Jerome Klapka Jerome - A Nova Utopia
Jerome Klapka Jerome - A Nova Utopia
Jerome Klapka Jerome - A Nova Utopia
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Quando eu acordei, encontrei a mim mesmo deitado embaixo de uma redoma de vidro, em
um nível elevado, eu uma sala entristecedora. Havia um rótulo sobre a minha cabeça, eu
me virei para lê-lo. Dizia o seguinte:
ESTE HOMEM FOI ENCONTRADO ADORMECIDO EM UMA CASA EM
LONDRES, APÓS A GRANDE REVOLUÇÃO SOCIAL DE 1899. DO RELATO
FORNECIDO PELA PROPRIETÁRIA DA CASA, PARECE QUE ELE JÁ TINHA
ESTADO, QUANDO DESCOBERTO, DORMINDO HÁ MAIS DE DEZ ANOS
(ELA TINHA ESQUECIDO DE CHAMÁ-LO). DECIDIU-SE ENTÃO, PARA FINS
CIENTÍFICOS, NÃO DESPERTÁ-LO, MAS APENAS OBSERVAR QUANTO
TEMPO ELE DORMIRIA, E ELE FOI ASSIM TRAZIDO E DEPOSITADO NO
‘MUSEU DAS CURIOSIDADES’, EM 11 DE FEVEREIRO DE 1990.
Aos visitantes pede-se para não jogar água através dos furos para respiração.
Um velho cavalheiro com um olhar inteligente, que estava organizando alguns lagartos
empalhados em uma redoma ao lado aproximou-se e retirou a redoma que estava sobre
mim.
“Qual é o problema”, perguntou ele, “alguma coisa está perturbando você?”
“Não”, eu disse: “Eu sempre acordo assim, quando eu sinto que eu dormi o suficiente.
Que século é esse?”
“Este,” ele disse, “é o século vinte e nove. Você esteve dormindo por apenas mil anos.”
“Ah! Bem, por isso eu me sinto melhor,” eu respondi, descendo da mesa. “Não há nada
como colocar o sono em dia.”
“Acho que você está indo fazer a coisa usual.”, Disse o velho cavalheiro para mim,
quando eu continuei a colocar minhas roupas, que estavam postas ao meu lado na redoma.
“Você vai querer que eu o acompanhe ao redor da cidade, e explique todas as mudanças
para você, enquanto você faz as perguntas e comentários bobos?”
“Sim”, eu respondi, “Eu suponho que é o que eu deveria fazer.”
“Acho que sim”, ele murmurou. “Vamos lá, vamos acabar com isso”, e ele liderou o
caminho para fora da sala.
Quando descemos as escadas, eu disse:
“Bem, está tudo certo, agora?”
“O que está certo?” ele replicou.
“Ora, o mundo”, eu respondi. “Alguns amigos meus estavam planejando, pouco antes de
eu ir para a cama, de fazê-lo em pedaços e consertá-lo novamente da forma adequada. Eles
fizeram tudo certo até agora? Está todo mundo vivendo em igualdade, e o pecado e
tristeza e esse tipo de coisa foi posta de lado?”
“Ah, sim,” respondeu o meu guia; “Você vai encontrar tudo bem. Nós estivemos
trabalhando duro nas coisas por aqui enquanto você esteve dormindo. Nós fizemos este
mundo quase perfeito agora, eu diria. Ninguém esta autorizado a fazer nada errado ou
tolo; e quanto à igualdade, os girinos ainda não estão conosco.”
(Ele falou de forma bastante vulgar, eu pensei, mas eu não gostaria de de reprová-lo.)
Saímos para a cidade. Estava tudo limpo e muito tranquilo. As ruas, que eram designadas
por números, corriam de uma para outra em ângulos retos, e todas tinham exatamente a
mesma aparência. Não havia cavalos ou carruagens, todo o tráfego era feito por carros
elétricos. Todas as pessoas que encontramos usavam uma silenciosa expressão séria, e
pareciam tanto uma com as outras que davam a ideia de que todos eram membros da
mesma família. Todos estavam vestidos, assim como também estava o meu guia, em um
par de calças cinza, e um túnica cinza, abotoada apertada no pescoço e presa em volta do
cintura por meio de um cinto. Cada homem estava barbeado perfeitamente, e cada homem
tinha cabelo preto.
Eu disse:
“São todos gêmeos?”
“Gêmeos! Céus, não!” respondeu o meu guia. “De onde você tirou essa ideia?”
“Ora, todos eles são muito parecidos,” Eu respondi; “e todos tem cabelo pretos!”
“Ah, isso e a cor regulamentar para o cabelo,” explicou meu companheiro: “nós todos
temos o cabelo preto. Se o cabelo de um homem não é preto naturalmente, ele tem que
tingi-lo de preto.”
“Por quê?” Eu perguntei.
“Por quê?” retrucou o velho cavalheiro, um pouco irritado. “Ora, eu pensei que você tinha
entendido que todos os homens eram iguais agora. O que seria da igualdade se fosse
permitido a um homem ou mulher a arrogância de possuir cabelos dourados, enquanto
outros tivessem que aturar cabelos negros? Homens não apenas precisam viver em
igualdade nesses dias felizes que vivemos, mas devem parecer iguais, tanto quanto
puderem. Fazendo com que todos homens tenham a barba raspada, e que todos homens e
mulheres tenham o cabelo preto cortado no mesmo comprimento, nós evitamos, em certa
medida, os erros da natureza.”
Eu disse:
“E por que preto?”
Ele disse que não sabia, mas que era a cor pela qual tinham decidido.
“Por quem?” Eu perguntei.
“Pela MAIORIA,” ele respondeu, erguendo seu chapéu e baixando seus olhos, como se
estivesse fazendo uma prece.
Nós caminhamos mais, e passamos por mais homens. Eu disse:
“Existem mulheres nesta cidade?”
“Mulheres!” exclamou meu guia. “É claro que existem. Nós passamos por centenas
delas!”
“Eu pensei que reconheceria uma mulher quando visse uma,” eu observei; “mas eu não
lembro de ter percebido qualquer uma.”
“Ora, lá se vão duas agora,” ele disse, chamando minha atenção para uma dupla de
pessoas próximas à nós, ambas vestidas com calças e túnicas cinza regulamentar.
“Como é que você sabe que elas são mulheres?” Eu perguntei.
“Ora, você vê os números de metal que todos usam em sua gola?”
“Sim: Eu estava pensando que era um número que policiais usam, e imaginando onde
todas as outras pessoas estariam!”
“Bem, os números pares são mulheres; e os números ímpares são homens.”
“Como e simples,” eu comentei. “Eu suponho que depois de um pouco de prática você
poderia distinguir um sexo de outro quase num piscar de olhos?”
“Oh sim,” ele respondeu, “se você quiser.”
Nós caminhamos em silêncio por algum tempo. E então eu disse:
“Por que todo mundo tem um número?”
“Para ser distinguido por ele,” respondeu meu companheiro.
“As pessoas não tem nomes, então?”
“Não.”
“Por quê?”
“Oh! Havia tanta desigualdade nos nomes. Algumas pessoas eram chamadas de
Montmorency, e eles olhavam para baixo para os Smiths; e os Smiths não gostavam de se
misturar com os Joneses: assim, para economizar mais incômodos, foi decidido abolir
completamente os nomes, e dar para todos um número.”
“Mas os Montmorencys e os Smythes fizeram objeções.”
“Sim: mas os Smiths e os Joneses eram a MAIORIA.”
“E por que não os Uns e Dois olharam para baixo para os Três e Quatros, e assim por
diante?”
“No começo, sim. Mas com a abolição da riqueza, os números perderam o seu valor,
exceto para fins industriais e para acrósticos duplos, e agora o nº 100 não se considera de
forma alguma superior ao nº 1.000.000.”
Eu não tinha me lavado quando levantei, e não havendo instalações para fazê-lo no
Museu, eu estava começando a me sentir um pouco quente e sujo. Eu disse:
“Posso me lavar em algum lugar?”
Ele disse:
“Não, nós não estamos autorizados a lavar-nos. Você precisa esperar até às quatro e meia,
e então você será lavado para o chá.”
“Ser lavado!” Eu chorei. “Por quem?”
“O Estado.”
Ele disse que eles descobriram que não podiam manter sua igualdade quando as pessoas
tinham permissão para lavarem a si mesmas. Algumas pessoas lavavam-se três ou quatro
vezes ao dia, enquanto outras nunca tocavam água e sabão do fim do ano ate o outro, e
como consequência lá se iam duas classes distintas, os Limpos e os Sujos. Todos os velhos
preconceitos de classe começaram a ser revividos. Os Limpos desprezavam os sujos, e os
Sujos odiavam os Limpos. Então para acabar com a dissensão, o Estado decidiu lavar à
todos ele mesmo, e cada cidadão agora era lavado duas vezes ao dia pelo funcionários do
governo; e a lavagem privada foi proibida.
Notei que não passávamos por casas à medida que avançávamos, apenas por blocos depois
de blocos de grandes edifícios, semelhantes a quartéis, todos do mesmo tamanho e forma.
Às vezes, em uma esquina, nos deparamos com um prédio menor, rotulado como
“Museu”, “Hospital”, “Sala de Debates”, “Banho”, “Ginásio”, “Academia de Ciências”,
“Exposição da Indústria”, “Escola da Fala”, etc, etc, mas nunca por uma casa.
Eu disse:
“Não vive ninguém nessa cidade?”
Ele disse:
“Você faz perguntas tolas; garanto que você faz. Onde você pensa que eles vivem?”
Eu disse:
“Isso é justamente o que eu estava tentando imaginar. Eu não vejo nenhuma casa em parte
alguma!”
Ele disse:
“Nós não precisamos de casas — não de casas como você esta imaginando. Nós somos
socialistas agora; nós vivemos juntos em fraternidade e igualdade. Vivemos nestes blocos
que você vê. Cada bloco acomoda mil cidadãos. Ele contém mil leitos — cem em cada
quarto — e salas de banho e vestuários em proporção, um refeitório e cozinha. Às sete
horas de cada manhã, um sino é tocado, e todos se levantam e arrumam a cama. Às sete e
meia todos vão para as salas de banho e são lavados e barbeados, e tem seu cabelo feito.
Às oito horas o café da manhã é servido no refeitório. É composto por uma caneca de
mingau de aveia e metade de um copo de leite morno para cada cidadão adulto. Nós
somos todos estritamente vegetarianos agora. A voto pelo vegetarianismo aumentou
enormemente durante o último século, e sua organização tem sido muito perfeita, sendo
escolhido em todas eleições nos últimos cinquenta anos. À uma hora outro sino e tocado, e
as pessoas voltam para o almoço, que consiste em feijão e frutas cozidas, com rocambole
duas vezes por semana e pudim de ameixa aos sábados. Às cinco da tarde é servido o chá,
e às dez as luzes são desligadas e todos vão para a cama. Nós somos todos iguais, e todos
vivemos igualmente — escriturários e limpadores, funileiros e boticários — todos juntos
em fraternidade e liberdade. Os homens vivem em blocos deste lado da cidade, e as
mulheres na outra extremidade da cidade.”
“Onde as pessoas casadas ficam?” Eu perguntei.
“Oh, não há casais,” ele respondeu: “nós abolimos o casamento duzentos anos atrás. Veja,
a vida de casado não funciona bem com nosso sistema. A vida doméstica, nós concluímos,
era completamente antissocialista em suas tendências. Os homens pensavam mais em suas
esposas e famílias do que no Estado. Eles desejavam trabalhar para o benefício de seu
pequeno círculo de entes queridos, em vez do que seria melhor para a comunidade. Eles se
importavam mais com o futuro de seus filhos do que com o destino da humanidade. Os
laços de amor e sangue uniam os homens rapidamente em pequenos grupos no lugar do
grande todo. Antes de considerar o avanço da raça humana, os homens consideravam o
avanço de seus amigos e parentes. Antes de lutar pela maior felicidade do maior número,
os homens se esforçavam pela felicidade dos poucos que estavam próximos e eram
queridos para eles. Em segredo, homens e mulheres armazenavam riqueza gerada pelo
trabalho, para assim, secretamente, dar algum presente para seus amados. O amor mexia
com a ambição nos corações dos homens. Para ganhar os sorrisos das mulheres que
amavam, para deixar um nome para que seus filhos pudessem ter orgulho de ter, os
homens buscavam elevar-se acima do nível geral, buscavam fazer algum ato que fizesse o
mundo olhar para eles e honrá-los acima de seus semelhantes, para deixar pegadas
profundas sobre a estrada poeirenta da época. Os princípios fundamentais do Socialismo
estavam sendo faustosamente e diariamente desprezados. Cada casa era um centro
revolucionário para a propagação do individualismo e da personalidade. Do calor de cada
coração doméstico cresceram víboras, companheirismo e independência, para picar o
Estado e envenenar as mentes dos homens.
“As doutrinas da igualdade foram abertamente contestadas. Homens, quando amavam
uma mulher, consideravam-na superior a todas outras mulheres, e dificilmente se
esforçavam para disfarçar sua opinião. Esposas amorosas acreditavam que seus maridos
eram mais sábios e corajosos que todos os outros homens. Mães riam da ideia de seus
filhos não serem superiores às outras crianças. Crianças assimilavam a hedionda heresia
de que seu pai e sua mãe eram os melhores pais do mundo.
“De qualquer ponto que você olhava para isso, a Família fincava o pé como nossa inimiga.
Um homem tinha uma esposa charmosa e duas crianças dóceis e de bom temperamento;
seu vizinho era casado com uma megera, e era pai de onze barulhentos, mal dispostos
pirralhos — onde estava a igualdade?
“Novamente, onde a Família existisse, ali pairava, sempre argumentando, os anjos da
Alegria e da Tristeza; e em um mundo onde a alegria e a tristeza eram conhecidas, a
Igualdade não podia viver. Um homem e uma mulher, durante à noite, chorando ao lado de
um pequeno berço. Na casa ao lado, um jovem casal, de mãos dadas estava rindo e
fazendo travessas caretas tolas para um bebê. O que a pobre Igualdade fazia?
“Tais coisas não devem ser permitidas. O amor, nós vimos, era nosso inimigo sempre. Ele
fazia a igualdade impossível. Ele trazia alegria e tristeza, paz e sofrimento em sua esteira.
Ele perturbava as crenças dos homens, e ameaçava o Destino da Humanidade, então nós
abolimos ele e tudo o que ele produzia.
“Agora não há casamentos, e, portanto, não existem problemas domésticos; Sem cortejos,
portanto sem dores do coração, sem amor, portanto sem sofrimento, sem beijos e sem
lágrimas.
“Nós todos vivemos juntos em igualdade livres da alegria e da dor.”
Eu disse:
“Isso deve ser muito tranquilo, mas, diga-me — e eu faço a pergunta apenas a partir de um
ponto de vista científico — como vocês mantém o fornecimento de homens e mulheres?”
Ele disse:
“Oh, isso e bastante simples. Como é que você, no seu dia a dia, mantém o fornecimento
de cavalos e vacas? Na primavera, muitas crianças, conforme o Estado exige, são
planejadas e cuidadosamente produzidas, sobre supervisão médica. Quando elas nascem,
são levadas para longe de suas mães (a quem, caso contrário, podem crescer a amá-las), e
trazidas até os berçários e escolas públicas ate os quatorze anos. Em seguida, são
examinadas pelos inspetores designados pelo Estado, que decidem a vocação deles, e
seguindo essa vocação eles tornam-se aprendizes. Aos vinte eles recebem a posição de
cidadãos, e direito de votar. Nenhuma diferença é feita entre homens e mulheres. Ambos
os sexos desfrutam de iguais privilégios.”
Eu disse:
“Quais são os privilégios?”
Ele disse:
“Ora, tudo o que eu venho lhe dizendo.”
Nós vagamos por alguns quilômetros, mas por nada mais passamos além de ruas após ruas
com esses enormes blocos. Eu disse:
“Não existem lojas ou armazéns nessa cidade?”
“Não,” ele respondeu. “O que nós poderíamos querer com lojas e armazéns? O Estado nos
alimenta, veste, abriga, cuida, lava, corta nossa comida e nos enterra. O que poderíamos
querer com lojas?”
Eu comecei a me sentir cansado com nossa caminhada. Eu disse:
“Nós podemos ira a algum lugar para tomar um drinque?”
Ele disse: “Um ‘drinque’! O que é um ‘drinque’? Nós recebemos uma caneca de chocolate
com o nosso almoço. É isso que você quer dizer?”
Eu não me senti com vontade de explicar o assunto para ele, e ele evidentemente não me
entenderia, então eu disse:
“Sim; Eu foi o que eu quis dizer.”
Nós passamos por um homem de muito boa aparência um pouco mais adiante, e notei que
ele tinha apenas um braço. Eu tinha notado dois ou três homens grandes com apenas um
braço no decorrer da manhã, e isso me pareceu curioso. Eu comentei isso com meu guia.
Ele disse:
“Sim; quando um homem está muito acima do tamanho e força médios, cortamos uma de
suas pernas ou braços, de modo a tornar as coisas mais iguais; nós o nivelamos um pouco,
como você pode ver. A natureza, como você pode perceber, deixa um pouco a desejar, mas
nós fazemos o possível para endireitar as coisas.”
Eu disse:
“Eu suponho que vocês não podem aboli-la?”
“Bem, não completamente,” ele respondeu. “Nós bem que gostaríamos. Mas,” ele
acrescentou depois, com orgulho perdoável, “nós fazemos um bom trabalho.”
Eu disse:
“Que tal um homem excepcionalmente inteligente. O que vocês fazem com ele?”
“Bem, nós não estamos muito preocupados com isso agora,” ele respondeu. “Nós não
cruzamos com nada perigoso no que diz respeito a capacidade intelectual já ha um bom
tempo. Quando isso acontece, nós realizamos uma operação cirúrgica na cabeça, que
suaviza o cérebro para o nível mediano.
“Às vezes eu pensei,” ponderou o velho cavalheiro, “que seria uma pena não podermos
subir o nível algumas vezes, no lugar de sempre nivelar para baixo, mas, é claro, isso é
impossível.”
Eu disse:
“Você pensa que é certo vocês cortarem essas pessoas, e nivelá-las por baixo, desta
forma?”
Ele disse:
“É claro que é certo.”
“Você parece bem certo sobre esse assunto,” Eu retorqui. “Por isso o ‘é claro’ certo?”
“Porque isso é feito pela MAIORIA.”
“Como é que isso faz com que seja a coisa certa?” Eu perguntei.
“A MAIORIA não pode fazer errado,” ele respondeu.
“Oh! É isso que essas pessoas que estão decepadas pensam também?”
“Eles!” ele respondeu, evidentemente surpreso pela pergunta. “Oh, eles são a minoria,
você sabe.”
“Sim; mas mesmo a minoria tem o direito aos seus braços, pernas e cabeça, não é?”
“Uma minoria NÃO tem direitos,” ele respondeu.
Eu disse:
“Parece bom pertencer a Maioria, se você pensa em viver aqui, não e?”
Ele disse:
“Sim, a maioria do nosso povo pensa assim. Eles parecem achar isso mais conveniente.”
Eu estava achando a cidade um tanto desinteressante, e perguntei se nós não poderíamos ir
para o campo para uma mudança.
Meu guia disse:
“Oh, sim, certamente;” mas não acho que deveríamos nos importar muito com ele.
“Oh! Mas costumava ser tão lindo no campo,“ eu insisti, “antes de eu ir para a cama.
Havia grandes árvores verdes e gramíneas, prados acariciados pelos ventos, pequenas
casas com varandas enfeitadas, e —”
“Oh, nós mudamos tudo isso,” interrompeu o velho cavalheiro; “agora é tudo um grande
canteiro, dividido por estradas e canais cortados em ângulos retos ligando um aos outros.
Não existe beleza no campo agora. Nós abolimos a beleza; isso interferia com a nossa
igualdade. Não era justo que algumas pessoas pudessem viver em um cenário tão
adorável, e outros em pântanos estéreis. Então nós fizemos tudo praticamente igual em
todos os lugares agora, e nenhum lugar pode ser superior a outro agora.”
“Um homem pode emigrar para outro país?” Eu perguntei; “não importa que país —
qualquer outro país serviria.”
“Oh, sim, se ele desejar,” responde meu companheiro; “mas por que ele deveria? Todas as
terras são exatamente as mesmas. O mundo inteiro é o mesmo povo agora — uma língua,
uma lei, uma vida.”
“Não há variedade, nenhuma mudança em qualquer lugar,” eu perguntei. “O que você faz
por prazer, para se divertir? Existem teatros?”
“Não,” respondeu o meu guia. “Nós abolimos os teatros. O temperamento histriônico
parecia ser absolutamente incapaz de aceitar os princípios da igualdade. Cada ator se
considerava o melhor ator do mundo, e superior, na verdade, à maioria das outras pessoas,
não era o mesmo no seu tempo?”
“Exatamente o mesmo,” eu respondi, “mas nós não ligávamos para isso.”
“Ah! Nós ligamos,” ele respondeu, “e, por consequência, fechamos todos os teatros. Além
disso, a Sociedade Vigilante Faixa Branca disse que lugares de diversão eram perversos e
degradantes, e sendo bastante enérgicos e prolixos, eles ganharam logo A MAIORIA sobre
seus pontos de vista, e então todos os divertimentos são proibidos agora.”
Eu disse: “Vocês tem permissão para ler livros?”
“Bem,” ele respondeu, “não há muitos escritos. Como pode-se ver, devido a todos viverem
vidas tão perfeitas, e não havendo nada errado, ou sofrimento, ou alegria, ou esperança, ou
amor, ou dor no mundo, não há realmente nada para se escrever — exceto, é claro, o
Destino da Humanidade.”
“É verdade!” eu disse, “Eu vejo isso. Mas o que dizer dos antigos trabalhos, os clássicos?
Você tinha Shakespeare, e Scott, e Thackeray, e não uma ou duas coisas minhas que não
eram de todas ruins. O que vocês fizeram com esses?”
“Oh, nós queimamos todas aquelas obras antiga,” ele disse. “Elas eram cheias de antigas,
incorretas noções dos maus tempos, quando homens eram meros escravos e animais de
cargas.”
Ele disse que todas as pinturas antigas e esculturas também foram destruídas, parcialmente
pela mesma razão, e em parte porque foram consideradas impróprias pela Sociedade
Vigilante Faixa Branca, que tinha grande poder agora; enquanto toda nova arte e literatura
foram proibidas, pois tais coisas tendiam a minar os princípios da igualdade. Elas faziam
os homens pensarem, e os homens que pensam ficavam mais inteligentes que aqueles que
não desejavam pensar, e aqueles que não desejavam pensar naturalmente se opuseram a
isto, e sendo a MAIORIA, opuseram-se a este propósito.
Ele disse que, a partir dessas considerações, não eram permitidos esportes ou jogos.
Esportes e jogos causavam competição, e competição levava a inigualdade.
Eu disse:
“Quanto tempo é que seus cidadãos trabalham a cada dia?”
“Três horas,” ele respondeu; “depois disso, todo o restante do dia pertence à nós mesmos.”
“Ah! isso era exatamente onde eu estava chegando,” eu observei. “Agora o que vocês
fazem durante as outras vinte e uma horas?”
“Oh, nós descansamos.”
“O quê! Por inteiras vinte e uma horas?”
“Bem, descansamos, e pensamos e falamos.”
“Sobre o que vocês pensam e falam?”
“Oh! Oh, sobre como a vida deve ter sido miserável nos velhos tempos, e como nós somos
felizes agora, e — e — oh, no Destino da Humanidade!”
“Vocês nunca ficam cansados disso do Destino da Humanidade?”
“Não, não muito.”
“E o que você entende por isso? Qual é o Destino da Humanidade, em que você acredita?”
“Oh! — Por que — para continuar a ser como somos agora, ainda mais — todos mais
iguais, e mais coisas feitas por eletricidade, e todos terem direito a dois votos em vez de
um, e —”
“Obrigado. Isso já é suficiente. Existe alguma coisa em que você acredite? Você tem uma
religião?”
“Oh, sim.”
“E você adora a Deus?”
“Oh, sim.”
“Como você chama ele?”
“A MAIORIA.”
“Só mais uma pergunta — Você não se importa se eu perguntar-lhe todas essas coisas, por
sinal, não é?”
“Oh, não. Isso é parte das minhas três horas de trabalho para o Estado.”
“Oh, eu fico contente com isso. Eu não gostaria de sentir que estava invadindo o seu
tempo de descanso, mas o que eu queria perguntar era, não existem muitas pessoas aqui
que cometem suicídio?”
“Não; tais coisas nunca lhes ocorre.”
Eu olhei para os rostos dos homens e mulheres que estavam passando. Havia uma
paciente, quase patética, expressão em todos eles. Eu perguntei onde tinha visto aquela
expressão antes, ela parecia familiar para mim.
Subitamente eu me lembrei. Era só a silenciosa, imaginativamente turva expressão que eu
sempre percebi nas faces dos cavalos e bois que nós usávamos para produzir e
mantínhamos no velho mundo.
Estranho! Como ficam fracos e indistintos os rostos que estão à minha volta! E onde está o
meu guia? E por que eu estou sentado na calçada? E — Escute! Certamente é a voz da
Senhora Biggles, minha velha senhoria. Será que ela também esteve dormindo há mil
anos? Ela diz que é doze horas — apenas doze? E eu não estou para ser lavado até às
quatro e meia, e eu me sinto muito abafado e com calor, e minha cabeça está doendo.
Hulloa! Por que eu estou na cama! Teria sido tudo um sonho? E eu estou de volta ao
século XIX?
Através da janela aberta, ouço a pressa e rugido da batalha da vida. Homens estão lutando,
lutando, conquistando cada um sua própria vida com a espada da força e da vontade. Os
homens estão rindo, sofrendo, amando, fazendo coisas erradas, fazendo grandes obras —
caindo, lutando, ajudando uns aos outros — vivendo!
E eu tenho um bom trabalho com mais de três horas para fazer hoje, onde eu deveria estar
às sete horas, oh não! Eu gostaria de não ter fumado tantos charutos fortes ontem à noite!
FIM
Jerome Klapka Jerome nasceu em 1859 e faleceu em 1927. Obrigado a trabalhar aos 14
anos por causa da morte de seu pai, Jerome iniciou a carreira como empregado de estradas
de ferro. Um ano mais tarde, sua mãe também falece e o deixa sozinho em Londres. Desde
cedo ele se interessa por teatro e começa a atuar como figurante nos horários vagos,
viajando por toda a Inglaterra. Começa então a escrever e enviar várias colaborações para
os jornais. Algumas são aceitas, outras não. Começou a ficar conhecido após a publicação
de dois livros que tiveram aceitação razoável On the Stage and Off (no palco e fora dele) e
The Brief Career of a Would Be Actor (a breve carreira de um aspirante a ator). Com seu
terceiro livro - Idle Thoughts of an Idle Felow (pensamentos ociosos de um sujeito ocioso)
-, o autor alcança uma boa repercussão; torna-se colaborador assíduo da revista Home
Chimes e consegue a encenação de uma peça de sua autoria: Barbara.
Em 1887 passou a alugar barcos com dois amigos - que formam o trio da obra Três
homens e uma canoa, a qual obteve um fulgurante sucesso. As edições se sucederam e
logo alcançaram a marca de um milhão de exemplares só na Inglaterra e mais de um
milhão nos Estados Unidos, o que fez Jerome sair da obscuridade e se tornar um dos
autores mais publicados no mundo. Em 2006 a BBC refez a viagem e transformou-a em
uma série com o título de Three men in a boat.