublime que se pode pensar a
compreensão do inexpressável em Benjamin (MURICY, 2007).
O inexpressável (das Ausdruckslose), a princípio, remete ao que parece negar, isto é,
à expressão (der Ausdruck), termo de grande importância ao pensamento benjaminiano.
Assim, cabe destacar que a categoria do inexpressável não é uma negação da expressão, mas
uma proposta constituinte de uma certa dialética que se dá “no interior de toda estrutura
linguística onde reina o conflito entre, por um lado, o expresso e o exprimível; e, por
outro lado, entre o inexpresso e o inexpressável” (BENJAMIN, 1992, p. 52). Nesse sentido,
o inexpressável, faz parte de uma série de termos que indicam ausência, sem que tenham,
no entanto, uma conotação de conteúdo negativo (MURICY, 2007). O sentido do termo
inexpressável não se refere a uma falta de expressão enquanto fraqueza, mas a uma potência.
No campo dos estudos da estética ou no âmbito da filosofia da arte, a doutrina
do inexpressável é a condição para a crítica do belo como reconciliação da vida e da
aparência. A arte não é, para Benjamin, uma “vivificação ilusionista”, mas ao contrário
uma “petrificação, paralisação e despedaçamento crítico da beleza viva” (BENJAMIN,
2009, p. 87). O inexpressável é, assim, a destruição da áurea que envolve a bela aparência,
o elemento reflexivo que suspende a aparência.
Benjamin (1993) enfatiza sua crítica à tradição estética pautada na harmonia das
belas formas. Nas palavras do autor, “nenhuma obra de arte aparece completamente viva
sem que se torne mera aparência e cesse de ser obra de arte” (BENJAMIN, 1993, p. 123).
Contra uma estética harmônica, Benjamin invoca o poder do inexpressável que destrói
a beleza íntegra da aparência, por meio da interferência “paralisante” do inexpressável.
Nesse contexto, o inexpressável é o elemento reflexivo da obra que espera a palavra
salvadora da crítica.
Nessa perspectiva, a estética dissocia-se do conceito de belo e flerta com o
inexpressável, com o que nos causa admiração, espanto e estranheza. A beleza é entendida
como “[...] uma maneira de nos relacionarmos com o mundo. Não tem a ver com formas,
medidas, proporções, tonalidades e arranjos pretensamente ideais que definem algo como
belo” (DUARTE JÚNIOR, 1991, p. 13). Ela está relacionada à subjetividade, ao cultural, ao
contexto político, econômico e social em que os sujeitos estão inseridos.
De acordo com Hermann (2005a), ética e estética caminham juntas, promovendo
relações, conexões, sensibilidade e expressividade. Nas palavras da autora, “só dando

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chances à sensibilidade, é possível a alguém perceber que as diferenças de culturas e de


contextos da vida cotidiana modulam o princípio da igualdade e permitem reconhecer e
respeitar as diferenças” (HERMANN, 2005b, p. 70).
Assim, a estética está relacionada ao sensível, à sensibilidade e à produção de
sentidos. Compreende-se que “a produção de sentidos não se dá como uma atividade
puramente cognitiva, mas é o corpo, esse laço de nossas sensibilidades, que significa, que
interpreta”. (DUARTE JÚNIOR, 2000, p. 128). O saber sensível coloca o ser humano diante
do mundo como um ser corporal que interpreta e significa o mundo para dar sentido às
suas experiências e, consequentemente, à sua existência.
Assim como propõe a raiz grega aisthesis, em português estesia, que destaca a
capacidade que o ser humano tem de sentir a si próprio e ao mundo num todo integrado,
trata-se de pensar um corpo encarnado, que marca presença no mundo, que conecta
com as coisas ao redor, que escuta olhando, que olha escutando e cheirando, tocando
e degustando. Esse saber sensível, proporcionado pela “estesia humana, pela apreensão
sensível do mundo, revela-se como produção de sentido” (DUARTE JÚNIOR, 2000, p. 173).
A creche pode ser considerada como um dos primeiros espaços de educação coletiva
do ser humano. Um dos lugares onde as crianças vivem suas primeiras experiências com e
no mundo. Nesse sentido, Malaguzzi (2016), ao ressaltar a importância da dimensão estética
nos espaços educativos, enfatiza que a instituição precisa ser amável, habitável, alegre, que
promova a comunicação como escuta recíproca, não apenas pela fala, mas pelos sentidos,
pelo corpo, pelo movimento, pela expressão. Um lugar que alimente o apetite das crianças
para um saber, que “tem o sabor de”. Ou seja, a dimensão estética traz um sabor, fala aos
sentidos, apetece, agrada ao corpo, alimenta a existência. “[...] o prazer do sabor é, sobretudo
de se saber, de se saber o mundo e a si mesmo.” (DUARTE JÚNIOR, 2000, p. 203).
As DCNEIs (BRASIL, 2010) estabelecem que as práticas educativas para a primeira
infância precisam ser sustentadas pelos princípios éticos, políticos e estéticos:

As propostas pedagógicas de educação infantil devem respeitar os seguintes princípios:


I – Éticos: da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao bem comum, ao
meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades.
II – Políticos: dos direitos de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito à ordem
democrática.
III – Estéticos: da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da liberdade de expressão nas
diferentes manifestações artísticas e culturais. (BRASIL, 2010, p. 2).

São princípios que se complementam e expressam uma formação fundamentada na


integralidade do ser humano. Tendo como ponto de partida o princípio estético, pretende-
se tecer algumas reflexões a respeito deste com o processo de documentação pedagógica
no contexto da educação infantil.
No Brasil é consensual, entre teóricos e pesquisadores da área, a importância da
observação, registro e documentação pedagógica no contexto da educação infantil.
Contudo, embora as teorias e diretrizes legais apontem para a importância dessas práticas
no contexto educativo, as indicações não são suficientes, há dificuldades para sustentar

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Documentação pedagógica em uma experiência formativa na educação infantil: um olhar para o princípio estético

tal processo em função de práticas pedagógicas frágeis que comumente associam a


documentação à atividade burocrática, não a compreendendo como um processo que
possibilita sustentar relações educativas com crianças pequenas.
Em busca de construir um olhar mais legitimador para tais questões, estabeleceu-
se um diálogo com os estudos da abordagem italiana para a educação infantil, tendo a
documentação pedagógica como eixo central (MALAGUZZI, 2016). Contrária à ideia de
programas prévios, a sequência de trabalhos antecipadamente anunciados e estabelecidos
a definir o que, quando e como deve acontecer, a documentação pedagógica ressignifica
a didática e a pedagogia da infância à medida que propõe reinventar e flexibilizar o
processo educativo. Uma outra forma ética, estética e política de pensar as relações que
têm efeito nas formas organizativas do trabalho pedagógico (PANDINI-SIMIANO, 2015).
A documentação pedagógica insere-se em uma proposta que considera a importância
da escuta, da observação, do registro, da interpretação (MALAGUZZI, 2016). Para a
pedagogia italiana, o gesto de olhar e de escutar estão intimamente associados. Trata-se,
portanto, de uma “metáfora para a abertura e a sensibilidade de ouvir e ser ouvido”
(RINALDI, 2017, p. 124). Essa escuta sensível está intimamente conectada ao princípio
estético. Exercitar um olhar sensível é colocar-se disponível a escutar com o corpo e todos
os seus sentidos. Nas palavras de Rinaldi (2017), trata-se de valorar uma escuta:

[...] que é realizada não com os ouvidos, mas por meio de todos os sentidos; em um tempo que
não é linear mas cheio de silêncios e pausas; uma escuta aberta às diferenças; que reconheça o
valor de outros pontos de vista; que não produza respostas, mas que formule questões, convoque
a interpretações; que não é fácil de ser realizada, mas é a premissa para qualquer relação de
aprendizagem. (RINALDI, 2017, p. 52).

A escuta como princípio da documentação pedagógica pode ser compreendida


como a sensibilidade à conexão com o outro. No processo de documentar, além de ouvir,
é necessário registrar. Registrar é materializar o vivido. Na pedagogia italiana os registros
são diários e podem ser realizados de muitas formas, conforme Gandini e Goldhaber (2002):

Podemos fazer anotações rápidas que posteriormente reescrevemos de maneira extensa, gravar
em fitas cassetes as vozes e palavras das crianças ao interagirem entre si ou conosco. Também
podemos tirar fotografias ou slides, ou até mesmo gravar fitas de vídeo que mostrem as crianças
e os professores em atividades. (GANDINI; GOLDHABER, 2002, p. 150).

Nessa diversidade de formas não há um instrumento de registro certo ou errado,


melhor ou pior. Tudo depende do que se deseja registrar. Pandini-Simiano (2015, p. 61)
ressalta que “todo instrumento amplia e, ao mesmo tempo, limita o observado. Cada um
deles acrescenta algo, ou deixa algo de fora”. Assim, cabe enfatizar que fazer um bom
registro não significa captar maior número de informações e objetos possíveis. Trata-se de
selecionar aquilo que faz sentido.
Os registros – produzidos tanto pelas crianças quanto pelos professores – são
elementos fundantes da documentação pedagógica. No entanto, tal processo se constitui

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Luciane Pandini-SIMIANO; Anna Carla Luz LISBOA

muito além de uma simples coletânea de registros. Fundamental enfatizar essa diferença,
considerando que se a documentação pedagógica não pode ser resumida a registros, é
necessário incorporar que a ideia sistemática dos registros é um dos pilares centrais desse
processo (MALAGUZZI, 2016; RINALDI, 2017).
Após registrar é essencial interpretar, selecionar o que faz sentido. É preciso ler
novamente os registros escritos, sejam eles pequenas anotações ou textos, ver as imagens
capturadas por fotografias, selecionar, organizar, transcrever áudios, eleger cenas dos
vídeos. Os registros são revisitados e interpretados em companhia de outros colegas
professores. O olhar, a escuta, a observação e os registros são carregados da subjetividade
de quem os realiza. No compartilhamento e no diálogo há uma exposição às subjetividades
dos outros, o que acarreta a revisão, a reafirmação ou não, novas possibilidades, outras
perspectivas frente ao que se havia identificado anteriormente. Em companhia o olhar
se expande, “o gesto de compartilhar estabelece conexões, cria hipóteses, amplia as
significações, auxiliando o professor nesse sutil e delicado processo” (PANDINI-SIMIANO,
2015, p. 62). Essa interpretação em companhia permite encontrar o outro e, juntos, refletir
sobre o processo vivido.
Após os registros serem refletidos e interpretados, é preciso narrar. Com rigor
teórico e delicadeza poética, Malaguzzi (2016) elege a narrativa como forma privilegiada
de contar como as crianças aprendem e se relacionam com o mundo. A documentação
é uma narrativa aberta que ajuda adultos e crianças a encontrarem significados naquilo
que fazem, não apenas um único sentido, mas várias possibilidades dele. Para Malaguzzi
(2016, p. 71) “significados nunca são estáticos, unívocos ou finais; eles sempre geram
outros significados”.
Pensar a narrativa em contextos de educação infantil permite vislumbrar o laço a unir
crianças e adultos em uma rede de significantes comuns. Pandini-Simiano (2015), em diálogo
com a pedagogia italiana e Walter Benjamin, propõe a documentação pedagógica como uma
peculiar narrativa tecida no encontro entre adultos e crianças. Nas palavras da autora:

A documentação pedagógica se constitui em um entre visível e invisível, entre a voz e o silêncio.


No gesto de observar, registrar, interpretar e narrar o professor pode ser um narrador. Atento ao
mundo reconhece, valoriza e colhe preciosidades, as quais se não forem narradas, correm o risco
de se perderem. (PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 13).

Nesse sentido, partiu-se em busca de conhecer um pouco mais sobre o gesto de


documentar, as documentações, as narrativas tecidas pelos professores e suas possibilidades
para pensar o princípio estético: da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da
liberdade de expressão nas relações tecidas entre crianças e adultos no cotidiano educativo.

No percurso de documentar: o sensível, a produção de sentido


e possibilidades de viver em companhia na educação infantil

Ao longo do percurso desta pesquisa, as professoras tiveram o desafio de construir


uma documentação pedagógica do contexto educativo. O gesto de documentar

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Documentação pedagógica em uma experiência formativa na educação infantil: um olhar para o princípio estético

levou as professoras a despertarem a sensibilidade estética, a se conectarem com


o que estava lhes acontecendo nos momentos dos encontros formativos e com as
crianças no cotidiano educativo. Um percurso constituído em um ir e vir, um procurar
e achar, em meio a olhares, escutas, diálogos, hipóteses, inseguranças, dúvidas e
compartilhamentos.
A escolha da forma e conteúdo das documentações se dá no “entre”, no encontro
com as crianças e adultos no contexto educativo. Neste diálogo, no contexto da pesquisa,
emergiram as mais diversas formas e conteúdos de documentação pedagógica. Um tecido
narrativo construído, urdido no ato de documentar. No texto em tela, apresentar-se-á um
painel como forma de narrar.
O painel, tão comum em instituições de educação infantil, é um importante tipo de
documentação pelo seu apelo visual. Em suas qualidades estéticas, o painel alimenta, com
cores, imagens, texturas e formas, o olhar daquele que o contempla. Nesse sentido, tais
documentações que compõem os espaços educativos são repertórios visuais e estéticos que
ampliam ou restringem experiências sensíveis e, portanto, estéticas, de adultos e crianças
que fazem parte da instituição educativa.
O painel, a ser apresentado como fragmento de análise na presente pesquisa,
é tecido por relações: vida tramada e compartilhada em narrativas visuais. Assim
constitui-se a documentação pedagógica da professora Mariane.6 Ela comumente
levava seu grupo de crianças de 2 a 3 anos para brincar ao ar livre entre as árvores,
gramados, flores, som dos pássaros e luz do sol. Tinha por hábito observar as crianças
brincarem. Contudo, ao longo do percurso da pesquisa, ampliou sua forma de olhar.
Ateve-se mais aos detalhes, apreciou com mais atenção os momentos. E foi assim que
se sensibilizou para a riqueza que envolvia o brincar das crianças com fragmentos da
natureza. Folhas, galhos, sementes, terra... “A criança encanta-se pelas materialidades
e sua capacidade de se relacionar com elas. [...] No encontro com o mundo a criança
parece plasmar-se com as coisas” (PANDINI-SIMIANO, 2018, p. 12). Elas sentem-se
atraídas pelas coisas e estabelecem com elas relações novas através das brincadeiras.
Em sua narrativa, a professora conta:

Houve uma situação que foi muito marcante pra mim: duas crianças brincando embaixo de
uma árvore e lá tinham várias sementinhas e um me chamou: - ‘Professora, o amigo não tá
conseguindo abrir a sementinha!’ - ‘Mas precisa abrir?’ perguntei. - ‘Precisa!’ - ‘Mas por quê?’
- ‘Porque tem uma surpresa muito legal dentro da semente!’ Então eu fui lá e abri. Gente! Mas
não é que a semente tem um desenho dentro. Mas isso me encantou tanto! E aí eu parei e passei
a observar. A gente, enquanto adulta, não para pra olhar a semente, a beleza dessa semente.
[sic]. (Professora Mariane, narrativa em 20/09/2018).

6- Foram utilizados nomes fictícios para garantir a confidencialidade dos nomes reais, de acordo com o termo de consentimento, obedecendo
aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica, assim como o mesmo princípio se aplica para a divulgação de imagens de
pessoas e/ou de instituições.

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Luciane Pandini-SIMIANO; Anna Carla Luz LISBOA

Figura 1 – Registro fotográfico da professora Mariane7

Fonte: Acervo da autora, 2019.

A promoção de espaços abertos para o acesso das crianças à natureza e a


multiplicidade de experiências e brincadeiras que lá acontecem contribuem para a
possibilidade de um bem-viver coletivo. Brincar, para a criança, é o modo de ser e estar no
mundo. Possibilidade de sentir e interagir com o outro, com o mundo e consigo mesmo.
A professora, ao possibilitar o espaço e o tempo para as experiências das crianças com
folhas secas, gravetos e sementes, demonstra compreender e valorizar que o corpo, sua
humanidade e cultura, seu sentir e pensar estão profundamente integrados com a natureza.
Possibilitar o acesso a diferentes materialidades permite às crianças experiência estética,
que é, também, uma experiência de possibilidades de escolha (OSTETTO, 2011), além de
permitir a si mesma tempo e espaço para observar e ser tocada pelo que lhe passava.
Abertura ao olhar sensível interrompe, faz pausa, paralisa: “Gente! A semente
tem um desenho dentro! Aquilo me encantou tanto. Aí eu parei e passei a observar!”.
Admiração, espanto, estranheza. O inexpressável, uma imobilização que interrompe, um
poder que paralisa (BENJAMIN, 1992). A possibilidade de fazer pausa, de se colocar ao
lado das crianças com o gesto de uma escuta sensível possibilita fazer resistência às
ações pedagógicas que não reconhecem a beleza dos detalhes e dos processos lúdicos do
pensar: “A gente, enquanto adulta, não para de repente pra olhar a semente, a beleza dessa
semente”. As crianças modificam a lógica, valoram objetos que, aos olhos dos adultos,
podem não tem valor algum. Olhar invertido, outros pesos e medidas… Tal como aponta
a criança em Benjamin (1986):

7- Para a realização da pesquisa e autorização do uso de imagem das crianças, obedecendo aos procedimentos éticos estabelecidos para a
pesquisa científica, encaminhou-se o Termo de Consentimento à direção da instituição educativa e aos familiares das crianças. Além da autorização
formal dos adultos responsáveis pelas crianças, buscou-se garantir, junto às professoras, que as imagens produzidas por elas ao longo do processo
de documentar passassem pelo assentimento das crianças.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 48, e246869, 2022. 10


Documentação pedagógica em uma experiência formativa na educação infantil: um olhar para o princípio estético

As crianças se sentem irresistivelmente atraídas pelos destroços que surgem da construção, do


trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nestes restos que
sobram elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e só para
elas. (BENJAMIN, 1986, p. 77).

Valorizar o que é desvalorizado. Sementes abandonadas, aparentemente dejetos,


podem se tornar poesia… Por meio da ocupação e das relações que estabelecem entre si,
crianças e adultos compartilham saberes e sentidos. No gesto de a professora reconhecer
e valorizar não somente o funcional, o imediatamente útil, ampliam-se as possibilidades
de viver experiências no mundo, afirmando a educação das crianças como uma ação
simultaneamente ética e estética. Trata-se de uma busca cotidiana que reivindica uma vida
mais inventiva, apaixonada, alegre, poética e inteligente, fundada em valores coletivos
mais sensíveis.
A professora, em sua narrativa, ainda relata que as crianças brincavam de abrir as
sementes para descobrir qual a “surpresa” que tinha em cada uma, com grande curiosidade.8
A partir desse momento, desvelaram-se para a professora as muitas outras possibilidades
de brincadeira que as crianças construíam com restos da natureza.
Voar com asas de folhas secas. Espadas e varinhas mágicas de galhos secos. Coleções
de pedras preciosas. Outras brincadeiras que foram capturadas pela lente da câmera,
compondo um acervo de registros fotográficos. Não simples fotos das crianças, pois:

Quando você tira uma fotografia ou faz um documento, na realidade, você não documenta a
criança, mas seu conhecimento, seu conceito, sua ideia. Assim, eles se tornam cada vez mais
visíveis - os seus limites e a sua visão da criança. Você não mostra a criança, mas o relacionamento
e a qualidade do seu relacionamento, e a qualidade do seu olhar sobre ela. (RINALDI, 2017, p. 345).

Fotografias que registram brincadeiras na “praça”, nome que davam ao pátio


arborizado. Observação e registro caminham juntos, e há o momento para interpretar o
que as imagens dizem, o que os olhos percebem, o que a escuta apreende. A professora
selecionou as que mais exprimiam o que ela queria contar: como elas se relacionavam na
hora da brincadeira com a natureza e com essa diversidade de materialidades.
No decorrer da pesquisa, nos momentos ao redor da mesa, em que se compartilhavam
impressões, pensamentos e reflexões, sempre focando no que a professora queria contar,
além das imagens, foram exploradas várias frases e palavras que se integravam às fotos
e imprimiam maior valor significativo, expressivo e comunicativo à documentação.
Resultou, assim, no painel como forma para materializar o que a professora narrava das
experiências das crianças e de suas próprias nos momentos de brincar junto à natureza.
Dessa forma, surge a documentação: Surpresa! O que tem na natureza?

8- “A curiosidade aqui compreendida como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou
não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta, faz parte integrante do fenômeno vital” (FREIRE, 2011b, p. 33).

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Luciane Pandini-SIMIANO; Anna Carla Luz LISBOA

Figura 2 – Documentação por painel: Surpresa! O que tem na natureza?

Fonte: Acervo da autora, 2019.

Na documentação acima produzida pela professora, pode-se observar, nas suas


escolhas, a relação entre forma e conteúdo: o painel revela traços significativos para a
problemática em questão, para compreender o acolhimento da alteridade e a construção
de um saber pelas vias da estética. A documentação narra um saber-fazer pedagógico que
se produz numa relação particular com o outro onde sua ação é condição para a prática
educativa. Mas o que o painel conta, sem o dizer, é o percurso de um outro conhecimento,
de uma outra racionalidade, que se faz pela afetação da alteridade, pelo desconhecido,
pelo encontro com a estética.
“Surpresa! O que tem na natureza?” Enigma, desconhecido, oculto. O percurso
de aprender na educação infantil exige ser assumido em sua dimensão de incerteza e
imprevisibilidade. Para Benjamin (2009), fazer justiça à estética é conservar-lhe o mistério,
“a ideia de revelação do mistério converte-se em impossibilidade de revelá-lo” (BENJAMIN,
2009, p. 75), e ainda, para o autor, é no âmbito da singularidade que o sublime encontra
sua definição. Nesse sentido, cabe destacar na narrativa da professora: “Em cada espaço,
um convite. Experimente andar, convoque seus sentidos e desfrute das surpresas que a
natureza lhe reserva. Permita-se!”

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Documentação pedagógica em uma experiência formativa na educação infantil: um olhar para o princípio estético

Descobertas, admiração, maravilhamento, surpresas... “Achadouros de infância”


levam a encontrar os meninos e meninas que se foi um dia. A ação de levar as crianças
na praça, que antes era vista como rotineira, passa a ser interpretada como possibilidade
de construção de uma narrativa. A professora Mariane, ao narrar e materializar as
experiências e descobertas das crianças na natureza, elaborou outro sentido e significado.
“A narrativa é convite ao pensamento, à construção de significados, à elaboração de
sentido” (BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 122).
O compartilhamento da documentação Surpresa! O que tem na natureza? vai ao
encontro da dimensão estética. Manifesta-se pela qualidade da escuta, pela abertura e
sensibilidade de conectar-se ao outro e ouvi-lo, com o compromisso e disposição de
acolher sua voz com todos os sentidos. Acolher as especificidades das crianças e assumir
outra postura diante desses outros que interpelam, e documentar, levam, de acordo com
Rinaldi (2017, p. 237), “a entender e a mudar a sua identidade como educador, pode ser
um convite à reflexão dos seus valores”.
Ao longo da experiência formativa com as professoras, por meio do compartilhamento
de suas falas, escritos, imagens fotográficas e audiovisuais, foi possível perceber que, ao
compartilhar, elas refletiam o seu fazer e, ao mesmo tempo, identificavam-se com os
registros das colegas, e davam outros significados para o que viam e faziam. O ato de
documentar o vivido com as crianças acolheu o inesperado, o imprevisível, valorizando o
dia a dia no encontro com o outro. E assim:

Maior sensibilidade; menor anestesia perante a profusão de maravilhas que este mundo nos
permite usufruir e saborear. Uma vida mais plena, prazerosa e sabedora de suas capacidades e
deveres face a consciência de nossa interligação com os outros e as demais espécies do planeta.
(DUARTE JÚNIOR, 2000, p. 186).

No processo de documentar, o compartilhar dos registros, os diálogos, as trocas


entre seus pares, além de ampliar os olhares por um processo de interpretação e reflexão,
permitem que as professoras se sintam valorizadas, suas vozes escutadas e seus trabalhos
visibilizados: “Se compreendemos o olhar sensível como aquele endereçado à conexão
com a subjetividade do outro, ampliamos o potencial de exercê-lo e de enxergar caminhos
para tal” (FREITAS, 2016, p. 10). É o que se pode evidenciar nas seguintes falas:

Então, tudo ficou assim, bem claro pra mim, assim: bem claro, não. Claro que eu tenho muita
coisa pra aprender ainda, né?! Mas, assim, a nossa missão que vocês propuseram foi de uma forma
simples, assim. [emocionada] Eu amei cada momento, pra preparar a Documentação Pedagógica!
Assim, foi bem prazeroso, sabe? Me senti bem realizada! Porque ali eu estava mostrando o meu
trabalho, a interação das crianças. Assim, eu pude olhar as crianças com mais atenção, com
mais... como que eu vou dizer: outro olhar. Mais olhar. É que me foge as palavras. Um olhar
sensível, mais de perto, mais detalhado. Foi muito gratificante [sic]. (Professora Lara, narrativa
em 29/11/2018).

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Luciane Pandini-SIMIANO; Anna Carla Luz LISBOA

Eu só queria ressaltar, além de tudo o que já foi dito, a Documentação pra mim ficou muito assim,
nosso olhar para aquilo. Porque, talvez, algo que acontece na sala da Mariane, eu ia olhar com
outro olhar, não ia dar tanta importância, né?! Então, é o nosso olhar para aquilo que acontece,
mas também e como o olhar do outro enriquece! Porque a gente compartilhando e aí, quando
eu já estava montando o vídeo, a Lu falava alguma coisa: ‘Ah, mas isso aqui?’ E aí te faz pensar,
te faz olhar para aquilo de novo. Então, isso foi algo bem bacana que eu achei [sic]. (Professora
Fabiana, narrativa em 29/11/2018).

No percurso de documentar, as professoras se referiam muito ao olhar, ao desvelar


daquilo que já faziam, já haviam visto, mas que não legitimavam como algo inerente
à prática educativa na educação infantil. Um olhar para si e para o outro. Como diz
Madalena Freire Weffort:

Ver e ouvir demanda implicação, entrega ao outro. Estar aberto para vê-lo e/ou ouvi-lo como é,
no que diz, partindo de suas hipóteses, do seu pensar. É buscar a sintonia com o ritmo do outro,
do grupo, adequando em harmonia ao nosso. Para tanto também necessitamos estar concentrados
com nosso ritmo interno. A ação de olhar e escutar é um sair de si para ver o outro e a realidade
segundo seus próprios pontos de vista, segundo sua história. (WEFFORT, 1996, p. 1).

Desde o momento do convite às professoras para o desafio de lançar um olhar


sensível para o cotidiano, elas o incorporaram de tal forma que já não conseguiam olhar
sem ele, como destacado nos registros escritos no último encontro:

A temática foi um processo construído a cada encontro, de como ‘olhar’, esse olhar diferente para
o que nos acontece diariamente. [...] para que eu possa olhar para as crianças com outro olhar...
(Professora Sandra, narrativa em 29/11/2018).

O processo de documentar me possibilitou ampliar o olhar para a importância do registro em sala


e as diferentes maneiras de olhar para as crianças... (Professora Fabiana, narrativa em 29/11/2018).

Quando tirado esse ‘véu’, é possível ver minuciosamente cada gesto, cada olhar que faz toda
diferença naquela cena. (Professora Mariane, narrativa em 29/11/2018).

O princípio estético compreendido como o encontro com o sensível, o envolvimento


com o que está diante e ao redor de si pelo canal da sensibilidade, conectando com
as coisas, o reconhecimento e o relacionamento com o outro, de mãos dadas com a
ética, possibilita inferir, neste estudo, que o percurso de documentar é impregnado pela
estética. O gesto de documentar, sustentado pela experiência estética, possibilita ampliar
a sensibilidade, produzir sentidos, encontrar o outro e viver em companhia no espaço
educativo. Cada um com sua singularidade, mas construindo um todo coletivo9, cada qual
com suas diferenças.

9- “O trabalho coletivo não se decreta, ele é construído. E para ser construído depende do desejo e das atitudes de seus componentes”
(OSTETTO, 2006, p. 25).

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Documentação pedagógica em uma experiência formativa na educação infantil: um olhar para o princípio estético

Para essa prática educativa, o tempo também é um fator essencial. Quando as


professoras dispõem de tempo para se escutarem, para compartilharem, para saírem
do piloto automático acionado pela rotina, elas vivem o maravilhamento, a alegria das
descobertas, pela “boniteza”.

Ora, restabelecer a nossa capacidade de nos maravilharmos com o mundo, de nos sentirmos vivos
num cotidiano que não seja feito de agendas lotadas e níveis de produtividade, de perceber nossa
integração sensível com a realidade ao derredor, de entender que o conhecimento não é dado
apenas por fórmulas matemáticas e reflexões lógico-conceituais, [...]. Educar os nossos sentidos
para que eles nos permitam mais e mais saborear as sutilezas do mundo creio ser o primeiro passo
para uma vida mais feliz e autocentrada. A competição desenfreada (rumo ao nada) nos impede
de ter prazer com o fato de estarmos vivos, e esse prazer é, em sua essência, estético. (DUARTE
JÚNIOR, 2012, p. 365).

Paulo Freire (2011) aponta para a importância da ética ao lado da estética, em que
decência e boniteza devem sempre andar de mãos dadas. A estética, o encontro com o
sensível, amplia relações com o outro, está de mãos dadas com a ética.

Afinal, a experiência estética que conduz à singularidade, pressupõe a existência do outro e da


alteridade como relação complementar. Nem o singular é compreendido sem o outro, nem o
outro pode ser concebido sem o singular, pois ambos remetem-se reciprocamente. Na medida
em que a experiência estética tem condições privilegiadas para trazer a diferença, o singular e o
estranho, ela abre possibilidades para um julgamento moral mais afinado com a historicidade e
a contingência. (HERMANN, 2005b, p. 45).

O alargamento de fronteiras e a possibilidade de afetação pelo outro são


oportunizados pela experiência estética, já que ela opera justamente com o descentramento
do eu, sem apagar a presença do que permanece inominável no encontro com o outro. As
professoras participantes desta pesquisa, no gesto de documentar, além de potencializarem
a sensibilidade, de perceberem sentido em cada fragmento, de preocuparem-se com as
singularidades no coletivo, também se sentiram tocadas, sensibilizadas, marcadas pela
experiência vivida:

Foram encontros muito valiosos, que contribuíram para desenvolver experiências significativas,
simples para mim, mas grandiosas para os pequenos. (Professora Lara, narrativa em 29/11/2018).

O percurso formativo foi a oportunidade para parar alguns instantes e observar o que nos cerca
e enxergar uma infinidade de vivências. (Professora Mariáh, narrativa em 29/11/2018).

Nossos encontros nesse curso de extensão foram momentos únicos, tornou tudo mais
significativo, onde uma simples cena torna-se um espetáculo! [...]. Quando tirado o véu é possível
ver minuciosamente cada gesto, cada olhar, que fazem toda a diferença. (Professora Mariane,
narrativa em 29/11/2018).

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Luciane Pandini-SIMIANO; Anna Carla Luz LISBOA

Durante todo o processo ficou claro o prazer que as professoras tiveram em poder
mostrar para o outro o próprio trabalho e o seu valor. Um desejo muitas vezes despercebido,
mas que, quando vem à tona, possibilita uma satisfação em reconhecer que há algo que
vai admirar, maravilhar, que vai ressoar no outro. Concorda-se com Duarte Júnior (1984,
p. 72), quando diz que “as opiniões emitidas por aqueles que me são significantes têm
maior força para edificar e manter a minha identidade e a das coisas (e é claro, têm
também maior força para alterar essas identidades)”.

Como foi gratificante ver meu trabalho e/ou minha ‘ação pedagógica’ sendo observada por
outros olhares, e que olhares! (Professora Mary, narrativa em 29/11/2018).
Ficou a emoção dos relatos, o encantamento pelos diferentes trabalhos das turmas. [...]. Tive a
certeza que não estava só. (Professora Júlia, narrativa em 29/11/2018).

Foi gostoso ouvir minhas colegas e me reconhecer, muitas vezes em seu ‘olhar’. (Professora
Mariáh, narrativa em 29/11/2018).

Alguém olhou pro meu trabalho! [sic]. (Professora Mary, narrativa em 29/11/2018).

Eu compartilhava, eu falava minhas dúvidas, minhas inquietações. E no ouvir as colegas as cenas


e, aquilo vai fazendo mais sentido, cada vez mais sentido. Então, abre o nosso leque, né? [sic]
(Professora Mariane, narrativa em 29/11/2018).

Destaca-se também que em muitos momentos o corpo “falava” do cansaço de um dia


inteiro de trabalho (70 % das professoras trabalhavam 40 horas). Faltava-lhes vivacidade
física. As professoras de educação infantil trabalham muito com o corpo, pois, como já
visto, ele faz parte do todo integral do humano, e todas as sensações lhe chegam primeiro.
É com ele que a professora interage no espaço, no tempo e nas relações, principalmente
com as crianças.

[...] corpo enquanto uma complexa organização que integra, em si, tudo aquilo que nossa
linguagem separou ao longo dos tempos, como matéria e espírito, corpo e mente, sensação
e pensamento, razão e sentimento, etc. Somos, na verdade, um emaranhado de processos
altamente organizados e interdependentes que manifestam maneiras próprias de sabedoria e
de conhecimento em todos os níveis, desde a ordem das substâncias bioquímicas que carregam
informações genéticas, nos cromossomas, até os mais específicos raciocínios de uma dada
modalidade científica ou filosófica. Cada porção ou estrato de nosso organismo exibe sua forma
peculiar de conhecimento, articulada a esse todo corporal que nos define enquanto existência.
(DUARTE JÚNIOR, 2000, p. 139).

Outro ponto a se considerar é a rotina no dia a dia dos espaços educativos que
contribui para a exigência deste corpo, e que muitas vezes não é respeitado em seu ritmo
próprio em virtude da grande quantidade de normas e funções que a professora tem
que “dar conta”, como retrata o seguinte registro: “Os encontros me ajudaram a ter um

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Documentação pedagógica em uma experiência formativa na educação infantil: um olhar para o princípio estético

olhar diferente diante dos dias (tardes) corridos. Dando muito mais valor a cada gesto e
movimento da criança.” (Professora Júlia, narrativa 29/11/2018).
No início do percurso, algumas professoras verbalizaram preocupações com este “dar
conta” que tanto assombra as professoras de educação infantil. Sentiram-se encorajadas
em iniciar pela garantia de que não estariam sozinhas neste processo, que as pesquisadoras
as acolheriam e a coordenação pedagógica da instituição educativa as apoiaria, bem como
poderiam desistir a qualquer tempo, afastando um pouco o fantasma do “ter que dar
conta”, ainda mais por ser o segundo semestre, período em que as exigências de relatórios
e portfólio se acentuam, tendo em vista a proximidade do encerramento do ano letivo.
No meio e no final do percurso de formação com as professoras, as falas e os
olhares expressavam as alegrias das descobertas, os assombros de olhar a mesma situação,
o mesmo fato como se fossem novos e a confiança no processo em que a trajetória do
percurso foi sendo construída passo a passo de acordo com o grupo.
Nesta pesquisa, procurou-se tematizar a documentação pedagógica, sendo que o ato
de documentar amplia e diversifica os pontos de vista, permite a interpretação e possibilita
a construção de narrativas, ou seja, faz sentir, pensar e narrar sobre as experiências. Permite
vislumbrar a dimensão estética que apresenta um novo modo de ser e estar no mundo pela
via do sensível, que é ético no respeito e convivência com a alteridade, na transparência da
prática educativa e da instituição educacional, além de político, por chamar a comunidade,
a sociedade, para participar e se comprometer com o processo educativo.
A experiência formativa tecida no processo de documentar se constitui em um
entre o visível e o invisível, estranhamento e o acolhimento, a voz e o silêncio. Pela via
da estética vislumbra-se a possibilidade da acolhida da alteridade no contexto de uma
prática educativa. Trata-se de uma aposta no processo de documentação pedagógica como
um dispositivo de reinvenção das possibilidades de ser e estar, e viver em companhia em
contextos educativos.

Considerações finais

No presente texto, relatou-se uma experiência formativa, a partir de um curso


de extensão, que foi tecida pelo percurso de documentar na educação infantil. Foram
apresentados fragmentos e breves passagens, que se aposta serem significativos para compor
outras narrativas sobre ser professor, ser criança, estar em instituições de educação infantil.
A formação continuada de professores é um dos principais problemas a serem
enfrentados na educação infantil. Oportunizar tempo e espaço para que os professores
possam falar de suas experiências no cotidiano educativo ainda é um desafio. Quais os
espaços e tempos destinados para a formação continuada de professores de educação
infantil? Como ocupar tal função de ler e narrar as experiências do cotidiano? É possível
compor narrativas atentas às singularidades, à coletividade, à experiência?
A educação infantil, a partir do diálogo com as diretrizes, implica a construção
de percursos formativos capazes de reconhecer, acolher e valorizar a reinvenção dos
processos de educar. Trata-se, assim, de um movimento que evoca a necessidade de
construir dispositivos que permitam maior compreensão acerca da complexidade dos

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Luciane Pandini-SIMIANO; Anna Carla Luz LISBOA

processos sociais, subjetivos e educacionais implicados no cotidiano das instituições de


educação infantil.
Ao longo da experiência formativa, pela via da documentação pedagógica, o professor
é convidado a narrar e inscrever sua própria experiência. Esse percurso de natureza poética,
errante e capaz de estranhamento e acolhimento, possibilitou às professoras ampliarem a
sensibilidade, ofertarem um sentido à sua prática educativa, narrarem as suas relações no
espaço educativo. Deslocamentos importantes que possibilitam a produção de sentidos e
o gesto de viver em companhia na educação infantil.

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Madalena Freire. Observação, registro e reflexão: instrumentos metodológicos I. 2. ed. São Paulo:
Espaço Pedagógico, 1996. p. 54-63.

Recebido em: 21.12.2020


Revisado em: 09.02.2021
Aprovado em: 02.08.2021

Luciane Pandini-Simiano é doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande


do Sul (UFRGS). Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).

Anna Carla Luz Lisboa é mestre em educação pela Universidade do Sul de Santa Catarina
(UNISUL). Atualmente é supervisora escolar na Rede Municipal de Educação de Florianópolis.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 48, e246869, 2022. 20

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