Filosofas Analiticas Brasileiras
Filosofas Analiticas Brasileiras
Filosofas Analiticas Brasileiras
Contemporâneas
EduardaCaladoBarbosa
RodrigoLastraCid
(Organizadores)
FILÓSOFAS ANALÍTICAS CONTEMPORÂNEAS
Série Dissertatio Filosofia
Pelotas, 2022.
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Os direitos autorais estão de acordo com a Política Editorial do NEPFil online. As revisões
ortográficas e gramaticais foram realizadas pelos autores e organizadores.
Introdução 09
9
particularmente), a partir de uma reconstrução da visão advogada por Jonathan
Schaffer. A seguir, temos, primeiramente, Raquel Krempel, que nos brinda um
ensaio crítico opondo as visões de Jerry Fodor e John Searle acerca da teoria
computacional da mente e, em segundo lugar, um capítulo voltado para a estética
analítica, por Rosi Morokawa, no qual a autora explora o conceito de Rich Content
para tratar do clássico problema do especialista na filosofia da arte. Finalmente,
temos o trabalho de Daniela Soares, em filosofia da matemática, que busca fazer
justiça ao platonismo matemático de Balaguer, indicando que algumas objeções à
sua posição, propostas por Greg Reskall, são debatíveis.
No segundo bloco, temos o capítulo de Fernanda Cardoso & Nara
Figueiredo, que nos transporta a uma interpretação enativista de dicotomias
clássicas envolvendo o problema do gênero, como mente/corpo, natureza/cultura.
No texto que se segue, de Beatriz Marques, encontramos uma análise das
dificuldades enfrentadas pelas Teorias da Causação do Agente para explicar a
influência de fatores sociais, como os esquemas de gênero, sobre a ação
intencional. Concluímos o segundo bloco com uma apresentação das motivações
para uma epistemologia feminista negra, de Jeane Silva. Nele, a autora passa em
cheque a tradição da epistemologia formal e alguns de seus conceitos-chave,
como o de objetividade.
A escolha das categorias supramencionadas pretende abranger
discussões realizadas por mulheres, sejam provocações e análises sobre como a
tradição analítica pode lidar com a questão do gênero, sejam pesquisas sem
qualquer foco explícito no tema. A ideia é colocar a questão do gênero não apenas
sob escrutínio teórico, mas como um aspecto da práxis filosófica a ser ressaltado.
Caro à nossa proposta é também o desejo otimista de combater – ainda que
pontualmente – o problema mais geral da desproporção entre homens e mulheres
na filosofia, ao evidenciar algumas das mulheres por trás dos avanços da analítica
em nosso país, contribuindo, desse modo, para cristalizar seu compromisso de
permanência e seu lugar na comunidade.
Organizadores
10
Das Filosofias da Causalidade: Considerações
Introdutórias para as Ciências Médicas
Renata Arruda
Introdução
O conceito de causalidade se qualifica como uma das ferramentas teóricas centrais
para a análise das práticas das ciências na forma como elas se propõem a
compreender e descrever os fenômenos naturais. A investigação acerca de tal
conceito reclama sua importância especialmente nas ciências da saúde, nas quais
as incertezas que lhes são intrínsecas permitem a exploração de um grande leque
de interpretações causais acerca dos seus eventos objetos de estudo. No presente
capítulo, examino as abordagens filosóficas da causalidade com mais potencial de
contribuição para a análise das relações causais nas ciências da saúde, com o
objetivo tanto de proporcionar uma melhor avaliação de suas práticas desde uma
perspectiva filosófica, quanto com o de orientar os pesquisadores das ciências
médicas na compreensão dos fundamentos destas. O presente texto se apresenta
numa posição conceitualmente inicial, como uma etapa prévia necessária para o
desenvolvimento e aprofundamento das discussões mais avançadas nas diferentes
perspectivas da causalidade nas ciências da saúde, se propondo, portanto, como
uma sinalização que aponte para os caminhos possíveis a serem percorridos pela
pesquisadora em formação1.
A pergunta pela causa das coisas nos acompanha em todas as esferas da
nossa experiência humana, das mais corriqueiras às mais complexas.
Perguntamo-nos acerca da causa das coisas simples e das mais insondáveis. Essas
1
As ideias aqui discutidas formam uma base introdutória importante para um
aprofundamento no tema da causalidade nas ciências da saúde que ofereço em outras
obras. Em Arruda (2009), me dedico à análise da abordagem humeana e na conexão
causalidade-indução. Em Arruda (2021a) apresento como o desenvolvimento das noções de
condições necessárias e suficientes levam ao estabelecimento de um modelo multicausal
formulado inicialmente para a epidemiologia. Já em Arruda (2021b) mostro como a noção de
manipulabilidade se habilita ao processo de definição de uma causa nas ciências médicas,
superando um dos problemas apontados no modelo multicausal mencionado anteriormente.
perguntas refletem uma busca pela razão de ser das coisas – Por que o céu é azul?
–, pelo sentido da nossa existência – Por que tenho que terminar esse capítulo? –,
ou ainda uma busca pelo conhecimento de processos – Como surgiu o universo? Ao
longo da história, os mitos, as religiões e as ciências supriram nossa sanha de
conhecer as causas por meio de explicações e demonstrações. Dentre as respostas
à pergunta acerca das causas, as geralmente mais bem sucedidas e as que têm
maior aceitabilidade são aquelas que oferecem um meio de se testá-las. Se é
possível evitar – ou provocar – a ocorrência de um acontecimento pela supressão –
ou inserção – de uma suposta causa, esta pode deixar de ser apenas “suposta”
quando os testes apontam de fato para sua influência na relação entre os dois
eventos. Esses testes são recursos aos quais se apelam igualmente nos mitos, nas
religiões e na ciência. Nos dois primeiros, os rituais, com suas oferendas ou
sacrifícios, são exercidos com o intuito de pedir (ou impedir) que um determinado
evento ocorra. Os rituais científicos também têm seu lugar no que consideramos a
busca racional pelo conhecimento: o principal traço diferenciador entre os testes
causais da ciência e os testes da mitologia e das religiões é o de que, na ciência, a
metodologia empregada no teste da relação causal é essencialmente caracterizada
pelo rigor no controle das interferências paralelas à suposta relação causal.
A expansão do conhecimento, dos ofícios, das ciências e das tecnologias
trazem outros desafios para a compreensão da causalidade. No âmbito das ciências
médicas, as principais questões causais que se levantam dizem respeito às origens
das doenças e como eliminá-las. A atividade médica se caracteriza
fundamentalmente por atuar sobre as diferentes causas das doenças por diferentes
tipos de intervenções, sejam estas cirúrgicas, preventivas, medicamentosas. Mas
afinal, quais são as causas de uma doença? Como identificar essas causas? Essa
última questão é a que melhor define a orientação da discussão do tema da
causalidade nesse trabalho. Pautarei a abordagem da relação de causa e efeito
guiada pelo interesse, expresso de forma ainda relativamente genérica nesse
capítulo, de justificar a metodologia de identificação de uma relação causal, a partir
da manipulação da causa, nas ciências médicas, pressupondo que a intervenção
sobre as causas das doenças é, então, o modo prático pelo qual a medicina se
relaciona com a causalidade.
Começo perpassando as inescapáveis conclusões de Hume (2004), o
importante filósofo da causalidade, que buscava justificar causa e efeito no contexto
do empirismo a partir do pressuposto de que todo conhecimento deriva dos sentidos,
12
e ressaltando sua importância absoluta para a discussão da causalidade mesmo na
atualidade. Uma de suas principais conclusões é a de que a causalidade é uma
maneira pela qual relacionamos as ideias acerca da nossa experiência, e não é uma
propriedade da própria realidade. A reação a esse subjetivismo veio na forma de um
realismo a respeito da causalidade, entendida como uma propriedade da realidade e
independente da nossa mente. Como consequência das minhas críticas às suas
conclusões subjetivistas, saio em defesa da adoção de uma perspectiva realista
acerca da causalidade devido à importância fundamental da análise desse tema no
âmbito de atividades absolutamente práticas como as performadas pelas ciências da
saúde.
Passo a seguir aos temas filosóficos que mais importam para as teorias que
dialogam com a causalidade: as condições necessárias e suficientes, e a
probabilidade. As condições necessárias e suficientes formam os pilares das teorias
do filósofo Mackie (1965, 1980), do médico Rothman (1976) e de Rothman e
Greenland (2005) acerca da causalidade. Na seção seguinte, destaco a explicação
das mencionadas condições em termos vero-funcionais, como na tabela de verdade
da lógica clássica, e sua interpretação na análise da relação de causa e efeito.
Apresento, a seguir, como o emprego da ideia de probabilidade, expressa em termos
de frequência ou de tendência, se reflete na análise filosófica da causalidade. Nessa
abordagem, uma causa pode ser definida como aquilo cuja ocorrência aumenta a
probabilidade da ocorrência do efeito. Contudo, um dos problemas enfrentados pelas
teorias probabilistas é justamente o de justificar como a causa ocorre antes do efeito,
já que essa definição geral descreve uma relação simétrica entre ambos, no sentido
de que tanto a ocorrência da causa quanto a ocorrência do efeito aumentam a
probabilidade da ocorrência um do outro. Price (1991), por exemplo, propõe como
critério de determinação da direção da causalidade a possibilidade que um indivíduo
tem de exercer uma manipulação. Também mostrarei uma limitação básica da
análise probabilística da causalidade, que consiste no fato de que descobrir uma
associação probabilística entre tipos de ocorrências não significa descobrir uma
relação propriamente causal. Ou, ainda, não aponta o porquê de essa relação ser
causal.
13
1. A causalidade de Hume
David Hume marcou profundamente a discussão a respeito da causalidade. Um dos
seus principais objetivos foi o de compreender as condições nas quais se assentam
as justificativas para a relação de causa e efeito em consonância com os supostos
do empirismo, no qual sua obra se insere – ou, mais especificamente, no
sensualismo (sensationalism), corrente segundo a qual todo nosso conhecimento se
justifica como resposta às sensações que percebemos (AGASSI, 1976, p. 5). Nesse
contexto, Hume identifica as bases para a construção do conhecimento humano com
as próprias capacidades do ser humano em produzir esse conhecimento a partir de
suas percepções (HUME, 2004, p. 27. Seç. 1.122). Todos seus esforços se voltam
para a identificação do modo como as ideias são formadas em nosso intelecto e se
essas ideias possuem uma justificação racional, isto é, se em alguma medida elas
podem ser baseadas nas inferências dedutivas.
Para Hume, as informações com as quais a mente lida se resultam das
nossas impressões, que dão origem às nossas ideias ou pensamentos, que, por sua
vez, se relacionam mediante certos princípios que os conectam. Esses princípios
são as relações de semelhança, contiguidade e causa e efeito, e se aplicam na
análise das relações entre ideias e questões de fato (HUME, 2004, p. 53. Seç. 4.1).
As relações entre ideias são aquelas que se caracterizam pelo raciocínio analítico,
que propiciam conclusões necessárias em virtude de seu caráter tautológico, e que
não dependem de qualquer recurso aos objetos concretos para serem
demonstradas. As questões de fato, por sua vez, formam ideias que devem sua
origem a impressões externas, recolhidas pelos cinco sentidos, ou a impressões
internas, que percebem, por exemplo, nossos sentimentos e o comando da nossa
vontade sobre nosso corpo (HUME, 2004, p. 34. Seç. 2.3).
Se as relações entre ideias são tautológicas, as questões de fato, por outro
lado, dependem da consulta ao mundo empírico para serem provadas verdadeiras.
Por exemplo, a afirmação de que o sol nascerá amanhã não pode, segundo Hume,
ser considerada verdadeira por nenhuma prova demonstrativa, e sua verdade é
resultado de uma consulta aos fatos empíricos (HUME, 2004, p. 54. Seç. 4.2). Ainda
2
Incluo na referência a seção e o parágrafo aos quais se referem à citação, os quais
constam nas diversas impressões das Investigações acerca do Entendimento Humano.
14
que o sol não venha a nascer amanhã, nossa expectativa de que nasça pauta toda
nossa relação com o mundo externo. Se não é uma verdade lógica, por que
esperamos que o sol vá nascer amanhã? Porque, segundo Hume, pressupomos
uma relação de causa e efeito entre eventos (HUME, 2004, p. 54. Seç. 4.4).
Causa e efeito se aplicam, na teoria de Hume, entre as propriedades de
coisas, objetos concretos, de acontecimentos ou eventos. Nos exemplos do autor, a
dor é causada por um ferimento; o calor é causado pela chama; o ato de lançar
madeira ao fogo causa o aumento das chamas. (HUME, 2004, p. 42, 79, 88. Seç.
3.3; 5.8, 5.20). Todas essas relações formam a ideia de causa e efeito em nossa
mente somente na medida em que esses eventos tenham sido efetivamente
experimentados.
Uma vez definida que a ideia de relação causal surge da associação entre
objetos e eventos, Hume passa à investigação acerca dos fundamentos dessa ideia.
A experiência, isto é, a vivência ou conhecimento prévio acerca dessa associação, é,
afinal, o que faz com que passemos a supor que exista uma relação de causa e
efeito entre dois objetos ou eventos singulares.
Segundo Hume, não há qualquer necessidade lógica entre causa e efeito porque
podemos inferir efeitos contraditórios entre si de qualquer evento que suponhamos
ser causa de um outro, ainda que ambos os efeitos, cada um a sua vez, sejam
compatíveis com a suposta causa. O julgamento acerca da relação de causa e efeito
não pode ser feito antes de qualquer experiência com as questões de fato, e esse
julgamento é resultado, portanto, das nossas impressões.
A busca da origem de nossas ideias em nossas impressões deve constituir
o método de aceitação dos enunciados relativos ao mundo empírico e uma maneira
de evitar, segundo o filósofo, ambiguidades na argumentação (HUME, 2004, p. 95,
15
96. Seç. 7.1,2). De acordo com Hume, não há nenhuma conexão necessária nos
próprios objetos e eventos, pois se houvesse, seríamos capazes de percebê-la antes
da experiência efetiva com uma relação causal. Como podemos perceber a
causalidade entre eventos somente depois de vivenciarmos sua ocorrência, Hume
afirma que a ideia de conexão necessária não pode se originar sem uma experiência
repetida, e defende, por fim, que essa ideia só pode surgir da nossa crença ou
expectativa de que um efeito sempre se seguirá a uma causa. Essa crença – uma
das nossas impressões sobre o mundo – surge da repetição constante entre os fatos
que vemos sempre associados um ao outro (HUME, 2004, p. 113, 114. Seç. 7.28).
A conclusão de Hume de que não há uma conexão necessária entre os
eventos tal como se encontram decorre não só da impossibilidade de constatar com
nossos sentidos essa conexão nos objetos, como também da impossibilidade de
constatar, por meio da dedução, tal conexão. Esta última impossibilidade caracteriza
o chamado problema lógico da indução, que pode ser definido como o problema de
não ser dedutivamente válido o raciocínio que parte de casos atuais e passados
para casos futuros ou desconhecidos (ARRUDA, 2009, p. 89).
O problema da causalidade, tal como formulado por Hume, compartilha dos
mesmos pressupostos que o problema da indução, especialmente associado a
Hume, ainda que, como nota Vickers (2016, p. 6), surpreendentemente, a palavra
“indução” não apareça em nenhuma das obras de Hume. Tanto o problema da
causalidade quanto o problema da indução se referem à ausência de justificativas
válidas para se extrapolar a informação acerca da relação entre eventos conhecidos
para os não-conhecidos, ou para os quais não se tem experiência, sejam eles
passados ou futuros. Ambos os problemas se referem, portanto, à dificuldade da
definição de justificativas para a relação entre eventos. Afirmar que uma relação é
causal implica não somente afirmar a existência de uma relação de causa e efeito
entre dois fatores como também a generalização dessa relação, isto é, a afirmação
da validade dessa relação para todas suas ocorrências. Nesse sentido, o problema
da causalidade se caracteriza como uma instância do problema da indução; a saber,
como a dificuldade de se justificar a generalização e a extrapolação, de alguma
propriedade; nesse caso, de relações causais.
O problema lógico da indução deu origem a diversas hipóteses
investigativas, sendo a de Karl Popper uma das mais importantes na história da
filosofia. Popper se dedicou a contornar a parte lógica do problema de Hume por
meio do seu método hipotético-dedutivo, que permitia o recurso a enunciados sobre
16
eventos particulares para a falsificação de enunciados gerais, já que enunciados
particulares não podiam confirmá-los validamente (POPPER, 1979). Pela
formalização lógica com o uso do modus tollens, Popper garantiu um papel, uma
função dedutivamente válida para a lógica na construção do conhecimento sobre as
questões de fato. Contudo, a lógica continua sendo insuficiente no terreno das
propostas positivas acerca das justificativas para a nossas persistentes crenças de
que um evento particular voltará a se repetir, e que, dada essa repetição,
consideramos um deles a causa e outro o efeito. A despeito da ausência de
justificativa lógica para a noção de causalidade, a mesma resiste em nossa relação
com o mundo, e não podemos simplesmente nos furtar a pensar sobre esse conceito
tão íntimo e familiar para além das suas características lógicas3. Por tal motivo
apresento, nas seções a seguir, alguns dos enfoques mais relevantes do tratamento
positivo do tema da causalidade.
2. O realismo causal
As principais reações às incertezas lançadas por Hume se caracterizam
pela defesa da realidade ontológica da causalidade. Sua argumentação, baseada na
ideia de que o conhecimento se deriva das nossas percepções, leva a conclusões
subjetivistas acerca do status da realidade causal4, já que a causalidade, na
narrativa de Hume, configura-se como resultado do modo como interpretamos as
associações entre objetos e eventos. Ao localizar a causalidade em nossa mente
pelo recurso da busca da origem de uma ideia a partir de algum tipo de impressão, a
teoria de Hume abre margem para conclusões subjetivistas, que constituem o foco
3
Nelson Goodman (1983, p. 64) questiona a alardeada supremacia da lógica dedutiva
afirmando que a lógica indutiva também pode estabelecer suas regras de validade a partir
das nossas práticas indutivas, tal como ocorre na lógica dedutiva. Nossas práticas indutivas
repousam, para o autor, em nosso hábito – tal como o emprega Hume – de associar certos
predicados entre si. Assim como na dedução, também na indução as regras adquirem
validade por meio de suas práticas inferenciais e podem se autojustificar, não como um
círculo vicioso, mas, antes, como um círculo “virtuoso”. Em Arruda (2009) exploro melhor
certos aspectos dessa relação.
4
Entretanto, alguns autores fazem uma leitura realista das ideias de Hume. Uma análise
geral acerca dessa perspectiva é descrita por Costa (1989).
17
de questionamento do realismo causal. Para essa corrente, a causalidade,
contrariamente ao ceticismo epistemológico defendido por Hume, não se resulta
puramente das ideias que temos acerca do mundo, mas existe como uma
propriedade do mundo mesmo. Contrariando diretamente uma das afirmações de
Hume, J. L. Mackie defende que a causalidade “é uma característica muito geral ou
um conjunto de características acerca do modo como o mundo funciona: não é
meramente, como diz Hume, para nós, mas é também, de fato, o cimento do
universo” (MACKIE, 1980, p. 2. Itálicos do autor).
As principais teses defendidas pelo realismo causal apontam para que a
causalidade ocorra independentemente da atividade da mente, da existência de
seres humanos ou da construção de conceitos (WEBER, 2008, p. 59), e que pode
ser entendida de modo tão real quanto o são as relações espaciais e temporais
(MENZIES, 2009, p. 307). Não se supõe, é importante ressaltar, que a atribuição de
uma mera regularidade entre a ocorrência de eventos possa substituir legitimamente
o conceito de causalidade, mesmo que seja também útil para a realização de
predições, o que vale para as descrições probabilísticas da realidade
(CHAKRAVARTTY, 2005, p. 8, 9). A independência da causalidade em relação aos
conceitos de regularidade e probabilidade significa que tanto uma quanto a outra
podem ser caracterizadas, antes, como maneiras de se descrever a manifestação da
causalidade no mundo, e que aquelas podem ser interpretadas, portanto, como
sintomas da causalidade, e não o contrário, ou seja, não a causalidade como uma
consequência puramente conceitual da correlação entre eventos ou estados de
coisas.
Desde a perspectiva de Price (2001, p. 6-8), as posições defendidas tanto
pelo realismo causal quanto pelo antirrealismo demonstram, no fundo, uma
preocupação com a objetividade da ciência. Vejamos como se justifica seu
raciocínio. Para os realistas, afirma Price, o antirrealismo representa uma postura de
certa forma afrontosa para com a ciência, na medida em que questiona a
objetividade de sua empreitada. Contudo, o filósofo defende que a preocupação com
a objetividade da ciência não é privilégio exclusivo dos realistas. Vale lembrar as
boas intenções de Hume com suas próprias palavras:
18
exemplo, façamos a pergunta: Contém ele qualquer
raciocínio abstrato referente a números e
quantidades? Não. Contém ele qualquer raciocínio
experimental referente a questões de fato e de
existência? Não. Às chamas com ele, então, pois não
pode conter senão sofismas e ilusão. (HUME, 2004, p.
222. Seç. 12.34. Itálicos do autor).
5
Cartwright (1979, 2007) e Woodward (2003, 2013) são os filósofos que mais se destacam
na defesa dessa perspectiva realista da manipulabilidade, cujas obras são de fundamental
importância para a proposta que defendo em Arruda (2021b) da manipulabilidade como
método para o diagnóstico de causas na medicina.
19
"fisicamente" lá fora, e não ser apenas uma
característica de nossos pensamentos ou percepções,
e (ii) a relação entre a causa e o efeito seja uma
relação necessária. Também é comumente aceito que
o realismo causal é a visão segundo a qual a causa e
o efeito estão ligados por um mecanismo causal. É em
virtude desse mecanismo que temos o direito de dizer
que C é uma causa necessária ou suficiente do efeito
E, ou que se C não tivesse ocorrido, E também não
teria ocorrido, ou que, se C causa E, então a
probabilidade condicional de E dado C seria maior que
a probabilidade incondicional de E6. (RUSSO, 2009, p.
12. Itálicos meu).
Essa definição faz alusão a importantes enfoques por meio dos quais a filosofia
discute o tema da causalidade: as condições necessárias e suficientes, e a
probabilidade7. Veremos a seguir cada uma dessas posições com uma
contextualização geral desses conceitos.
6
Tradução minha.
7
Diferentemente do que afirma Russo na passagem acima, esses enfoques, que compõem o
trabalho de alguns autores cujas teorias serão analisadas aqui, não estão necessariamente
atrelados ao conceito de mecanismo causal.
20
presente, a verdade da afirmação da qual ela depende não se decorre – o que não
quer dizer que a necessidade que caracteriza essa condição interdite outras
condições igualmente necessárias. Por sua vez, uma condição é suficiente quando
por si só garante a verdade de uma afirmação, sem depender de qualquer outra
condição adicional. Isso não significa, entretanto, que a verdade da afirmação que se
decorre da condição suficiente dependa exclusivamente desta, pois outras
condições podem ser igualmente suficientes para garantir a verdade daquela
afirmação.
A descrição das condições necessárias e suficientes é predominantemente
associada ao condicional material da lógica clássica, representado pelos símbolos
→ ou ⊃. A leitura mais comum do condicional é em termos de “Se ... então ...”. Por
exemplo, no condicional “P → Q”, P é o antecedente e Q o consequente, e o mesmo
pode ser lido, portanto, como “Se P então Q”. Na chamada teoria standard do
condicional, conforme explica Brennan (2012, p. 3), se pressupõem as funções de
verdade da lógica clássica, segundo as quais para que a verdade do condicional
(isto é, da fórmula como um todo) ocorra, a verdade do antecedente é suficiente
para a verdade do consequente, e a verdade do consequente, por sua vez, é
necessária para a verdade do antecedente.
Tais relações são devidamente expressas na tabela de verdade:
P → Q
1ª V V V
2ª V F F
3ª F V V
4ª F V F
Tabela 1
21
verdade do condicional. Por outro lado, podemos definir as circunstâncias em que se
manifestam a necessidade ou a suficiência de P em relação a Q, e vice-versa, como
veremos a seguir.
O condicional é verdadeiro em três linhas da tabela de verdade, e, assim,
nos deteremos nos casos em que certas relações se cumprem para a garantia da
verdade da fórmula como um todo, o que exclui a 2ª linha da análise que se segue.
Então, partindo impreterivelmente da pressuposição da verdade do condicional na
interpretação do antecedente P como suficiente, a verdade de P é suficiente para a
verdade do consequente Q na 1ª linha da tabela de verdade, e apenas nela. Isto é,
basta somente a verdade do antecedente P para que o consequente Q também seja
verdadeiro. A validade dessa interpretação se reflete, por exemplo, na forma de
raciocínio modus ponens: dado que é verdade que, se chove, então a rua está
molhada, se soubermos de forma independente que chove, então podemos inferir
validamente que a rua está molhada. Para ilustrar esse ponto com um exemplo da
área médica8 consideremos que, da verdade de que menstruações abundantes
causem anemia, associada ao fato de que determinada mulher padece de
menstruações abundantes, podemos inferir que ela também padece de anemia.
Na 3ª e 4ª linha é ressaltada uma das faces da suficiência do antecedente:
ele pode ser falso, e ainda assim todo o condicional ser verdadeiro; por exemplo,
porque outra condição suficiente ocorre. Na 3ª linha verifica-se o caráter não
exclusivo da suficiência de um enunciado como garantia da verdade de outro
enunciado. Ainda pressupondo a verdade do condicional na interpretação de P como
suficiente, vemos que P é falso e mesmo assim o consequente é verdadeiro, porque,
por exemplo, outra condição suficiente ocorre quando da afirmação de Q, garantindo
por essa outra via a verdade de Q. Considerando que é verdade que, se chove,
então a rua está molhada, e se soubermos de forma independente que não chove,
ainda podemos inferir validamente que a rua está molhada, dado que pode ter
havido um vazamento na rede de distribuição de água.
E na 4ª linha, por fim, se representa que é verdadeiro que a falsidade do
antecedente é suficiente para a falsidade do consequente somente na medida em
que P é a única condição suficiente para a verdade de Q; se P não se dá e Q
tampouco, podemos inferir que a relação entre ambos continua mantida. Continua
sendo um fato que, por exemplo, uma alteração cromossomática seja suficiente para
8
Trato de exemplos médicos desde a perspectiva das relações necessárias e suficientes
com mais detalhe em Arruda (2021b).
22
a manifestação da síndrome de Klinefelter, condição genética em que homens
possuem uma cópia extra do cromossomo X, ainda que ambos os fatores não se
façam presentes em um indivíduo.
Analisemos agora a interpretação da condição necessária. Na 1ª linha da
tabela, a verdade do consequente Q é necessária para a verdade do antecedente P.
Por outro lado, como podemos observar na 3ª linha, Q é verdadeiro enquanto que P
é falso. Essa é uma perspectiva por meio da qual podemos entender como o
consequente é considerado necessário, ou seja, como apenas uma das condições
sem a qual o antecedente não é verdadeiro: ainda que Q seja verdadeiro, deve
haver alguma outra condição para a verdade de P que não se mostrou verdadeira.
Como na 1ª linha da tabela o antecedente é verdadeiro quando o consequente
também o é, podemos supor que, neste caso, todas as condições para que P seja
verdadeiro se cumprem, e dentre elas a de que Q também seja verdadeiro.
Finalmente, a leitura da condição necessária como a de que o consequente é uma
condição sem a qual o antecedente não pode ser verdadeiro pode ser verificada na
4ª linha da tabela, onde tanto P quanto Q são falsos, ratificando a própria
interpretação do consequente como condição sine qua non para a verdade do
condicional. A par da interpretação acima, aqui também podemos traçar um paralelo
com a forma de raciocínio modus tollens, já que, ao supormos a verdade de um
condicional na presença da falsidade de seu consequente, podemos inferir
validamente a falsidade de seu antecedente. Por exemplo, mesmo que um indivíduo
seja portador da alteração genética que impede a metabolização do aminoácido
fenilalanina, se não ocorre a ingestão da própria fenilalanina, a doença fenilcetonúria
também não se manifesta. Assim se verifica o fato de que se o consequente for falso
o antecedente também será falso.
A interpretação da causalidade em termos de condições necessárias e
suficientes pressupõe todas as características acima mencionadas. Afirmar que uma
causa é necessária para o efeito não implica que ela, dada sua ocorrência, deva
produzir o efeito impreterivelmente, visto que outras condições necessárias também
podem ser requeridas para completar o conjunto causal que dá origem ao efeito. O
fato de que um indivíduo possua um defeito na codificação da enzima fenilalanina
hidroxilase é uma das condições para a doença fenilcetonúria; no entanto, a doença
não se manifesta somente em função dessa alteração genética, pois também se faz
necessária a ingestão de alimentos ricos em fenilalanina, como carnes vermelhas.
Por outro lado, afirmar que uma determinada causa é suficiente não significa que um
23
determinado efeito tenha se derivado exatamente dessa causa, já que outros fatores
podem ser igualmente suficientes para a produção do efeito. O fato de que uma
mulher que tenha se submetido a uma histerectomia (portanto, não sendo possível
mais menstruar) ainda padeça de anemia se justifica pela possibilidade de que outra
condição seja determinante para tal enfermidade como, por exemplo, a de que ela
sofra uma grave deficiência alimentar de ferro. Por fim, a representação visual do
condicional por meio de uma seta (→) e a nomenclatura “antecedente” e
“consequente” (que aludem a uma relação de antes e depois), parecem sugerir que
o antecedente do condicional material seja temporalmente anterior ao consequente.
Ao se caracterizar uma relação causal nos termos do condicional material, uma
condição suficiente se colocaria como causalmente anterior à condição necessária.
Essa perspectiva, contudo, não contempla algumas interpretações da relação de
causalidade, porque uma condição necessária, mesmo sendo representada pelo
consequente, deve ser, acima de tudo, uma condição prévia da, ou concomitante à
ocorrência do antecedente.
4. Probabilidade e causalidade
A noção de probabilidade é onipresente em nossa linguagem cotidiana, e se
manifesta de diversas maneiras. Os usos mais predominantes desse conceito são os
dos termos “possível”, “provável” e “chance”. A medicina, em geral, e em particular, a
epidemiologia, são âmbitos em que esses termos abundam. Sabemos há anos que
fumar aumenta as chances de se desenvolver, no mínimo, câncer de pulmão. E mais
recentemente também viemos a saber que o consumo frequente de carne vermelha
processada aumenta as chances de se desenvolver câncer de cólon. Esse tipo de
associação entre hábitos e doenças reflete a ideia, objeto de estudo das teorias da
causalidade probabilística, de que uma causa aumenta a probabilidade da
ocorrência de seus efeitos. Mais precisamente, que a causalidade é caracterizada
como um padrão de dependência probabilística entre causa e efeito (WILLIAMSON,
2009, p. 185).
24
De modo geral, são identificados três usos nos quais a ideia de
probabilidade se aplica: o de frequência relativa, o de tendência, e o de certeza9.
Quando se afirma, por exemplo, que é mais provável a ocorrência de mortes em
acidentes de carro em velocidade acima de 120 km/h podemos verificar esses três
usos: primeiro, que a frequência de acidentes que ocorrem acima dessa velocidade
é maior do que a frequência com que ocorrem acidentes abaixo dessa velocidade;
segundo, que acidentes acima dessa velocidade tem uma maior tendência a
causarem mortes do que abaixo dessa velocidade; e terceiro, que a pessoa que
afirma tal relação entre alta velocidade e maior número de mortes tem alguma
certeza dessa informação (ROTHMAN et al. 2008, p. 10).
Ao se tratar de uma proporção de casos em relação a um grupo
determinado de indivíduos, a frequência representa uma medida que pode variar de
0 até 1. Contudo, o resultado para o indivíduo, ao assumir certos hábitos, é 0, se não
ocorre, ou 1, se o resultado ocorre (ROTHMAN et al., 2008, p. 10). O indivíduo,
portanto, não possui uma “frequência” de desenvolver uma doença. A frequência de
risco em uma população pode ser usada como uma ferramenta de avaliação do caso
individual quando interpretada em termos de comparação de perfis de risco; dessa
maneira, as medidas de frequência atual servem para a realização de projeções ou
estimativas a respeito da frequência de eventos futuros.
No caso individual, a probabilidade passa a ser interpretada em termos de
tendência ou propensão (ILLARI E RUSSO, 2014, p. 83). Por exemplo, para se
saber quais são os riscos que corre um homem do campo, de 60 anos, fumante há
40, branco, de desenvolver um câncer de pulmão, é necessário recorrer a pesquisas
que tenham avaliado a proporção de pessoas com a mesma faixa etária, que
tenham fumado o mesmo tipo de cigarro durante o mesmo período de tempo, que
sejam da mesma etnia etc. Nesse exemplo, se nota o caráter retrospectivo da
probabilidade enquanto frequência, pois esta resulta de um relato de casos já
ocorridos, coletados e especificados. Por outro lado, a tendência ou propensão da
ocorrência de um evento também pode ser avaliada sem qualquer referencial de
situação anterior com a qual se comparar, como quando, por exemplo, estimamos a
9
O grau de certeza representado pela probabilidade é também avaliado pelo bayesianismo,
que permite calcular a estimativa subjetiva da confiança de um indivíduo ou de uma
comunidade de indivíduos na associação entre eventos. Como essa análise implicaria
desdobramentos consideráveis no presente texto, esse tema não será discutido aqui.
25
possibilidade de que uma bola de bilhar acerte um buraco a partir de uma certa
posição das bolas, do jogador, da força empregada na tacada etc.
Em suma, a caracterização da relação causal em termos de probabilidade é
fruto de uma estimativa de que um efeito venha a ocorrer em virtude da ocorrência
da causa, significando a possibilidade de que o resultado da relação entre uma
suposta causa e efeito seja, ou como o previsto (ou estimado), ou como o observado
em um certo número de ocorrências prévias. A interpretação probabilística da
causalidade tem um papel central e também uma importante função heurística em
vários âmbitos das ciências, sem a qual diversas decisões práticas não poderiam ser
tomadas.
A definição da causalidade probabilista se destaca pelo avanço que
representou diante da concepção humeana de causalidade. De acordo com Álvarez
(1998, p. 522), a teoria desenvolvida por Hume foi importante para se desvincular a
causalidade da ideia de conexão necessária e de concepções metafísicas tais como
a de poderes causais; contudo, faltava ainda explicitar o caráter irregular da
associação entre causas e efeitos, já que essa associação não é exatamente
constante. Adicionalmente, a concepção de conjunção constante entre eventos de
Hume abre espaço para a atribuição inadequada de causalidade a eventos
constantemente relacionados que são, na verdade, efeitos comuns de uma mesma
causa; as chamadas correlações espúrias. O exemplo, mais uma vez, é o da
associação entre o aumento da coluna de mercúrio do barômetro e a ocorrência da
chuva. A alteração no barômetro, da mesma forma que a ocorrência da chuva,
resulta da mudança na pressão atmosférica. A chamada fórmula standard da
causalidade probabilística permite retratar essa correlação irregular, ao estabelecer a
condição mais flexível de que uma causa deve apenas aumentar a possibilidade da
ocorrência do efeito. Como mostra Hitchcock (2016, p. 10), a fórmula standard para
a causalidade em termos probabilísticos define que uma relação é causal quando a
probabilidade do efeito dada a ocorrência da causa é maior do que a probabilidade
do efeito dado que a causa não tenha ocorrido. Formalmente:
“(PR) C é uma causa de E apenas no caso de que P (E | C) > P (E | ¬C)”10.
(HITCHCOCK, 2016, p. 10)
Contudo, um grave problema se deriva da ideia de causalidade
probabilística em termos de sua definição standard. Conforme estabelece essa
10
Tradução minha.
26
formulação, não só a ocorrência da causa aumenta a probabilidade da ocorrência do
efeito como a ocorrência do efeito também aumenta a probabilidade da ocorrência
da causa, pois essa definição expressa uma relação simétrica. Uma forma
interessante de explicar a simetria dessa relação é apresentada por Álvarez (1998):
11
Tradução minha.
12
Álvarez (1998) apresenta uma exposição detalhada sobre outros problemas decorrentes da
definição de Suppes.
27
conceito de causa genuína, que é a própria causa prima facie que não é, ao mesmo
tempo, espúria. A respeito dessa causa, Suppes afirma:
Ao definir a causa genuína por meio da causa prima facie, Suppes estabelece a
condição de que a ocorrência da causa deve ser anterior ao efeito, com o intuito de
eliminar o problema da simetria causal na noção geral de causa probabilística, isto é,
o problema de que a ocorrência tanto da causa quanto do efeito aumenta a
probabilidade uma da outra.
A estipulação ad hoc da direção do tempo nas teorias da causalidade é um
tema bastante controverso. Price (1991), por exemplo, propõe superar essa
dificuldade por meio de sua teoria da agência. Para Price, a possibilidade de
manipulação da causa permite a determinação da direção do tempo em uma relação
causal, o que evita a mera estipulação do postulado de que a causa é aquilo que
antecede o efeito, como o faz Suppes.
5. Considerações Finais
A pergunta pelas causas das coisas geralmente aponta para a questão
sobre o modo como elas são trazidas à existência, ou como elas podem ser
evitadas. Em resposta às perguntas pelas causas, afirmar que a influência de certos
fatores é necessária para que uma causa dê lugar a seus efeitos indica, ao mesmo
tempo, dois pontos: a existência de interferências externas e a indispensabilidade da
ocorrência dessas interferências. Em essência, essa resposta se resume à definição
das condições em que uma causa é trazida à tona. A definição de causa por meio da
determinação de suas condições – sejam elas necessárias e/ou suficientes – é uma
13
Tradução minha.
28
das maneiras pelas quais a filosofia tradicionalmente responde à pergunta: o que é a
causa?
As diferentes indagações a respeito da relação de causa e efeito ganham
uma dimensão de complexidade muito maior pelo fato de que ambos os conceitos se
revelam em uma multiplicidade de manifestações. A conceitualização em torno da
ideia de multicausalidade, como a desenvolvida por John Stuart Mill (1882), em
especial, culminou na fórmula INUS desenvolvida pelo filósofo Mackie e adaptada
pelo epidemiologista Rothman, que sintetiza todas as condições envolvidas na ideia
de causa. Mackie (1965, 1980) e Rothman (1976) se dedicaram a analisar a relação
de causa e efeito partindo da ideia de que essa não é habitualmente uma
associação exclusiva entre dois únicos fatores. Não se pode reduzir aquilo que se
chama de “efeito” como fruto de um outro fator considerado isoladamente,
individualmente, como uma “causa”. Os contextos que dão origem a um efeito
possuem um caráter complexo, um verdadeiro emaranhado de conexões que levam
à sua ocorrência. Assim, podemos falar em diferentes conjuntos de causas,
alternativos entre si, em que cada um reúne as condições necessárias para produzir
um efeito. A análise desses autores, que abordo com bastante detalhe em Arruda
(2021a), consiste em revelar que por trás da escolha de “uma” causa está todo o
conjunto de eventos que interagem para a produção do efeito: cada elemento desse
conjunto é necessário, ou seja, indispensável, para a ocorrência do efeito. Por um
lado, uma causa isolada não é suficiente, mas é necessária para que o conjunto seja
completado. Por outro lado, o conjunto causal não é necessário, mas é suficiente
para produzir o efeito. O epidemiologista Rothman adota a perspectiva de Mackie
em seu modelo de causa suficiente-componente para a avaliação das causas nas
ciências médicas, e compartilha com o filósofo a preocupação com a definição de
causa em um sentido mais específico: quando nos referimos à causa de um evento,
o que deveria estar pressuposto? Em Arruda (2021b), expressando uma perspectiva
que apenas paira sobre esse capítulo, defendo que a manipulação humana é o que
desempenha o papel central da escolha de uma, dentre todas as causas envolvidas,
a serem levadas em conta no âmbito das ciências da saúde, permitindo sua
utilização para fins práticos, uma vez que a causa adquire esse status de relevância
justamente porque ela facilita a explicação, a promoção ou a prevenção de certos
estados de saúde.
Ainda que a pressuposição dos conceitos de causa e efeito seja necessária
para que se constitua uma relação causal, é importante reconhecer que eles são
29
entidades distintas, portanto, passíveis de serem analisadas em sua singularidade.
Mas nesse trabalho foco minha análise mais pontualmente nas questões
relacionadas às causas do que nas questões relacionadas aos efeitos. No caso da
probabilidade, sua interpretação em termos de frequência está associada à
quantidade de vezes em que um evento ocorre, como por exemplo a incidência de
câncer de pulmão em fumantes. O emprego da noção de frequência também permite
uma comparação entre dados de diferentes eventos, como entre acidentes de carro
que ocorrem com a velocidade acima de 120 km/h e os que ocorrem abaixo desse
limite. Com ela são elaboradas as estatísticas da ocorrência desses fatos, e a partir
disso se obtém uma referência com a qual orientar uma população sobre os riscos14
de determinados hábitos, no sentido de apresentar qual é a proporção dos
praticantes desses hábitos que desenvolvem certas doenças.
As críticas à probabilidade como recurso para a definição de causalidade se
dirigem, em geral, à sua deficiência quanto ao seu poder explicativo. Como afirma
Williamson (2009, p. 199), as teorias probabilísticas da causalidade são adequadas
para oferecer o que ele chama de uso inferencial, isto é, fornecem ferramentas que
permitem a realização de projeções e o desenvolvimento de estratégias para a
identificação de problemas que podem vir a ser evitados pela intervenção sobre a
causa. Por outro lado, o poder explicativo de uma teoria está associado à sua
capacidade de apontar o porquê da ocorrência de eventos. No entanto, a dificuldade
que aqui persiste consiste em se explicar por que dois eventos são frequentemente
conectados, e não simplesmente que eles estejam conectados. Assim, uma teoria
explicativa deveria apontar para o porquê da causa estar associada
probabilisticamente ao efeito, e não simplesmente poder afirmar que existe essa
dependência.
Por outro lado, para Suppes (1970), a probabilidade se caracteriza como
uma forma de suprir as falhas em nosso conhecimento a respeito da abundância de
causas que influenciam a ocorrência de eventos. O filósofo contrasta essa
característica com a perspectiva da física clássica segundo a qual a explicitação de
todas as forças operantes em um sistema deve ser especificada, diferentemente,
portanto, do nosso conhecimento acerca das causas em geral, que não são
passíveis de um exame nesse nível de detalhe (SUPPES, 1970, p. 8). A análise
14
Desde a perspectiva da epidemiologia, a definição de risco é “probabilidade de um evento
durante um período específico de tempo” (ROTHMAN et al., 2008, p. 10).
30
probabilística contribui, dessa forma, para a sistematização do conhecimento acerca
apenas daquelas causas às quais temos acesso.
Dentre os diversos enfoques oferecidos pela filosofia para o sentido do
conceito de causalidade são de especial importância o modo como as condições se
relacionam entre si e o modo como a possibilidade de que eventos ocorram deve ser
interpretada, questões que nascem no seio do próprio surgimento da filosofia e que
perduram, não sem diversos ganhos conceituais. Essa breve análise da causalidade,
iniciada a partir de Hume e revisitada pelas interpretações em termos de condições
necessárias e suficientes, e da probabilidade, se propôs como um ponto de partida
para as diferentes perspectivas acerca das relações de causa e efeito nas ciências
médicas, apresentando as coordenadas iniciais de um belo e rico terreno, cuja
exploração espera-se ter sido devidamente estimulada.
Referências
31
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32
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26/03/2022.
33
Parcimônia Ontológica e Economia Teórica
Luisa Luze Brum Genuncio
Introdução1
A Navalha foi por longos séculos o melhor instrumento pelo qual se medir a
parcimônia de uma teoria, e se tal teoria era melhor do que outras teorias
concorrentes. Guilherme de Ockham foi um importante filósofo do fim da idade média
ligado à escola nominalista2. O seu interesse no nominalismo é apontado como o
ponto de partida para o desenvolvimento de sua máxima para seleção de teorias,
pois a ideia de parcimônia ontológica é cara aos defensores do nominalismo. A
máxima de Ockham segue assim:
1
Este trabalho foi desenvolvido com o apoio da UFRJ e da CAPES.
2
O nominalismo é uma escola de pensamento que considera que universais são apenas
nomes sem conteúdo real, negando sua existência e aceitando apenas objetos particulares
como existentes. Existem algumas variedades de nominalismo, que negam todos os
universais ou apenas alguns tipos de abstratos. Na literatura é comum ver o nominalismo
como oposto ao realismo (de universais) ou platonismo.
complexo é ruim, mas que se uma teoria mais simples consegue explicar um
conjunto de fatos com menos termos ela é preferível a uma teoria que explique o
mesmo conjunto de fatos com muitos termos. A Navalha é um princípio metodológico
que deveria auxiliar no desenvolvimento e aceitação de teorias mais corretas que
melhor descrevam a realidade.
Mencionei teorias barrocas acima, e o exemplo visual é útil pois explica
como teorias muito complexas são de difícil apreensão, gerando muitos termos
primitivos que dificultam o raciocínio. O excesso de termos primitivos conta contra
teorias porque estes não podem ser explicados ou definidos por outros termos, de tal
forma que termos primitivos contam como coisas inexplicáveis dentro da teoria, e
aumentam a opacidade das teorias.
Uma teoria com poucos termos é mais fácil de entender e verificar, para
uma mente humana normal. Pois uma teoria com muitos detalhes e termos se torna
mais difícil de verificar, e os erros também demoram mais a serem identificados.
Considerando a apreensão trabalhosa e a maior propensão ao erro que
acompanham teorias demasiado complexas, podemos ver por que existe uma
preferência, quase intuitiva, pelo mais simples.
A parcimônia ontológica e a economia teórica assumem condições de
virtudes no desenvolvimento e escolha de teorias, porque o oposto é mais difícil e
tem mais chance de estar errado. É intuitivo que seja mais fácil ver como uma coisa
simples pode ser correta do que ver o mesmo de uma coisa complexa. A preferência
por simplicidade é constantemente reforçada tanto em observações do mundo
natural quanto em discussões metafísicas. A tendência é reforçada toda vez que
teorias mais simples são provadas mais corretas do que teorias complexas. Teorias
parcimoniosas e econômicas possuem mais probabilidade de estarem corretas, e
estatisticamente têm sido mais corretas (BAKER, 2016).
A preocupação por uma metafísica parcimoniosa guia algumas correntes
filosóficas, o nominalismo sendo um exemplo. Willard Van Orman Quine, um grande
filósofo do século XX, em seu texto On What There Is de 1948 considerou que a
metafísica deveria se ocupar do que existe, e a ontologia ganhou maior
proeminência desde então, ocupando um lugar de destaque dentro do campo da
metafísica. Quine influenciou gerações de filósofos a almejar por uma metafísica que
35
se assemelhasse à uma paisagem desértica, sem postular quaisquer entidades que
pudessem ser consideradas excessivas3.
A proposta de Schaffer de substituir a Navalha pelo Laser usa muito do
aparato conceitual de fundação, um tipo de explanação não causal, ou explanação
metafísica4. A relação de fundação pode ser tomada como existindo entre fatos
(mais comum), ou entre propriedades ou entidades (mais incomum). A teoria de
fundação está em voga na metafísica atual, com muitos filósofos defendendo uma
revisão geral da metafísica levando em conta esse conceito recém definido.
Podemos dizer que a relação de fundação existe entre um fato primitivo (não
fundado) e outro(s) fato(s) nele fundado(s).
A relação entre os termos é direcional, de tal modo que A funda B e B é
fundado em A. A existência da mesa é fundada na existência das partículas
organizadas de determinado modo. No entanto, o contrário não ocorre, a fundação é
uma relação hiperintensional5 e assimétrica6.
Consideremos um objeto concreto como uma mesa: as partículas fundam a
mesa, mas não são por sua vez fundadas na mesa. O famoso exemplo de Kit Fine
(2012) de fundação é que a existência de Sócrates funda o conjunto unitário
Sócrates. Embora em todos os mundos possíveis onde existir Sócrates existirá o
conjunto unitário Sócrates, um é mais fundamental que o outro. O conjunto unitário
de Sócrates é menos fundamental que Sócrates e ao mesmo tempo é fundado na
existência de Sócrates.
O Laser proposto por Schaffer pressupõe que a fundação seja uma teoria
correta. Pois o Laser valoriza teorias hierarquizadas, uma interpretação que seria um
espelho da realidade descrita com a noção de fundação, uma realidade
hierarquizada em níveis de fundamentalidade. O Laser propõe que apenas
3
Motivado em grande parte, em reação ao filosofo Alexius Meinong, que propôs uma
ontologia hierarquizada com entidades possuindo diversos níveis de existência, até mesmo
admitindo um tipo de subsistência para entidades não existentes. Ver CARVALHO, 2021.
4
A maior parte da (vasta) literatura sobre este tema está em inglês, com poucos exemplos
em português. Para uma apresentação ao tema em português ver IMAGUIRE, 2020.
5
Hiperintensionalidade é uma das características mais importantes de fundação, descreve a
noção que podemos distinguir fatos coextensivos numa hierarquia que vai do mais
fundamental ao menos fundamental.
6
A dependência ontológica descrita na fundação não vai para os dois lados, um dos termos é
menos fundamental e implicado pela existência do seu termo fundante.
36
entidades fundamentais deveriam participar da avaliação da parcimônia de uma
teoria, enquanto entidades derivadas não deveriam fazer parte dessa avaliação de
custo.
Defensores da Navalha argumentam que ela poderia fazer as distinções
que são propostas no Laser de Schaffer, caso a noção de fundação esteja correta.
Isto é, sendo a fundação correta, o conceito já seria levado em consideração nos
parâmetros explicativos das teorias, dispensando que ele seja aplicado novamente
através do Laser. Do mesmo modo que as regras da matemática são levadas em
consideração ao se fazer cálculos da física, sem precisar introduzir axiomas
matemáticos em teorias da física. Similarmente, a fundação não precisa ser descrita
dentro do parâmetro de julgamento de teorias, porque, estando correta, será levada
em consideração de qualquer modo. Se a fundação descreve adequadamente a
realidade, não se pode continuar fazendo filosofia e medindo o valor de novas
teorias sem levar em consideração a fundação, já que isso seria desconsiderar a
nossa melhor descrição da realidade.
A tarefa de estudar a Navalha de Ockham e seu proposto substituto, o
Laser, deve levar em consideração que existe um problema de como determinar o
melhor tipo de Parcimônia Ontológica e um problema distinto, mas relacionado, de
como determinar o melhor tipo de Economia Teórica. Podemos dizer que a Navalha
e o Laser são ferramentas para determinar quais teorias ou ontologias são mais
adequadas para descrever um dado conjunto de fatos. Mas a discussão que
apresento neste capítulo é sobre qual desses dois é a melhor ferramenta para
fazermos isso. Os dois são princípios comparativos de escolha de teoria, que
podemos definir como abaixo:
37
Laser: Todas as coisas sendo iguais, a teoria T é
preferível a T’ se ela postula menos entidades
fundamentais sem necessidade.
1. A Navalha de Ockham
A Navalha diz “não multiplique entidades sem necessidade”.
38
justificativas razoáveis, pressupondo que o que é razoável para um não é
necessariamente razoável para outro.
Schaffer toma a economia como um princípio primitivo almejável das
ciências racionais, intuitivamente percebido como uma virtude que deve ser
procurada. A discussão sobre parcimônia foi retomada porque existe espaço para
críticas à Navalha, mas também existe um movimento atual de reexaminar a
metafísica levando em conta o conceito de fundação. Creio que algumas críticas são
possíveis sobre parcimônia e economia serem virtudes teóricas: o argumento em
prol dessas virtudes é que o valor delas é primitivo e intuitivo, de um modo que
parece que levaria a uma circularidade de raciocínio já que ser primitivo é um
qualificador que ganha mais importância dentro da discussão de fundação.
O problema de não definir qual tipo de entidades é que não se sabe se
todas as entidades são consideradas de custos iguais, se algumas valem mais
manter do que outras, ou se a valoração delas é diretamente ligada a quão
necessárias (essenciais7) elas são. Enquanto o problema do que configura
necessidade permite que a Navalha fique ‘cega’, dependendo do uso que se faça
dela, e deste modo não impor qualquer tipo de economia de entidades. O termo
‘necessidade’ usado na Navalha é dependente de contexto, e sem algum indicador
claro de qual a necessidade racional em questão.
Schaffer também estende suas críticas à noção de ‘multiplicação’ na
Navalha. A mensuração de ontologias pela Navalha esbarra no problema que
diferentes teorias postulam diferentes tipos de entidade, tendo um ‘corpo’ de
entidades que difere em quantidade e qualidade. Então é difícil fazer uma
comparação quantitativa sem antes resolver o problema de equivalência qualitativa
onde não é compatível. Curiosamente, diferenças quantitativas pequenas não
parecem importar quando se fala em grandes escalas (o exemplo de Schaffer é a
diferença entre 1,736,549 elétrons versus 1,736,550 elétrons) mas essas diferenças
importam quando são grandes (um universo versus infinitos universos, ou até um
gato versus dois gatos), o que indicaria que a economia quantitativa não é uma boa
régua metodológica. David Lewis (1973) argumenta que a economia qualitativa
(tipos) é onde se deve focar, e que a economia quantitativa (tokens) é menos
importante. Ao argumentar sua teoria de contrafactuais e mundos possíveis, Lewis
7
A atual discussão de fundação tem relação com a noção de essência em Aristóteles, que
está tendo mais destaque nas discussões de metafísica contemporânea.
39
propõe que é menos custoso aceitar um número maior de coisas que já conhecemos
(tokens) do que aceitar novos tipos de coisas (tipos).
2. O Laser de Schaffer
Após críticas contundentes ao linguajar e espírito da Navalha, Schaffer
apresenta uma alternativa para o princípio, mais entranhada nos conceitos de
fundação e inocência ontológica, chamada Laser. O Laser é apresentando como um
bom parâmetro que permite escolher teorias ou ontologias que melhor descrevem a
realidade. Incluída nisto está a noção de que a realidade é hierarquizada, com
elementos mais fundamentais e elementos menos fundamentais, conceitos
primitivos e conceitos definidos por eles.
Schaffer propõe que o Laser substitua a Navalha. Seria quase o mesmo
princípio, no entanto apenas entidades fundamentais teriam mérito na busca por
parcimônia. No caso, a economia seria aplicada a entidades fundamentais e não a
todo tipo de entidades indiscriminadamente. Ele propõe o Laser como parâmetro
para determinar quais teorias seriam mais econômicas e melhores. Ao invés de
julgar todo tipo de entidade como tendo o mesmo peso, o mesmo valor, ele quer
priorizar as entidades fundamentais. Schaffer defende que não é necessário
determinar quais entidades são fundamentais ou derivadas, bastando para a
apreciação do Laser que a distinção entre elas exista e seja intuitivamente
compreendida.
A proposta de Schaffer trabalha com a distinção entre os comprometimentos de
uma teoria, e os custos de tais comprometimentos. Pela medição do Laser entidades
derivadas são um ‘almoço ontológico grátis8’ em teorias metafísicas, no sentido que
elas são entidades novas e distintas sem custos para a parcimônia da teoria em
questão. As entidades fundamentais, ao serem postuladas, já incluem a implicação
das entidades derivadas, ou seja, o custo de entidades derivadas está ‘incluso’ no
custo inicial da postulação. Estaríamos comprometidas com o que pode ser derivado
de fundamentais por um custo menor do que antes.
Schaffer apresenta argumentos em favor do Laser, com exemplos onde o
Laser tem um melhor desempenho do que a Navalha ao julgar qual teoria seria a
8
Ver ARMSTRONG, 1997 e SCHAFFER, 2009.
40
melhor, mais forte, mais explicativa e mais simples. Para Schaffer o uso irrestrito da
Navalha pode gerar falsas economias, primeiro com entidades e depois com
conceitos, um erro metodológico que ele crê poder ser evitado ao se aplicar o Laser.
Neste mesmo artigo já temos três objeções ao Laser apresentadas e respondidas
por Schaffer, que ainda apresenta uma alternativa para o Laser, que também se
baseia na ideia de fundação. A alternativa ao Laser, que conseguiria lidar com
objeções que consideram a possibilidade do universo ser gunky9 é praticamente
ignorada nas discussões que se seguiram à publicação, pois é considerado como
uma ressalva mais do que uma proposta forte.
9
Ser Gunky seria o caso se o universo não possuísse um nível fundamental, isto é, grosso
modo, partículas grandes são compostas num nível mais fundamental por partículas
pequenas, de modo sucessivo infinitamente, e assim se comporia a totalidade da realidade.
41
teoria mais estreita, menos unificada e menos elegante. A teoria de Feng parece
melhor em todos os aspectos metodológicos relevantes.
Considerando apenas o número total de entidades, como na Navalha10, a
melhor teoria no caso de Esther e Feng seria percebida ao contrário. A ontologia
total de Esther é um subconjunto da ontologia do Feng, pois ele acredita em todas
as entidades que Esther acredita (tipos e tokens), além disso acredita em mais,
acredita que existam cordas subjacentes (tipos e tokens). Então à luz da Navalha a
teoria de Feng é uma afronta à economia ontológica ao postular cordas adicionais.
Todas as coisas sendo iguais, a teoria de Feng deveria ser preterida. Isto parece ser
contrário ao que é melhor metodologicamente. Julgando as duas teorias pelo Laser,
a teoria de Feng é a mais parcimoniosa, pois tem uma base de fundamentais menor
do que a teoria de Esther. Schaffer argumenta que este caso prova a superioridade
do Laser à Navalha.
Entretanto, neste primeiro caso já temos dois problemas sérios na proposta
de Schaffer: (i) a ontologia de Feng subsome a ontologia de Esther, de tal modo
que aquela contém todo o poder explicativo desta e algo mais, (ii) a ontologia de
Feng pode ser julgada por outros princípios metodológicos, e ser considerada mais
unificada, mais profunda, mais elegante. Sam Baron e Jonathan Tallant (2016)
apresentaram críticas a este exemplo, pois as duas teorias não estão explicando o
mesmo conjunto de fatos, outras virtudes teóricas têm peso ao comparar esses dois
casos. O caso de Feng não só demonstra uma teoria com grande economia de
entidades fundamentais, mas também uma descrição mais completa da realidade.
Segundo Fiddaman e Rodriguez-Pereyra (2018), a melhor teoria é aquela que mais
adequadamente descreve a realidade, não necessariamente a mais econômica. Se
existem entidades derivadas, então a existência de entidades fundamentais não
dependeria de qual teoria fosse a preferida. A ontologia mais rica de Feng já deveria
estar prevista na ontologia de Esther, se são as mesmas 100 entidades nas duas
teorias. A teoria de Esther deveria ser preterida por fornecer uma explicação
incompleta do conjunto dos fatos.
10
Na Navalha segundo Schaffer, pois sua interpretação da navalha é muito estrita e ignora
que a postulação de entidades necessárias seria permitida, e até incentivada caso garanta
uma descrição melhor da realidade. Retomarei esta crítica mais adiante.
42
1.2 O argumento de analogia
43
causa disto o Laser tende a selecionar teorias mais prolíferas, pois os conceitos
definidos não participam do custo da teoria, são por natureza derivados dos
conceitos primitivos. Para Schaffer, teorias com poucos conceitos primitivos que têm
grande potência geracional de conceitos derivados (úteis) são geralmente mais
corretas ao descrever o mundo, e de forma mais simples.
No segundo exemplo de Schaffer, ele nos apresenta um caso de
comparação de economia conceitual para ser usado como analogia à economia
ontológica proposta. O exemplo é o seguinte: Georg desenvolveu uma
arregimentação da teoria de conjunto. Ele invoca 10 conceitos primitivos e a partir
destes 10 primitivos ele define outros 40 conceitos úteis de teorias de conjuntos.
Hamsa, por outro lado, num momento de gênio, constrói em cima do trabalho de
Georg para descobrir uma axiomatização que usa apenas um conceito primitivo.
Com este conceito super primitivo Hamsa pode definir 99 outros conceitos úteis para
a teoria de conjuntos, incluindo todos os 10 conceitos que eram primitivos para
Georg e seus 40 conceitos úteis derivados.
Contando o número total de conceitos invocados pela Navalha Conceitual,
Georg tem a melhor teoria, e a de Hamsa não é em nada econômica. Contando pelo
Laser Conceitual Hamsa tem a melhor teoria, e é mais econômica com seu único
conceito super primitivo. Schaffer busca explicar uma teoria como claramente
superior a outra por causa do Laser. No entanto, a teoria de Hamsa é
metodologicamente preferível à de Georg por todos os parâmetros relevantes.
Hamsa criou uma versão ideologicamente elegante, ao encontrar uma única noção
primitiva através da qual consegue definir todos os conceitos que Georg usa e outros
além.
Baron e Tallant (2016) argumentam que a sugestão de usar esse exemplo
para comparar as economias da Navalha e do Laser é ingênua, pois neste segundo
exemplo todas as coisas não são iguais: a teoria de Hamsa tem maior unidade
conceitual que a de Georg. Com alguns poucos conceitos fundamentais Hamsa é
capaz de explicar todos os conceitos que Georg acredita. Ao aplicar a Navalha
Conceitual e considerar as outras virtudes teóricas deste caso, fica claro que não é
um caso em que todas as coisas são iguais, pois a teoria de Hamsa é mais unificada
e mais apreensível.
Dean Da Vee (2019) argumenta que, aceitando as distinções de primitivos e
derivados, se a diferença entre duas teorias é que uma postula um primitivo extra,
então ela explicará algo extra sobre o mundo que a outra não explica. No exemplo
44
de Georg e Hamsa, Hamsa explica tudo que Georg explica e um pouco mais, mas
como Georg não admite o primitivo de Hamsa, Georg não poderia explicar o que
Hamsa explica.
Ainda com a crítica de Da Vee, se a teoria de Hamsa explica os conceitos
primitivos de Georg através de um único conceito primitivo então os conceitos de
Georg não eram verdadeiramente conceitos primitivos, i. e., eram conceitos que
tinham explicação e podiam ser definidos por um conceito mais primitivo, não eram a
base não fundada como Georg pensava. Parece que seria impossível julgar qual
seria a melhor teoria a partir da economia de conceitos primitivos, pois que os
conceitos primitivos de Georg não seriam verdadeiramente primitivos. Se o super
primitivo de Hamsa estiver correto, independente de qual seja a teoria menos
econômica a teoria de Georg deveria ser preterida, pois estaria errada, e não teria a
virtude de ser um bom descritor da realidade. Nem o Laser nem a Navalha seriam
adequados para julgar essas duas teorias, pois todas as coisas não são iguais entre
elas. Da Vee defende que a economia teórica deve ser preferida por escolher teorias
mais verdadeiras. Fiddaman e Rodriguez-Pereyra consideram que a economia
teórica deveria ser preferida por escolher teorias mais inteligíveis.
Além disso existem problemas mais profundos advindos do fato que a
economia teórica e a parcimônia ontológica não parecem ser regidas pelas mesmas
regras – a ontologia descreve a realidade da maneira mais adequada possível,
enquanto teorias e conceitos explicam a realidade, podendo existir modos mais
fáceis e hierarquizados de explicar algo, o que torna a economia teórica um princípio
almejável, no entanto uma ontologia será incorreta se não descrever a totalidade do
que é o caso.
Mas muitas das críticas ao Laser vêm justamente deste argumento por
analogia, que enquanto satisfatório para defender o Laser Conceitual não seria uma
analogia adequada para defender o Laser Ontológico que é a prioridade de Schaffer.
Segundo Simon Thunder (2021) a analogia não se sustenta entre economia teórica e
parcimônia ontológica - uma teoria ‘menor’ tem mais chance de estar correta, além
de ser em geral mais apreensível. É comum que teorias sejam reformuladas para
terem menos passos ou passos mais simples, dependendo de menos conceitos,
para serem mais inteligíveis. Já uma ontologia raramente pode ser reformulada de
modo a excluir entidades derivadas (muito menos fundamentais) pois a ontologia
almeja descrever o estado de coisas que já existe, e não criar categorias ou
eliminá-las. Thunder também argumenta que a economia conceitual é usada para
45
selecionar teorias que têm mais chances de serem verdadeiras e não meramente
esteticamente melhores. Ele argumenta que essas motivações não são análogas no
caso da parcimônia ontológica, e que a capacidade explicativa que se ganha ao usar
o Laser Conceitual não tem paralelo na ontologia, que precisa descrever a realidade.
46
é tomada como um ideal de uma teoria que equilibra bem o custo e benefício
conceitual. A partir do conceito primitivo de ser parte de os outros conceitos podem
ser definidos. Mereologia tem uma base de primitivos pequena para uma grande
estrutura de definidos. Schaffer propõe que se use mais um princípio junto do Laser:
47
2. Críticas ao Laser
O Laser surge como uma proposta que responde a alguns problemas da
Navalha, no entanto, defensores da Navalha são críticos a uma substituição pois
veem falhas no Laser mais pertinentes do que as falhas apontadas por Schaffer na
Navalha. Uma das críticas de Simon Thunder (2021) aponta que o próprio linguajar
que Schaffer usa para apresentar seus exemplos nos argumentos já é viciado. Os
exemplos de nova arregimentação são apresentados como ‘momentos de gênio’, o
que já indicaria algo indicativo de atenção. Ao descrever a teoria de Feng e Hamsa
como ‘mais unificada, mais profunda e melhor’ existe uma indicação clara aos
leitores para que o exemplo mais estratificado e com menos fundamentais/primitivos
seja considerado superior, por fatores outros que a real economia. Uma teoria mais
profunda e unificada tem virtudes extras além da parcimônia ou economia para
distingui-la como melhor.
48
Navalha quanto do Laser. No entanto, existe evidência de que teorias mais
econômicas e parcimoniosas tendem a ser mais corretas e mais apreensíveis do que
aquelas que não levam em consideração essas virtudes teóricas. Vemos que teorias
que propõem menos entidades e conceitos descrevem a realidade de modo mais
próximo do que aquelas que pressupõem existências sem provas.
Medir economia conceitual pressupõe que existam conceitos para serem
medidos. A relação entre entidades fundamentais e entidades derivadas é de
dependência. As entidades derivadas são fundadas ou geradas pelas entidades
fundamentais. Igualmente, o Laser Conceitual pressupõe que existam conceitos
primitivos e definidos, e apenas o primeiro tipo deve ser medido. Uma metodologia
que não reconheça essas distinções, e seja composta apenas de conceitos
primitivos sem hierarquia é uma metodologia confusa, difícil de aplicar.
A Navalha declara que nenhuma postulação sem necessidade deve ser
feita, enquanto o Laser limita apenas a postulação de fundamentais, então o que não
é fundamental não é afetado pelo alcance do Laser. Não existe nenhuma restrição à
postulação de derivados na formulação original do Laser. Schaffer se defende desta
crítica citando a parte em parênteses do custo e benefício ontológico ‘(especialmente
entidades úteis)’. É preciso haver um ganho metodológico e explicativo pelas
entidades postuladas. Definir conceitos sem uso é um exercício inútil. Mas considero
isto uma defesa do custo e benefício, que é um princípio de proliferação, e não uma
defesa do Laser em si, que é um princípio de parcimônia. O Laser é permissivo com
os efeitos do custo e benefício, mas parece que se volta sempre ao dilema de
explicitar o que realmente é uma necessidade racional, o que era um problema para
a Navalha que o Laser não soluciona.
Schaffer argumenta que uma mereologia dupla (apenas a duplicação dos
conceitos) teria uma geração excessiva não compensada pelas mudanças
axiomáticas na teoria, já que a teoria ganha em custo e perde em potencial de
proliferação. A geração excessiva de entidades implica numa base mais larga para a
superestrutura, isto é, os axiomas e plausibilidade da teoria seriam sacrificados por
uma geração de entidades derivadas ou conceitos definidos que não compensa a
simplicidade sacrificada. A mereologia clássica é um sistema maximamente
permissivo (ideal de acordo com a metodologia do custo e benefício).
49
2.2 Objeção da Instabilidade
50
ciências especiais em si não se restringem na geração de tokens ou tipos, pois as
restrições estão na física fundamental. Este tipo de tradição de pensamento por um
lado parece desqualificar as ciências especiais, ao afirmar que nada nelas é de fato
fundamental e que são inteiramente derivadas.
Fiddaman e Rodriguez-Pereyra (2018) apresentam uma crítica pertinente a
este ponto, de que se as ciências especiais são inteiramente derivadas então todas
as postulações delas deveriam ser ontologicamente gratuitas pelo Laser, até as
absurdas.
Considere:
51
3. Considerações finais
Navalha e Laser entregam diferentes modos de economia ontológica. Tanto
a Navalha quanto o Laser medem parcimônia ontológica e economia teórica, mas a
primeira faz isso através da quantidade de entidades postuladas, e o segundo faz
isso através da quantidade de entidades fundamentais postuladas. Pela medição do
Laser entidades derivadas são um ‘almoço ontológico grátis’, no sentido que elas
são entidades novas e distintas sem custos para a economia da teoria em questão.
Isso porque o Laser trabalha com a distinção entre os comprometimentos de uma
teoria, e os custos de tais comprometimentos. Entidades derivadas não custam a
mais do que as entidades fundamentais das quais são derivadas, visto que
entidades derivadas são compromissos gratuitos, incluídos nos custos iniciais das
entidades fundamentais.
Todas as coisas sendo iguais, a melhor teoria é aquela que não multiplica
entidades ou conceitos sem necessidade. Contudo, todas as coisas não são iguais
em casos como Esther e Feng, ou casos como Georg e Hamsa. Uma teoria tem
maior poder explicativo que outra. Isso é uma virtude metodológica que poderia ser
considerada dentro da necessidade racional da Navalha, independente de
reformulação com uso do conceito de fundação.
Alan Baker (2007) apresenta um caso concreto onde a Navalha levou
justamente ao tipo de erro apontado por Schaffer. Houve uma disputa dentro das
ciências biológicas para explicar a Lei de Buffon que postulava que “as diferentes
regiões da Terra, apesar de compartilhar condições, eram habitadas por diferentes
espécies de plantas e animais.” As ocorrências esperadas e as exceções podiam ser
explicadas por duas teorias competidoras, a teoria da dispersão de Darwin-Wallace e
a teoria tectônica de Croizat.
A dispersão explica que ao longo do tempo espécies migram para novas
áreas e são submetidas a processos evolutivos distintos que criam especiações
diferentes. As exceções à Lei de Buffon eram explicadas por uma “dispersão
improvável”, como icebergs ou vegetação no vento ou nas correntes marítimas. A
teoria tectônica de Croizat aceita a dispersão e evolução (como na teoria de
Darwin-Wallace), mas postula um mecanismo adicional para explicar a Lei de Buffon:
movimento tectônico. De acordo com Croizat o movimento dos continentes,
afastamento e afundamento de massas de terra e a criação de montanhas explicam
52
por que áreas separadas por barreiras naturais possuem espécies diferentes. Provas
que confirmassem essa teoria só começaram a ser recolhidas depois de 1950.
Baker argumenta que antes da descoberta de evidências conclusivas a
respeito de placas tectônicas, a teoria de Croizat era a menos favorecida dentro das
ciências. A teoria de Croizat propõe um tipo de entidade nova, além de muitos
tokens dela, num mecanismo novo (placas tectônicas que se movem) do qual não se
tinha nenhuma prova de existência que fosse aceitável pela ciência da época. A
teoria de dispersão de Darwin-Wallace era considerada mais parcimoniosa, e
sabemos hoje que ela está errada. Nesta disputa a aplicação irrestrita da Navalha
leva à preferência pela teoria incorreta.
Baker também menciona um outro caso das ciências, mas este redime a
Navalha, que é a disputa sobre movimento da luz. Novamente duas teorias tentavam
explicar o mesmo conjunto de fenômenos. O Éter Luminescente e a Teoria da
Relatividade Restrita de Einstein foram comparadas e um dos critérios de
preferência foi a economia da segunda teoria. O Éter seria um meio fixo no qual luz
e ondas eletromagnéticas se propagariam. A Teoria da Relatividade Restrita de
Einstein introduz um postulado radical sobre a velocidade da luz ser constante num
vacuum em relação a um observador, independente do movimento deste. A
Relatividade foi considerada mais econômica e mais simples, sendo racionalmente
preferível ao Éter Luminescente. Este é um exemplo famoso para aplicação com
sucesso da Navalha, mas nem mesmo neste caso todas as coisas são iguais,
porque a Relatividade Restrita explica mais fenômenos do que a Hipótese do Éter.
Quando se examina casos concretos é possível observar que as críticas de
Schaffer são razoáveis. A Navalha pode ser inexata, e a noção de necessidade
racional pode variar o suficiente para se ter uma confusão a respeito do modo
correto de medir a parcimônia e economia ideal.
Quanto à noção de parcimônia ontológica parece haver um consenso que
mais parcimônia é melhor do que mais excessos. A desertificação da metafísica está
em disputa, e o conceito de fundação tem levado muitos filósofos a reconsiderar
tópicos previamente bem estabelecidos.
Os argumentos que tratam da economia teórica são mais satisfatórios, tanto
em Fiddaman e Rodriguez-Pereyra que argumentam pela maior inteligibilidade de
teorias mais econômicas, quanto nos argumentos de Baron e Tallant, Da Vee, e
Thunder que defendem que teorias menores têm maior probabilidade de estarem
corretas.
53
Podemos afirmar que mesmo com tantos séculos de uso, a Navalha possui
até hoje mais defensores do que detratores. No entanto, a discussão iniciada por
Schaffer foi e está sendo prolífera, e esclarecedora. As críticas a esta ferramenta
são válidas, e talvez, mesmo que o Laser não seja o substituto ideal, pode ser a hora
de examinar como reformar este princípio tão usado.
Referências
ARMSTRONG, D. M. “A World of States-of-Affairs” Cambridge: Cambridge University
Press, 1997.
BAKER, Alan “Occam’s Razor in Science: A Case Study from Biogeography” In:
Biology and Philosophy, v.22, n.2, pp.193–215, 2007.
________ “Simplicity” In: The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016
Edition), Edward N. Zalta (ed.), 2016. URL:
https://plato.stanford.edu/entries/simplicity/ (acesso em 10/10/2020).
BARON, Sam & TALLANT, Jonathan “Do Not Revise Ockham's Razor Without
Necessity” In: Philosophy and Phenomenological Research n. 3, pp. 596-619,
2016.
CARVALHO, William Oliveira “Uma Defesa Meinonguiana Dos Objetos
Não-Existentes” Dissertação. Porto Alegre: PUC-RS, 2021.
DA VEE, Dean “Why Ockham’s Razor should be preferred to the Laser” In:
Philosophical Studies v. 177, n.12, pp. 3679-3694, 2019.
FIDDAMAN, Mark & RODRIGUEZ‐PEREYRA, Gonzalo “The Razor and the Laser”
In: Analytic Philosophy v. 59, n.3 pp. 341-358, 2018.
FINE, Kit “Guide to Ground” In: Fabrice Correia e Benjamin Schnieder (eds.)
Metaphysical Grounding: Understanding the Structure of Reality, Cambridge:
Cambridge University Press, pp. 37-80, 2012.
HAWLEY, Katherine “Ontological Innocence” In: A. J. Cotnoir & Donald L. M. Baxter
(eds.), Composition as Identity. Oxford: Oxford University Press. pp. 70-89, 2014.
IMAGUIRE, Guido “Fundação Ontológica” In: Guido Imaguire e Rodrigo Cid (orgs.)
Problemas de Metafísica Analítica, Pelotas: NEPFIL Online, pp. 59-79, 2020.
LEWIS, David “Counterfactuals” Oxford: Basil Blackwell, 1973.
54
SCHAFFER, Jonathan “On What Grounds What” In: David Chalmers, David Manley,
e Ryan Wasserman (eds.), Metametaphysics: New Essays on the Foundations of
Ontology, Oxford: Oxford University Press, pp. 384-423, 2009.
_______”What Not to Multiply Without Necessity” In: Australasian Journal of
Philosophy, v. 93 n. 4, pp. 644-664, 2015.
QUINE, W. V. O. “On what there is” In: From a Logical Point of View. Cambridge,
Mass.: Harvard University Press. pp. 1-19, 1953.
THUNDER, Simon “There is no reason to replace the Razor with the Laser” In:
Synthese v. 199 n.3-4, pp. 7265-7282, 2021.
55
Notas sobre a teoria computacional da mente
Raquel Krempel
Introdução
O objetivo central deste texto é apresentar, confrontar e avaliar duas visões
opostas sobre a teoria computacional da mente, segundo a qual processos mentais
são processos computacionais. Dentre os adeptos da teoria computacional da mente
está Jerry Fodor, que argumenta que conceber processos mentais como sendo
processos computacionais nos ajuda a entender como estados mentais podem ter
conteúdo semântico e poder causal ao mesmo tempo. John Searle, por outro lado, é
um dos críticos da teoria computacional da mente. Segundo ele, processos
computacionais não só são insuficientes para caracterizar processos mentais, como
não são sequer necessários. Na visão de Searle, algo com os poderes causais do
cérebro é necessário para que haja conteúdo semântico, ou intencionalidade.
Na seção 1, veremos brevemente a teoria computacional da mente,
principalmente tal como é concebida por Fodor. Na seção 2, veremos a visão de
Searle. Na seção 3, indico alguns pontos de acordo e de desacordo entre Fodor e
Searle. Na seção 4, defendo a teoria computacional da mente de uma das críticas de
Searle. Por fim, na seção 5, indico como podemos combinar o melhor de cada visão.
Resumidamente, a ideia é que podemos aceitar que haja um nível computacional de
explicação da mente (como defende Fodor), ao mesmo tempo que aceitamos a
importância do cérebro para a existência de estados intencionais (ponto que é
ressaltado por Searle)
1
Intencionalidade não tem aqui o mesmo sentido de intenções. Intenções, como a minha
intenção de ir ao mercado, são apenas um exemplo de estados mentais intencionais – i.e., que
são sobre algo, ou que representam algo.
2
Segundo Jacob (2019, não paginado), “dizer que os estados mentais de um indivíduo têm
intencionalidade é dizer que são representações mentais ou que têm conteúdos.”
57
que é verdadeiro ou falso, por exemplo, pode ter também o poder de causar outros
estados mentais e comportamentos.
Fodor (1987) utiliza a analogia com o computador justamente para explicar
como estados mentais intencionais, com conteúdo semântico, podem causar outros.
Um computador pode ser entendido como “um dispositivo que processa
representações de forma sistemática” (CRANE, 2003, p. 85)3. Em outras palavras,
computadores processam informações por meio da transformação algorítmica de
símbolos. A transformação de símbolos por um computador é guiada pela sintaxe dos
símbolos (ou por suas propriedades formais), e não pelo que esses símbolos
significam. Como diz Fodor, “computações são simplesmente processos nos quais as
representações têm suas consequências causais em virtude de sua forma” (FODOR,
1981a, p. 241). De acordo com ele, “a sintaxe de um símbolo pode determinar as
causas e efeitos de suas ocorrências [tokenings] da mesma forma que a geometria de
uma chave determina quais fechaduras ela abrirá” (1987, p. 18). As propriedades
sintáticas ou formais dos símbolos são concebidas como sendo, em última instância,
propriedades físicas, implementadas em um meio físico. Computadores podem
armazenar e transformar símbolos na forma de sequências de zeros e uns, que afinal
correspondem a circuitos elétricos físicos presentes no hardware. Eles nos mostram
então como é possível que algo físico processe informação de maneira coerente – i.e.,
como símbolos, com conteúdo semântico, podem ter poder causal.
De modo análogo, estados mentais como crenças e desejos são concebidos
então como envolvendo símbolos ou representações mentais, que possuem tanto
propriedades semânticas como propriedades formais, ou sintáticas. Se concebermos
processos mentais como sendo processos computacionais, ou seja, como
transformações de símbolos em virtude de suas formas sintáticas (algo análogo ao
que se passa com computadores implementando programas), podemos entender
como estados mentais podem causar outros. A ideia, então, é que a sintaxe dos
símbolos ou representações mentais desempenha o papel mediador entre seu
conteúdo semântico e seu poder causal. E tendo em vista que esses símbolos mentais
são realizados no cérebro, isso abre caminho para uma explicação naturalista de
processos mentais intencionais.
Proponentes da teoria computacional da mente supõem então que há um
nível computacional de explicação da mente que está entre o nível de explicação da
3
Todas as traduções são minhas.
58
psicologia do senso comum e o nível da neurociência (FODOR, 1975, 1987). Esse
nível intermediário envolve representações mentais, concebidas como símbolos com
estrutura sintática e semântica, e transformações dessas representações. Mais
especificamente, na visão de Fodor, esses símbolos mentais constituem uma
linguagem, chamada de linguagem do pensamento. A ideia é que temos um estoque
limitado de representações mentais atômicas, simples, que se combinam para formar
representações mentais complexas (tal como palavras em uma língua natural se
combinam para formar frases). Em processos mentais como raciocínios, o que ocorre
são transformações computacionais dos símbolos ou representações da linguagem do
pensamento.
Embora proponentes da teoria computacional da mente aceitem que
representações mentais em humanos e animais têm como base física o cérebro,
muitos, como Fodor, defendem que explicações psicológicas da mente têm uma certa
autonomia com relação ao nível da neurociência (FODOR, 1974). Conforme Fodor
observa, “a descrição do software da mente não requer logicamente neurônios.”
(FODOR, 1981b, p. 120). Explicações psicológicas computacionais podem ser dadas
sem qualquer referência ao cérebro, fazendo referência apenas a símbolos mentais e
suas transformações. Além de supor que explicações psicológicas têm uma autonomia
metodológica com relação às explicações neurocientíficas, é comum entre adeptos da
teoria computacional da mente a aceitação da tese de que estados mentais são
multiplamente realizáveis, proposta originalmente por Putnam (1967). Segundo a tese
da realização múltipla, um mesmo tipo de estado mental (a crença de que vai chover,
por exemplo) pode em tese ocorrer, ou ser realizado, em vários tipos físicos diferentes
– e não apenas no cérebro (cf. BICKLE, 2013). A ideia então é que não há nada que
exclua a possibilidade de que robôs, ou seres com uma base física muito diferente da
nossa, tenham estados e processos mentais como os nossos. Explicações
psicológicas computacionais podem em tese ser atribuídas a seres que não possuem
cérebros, justamente porque elas são autônomas com relação a explicações
neurocientíficas.
2. Searle
Searle é um dos críticos da teoria computacional da mente. Com seu famoso
argumento do quarto chinês, Searle pretende mostrar, dentre outras coisas, que
59
processos computacionais não são suficientes para caracterizar processos mentais.
Em escritos posteriores, Searle defende que sequer é necessário supor que processos
mentais envolvem transformações formais de representações. Nesta seção veremos
essas duas ideias.
Vejamos brevemente o experimento de pensamento do quarto chinês,
formulado pela primeira vez por Searle no artigo “Minds, Brains, and Programs”
(1980). Searle, que não sabe chinês, se imagina trancado em um quarto, onde recebe
alguns textos escritos em chinês junto com regras em inglês, com instruções que
especificam quais símbolos em chinês devem ser devolvidos para fora do quarto,
quando ele recebe tais e tais símbolos. Sem que Searle saiba, o que está
acontecendo é que pessoas de fora do quarto estão fazendo perguntas a ele sobre
uma história em chinês. Os símbolos que Searle envia são respostas a essas
perguntas, as quais são indistinguíveis daquelas que um falante de chinês poderia dar.
Mas embora Searle se comporte como um falante de chinês, que entende a história,
ele de fato não entende a história e não tem ideia do que suas respostas significam.
Searle não sabe chinês e nem sequer sabe que está respondendo a perguntas sobre
uma história. Ele apenas “produz as respostas manipulando símbolos formais não
interpretados” (SEARLE, 1980, p. 418). Em outras palavras, ele implementa um
programa, manipulando símbolos com base apenas em suas formas sintáticas, sem
conhecimento do conteúdo semântico dos símbolos, ou do que eles significam.
Com o argumento do quarto chinês, Searle pretende, antes de tudo, derrubar
uma das ideias centrais do que ele chama de Inteligência Artificial (IA) forte, que é a
visão segundo a qual a mente nada mais é do que um programa de computador. De
acordo com seguidores da IA forte, um programa adequadamente construído,
independentemente de como é implementado, é suficiente para a existência literal de
estados cognitivos ou intencionais4. O ponto de Searle é que um computador, por mais
sofisticado que seja, ao seguir um programa, não faz nada a mais do que Searle faz
dentro do quarto. O computador instancia um programa que indica quais outputs
devem ser fornecidos ao receber tais e tais inputs. Os símbolos que ele transforma
são, do ponto de vista do próprio computador, sem significado. Assim como Searle não
4
Searle contrasta essa visão com a IA fraca, cujos proponentes diriam que programas bem
construídos podem servir como uma ferramenta para iluminar nosso conhecimento de certos
aspectos da psicologia humana. Ao contrário dos proponentes da IA forte, eles não se
comprometem com a atribuição literal de estados mentais ao computador que implementa um
programa adequadamente construído.
60
entende chinês, embora siga um programa para manipular símbolos tal como um
falante de chinês, um computador também não entende os símbolos que manipula.
Ele apenas segue um programa. Assim, Searle pretende mostrar que a instanciação
de um programa não é uma condição suficiente para a existência de estados
intencionais (como estados relacionados à compreensão de uma língua). Searle
reformulou esse ponto dez anos depois em “Is the brain a digital computer?” (1990):
Assim, o ponto de Searle é que processos mentais não podem ser pura e
simplesmente processos computacionais, porque processos mentais envolvem
estados com conteúdo semântico, enquanto processos computacionais são processos
formais que não requerem símbolos com conteúdo semântico. Um programa por si só
não pode ser o que explica o aspecto semântico de estados mentais, porque
programas podem existir sem nenhum estado realmente intencional. A caracterização
da mente como nada além do que um programa de computador, que envolve
transformações formais de símbolos, está fadada a ser, na melhor das hipóteses, uma
caracterização incompleta.
Mas como então devemos explicar a presença de estados com conteúdo
semântico, como por exemplo estados mentais relacionados à compreensão
linguística? O que garante que tenhamos intencionalidade? O que permite que um
falante de chinês, e não um computador, conheça o significado das palavras chinesas
e seja capaz de pensar sobre o mundo? Segundo Searle, o que explica a
intencionalidade em nós é o fato de sermos:
61
percepção, ação, compreensão, aprendizado e outros
fenômenos intencionais. E parte do ponto do presente
argumento é que apenas algo que tivesse esses
poderes causais poderia ter essa intencionalidade.
(SEARLE, 1980, p. 422)
Assim, para Searle, estados mentais intencionais dependem de algo com poderes
causais semelhantes aos do cérebro para existir. É importante notar que Searle não
quer dizer que a intencionalidade só pode surgir a partir de algo que tenha exatamente
a mesma composição físico-química do cérebro. Embora seja comum interpretá-lo
dessa maneira, o que ele quer dizer é, de certo modo, um tanto trivial. Sua ideia é que
se aceitarmos que a intencionalidade é causada pelo cérebro, devemos também
aceitar a ideia trivial de que, para que haja intencionalidade, deve haver algo que
tenha o poder de causar essa intencionalidade, assim como o cérebro é capaz de
causá-la em nós. Essa observação é de certo modo trivial porque dificilmente alguém
negaria que a intencionalidade depende em certa medida da existência de algum
substrato físico5. Mas essa observação de Searle se enquadra no contexto de sua
crítica à IA forte, cujos proponentes diriam que a intencionalidade é produto apenas da
implementação de um programa apropriado, e que a realização física desse programa
é irrelevante para a ocorrência da intencionalidade. Searle, ao contrário, observa que
só haverá intencionalidade se houver algo físico capaz de produzir essa
intencionalidade – e presumivelmente nem tudo tem esse poder. O cérebro é uma
coisa (e, até onde sabemos, a única) que tem esse poder. Mas Searle também aceita
que não há nada que impeça a priori a possibilidade de que outros tipos de substratos
físicos deem origem à intencionalidade. De acordo com ele,
5
Uma exceção aqui seria, possivelmente, os dualistas de substâncias, como Descartes (1641),
que concebem a mente como uma substância diferente da matéria, e que pode existir
independentemente dela.
62
(...) Talvez seja possível produzir consciência,
intencionalidade e todo o resto usando alguns outros
tipos de princípios químicos, diferentes dos usados por
seres humanos. Essa é, como disse, uma questão
empírica (SEARLE, 1980, p. 422; ver também SEARLE,
1982; 1990b, p. 27).
Searle não está dizendo, portanto, que para que um ser tenha estados mentais, ele
precisa ter um cérebro com a mesma composição que o nosso. Para ele, é uma
questão em aberto se algo diferente do cérebro poderia dar origem a estados mentais.
Seu ponto é que é o cérebro que explica causalmente a presença de estados
intencionais em nós, não a instanciação de algum programa. Estados mentais como
dores, pensamentos, memórias e sensações são causados por processos
neurobiológicos específicos. Aspectos formais desses processos biológicos não são
causalmente responsáveis pela existência desses estados mentais. Caso seja
possível que uma máquina construída artificialmente tenha estados cognitivos, isso
ocorrerá não por causa da implementação de um programa, mas sim porque seu
substrato teria os mesmos poderes causais do cérebro. A intencionalidade da máquina
não seria então produto da instanciação de um programa, pois programas nunca são
suficientes para a intencionalidade – tal como mostra o argumento do quarto chinês.
Ela seria um produto da organização física da máquina.
É interessante ver que a posição de Searle não é inteiramente incompatível
com a tese da realização múltipla, que vimos na seção anterior, e que tende a ser
defendida por proponentes da teoria computacional da mente. Isso porque Searle
admite que talvez seja possível que tanto máquinas artificiais quanto seres com
estrutura físico-química diferente da nossa tenham estados mentais. Para ele, essa é
uma questão em aberto. Ele não está, portanto, comprometido com a teoria da
identidade entre estados mentais e cerebrais6. A diferença parece ser que, para ele, o
hardware desempenha um papel muito mais importante do que para Fodor.
Proponentes da teoria computacional da mente tendem a ser funcionalistas.
Defensores do funcionalismo aceitam que o que caracteriza um estado mental é a sua
função em um organismo, e não o material de que ele é feito. Se é assim, seres das
mais diversas organizações físicas poderiam ter estados cognitivos desde que sua
organização funcional seja apropriada. Uma organização funcional apropriada poderia,
6
Para defesas clássicas da teoria da identidade, ver Smart (1959) e Place (1956).
63
em tese, ser implementada em qualquer tipo de material. Searle, ao contrário, embora
aceite que talvez seja possível que outros substratos além do cérebro causem estados
intencionais, ele certamente nega que estados mentais possam ser realizados em
qualquer tipo de material.
Ao argumentar que programas ou processos computacionais não são
suficientes para a existência de estados cognitivos, Searle pensa ter mostrado, contra
os defensores da teoria computacional da mente, que processos mentais não podem
ser processos puramente computacionais. Mas um ponto ainda mais forte que ele
levanta é que sequer temos boas razões para supor que processos computacionais
sejam uma parte necessária da explicação de processos mentais intencionais. De
acordo com ele,
Em “Is the brain a digital computer?” (1990) e The rediscovery of the mind (1992),
Searle desenvolve essa crítica. Ele passa então a atacar não apenas a IA forte, mas
também a suposição, aceita pela maioria dos cientistas cognitivos, incluindo Fodor, de
que existe um nível computacional de explicação de estados e processos mentais (que
é uma suposição mais fraca do que a ideia de que programas são suficientes para
explicar inteiramente esses estados). Na verdade, Searle nega que haja qualquer
necessidade de explicar a mente apelando para estados e processos mentais
profundamente inconscientes. Segundo ele, existem apenas dois níveis de explicação
da mente: o neurobiológico e o psicológico, que é necessariamente acessível à
introspecção.
64
Em nossos crânios há apenas o cérebro, com toda a
sua complexidade, e a consciência, com todas as suas
cores e variedades. O cérebro produz os estados
conscientes que estão ocorrendo em você e em mim
agora, e tem a capacidade de produzir muitos outros
que não estão ocorrendo agora. Mas isso é tudo. No
que diz respeito à mente, esse é o fim da história. Há
processos neurofisiológicos brutos e cegos e há
consciência, mas não há mais nada. Se estivermos
procurando por fenômenos que são intrinsecamente
intencionais, mas inacessíveis em princípio à
consciência, não há nada lá: (...) nenhum
processamento de informação mental, nenhuma
inferência inconsciente, (...) nenhuma linguagem de
pensamento e nenhuma gramática universal. (SEARLE,
1992, pp. 228-9).
65
Sua ideia, então, é que dizer que algo é um computador é dizer algo trivial porque,
nesse sentido de computação, qualquer coisa pode contar como um computador, até
mesmo uma parede. Ou seja, dizer que o cérebro é um computador não é dizer algo
realmente informativo, pois se pode atribuir sintaxe e transformação de zeros e uns a
qualquer coisa. Além disso, porque Searle pensa que a sintaxe não é uma propriedade
física intrínseca, mas sim dependente de um observador, ele diz que não se pode
descobrir que o cérebro é um computador, pois não há questão de fato sobre se o
cérebro executa ou não computações. Como a sintaxe depende de um observador e
não é uma propriedade física, ela não tem poder causal e não desempenha nenhum
papel explicativo real na cognição. As explicações computacionais não explicam nada
que não possa ser explicado pela neurobiologia, e são, portanto, desnecessárias para
explicar processos mentais.
3. Fodor e Searle
Nesta seção, ressaltarei alguns pontos de concordância e de discordância
entre Fodor e Searle. Um dos pontos centrais do argumento do quarto chinês é o de
que programas não são suficientes para a intencionalidade. Fodor, contudo, está de
perfeito acordo. Segundo ele, “Searle certamente tem razão de que instanciar o
mesmo programa que o cérebro não é, por si só, suficiente para ter as atitudes
proposicionais características do organismo que possui o cérebro. Se algumas
pessoas na IA pensam que é, elas estão erradas” (1980, p. 520). Isso sugere que não
está embutida na teoria computacional da mente a ideia de que processos
computacionais são suficientes para explicar processos mentais. Um proponente da
teoria computacional da mente, como Fodor, pode concordar com a ideia de que a
instanciação de um programa não é suficiente para fazer com que uma máquina tenha
estados intencionais, por exemplo, nem para garantir a existência de estados
intencionais em humanos. Programas, ou processos computacionais, não explicam o
aspecto semântico dos símbolos mentais. De fato, é interessante observar que Fodor
notou algo semelhante, antes mesmo de Searle, no artigo “Methodological Solipsism”
(1981). De acordo com ele,
66
trabalhando na questão de como o pensamento (ou a
linguagem) está relacionado ao mundo. Meu ponto atual
é que, o que quer que elas estejam fazendo, elas
certamente não estão fazendo isso. A própria suposição
que define seu campo – a saber, que elas estudam
processos mentais enquanto operações formais sobre
símbolos – garante que seus estudos não responderão
à questão de como os símbolos assim manipulados são
interpretados semanticamente. (FODOR, 1981a, p. 232).
Assim, Searle e Fodor concordam que programas não são suficientes para a
intencionalidade, e que a intencionalidade é um aspecto essencial das atitudes
proposicionais. Eles discordam, no entanto, sobre o que a produz. Searle acredita que
os estados intencionais são parte de nossa biologia, e que eles são tanto causados
pelo cérebro como realizados no cérebro. De acordo com Searle, disso se segue que
somente um sistema com poderes causais equivalentes aos do cérebro poderia ter
intencionalidade:
67
Fodor, ao contrário, argumenta que o que é relevante para a existência de
estados intencionais é a existência de relações causais apropriadas entre o sistema e
o mundo. Ele atribui a Searle a ideia de que o cérebro é necessário para a existência
de estados intencionais, e que somente algo com a mesma estrutura físico-química do
cérebro poderia dar origem à intencionalidade. Como vimos, Searle evita ser tão
radical e não exclui a possibilidade de que outros tipos de substratos produzam
estados intencionais. Mas Searle diria que, até onde sabemos, os estados intencionais
fazem parte da nossa biologia e são causados pelo cérebro7. No entanto, na visão de
Fodor, o que é relevante para a intencionalidade é o tipo de relação causal que um
organismo mantém com o mundo, e não tanto sua composição física. Fodor
reconhece que nossos estados intencionais dependem das relações causais que o
cérebro mantém com o mundo, mas pensa que daí não se segue que a composição
físico-química do cérebro seja particularmente relevante para a existência desses
estados. Tal como ele coloca,
7
Embora Searle reconheça que é possível que materiais diferentes do cérebro possam
produzir estados intencionais, ele não acha que isso seja provável (ao menos não para alguns
tipos de materiais). Searle diz, por exemplo: “Acho que é empiricamente absurdo supor que
poderíamos duplicar os poderes causais dos neurônios inteiramente em silício. Mas essa é
uma afirmação empírica de minha parte. Não é algo que possamos estabelecer a priori.”
(SEARLE, 1992, p. 66).
68
Para Fodor, Searle realmente não mostra por que a estrutura físico-química do cérebro
deveria ser mais relevante para dar origem à intencionalidade do que a forma como
estamos conectados ao mundo. Por isso mesmo, Fodor insiste na objeção do robô
contra o argumento do quarto chinês. Searle considera essa objeção em seu artigo,
mas Fodor acredita que sua resposta não é convincente). Segundo Fodor, não é
surpreendente que Searle, trancado em um quarto, não possa saber os significados
dos símbolos que manipula. Ele não tem acesso ao mundo e, portanto, não pode
associar significados a símbolos chineses. O mesmo vale para os computadores de
hoje em dia. Mas isso não significa que um robô, devidamente conectado ao mundo,
não possa ter estados intencionais. Significa apenas que máquinas como Searle no
quarto, ou meu laptop, não podem ter intencionalidade porque não têm os meios para
estar em relações causais com o mundo. Segundo Fodor, é menos provável que o
material de uma máquina ou organismo seja responsável pela produção de
intencionalidade do que a forma como essa máquina ou organismo está conectado ao
ambiente.
Pode-se imaginar um robô que não apenas instancia um programa
apropriado, mas que também possui um tipo específico de implementação que lhe
permite ter o tipo certo de interação causal com o mundo, seja ele qual for, de tal
forma que tenha sensores para detectar estímulos, por exemplo, e que possa se
movimentar. Nesse caso, seria tão absurdo supor que esse robô pudesse representar
os objetos ao seu redor, e ter estados intencionais, mesmo sem ter um cérebro? A
resposta não parece tão óbvia, como é no caso do quarto chinês.
Searle, ao considerar a objeção do robô, supõe que os inputs do ambiente
não dariam sentido aos símbolos manipulados, pois eles seriam apenas mais símbolos
não interpretados. Em sua resposta a Fodor, ele observa que as relações causais
entre um símbolo e o mundo só podem lhe dar significado se o agente já tiver estados
intencionais. E, se é assim, as relações causais não podem ser constitutivas da
intencionalidade, pois o agente já teria que ter intencionalidade para poder interpretar
um símbolo. Na visão de Searle, estados intencionais são o produto de algo que,
como o cérebro, tem o poder de causar esses estados, e “impactos causais externos
(...) sobre os símbolos formais (...) não são em si mesmos suficientes para dar aos
símbolos qualquer conteúdo intencional” (1980, p. 454). Nós humanos temos algo com
o poder de dar origem à intencionalidade, e assim temos o que Searle chama de
intencionalidade intrínseca. Computadores, por outro lado, carecem de um substrato
capaz de causar estados intencionais e, portanto, os símbolos que eles transformam
69
têm intencionalidade apenas para um observador externo. Nenhuma relação causal
entre um computador e o mundo poderia, na visão de Searle, dar conteúdo semântico
a seus símbolos.
Fodor não aborda esta última objeção de Searle, mas podemos imaginar que
ele insistiria que não é tão claro que a interação com o mundo, juntamente com um
programa adequado, não poderia, por princípio, dar intencionalidade a um sistema.
Searle parece simplesmente assumir que interações causais de um robô com o mundo
só envolveriam mais transformações de símbolos não interpretados, sem qualquer
conteúdo semântico para o robô. Mas não é claro que robôs não possam ter estados
intencionais intrínsecos (não relativos a um observador), caso instanciem um
programa adequado e mantenham relações causais apropriadas com o mundo.
Em suma, Fodor concordaria com Searle que defensores da IA forte estão
errados ao pensar, com Turing (1950), que um programa, independentemente de sua
implementação e de sua interação com o mundo, pode ser suficiente para ter
pensamentos genuínos. Um computador que apenas instancia um programa não pode
entender, pensar, etc., porque apenas realiza transformações formais sobre símbolos,
o que não é suficiente para a intencionalidade. Mas Fodor adota uma tese mais fraca,
que é a de que estados cognitivos podem, em tese, surgir em máquinas que
implementam programas adequadamente construídos e que são capazes de interagir
adequadamente com o ambiente. Não é claro que Searle tenha um ponto forte contra
esse computacionalismo mais fraco.
Um outro ponto de desacordo entre eles é quanto à necessidade de tratar
processos mentais como processos computacionais. Enquanto Searle pensa que essa
suposição não tem realmente poder explicativo para a cognição, Fodor acusa Searle
de ignorar um vasto programa de pesquisa em ciências cognitivas que trata vários
processos mentais (como percepção visual, memória e processamento linguístico)
como transformações de símbolos, ou processamento de informação (cf. BERMÚDEZ,
2014). Segundo Fodor, “afirmar que não há argumento de que a manipulação de
símbolos seja necessária para o processamento mental, ignorando sistematicamente
todas as evidências que foram dadas em favor da afirmação, me parece uma
estratégia extremamente curiosa por parte de Searle” (FODOR, 1980, p. 521).
70
4. Uma resposta a uma objeção de Searle
Vimos então algumas semelhanças e diferenças entre as visões de Fodor e
Searle. Nesta seção, meu objetivo é responder a uma das objeções que Searle
levanta contra a teoria computacional da mente. Vimos que Searle pensa que
computação pode ser atribuída a qualquer coisa. Desse modo, dizer que o cérebro é
um computador é dizer algo trivial. Dado que qualquer coisa pode ser considerada um
computador, não há nada de realmente informativo em dizer que o cérebro realiza
computações. Um problema relacionado é que, para Searle, a sintaxe e símbolos são
sempre atribuídos a algo por um observador externo e, portanto, não são propriedades
físicas intrínsecas, que podem ser descobertas em um sistema. Transformações
sintáticas de símbolos não têm, assim, nenhum papel realmente causal ou explicativo
na mente. Tudo que precisamos para explicar a mente é falar de processos
neurobiológicos e da consciência.
Contra Searle, contudo, podemos dizer que talvez zeros e uns possam ser
atribuídos a qualquer coisa, mas símbolos genuínos, que representam algo, não
podem. E, como diria Fodor, “sem representação, sem computação” (1975, p. 31). Ou
seja, se adotarmos uma noção mais restrita de computação e de símbolos, nem tudo
transforma símbolos. Crane introduz uma distinção útil entre instanciar uma função e
computar uma função. Segundo ele, “computar uma função, então, requer
representações: representações como input e representações como output” (CRANE,
2003, p. 103). O mesmo não ocorre na instanciação de uma função. Ele observa que
os planetas, por exemplo, instanciam as leis do movimento de Newton, mas os
planetas “não ‘computam’ suas órbitas a partir do input que recebem: eles apenas se
movem” (Ibidem).
Seguindo essa distinção, podemos dizer que nem tudo executa computações.
As moléculas de uma parede possivelmente instanciam funções, mas não computam
funções, recebendo representações como inputs e devolvendo outras representações
como outputs. Isso porque, apesar de podermos atribuir zeros e uns às moléculas da
parede, é duvidoso que esses zeros e uns de fato representem algo, ou que uma
parede transforme representações da mesma forma que um computador ou o cérebro.
Essa concepção mais restrita de computação, que requer representação, poderia
então bloquear a objeção de que dizer que o cérebro é um computador é dizer algo
trivial, que pode ser dito de qualquer coisa.
71
Por que as moléculas da parede não representam nada, mas o cérebro sim?
Algo que podemos dizer é que para explicar o comportamento de moléculas na
parede, não há necessidade de atribuir-lhes representações, e transformações
sintáticas de representações. A atribuição de representações mentais a humanos e
animais, pelo contrário, permite explicar seus comportamentos. Como observa
Bermúdez,
Moléculas da parede não são seres cognitivos. Elas podem reagir a coisas, mas não
há necessidade de explicar essas reações em termos de representações ou símbolos.
Para tanto, podemos simplesmente apelar para as leis da química e da física. E se
paredes não têm representações, elas também não têm computações, no sentido
relevante do termo.
Searle insiste, no entanto, que “o problema realmente profundo é que a
sintaxe é essencialmente uma noção relativa a um observador. Não podemos, por um
lado, dizer que qualquer coisa a que pudermos atribuir sintaxe é um computador
digital, e depois supor que há uma questão factual intrínseca ao seu funcionamento
físico se um sistema natural como o cérebro é ou não um computador digital. (…)
Estados computacionais não são descobertos na física, eles são atribuídos à física.
(SEARLE, 1992, pp. 209-10, grifos do autor).
Mas se aceitarmos uma noção mais restrita de computação, nem tudo
contará como um computador, ou como algo a que podemos atribuir um nível sintático
72
e simbólico de explicação. E se for esse o caso, não está tão claro que a sintaxe seja
inteiramente dependente de um observador. Penso que a melhor maneira de
determinar se a sintaxe é ou não uma propriedade intrínseca de um sistema é
considerar se ela nos permite explicar melhor o comportamento desse sistema. A
suposição de que um computador segue um determinado programa claramente serve
para explicar seu comportamento. Parte da explicação de por que meu computador
funciona da maneira que funciona envolve dizer que ele instancia um programa
específico, e não outro. Uma explicação restrita ao hardware, ou aos outputs de um
computador, deixaria de fora uma descrição relevante de seu funcionamento. O
mesmo não acontece com a explicação do comportamento de uma parede ou de suas
moléculas. Primeiro, porque é questionável que suas moléculas realizem qualquer
computação (no sentido de computação envolvendo transformações sintáticas de
representações). Mas mesmo que adotemos uma noção suficientemente ampla de
computação e aceitemos que podemos atribuir representações às moléculas da
parede e supor que ela implementa um programa, nada disso serve para explicar o
comportamento da parede. Não existe uma teoria computacional de paredes porque
nada é explicado pela suposição de que as moléculas da parede computam qualquer
coisa. No caso da parede, temos motivos para aceitar que a atribuição da sintaxe
dependeria inteiramente de um observador. Mas no caso dos computadores, a sintaxe
desempenha um papel causal no sistema, o que indica que é independente de
qualquer observador.
A pergunta que devemos fazer, então, é se a suposição de que o cérebro é
um computador serve para explicar coisas que de outra forma não conseguiríamos
explicar. Está na base das ciências cognitivas a ideia de que a atribuição de
processamento de informação ao cérebro serve para explicar diversas capacidades
cognitivas (como percepção, raciocínios, memória, etc.). Considerando que a
atribuição de processamento de informação está na base de um programa de
pesquisa considerado bem-sucedido, temos motivos para crer que algo relevante e
informativo está sendo dito quando dizemos que o cérebro processa informação.
Penso, então, que se a suposição de que o cérebro realiza transformações de
símbolos nos permite explicar certos processos mentais, como muitos cientistas
cognitivos aceitam, podemos dizer, contra Searle, que a sintaxe é uma propriedade
intrínseca do sistema, talvez de ordem superior, como diria Fodor. Caso contrário,
como explicamos o sucesso dessas explicações cognitivas? Parece haver questões
factuais sobre quais computações o cérebro realiza, que podem ser investigadas por
73
cientistas cognitivos, assim como há uma questão de fato sobre qual programa meu
computador está executando agora. Em suma, se a sintaxe tem um papel explicativo
para a cognição, ela provavelmente não depende de um observador, assim como o
programa que um computador segue não é algo que depende de um observador.
Uma das razões de Searle para dizer que a sintaxe e os símbolos não são
intrínsecos à física é que eles “não são definidos em termos da física. Embora os
tokens de símbolo sejam sempre tokens físicos, ‘símbolo’ e ‘mesmo símbolo’ não são
definidos em termos de características físicas. A sintaxe, em suma, não é intrínseca à
física.” (1992, p. 225). Isso o leva à ideia de que as computações são sempre
atribuídas de fora, por um observador, e, portanto, nunca podem ser descobertas no
mundo, nem ter poder causal. Mas inferir que algo só existe em relação a um
observador a partir do fato de que esse algo não tem uma definição em termos físicos
é extremamente questionável. Corações, cadeiras, aviões e crenças não têm
definições em termos físicos (mas sim definições em termos de suas funções), e isso
não nos leva a afirmar que eles só existem com relação a um observador. Searle
parece simplesmente dogmaticamente se recusar a aceitar que a sintaxe e símbolos
podem existir e desempenhar um papel causal em um sistema porque eles não estão,
por assim dizer, lá para qualquer um ver, como o hardware ou os outputs de um
sistema. Searle estipula que poderes causais são completamente determinados pelas
entidades de que tratam as ciências mais básicas, ignorando o fato de que as ciências
especiais atribuem poderes causais a propriedades de nível mais alto, e muitas vezes
multiplamente realizáveis. Assim, na visão de Searle, apenas entidades físicas
concretas podem ter poder causal; símbolos nem sequer existem independentemente
de um observador:
74
Mas o nível do programa é apenas um dos níveis de descrição de fenômenos mentais.
Podemos aceitar que programas não têm poder causal enquanto abstrações, mas
apenas quando implementados. Mesmo que a sintaxe não tenha uma definição em
termos físicos, disso não se segue que ela não existe, ou que seja causalmente inerte.
Como observa Fodor (1990), muitas vezes atribuímos poderes causais a propriedades
que não são definíveis em termos físicos. Dizemos que as asas de um pássaro, ou de
um avião, os fazem voar, embora as asas sejam multiplamente realizáveis, e não
definíveis em termos do material de que são feitas. Então, “se há um ponto a favor do
epifenomenalismo em relação às propriedades psicológicas [e, poderíamos
acrescentar, sintáticas], então há o mesmo ponto para o epifenomenalismo em relação
a todas as propriedades não físicas mencionadas em teorias nas ciências especiais”
(FODOR, 1990, p. 140). Penso, então, que Searle tem uma visão muito estreita do que
pode contar como uma entidade com poderes causais. Se existem explicações
computacionais bem sucedidas sobre a mente, então existem propriedades sintáticas
e símbolos com poderes causais, independentemente de eles poderem ser ou não
definidos em termos físicos.
Podemos, é claro, questionar até que ponto esse nível computacional
consegue explicar a mente. Talvez ainda não tenhamos conhecimento suficiente do
cérebro e da mente para determinar se ele é de fato indispensável. Mas supondo que
o nível computacional seja bem sucedido em explicar certos aspectos da cognição,
seu sucesso explicativo deve ser tomado, a meu ver, como uma indicação de sua
realidade objetiva e da eficácia causal dos símbolos mentais.
75
pode ser razoável supor, com Searle, que sua constituição física será relevante para
garantir que elas possam ter estados intencionais.
Acho, no entanto, que Fodor está certo ao enfatizar que as relações causais
com o mundo são relevantes para a existência desses estados, um ponto não
enfatizado por Searle. É razoável que nossos estados intencionais dependam de
alguma forma de nossa interação com o ambiente e que eles não sejam apenas um
produto do cérebro. Mas a visão de Fodor certamente é um pouco misteriosa, pois em
nenhum lugar ele diz quais são as relações causais corretas que dão origem à
intencionalidade, nem que tipos de entidades podem estar nessas relações. E
entidades com cérebros são o único exemplo que temos até agora de coisas que
entram em tais relações causais.
A melhor abordagem, a meu ver, é combinar as duas posições. Em nosso
estado atual de conhecimento, o cérebro, juntamente com a forma com que ele se
relaciona causalmente com o mundo, é nosso melhor indicador do que é necessário
para que haja intencionalidade (e também consciência). É razoável supor que, se a
intencionalidade existir em algo diferente do cérebro, ela será em parte o resultado da
estrutura física de um sistema, como diria Searle, e em parte um produto dos tipos de
conexões causais que esse sistema mantém com o mundo, como diria Fodor.
Basicamente, seus pontos de vista a esse respeito não são mutuamente exclusivos;
eles se complementam.
Também concordo com Searle em sua crítica à atitude de considerar o
cérebro como sendo irrelevante para o estudo da mente. Fodor às vezes exibe essa
atitude, talvez porque ele considera que a psicologia é uma ciência autônoma em
relação à neurociência (FODOR, 1975). Mas Searle não só enfatiza a importância do
cérebro, como nega também a existência de um nível computacional de explicação
dos estados mentais. E essa atitude, assim como a de Fodor, também parece
inadequada. É possível aceitar que o cérebro de fato contribui de maneira relevante
para a intencionalidade, e que estudar o cérebro pode nos ajudar a entender a mente,
aceitando também que existe um nível de explicação psicológica, que faz referência a
processos computacionais e a uma linguagem de pensamento.
No auge do funcionalismo, alguns filósofos e cientistas cognitivos pensavam
que o nível computacional capturava tudo o que é essencial aos estados mentais, e
tendiam a dizer que a reprodução desse nível seria suficiente para produzir um
sistema com estados mentais. Isso levou à ideia, da qual Searle é crítico, de que
sistemas produzidos a partir de qualquer tipo de material (válvulas, um conjunto de
76
pombas ou rolos de papel higiênico etc.) poderiam ter estados mentais, desde que
implementassem o programa certo. Mas é possível aceitar que existe um nível
computacional de explicação da mente sem aceitar que ele especifica tudo o que é
essencial aos estados e processos mentais e, portanto, sem aceitar que estados
mentais sejam realizáveis em qualquer tipo de material. Podemos aceitar que existe
um nível de explicação neurobiológica, e que existe um nível de explicação
computacional da mente, sem aceitar que qualquer um sozinho capture a essência
completa da mente. Ambos poderiam ter uma certa autonomia com relação ao outro,
no sentido de que cada um teria suas próprias leis e entidades, que não fazem
referência às leis e entidades do outro nível. Além disso, mesmo aceitando uma certa
autonomia entre os dois níveis, podemos aceitar que o estudo do cérebro pode nos
ajudar a compreender a mente, e vice-versa, na medida em que nosso conhecimento
das correlações entre estados neurais e mentais aumenta. Em suma, Searle parece
querer negar que haja um nível computacional de explicação para evitar a aceitação
da realização múltipla forte. Mas o nível computacional de explicação, por si mesmo,
não implica a independência ontológica de estados mentais com relação a estados
cerebrais, ou seja, não implica que estados mentais possam ser realizados em outros
materiais que não o neurobiológico.
Mas, novamente, é possível que Searle esteja certo e a intencionalidade seja
um produto do cérebro. Talvez estados intencionais só possam existir em algo com os
poderes causais do cérebro. Mas mesmo que isso seja verdade, as ciências cognitivas
nos dão uma boa indicação de que computações nos ajudam a explicar processos
mentais. Ao afirmar que existem apenas dois níveis de explicação da mente (i.e., o
nível da consciência e o da neurociência), Searle paga o preço de recusar um vasto
programa de pesquisa que explica processos cognitivos em termos de processamento
de informação, sem nos oferecer explicações alternativas. Quanto a Fodor, mesmo
que ele esteja certo e exista uma linguagem do pensamento, cujos símbolos entram
em processos computacionais, isso não significa que processos mentais possam ser
implementados em qualquer tipo de material. A melhor abordagem, a meu ver, é uma
que reconhece a relevância tanto de um nível computacional, como do cérebro, para a
explicação de estados mentais, ou seja, uma combinação das visões de Fodor e
Searle.
77
Agradecimentos
Referências
78
FODOR, J. A. “Making mind matter more”. In: Theory of content and other essays.
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79
O problema do especialista e as propriedades
representadas na percepção
Introdução
É parte do senso comum que o conhecimento que uma pessoa tem sobre
arte altera a sua avaliação estética sobre arte. Uma explicação para essa intuição
pode ser dada em termos de percepção de propriedades estéticas que o especialista
ou crítico de arte percebe. Uma vez que as experiências perceptivas de obras de arte
parecem variar de acordo com a perícia artística, o especialista parece perceber mais
propriedades que o não especialista. Assim, podemos considerar como hipótese que o
especialista julga melhor a arte porque percebe mais propriedades em obras de arte
(STOKES, 2014, p. 1). Mas, se ele percebe mais, como isso se daria ou como isso é
possível? Me referirei a essa questão como o “problema do especialista”.
O problema do especialista e uma resposta a ele aparecem classicamente
em Frank Sibley (1959). O trabalho do crítico de arte seria o maior exemplo do que
ele chama de “exercício do gosto”. Ao tentar distinguir os conceitos estéticos dos não
estéticos, Sibley propõe que os conceitos estéticos são aqueles que requerem o
exercício do gosto. O exercício do gosto seria uma perspicácia ou sensibilidade em
apreendermos certas qualidades estéticas dos objetos e eventos de arte, e também do
que não é arte. O crítico de arte, seria então um especialista em arte porque consegue
distinguir melhor, ou perceber mais que o não especialista, quais são as propriedades
estéticas de uma obra de arte.1 Sibley parece seguir a intuição de que há propriedades
instanciadas no objeto que tornam possível que alguns as percebam e outros não.2
1
Sibley (1959, 1965) não usa o termo “propriedades” e sim “características” ou “qualidades”
das coisas. Usarei o termo “propriedades” de forma intercambiável com “qualidades” por ser o
termo mais usado na literatura recente.
2
Embora Sibley não tenha defendido isso dessa maneira, é o modo como alguns filósofos o
interpretam. Não pretendo discutir aqui questões relacionadas à natureza das propriedades
estéticas, o que me interessa é a estrutura da percepção ou experiência visual.
Um debate mais recente em filosofia da percepção pode nos ajudar a pensar
se percebemos propriedades estéticas nas experiências visuais. Uma explicação
plausível para o problema do especialista pode ser dada com a Abordagem do
Conteúdo Rico (Rich Content View), proposta por Susanna Siegel (2006, 2010). Siegel
defende que em nossas experiências visuais podemos representar, além de cores e
formas, propriedades como, por exemplo, ser um pinheiro ou ser uma casa. A
abordagem de Siegel contraria a visão de que apenas representaríamos propriedades
como cores e formas e que algo como ser um pinheiro nos seria dado ao nível de
nossas crenças, mesmo que com base na percepção. O que Siegel defende é que ser
um pinheiro é uma propriedade que podemos experienciar visualmente, assim como
minha experiência da propriedade de ser vermelho de uma pintura de Rothko.
A percepção de propriedades que não são cores, formas, iluminação e
volumes, segundo Siegel, se dá quando o sujeito adquire uma disposição (disposition)
ou sensibilidade de reconhecimento (recognitional sensitivity), por exemplo, de um
pinheiro, de uma bola ou de uma casa. Essa disposição de reconhecimento vem
acompanhada de uma mudança na fenomenologia da experiência sensível. O que a
leva a defender que o que faz essa mudança na fenomenologia das experiências é a
percepção do que ela chama de propriedades K, isto é, todas as demais propriedades
que não são cores e formas.
Considerando a tese de Siegel, podemos investigar se propriedades estéticas
são experienciadas visualmente. Tradicionalmente, as propriedades estéticas são
consideradas como propriedades distintas de cores e formas, sendo cores e formas
típicos exemplos de propriedades não estéticas. Mesmo que não saibamos qual a
natureza das propriedades estéticas, podemos considerar alguns exemplos
paradigmáticos, como algo ser belo, gracioso, equilibrado, delicado, elegante,
dinâmico, extravagante, entre outros (DE CLERCQ, 2008, p. 895). Se propriedades
estéticas não são cores e formas, então, elas estão dentro do escopo do que Siegel
chama de “propriedades K”. Assim, propriedades estéticas são possíveis candidatas a
serem propriedades que podem ser representadas na experiência visual.
Neste capítulo, inicialmente apresentarei brevemente o problema do
especialista em arte. Em seguida, apresentarei a tese de Siegel sobre quais
propriedades são representadas na experiência visual, que defende que em algumas
experiências visuais algumas propriedades K são representadas. Mencionarei, então,
brevemente algumas objeções a essa tese, apenas para mostrar um pouco do debate
em torno da questão. E, por fim, tentarei mostrar que exemplos em estética podem
81
favorecer a tese de Siegel e que esta tese fornece uma boa explicação para o
problema do especialista em arte.
3
Tradução minha do original: “(…) broadly speaking, aesthetics deals with a kind of perception.
People have to see the grace or unity of a work, hear the plaintiveness or frenzy in the music,
notice the gaudiness of a color scheme, feel the power of a novel, its mood, or its uncertainty of
tone. They may be struck by these qualities at once, or they may come to perceive them only
after repeated viewings, hearings, or readings, and with the help of critics. (…) the crucial thing
is to see, hear, or feel. To suppose indeed that one can make aesthetic judgments without
aesthetic perception, say, by following rules of some kind, is to misunderstand aesthetic
judgment.”
82
Mas, alguém poderia sustentar que a atitude do especialista de tentar nos
fazer ver o que ele vê, em uma pintura, por exemplo, não mostra que ele perceba mais
propriedades. De modo que o especialista apenas faria um julgamento estético
baseado em seu conhecimento, mas ele não necessariamente perceberia mais
propriedades estéticas que outros.
A questão do especialista poderia, então, ser posta ao nível de julgamentos
estéticos e não da percepção estética. O especialista julgaria melhor, mas não
perceberia mais e não poderia nos fazer ver o que ele vê, ele apenas poderia nos
fazer compreender seu julgamento e concordar ou não com ele. Alguém que defenda
que não percebemos propriedades estéticas poderia argumentar que apenas falamos
que “vemos a beleza de uma flor” de forma figurativa, como falamos, por exemplo, que
“vemos a força de um argumento”, quando na verdade apenas estamos julgando que
algo é belo ou que algo é forte.
É de comum acordo que julgamentos, crenças e conhecimentos, são distintos
da experiência perceptiva e sensível. Fazemos julgamentos sobre algo ser belo e algo
ser forte. Porém, intuitivamente parece haver algo ao nível da experiência sensível
envolvendo, por exemplo, a experiência da beleza e outras propriedades estéticas. A
controvérsia parece estar em se percebemos ou não propriedades estéticas.
Sibley (1959) afirma que o método do crítico de arte consiste em apontar as
propriedades estéticas e não estéticas que ele vê, por exemplo, em uma pintura. Mas,
ainda parece faltar uma explicação sobre como percebemos propriedades estéticas,
se realmente as percebemos. Veremos a seguir como uma discussão recente em
filosofia da percepção pode dar uma resposta para o problema do especialista, ou
seja, para como o especialista pode perceber propriedades que supostamente o leigo
não percebe. Uma resposta que aceita que há algo que ocorre ao nível dos nossos
julgamentos estéticos e que, além disso, há algo que ocorre na experiência perceptual
quando o especialista sabe mais ou conhece mais que o não especialista.
83
Uma explicação sobre como percebemos propriedades na experiência visual e sobre
quais propriedades percebemos parece ser requerida.
Susanna Siegel (2006, 2010) investiga quais são as propriedades
representadas na experiência visual.4 De forma mais específica, ela investiga se
alguma experiência sensorial representa alguma propriedade que não seja cor, forma,
iluminação e movimento (propriedades espaciais). Para facilitar, me referirei a essas
propriedades apenas como cores e formas.5 Siegel concorda com a tese, comumente
aceita, de que propriedades como cores e formas são representadas na experiência
visual. Por exemplo, que representamos as propriedades de ser vermelha e ser
esférica na experiência visual de uma bola vermelha. Além disso, ela defende a tese
mais controversa de que, além de propriedades como cores e formas, representamos
em nossas experiências visuais outras propriedades como a propriedade de ser um
pinheiro, ser uma casa, ser uma bola, entre outras. Ela chama essas demais
propriedades de “propriedades K” (K-properties). As propriedades K incluem algumas
propriedades de tipos ou espécies naturais (natural kind properties), por exemplo, ser
um pinheiro, não se limitando a elas. Elas também incluem as propriedades
artefatuais, por exemplo, ser uma casa, e ainda as propriedades semânticas das
palavras e frases, as propriedades causais6, entre outras. Siegel propõe a seguinte
tese7:
4
Embora a abordagem do conteúdo rico possa ser expandida para outras modalidades da
experiência, o foco de Siegel é a experiência visual.
5
Na literatura recente, essas propriedades são também chamadas de “propriedades de nível
baixo” (low-level properties). Por outro lado, propriedades semânticas, propriedades estéticas,
propriedades emocionais, entre outras, são chamadas de “propriedades de nível superior”
(high-level properties) (SIEGEL, 2016, STOKES 2018). Além disso, alguns chamam (e algumas
vezes Siegel) as propriedades que não são cores e formas de “propriedades complexas”.
6
Siegel (2010, 177-139) discute a experiência visual da causação. Nanay (2011, 2012) discute
a representação de propriedades disposicionais nas experiências visuais.
7
Siegel (2010, 2016, 2017) chama a Tese K de “Abordagem do Conteúdo Rico” (Rich Content
View), ao qual alguns filósofos (BYRNE 2017, STOKES 2018) opõe a abordagem do conteúdo
fino (thin) ou escasso (sparse), em que apenas as propriedades como cores e formas seriam
representadas na percepção. Tim Bayne (2009) chama a concepção de conteúdo rico de
“liberal” em oposição a concepção “conservativa”.
84
Tese K: Em algumas experiências visuais, algumas
propriedades K são representadas. (SIEGEL, 2006, p. 482)8.
Uma ocorrência (token) de uma experiência visual pode ser categorizada como
verídica ou inverídica com respeito a uma dada situação. Se forem categorizadas
8
Tradução minha do original: “Thesis K: In some visual experiences, some K-properties are
represented.”
9
Tradução minha do original: “When experiences have content, they represent – perhaps
inaccurately – that such-and-such is the case. They represent that certain things have certain
properties. (…) In general (…), when experiences represent that a thing x has property F, it is
representing the property F. So visual experiences represent properties.”
85
assim, elas têm condições de veridicidade (veridicability conditions). Siegel (2010, p.
30) defende que somente a noção de condições de veridicidade não é suficiente para
elucidar a noção de conteúdo da experiência. Uma vez que todas as experiências
verídicas satisfazem a mesma condição de serem verídicas. Elas possuem assim o
mesmo conteúdo. Mas duas experiências verídicas podem ter conteúdos diferentes.
As condições de acurácia podem melhor explicar esses diferentes conteúdos da
experiência, de acordo com Siegel (2010, pp. 30-32). Se uma experiência for verídica
com respeito a uma dada situação, ela será acurada com respeito a essa situação, por
exemplo, a de haver um gato cinza em minha frente. Se a experiência não for acurada
não há um ajuste entre a experiência e o mundo. No entanto, as condições de
acurácia da experiência podem ser separadas em diferentes conteúdos, em relação a
cada propriedade ou conjunto de propriedades apresentadas na experiência. Por isso,
a ideia de acurácia é a de que ela pode vir em grau, ou seja, que uma experiência
pode ser parcialmente acurada (SIEGEL, 2010, pp. 31-32). Por exemplo, a experiência
visual de um gato cinza deitado ao lado direito de um balde pode ser acurada em
relação a cor do gato se ele for cinza, mas pode não ser acurada em relação a
localização se ele estiver, na realidade, deitado ao lado esquerdo do balde. Neste
caso, há condições de acurácia satisfeitas e outras não satisfeitas de acordo com as
propriedades instanciadas pelos objetos que são apresentados na experiência visual.
Assim, todas as experiências incluem relações com propriedades
apresentadas pela experiência e elas são acuradas somente se essas propriedades
são instanciadas pelos objetos da experiência. Siegel (2010, p. 46) defende que o que
figura na experiência, ou seja, que tem uma fenomenologia, são as propriedades
instanciadas por objetos particulares. Isso permite a ligação com as condições de
acurácia, ou seja, com os conteúdos da experiência.
A abordagem do conteúdo rico sustenta que as experiências perceptuais
representam outras propriedades além de propriedades como formas e cores.
Segundo essa abordagem, o conteúdo da experiência perceptual é rico porque ele
envolve condições de acurácia em relação às propriedades, que não são somente
cores e formas, instanciadas pelos objetos e apresentadas na experiência. Deste
modo, a discussão sobre quais propriedades representamos nas experiências
perceptuais é uma discussão sobre quais são os conteúdos da experiência.
Embora as experiências perceptuais se assemelhem às crenças por
envolverem estados intencionais e conteúdo, as experiências perceptuais se
distinguem de crenças nos seguintes aspectos. Elas podem ter conteúdos diferentes
86
das crenças e elas nem sempre envolvem atitudes proposicionais do sujeito em
direção ao conteúdo, como as crenças envolvem (SIEGEL, 2010, p. 73). Além disso,
as experiências perceptuais possuem um caráter fenomenal que as caracteriza,
enquanto que o conteúdo de crenças pode ou não estar associado, de forma
contingente, a um caráter fenomenal.
Muitos filósofos, assim como Siegel, aceitam que experiências têm um
caráter fenomenal ou uma fenomenologia. Esse caráter fenomenal pode ser melhor
entendido com a expressão “como é para um sujeito realizar uma experiência” (what it
is like for a subject to undergo an experience). A expressão, que ficou conhecida a
partir do artigo de Thomas Nagel “What is it like to be a bat?” (1974), pode ser
entendida como aquele aspecto sensorial consciente do sujeito quando ele
experiencia algo. Por exemplo, na experiência visual de uma bola vermelha diante de
mim, há algo para mim que é tal como ver a bola vermelha quando realizo a
experiência da bola vermelha. De forma geral, entende-se que os eventos que
envolvem os sentidos têm uma fenomenologia sensorial associada a eles.
A fenomenologia da experiência geral ou como um todo (overall experience)
é distinta da fenomenologia da experiência sensorial (relativa aos nossos cinco
sentidos), de acordo com SIEGEL, (2006, p. 484). Há uma fenomenologia da
experiência geral que inclui a experiência cinestésica, a emocional, a imaginativa, e da
qual a experiência sensorial é uma parte (SIEGEL, 2006, p. 484-485)10. Por exemplo,
imagine que você está em uma festa dançando. Sua experiência geral de estar
dançando na festa envolve estados fenomenais associados a sentir a música pulsando
em seu corpo, sentir o movimento e o equilíbrio de seu corpo, sentir o cheiro do lugar,
ouvir a música, ver as pessoas dançando ao seu redor, ver as luzes coloridas se
alternando, sentir calor, sentir felicidade, entre outros. Nesse exemplo, a experiência
geral inclui a experiência sensorial e, mais especificamente, a experiência visual. Nas
experiências envolvendo os nossos sentidos, cada um deles vem acompanhado de
um tipo de fenomenologia, embora muitas vezes seja difícil caracterizar os limites de
10
Siegel considera que há alguns tipos de experiência difíceis de classificar, como por exemplo
a experiência de ver “estrelas” quando nos levantamos rapidamente, ou quando fechamos os
olhos e olhamos para o céu ou alguma fonte de luz, ou ainda as experiências de phosphenos,
que são aquelas que temos quando fechamos os olhos e os pressionamos, entre outras. No
entanto, a caracterização da relação destas sensações visuais e a experiência perceptual
visual em que eles ocorrem, ou mesmo experiências de outra modalidade, não são o foco de
seu trabalho (2010, pp. 24-25).
87
cada um (SIEGEL, 2006, p. 485). De forma geral, podemos distinguir o que é ter uma
experiência de ver uma rosa vermelha de ouvir uma peça musical ou de sentir algo em
nosso corpo.
Quando propriedades são representadas na experiência visual há uma
fenomenologia associada às representações. Propriedades também podem ser
representadas sem que haja uma fenomenologia associada a elas, por exemplo, em
atitudes proposicionais como crenças, desejos, pensamentos e juízos. Isso não
significa que esses estados também não possam ter uma fenomenologia associada a
eles. No entanto, o caráter fenomenal das experiências sensoriais é o que as
caracteriza.
Há um debate em filosofia da mente sobre qual é a relação entre
propriedades representacionais e propriedades fenomenais, por exemplo, se elas se
relacionam de forma necessária ou de forma meramente contingente. No primeiro
caso, se elas são idênticas ou se uma (a propriedade representacional) constitui a
outra (a propriedade fenomenal), etc. A proposta de Siegel, sobre representação de
propriedades K na experiência visual, pretende ser neutra sobre a natureza metafísica
de tal relação entre o representacional e o fenomenal. O que ela apenas sugere é que
se a representação de propriedades como cores e formas na experiência sensorial
tem uma fenomenologia associada a ela, a representação de propriedades K também
terá (SIEGEL, 2006, p. 485).
88
O primeiro caso de contraste fenomenal envolve uma disposição para
reconhecimento de propriedades semânticas de um texto. Suponha que alguém
encontre uma página de um texto escrito em cirílico11, sem conhecer este alfabeto. Ao
não compreender o significado das palavras e frases ela vê os caracteres da escrita
cuja forma lhe chamam a atenção. Suponha que a pessoa aprenda a ler russo. Ela
agora se torna mais disposta a focar a atenção nas propriedades semânticas das
palavras e frases do texto e menos disposta a focar a atenção visualmente nas
propriedades gráficas do texto (SIEGEL, 2006, pp. 490-491). Neste caso, parece haver
uma diferença fenomenológica entre as experiências do texto, de antes e depois dela
aprender a ler russo.
O segundo caso envolve uma disposição de reconhecimento de árvores de
tipo pinheiro. Suponha que uma pessoa é contratada para podar pinheiros em um
bosque onde há vários outros tipos de árvores. Ela não sabe quais são os pinheiros e,
então, alguém mostra para ela quais árvores devem ser cortadas. Depois de algum
tempo, ela consegue distinguir bem entre pinheiros e não pinheiros. De modo que os
pinheiros se destacam visualmente para ela. Neste caso, o ganho dessa disposição de
reconhecimento de pinheiros se reflete em uma diferença fenomenológica entre as
experiências de antes e depois dela aprender a reconhecer pinheiros (SIEGEL, 2006,
p. 491).
Após o ganho da capacidade de reconhecimento de pinheiros e do
significado do texto em cirílico, há uma mudança no modo como as coisas aparecem
para o sujeito na experiência. Esse contraste na fenomenologia no par de experiências
em dois momentos distintos, antes e depois de um sujeito adquirir uma capacidade de
reconhecimento, segundo Siegel, é o que pode nos ajudar a descobrir se
representamos propriedades K.
Consideremos o caso árvore. A experiência visual do sujeito antes do
reconhecimento de pinheiros será chamada de E1 e a experiência visual após o
reconhecimento de pinheiros de E2. A premissa inicial (0) é considerada por Siegel
uma premissa intuitiva e que poderia facilmente ser aceita por todos, enquanto as
outras três premissas são as substanciais no seu argumento. O argumento da tese K é
então ser formulado da seguinte maneira:
11
“Cirílico” é o nome do alfabeto de línguas eslavas, dentre elas a língua russa.
89
(1) Se a experiência geral da qual E1 é uma parte difere da
fenomenologia geral da qual E2 é uma parte, então há uma
diferença fenomenológica entre as experiências sensoriais
E1 e E2.
(2) Se há uma diferença fenomenológica entre as experiências
sensoriais E1 e E2, então E1 e E2 diferem em conteúdo.
(3) Se há uma diferença no conteúdo entre E1 e E2, é uma
diferença em relação às propriedades K representadas em
E1 e E2. (SIEGEL, 2006, p. 491)12
Siegel considera a premissa inicial (0) intuitiva. Em seguida, ela alega que, em tais
casos, o ganho de uma disposição de reconhecimento do observador é acompanhada
por uma diferença na fenomenologia da experiência visual E2. Então, ela sugere que a
diferença na fenomenologia visual pode ser explicada pela representação de
propriedades K. A sua defesa da tese K consiste em descartar outras possibilidades
que expliquem esse contraste fenomenal entre G1 e G2.
90
fenomenal, mostrando os problemas de outras possíveis explicações para o contraste.
No entanto, bastaria alguém não estar de acordo com a intuição de que existe
contraste fenomenal nos casos apresentados por Siegel (premissa intuitiva do
argumento) para negar a tese K. Por outro lado, mesmo aceitando que há um
contraste fenomenal, parte das objeções à tese de Siegel consistem em alegar que
não se pode concluir que do contraste fenomenal entre as situações apresentadas,
propriedades K sejam representadas. Nesta linha, pode-se tentar explicar o contraste
fenomenal da experiência do especialista de outra maneira, sem envolver a
representação de propriedades K, como por exemplo, com a defesa do refinamento da
percepção ou pela gestalt.
Uma posição contra a tese de Siegel dentro do escopo representacionalista
seria a defesa de que o especialista percebe de uma forma mais refinada as
propriedades como cores e formas de uma espécie como um pinheiro, o que tornaria
possível o reconhecimento dessa espécie (TYE, 1995, 2000). A diferença
fenomenológica também poderia ser explicada em termos de uma fenomenologia
cognitiva associada a pensamentos que o especialista tem ao observar uma espécie
biológica (DRETSKE, 2015).
Para David Papineau (2021), que não aceita que haja uma relação
necessária entre propriedades fenomenais e propriedades representacionais, uma
mudança fenomenal, como a descrita nos exemplos de Siegel, não significa que
necessariamente haja uma mudança representacional em termos de propriedades que
são apresentadas na experiência. Papineau (2021, p. 145-152) defende que uma
explicação para a defesa do conteúdo rico da experiência pode ser dada em termos de
gestalt.
Uma outra posição seria questionar a importância da questão. Heather Logue
(2013) analisa argumentos contrários e a favor da percepção de propriedades de nível
superior e chega à conclusão de que ambos os argumentos não são decisivos. Ela
alega, então, que isso indica que não há uma questão importante, uma vez que é
indeterminado se percebemos ou não propriedades de tipo natural, como algo ser um
pinheiro.
Outras objeções podem ser levantadas contra a tese de Siegel envolvendo
questões anteriores à discussão sobre quais são os conteúdos da experiência. Por
exemplo, há posições contrárias à ideia de que experiências têm conteúdo e, além
disso, de que as experiências têm conteúdo representacional. O debate, então, seria
entre teorias representacionalistas e não representacionalistas, ou entre outras
91
diferentes abordagens da percepção. Esse debate será deixado de lado aqui. Não
aprofundarei e nem discutirei as objeções, apenas tentarei mostrar, a seguir, que se
pensarmos em termos de percepção estética, os casos em estética favorecem a tese
de Siegel.
13
Estreada em 1877 no Teatro Bolshoi de Moscou, a partir da composição de Tchaikovsky.
92
reconhecimento da graciosidade do movimento será chamada de B2. A premissa
inicial (0) é a de que há uma mudança na fenomenologia entre as experiências gerais
do qual B1 e B2 fazem parte. O argumento da tese K para o caso ballet pode ser
formulado da seguinte forma:
93
6. Considerações finais
A abordagem do conteúdo rico, por ser uma abordagem controversa, deve
ser melhor investigada.14 A tese de Siegel requer muitos outros estudos, como uma
análise mais detalhada das posições oponentes ou que lançam problemas a ela: uma
concepção não representacional da percepção ou experiência; a abordagem da
gestalt; o quanto o tipo de relação entre propriedades representacionais e
propriedades fenomenais poderia afetar a sustentação da tese K; se os argumentos
contra e a favor ao conteúdo rico em relação a propriedades de tipos naturais podem
ser aplicados a propriedades estéticas; e, ainda, em que medida a tese K difere da
tese da penetrabilidade cognitiva ou se ela é uma versão desta última. Além disso,
uma análise de outras propostas em defesa do conteúdo rico seria interessante. Uma
vez que algumas delas defendem a tese de que representamos ou percebemos
propriedades para além de cores e formas em nossas experiências, porém sem usar o
método de contraste fenomenal.
Por hora, podemos concluir que se a tese de Siegel estiver correta, as
propriedades K incluiriam as propriedades estéticas, e assim, as propriedades
estéticas poderiam ser representadas nas experiências visuais. Sendo a tese K uma
boa forma de responder ao problema do especialista em arte. Por outro lado,
exemplos em estética podem favorecer a tese de Siegel, embora ela mesma se
atenha a outros tipos de propriedades.
Agradecimentos
14
Este capítulo faz parte de minha pesquisa de doutorado em andamento, em que aprofundo a
investigação sobre questões esboçadas aqui.
94
durante pesquisa financiada pela FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo
à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
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95
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HAWTHORNE, J. (eds). Perceptual Experience. Oxford: Oxford University Press.
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96
Poderá o platonismo da plenitude ser formalmente e
coerentemente interpretado?
1. As críticas de Restall
1
Linsky & Zalta (1995, 2006) também desenvolveram uma versão do platonismo da plenitude,
ligeiramente diferente da proposta de Balaguer.
98
proposta por Benacerraf (1965). Centrar-me-ei na primeira parte das objeções de
Restall, negando (através das ideias do próprio Balaguer) que o princípio da plenitude
formalmente interpretado implique afirmações contraditórias.
Sup. (2) P
(5) ◇(∃x) (Mx ⋀ ¬P) → (∃x) (Mx ⋀ ¬P) 1, Eliminação do Quantificador Universal
2
Cf. RESTALL (2003, p. 83)
100
Restall sugere, entretanto, outro modo de se formalizar a tese da plenitude,
modo esse que bloqueia tal inferência3. Tal estratégia consiste em acrescentar uma
conjunção na antecedente da fórmula, especificando que as propriedades sobre as
quais quantificamos têm de ser propriedades matemáticas. Obtemos, portanto, a
seguinte outra formalização:
3
Cf. RESTALL (2003, p. 85)
4
Cf. RESTALL (2003, p. 85)
5
Para qualquer conjunto X (infinito ou não), o conjunto potência de X consiste no conjunto de
todos os subconjuntos de X.
101
números racionais são enumeráveis6. Usamos a primeira letra do alfabeto hebraico “ℵ”
combinada a um índice numérico para representar a ordem dos cardinais transfinitos.
Assim, tal como há a série infinita dos números naturais (0,1,2,3,…), há também a
série infinita dos números cardinais transfinitos (ℵ0,ℵ1,ℵ2, …), a qual representa a
ordem crescente dos conjuntos infinitos. O conjunto infinito cuja cardinalidade é dada
pelo cardinal transfinito ℵ0 é um infinito menor comparativamente ao conjunto infinito
cuja cardinalidade é dada pelo cardinal transfinito ℵ1, tal como o conjunto infinito cuja
cardinalidade é dada por ℵ1 também é um infinito menor comparativamente ao
conjunto infinito cuja cardinalidade é dada por ℵ2, e assim sucessivamente.
Sabe-se que o menor cardinal transfinito — isto é, o primeiro membro da série
dos cardinais transfinitos (ℵ0) — é a cardinalidade dos números naturais. Em termos
informais, a HC consiste na afirmação de que o cardinal transfinito que corresponde à
cardinalidade do conjunto dos reais é o segundo menor cardinal transfinito (ℵ1), vindo
logo a seguir, na série dos transfinitos, ao cardinal transfinito correspondente à
cardinalidade do conjunto dos naturais. Em termos formais, esta afirmação é assim
formulada: 2 ℵ0 = ℵ1.
A ideia central de Restall é a de que pressupondo que a HC é uma afirmação
logicamente indecidível (dado não haver uma prova nem para a sua afirmação, nem
para a sua negação) e aceitando que x = 2 ∧ xℵ0 = ℵ1 seja um predicado
matemático, a seguinte fórmula parece ser verdadeira:
6
Que o conjunto dos números reais não é enumerável pode ser provado através do método de
diagonalização de Cantor. Para uma explicação simples e clara de como essa e outras provas
(a prova de que os racionais e os inteiros são enumeráveis, por exemplo) podem ser
formuladas, veja-se IMAGUIRE & BARROSO (2006, p. 40-44).
102
Consideremos então aquilo que parece ser a formalização mais adequada da
tese da plenitude, a saber:
(IX) 2ℵ0 ≠ ℵ1
Assim, a conclusão a ser traçada é que aquilo que parece ser a formalização
mais adequada da tese da plenitude implica uma contradição, pois tanto é possível
103
derivar a HC, como é possível derivar a negação da HC partindo da forma lógica
atribuída à tese da plenitude. Logo, nenhum defensor do platonismo da plenitude
poderá aceitar a ideia de que o princípio da plenitude possa ser formalizado como em
(1’).
2. A réplica de Balaguer
104
mais especificamente, descreve verdadeiramente a existência de um universo de
conjuntos.
Assim, tal como é verdade que tanto a teoria dos conjuntos de
Zermelo-Fraenkel em conjunção com o axioma da escolha (ZFE) como a teoria dos
conjuntos de Zermelo-Fraenkel em conjunção com a negação do axioma da escolha
(ZF + ¬E) descrevem ambas universos de conjuntos (porém universos de conjuntos
distintos), também é verdade que ambas ZFE + HC (teoria dos conjuntos de
Zermelo-Fraenkel em conjunção com o axioma da escolha e com a hipótese do
contínuo) e ZFE + ¬HC (teoria dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel em conjunção com
o axioma da escolha e com a negação da hipótese do contínuo) descrevem
verdadeiramente universos distintos de conjuntos. Desse ponto de vista, a
consistência de uma teoria dos conjuntos é condição suficiente para que possamos
postular a existência de um universo de conjuntos que satisfaça tal teoria. Noutras
palavras, “há tantos tipos diferentes de conjuntos quanto há teorias dos conjuntos
consistentes.” (BALAGUER, 1998, p. 59).
Desse modo, parece que a segunda objeção articulada por Restall, a qual
procura mostrar que o princípio da plenitude tal como formalizado em (1’) implica uma
contradição quando consideramos questões matemáticas logicamente abertas como a
HC7, pode ser dissolvida, se aceitamos a ideia de que qualquer modelo matemático
descreve verdadeiramente alguma parte do reino matemático. Entretanto, será essa
uma ideia plausível?
A consistência de uma dada teoria matemática não parece ser condição
suficiente para que tal teoria seja verdadeira. Evidentemente, se uma teoria
(matemática ou não) é consistente, então há pelo menos um modelo no qual é
verdadeira, porém a verdade de uma dada teoria em algum modelo não implica que tal
teoria seja verdadeira simpliciter. Assim, uma forma bastante promissora de recusar a
resposta de Balaguer à acusação de que a tese da plenitude implica contradições
matemáticas consiste em dizer que tal réplica baseia-se na falsa ideia de que a
consistência é suficiente para a verdade. Tal ideia não só é falsa, como também viola
as nossas intuições e a prática matemática; embora consistência seja condição
7
RESTALL (2003, p. 85) reconhece que a HC não é indisputavelmente uma questão
matemática logicamente indecidível. Oferece, contudo, outros exemplos de questões
matemáticas unanimemente encaradas como logicamente indecidíveis.
105
necessária para aceitar uma teoria matemática, não é, evidentemente, condição
suficiente.
Entretanto, do ponto de vista de Balaguer (1998, pp. 60-62), afirmar que se
há um modelo no qual uma dada teoria matemática é verdadeira, então tal teoria
descreve verdadeiramente uma parte da realidade matemática não viola o modo como
as teorias matemáticas são aceitas. Tipicamente, quando afirmamos que uma teoria
matemática W é verdadeira, aquilo que realmente queremos expressar é que W é
verdadeira nos modelos matemáticos padrões. Nessa perspectiva, uma teoria
matemática pode ser verdadeira, no sentido em que há pelo menos um modelo no
qual é verdadeira, mas não ser verdadeira nos modelos matemáticos padrões.
Obviamente, poderíamos perguntar o que é isso em virtude do qual um modelo
matemático é considerado como padrão. E aqui Balaguer defende a ideia de que não
há qualquer privilégio metafísico relativamente a qualquer um dos vários modelos
matemáticos existentes. Um modelo matemático é encarado como padrão quando
descreve adequadamente as nossas intuições no que diz respeito a uma dada área da
matemática, quando são suficientemente expressivos — isto é, quando permitem
expressar tudo o que se pretende expressar — ou quando são adequadamente
inclusivos. Assim, por exemplo, um modelo de teoria dos conjuntos deve ser encarado
como padrão se estiver em consonância com as nossas intuições acerca de conjuntos,
tal como um modelo da aritmética deve ser considerado como padrão quando está de
acordo com as nossas intuições acerca dos números naturais.
Questões matemáticas logicamente abertas — como a HC e outras — são,
portanto, inócuas ao platonismo da plenitude, pois devem ser encaradas como
expressando afirmações não conflitantes que descrevem diferentes partes da
realidade matemática. Desse ponto de vista, HC e ¬HC não são realmente
contradições; o universo de conjuntos acerca do qual HC é difere do universo de
conjuntos acerca do qual ¬HC é. Ambas são verdadeiras, embora não seja o caso que
ambas sejam verdadeiras nos modelos matemáticos padrões. Desse modo, a
consistência é condição suficiente para a verdade de uma asserção matemática,
porém não é condição suficiente para a verdade de uma asserção matemática nos
modelos matemáticos padrões.
Poder-se-ia argumentar, contudo, que a ideia de atribuir representatividade
metafísica a todas as teorias matemáticas para as quais haja algum modelo —
afirmando ao mesmo tempo que todos os modelos matemáticos representam alguma
parte do reino matemático, dado que todos são metafisicamente significativos —
106
obriga-nos a aceitar a ideia de que questões matemáticas logicamente abertas, como
a questão de saber se a HC pode ser demostrada dentro da teoria dos conjuntos de
Zermelo-Fraenkel em conjunção com o axioma da escolha (ZFE), não pode ser
objetivamente decidida. Isso porque se ZFE + HC e ZFE + ¬HC não são afirmações
conflitantes — tratando-se apenas de asserções que descrevem diferentes partes da
realidade matemática —, nada há para ser disputado ou decido. A resposta à questão
“Existirá um conjunto infinito menor que o conjunto dos números reais, porém maior
que o conjunto dos números naturais?” consistiria em dizer simplesmente: “Depende
do universo de conjuntos que temos em mente; se considerarmos o universo de
conjuntos descrito por ZFE + HC, a resposta será negativa, mas se tivermos em mente
o universo de conjuntos descrito por ZFE + ¬HC, a resposta será positiva”. Nesse
sentido, parece que o platonismo da plenitude é incompatível com a ideia de que o
debate em torno da demonstrabilidade da HC possa ser encarado como uma questão
matemática em aberto para a qual é possível que haja uma resposta objetivamente
correta. Noutras palavras, os defensores do platonismo da plenitude estarão obrigados
a concordar com a postura pluralista (não consensual) acerca da questão de saber se
o fato de ninguém ter conseguido até hoje fornecer uma prova, dentro da teoria dos
conjuntos de Zermelo-Fraenkel em conjunção com o axioma da escolha (ZFE), nem
para a HC nem para a sua negação (¬HC) deve ser encarado como um indício a favor
da ideia de que, na verdade, a HC não tem um valor de verdade determinado, não
sendo, portanto, nem verdadeira nem falsa.
Nessa perspectiva, não há uma resposta correta para a questão “Será a HC
verdadeira?”. Tudo dependerá do sistema que tivermos em mente; se for um sistema
que toma a HC como um de seus axiomas, então ela será verdadeira, mas se for um
sistema que, ao invés, toma ¬HC como axioma, ela será falsa. Todavia, embora essa
seja (aparentemente) a postura dominante no debate acerca da natureza da HC,
existem outras alternativas, nomeadamente, a alternativa defendida pelos não
pluralistas, que pensam que é realmente possível descobrir novos axiomas que
possam ser anexados à teoria dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel em conjunção com
o axioma da escolha (ZFE) e que permitam determinar o valor de verdade da HC —
seja construindo uma prova para HC, seja construindo uma prova para ¬HC.
A réplica de Balaguer a essa objeção (1988, pp. 62-64) consiste em dizer que
os defensores do platonismo da plenitude podem de fato manter-se neutros em
relação às posturas filosóficas assumidas nos debates em torno das questões
matemáticas logicamente em aberto. Relativamente à HC, por exemplo, se adotarmos
107
simultaneamente o platonismo da plenitude e o pluralismo quanto ao valor de verdade
dessa hipótese, diremos duas coisas: (i) tanto ZFE + HC como ZFE + ¬HC descrevem
verdadeiramente alguma parte da realidade matemática (partes distintas, no entanto),
isto é, ambas têm um modelo e (ii) não há uma resposta objetivamente correta para a
questão “Qual dos modelos deve ser tomado como o modelo padrão?”.
Alternativamente, se formos defensores do platonismo da plenitude e do não
pluralismo quanto ao valor de verdade da HC, concordaremos com (i), mas
rejeitaremos (ii). Desse ponto de vista, a questão “Qual dos modelos deve ser tomado
como o modelo padrão?” pode ser objetivamente respondida, e a resposta dependerá
da existência de algum novo axioma que nos permita provar ou a HC ou a sua
negação (¬HC) dentro da teoria dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel em conjunção
com o axioma da escolha (ZFE).
Portanto, a afirmação (endossada pelos defensores do platonismo da
plenitude) segundo a qual qualquer teoria puramente matemática que seja consistente
descreve verdadeiramente alguma parte da realidade matemática — e,
consequentemente, que todos os modelos matemáticos são representações genuínas
da realidade matemática — não implica a ausência de objetividade na prática
matemática. Tal afirmação é compatível com ambas as posturas no que diz respeito a
questões matemáticas logicamente em aberto: com aquelas posturas que negam a
objetividade, mas também com aquelas que insistem em mantê-la. Assim, dizer que a
HC e a sua negação (¬HC) não são afirmações contraditórias, posto que descrevem
universos distintos de conjuntos, não nos força a negar objetividade à questão de
saber se a HC tem um valor de verdade determinado.
3. Conclusão
108
se não esgota todas as possibilidades lógicas —, não poderá ser o caso que tanto a
HC como a sua negação (¬HC) descrevem verdadeiramente alguma parte dessa
realidade, ou seja, teremos de aceitar que ou HC ou ¬HC é verdadeira (mas não
ambas). Assim, parece que os defensores do platonismo tradicional estarão obrigados
a adotar a postura não pluralista acerca da natureza da HC, seguindo Gödel (1964) e
afirmando que tal hipótese tem de ter um valor de verdade determinado.
Portanto, embora a primeira objeção de Restall ao modo como Balaguer
inicialmente formaliza o princípio da plenitude seja uma objeção perspicaz, sendo
verdade que temos de introduzir um predicado de segunda ordem para bloquear a
consequência indesejável de que os objetos matemáticos são modalmente frágeis,
qualquer defensor do platonismo da plenitude poderia aceitar a reformalização
sugerida pelo próprio Restall, tal como expressa em (1’), dado que conseguimos
explicar por que razão essa nova forma lógica não implica afirmações contraditórias.
Referências
109
LINSKY, B. & ZALTA, E. N. “What is neologicism?” Bulletin of Symbolic Logic.
Vol. 12, n. 01, pp. 60–99, 2006.
RESTALL, G. “Just What is Full-blooded Platonism?” Philosophia Mathematica.
Vol. 11, n. 01, pp. 82–91, 2003.
110
Dicotomias do eu
Uma proposta de continuidade entre natureza, cultura,
corpo, mente, sexo e gênero na teoria feminista a partir
de uma perspectiva enativista
Fernanda C. Cardoso
Nara M. Figueiredo
Introdução
O eu nas filosofias feministas é atualmente considerado uma questão política,
social, ética, epistemológica, fenomenológica e metafísica. Muitas das reflexões
filosóficas feministas são propostas de reconceituação do eu como um indivíduo
dinâmico, relacional e social, sendo o sexo e o gênero algumas das fontes de
identidade social (ANDERSON, WILLETT e MEYERS, 2021). No contexto dos debates
sobre sexo e gênero, no entanto, há disputas no que tange à legitimidade ou à
prioridade dos fatores a serem considerados nas investigações sobre quais são os
fatores determinantes da identidade de gênero.
Por um lado, algumas teóricas feministas (WOLLSTONECRAFT, 2016;
BEAUVOIR, 1970; RUBIN, 1993) sedimentam uma tradição que busca desnaturalizar
qualquer relação causal determinística entre características corporais, faculdades
mentais e papéis sociais (LENNON, 2019). Wollstonecraft, uma das primeiras
feministas ocidentais mais influentes, entendia que a mente racional, uma capacidade
humana universal independente do corpo, confere às mulheres iguais direitos naturais
em relação aos homens. No período iluminista, filósofas feministas como
Wollstonecraft geralmente se alinhavam à concepção dicotômica1 entre corpo e mente,
predominante em seu tempo, segundo a qual o eu é caracterizado pela razão, e não
1
“Dicotomia” designa uma modalidade de classificação na qual o todo é dividido em duas
partes e os elementos do todo pertencem a uma parte ou a outra, exclusivamente. Em
acréscimo, “dualismo” designa uma concepção filosófica cartesiana na qual a realidade é
composta de duas substâncias irredutíveis entre si: a mental e a física. Todo dualista é
dicotômico, mas nem todo dicotômico é dualista.
pelo corpo. No entanto, essa concepção abstrata de identidade incomodou algumas
filósofas feministas, como Beauvoir e Rubin, que buscaram noções alternativas de
identidade para refletir a situação da mulher (ANDERSON, WILLETT e MEYERS,
2021). Para Beauvoir (1970) e Rubin (1993), que endossam a dicotomia entre
natureza e cultura, o corpo biológico é descrito como o local e a matéria do sexo
natural, que se distingue do gênero, que é descrito como o conjunto de significados
sociais anexados historicamente (LENNON, 2019). Assim, desenvolve-se uma
perspectiva dicotômica, predominante até meados dos anos 80, na qual os atributos
corporais são analisados separadamente das faculdades mentais e papéis sociais.
Ainda no contexto da tradição feminista, Butler (2010) dialoga com Beauvoir e Rubin, e
rejeita a dicotomia entre sexo e gênero, defendendo que o sexo já é, desde o início,
interpretado social e culturalmente, de tal modo que a diferença entre sexo e gênero
“revela-se absolutamente nenhuma” (p. 25). Assim, para Butler (2010), é ilegítimo falar
de “sexo natural”. O receio de algumas filósofas feministas em integrar a biologia em
suas teorias muitas vezes é resultado de associá-la ao determinismo ou ao
reducionismo biológico/genético, que negligenciam fatores sociais e psicológicos
relevantes para explicar o desenvolvimento do gênero, e fortalecem argumentos de
que a luta política pela redução das desigualdades e injustiças sociais entre os sexos
é em vão2. Desse modo, a tradição feminista que Wollstonecraft, Beauvoir, Rubin e
Butler compõem rejeita que fatores biológicos sejam, em si mesmos, de relevância
significativa nas investigações sobre gênero, e acaba dando margem para que fatores
biológicos eventualmente relevantes sejam negligenciados.
Por outro lado, numa perspectiva mais distante da tradição feminista,
defende-se que as propriedades evolutivas do dimorfismo sexual humano3 são fatores
relevantes para a compreensão de como se desenvolvem o sexo e o gênero na
espécie humana, embora não sejam os únicos (RAMOS e LENCRASTE, 2013;
RISTORI et al., 2020). Ristori et al. (2020) compilam estudos que apresentam
evidências de correlações entre o cérebro sexualmente dimórfico e a identidade de
gênero, sugerindo a relevância de fatores biológicos do dimorfismo sexual humano no
desenvolvimento da identidade de gênero. Ramos e Lencraste (2013), por sua vez,
2
Um exemplo comum é a ideia de que corpos femininos são naturalmente mais fracos ou mais
delicados e por isso mulheres devem exercer atividades de acordo com essa condição natural.
3
Inclui-se aqui hormônios, gametas, cromossomos sexuais, órgãos reprodutores,
características sexuais secundárias e estruturas cerebrais sexualmente dimórficas. Não apenas
topografia genital.
112
mobilizam as concepções de feminino e masculino na psicologia evolutiva, na etologia
humana e na sociobiologia (que são algumas áreas do conhecimento orientadas pela
teoria da evolução4), rejeitando o determinismo genético e sugerindo a integração
necessária de fatores biológicos e sociais. Ainda no contexto das ciências biológicas,
de acordo com os biólogos Lewontin e Levins (2007, p. 36), pioneiros na proposta da
síntese evolutiva estendida, que veremos adiante: "embora de fato a sociabilidade
humana seja, em si, uma consequência de nossa biologia herdada, a biologia humana
é ela mesma uma biologia socializada." Desse modo, uma integração entre fatores
biológicos, psicológicos e sociais já é reconhecida por alguns autores, no contexto das
ciências biológicas, como necessário e promissor para compreender os processos
complexos pelos quais se desenvolve a identidade humana.
Visto que há um impasse a respeito de quais fatores são legítimos ou
prioritários nos debates sobre sexo e gênero, se mostra relevante uma abordagem
capaz de determinar quais são os fatores prioritários, ou uma capaz de bem
conciliá-los. Em outras palavras, visto que a tradição feminista que Beauvoir, Rubin e
Butler compõem rejeita que fatores biológicos sejam em si mesmos relevantes para
investigar sobre sexo e gênero, pois compreende que “não é a biologia e nem o corpo,
mas a vida social e a experiência individual moldada pelo contexto que constitui o ser
mulher” (ALMEIDA, 2020, p. 36). E que, por outro lado, algumas pesquisas das
ciências biológicas ressaltam a relevância de se considerar aspectos biológicos do
desenvolvimento do dimorfismo sexual, da identidade de gênero e de suas relações
com a sociedade. Desse modo, ou bem defendemos que há uma hierarquia de
relevância entre fatores biológicos (genéticos-ambientais), psicológicos
(fenomênico-cognitivos) e sociais (histórico-culturais), ou bem defendemos que esses
fatores devem ser conciliados de maneira articulada e não-hierárquica. Neste texto,
sugerimos a relevância de considerarmos múltiplos fatores no debate sobre sexo e
gênero: sociais, psicológicos e biológicos. Para isso, propomos uma aproximação do
4
A teoria da evolução tem sido o paradigma fundamental da biologia moderna desde a
publicação de A Origem das Espécies, de Darwin (1859) e teve pelo menos duas grandes
alterações teóricas: a síntese evolutiva moderna, que, grosso modo, alia a tese de Darwin à
genética mendeliana, e a síntese evolutiva estendida, mais recente, que compreende que
outros processos além dos de seleção natural e sexual são relevantes para compreender a
dinâmica evolutiva, como a herança extra-genética de nichos e, no nosso caso, valores
culturais.
113
debate sobre sexo e gênero com a teoria dos corpos linguísticos5 (DI PAOLO,
CUFFARI e JAEGHER, 2018), passando pela concepção enativista de evolução
(ROLLA e FIGUEIREDO, 2021; THOMPSON, 2007), que se alinha com a síntese
evolutiva estendida (LEWONTIN, 1983; LALAND, et al., 2014; LALAND, et al., 2015).
Essa aproximação nos permitirá propor que sexo e gênero são aspectos
multideterminados social, psicológica e biologicamente, a partir da tese enativista de
continuidade entre vida, mente e linguagem.
O enativismo linguístico (DI PAOLO, CUFFARI e JAEGHER, 2018) é uma
teoria contemporânea da cognição que se fundamenta no enativismo (VARELA,
THOMPSON e ROSCH, 1991/2016). Ambos rejeitam o tradicional paradigma
dicotômico sobre a mentalidade humana, especialmente influente no período iluminista
— a saber, a tese de que corpo e mente são substancialmente distintos: enquanto um
seria material, a outra seria imaterial. O enativismo linguístico naturaliza a
normatividade social a partir de uma perspectiva biopsiquista6 e propõe a continuidade
complexa — não determinística — entre vida e linguagem, incluindo de modo central
os aspectos intersubjetivos da identidade humana. Essa proposta tem como base uma
concepção triádica de corpo: orgânico, sensóriomotor e intersubjetivo. Ao
considerarmos os conceitos de corpo, mente, natureza e cultura à luz desse arsenal
teórico, propomos o rompimento com a dicotomia sexo e gênero em favor de uma tese
de continuidade entre vida, mente e intersubjetividade, segundo a qual o eu é
protagonista da sua autocriação (autopoiesis, na terminologia enativista), isto é, das
ações significativas que viabilizam a manutenção da vida.
O debate contemporâneo sobre a teoria da evolução se insere na nossa
proposta de modo a fundamentar o enativismo enquanto uma concepção da cognição
que faz jus à sua dimensão histórica, tanto no que diz respeito ao desenvolvimento
quanto evolutivamente. Essa dimensão compreende a interação dos organismos e sua
5
Também chamada de “enativismo linguístico” (ver FIGUEIREDO, 2020).
6
Biopsiquismo é a “posição de que a senciência é uma atividade vital de todos os organismos
ou seres vivos” (THOMPSON, 2022). Embora ainda objeto de debate, sustenta-se que a vida é
um processo de “constituição de valor e orientado por valor” e isso “implica uma concepção de
vida como senciente de valor”, isto é, de sentido, de modo que um organismo constitui e se
orienta por sentido.
114
co-determinação do meio7 (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2016) e também como
recurso explicativo para a defesa da multiplicidade de fatores envolvidos no
dimorfismo sexual e na identidade de gênero. Há dois paradigmas conflitantes no
debate contemporâneo sobre a teoria da evolução: a síntese evolutiva moderna, que
se fundamenta na aliança entre o adaptacionismo e a genética mendeliana, e a
síntese evolutiva estendida (LEWONTIN, 1983; LALAND, et al., 2014 e 2015), que
busca expandir a síntese moderna ao defender que “há mais fatores em jogo” do que
os processos de seleção sexual e de seleção natural pela sobrevivência do gene mais
adaptado (ROLLA e FIGUEIREDO, 2021, p. 7), como, por exemplo, os processos de
herança extra genética. Alinhadas com uma perspectiva enativista, assumimos uma
integração entre fatores biológicos, sociais e psicológicos, e rejeitamos a síntese
evolutiva moderna, ortodoxa nas ciências biológicas, em favor da síntese evolutiva
estendida, a partir da qual podemos conceber uma perspectiva na qual organismo e
ambiente se co-determinam, co-constituem e co-constroem8.
Assim, nosso objetivo neste capítulo é duplo. Primeiramente, pretendemos,
por meio de uma concepção enativista da evolução, sugerir uma integração de fatores
sociais, psicológicos e biológicos no debate sobre sexo e gênero. Por outro lado,
pretendemos propor uma aproximação entre o corpo e o eu a partir da concepção
triádica de corpo linguístico oferecida pelo enativismo linguístico. Para tanto, usaremos
a tese enativista linguística de continuidade entre vida, mente e linguagem que, devido
à sua abordagem social da cognição, também é uma tese de continuidade entre vida,
mente e intersubjetividade. Desse modo, alinhada a Beauvoir (1970), Rubin (1993) e
Butler (2010), nossa leitura da continuidade entre corpo, mente, natureza, cultura,
sexo e gênero rejeita o determinismo e o reducionismo genético, e reconhece a
pluralidade cultural das manifestações do gênero. No entanto, alinhada a Butler, rejeita
a dicotomia entre sexo e gênero (bem como as dicotomias entre corpo e mente,
natureza e cultura). Contudo, nos afastamos da perspectiva de Butler quando ela
7
Segundo Varela, Thompson e Rosch (2016), o enativismo enquanto teoria da cognição se
complementa com uma re-concepção da teoria da evolução (da síntese evolutiva moderna),
como um processo que envolve as ações dos organismos. Para mais detalhes, ver Rolla e
Figueiredo, 2021.
8
Esses três conceitos se complementam, mas destacam aspectos diferentes. Duas ou mais
coisas ou fatores se co-determinam quando especificam mutuamente suas qualidades. Duas
ou mais coisas se co-constituem quando elementos e processos de uma fazem parte da outra.
Duas ou mais coisas se co-constroem quando participam mutuamente em suas formações.
115
assume um posicionamento reducionista, segundo o qual apenas fatores psicossociais
são adequados para investigar os problemas de gênero. Em outras palavras, a
solução proposta por Butler às dicotomias defendidas por suas antecessoras, no
contexto das investigações feministas sobre sexo e gênero, reduz os fatores legítimos
(ou prioritários) a serem analisados aos fatores sociais e psicológicos, relacionados a
como as pessoas manifestam sua subjetividade e interagem entre si. E, a partir de
uma perspectiva enativista linguística, da qual partimos, a condição de ser vivo importa
desde o início para compreender os processos cognitivos relacionados ao
desenvolvimento de seres vivos, inclusive seres humanos. No entanto, embora nos
afastemos da tradição feminista no que diz respeito ao projeto de rejeitar a relevância
do estatuto biológico do corpo para compreender os problemas relacionados ao
dimorfismo sexual e à identidade de gênero, nos reaproximamos de Beauvoir, Rubin e
Butler em diversos momentos, em especial quando suas teorias ressaltam a condição
socialmente situada e relacional do corpo humano. Em síntese, esperamos contribuir
para o debate feminista sobre sexo e gênero propondo uma perspectiva enativista
linguística sobre o corpo e o eu.
Tendo em vista estes fins, o capítulo se divide em três seções.
Primeiramente, (i) descrevemos o contexto histórico-conceitual do debate sobre sexo e
gênero na teoria feminista, do qual partimos; em seguida (ii) sugerimos um modo de
integrar fatores biológicos no debate sobre sexo e gênero a partir da síntese evolutiva
estendida e da concepção enativa de evolução, que não negligenciam a relevância
das ações dos seres vivos na evolução; na seção (iii), apresentamos a proposta
enativista de aproximação entre o corpo e o eu, na qual os seres vivos sociais são
sistemas complexos inerentemente emaranhados numa teia de relações significativas
em três dimensões do corpo, preparando assim o terreno para uma abordagem
enativa sobre sexo e gênero. Nas considerações finais, retomamos os principais
pontos desenvolvidos nas três seções, propomos a viabilidade de uma reconceituação
enativista do estatuto do corpo nos debates sobre sexo e gênero, na qual os atributos
que designamos por sexo e gênero são multideterminados, incluindo fatores sociais,
psicológicos e biológicos. E sugerimos que é porque nós, seres vivos, nos
desenvolvemos e evoluímos numa longa escala de tempo permeada de uma rede
complexa de relações nas quais se desenvolve a natureza, o corpo, a mente e a
cultura, que um olhar evolutivo no debate sobre sexo e gênero não pode ser
negligenciado.
116
1. O contexto histórico-conceitual dos debates feministas sobre a
relação entre sexo e gênero
O movimento feminista teoriza e pratica, desde pelo menos o período
iluminista (séc. XVIII), o projeto de desconstruir a ideia de que as características
corporais são determinantes das faculdades mentais e dos papéis sociais. No período
iluminista, num contexto de grande influência cartesiana, algumas das primeiras
feministas ocidentais, como Wollstonecraft (1792/2016), endossavam a dicotomia
entre corpo e mente em defesa da reivindicação dos direitos políticos das mulheres
em equidade com os homens:
117
endossam9 perspectivas dicotômicas, uma vez que o debate se coloca em termos de
rejeitar que aspectos biológicos exerçam influência sobre fatores psicológicos e
sociais. Butler, por sua vez, atenta às problemáticas envolvidas em assumir um
posicionamento dicotômico, propõe uma solução às dicotomias, segundo a qual tanto
o sexo quanto o gênero são socialmente construídos. Assim, diante das perspectivas
de Beauvoir e Rubin, e atentas ao risco de a solução de Butler negligenciar fatores
não-sociais relevantes no desenvolvimento do sexo e do gênero, propomos a
relevância de uma reconceituação enativista do estatuto do corpo nos debates
feministas sobre sexo e gênero, segundo a qual essas categorias são multiplamente
determinadas ao longo do tempo. Na seção seguinte, apresentamos as perspectivas
de Beauvoir, Rubin e Butler no que diz respeito à relação entre sexo e gênero, tendo
em vista estabelecer um ponto de partida para nossa proposta de reconceituação do
eu conforme a tese enativista de continuidade entre vida, mente e intersubjetividade.
1.1 Dicotomias
118
mulher. Pois, para ela, o corpo é um “instrumento” de domínio do mundo e, por isso, a
depender do modo como ele é representado, as experiências de vida divergem
profundamente (BEAUVOIR, 1970, p. 52). Segundo Butler (2010, p. 32), “[...] fica claro
que Beauvoir mantém o dualismo mente/corpo, mesmo quando propõe uma síntese
desses termos”. Beauvoir entende que nós somos “sujeitos encarnados [...] no mundo
através do corpo” (MOURA, 2020, p. 16, nosso itálico; ver também URPIA, 2020, pp.
392-393), no sentido de que o corpo é um meio pelo qual nos estabelecemos
enquanto sujeitos. No entanto, Beauvoir ressalta que o corpo tomado por si mesmo
não é suficiente para explicar a situação de subordinação social da mulher, tampouco
é suficiente para mantê-la nessa situação (BEAUVOIR, 1970). Essas observações
levaram Beauvoir a ser considerada como uma criadora da dicotomia entre sexo e
gênero (LENNON, 2019), que se tornou fundamental para a teorização feminista
desde a década de 1970 ao início dos anos 80 (SAFIOTTI, 1999). Assim, a tradição
feminista da segunda fase geralmente descrevia o corpo como o local e a matéria do
sexo biológico, fixado pela natureza biológica, e o gênero como o conjunto de
significados sociais anexados histórica e socialmente, sendo contingente e aberto à
mudança (LENNON, 2019). Em síntese, para Beauvoir (e também para Rubin, como
exploraremos adiante), “não é a biologia e nem o corpo, mas a vida social e a
experiência individual moldada pelo contexto [histórico-cultural] que constitui o ser
mulher” (ALMEIDA, 2020, p. 36).
O conceito de gênero, mais especificamente, foi introduzido nas ciências
humanas por Gayle Rubin em O Tráfico de Mulheres10, e é derivado do mesmo esforço
de “desnaturalizar” a compreensão da vida social no contexto em que as teorias
feministas discutiam o processo de “se tornar” uma mulher (ALMEIDA, 2020, p. 36).
Rubin define preliminarmente seu conceito de sistema sexo/gênero — que pretende
explicar as relações pelas quais uma fêmea da espécie humana torna-se numa mulher
oprimida — como “uma série de arranjos pelos quais uma sociedade transforma a
sexualidade biológica em produtos da atividade humana [...]” (1993, p. 3). Segundo
ela, a identidade de gênero exclusiva suprime as semelhanças naturais, pois exige
que o homem reprima e rejeite traços “femininos”, e a mulher, reprima traços
10
Publicado pela primeira vez em 1973 (ALMEIDA, 2020). Neste capítulo, usamos a versão
traduzida (1993) da edição de 1975.
119
“masculinos” (RUBIN, 1993, p. 28)11. Nesse sentido, identidade de gênero não é só
uma identificação com um sexo, é também a exigência de que o sexo (i.e., as
características sexuais do corpo) seja moldado em conformidade com o gênero. Desse
modo, não se sofre opressão apenas por ser mulher, mas também por ter que ser
mulher ou homem (RUBIN, 1993, p. 55). Assim, no sistema sexo/gênero de Rubin, que
está relacionado com a “própria passagem da natureza para a cultura” (ALMEIDA,
2020, p. 36), a divisão sexual do trabalho constrói culturalmente o gênero e produz a
sensação de que há comportamentos, práticas e aptidões próprias para os sexos12
feminino e masculino (ALMEIDA, 2020). Embora toda sociedade tenha algum tipo de
divisão de tarefas de acordo com o sexo, a atribuição de tarefas a um ou a outro sexo
é culturalmente variável (RUBIN, 1993, p. 25), sendo a cultura, ela mesma, “inventiva”
por definição (RUBIN, 1993, p. 23). Desse modo, o conceito de gênero emerge como
uma forma de distinguir a “matéria-prima biológica do sexo humano e da procriação”
(RUBIN, 1993, p.10) dos múltiplos significados culturais que os corpos sexuados
humanos assumem.13
Na tônica dessa abordagem, típica da segunda fase do movimento feminista,
na qual há uma profunda descontinuidade entre a anatomia sexuada dos corpos
humanos e os seus significados construídos culturalmente, a distinção entre sexo e
gênero compreende que o sexo está para a natureza como o gênero está para a
cultura, sendo “o sexo natural” a “superfície politicamente neutra sobre a qual age a
11
Por exemplo, na maioria das culturas ocidentais, a nossa é um caso, estimula-se fortemente
que mulheres depilem seus pelos pubianos, axilares e das pernas em favor de um estigma
cultural, enquanto a presença de pelos é estimulada em homens.
12
O significado do termo “sexo” (e do seu plural, “sexos”), não é fixo ao longo de O Tráfico de
Mulheres (1993). Por exemplo, na página 11, Rubin usa “sexo” como sinônimo de “sexualidade
biológica” (p. 3) ou de “matéria-prima biológica” (p.10) quando diz que “sexo é sexo”, mas o
termo muda de sentido imediatamente em seguida, quando ela diz que “mas o que interessa
em matéria de sexo é [...] determinado e obtido culturalmente”. As nuances de significado para
“sexo” fazem parte do projeto filosófico de Rubin (1993), uma vez que ela apresenta uma série
de dados da antropologia como evidência de que os modos pelos quais os seres humanos
satisfazem suas necessidades sexuais não é “natural”, mas sim “cultural” (p.10).
13
Nas palavras de Butler (2010, p. 24): “concebida originalmente para questionar a formulação
de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais
que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído:
consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo, nem tampouco tão aparentemente
fixo quanto o sexo.”
120
cultura” (BUTLER, 2010, p. 25). Assim, “no momento em que a influência do biológico
está sendo minada, está sendo também invocada” (NICHOLSON, 2000, p. 159). Isto
é, o conceito de gênero não emerge como uma forma de substituir o conceito de sexo,
mas sim para suplementá-lo, de tal modo que o próprio conceito de gênero depende
do conceito de sexo para ser elaborado (NICHOLSON, 2000, p. 159).
Nas perspectivas de Beauvoir (1970) e Rubin (1993), a dicotomia entre corpo
e mente, característica do período iluminista, não é superada, mas substituída pela
dicotomia entre natureza e cultura. A caracterização da cultura enquanto construção
social, em contraste com a natureza enquanto fato biológico, é uma concepção
segundo a qual o corpo é um meio pelo qual se inventa os modos pelos quais se deve
se relacionar socialmente. De acordo com essas perspectivas, como bem observa
Butler, o corpo biológico humano passa a ser entendido como a “superfície
politicamente neutra sobre a qual age a cultura” (BUTLER, 2010, p. 25). Nesse
sentido, o corpo é uma base e um meio para a cultura, mas não uma de suas causas
ou fatores constituintes. Essas perspectivas dicotômicas serviram como objeção às
abordagens determinista e reducionista genéticas, que tiveram prestígio
principalmente na biologia do século XIX e da primeira metade do século XX (FEHR,
2018). O determinismo14 e o reducionismo genéticos são derivados do determinismo e
reducionismo biológicos, e consistem, sinteticamente, nas seguintes teses: (i) a de que
a mente e o comportamento humano são em grande medida determinados ou
fortemente restringidos pela constituição biológica-genética inata dos indivíduos
(ROSOFF; ROSENBERG, 2006), e (ii) a de que compreender o funcionamento dos
fatores biológico-genéticos de um indivíduo é necessário e suficiente para explicar
padrões comportamentais humanos complexos, como o da orientação sexual e da
identidade de gênero (SARKAR, 1998). Essas teses, que ignoram fatores sociais
relevantes à identidade e ao comportamento de gênero, foram integradas ao conjunto
de temas do debate feminista pelo menos desde a segunda fase do feminismo, no
final dos anos 60 (FEHR, 2018), pois eram usadas para argumentar que os esforços
direcionados contra a desigualdade social baseada no sexo e no gênero são em vão
(NICHOLSON, 2000). Desse modo, a dicotomia entre sexo e gênero foi usada em
favor da perspectiva na qual a desigualdade entre homens e mulheres é resultado de
14
“Feministas se preocupam com o determinismo porque ele foi usado para argumentar que a
mudança política é fútil porque sexo e gênero nos níveis individual e social seriam causados
por uma natureza humana estática e biológica” (FEHR, 2018, seção 4.1, s/p).
121
uma organização social que não é, por si mesma, necessária ou garantida pelos
genes dos sexos biológicos humanos.
122
materialização é compelida, e essa materialização
ocorre (ou deixa de ocorrer) por meio de certas práticas
altamente regulamentadas. Em outras palavras, "sexo" é
uma construção ideal que se materializa à força ao
longo do tempo. (BUTLER, 1993, p. 2, tradução
nossa)
15
Segundo Butler, o sexo é socialmente compreendido por meio de indicadores corporais que
funcionam como signos culturais sem os quais o corpo não é sexualmente distinguível
(BUTLER, 2009, p. 108).
123
1.3. Nosso problema
Retomemos o que foi dito até aqui. Nas perspectivas de Beauvoir e Rubin,
predominantes na teoria feminista até meados dos anos 80, a dicotomia sexo e gênero
pressupõe a dicotomia entre natureza e cultura, que, por sua vez, substitui a dicotomia
entre corpo e mente. Esta, como vimos, era endossada por Wollstonecraft (2016),
sendo a mente racional o núcleo do eu e as características corporais, contingentes.
Butler (2010), por sua vez, atenta às problemáticas envolvidas em assumir a dicotomia
sexo/gênero, propõe uma solução na qual os atributos biológicos não são assumidos
como base causal da identidade de gênero, e nem como uma superfície politicamente
neutra sobre a qual age a cultura. Na perspectiva dela, como dissemos acima, sexo já
é, desde o início, construído socialmente. Seguindo o modelo de Butler, que rejeita o
estatuto biológico-natural do sexo humano, o corpo descrito pelas ciências biológicas
pode ser compreendido como um produto das estruturas de poder que mantêm uma
normatividade rígida entre os papéis de gênero, retroalimentando o paradigma binário
feminino/masculino (MERITT, 2010). Desse modo, a solução proposta por Butler,
reduz os fatores legítimos (ou prioritários) a serem analisados aos fatores sociais e
psicológicos, relacionados a como as pessoas manifestam sua subjetividade e
interagem entre si.
Embora seja relevante analisar sexo enquanto um constructo social16, pois ele
também se manifesta assim, isso não garante que ele não envolva fatores biológicos
em sua formação, como envolve no caso de qualquer outro ser vivo sexuado. Em
outras palavras, a noção de sexo não significa apenas instâncias normativas de uma
sociedade, mas também características biológicas compartilhadas por outros seres
vivos sexuados, como, por exemplo, os gametas. Embora os processos de
gametogênese e as estratégias de fecundação variem de acordo com a espécie e
suas condições ecológicas específicas, uma característica sexualmente dimórfica
compartilhada entre espécies sexuadas (e somente as sexuadas), é a produção de
gametas. Gametas são uma condição necessária para a existência de seres vivos
sexuados e garantem a possibilidade de variabilidade genética. Apesar disso, a
solução proposta por Butler, alinhada a Beauvoir e Rubin, rejeita a legitimidade de
16
No sentido de ser uma categoria histórica e culturalmente construída, com características
dependentes e restritas às condições sociais particulares de uma sociedade.
124
explorar aspectos biológicos do sexo e do gênero no caso dos seres humanos ao
engajar no projeto de desnaturalizá-los. Desse modo, a solução proposta por Butler
está sujeita ao risco de negligenciar fatores biológicos eventualmente relevantes para
explicar alguns fenômenos relacionados ao sexo e à identidade de gênero, pois, de
modo semelhante ao reducionismo genético ou biológico, reduz os fatores legítimos
para explicar a manifestação do sexo e do gênero aos fatores psicossociais. E, de
acordo com Lewontin e Levins:
Visto que há um impasse a respeito de quais fatores são legítimos ou prioritários nos
debates sobre sexo e gênero (natureza ou cultura, corpo ou mente), se mostra
relevante uma teoria capaz de ou bem eleger os fatores adequados, ou bem conciliar
processos sociais (histórico-culturais) e psicológicos (fenomênico-cognitivos) com
processos biológicos (genéticos-ambientais). Neste texto, sugerimos que é preciso
uma interpretação que inclua a relevância de múltiplos fatores no desenvolvimento do
dimorfismo sexual e identidade de gênero. E que um bom caminho para essa
interpretação pode ser encontrado em princípios enativistas. Na perspectiva enativista
evolutiva — que julgamos ser um ponto de partida adequado e vantajoso nessa
empreitada de desenvolver uma teoria que contemple a complexidade desses
conceitos, como sugerimos adiante — deve haver um lugar central para a ação dos
organismos e para diversas escalas temporais de análise. As ações são centrais
devido à ênfase enativista no modo pelo qual os organismos são autores de sua
própria organização (ROLLA e FIGUEIREDO, 2021). A temporalidade também, pois
natureza, cultura, corpo e mente se desenvolvem em longas e curtas escalas de
125
tempo. Assim, se mostra relevante considerar tanto fatores ontogenéticos17 — i.e.,
explicações de como o gênero e o sexo se constituem e se desenvolvem durante a
vida de uma pessoa, satisfazendo o nível proximal de análise —, quanto fatores
filogenéticos18 — i.e., explicações de como e porque ambos evoluíram na história
evolutiva que ocasionou nossa espécie, satisfazendo o nível distal de análise. Em
suma, é porque nós, seres vivos, nos desenvolvemos e evoluímos numa longa escala
de tempo permeada de uma rede complexa de relações que um olhar evolutivo no
debate sobre sexo e gênero não pode ser negligenciado.
A partir de uma perspectiva enativista linguística a condição de ser vivo é
fundamental para compreender a cognição, o comportamento, as interações e as
manifestações éticas de diversos tipos. Desse modo, a biologia, enquanto área do
conhecimento centrada nos modos pelos quais os seres vivos evoluem, e a própria
condição biológica humana são bastante relevantes. No entanto, seria um erro
compreender a nossa proposta como o retorno da primazia dos fatores biológicos para
os debates de sexo e gênero, por duas razões. Primeiro, porque concordamos com as
colocações acima mencionadas de Beauvoir (1970) e Rubin (1993) — com as quais
também Butler (2010) parece estar de acordo — de que os fatores biológicos e
genéticos não podem ser determinantes das características individuais e sociais, nem
suficientes para explicar essas mesmas características (FAUSTO-STERLING, 1992).
Segundo, porque não propomos que se abdique da primazia dos fatores sociais em
favor de nenhuma outra primazia. Isto é, não propomos uma perspectiva na qual há
uma hierarquia entre fatores biológicos, sociais e psicológicos no contexto dos debates
sobre a manifestação da identidade. Propomos que uma consideração plural que
17
Neste texto, usaremos “fatores ontogenéticos” como o objeto da análise proximal, que inclui
tanto o que a psicologia evolutiva entende por ontogenia (como o sistema se desenvolve
durante a vida de um organismo) quanto por mecanismo (como o sistema funciona no presente
imediato) (ver AL-SHAWAF, 2020). Complementarmente, entendemos que, pelo menos no
caso dos seres humanos, fatores ontogenéticos também podem ser sociais e psicológicos,
além de biológicos.
18
Neste texto, usaremos “fatores filogenéticos” como objeto de análise distal, que inclui tanto
filogenia (como a característica evoluiu ao longo do tempo) quanto função (porque o traço
evoluiu). Da mesma forma que no caso anterior, entendemos que fatores filogenéticos também
podem ser sociais e psicológicos, além de biológicos. Em resumo, neste capítulo usamos
“ontogenético” e "filogenético" para designar fatores que se distinguem conforme a escala de
tempo considerada em questão: se é relativamente curta ou se é relativamente longa.
126
inclua diversos fatores na compreensão do eu tende a ser mais apropriada justamente
porque somos seres plurais, constituídos tanto de fatores biológicos, quanto
psicológicos, quanto sociais. Por isso, considerar essas dimensões em qualquer
debate que esteja relacionado com a questão da identidade, parece ser mais
adequado do que priorizar um desses fatores. Assim, reiteramos que as implicações
negativas que a primazia do biológico envolvia no passado, como o determinismo e
reducionismo genético/biológico, devem ser evitadas e criticadas. Desse modo,
alinhada a Beauvoir (1970), Rubin (1993) e Butler (2010), nossa proposta de
continuidade entre corpo, mente, natureza, cultura, sexo e gênero rejeita o
determinismo e o reducionismo genético, e reconhece a pluralidade cultural das
manifestações do gênero. No entanto, alinhada à Butler, rejeita a dicotomia entre sexo
e gênero (bem como as dicotomias entre corpo e mente, natureza e cultura). Contudo,
nos afastamos da perspectiva de Butler quando ela assume um posicionamento
reducionista, no qual apenas fatores psicossociais são legítimos ou prioritários para
investigar os problemas de gênero. Sugerimos, como será desenvolvido nas seções
seguintes, que os atributos que designamos por sexo e gênero são multideterminados,
incluindo fatores sociais (histórico-culturais), psicológicos (fenomênico-cognitivos) e
biológicos (genéticos-ambientais).
19
Publicadas entre 1949 e 2019 na Medline (RISTORI t al., 2020, p. 1).
20
Identidade de gênero é entendida a partir da auto identificação do indivíduo enquanto mulher,
homem ou um gênero alternativo (RISTORI et al., 2020, p. 1). Segundo os autores, a
identidade de gênero é considerada uma das maiores características do dimorfismo sexual
humano (RISTORI et al., p. 1).
127
pesquisas se concentram nas diferenças neurofuncionais avaliadas por meio de
estudos de imagem obtidas durante a execução de tarefas (RISTORI et al., 2020, p.
2). Essas pesquisas consideraram tanto indivíduos cisgêneros quanto transgêneros21 e
parecem concordar com a ideia de que há uma diferenciação cerebral sexual entre os
indivíduos. Isto é, evidências sugerem que há ligeiras diferenças na anatomia e no
funcionamento do cérebro entre os dois sexos22. Em acréscimo, muitos desses
estudos sugerem que as estruturas sexualmente dimórficas do cérebro estão
frequentemente alinhadas com a identidade de gênero, em vez de com o sexo
atribuído no nascimento (RISTORI et al, 2020, p. 6). No entanto, eles ressalvam que a
explicação popular de que há um “cérebro feminino e masculino” na base das
diferenças do comportamento de gênero não é confirmada empiricamente, uma vez
que ambos os cérebros possuem mais semelhanças que diferenças (RISTORI et al.,
2020, p. 3) e uma vez que as experiências de vida podem ter um impacto profundo no
desenvolvimento do cérebro (RISTORI et al., 2020, p. 6). Isso significa que,
atualmente, a abordagem biológica sobre sexo não está comprometida com o
determinismo genético e que ela está aberta para explicações segundo as quais as
diferenças cerebrais entre os sexos são resultado da experiência de vida. No entanto,
ela destaca a importância dos fatores biológicos para a identidade de gênero.
Se há correlação entre características cerebrais sexualmente dimórficas e a
identidade de gênero, é intuitivo cogitar que ou as características cerebrais
sexualmente dimórficas restringem as possibilidades de manifestação de identidade
de gênero (independentemente da experiência de vida de uma pessoa), ou a
experiência de vida de uma pessoa socialmente identificada com um gênero X molda
essas características sexualmente dimórficas do cérebro, ou ambos. Em todos os
casos, a correlação entre características sexualmente dimórficas do cérebro e a
identidade de gênero, por si só, já justifica considerar a relevância de fatores
biológicos no debate feminista sobre identidade — sejam esses fatores restritivos,
modelados ou ambos. Pois, em todos os casos, a correlação entre as características
21
Os indivíduos transgêneros podem persistentemente ou transitoriamente se identificar com
um gênero diferente do atribuído no nascimento, enquanto em indivíduos cisgêneros, a
identidade de gênero se desenvolve de acordo com o gênero atribuído no nascimento e é
estável ao longo da vida (RISTORI et al., 2020, p. 1).
22
Eles entendem o processo de diferenciação sexual como o desenvolvimento das diferenças
entre machos e fêmeas, influenciado por determinantes biológicas e ambientais (RISTORI et
al., 2020, p. 1).
128
cerebrais sexualmente dimórficas e a identidade de gênero sugere que, para
compreender integral e imparcialmente a manifestação da identidade, é preciso ter um
olhar atento para todos os seus fatores relacionados — inclusive os biológicos. Se
assumirmos que tanto os fatores ontogenéticos quanto os fatores filogenéticos são
legítimos e relevantes na análise dos processos que subjazem a identidade de gênero,
um dos desafios do debate contemporâneo sobre os fatores envolvidos no
desenvolvimento do dimorfismo sexual e da identidade de gênero é integrar fatores
sociais, psicológicos e biológicos de maneira coerente, levando em consideração os
avanços das ciências sociais, cognitivas e biológicas sobre o comportamento. Nesta
seção, mencionamos algumas áreas do conhecimento que reconhecem a necessidade
de integrar fatores sociais, psicológicos e biológicos no debate sobre sexo e gênero.
Mencionamos também algumas áreas que, reconhecem essa necessidade e adotam
explicações por múltiplos fatores, efeitos recíprocos e múltiplas escalas de tempo. Por
um lado, indicamos que a integração entre fatores bio-psico-sociais é possível tanto a
partir da síntese evolutiva moderna quanto a partir da síntese evolutiva estendida23
(LALAND et al., 2014), mas destacamos a síntese evolutiva estendida para os nossos
propósitos. Por outro lado, pretendemos endossar a aproximação entre deriva natural
(ou evolução enativa24) e a teoria da construção de nicho, uma das bases da síntese
evolutiva estendida (ROLLA e FIGUEIREDO, 2021).
23
Tanto a síntese evolutiva estendida quanto a síntese evolutiva moderna são arsenais
conceituais a partir dos quais se reflete sobre a evolução, sendo que a síntese evolutiva
estendida visa expandir a síntese evolutiva moderna. Enquanto a síntese moderna defende que
as populações transmitem genes através das gerações sob as restrições da seleção natural e
da seleção sexual, “a síntese estendida reconhece que há mais fatores em jogo na dinâmica
evolutiva” (ROLLA e FIGUEIREDO, 2021, pp. 7-8).
24
Ambas as perspectivas estão alinhadas, como argumentam Rolla e Figueiredo (2021).
Abordaremos esse ponto adiante.
129
orientadas pela teoria da evolução.25 Pois, o conceito de adaptação, central na
biologia, implica na interação recíproca entre os atributos biológicos “geneticamente
programados” e o ambiente (aqui incluso o ambiente sociocultural), “que são
continuamente reformulados pela ação humana” (p. 54). Desse modo, elas
demonstram como essas teorias evolutivas contemporâneas não só estão abertas
para explicações em nível social, como também enfatizam a integração necessária
entre fatores “genéticos, ecológicos e socioculturais" (p. 34) para explicar as diversas
facetas do comportamento26. Em acréscimo, elas mencionam outras áreas mais
recentes da biologia (como a biologia cultural) que questionam a universalidade da
morfologia e do comportamento humano em favor de uma perspectiva que contemple
sua complexidade e diversidade. No entanto, elas também apontam para o risco de as
ciências humanas reduzirem excessivamente a distância entre suas “causas últimas” e
seus “fatores próximos de motivação” (RAMOS e LENCRASTE, 2013, p. 55). Isto é,
correm o risco de negligenciar fatores biológicos em favor de fatores psicossociais.
25
Em síntese, a etologia humana concentra-se "na descrição dos comportamentos observados
e [na procura de] invariantes através dos estudos comparativos para compreender o que
podem ser os comportamentos diferenciais próprios à espécie e a sua possível história
evolutiva" (RAMOS e LENCRASTE, 2013, p. 54). Já a sociobiologia procura "analisar os
comportamentos sociais com base na [suposição] teórica de que os organismos procuram
maximizar a sua vantagem inclusiva” e concentra-se “nas consequências comportamentais da
transmissão genética diferencial" (p. 54). A psicologia evolutiva, por fim, concebe "a 'mente
adaptada’ como um conjunto de dispositivos de tratamento de informação modelados pelo
'ambiente de adaptação evolutiva', i.e., [...] pelas condições de vida dos grupos de
recolectores-caçadores humanos" (p. 54). Em adendo, há pelo menos duas ressalvas
importantes do movimento feminista às pesquisas da sociobiologia e da psicologia evolutiva
sobre sexo e gênero: “primeiramente, a pesquisa apresenta um retrato da natureza humana
que exibe valores sociais androcêntricos, sexistas e capitalistas. [...] [Em segundo lugar,]
muitas pesquisas em sociobiologia e psicologia evolutiva envolvem suposições problemáticas
de uma conexão causal grosseira entre genes e comportamento” (FEHR, 2018, seção 3.2, s/p).
26
Elas mencionam o caso da lactose, que é exemplar no que diz respeito à influência das
ações humanas na evolução: “foi apenas depois da descoberta da agricultura e da pastorícia
que os [humanos] adultos começaram a beber leite e que a alteração genética — a produção
da enzima digestiva correspondente — foi selecionada [fenotipicamente]” (RAMOS e
LENCRASTE, 2013, p. 36). Isto é, é só compreendendo a tolerância à lactose enquanto um
fenômeno tanto social quanto biológico que podemos compreendê-lo adequadamente.
130
Embora as teorias evolutivas contemporâneas sobre o comportamento
relatadas por Ramos e Lencraste (2013) rejeitem o determinismo biológico/genético,
elas geralmente se alinham à síntese evolutiva moderna, no sentido de que
geralmente têm os genes como foco e geralmente assumem que a evolução é
orientada pela sobrevivência do mais bem-adaptado a um ambiente pré-dado.27 Essa
perspectiva, que é ortodoxa na biologia contemporânea, combina o adaptacionismo
com a genética Mendeliana (ROLLA e FIGUEIREDO, 2021) e pode ser considerada
reducionista e conservadora, se comparada com propostas de evolução que
consideram a co-determinação entre organismo e ambiente. Isto é, propostas que
equiparam a relevância de fatores biológicos e ambientais, inclusive sociais. Uma
dessas propostas é a concepção de deriva natural de Maturana e Varela (MATURANA
e MPODOZIS, 2000; VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2016). A principal diferença
entre adaptacionismo e deriva natural é que o primeiro sustenta que a evolução ocorre
principalmente por meio de pressões ambientais que selecionam traços mais
adaptados, enquanto o segundo sugere que ela ocorre devido aos modos segundo os
quais organismos e ambiente interagem na criação de condições de manutenção da
vida, enfatizando as ações dos organismos (e, pelo menos no caso dos seres
humanos, suas práticas sociais) na evolução.
A perspectiva enativista, que adotamos neste texto, enfatiza que os
organismos são co-autores de sua própria evolução, pois também “determinam suas
condições de viabilidade” (ROLLA e FIGUEIREDO, 2021, p. 6). Assim, uma
perspectiva enativista da evolução deve priorizar a ação e rejeitar o foco centrado nos
genes para contemplar a concepção enativa de cognição (FIGUEIREDO e MEURER,
2022). O enativismo não é incompatível apenas com o adaptacionismo28, mas também
27
Por exemplo, no contexto da sociobiologia, "também o comportamento materno pode ser
visto, nesta perspectiva, como um comportamento adaptado cuja seleção se justifica porque, a
despeito do investimento que exige, aumenta a probabilidade de sobrevivência dos filhos e a
sua reprodução e, portanto, a passagem dos genes maternos às gerações seguintes" (RAMOS
e LENCRASTE, pp. 44-45). Verificar também Ramos e Lencraste, 2013, p. 36, pp. 46-49 e p.
54.
28
Varela, Thompson e Rosch (2016) sugerem que o adaptacionismo é incompatível com uma
abordagem enativa e negam que a evolução seja fundamentalmente o resultado de pressões
seletivas e adaptação (ROLLA e FIGUEIREDO, 2021). Maturana e Mpodozis (2000) sugerem
que precisamos de uma revisão da concepção de que a seleção natural é “um mecanismo que
131
com o reducionismo genético, típico da síntese evolutiva moderna. Portanto, numa
perspectiva enativa, é preciso que integrar fatores biológicos e sociais de modo mais
amplo em relação às teorias evolutivas apresentadas por Ramos e Lencraste (2013),
que geralmente se aliam à síntese moderna. Pois, embora essas teorias não se
comprometam com o determinismo genético, muitas vezes mantêm o foco centrado
nos genes e negligenciam o impacto ativo dos organismos no seu entorno e em sua
própria estrutura, endossando o reducionismo genético. Como Rolla e Figueiredo
(2021) defendem, as noções de deriva natural (MATURANA e MPODOZIS, 2000;
VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2016) e evolução enativa (THOMPSON, 2007) são
compatíveis e se alinham à teoria da construção de nicho. A teoria de construção de
nicho (LALAND et al. 2014, 2016), por sua vez, é uma das bases da síntese evolutiva
estendida, que é um arsenal conceitual que visa expandir a síntese evolutiva moderna
(ROLLA e FIGUEIREDO, 2021; LALAND et al., 2014).
gera mudança e adaptação por meio da sobrevivência dos organismos mais bem adaptados”
(FIGUEIREDO e MEURER, 2022, p. 5).
29
Integração na qual a hierarquia de prioridade dos vários fatores envolvidos é determinada
pelo contexto de investigação — a depender de se a escala de tempo de interesse investigativo
é longa ou curta —, e não a priori.
132
—, busca esclarecer como as ações dos organismos modificam suas características
genéticas a partir da herança extra genética do nicho (LALAND et al., 2016; LALAND,
et al., 2000). Nessa perspectiva, “importantes motores da evolução, que não podem
ser reduzidos aos genes, devem ser integrados à própria estrutura da teoria da
evolução” (LALAND et al., 2014, p. 161), sendo a plasticidade e a construção de nicho
exemplos desses motores. Segundo Laland et al.: “[...] os seres vivos não evoluem
para caber em ambientes pré-existentes, mas se co-constroem e co-evoluem com
seus ambientes, no processo de mudança da estrutura dos [seus] ecossistemas”.
(2014, p. 162, tradução nossa).
Assim, construção de nicho designa a alteração ativa e seletiva de um
ambiente por um organismo, que pode ser herdada por outros organismos relativos ao
primeiro (LALAND, et al., 2016; LALAND, et al., 2000). A plasticidade, que diz respeito
a como o ambiente molda diretamente as características do organismo (LALAND et
al., 2014, p. 162), viabiliza que o organismo se adapte em relação ao ambiente. A
relação entre ambiente e organismo, nesse sentido, envolve um acoplamento
estruturante, de tal modo que ambos se alteram continuamente ao longo do tempo.
Desse modo, os organismos são determinados por seus ambientes, enquanto esses
ambientes são determinados por seus organismos (ROLLA e FIGUEIREDO, 2021).
Essa ideia de efeitos recíprocos foi também sugerida por Maturana e Varela a partir da
noção de deriva natural, e também endossada por Thompson (2007) a partir da noção
de evolução enativa30. A aproximação entre deriva natural (ou evolução enativa) e
construção de nicho, como pretendemos mostrar adiante, pode mediar uma
perspectiva na qual tanto aspectos sociais do ambiente quanto aspectos biológicos e
psicológicos da constituição do organismo têm relevância constitutiva no
30
Deriva natural é a proposta de que a tese da constituição mútua entre organismo e ambiente,
desenvolvida por Maturana, Varela e Mpodozis (ver MATURANA e MPODOZIS, 2000; ver
também VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2016), deve se aplicar também à concepção de
evolução. Evolução enativa é um desenvolvimento proposto por Evan Thompson (2007) que
retoma a tese central e inclui um fator importante de flexibilidade do agente. Rolla e Figueiredo
(2021) sugerem, de modo alinhado à proposta de Thompson, um ressurgimento da noção de
deriva natural inspirados pela teoria de construção de nicho (LALAND et al., 2014; 2016), pela
teoria do engajamento material (MALAFOURIS, 2013, 2019), e pela concepção de
adaptatividade proposta por Di Paolo (2005). Desse modo, embora haja especificidades de
cada uma das vertentes, podemos tratar neste texto evolução enativa e deriva natural como
sinônimos, pois nos referimos à tese central de co-constituição entre organismo e ambiente.
133
desenvolvimento da identidade de gênero (ao longo de curtas e longas escalas de
tempo), enquanto nenhum desses aspectos os determina inteiramente.
Retomemos o que foi dito até aqui. Por um lado, Beauvoir, Rubin e Butler
rejeitam que fatores biológicos sejam em si mesmos relevantes no desenvolvimento
da identidade de gênero (muitas vezes para evitar o determinismo e o reducionismo
biológico/genético), e acabam dando margem para que fatores biológicos
eventualmente relevantes sejam negligenciados. Por outro lado, há evidências de
correlações entre o cérebro sexualmente dimórfico e a identidade de gênero,
sugerindo a relevância e legitimidade de se considerar fatores biológicos no
desenvolvimento da identidade de gênero. Áreas como a etologia humana, a
sociobiologia e a psicologia evolutiva (dentre outras) se propõem, embora de modos
distintos, a integrar fatores sociais, psicológicos, biológicos e históricos nas
investigações sobre sexo e gênero, tradicionalmente sob orientação da síntese
evolutiva moderna, ortodoxa na biologia. De acordo com uma perspectiva enativista,
rejeitamos a síntese evolutiva moderna em favor de uma tese mais inclusiva, a síntese
evolutiva estendida, que incorpora co-determinação e co-construção a partir da teoria
da construção de nicho. A teoria da construção de nicho, por sua vez, se alinha com a
concepção de deriva natural (ROLLA e FIGUEIREDO, 2021) ou evolução enativa
(THOMPSON, 2007), uma vez que co-determinação e co-construção são princípios
enativistas que certamente envolvem mudanças evolutivas. Desse modo, as teorias da
cognição e evolução enativas são complementares e interdependentes (VARELA,
THOMPSON e ROSCH, 2016), e conectá-las significa reconhecer que “[...] cognição
emerge a partir de um acoplamento dinâmico envolvendo cérebro, corpo e ambiente
através de curtas e longas escalas de tempo [...]” (ROLLA e FIGUEIREDO, 2021, pp.
6-7).
No entanto, não é possível sugerir que sexo e gênero devem ser
considerados a partir de múltilplos fatores mobilizando apenas a teoria da construção
de nicho, pois, de acordo com a tradição feminista, essas categorias envolvem
também a experiência fenomênica subjetiva, que não é desenvolvida no contexto de
um arsenal conceitual sobre a evolução. As multideterminações que resultam no sexo
e gênero, como sugerimos na próxima seção, carecem de uma teoria explicativa capaz
134
de incorporar essa complexidade. Sugerimos que o enativismo linguístico31, que é uma
teoria recente da cognição (DI PAOLO, CUFFARI e JAEGHER, 2018; FIGUEIREDO,
2020), é um bom ponto de partida para propormos uma ressignificação das categorias
de sexo e gênero que rejeite o determinismo, o reducionismo e as dicotomias. O
enativismo linguístico desenvolve uma concepção de corpo linguístico que contempla
seus aspectos biológico, e interativos-sociais, bem como a condição ética dos seres
vivos, como fundamentais para compreender a emergência da cognição. Assim, o
enativismo linguístico integra a noção de evolução enativa, rejeita as dicotomias
corpo-mente e natureza-cultura, integra a noção de sistemas complexos — como
veremos a seguir —, e possibilita uma reinterpretação do eu como multiplamente
determinante, embora também multiplamente determinado — como vamos sugerir.
135
capacidades linguísticas e sociais. Nesta seção, apresentamos os conceitos de
complexidade, emaranhamento e historicidade, que são alguns dos princípios
fundamentais da concepção dialético-enativista. Em seguida, apresentamos a
concepção triádica de corpo oferecida pelo enativismo linguístico, aproximando-o da
concepção de identidade (o “eu”). Por fim, sugerimos a relevância de uma
ressignificação do eu em termos enativistas. Uma ressignificação a partir da qual o
corpo linguístico é considerado ponto de partida para compreender as normatividades
que nos orientam (CUFFARI, 2011; BARANDIARAN, et al., 2009), inclusive as que
envolvem sexo e gênero.
136
corpos sugere múltiplas possibilidades de viabilidade, integração e regulação de
“normas e tendências conflitantes” (p. 96).
Em uma breve digressão, essa perspectiva se contrasta com a de Rubin
(1993), que se vale de uma dicotomia entre natureza e cultura para desenvolver seu
conceito de sistema sexo/gênero. Segundo o enativismo, a condição evolutiva de
seres vivos não se opõe, em princípio, à sua condição histórico-cultural: pelo contrário,
a complementa. Pois a história dos seres vivos — a grande teia de significados que
eles co-constroem e herdam — são partes constitutivas de seu processo de
desenvolvimento evolutivo. Assim, o enativismo linguístico integra a historicidade dos
seres vivos em sua concepção dialética. Segundo os autores de Linguistic Bodies:
“[Seres vivos] participam individual e coletivamente de fluxos de matéria ativa e
energia e de transformação operacional e histórica, produção e destruição de
processos no mundo. Eles são parte do mundo, assim como estão no mundo”. (DI
PAOLO, CUFFARI e JAEGHER, 2018, p. 23, tradução nossa)
Uma vez que seres vivos transformam seus ambientes e são transformados
por eles, eles tecem individual e coletivamente uma teia de múltiplas relações que
viabilizam sua sobrevivência e reprodução. Essa viabilidade se dá por meio da
exploração que o organismo32 faz do ambiente e de sua sensibilidade às
consequências virtuais de suas ações à sua condição, que se traduz no que se chama
de produção de sentido33, como veremos na seção seguinte. Assim, ele se mantém
dentro dos limites viáveis à sua manutenção ao longo do tempo, sendo que “a
atividade de produção de sentido tem uma dimensão temporal e uma orientação para
o futuro” (CARVALHO e ROLLA, 2020, p. 173), ao mesmo tempo que depende das
ações que se mostraram bem sucedidas no passado. Assim, o aspecto histórico da
interação de organismos com seu entorno contribui para as próprias ações dos
32
Compreendemos “organismo(s)” e “ser(es) vivo(s)” como termos coextensivos.
33
Produção de sentido (sense-making) é o “engajamento adaptativo ativo de um sistema
autônomo com seu ambiente em termos das implicações virtuais diferenciais para sua forma de
vida em curso. A forma básica e mais geral de toda atividade cognitiva e afetiva manifesta
experiencialmente como uma estrutura de cuidado.” (DI PAOLO, CUFFARI e JAEGHER, 2018,
p. 332). Uma “bactéria que se afasta de uma tendência de diminuição da concentração de
sacarose, ou uma criança que se prepara para agarrar uma bola que foi lançada em sua
direção [são exemplos de manifestação dessa sensibilidade]. Assim, o mundo de significados
que o organismo atua e gera através da atividade de produção de sentido é um mundo de
possibilidades de ações” (CARVALHO e ROLLA, 2020, p. 173).
137
organismos, e vice-versa, as ações dos organismos no tempo constituem a
historicidade. No caso de espécies sociais, como é o nosso caso, o conceito de
historicidade envolve também a “excitabilidade e vulnerabilidade das interações
sociais, com seus emaranhados paradoxais” (DI PAOLO, CUFFARI e JAEGHER,
2018, p. 84).
138
dimensões do corpo linguístico conecta diferentes tipos de auto-individuação material
com experiência e significado. Por isso, conceber o corpo a partir de três dimensões
não implica assumir três tipos diferentes de corpo, embora cada dimensão siga “a
lógica de sua própria autonomia” (p. 93, nosso itálico). A autonomia das dimensões
permite a estabilidade, as mudanças pontuais e as transformações mais notáveis (p.
110). Há uma progressão entre as três dimensões, mas não necessariamente
cronológica: se trata de uma progressão de complexidade. Pois é preciso ser um
corpo orgânico vivo para ser um corpo sensóriomotor, bem como é preciso ser um
corpo sensóriomotor para estabelecer o espaço de relações com outros corpos que
tornam possível a intercorporeidade (p. 87). Em outras palavras, a constituição
orgânica dos seres vivos “possibilita a vida sensóriomotora e intersubjetiva, mesmo
que essas dimensões não sejam totalmente determinadas pela normatividade do
organismo” (p. 92). Além disso, a dimensão orgânica é plástica em diversos graus, não
fixa como a de uma máquina, de tal modo que as três dimensões se relacionam no
tempo por meio de uma “história de transformações mutuamente co-determinadas” (p.
92).
A partir das três dimensões nas quais o organismo opera para
automanutenção em função das necessidades vitais e da manutenção da espécie (que
também garante a subsistência individual), padrões compartilhados de ações
emergem no decorrer do tempo. Isso implica que herdamos um contexto significativo
em uma escala histórica. Segundo os autores de Linguistic Bodies:
139
Padrões de ação compartilhados incluem ação e percepção conjunta, engajamento
verbal e não-verbal, experiências de conexão e desconexão, intimidade, confiança,
conflitos, normatividades socioculturais, dentre outros. Esses padrões compõem uma
teia de relações significativas em escala histórica na medida em que são herdados por
gerações no decorrer do tempo. Isto é, na medida em que são adquiridas por uma
geração por meio de suas relações com gerações anteriores.
Desse modo, a partir da concepção triádica de corpo linguístico proposta
pelo enativismo linguístico podemos repensar o estatuto do corpo nos debates sobre o
eu, no qual se insere o debate sobre sexo e gênero, incluindo nele tanto aspectos
biopsicossociais quanto históricos. Isto é, a partir da concepção de corpo linguístico,
podemos aproximar o corpo do eu de tal modo a viabilizar uma abordagem coerente
que envolva fatores de múltiplas ordens nos debates sobre sexo e gênero. Pois,
ressignificando o corpo segundo a concepção enativista de corpo linguístico, que
envolve hábitos e padrões compartilhados que emergem no tempo, pode-se explicar
“em escala evolutiva, porque há formas [...] preferidas [...] para manutenção da vida
[...] em favor da reprodução [...]” (MOJICA, 2021, p. 25). Isto é, a partir da concepção
enativista de corpo linguístico, pode-se explicar porque o gênero é diretamente
relacionado com o sexo — embora não inteiramente determinado por ele —, ao
mesmo tempo que permite explicar as ocorrências nas quais as normatividades
individuais e sociais se sobrepõem às finalidades reprodutivas da espécie, formando
novos padrões de vida. Além disso, reconcebendo o corpo enquanto um corpo
linguístico nos debates feministas sobre o eu, onde se situa a discussão sobre sexo e
gênero, podemos contornar as dificuldades deterministas e reducionistas, uma vez
que o método dialético do enativismo linguístico entende que os seres vivos são
sistemas complexos em constante engajamento e em constante construção a partir
das três dimensões do corpo, acoplado com o ambiente. Em síntese, é “porque nós
somos corpos precários orgânicos, sensóriomotores e intersubjetivos” que “nós nos
importamos com a vida e com o mundo” (DI PAOLO, CUFFARI e JAEGHER, 2018, p.
309, nosso itálico).
140
3.3 Reconcebendo o eu: uma proposta enativista de continuidade entre
vida, mente e intersubjetividade
141
biológicos, sem com isso endossar o reducionismo genético/biológico ou um
naturalismo ingênuo.
Como vimos, numa perspectiva enativa, as dicotomias corpo-mente e
natureza-cultura são rejeitadas em favor da tese de continuidade entre vida, mente e
linguagem. Essa tese tem como base o conceito de produção de sentido, mencionado
na seção anterior. Produção de sentido é uma capacidade de qualquer organismo vivo
de contemplar as implicações virtuais de suas ações (acoplamentos com o ambiente)
para sua própria forma de vida (DI PAOLO, CUFFARI e JAEGHER, 2018). Nesse
contexto, a linguagem se constitui como um processo complexo que se desenvolve a
partir dessas capacidades embrionárias de sentido. Ela pode ser compreendida,
grosso modo, como um “senso de relevância”, e se deve à teleologia intrínseca dos
seres vivos de auto-manutenção. No caso de seres sociais, como nós, a continuidade
entre vida, mente e linguagem é necessariamente perpassada pelas relações
intersubjetivas que constituem mutuamente os indivíduos por meio da produção
participativa de sentido. Assim, a tese da continuidade entre vida, mente e linguagem
é também, no caso de seres sociais, a continuidade entre vida, mente e
intersubjetividade. Segundo essa tese:
142
como a matéria ativa se transforma por fenômenos
mentais. (DI PAOLO, CUFFARI e JAEGHER, 2018,
p. 110, tradução nossa)
143
podemos compreender a vulnerabilidade corporal fora dessa concepção de relações”
(BUTLER, 2016, p. 18, tradução nossa).34 Por fim, reconceber o estatuto do corpo nos
debates feministas sobre sexo e gênero a partir da perspectiva enativista de corpo
linguístico significa assumir que a história da vida faz parte da história humana e
vise-versa. Significa também reconceber o eu como um processo de auto-individuação
inerentemente emaranhado numa teia complexa de relações biológicas, psicológicas,
sociais e históricas ao longo do tempo.
144
dicotômica está sujeita ao risco de negligenciar fatores biológicos eventualmente
relevantes no debate sobre sexo e gênero.
Na seção 2, mencionamos algumas evidências de correlação entre o cérebro
sexualmente dimórfico e a identidade de gênero, sugerindo a relevância de fatores
biológicos no desenvolvimento do gênero. Apresentamos também algumas áreas do
conhecimento que integram fatores sociais, psicológicos e biológicos em seus
métodos de pesquisa, embora de modos distintos. Além disso, a partir de uma
perspectiva enativista, e da concepção de deriva natural, rejeitamos a síntese
evolutiva moderna, ortodoxa na biologia, em favor da síntese evolutiva estendida,
recorrendo à teoria da construção de nicho que incorpora co-determinação e
co-construção entre organismo e ambiente. Essa referência serviu como evidência da
relevância de teorias que envolvem explicações a partir de múltiplos fatores, efeitos
recíprocos e múltiplas escalas de tempo.
Na seção 3, buscamos, mais diretamente no enativismo, conceitos que nos
permitissem adotar perspectivas de múltiplos fatores e efeitos recíprocos na
compreensão do eu. Propomos que uma reconceituação enativista do estatuto do
corpo no contexto dos debates sobre sexo e gênero é relevante, pela integração de
fatores sociais, psicológicos, biológicos e históricos a partir da concepção triádica de
corpo linguístico, que conecta as dimensões orgânica, sensóriomotora e intersubjetiva
de maneira co-constitutiva e complexa. Assim, derivamos a continuidade entre o corpo
e o eu da teoria enativista com a finalidade de pavimentar o terreno para uma
abordagem sobre sexo e gênero segundo a qual não apenas há uma abertura para a
integração de fatores biológicos, psicológicos e sociais, mas também o
reconhecimento de que essa integração é necessária. Desse modo, propomos que
uma ressignificação enativista da concepção de eu viabiliza a conciliação entre fatores
de múltiplas ordens e em múltiplas escalas de tempo no debate sobre sexo e gênero.
No entanto, uma das dificuldades que encontramos na nossa proposta é
definir o que é, exatamente, sexo e gênero. Justamente porque entendemos que
ambos são multideterminados, seria inconsistente definir sexo como cromossomos,
hormônios, órgãos reprodutores, características sexuais secundárias, etc. O mesmo
com o gênero: seria inconsistente definir gênero como papéis sociais impostos,
auto-identificação subjetiva, convenção social construída historicamente, manifestação
de comportamentos biologicamente compartilhados, etc. Pois, se sexo e gênero são
multideterminados, co-constituídos, co-construídos e co-determinados, então ambos
podem ser definidos diferentemente de acordo com o interesse em questão, podendo
145
satisfazer distintos critérios de definição. Do mesmo modo que a voz humana pode ser
entendida tanto como uma característica biológica (eg. o desenvolvimento do aparato
vocal, sua relação com ondas sonoras), social (eg. como a variação dos tons e da
altura da voz transmitem significados culturalmente distintos) e psicológico (eg. qual é
o impacto de tal e tal voz no aprendizado), assim é também com sexo e com gênero.
Desse modo, nossa proposta não oferece uma descrição clara e definitiva de sexo e
de gênero, que sirva em todos os contextos indistintamente, mas possibilita que os
diversos aspectos do sexo e do gênero sejam analisados de maneira plural e
não-hierárquica. Essa dificuldade, ao mesmo tempo que limita uma compreensão
definitiva sobre sexo e gênero, possibilita construir uma compreensão de ambos na
qual seus aspectos biológicos e psicossociais não se auto-excluem, mas, antes, se
complementam.
Tendo em vista essa dificuldade, os próximos passos dessa proposta devem
se concentrar no desenvolvimento de uma reconceituação enativista das noções de
sexo e gênero. Uma vez aceito que essa reconceituação deve incluir também fatores
biológicos, dado a tese enativista de continuidade entre vida, mente e linguagem,
vislumbramos pelo menos três alternativas possíveis: i) unificar esses conceitos, tendo
em vista a sua continuidade complexa, então teríamos o par sexo-gênero; ii)
desenvolver um conceito novo que represente essa continuidade sem se comprometer
com os termos “sexo” e “gênero”, tradicionalmente dicotômicos; então teríamos uma
concepção não dual, e iii) adotar o termo “gênero” de maneira ressignificada; nesse
caso, gênero seria compreendido como um constructo bio-psico-social. Em todas as
alternativas, buscamos conotar a continuidade complexa entre sexo e gênero, de
modo a incentivar abordagens nas quais os processos filogenéticos pelos quais se
desenvolve o dimorfismo sexual são constituídos, determinados e construídos pelos
processos ontogenéticos pelos quais se desenvolve a identidade de gênero, e
vice-versa. Assim, esperamos que este material contribua para o desenvolvimento de
uma abordagem enativista sobre sexo e gênero, que concilie múltiplos fatores, efeitos
recíprocos e múltiplas escalas de tempo, aliando áreas do conhecimento que, muitas
vezes, são tidas como conflitantes. Das vantagens da nossa proposta para a teoria
feminista e para o debate sobre sexo e gênero em geral, destacamos a possibilidade
de construir uma frente teórica interdisciplinar contra o sexismo e a violência de
gênero (como a discriminação explícita ou velada de certos grupos sociais a depender
se seu sexo e/ou gênero). Acreditamos que, justamente porque somos plurais —
constituídos tanto de fatores biológicos, quanto históricos, quanto psicológicos, quanto
146
sociais —, considerar essas dimensões em qualquer debate que esteja relacionado
com a questão da identidade, parece ser mais adequado do que priorizar um desses
fatores ou estabelecer uma hierarquia entre eles.
Por fim, reconhecemos que essa proposta contraria a tendência do
movimento feminista de desconsiderar a relevância de fatores biológicos enquanto
relevantes em si mesmos no debate sobre sexo e gênero. No entanto, esperamos que
nossa proposta não seja vista como um ataque ao feminismo, mas sim como uma
alternativa feminista em relação a outras propostas feministas, ou como uma
possibilidade viável de transformação de alguns princípios feministas. Se nossa
hipótese de que sexo e gênero — bem como corpo e mente, natureza e cultura — são
co-determinados, co-constituídos e co-construídos estiver correta, então é possível
mobilizar armas contra o sexismo e a violência de gênero por outros meios, para além
dos que se concentram nos seus aspectos psicossociais.
Agradecimentos
Agradecemos primeiramente à Beatriz Sorrentino Marques, Eduarda Calado e
Raquel Krempel, do GEMF, e também ao César Meurer e Giovanni Rolla pelas
revisões e sugestões atentas e perspicazes, imprescindíveis para a finalização deste
capítulo. Obrigada também aos amigos e colegas pelas discussões que contribuíram
para o desenvolvimento da pesquisa e aos organizadores do livro Filósofas Brasileiras,
Eduarda Calado e Rodrigo Cid, pelo acompanhamento atento e pela oportunidade de
desenvolver este trabalho. Por fim, agradecemos ao CNPq/PIBIC pelo financiamento
da pesquisa de Iniciação Científica da bacharelanda Fernanda Cardoso, que
possibilitou a realização deste trabalho.
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151
Esquemas de gênero como uma questão para o
controle consciente nas explicações de ações
Introdução
Uma das questões chave para a abordagem filosófica das ações humanas
atualmente é fornecer uma explicação satisfatória das ações intencionais. Não se trata
de explicar como os músculos se movem, ou qual atividade cerebral desencadeia o
movimento; a investigação filosófica sobre ações trata de explicar o que faz de certo
movimento uma ação. Nesse contexto, principalmente durante o século XX e até hoje,
as teorias que competem para oferecer essa explicação foram organizadas no debate
filosófico como opositoras. Aqui apresentarei brevemente algumas delas.
A Teoria Causal da Ação (TCA), à qual os nomes de Donald Davidson (1963)
e Alfred Mele (1992) estão associado, visa explicar ações intencionais1 mostrando a
relação causal existente entre a ação e estados mentais do agente relevantes para
ação — como desejos, crenças e intenções. Estados mentais relevantes que
antecedem a ação causam a mesma, segundo a teoria. Outra teoria é a Causação do
Agente (CA), em relação à qual os nomes de Roderick Chisholm (1976) e Timothy
O’Connor (2000) se destacam, dentre outros. A CA propõe outro tipo de explicação
para ações, muitas vezes com base no que é considerado um poder causal sui generis
do agente (CLARKE, 2010). Segundo essa teoria, o agente não necessita de estados
mentais intermediários para causar suas ações; o agente diretamente faz a ação
acontecer, espontaneamente. As duas teorias competem entre si; e cada uma
apresenta críticas à outra, além de tentar desenvolver respostas às suas próprias
dificuldades. Ambas têm grande expressão, embora a TCA tenha atualmente se
tornado a teoria ortodoxa na explicação das ações.2
1
Segundo Davidson (1963) uma ação tem uma descrição sob a qual ela é intencional (causada
por razões para agir). Aqui tratarei de ações intencionais, portanto, o termo ação deve ser
entendido sempre como ação intencional daqui por diante.
2
Embora eu trate a TCA e a CA no singular, essa nomenclatura é uma maneira de agrupar
teorias que compartilham aspectos que as caracterizam. As teorias que formam as vertentes de
Fora essas duas teorias que têm mais adeptos atualmente, há mais duas que
são menos apoiadas hoje em dia. Uma teoria alternativa para a explicação de ações é
a teoria de que razões para agir explicariam a ação do agente, porém, sem causar a
ação. Thomas Nagel (1986), Abraham Melden (1991) e Elisabeth Anscombe (1957)
são associados a essa teoria, que perdeu popularidade depois do famoso desafio de
Davidson (1963) em que ele apontou que, no caso em que há razões concorrentes
para agir que justificam a ação, a razão que explica a ação o faz porque causa a ação.
Para não-causalistas, o desafio é mostrar qual razão seria a explicação adequada
para a ação. Além disso, há o que pode ser chamado de teoria volicionista,3 que
também é uma teoria não-causal, que defende que a volição do agente é sua ação —
uma ação mental. O volicionismo foi endossado, por exemplo, por Lowe (2008),
embora Lowe também seja considerado um defensor de um tipo de CA. Dada sua
popularidade, meu enfoque será na tensão entre a TCA e a CA.
O capítulo será dividido em três seções. A segunda seção visa o
esclarecimento do que é a TCA e a terceira do que é a CA. Já na seção quatro, eu
especulo a respeito de uma possível razão para preferir a TCA. Essa razão visa
pensar na ação considerando a situação do agente em seu contexto social, levando
em consideração a influência de vieses e do esquema de gênero na produção da
ação. Meu objetivo não é apresentar um argumento definitivo para rejeitar a CA, mas
mostrar que a exigência de controle consciente direto do agente nessa teoria sugere
que ela tem mais dificuldade para lidar com os fatores sociais não conscientes que
influenciam as ações humanas.
explicação de ações da TCA e da CA são muitas e plurais. A explicação das ações pode variar
de acordo com a teoria de cada filósofo; por exemplo, na TCA, há diferentes formas de se
pensar como os estados mentais do agente estão relacionados às suas atividades cerebrais e
se esses causam ações de forma determinista ou não. Já a CA, embora mantenha certas
linhas gerais, também sofre variações de acordo com como cada autor a concebe; alguns
autores aceitam que os desejos do agente o influenciam a agir (CLARKE, 2010), enquanto
outros rejeitam essa ideia. Contudo, embora haja pluralidade, as teorias agrupadas sob cada
uma dessas vertentes teóricas compartilham as características fundamentais que as distingue
como TCA ou CA, que foram apresentadas acima sob esses rótulos.
3
Eu a chamo assim por causa da sua ênfase na volição do agente. Volição é um termo técnico
que não vou elucidar aqui — é às vezes traduzido como vontade — mas para os meus
propósitos aqui basta saber que se trata de um estado mental voltado para a escolha da ação
que será realizada.
153
1. Teoria Causal da Ação
Nesta seção apresentarei brevemente alguns pontos relevantes sobre a
Teoria Causal da Ação (TCA), como: o que são ações intencionais e a contribuição
causal de estados mentais relevantes para a produção de ações, bem como porque
convém uma explicação causal das ações. Diferentes autores propõem diferentes
versões dessa teoria; porém, aqui a discussão ficará restrita a alguns pontos das
teorias de Davidson e de Mele (1987, 1992, 2003).
Como dito acima, a TCA vem sendo a ortodoxia da explicação de ações
intencionais desde que Donald Davidson (1963) reintroduziu a explicação causal na
discussão contemporânea sobre ações humanas e lançou seu famoso desafio aos
anti-causalistas. Ele os desafiou a apresentar uma explicação para ações intencionais
na qual as razões para agir do agente (ou seus realizadores físicos),4 em alguma das
suas acepções, não desempenhem um papel causal na explicação da ação em
questão (DAVIDSON, 1963, p. 691).
Mesmo as TCA variando em diferentes aspectos em suas explicações de
ações e nas soluções apresentadas para os problemas encontrados nas teorias, Mele
acredita que toda teoria causal é desenvolvida a partir de uma perspectiva comum:
4
Usarei a expressão realizadores físicos, mas eu não pretendo resolver o problema de qual
seria a relação entre estados mentais e atividade cerebral, nem pretendo defender uma das
propostas de solução existentes.
5
Mele aceita que estados mentais são realizados por estados e eventos físicos, portanto, a
explicação da ação envolveria esses itens e sua relação com estados mentais; portanto, suas
afirmações sobre relações causais devem ser lidas considerando que as relações causais
podem ser atribuídas aos eventos físicos que realizam os eventos mentais. O termo realizar
pode sugerir a aceitação do funcionalismo como resposta ao problema mente-corpo, contudo,
Mele não afirma isso e eu me manterei neutra a respeito desse problema.
154
incluindo atitudes que englobam motivação, está disponível a
princípio. (MELE, 2003, p. 5)6
Esse tipo de perspectiva concebe a explicação das ações tomando como base os
eventos mentais que a causam. A perspectiva P parte de uma concepção naturalista
da agência humana, defendendo que eventos mentais (ou seus realizadores físicos)
têm uma relação causal com ações, que são também eventos. Segundo Mele, a
abordagem causal das ações caracteriza ações com base na sua história causal; i.e.,
para que um evento seja uma ação ele deve ser causalmente produzido da forma
apropriada (por eventos mentais, como intenções), do mesmo modo que a moeda de
uma nação e que as queimaduras de sol. Mele exemplifica com a nota de um dólar
americano (2003, p. 51-2). Para ser uma nota de um dólar, se deve, parcialmente,7 ter
sido produzida da forma apropriada pelo Departamento do Tesouro dos EUA. Se um
criminoso produz notas muito parecidas com as genuínas, mesmo usando as placas e
papel do Tesouro, elas não serão notas de dólar genuínas; serão falsas. Assim como
queimaduras de sol são produzidas apropriadamente pelo sol. Algo similar pode ser
dito sobre a concepção davidsoniana, em que toda ação é causalmente produzida por
desejos (ou outra pró-atitude) e crenças do agente.
Assim, nas teorias que favorecem uma abordagem causal, ações são
caracterizadas com base na sua produção causal, como Mele exemplifica no caso do
agente Norm, que levanta a mão no momento t. Levantar a mão é uma ação de Norm,
“[...] em virtude de ter sido produzido “da forma correta” por certos itens mentais (ou
seus realizadores neurais)” (MELE, 2003, p. 52). Caso Norm fosse de alguma forma
forçado a levantar a mão, de acordo com o exemplo, por meio de um controle remoto,
essa não seria uma ação sua, pois não cumpre os requisitos de ser produzida por
estados mentais relevantes do agente, como desejos e intenções. Assim, a história
causal da ação é essencial para a sua caracterização, de acordo com a concepção
que Mele (2003) apresenta de ações.
6
Todas as traduções das citações são da autora.
7
Se supõe que o material do qual é feito também é importante, além de ser feita da maneira
adequada.
155
1.1 Ações intencionais
8
Mele (1992) afirma ser irrelevante se razões são consideradas simplesmente estados
psicológicos ou se são consideradas estados psicológicos no qual o sujeito se encontra ao
pensar nessas propriedades abstratas. Em ambos os casos, atribuir razões significa atribuir
estados psicológicos. Essa é uma resposta para o problema: se razões contribuem de forma
significativa para causar ações, como propõe a TCA, então razões devem estar no agente.
Porém, para aqueles que acreditam que razões são proposições, não faz sentido considerar
que essas propriedades abstratas estejam localizadas no agente.
156
recentemente, como as bases motivacionais positiva, negativa e total,9 a condição de
atenção do agente, a proximidade temporal de recompensas, o autocontrole, a
motivação para empregar o autocontrole etc.
Mele especifica o que é ter uma razão para agir: “ter razões de maneira
efetiva — isto é, estados efetivos de ter uma razão — possui um elemento conativo e
um elemento representativo que liga a conação ao comportamento apropriado”
(MELE, 1992, p. 115). Ambos os tipos de elementos levam à ação, pois contribuem
para a formação, ou aquisição, de uma intenção pertinente.
As TCA estariam de acordo com a tese C: “C. Para todas as ações A, A é
uma ação intencional somente se o agente de A teve uma razão para fazer A e (ele
ter) essa razão foi uma causa de ele fazer A” (MELE, 1987, p. 32). A proposta de
explicar uma ação A citando as razões pelas quais A foi feita é a proposta de dar uma
explicação causal para A. Assim, uma ação ter sido realizada por causa de uma razão
é, segundo o autor, condição necessária para que uma ação seja considerada
intencional pelas TCA. Essa proposta se conecta com a ideia de que a história causal,
envolvendo estados mentais do agente, caracteriza ações, pois razões envolvem
estados mentais/psicológicos. Igualmente, Mele aceita que é compatível com essa
proposta que ações intencionais possam ser caracterizadas como algo que o agente
faz de acordo com uma intenção relevante que adequadamente faz parte da produção
causal da ação.10
Mele considera que intenções são necessárias para explicar ações, pois
apenas o balanço das motivações do agente não as explica. Intenções são “atitudes
executivas direcionadas a planos” (MELE, 2003, p. 27). Assim, o que caracteriza
intenções e as diferencia de outras atitudes é a dimensão executiva que lhe é
intrínseca, pois quando um agente tem uma intenção direcionada ao plano A isso
significa que ele está resolvido a executar A.
9
Tudo aquilo que oferece motivação para fazer A e para não fazer A, respectivamente.
10
Mele não formula exatamente dessa maneira, mas eu derivo a formulação daquilo que ele diz
a respeito da relação entre intenções e ações intencionais (MELE 2009a, 2009b, p. 11).
Contudo, a discussão sobre intenções e sua relevância para a ação intencional é longa e
envolve questões que lhe são próprias (seu conteúdo, funções, e o problema da sorte, por
exemplo). Aqui não tratarei desses desdobramentos, pois uma compreensão mais geral das
ações intencionais para a TCA é suficiente para o meu propósito.
157
1.2 Por que uma teoria causal da ação?
11
Aquilo que é explicado, isto é, a ação.
12
A discussão a respeito do controle das ações é complexa na TCA e envolve resolver o
problema das cadeias causais desviantes. Contudo, para o propósito dessa discussão, basta
que esteja claro que, para a TCA, o controle da ação é garantido pelo processo de produção
causal da mesma, em que uma ação é produzida causalmente pelos estados mentais relevante
da maneira adequada, ou seja, por causa e de acordo com esses estados mentais.
158
A CA apresenta outro tipo de proposta que põe ênfase em outras
preocupações a respeito da produção de ações, como veremos a seguir. A teoria de
O’Connor (1996, 2000) será tomada como exemplo de CA, o que ajudará a
compreender o tipo de explicação de ação proposto pela CA e o tipo de relação causal
envolvida nelas, porém, é importante lembrar que esse não é o modelo único de
teorias da CA.
Três pontos importantes das CA são enfatizados por O’Connor: (1) a
causação do agente é um tipo especial de evento; (2) esse evento não é causado por
outro anterior a ele; (3) essa causação é um exercício do controle do agente sobre o
seu comportamento (2000, p. 60-61). Segundo o filósofo, esses três pontos derivam
de acordos e desacordos com teses de CA propostas anteriormente à sua, por
exemplo, ele aceita que Thomas Reid defendeu algo similar a (1), que ser um agente é
ser uma causa (eficiente), o que significaria “exercer o poder de diretamente causar
uma volição desencadeadora-de-ação” (O’CONNOR, 2000, p. 45). Já Chisholm (1976)
desenvolveu uma CA em que o agente seria um tipo de causação diferente de outras
causas, que requereria intencionalidade. As volições são rejeitadas nessa teoria, de
modo que o agente iniciaria diretamente sua ação, ao mesmo tempo em que tem a
intenção de agir. De acordo com essa perspectiva, o agente age quando faz x
acontecer em vista de fazer y acontecer, o que requer que o agente seja inteligente e
tenha um propósito. O’Connor rejeita a necessidade de algo que intermedeie o agente
e aquilo que ele faz acontecer, por isso ele prefere (2).
O’Connor propõe "outra espécie do gênero causal, envolvendo a atividade
característica de agentes intencionais" (O’CONNOR, 2000, p. 72). Ele, porém, acredita
que só este poder não seria suficiente para explicar ações e dependeria das
circunstâncias e dos motivos do agente.13 A teoria tenta explicar a causação entre
eventos aceitando a existência de particulares poderosos, cujo poder emerge da sua
estrutura subjacente, que para O’Connor pode ser física, química ou biológica (2000,
p. 71). Nos agentes, esse poder se manifestaria na causação do agente, que emerge
das propriedades do agente (que é uma substância) e se manifestaria em
circunstâncias apropriadas. Os agentes intencionais seriam particulares que livre e
diretamente fazem acontecer um efeito, produzindo estados executivos imediatos de
13
A teoria de O’Connor visa conciliar alguns aspectos da Teoria Causal da Ação, como a
influência de razões de agir sobre o agente, para evitar problemas comuns às teorias da
Causação do Agente.
159
intenção de agir. Para tanto, o autor considera necessário que o agente tenha a
capacidade de representar possíveis cursos de ação e ter desejos e crenças relativos
aos mesmos, além do poder ativo.
O poder ativo do agente emergiria de suas propriedades intrínsecas e por meio desse
poder, o agente poderia causar direta e livremente seus estados intencionais. Na
causação do agente, o poder causal do agente é exercido livremente por ele quando
as circunstâncias possibilitam a manifestação das propriedades do agente que
permitem que ele faça escolhas. Essa teoria, portanto, nega que ações sejam
causalmente determinadas por qualquer outra força além do agente. O’Connor
defende que pessoas são entidades biológicas com propriedades e capacidades
mentais irredutíveis.14 Nesse sentido, a intenção produzida não seria um mero efeito
das circunstâncias; ela seria produzida pelo agente.
No que toca as razões do agente para agir, O’Connor acredita que elas
podem participar da explicação de ações, mas não como causa da ação. Por exemplo,
desejos seriam razões para agir. Quando o agente age para satisfazer seu desejo que
Θ (theta):
14
De acordo com essa concepção, propriedades são universais com tendências disposicionais
essenciais (O’CONNOR, 2000).
160
3. Concomitantemente a essa ação, ele continuou a desejar que
Θ e intencionava de sua ação que ela satisfizesse (ou
contribuísse para satisfazer) esse desejo; e
4. A intenção concomitante era uma consequência causal direta
(intuitivamente, uma continuação) da intenção
acionadora-de-ação ocasionada pelo agente, e ela sustentou
causalmente a conclusão da ação. (O’CONNOR, 2000, p. 86)
161
próximo que posso imaginar é um em que eu esteja vagamente
ciente de que eu tenho uma razão para executar a ação A e eu
não consigo me lembrar qual é. Pressionado pelo tempo, eu
procedo a fazer A. Eu estarei agindo por causa da minha razão
não rememorada (supondo que ela causou a minha vaga
sensação de que existe tal razão), mas não estarei agindo por
[for] ela. O conteúdo da minha intenção não será que eu
satisfaça o desejo Θ; ao contrário, ele será que eu satisfaça o
desejo ou intenção esquecidos relevantes para A.
(O'CONNOR, 2000, p. 88)
Nesse contexto, o autor argumenta que razões não precisam diretamente produzir
ações para que as expliquem, isto é, não é necessário conceber as razões como
sendo causas da ação, pois quem inicia sua ação é o agente, e essa iniciação está
conceitualmente ligada às razões que o agente tem para realizar a ação em questão.
A ligação é clara, visto que agentes causam intenções por conta de motivações, ou
seja, de suas razões para agir. Afinal, O’Connor defende que agentes não agem sem
que tenham alguma motivação para tanto. De acordo com essa compreensão, razões
influenciam e motivam o agente a produzirem ações — supõe-se que O’Connor
conceba a influência e motivação como não causais — e, por isso, o agente não pode
ser ignorante de suas razões para fazer A se ele exerce seu poder causal para
produzir uma intenção de fazer A. Caso contrário, se ele não estivesse pelo menos
ciente delas, suas razões não poderiam influenciar o que ele escolhe
(conscientemente) fazer.
Segundo essa teoria, em caso de falta de consciência das suas razões para
fazer A, se o agente faz A, essa não seria uma ação livre. O’Connor argumenta que a
ação não poderia ser explicada, uma vez que teria surgido sem que o agente tivesse
ciência de qualquer razão para agir, consequentemente, sem que ele tivesse
consciência de qualquer motivação para agir. As ações que não são livres, são
produzidas sem o envolvimento direto do poder ativo do agente, resultando apenas de
estados mentais do agente. Para que uma ação seja considerada livre, de acordo com
sua teoria, o poder do agente deve ser relevante para a produção da ação, não
podendo estar apenas latente. Contudo, em alguns casos, as razões não estão
conectadas ao processo de pensamento do agente no momento, a exemplo das ações
automáticas que são ativadas por disposições do agente. Nesses casos, é provável
162
que O’Connor não considerasse essas ações livres, já que o agente não as teria
ativamente escolhido nem executado (Ibidem, p 105).
De acordo com a teoria de Steward, o agente deve ser integrado ao seu corpo para
influenciar sua atividade motora (STEWARD, 2012, 18), o que sugere um dualismo de
propriedades. Os movimentos que constituem a ação são determinados
de-cima-para-baixo e a determinação se sobrepõe aos processos internos do
organismo que produzem o movimento do corpo (STEWARD, 2012, 17-18). Esse tipo
de determinação Steward considera uma capacidade do agente graças ao seu sistema
consciente centralizado que conscientemente determina os movimentos a serem
163
executados, ou apenas os supervisiona para que estejam de acordo com seus
objetivos. Steward foca na segunda opção. Assim, o agente poderia influenciar
conscientemente a produção de ações, o que equivale a ter o tipo de controle
consciente que os teóricos da CA valorizam.
O agente, para Steward, é um sistema consciente de nível pessoal, que
supervisiona os processos de produção de ação para fazer com que ela se conforme
aos seus objetivos conscientes. Steward admite que alguns movimentos são
produzidos de modo não-consciente, mas ela considera que esses são movimentos
que podem ser atribuídos ao agente porque o movimento deve ser produzido por parte
do sistema que está sob a supervisão consciente potencial do agente.15 O agente
pode direcionar sua supervisão consciente para qualquer processo da produção da
ação sempre que ele quiser ou achar necessário. O núcleo de consciência
desempenharia um papel (ao menos potencialmente) direto na produção de ações, por
isso se encaixa bem em uma teoria da CA.
Steward aceita que razões podem influenciar ações, mas apenas quando elas
influenciam o agente a decidir agir de acordo com elas. Razões não podem determinar
como o agente age, pois, resolver como vai agir caberia ao agente (STEWARD, 2012,
p 152). Não está claro se Steward pensa que todas as influências que possam ter
efeito na ação do agente precisariam ser conscientes, contudo, eu acredito que sua
teoria sugere que, de modo geral, precisaria ser possível trazê-las para a consciência
se o agente direcionar sua supervisão para elas. Se o agente resolve o que vai fazer,
ou supervisiona os subsistemas que funcionam para atingir seus objetivos, então o
agente precisa conscientemente monitorar, supervisionar e, às vezes, alterar a
atividade dos subsistemas encarregados da ação. Isso faz parecer que o agente
15
Este sistema nem sempre influencia a produção da ação, nem origina as ações. Em vez
disso, seu papel de supervisão é intervir quando considerado necessário, exercendo assim
controle em potencial sobre todas as ações do agente.
164
estaria (ao menos potencialmente) ciente dos sistemas e fatores envolvidos na
produção de sua ação.
16
Vontade no sentido que Lowe (2008) confere ao termo não é um desejo ou querer, mas sim o
que no inglês se diz will.
165
Nas teorias apresentadas, as ações são pensadas atomicamente, por
exemplo, Ana jogou o dardo. Mesmo ações mais complexas, como Ana trocou o pneu
do carro, ou que envolvem um plano, como Ana viajou para a praia, são discutidas
sem muita consideração ao contexto. Isso dificulta pensar em ações intencionais como
algo que corpos atravessados por estruturas e contextos sociais fazem. Contudo, se
as filósofas feministas ou os psicólogos situacionistas estiverem corretos, o contexto
não é irrelevante para aquilo que o agente faz. As teorias discutidas nas seções
anteriores provavelmente não ignoram isso, mas podem requerer mais independência
do contexto do que é razoável supor que agentes humanos tenham. Nesta seção, eu
defendo que ao dar um papel tão importante para a consciência e o controle
consciente nas suas explicações de ações, a CA tem mais dificuldade para lidar com
as questões que surgem a partir da influência não-consciente de fatores sociais nas
ações dos agentes.
Apresentarei resumidamente algumas perspectivas feministas sobre
esquemas de gênero. Em seguida, discuto brevemente a proposta otimista de Mele e
Shepherd (2013) em relação ao situacionismo. Otimista porque mesmo frente aos
resultados da psicologia empírica que mostram a influência não-consciente da
situação do agente na sua ação, eles defendem que ainda é possível pensar que
agentes têm controle consciente de suas ações. Eu pondero que, embora agentes
humanos não ajam guiados apenas por hábitos automáticos, Mele e Shepherd não
mostram que temos controle consciente direto de, pelo menos, as influências
situacionais sobre as ações que eles discutem. Proponho essa discussão apenas para
facilitar pensar nos esquemas de gênero, cuja influência sore nossas ações
provavelmente também não podemos controlar conscientemente de maneira direta.
Entretanto, essas influências não inviabilizam a TCA, pois a teoria não trata o controle
consciente direto como central. Por outro lado, considerando que a CA propõe uma
explicação de ação que exige um controle consciente direto mais robusto na produção
de ação, ela terá mais dificuldade para lidar com a influência dos esquemas de gênero
nas ações dos agentes.
166
— regras institucionais, rotinas de interação e distribuição de recursos — são um tipo
de macroestrutura que constrange as ações das pessoas e grupos (YOUNG, 2005).
De acordo a estrutura social, as pessoas são classificadas por gênero, o que para
Young é uma posição social nas quais se relacionam os corpos, dentro de instituições,
e processos históricos e sociais que moldam o ambiente em que agimos e nos quais
reproduzimos relações de poder e privilégio (2005, p. 22). Por exemplo, a divisão do
trabalho generificada em público e privado mostra como os corpos são posicionados
socialmente de uma forma que reproduz relações de poder. Contudo, um ponto
importante é que, como as estruturas de gênero são dadas sócio-historicamente, elas
antecedem a ação e a consciência, e moldam ações e consciência de modo que as
pessoas têm a experiência dessas estruturas como dadas pela relação de seu corpo
com o entorno, sem se darem conta da estrutura social que molda o ambiente. Assim,
sem estarem cientes, agentes agem de acordo com as possibilidades limitadas pela
estrutura social (YOUNG, 2005, p. 25).
Simplesmente ter um gênero atribuído a si torna o agente sujeito às normas
sociais, pois regras sociais se aplicam aos indivíduos independentemente da sua
aceitação. Basta nascer para que outros lhe atribuam um gênero ao qual regras se
aplicam pelo reconhecimento social de que a pessoa ocupa certa posição social
(WITT, 2011). Assim como Young, Witt afirma que o gênero é uma posição social, que
a última considera funcionalmente definido, ou seja, é definido pelo papel social
desempenhado. Witt (2011) define ser mulher ou homem em termos da função social
necessária da reprodução, porém, não simplesmente a reprodução em seus termos
biológicos, mas pelas diferentes funções que cada um desempenha na reprodução
socialmente mediada, i.e., nas ações dentro da sociedade que estão direta ou
indiretamente ligadas à reprodução. Por exemplo, quando um homem abre a porta
para uma mulher, ou a postura na qual a mulher se senta. Isso significa que o gênero
é normativo, pois o papel social desempenhado não é uma mera descrição daquilo
que fazem mulheres e homens. Ainda em consonância com Young, que defende que a
estrutura social molda o comportamento, Witt afirma que o gênero é um conjunto de
regras sociais que modulam o comportamento e que servem de parâmetro de
avaliação do comportamento.
Assim, o gênero é normativo, mesmo quando não nos damos conta das
normas que seguimos. Os esquemas socioculturais — também chamados de
estruturas sociais — são regras, convenções e recursos que normatizam a percepção,
pensamento e comportamento intersubjetivos, ou seja, são socialmente
167
compartilhados e se manifestam nas pessoas, muitas vezes de forma não consciente,
como disposições para agir de maneira habitual (HASLANGER, 2012, p. 415), como
um roteiro para as interações. Sendo assim, influenciam as ações, ao mesmo tempo
em que as ações influenciam esses esquemas (HASLANGER, 2012). Podem também
ser entendidos como crenças não conscientes que “condicionam nossa percepção e
moldam nossas expectativas normativas” (ANTONY, 2012, p. 231) a respeito das
pessoas de acordo com o seu gênero, inclusive dos homens.17
Valian (1998, 2005) propôs a noção de esquemas de gênero como hipóteses
sobre quais comportamentos, posturas, papeis, aparência, traços psicológicos, dentre
outros, são considerados próprios, ou bem aceitos, em homens e quais são próprios
de mulheres. Ela usa essas hipóteses para interpretar fenômenos sociais, como a
ausência de mulheres nos cargos e posições mais altas da academia, pois usando
dados da psicologia social e cognitiva, Valian (1998) argumenta que tais esquemas,
embora não conscientes, influenciam homens e mulheres quando avaliam o
comportamento e desempenho de pessoas de diferentes gêneros em situações
profissionais18 (o que está de acordo com aquilo que Witt defende). Por exemplo,
traços psicológicos associados à proatividade são comumente associados aos
homens, enquanto traços que ressaltam a proximidade com os sentimentos são
associados às mulheres. Sendo assim, os esquemas masculinos estão associados a
qualidades positivas para a maioria das carreiras e os femininos recebem a
associação oposta, o que resulta nos homens terem clara vantagem nos ambientes
profissionais. No que segue, aceitarei a proposta das autoras, que compreendo que
coincidem na aceitação de que esquemas (estruturas) de gênero estruturam e
influenciam nossas ações de modo não-consciente.
17
Esses esquemas variam de acordo com o contexto e fatores como raça, classe etc.
(HASLANGER, 2012).
18
Os esquemas de gênero funcionam em associação ao acúmulo de vantagens, segundo
Valian (2005). A ideia do acúmulo é que mesmo vantagens mínimas, quando somadas, se
acumulam para formar uma grande diferença entre aqueles que obtiveram vantagens e aqueles
que não as obtiveram. Então, mesmo que as vantagens sejam pequenas em algumas
situações, elas se acumulam em favor dos homens alcançarem posições superiores com
rapidez.
168
3.2 Influências não conscientes e controle: associação implícita e
situacionismo
169
conscientemente controlar nosso comportamento para não estarmos à mercê dessas
influências. Intenções de implementação, que especificam quando, onde e como a
ação será realizada (MELE E SHEPHERD, 2013) também podem ser, segundo os
autores, uma maneira de evitar a influência de pressões situacionais. Portanto, eles
concluem que não é o caso que intenções conscientes não possam influenciar o
comportamento, mesmo quando esse sofre influências não-conscientes. O ponto dos
autores é que a educação a respeito da influência não-consciente de situações pode
ajudar agentes a não se deixarem levar por elas.
Eu não adoto a posição chamada pelos autores de “pessimista”, contudo, o
“otimismo” defendido por eles deve ser avaliado com cuidado. Não está claro que haja
evidência de que nosso controle consciente pode superar a influência das situações
de maneira direta, mesmo por meio da educação ou da tomada de consciência dessas
influências. Por exemplo, se intenções de implementação puderem ajudar nessa
tarefa, elas não mostram que controlamos conscientemente a influência de uma
situação sobre o comportamento, o que constituiria um controle consciente direto do
comportamento (não vou discutir aqui se Mele e Shepherd pretendem defender a
possibilidade de controle consciente direto; é provável que não). O que as intenções
de implementação mostram, é que podemos nos preparar para situações em que
sofremos essas influências, de modo a garantir que teremos outra influência, a
intenção de implementação, que foi conscientemente introduzida para também
influenciar o comportamento e oferecer uma espécie de contrapeso às influências
não-conscientes.
A expectativa do que deve acontecer, produzida pela intenção de
implementação, funciona como uma expectativa de que desempenharemos o papel
esperado quando o momento chegar, assim, essa é uma influência da qual temos
consciência, mas não significa que controlamos diretamente, de modo consciente, a
influência que a situação tem sobre nós, ou que possamos conscientemente e
diretamente recusar essa influência. A meu ver, o que Mele e Shepherd sugerem é
que podemos conscientemente criar métodos de prevenção para que as influências
não-conscientes que, por exemplo, não estão de acordo com os valores que
conscientemente endossamos, não nos afetem desimpedidamente. Talvez isso possa
ser aplicado à medida que tomamos consciência dos esquemas de gênero que
influenciam nossas ações.
170
3.3 Controle consciente
19
Uma técnica para que o sujeito perceba respostas preconceituosas e o conflito entre elas e
seus valores (BROWNSTEIN, 2019).
20
A preparação [priming] de diversidade ideológica e valores igualitários (BROWNSTEIN,
2019).
21
FitzGerald, Martin, Berner e Hurst (2019) relatam apenas um estudo envolvendo controle
direto, consciente que foi bem-sucedido, conduzido por Wallaert, Ward e Mann (2010). Os
participantes foram instruídos a evitar estereótipos. Como trata-se de apenas um estudo, é
recomendável cautela na interpretação de que o resultado pode ser o caso para todos os
exemplos de viés implícito.
171
Embora tais medidas tratem de vieses implícitos, é possível que algo similar
se aplique aos esquemas de gênero. O situacionismo e os esquemas de gênero
colocam em suspeição a capacidade postulada pela CA de que o agente teria controle
consciente direto das ações, pois como exposto acima, a CA propõe uma explicação
de ação em que o agente precisa estar consciente das suas razões para agir — ou
precisa conscientemente supervisionar a produção da ação — para que possamos
dizer que ele teve controle consciente da ação e agiu livremente. Então se fatores ou
razões não-conscientes influenciam causalmente a ação do agente, isso sugere que
não é o caso que o agente tenha o controle consciente robusto proposto pela CA, pois
o tipo de controle proposto depende do agente ter consciência de suas razões para
agir (O’CONNOR, 2000), ou conscientemente decidir agir de acordo ou não com
influências externas (STEWARD, 2012).
Contudo, os esquemas de gênero são um bom exemplo de que esse não é o
caso, ao menos não sempre. Esses esquemas são pervasivos nas ações humanas,
pois são parte relevante de nosso contexto social e o mais provável é que o agente
não se dê conta de que essas normas e expectativas sociais estruturam suas ações, e
mesmo que ele se dê conta, como vimos, não parece óbvio que ele seja capaz de ter
controle consciente para diretamente impedir essas influências nas suas ações.
Considerando essa discussão, a TCA está melhor equipada para adequar sua
explicação de ações a elas, pois não exige do agente o mesmo controle consciente
robusto e direto que a CA exige.
Há teorias da CA que admitem que as razões do agente influenciam suas
ações, mas mesmo aceitando essa influência, supõe que o agente tenha acesso a
seus estados mentais e razões para agir, como se esses fossem transparentes ao seu
escrutínio. É razoável pensar que os defensores da CA reconheceriam a existência de
esquemas de gênero e vieses, contudo, não está claro como lidariam com essas
influências não-conscientes na produção da ação, pois essa vertente teórica tende a
não aceitar que ações livres possam sofrer influências não-conscientes relevantes e
que pesem em qual ação o agente realiza. A ideia de que nossas razões para agir não
são transparentes para nós, não é nova, mas mais recentemente tem ficado mais claro
que a condição de indivíduos situados em uma sociedade e contexto histórico, cultural
e carrega regras e uma perspectiva de mundo das quais não necessariamente
estamos conscientes, ainda mais quando consideramos que fatores como gênero,
raça e classe modulam tais regras e perspectiva. Seria difícil aceitar que esses fatores
não influenciam nossas ações ou que o agente, compreendido tal como a CA o
172
compreende, seja sempre capaz de se dar conta desses fatores e deliberar sobre o
quanto permitirá que influenciem suas ações.
Ao defender que ações das quais o agente não se dá conta de suas
verdadeiras razões não são livres, por exemplo, O’Connor parece supor que nos
damos conta da maior parte das influências que sofremos; entretanto, não é
convincente supor que nos damos conta da influência que esquemas de gênero, por
exemplo, têm sobre nossas ações, tampouco é razoável dizer que nenhuma das
ações que sofrem essa influência são livres, pois é muito provável que a maior parte
de nossas ações, se não todas, sofram influências relevantes de normas sociais das
quais não nos damos conta. Poucas ações, ou nenhuma, seriam livres nesse sentido,
o que tornaria a noção de ação livre inalcançável, portanto, irrelevante na análise das
ações humanas.
4. Considerações finais
É possível pensar que diversos fatores influenciam os agentes a agirem como
agem. Aqui tratei dos esquemas de gênero e tracei um paralelo com as conclusões de
Mele e Shepherd (2013) sobre experimentos de associação implícita; o paralelo que
existe entre esses fenômenos é que se tratam de influências implícitas no
comportamento humano, ou seja, sua influência é não-consciente. Considerando
especialmente os esquemas de gênero defendi que a explicação de ação proposta
pela CA, com seu requisito de que o agente controle conscientemente e de maneira
direta sua ação é demasiado forte para que agentes humanos possam satisfazê-lo.
Afinal, agentes humanos estão sujeitos a influências implícitas sobre suas ações muito
frequentemente, às quais, como vimos com Mele e Shepherd (2013), parece ser
possível controlar conscientemente apenas indiretamente.
Referências
173
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174
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175
Da Epistemologia Formal à Epistemologia Feminista
Negra: um caminho subjetivo
Jeanne Silva
1
Neste texto, o termo ‘epistemologia’ é usado de pelo menos dois modos. Tanto para se referir
à área de investigação acadêmica que pertence à filosofia analítica, quanto para se referir a
uma cosmopercepção que fornece a estrutura necessária para o conhecimento do mundo, ou
seja, para a atribuição de sentidos e significados às pessoas e suas possíveis interações.
Grada Kilomba define aquilo que estamos tomando pelo primeiro modo: "Por favor, deixe-me
lembrar-lhes o que significa o termo epistemologia. O termo é composto pela palavra grega
episteme que significa conhecimento, e logos que significa ciência. Epistemologia é, então, a
ciência da aquisição do conhecimento que determina:
1) (os temas) quais temas e tópico merecem atenção e que questões são dignas de
serem feitas com o intuito de produzir conhecimento verdadeiro.
2) (os paradigmas) quais narrativas e interpretações podem ser usadas para explicar
um fenômeno, isto é, a partir de qual perspectiva o conhecimento verdadeiro pode
ser produzido.
3) (os métodos) e quais maneiras e formatos podem ser usados para a produção do
conhecimento confiável e verdadeiro.
Epistemologia, como eu já havia dito, define não somente como, mas também quem produz
conhecimento verdadeiro e em quem acreditamos (KILOMBA apud RIBEIRO, 2017, p. 88).
tema têm sido aqueles vinculados à filosofia prática e, ainda assim, a filosofia
institucionalizada é uma das últimas áreas a se abrir para a decolonialidade2.
O termo 'epistemicídio' foi cunhado por Boaventura Souza Santos (1995) no
âmbito das discussões que se inscrevem nas "Epistemologias do Sul", que seriam
epistemologias alternativas àquela do norte global, entendida como eurocêntrica.
Etimologicamente, epistemicídio se traduz como assassinato do conhecimento, tanto
no que diz respeito ao apagamento de determinados conjuntos de saberes quanto no
que se refere à consideração ou não de alguém como produtor ou fonte confiável de
conhecimento. O epistemicídio seria "um dos instrumentos mais eficazes e duradouros
da dominação étnica/racial, pela negação que empreende da legitimidade das formas
de conhecimento, do conhecimento produzido pelos grupos dominados e,
consequentemente, dos seus membros enquanto sujeitos de conhecimento"
(CARNEIRO, 2005, p. 96).
Dediquei-me por anos a pesquisas que não consideravam os aspectos
sócio-históricos da pessoa que conhece, uma vez que a noção de pessoa presente
naquelas discussões era uma noção universal, sem particularidades. Não tive contato
substancial com outras epistemologias. Entre minhas professoras e professores,
ninguém me mostrou esta possibilidade, e, quando questionei, ouvi que a filosofia
nasceu na Grécia “e o resto nós já sabemos”. Esta epistemologia, que parece ter sido
inaugurada por Platão no Teeteto, seria uma epistemologia universal, capaz de dar
conta de qualquer processo epistemológico em qualquer lugar e tempo.
Nos últimos anos, a temática do epistemicídio tem aparecido com mais
frequência, principalmente no âmbito do ativismo feminista negro. O termo ainda é
novo, sobretudo no que diz respeito ao debate epistemológico especializado que, no
2
Decolonialidade, ou pensamento decolonial marca uma vertente latino-americana do
pensamento pós-colonial que compreende a colonialidade como a persistência do colonialismo
que, apesar de formalmente extinto, ainda existe na forma do colonialismo do saber e do
colonialismo do poder (QUIJANO, 2005). Mesmo antes da difusão do termo, já era possível
identificar a ideia da oposição à colonialidade do pensamento em autores como Frantz Fanon,
Paulo Freire, Lélia Gonzalez, Angela Davis, entre outros. A decolonialidade aqui não é
concebida apenas como ferramenta metodológica para a formulação de teorias, mas um
esforço, uma atitude; pressupõe, portanto, agência. Decolonialidade concebida como uma
atitude epistemológica com vistas à superação de injustiças epistêmicas causadas pela
colonialidade.
177
Brasil, resiste à necessidade de recorrer às características sócio-psíquicas para a
devida compreensão de fenômenos epistemológicos. A análise histórica, social,
econômica, política e psíquica, para listar algumas abordagens indispensáveis; em
conjunto com a análise ética e epistemológica é aquilo que configura a Epistemologia
Social e a separa da Epistemologia Formal.
A Epistemologia Formal, enquanto área de investigação, passa a ser
considerada a linha "dura" da epistemologia, uma vez que preserva mais fortemente
aspectos metodológicos lógico-filosóficos, em detrimento daquelas abordagens que
compreendem as relações epistemológicas como parte inseparável das demais
relações humanas e seus complexos intrincamentos. Nas últimas décadas, entretanto,
o trabalho de epistemólogas como Linda Zagzebsky (2003) e Miranda Fricker (2007),
por exemplo, questionam a lacuna ética presente nas produções da epistemologia
enquanto área, levando para a Epistemologia Formal a discussão sobre como as
relações epistemológicas estão sobrepostas em relações de poder, assim, ajudando a
sedimentar a abordagem social na Teoria do Conhecimento.
Antes disso, autores como Michel Foucault, Lélia González, Aníbal Quijano,
Walter Mignolo, e Sueli Carneiro, entre muitos outros estudiosos, já se perguntavam
sobre tais relações, enquanto problematizavam a localização geográfica, o gênero e a
cor como instâncias para as quais deveríamos olhar a fim de compreender as trocas
epistêmicas performadas nas relações sociais. Nenhum desses nomes foi elevado
pela comunidade acadêmica especializada, que em grande medida estava
preocupada com cérebros em cubas3, à categoria de epistemólogo. Prova disto é a
escassez, ou mesmo ausência, destes nomes nas referências bibliográficas dos
produtos acadêmicos da epistemologia enquanto linha de pesquisa. Ou ainda, a
3
A hipótese do cérebro na cuba é uma versão mais recente de um exemplo de ceticismo global
sobre o mundo exterior e se assemelha metodologicamente à hipótese do gênio maligno de
Descartes. Neste exemplo, Hillary Putnam (1999) propõe que o leitor suponha que, durante o
sono, cientistas retiraram o cérebro do seu corpo e o puseram em uma cuba com nutrientes.
Seu cérebro foi ligado a eletrodos conectados a um computador que envia estímulos nervosos
de tal maneira a manipular as sensações que se tem. Além das sensações primárias, o
computador controla seus pensamentos, inferências, juízos e tudo mais que se acredita estar
vivendo espontaneamente. A própria atitude de duvidar de que se é um cérebro sem corpo
numa cuba é resultado de um estímulo enviado pelo computador. Não se pode, por exemplo,
saber que se tem mãos, pois saber que se tem mãos implica saber que não se é um cérebro
sem corpo numa cuba. Para uma abordagem mais detalhada ver PUTNAM, 1999..
178
resistência dos orientadores em aceitar a inserção destes nomes nas pesquisas dos
orientandos sob a alegação de que tais estudos não se configurariam enquanto
distintivamente epistemológicos, ao mesmo tempo em que era e ainda é possível
observar a predominância masculina, branca e eurocêntrica nas referências aceitáveis
na área.
As instituições acadêmicas foram fundamentais para manter e reproduzir
processos de inferiorização, por meio do esforço de teóricos e disciplinas científicas
em fundamentar a legitimidade da colonização, domesticação e eugenia, "a academia
não é um espaço neutro, nem tampouco simplesmente um espaço de conhecimento e
sabedoria, de ciência e erudição, é também um espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a" (KILOMBA,
2019, p. 51). Filosofia, medicina legal, psiquiatria, criminologia, craniologia, psicologia,
antropologia; disciplinas cuja legitimidade, principalmente na modernidade, é fornecida
pela epistemologia quando esta diz o que é o conhecimento, como é produzido e
quem pode produzi-lo. Todas estas disciplinas estudaram a racialidade em desfavor da
racialidade negra, apenas.
À Epistemologia Formal não interessava fazer um movimento crítico que
questionasse a cosmopercepção que a estrutura enquanto campo teórico. Neste
âmbito, o sujeito é pensado como universal e os julgamentos de atribuição ou não
atribuição de conhecimento são formulados de acordo com critérios de verdade
estabelecidos por uma tradição epistemológica, que não apenas ignorou a
possibilidade de diferentes cosmopercepções, mas contribuiu para o seu apagamento
sistemático.
Na literatura epistemológica, a narrativa se apresenta como se as relações de
conhecimento pudessem ocorrer de modo isolado, num mundo possível estritamente
lógico, e sem serem influenciadas por atividades humanas. Essa não localização de si,
advinda da pressuposição da ocupação de um lugar universal de representação de
humanidade, parecia integrar, ainda que de modo irrefletido, a identidade de
pesquisadoras e pesquisadores. Esse traço é entendido no debate decolonial como
um dos traços de identidade da branquitude4.
4
A branquitude enquanto experiência pode ser compreendida de modo diverso. Entretanto,
para além da internalização da ideia de que não possui identidade, a identidade branca vem
sendo constituída nos critical whiteness studies_(estudos críticos da branquitude) desde a
década de 1990 nos Estados Unidos a partir da noção de privilégio. Essa identidade é
compreendida a partir da experiência de privilégios materiais e subjetivos, que contribuem para
a manutenção do racismo em suas diferentes apresentações. Frankenberg (1999) define a
179
Esse traço também se estenderia à identidade das pessoas que podem
conhecer, às quais as investigações acadêmicas se referem. Ao não se considerar as
particularidades históricas, sociais e psíquicas da pessoa que conhece, a
epistemologia passa a observar uma noção de pessoa desprovida de pessoalidade,
portanto, artificial. Descolonizar nossas práticas epistêmicas pressupõe reconhecer a
importância da identidade como meio de subjetivação, "pois reflete o fato de que
experiências em localizações são distintas e que a localização é importante para o
conhecimento" (RIBEIRO, 2017, p. 29).
Num âmbito mais geral, a influência das redes sociais na comunicação
humana criou condições para que grupos historicamente silenciados tivessem voz
para disputar narrativas epistemológicas. Associado a isto, o considerável aumento5
da entrada de grupos étnicos não brancos no ensino superior brasileiro desde 2012,
quando foram implantadas políticas de ações afirmativas, fizeram com que a disputa
epistemológica, travada desde sempre no âmbito dos movimentos sociais, chegasse
ao ambiente acadêmico. Neste momento, outra forma de deslegitimação toma corpo:
as pesquisas, as pesquisadoras e pesquisadores que se inscrevem na área da
decolonialidade, ainda que não se nomeiem deste modo, têm sua cientificidade
questionada, uma vez que seus estudos seriam identitários, o que feriria a pretensão
filosófica ocidental de universalidade.
180
Foi no seio destas distinções e movida pela sensação de que aquele 'S'6, não
me contemplava enquanto pessoa capaz de conhecimento, que o termo 'epistemicídio'
me permitiu nomear minha experiência acadêmica. Uma experiência profundamente
marcada pelo contato majoritário com pensadores brancos de ideologia eurocentrada
e de discussões que não tocavam minha vivência no mundo; uma experiência de
mulher negra, atravessada por diferentes singularidades que vive numa sociedade na
qual a colonialidade do saber coloca a minha humanidade sob disputa, de modo que a
reivindicação pelo lugar epistemológico se confunde com a própria reivindicação pela
humanidade.
2. Epistemicídio: um percurso.
No início da colonização europeia, a legitimação filosófica para a
inferiorização dos demais grupos étnicos repousava em crenças religiosas. De acordo
com tais crenças, os povos “inferiores” poderiam ser vendidos, escravizados,
sexualmente violentados, pois não se tratavam de seres humanos, uma vez que não
possuíam alma7. Com o movimento renascentista, precursor da Modernidade, e a
retomada de ideais clássicos de valorização da racionalidade que culminaria mais
tarde no Iluminismo, um novo critério de inferiorização se fez necessário. A ausência
de racionalidade passaria a ser marca distintiva que legitimaria a dominação colonial.
6
Na literatura epistemológica é comum que a pessoa envolvida nas relações de conhecimento
seja discriminada em fórmulas lógicas pela letra 'S' que representa 'Sujeito'.
7
A servidão dos povos "pagãos" foi não só autorizada como justificada pela Igreja Católica. Em
1452, o Papa Nicolau V dirigiu a Dom Afonso V, então rei de Portugal, uma bula papal
nomeada A Dum Diversas, instrumento com força de lei, que garantia a Dom Afonso V direitos
sobre o território e o povo africano. Em nome da Igreja, o papa afirma "[…] nós lhe
concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre
permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros
incrédulos e inimigos de Cristo, onde quer que estejam, como também seus reinos, ducados,
condados, principados e outras propriedades […] e reduzir suas pessoas à perpétua
escravidão, e apropriar e converter em seu uso e proveito e de seus sucessores, os reis de
Portugal, em perpétuo, os supramencionados reinos, ducados, condados, principados e outras
propriedades, possessões e bens semelhantes" (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL,
2013, s/n).
181
A escravização e o genocídio estariam justificados pois incidiriam sobre povos não
racionais e, portanto, não humanos8.
É em meio ao projeto moderno, que é colonial por natureza9, que serão
construídas as conhecidas narrativas que opõem o selvagem ao civilizado, colocando
os europeus como membros de uma sociedade civilizada, enquanto os povos
"descobertos" estariam ainda no estado de natureza, ou fora da história10. A
racionalidade, enquanto fundamento indispensável ao conhecimento, foi usada como
argumento para colocar milhões de indivíduos na condição de subalternidade e
servidão, não apenas no campo político e econômico, mas em todos os campos,
inclusive no epistemológico e subjetivo. Por este motivo, compreender a supremacia
da razão sobre a experiência como nada mais que uma narrativa é um passo
imprescindível para a descolonização das estruturas epistêmicas e a consequente
abertura para outras epistemologias possíveis.
8
É sempre importante lembrar que a legitimação da colonização, seja por vias religiosas ou
pseudocientíficas, é sempre teórica. O fundamento prático da colonização é econômico. Na
prática, não havia interesse dos colonizadores em salvar almas ou levar a civilização aos
"povos selvagens". O motivo era, além do espólio, a aquisição de mão de obra escravizada
para o acúmulo de riquezas. Por estas razões, o racismo é um dos fatores que dão estrutura ao
Estado capitalista, de modo que uma posição antirracista seria idealmente anticapitalista. Para
uma discussão mais aprofundada, ver Almeida(2019).
9
Para Achile Mbembe o complexo escravista atlântico, o sistema de plantation no Caribe,
Brasil e Estados Unidos fazem parte dos fatos que amarram a constituição do capitalismo
moderno, no qual a lógica das raças é adicionada à lógica do lucro; o negro, transformado em
mercadoria, se torna "matéria energética" para o acúmulo de riquezas. Mbembe sustenta que a
expansão do liberalismo, como doutrina e como política, foi financiada pelo comércio de
escravos. Afirma ainda que o capitalismo com base racial é o mesmo que uma grande
necrópole (MBEMBE, 2018).
10
Nas palavras de Hegel, "[n]este ponto nós deixamos a África, para não mencioná-la de novo.
Pois, não é parte da história do mundo; não tem movimento ou desenvolvimento para exibir. O
movimento histórico em si – em sua região Nordeste – pertence ao mundo asiático e europeu.
Cartago apresentou uma transitória e importante fase de civilização, porém, como colônia
fenícia, ela pertence à Ásia. O Egito será considerado em referência à passagem da mente
humana de sua fase Oriental para a fase Ocidental, porém este não pertence ao Espírito
africano. O que nós propriamente entendemos por África é o Não-Histórico, Não Desenvolvido
Espírito, ainda envolvido na condição de mera natureza, e que foi apresentado aqui somente
como soleira da História mundial" (HEGEL, 1999, p. 88).
182
Como consequência do critério de racionalidade para a atribuição de
humanidade, outros modos de conhecer, que não a razão pura, foram colocados em
um lugar de irracionalidade. Pior ainda, o conceito de racionalidade foi levado a um
patamar tão absurdo, que povos muito desenvolvidos na antiguidade, como os
Keméticos11, no norte da África e os Sumérios, no Oriente Médio, foram considerados
inferiores, mesmo com vasto desenvolvimento científico sobre temas que os europeus
só "descobriram" na Idade Média. Seguindo o modelo ocidental, que opõe razão e
prática, e coloca esta última no lugar da inferioridade, Reale e Antiseri (1990) afirmam
que estes povos antigos possuíam saberes exclusivamente práticos, que apenas os
gregos foram capazes de teorizar, dando, assim, um salto qualitativo na história do
pensamento. Segundo os autores, todas as características gregas podiam ser
observadas em outros povos, menos a racionalidade filosófica. Antes dos gregos, os
demais povos seriam pré-filosóficos ou pré-científicos12.
A cultura de povos mais antigos que os gregos é deliberadamente ignorada
pelos historiadores da filosofia. Segundo a "história oficial", a filosofia teria nascido na
Grécia com Tales de Mileto no século VII antes da Era Comum e toda atividade
filosófica que se performou desde então seria uma derivação da filosofia grega. A
Grécia seria assim o berço civilizatório do qual emergiu o Ocidente, que, por meio da
colonização, teria proporcionado aos demais povos o contato com a filosofia e a
possibilidade de filosofar. Nas sociedades colonizadas, tal possibilidade se efetivaria à
medida que o sujeito colonizado se submetesse à “consciência universal”, baseada no
11
'Kemético' refere-se a 'Kemet', termo usado pelos antigos egípcios para nomear seu território.
Não só está documentalmente demonstrada a anterioridade da filosofia kemética, mas também
a profunda influência do Egito Antigo em diferentes aspectos da sociedade grega,
principalmente os intelectuais. Filosofias fundamentais na estrutura do pensamento grego,
como a pitagórica e a platônica, apresentam diferentes noções já desenvolvidas no Kemet.
Pitágoras teria vivido e estudado por 20 anos no Egito Antigo, enquanto Platão teria vivido e
estudado por 24 anos no Egito Antigo (BENEDICTO, 2014).
12
"Efetivamente, enquanto todos os outros componentes da civilização grega encontram
correspondência junto aos demais povos do Oriente que alcançaram considerável nível de
civilização antes dos gregos (crenças e cultos religiosos, manifestações artísticas de natureza
diversa, conhecimentos e habilidades técnicas de vários tipos, instituições políticas,
organizações militares etc.), no que se refere à filosofia, encontramo-nos, ao invés, diante de
um fenômeno tão novo que não só não encontra correspondência precisa junto a esses povos,
mas tampouco nada tem de estreita e especificamente análogo" (REALE e ANTISERI, 1990, p.
03).
183
reconhecimento de si como ser racional em constante conflito com a prisão física do
corpo, ou seja, quando se encontrasse civilizado13.
De maneira genérica, quando falamos da história da filosofia, podemos dizer
que estamos falando de como, ao longo da história, nossos ancestrais pensaram
sobre o próprio pensamento, sobre a vida, a morte, a experiência, a cultura, etc. A
história da filosofia deveria ser, entre outras coisas, um resgate historiográfico do
pensamento ancestral. Em países colonizados, a narrativa histórica predominante no
senso comum, mas também nos espaços especializados de produção e reprodução
do conhecimento, toma corpo pela perspectiva do colonizador, o resultado é o
estabelecimento de uma história parcial, violentamente instituída.
No Brasil, pode-se perceber este fenômeno nos conteúdos formais que
compõem os currículos do ensino básico e superior. Numa sociedade na qual mais de
cinquenta por cento da população se declara não branca, a história do pensamento
humano se reduz à história do pensamento europeu. A história dos povos africanos e
ameríndios, quando não é completamente desconhecida, é folclorizada. A narrativa
sobre eles começa no momento de sua interação com os povos europeus, reforçando
a tese de que não teriam história14.
13
A filosofia grega, especialmente o pensamento platônico, foi incorporada como fundamento
filosófico da teologia católica. O pensamento platônico, essencialmente dual e hierarquizante,
cria e legitima dicotomias que interessam à Igreja. A principal delas é a bipartição do ser
humano em corpo e razão, seguida da inferiorização do corpo, uma vez que esta substância
seria a causa de todo o erro e, teologicamente falando, seria também a causa de todo pecado.
A difusão do pensamento cristão pelo mundo é resultado do esforço colonial e a consequência
da adoção de uma ideologia fundada sobre a dicotomia platônica será o menosprezo da
experiência, uma vez que esta deriva do corpo e a produção de critérios de inferiorização que
animalizam povos inteiros. A empreitada colonial difunde, por meio de todas as formas de
violência, esta ideologia, que passará a ser reconhecida como fundamento da supremacia do
Ocidente e justificativa para submissão de todo o resto. Na esfera da subjetividade, a moral
cristã tem sido observada na história da psicanálise como condição de possibilidade para o
sofrimento psíquico causado pela repressão. Na esfera política, a moral cristã é usada como
instrumento de dominação à medida que instrui para a obediência e submissão. Para a relação
entre religião e dominação ver Oliveira(1985). Para a abordagem psicanalítica da religião ver
Freud(1978).
14
"Toda idéia lançada na mente do negro é entendida e percebida com toda a força de sua
vontade; mas esta percepção envolve uma ampla destruição... é evidente que a necessidade
de autocontrole distingue o caráter dos negros. Essa condição não é capaz de nenhum
184
A história do pensamento ocidental se estabelece como história única por
meio da violência colonial. Num viés epistemológico, a violência colonial se traduz
como racismo epistêmico que é a condição primordial para o epistemicídio quando ele
ocorre por causa do preconceito racial. Afirmo que os currículos, o conjunto dos
conteúdos, os temas, e as metodologias empregadas nas relações de conhecimento
no ambiente acadêmico e escolar são epistemicidas, e qualquer abordagem que se
oponha a isto deve ser considerada um esforço contra hegemônico, e, portanto,
resistência.
O modo racializado pelo qual as relações epistêmicas se desenvolvem no
ambiente acadêmico é consequência lógica do modo racializado pelo qual as relações
humanas se desenvolvem na sociedade. Como parte de uma sociedade colonizada, o
modo como pensamos e conhecemos, a forma como estabelecemos socialmente
relações epistêmicas, fundamenta-se numa cosmopercepção e numa semântica do
sujeito que foram impostas por meio da violência colonial. De acordo com Fanon
(2008),
desenvolvimento ou cultura, e tal como nós os vemos hoje em dia, assim sempre foram. A
única conexão essencial entre os negros e os europeus é a escravidão... podemos concluir que
a escravidão foi a ocasião do aumento do sentimento humano entre os negros” (HEGEL apud
GILROY, 2001, p. 101).
185
somente a quem a pensa; "[...] a língua, por mais poética que possa ser, tem também
uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois
cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade" (KILOMBA, 2019, p.14).
Devemos atentar para a colonialidade como ferramenta instauradora da
estrutura epistêmica compartilhada em uma comunidade colonizada, como é o caso
do Brasil. Uma análise que não considere esta especificidade falha em reconhecer o
fio que costura a teia das relações epistêmicas em territórios colonizados, a
colonialidade do saber.
À pretensão de universalidade, adiciona-se ainda a negação da racialidade
como domínio produtor de um campo epistemológico. No Brasil, estas negações
ganham força com a difusão da ideia de que todos e todas são iguais e, portanto, não
há racismo no país. Tal tese, que ficou conhecida como mito da democracia racial,
carrega uma narrativa duplamente nociva, porque diz que o problema do racismo não
existe e porque neutraliza as tentativas de discuti-lo e resolvê-lo, uma vez que não
existe.
O mito da democracia racial seria então mais uma forma de epistemicídio,
uma vez que impede a compreensão da produção de um campo epistemológico
marcado pela exclusão de sujeitos não-brancos. Carl Degler (1976), tentando explicar
as diferenças entre as relações raciais brasileiras e estadunidenses reconhece que há
pouca discussão sobre as relações raciais no Brasil, mas que o elemento central desta
diferença é a presença do "mulato", que representaria um tipo de integração racial
impensável nos Estados Unidos, onde os relacionamentos inter-raciais eram proibidos
por lei.
Na contramão de Degler, Oliveira (1974) afirma que o mulato não é uma
categoria analítica que auxilia no entendimento das relações raciais como amistosas e
resultantes da miscigenação romantizada, mas um obstáculo epistemológico, na
medida em que personifica e reforça o mito da democracia racial e da convivência
harmoniosa entre as raças, causando um obstáculo epistemológico deliberadamente
criado para comprometer a compreensão da realidade.
Tanto pela universalização violenta de padrões particulares quanto pelo
silenciamento das discussões sobre suas consequências, há um comprometimento
dos recursos interpretativos que possibilitam a significação da vida. A colonização
intelectual se manifesta como injustiça hermenêutica15 quando cria uma lacuna
15
Miranda Fricker (2007) chama de injustiças hermenêuticas a incapacidade de compreender,
significar e expressar sua própria experiência de mundo, resultado da falta de protagonismo na
186
interpretativa, no inconsciente coletivo da população não branca. Para Bhargava
(2013), o grupo colonizado que sofre injustiças epistêmicas tem a capacidade de
sustentar, recuperar ou desenvolver sua estrutura epistêmica — sistema de
significados historicamente gerados que o grupo usa como referência para avaliar sua
experiência de mundo — danificada. Em linhas gerais, tais incapacidades em relação
à estrutura epistêmica são o resultado da impossibilidade de acesso à produção
ancestral, o que culmina na falha em pensar a partir de si mesmo e no
comprometimento da autoconfiança.
Uma cosmopercepção fornece as categorias de entendimento necessárias
para a interpretação do mundo e das experiências que vivenciamos nele, fornece a
estrutura epistêmica sobre a qual construímos significados. O sequestro da estrutura
epistêmica e sua substituição pelo modelo do colonizador, no qual o colonizado não
satisfaz os critérios de humanidade, causam sofrimento psíquico e comprometem a
visão que a pessoa tem de si mesma, fazendo com que o epistemicídio ocorra não só
como uma violência de dentro para fora, mas também como uma expressão da
subjetividade da pessoa subjugada quando pensa a si mesma.
Neste “sequestro da razão”, primeiro nega-se que o outro é racional, depois
obriga-o a assimilar a cultura racional de seu colonizador, na qual ele é sempre
inferior. A relação aqui é entre donos e pertences, uma relação de poder. É nesta
perspectiva que Bohman (2012) alega que injustiças epistêmicas são fruto de relações
de dominação, são formas de dominação, são ferramentas da dominação, mas não
são a dominação em si. Injustiças epistêmicas são injustiças sociais institucionais e,
por isso, só uma reforma nas instituições poderia superá-las.
Há, de todo modo, uma diferença substancial na interpretação da realidade
quando elaborada por pessoas brancas, privilegiadas pela estrutura epistêmica
hegemônica, e pessoas negras, por exemplo, que possuiriam um déficit hermenêutico,
para usar as palavras de Miranda Fricker (2007), em sua capacidade de elaborar sua
experiência no mundo. Um déficit que se relaciona com a falta de uma estrutura
epistêmica que construa sua humanidade e o coloque na posição de uma pessoa que
conhece, e com as manifestações do racismo que, entrelaçando-se nas relações que
a pessoa desempenha, comprometem sua subjetividade, possibilitando processos de
autoinferiorização intelectual. O epistemicídio opera, portanto, objetiva e
subjetivamente.
criação de estruturas epistêmicas que dão forma à vida cognitiva, o que resulta numa lacuna de
recursos interpretativos.
187
3. O pseudo-problema da objetividade
O modelo sob o qual se organizam os espaços de conhecimento ainda é
positivista. Isso quer dizer que apenas o conhecimento dito científico é considerado
verdadeiro. De forma geral, o positivismo pode ser compreendido com uma proposta
epistemológica, ou seja, um modelo que pretende fornecer critérios para o julgamento
de atribuições ou não de conhecimento, delimitando sob quais condições uma crença
estaria ou não justificada. Nesta perspectiva, um dos critérios para o conhecimento
verdadeiro seria a objetividade, a ideia segundo a qual a pessoa que investiga deve
estar em uma posição de neutralidade em relação ao objeto investigado.
A objetividade pressupõe, além da separação entre pessoa que investiga e
objeto investigado, que o estudo seja conduzido de maneira estritamente racional, sem
influência das emoções e sentimentos da pessoa que investiga. A razão deve ser
separada da emoção, da paixão, da sensibilidade, da experiência, de forma que
restando apenas a razão pura, não há nada. Em resumo, a mente humana funcionaria
como um processador de dados, sem gênero, sem raça, sem classe, sem afetação de
natureza emotiva e sem localização espaço-temporal. Seguindo tais preceitos, os
resultados da pesquisa teriam validade universal. Com base em tais preceitos, Collins
afirma que
188
Do ponto de vista prático, no que se refere ao critério da objetividade, o positivismo é
uma falácia. Desde a escolha do objeto de pesquisa até a interpretação dos dados
coletados, sejam quantitativos ou qualitativos, há interferência humana subjetiva.
Mesmo nas ciências exatas, a pessoa que investiga pode interferir na pesquisa pelo
simples fato de estar no mesmo ambiente que o objeto observado, criando colapsos
na observação de uma medição, por exemplo16. Uma amostra de como o
conhecimento científico se pretende universal e objetivo, mas se revela particular em
seus procedimentos e resultados, são os estudos da área médica e o modo como
aspectos biológicos e psíquicos das mulheres foram sistematicamente negligenciados
por homens que faziam ciência como homens17.
A falácia da objetividade se agrava quando se trata das ciências humanas. O
esforço positivista vai inclusive no sentido de trazer para as humanidades modelos das
ciências exatas, que permitiriam mais acurácia e neutralidade na investigação
científica. Mas pessoas não são números e não se relacionam no mundo como
determinados elementos se comportam em ambientes controlados como laboratórios.
Não se pode despir a pessoa que investiga de sua humanidade e fazê-la incorporar
uma natureza puramente analítica à medida que investiga.
Do ponto de vista teórico, a falácia da objetividade tem sido usada como
critério de deslegitimação para pesquisas de pessoas que não se enquadram no
modelo hegemônico, que é masculino e branco. Assim, mulheres que pesquisam
sobre mulheres são frequentemente acusadas de não terem rigor científico, de se
deixarem levar pela emoção, e de não conseguirem se afastar o suficiente do objeto
16
Desde o início de seu desenvolvimento, na década de 1920, a física quântica tem pensado o
papel do observador e as influências de sua interação com o objeto observado. A física
quântica supera a física clássica, pois, em vez de produzir determinismos, busca oferecer uma
descrição probabilística. Sobre esse respeito ver PESSOA(1992).
17
As consequências da desigualdade de gênero na ciência médica mostram que a pretensa
universalidade e objetividade da ciência ocidental não se sustenta. A presença
majoritariamente masculina influenciou de tal modo a ciência médica e farmacêutica que
pesquisadores passaram muito tempo considerando que as doenças atacavam igualmente
homens e mulheres, ao passo que realizavam pesquisas clínicas apenas em homens. Assim,
houve um descuido sistemático com as especificidades da saúde da mulher, o que ainda causa
sofrimento e morte. Para uma exposição mais aprofundada ver SCHIEBINGER(1989 e 1993).
189
de pesquisa para poder observar com clareza, uma vez que elas mesmas se
confundiriam com este objeto.
Algo similar ocorre quando a pessoa que investiga é negra e o objeto de
investigação se relaciona com a questão racial. Tanto no que diz respeito ao gênero
quanto no que diz respeito à raça, enquanto a pessoa que investiga for um homem
branco, a objetividade da pesquisa não será questionada, pois o homem branco não
se compreende como tendo gênero ou raça. O homem branco desfrutaria de uma
natureza sem particularidades, o que, na prática, não passa de uma concepção. Mas,
para além desta cegueira identitária, haveria ainda um acordo de ignorância, sob o
qual a branquitude concordaria em empregar determinadas regras para a
interpretação da realidade. Tais regras seriam trazidas à tona para a avaliação de
qualquer pessoa ou tema que se pretenda desqualificar. Neste sentido, Charles Mills
(1997) aponta que
Tendo negado o seu lugar como pessoa que conhece, resta a posição de objeto
conhecido num "espaço de disputa de saber e poder para brancos e entre brancos, o
que em contrapartida descarta o negro da condição de produtor de saber e detentor de
poder". (CARNEIRO, 2005, p 59). O negro não tem autoridade racional para falar por
si mesmo. Quando traz à tona sua experiência de mundo dentro do ambiente
acadêmico, alguém sem raça alegará que sua interpretação é tendenciosa, parcial,
subjetiva, não-científica.
O outro lado de não figurar como a pessoa que investiga é estar sempre no
lugar de objeto investigado. No lugar da diferença em forma de anormalidade exótica
que precisa ser avaliada de perto. Pessoas negras, sobretudo no ambiente
acadêmico, enquanto tentam se constituir como investigadoras, se deparam com a
190
fixação do negro no lugar de objeto de estudo e a suspeição sobre o seu lugar como
produtor de conhecimento. Ele pode ser conhecido, mas não conhecedor. Como acusa
Frantz Fanon, "cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas,
minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro
objeto em meio a outros objetos" (FANON, 2008, p. 103).
Minha proposta é que denunciemos a falácia da objetividade ao mesmo
tempo em que reivindicamos parâmetros alternativos para a validação do
conhecimento. Parâmetros que incluam pessoas iguais a mim e não exijam da pessoa
que investiga que ela ignore a si mesma na tentativa de se constituir como uma
pessoa imparcial e impessoal. Assim como Kilomba, "demando uma epistemologia
que inclua o pessoal e o subjetivo como parte de discurso acadêmico, pois todas/os
nós falamos de um tempo e lugar específicos, de uma história e realidade específicas
— não há discursos neutros" (KILOMBA, 2019, p. 58). A despeito de uma
universalidade objetiva, proponho a universalização da subjetividade, como lugar de
onde qualquer pessoa parte, independente da direção que siga.
191
Outra parte do movimento intelectual transgressor é a superação dos
paradigmas epistemológicos coloniais. É preciso criar sistemas próprios de validação
do conhecimento, uma vez que o sistema hegemônico falha em incluir não brancos,
especialmente mulheres negras, em seu bojo de agência epistêmica. O caminho
escolhido para a construção de tal sistema é pragmático, se trata de observar como o
conhecimento tem sido legitimado nos contextos que resistiram ao epistemicídio e a
negação de humanidade.
Nestes contextos não há separação entre razão e experiência. A experiência
não é só importante, é fundamental, imprescindível, necessária. Seu valor é sempre
positivo. Experiência leva a uma análise subjetiva e isto não é um problema para a
epistemologia feminista negra. Não há pretensão de objetividade neste modelo. Cada
pessoa fala de um lugar, de um espaço geopolítico e é, neste sentido, sempre
particular. Portanto, universalidade também não é uma pretensão. Cada pessoa ocupa
um espaço geopolítico como corpo e, enquanto "no mundo do branco, o conhecimento
do corpo é uma atividade de negação" (FANON, 2008, p. 104), no mundo do negro, o
corpo é categoria analítica.
Por fim, na epistemologia feminista negra é possível haver conhecimento
entre sujeitos (que ao longo desta reflexão tento chamar de pessoas); é possível
construir uma relação epistêmica na qual o outro não é objeto, uma relação dialógica,
participativa.
Se a filosofia ocidental forneceu critérios de objetividade e universalidade
para a avaliação do conhecimento, e estes critérios acabaram por contribuir não só
com a exclusão sistemática, mas com a eliminação de outras formas de
conhecimento, nada mais justo que, no caminho de recuperar sua própria
humanidade, mulheres negras olhem para si como agentes de processos
epistemológicos e identifiquem em suas experiências os critérios que as legitima como
tal. Como salienta hooks,
192
Nesta perspectiva, não se separa as relações de poder, desempenhadas no cotidiano,
da atividade intelectual. Ocupar espaços legitimados de produção intelectual é,
sobretudo para mulheres negras, ocupar uma posição de enfrentamento político na
defesa do protagonismo epistêmico, pois "quando o trabalho intelectual surge de uma
preocupação com a mudança social e política radical, quando esse trabalho é dirigido
para as necessidades das pessoas, nos põe numa solidariedade e comunidade
maiores. Enaltece fundamentalmente a vida" (HOOKS, 1995, p. 478). Além destes
aspectos, a vida intelectual e a produção intelectual devem fazer parte da vida na
comunidade, num processo de rejeição do isolamento que marca muitas vezes o
trabalho intelectual como naturalmente solitário, algo nem sempre possível para
mulheres negras.
Mulheres negras não são lidas normalmente como ocupantes de espaços de
intelectualidade e produção de conhecimento, tendo sido concebidas pelas
representações do imaginário coletivo como cativas do corpo e desprovidas de
racionalidade. Pelo menos três imagens que figuram no inconsciente coletivo fixam a
mulher negra como corpo, a imagem da negra sexualizada, a imagem da mãe preta,
ou mãe de leite e a imagem da empregada doméstica. Em todas estas
representações, a negra é um corpo que está a serviço, não sendo vista como
representativa de uma vocação intelectual.
O critério ocidental, masculino e branco, funciona para legitimar agentes
epistêmicos em condições epistemológicas diferentes daquelas condições nas quais
mulheres negras se encontram, por isto, "a experiência de mulheres afrodescendentes
na esfera transnacional, têm sido distorcidas ou excluídas daquilo que é definido como
conhecimento'' (COLLINS, 2018, p. 139). O que chamo de condições epistemológicas
são as condições que afetam a produção de conhecimento, o que pode variar entre
condições psíquicas e materiais que se influenciam concomitantemente, e são o
resultado do tipo de experiência social que a pessoa vive e dos seus recursos
epistêmicos para interpretar esta experiência.
Mulheres, em especial mulheres negras, não desfrutam da solidão necessária
para a concentração que a atividade intelectual muitas vezes demanda. Temem que a
escolha pela solidão, que o trabalho intelectual parece exigir, as afastem de sua
família e comunidade. Tem um volume considerável de trabalho doméstico, associado
à ideia de que o trabalho intelectual é um luxo, e não é visto como "trabalho
abnegado". Para hooks, é a educação sexista que ensina mulheres que os afazeres
domésticos e o cuidado dos filhos devem ser realizados antes do trabalho intelectual,
193
e que tais atividades tornam difícil "fazer do trabalho intelectual uma prioridade
essencial mesmo quando suas circunstâncias sociais ofereciam de fato recompensas
por essa atividade" (HOOKS, 1995, p. 471).
É para esse contexto, no qual o conhecimento se produz entre os afazeres e
os cuidados, um contexto de vida comunitária e compartilhada, que devemos olhar
quando buscamos legitimação para o conhecimento produzido por mulheres
intelectuais negras, muitas das quais, fora da academia, preservam tecnologias
ancestrais de sobrevivência a partir das quais foi possível salvaguardar modos de vida
alternativos àquele criado pelas relações coloniais, que se atualizam e se estabelecem
nas relações capitalistas.
Filosofias, cosmopercepções, estruturas epistêmicas, recursos interpretativos,
modos de viver alternativos podem ser observados nas comunidades de terreiro, nos
quilombos e aldeias, nas favelas18. hooks e Collins apontam ainda a igreja como uma
comunidade negra representativa nos Estados Unidos. É preciso avaliar o
conhecimento produzido por grupos subalternizados a partir do modo pelo qual esses
grupos validam o conhecimento em seu interior. Há conhecimento nas margens, é
preciso justificá-lo a partir daí.
Mulheres negras devem se afirmar enquanto intelectuais, inclusive
publicamente, tomando para si a responsabilidade de "transgredir fronteiras
discursivas". Diferente de uma simples acadêmica, a intelectual lida com as ideias
relacionando-as com o sistema político do qual participa. Nesta perspectiva, a
intelectualidade negra, em termos de um pensamento negro, resiste e se consolida
primeiramente fora dos centros acadêmicos, é o que observa Collins ao constatar que
194
critério de significação da realidade, (ii) ao diálogo como ferramenta de avaliação do
conhecimento, (iii) à ética do cuidado que "sugere que a expressividade pessoal, as
emoções e a empatia são centrais no processo de validação do conhecimento"
(COLLINS, 2018, p. 156); (iv) e à ética da responsabilidade social, que se relaciona a
um posicionamento sociopolítico, exigindo do agente epistêmico que se responsabilize
publicamente pelas posições intelectuais que assume. Além disso, conforme salienta
Collins, "tais princípios sedimentam uma sabedoria das mulheres negras de caráter
geral e consolidam, adicionalmente, o que eu chamo aqui de epistemologia feminista
negra" (COLLINS, 2018, p. 147).
A sabedoria seria a primeira dimensão da epistemologia feminista negra. Do
ponto de vista da mulher negra, a sabedoria é garantia de sobrevivência dentro de um
sistema de opressões que se entrecruzam nas violências de raça, gênero e classe.
"Enquanto membros de um grupo subordinado, as mulheres negras não podem se dar
ao luxo de serem tolas, uma vez que sua objetificação como "outras" lhes nega a
proteção conferida pela pele branca, pela masculinidade e pela riqueza". Ter
conhecimento, mas não ter sabedoria é "adequado para quem detém o poder"
(COLLINS, 2018, p. 149).
Isso a que podemos chamar de sabedoria de vida é sempre levado em
consideração quando mulheres afrodescendentes avaliam o conhecimento em suas
comunidades. Alguém será aceito como agente epistêmico confiável se, além de
possuir conhecimento, possuir também sabedoria, do ponto de vista da experiência
vivida e significada. Enquanto grupo, as mulheres tenderiam a recorrer mais que os
homens às experiências vividas no processo de elaboração do conhecimento. Ter
vivido a experiência da qual se fala não é concebido como desvantagem por ausência
de objetividade, mas confere crédito epistêmico, o que faz daquela fonte, uma fonte
mais confiável.
Collins aponta ainda uma diferença entre conhecimento e sabedoria ao alegar
que a menção a estas duas formas de conhecer encontra-se em diferentes
manifestações nas produções de uma gama de mulheres negras quando elas falam
sobre o tipo de conhecimento que pessoas brancas têm, que seria um tipo formal; e o
tipo de conhecimento que pessoas negras possuem, a sabedoria. É por isso que "[o]s
negros costumam ridicularizar os 'tolos educados'... Eles podem ter o conhecimento
dos livros, mas não têm a sagacidade da vida nem a sabedoria" (SMITHERMAN apud
COLLINS, 2018, p. 148).
195
Na epistemologia feminista negra, o diálogo também é critério de avaliação do
conhecimento. Nesta estrutura há um relacionamento epistêmico entre pelo menos
duas pessoas, e não entre uma pessoa e um objeto de investigação, o conhecimento
é assim produzido de modo participativo, levando em consideração quem fala e quem
ouve, ninguém é observador distante ou objeto observado. A tradição oral é marca das
comunidades africanas e afrodiaspóricas, e foi por meio desta tecnologia dialógica que
algumas formas ancestrais de conceber o conhecimento e os critérios de sua
validação sobreviveram ao epistemicídio.
A terceira dimensão da epistemologia feminista negra é a ética do cuidado
que "sugere que a expressividade pessoal, as emoções e a empatia são centrais no
processo de validação do conhecimento" (COLLINS, 2018, p. 156), podendo ser
observadas e combinadas de diferentes formas nas comunidades negras. A
singularidade é pensada em termos do humanismo africano, segundo o qual cada
pessoa é manifestação singular de um espírito comum que está em toda forma de
vida. Nesta perspectiva, a diferença individual não é um fator que enfraquece a
estrutura epistemológica por conta da adição de vieses, mas, pelo contrário, "a
personalidade de cada membro enriquece a compreensão do todo" (COLLINS, 2018,
p. 158).
As emoções também têm lugar nos processos de validação do
conhecimento. A emoção do falante indica que ele crê no que diz e isto é sinal de sua
confiabilidade. A filosofia africana de origem kemética reconhece igualmente o lugar
das emoções nos processos epistemológicos, sendo tratada como uma cardiografia do
pensamento19, na qual o coração é uma metáfora para as emoções. Isso nos mostra
que é possível construir novas significações baseadas em modelos que contestam a
separação entre emoções e intelecto. O desenvolvimento da capacidade de empatia é
o terceiro componente da ética do cuidado. Quando a relação epistemológica é
empática, a troca epistêmica se torna mais acessível, além de possibilitar uma
identificação entre as pessoas, no caso de compartilharem alguma experiência
traumática que poderia ser um empecilho da interação.
19
Na filosofia kemética o coração é concebido como a morada do pensamento e das emoções,
onde as palavras se originam e devem ser lapidadas. Nesta filosofia, há tanto a perspectiva do
conhecimento que se constrói pelas emoções quanto a perspectiva do conhecimento de si por
meio do conhecimento das emoções. Para uma abordagem da filosofia kemética como uma
cardiografia, ver NOGUEIRA (2018).
196
A quarta dimensão que caracteriza a epistemologia feminista negra é a ética
da responsabilidade social. Certa vez, numa mesa de debates em que se discutia
epistemologia da educação entre epistemólogos e filósofos da educação, ouvi um
doutor em epistemologia afirmar que a natureza ética de alguém pouco importava para
a avaliação de seu mérito epistêmico. Para conceder mérito epistêmico a um
engenheiro é necessário que sua construção fique de pé, pouco importando se ele
espanca a esposa.
Considerando a base epistemológica formal do doutor, é fácil compreender a
lógica sobre a qual repousa seu argumento, mas, mesmo assim, aquilo me provocou
imediato estranhamento. Na discussão que se seguiu, os filósofos da educação
tentaram contra-argumentar, mas o diálogo não era possível, pois, nem sequer da
mesma coisa estavam falando, uma vez que partiam de diferentes concepções
epistemológicas. O epistemólogo pensava na racionalidade epistêmica sem natureza
ética, os filósofos da educação, em pessoas.
Seguindo uma ética da responsabilidade social, a "apreciação de um
constructo de conhecimento é conduzida simultaneamente a uma avaliação dos
valores, da ética e do caráter do indivíduo" (COLLINS, 2018, p. 159). Não é possível
separar a vida pessoal de alguém da sua avaliação enquanto agente epistêmico.
Quando a pessoa avaliada apresenta conformidade entre suas ideias e a ética
amplamente aceita pelo grupo, suas crenças tendem a receber mais crédito
epistêmico.
5. Conclusão
O esforço desta reflexão foi compreender alguns dos mecanismos práticos
que operam o epistemicídio, contribuindo para o assentamento de uma estrutura
epistemológica excludente, ao mesmo tempo que traz a proposta da epistemologia
feminista negra como alternativa para a validação do conhecimento daqueles que
foram e ainda são subalternizados e intelectualmente descreditados. Os critérios de
validação da epistemologia feminista negra não são exclusivos para a validação do
conhecimento de mulheres negras, mas têm o potencial de abarcar em seu bojo
qualquer conhecimento geopoliticamente localizável.
É no intuito de marcar o valor epistemológico da particularidade que
Bernadino-Costa et tal. (2018) propõem o que chamam de universalismo concreto. O
197
universalismo concreto diz respeito à reunião das particularidades, constituindo um
paradigma epistemológico pluriversal que admite a coexistência das inúmeras
epistemologias possíveis, reconhecendo em pessoas com cosmopercepções
diferentes, a mesma capacidade epistemológica de dar sentido aos diferentes
aspectos da vida.
O universalismo concreto se opõe ao universalismo abstrato que "é um tipo
de particularismo que se estabelece como hegemônico e se apresenta como
desincorporado, desinteressado e sem pertencimento a qualquer localização
geopolítica" (BERNADINO-COSTA et al., 2018, p. 13). Nesta perspectiva, o que estou
empreendendo seria um giro epistêmico decolonial (MALDONADO-TORRES, 2018),
por meio do qual a pessoa que tomou consciência de sua subjetividade colonizada
surge como agente epistemológico, que produz, pensa e cria; instaurando assim, uma
transmodernidade20.
Acredito que conhecimento legítimo também se constrói a partir das
experiências vividas, sendo esta a sua apresentação mais valiosa. Este é um marco
fundamental do pensamento feminista negro que pode, sem ressalvas, ser
considerado uma epistemologia, na medida em que propõe critérios para o
conhecimento e sua validação. Neste modelo, não há conflito entre subjetividade e
ciência, a ausência da experiência vivida nos processos epistemológicos gera
desconfiança e, se a pessoa satisfaz ou não as exigências éticas de sua comunidade,
é algo levado em consideração na sua avaliação enquanto fonte confiável de
conhecimento.
Pela possibilidade de produzir conhecimento que liberte das opressões
coloniais que se manifestam nas relações epistemológicas, principalmente nas
acadêmicas, epistemólogas feministas negras têm resgatado o papel da subjetividade,
das emoções e da comunidade como critérios de validação do conhecimento. Alguns
exemplos de tal configuração epistemológica alternativa podem ser observados nas
comunidades negras que preservaram modos de relacionar-se que, ou remontam a
uma origem africana, ou foram desenvolvidas como tecnologia de sobrevivência ante o
terror da escravização.
20
Enrique Dussel caracteriza a transmodernidade como uma ruptura com a lógica moderna que
é por natureza colonial. A partir da ruptura, o passo seguinte seria a afirmação epistemológica
e ontológica daqueles que "a colonialidade, apagou, negou, inviabilizou''. A transmodernidade,
assim como a ideia de giro decolonial, tem fundamento pluriversal, cuja diversidade epistêmica
implícita não implica em relativismo epistêmico (DUSSEL, 2016).
198
Entendo que parte do meu papel como acadêmica é abrir espaço para que a
intelectualidade negra, sobretudo a feminina, tenha voz dentro das instituições que
contribuíram para seu silenciamento. É possível olhar para trás e resgatar modelos e
olhares que se conectem mais adequadamente à realidade epistemológica que é
resultado da realidade sociopolítica atravessada por relações capitalistas/coloniais.
Entretanto, esse "olhar para trás" se faz com objetivo de construir um futuro do qual
participaremos, pois, como lembra Fanon, "esse futuro não é cósmico, é do meu
século, do meu país, da minha existência. De modo algum pretendo preparar o mundo
que me sucederá. Pertenço irredutivelmente à minha época" (FANON, 2008, p. 29).
Referências
ALMEIDA, S. L. de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
BENEDICTO, R. M. "As origens africanas da filosofia grega: Mito ou realidade?" II
Congresso Nacional de Formação de Professores XII Congresso Estadual Paulista
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201
Sobre autoras e editores
Renata Arruda é professora do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Goiás.
Tem experiência nas áreas de Lógica e Filosofia da Ciência, e formação acadêmica
nos temas de intersecção entre Filosofia da Ciência, problema da causalidade,
problema da indução, e Filosofia da Medicina e da Epidemiologia. Seus interesses de
investigação centram-se atualmente na ontologia e na epistemologia dos processos de
saúde e doença, especialmente através de uma perspectiva multicausal. Também se
interessa pela relação entre dados populacionais e o paciente individual, e o papel
daqueles dados na identificação e caracterização de princípios causais fundamentais.
202
de Campinas - UNICAMP, mestrado e doutorado em Filosofia pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP,
pós-doutorados pela USP, Unifesp e Unicamp, com experiência internacional em
pesquisas doutoral e pós-doutoral em filosofia e ciência cognitiva. Faz parte da equipe
Cognição & Linguagem (C&L), do Grupo de Escrita para Mulheres na Filosofia
(GEMF), da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas (REDE), da Sociedade Brasileira de
Filosofia Analítica (SBFA gestão 2019-2020) e do Grupo Cognição, Linguagem,
Enativismo e Afetividade (CLEA).
Luisa Luze Brum Genuncio é bacharela e Mestra em Filosofia pela UFRJ, com foco
em Filosofia da Linguagem e Ficção. Atualmente cursa o doutorado em Filosofia na
UFRJ, no Programa de Pós Graduação Lógica e Metafísica. Sua pesquisa atual é
sobre Parcimônia Ontológica e seu uso como critério em seleção de Teorias.
Interessa-se por Filosofia Analítica, especialmente a área de Metafísica e Ontologia.
Raquel Albieri Krempel é pós-doutoranda em filosofia na Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP), com bolsa da Fapesp. Possui graduação, licenciatura,
mestrado e doutorado em filosofia na Universidade de São Paulo. Realizou estágios
de pesquisa na Universidade de Maryland, Rutgers, Universidade de Nova York e
Universidade de Barcelona. Faz parte do GT de Filosofia da Mente da Anpof, do
Grupo de Escrita de Mulheres na Filosofia (GEMF) e da Rede Brasileira de Mulheres
Filósofas. Seus temas atuais de pesquisa dizem respeito a diversos aspectos das
relações entre pensamento, linguagem e percepção. Esses temas perpassam as
áreas de filosofia das ciências cognitivas, filosofia da mente e epistemologia.
Rodrigo Reis Lastra Cid é Professor Adjunto de Filosofia na Universidade
Federal do Amapá. Pesquisador na área da Metafísica. Editor da Série
Investigação Filosófica (NEPFIL/Editora UFPel). Coordenador do Canal
Investigação Filosófica. Líder do Grupo de Pesquisa Investigação Filosófica
(DGP/CNPq), membro do GT de Metafísica Analítica da ANPOF, da Society
for the Metaphysics of Science e do Laboratório de Estudos Aplicados em
Infoprodutos (UFES/CNPq). Ex-Editor-Chefe do periódico Investigação
Filosófica (2010-2020). Residência Pós-Doutoral em Filosofia realizada na
Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor e Mestre em Lógica e
Metafísica (Filosofia) pelo Programa de Pós-Graduação em Lógica e
203
Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com período sanduíche
na Université Catholique de Louvain. Bacharel em Filosofia pela Universidade
Federal de Ouro Preto. Ex-Professor de Filosofia na Universidade Federal do
Rio de Janeiro, no Instituto Federal de Minas Gerais e na Faculdade Dom
Luciano Mendes.
204
resposta ao problema da cegueira semântica. Atualmente desenvolve estudos nas
áreas da Epistemologia Social, Filosofia Antiga Kemética e Estudos Decoloniais.
205