Universidade Federal de Goiás Escola de Música E Artes Cênicas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

ESCOLA DE MÚSICA E ARTES CÊNICAS

NOEL CARVALHO

APRENDENDO COM O BUMBA-MEU-BOI:


CONTRIBUIÇÕES DO BUMBA-MEU-BOI PARA A
EDUCAÇÃO MUSICAL

GOIÂNIA
2013
NOEL CARVALHO

APRENDENDO COM O BUMBA-MEU-BOI:


CONTRIBUIÇÕES DO BUMBA-MEU-BOI PARA A
EDUCAÇÃO MUSICAL

Monografia apresentada ao Curso de


Licenciatura em Música, Habilitação em Ensino
do Instrumento Musical – Bateria, da Escola de
Música e Artes Cênicas da Universidade
Federal de Goiás, como requisito parcial para
aprovação do Trabalho de Conclusão de Curso.
Orientadora: Dra. Ana Guiomar Rêgo Souza.

GOIÂNIA
2013
Engana-se quem julga essas artes populares como formas simples: elas são,
isto sim, muito elaboradas, são artes da coordenação! São diferentes
instrumentos soando em vozes complementares, estabelecendo polirritmos, e
diferentes personagens que já delineiam passos de dança e mímicas
diferenciadas.(BUENO, 2001 p.99)
1

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..............................................................................................................2

1. O BUMBA-MEU-BOI................................................................................................7
1.1 A LENDA E A BRINCADEIRA..............................................................................8
1.2 MOMENTOS: O DESENROLAR DA BRINCADEIRA........................................10

2. SOTAQUES...............................................................................................................15

3. BUMBA-MEU-BOI SOTAQUE DA BAIXADA....................................................23


3.1. PERSONAGENS..................................................................................................... 24

4. PROCESSOS DE APRENDIZAGEM.....................................................................27

CONCLUSÃO ...............................................................................................................31

REFERÊNCIAS ...........................................................................................................33
2

INTRODUÇÃO

Atualmente, estamos passando por um momento onde há um crescente


reconhecimento do saber popular, aquele que não se encontra nos livros nem nas
universidades, mas que é passado de pai para filho. É, pois, pertinente observar a
cultura popular e verificar o que podemos aprender com ela, de maneira que nesta
pesquisa pretende-se encontrar um ponto de diálogo entre metodologias de educação
musical e a maneira que se aprende no contexto do Bumba-meu-boi.

O Bumba-meu-boi se constitui em uma dança dramática de


representação social que articula valores de etnia, cultura e classe. É
reinterpretado comunitariamente Brasil adentro, em variantes do
Maranhão, Piauí, Pará, Amazonas, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,
Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina,
dentre outros Estados, seja no ciclo joanino, seja integrado no ciclo
natalino do reisado. (BUENO, 2001, p.27)

Trata-se de manifestação que persevera no tempo, mas para que isso


aconteça são necessárias formas de transmissão desse conhecimento, as quais ocorrem a
partir de processos que diferem daqueles sistematizados em escolas regulares. Assim,
um grupo de Bumba-meu-boi não é obviamente uma escola, mas não se pode negar que
esses espaços são locais de aprendizagem coletiva e comunitária. No que diz respeito à
música, os participantes não aprendem teoria e história da música, nem a ler partituras,
mas sim o conhecimento necessário para cultivar a tradição do Bumba-meu-boi.
Já que esse conhecimento existe e é transmitido não podemos mais ignorá-
lo. Assim, essa pesquisa tem como objetivo investigar como se dão os processos de
aprendizagem no contexto do Bumba-meu-boi, com vistas a elucidar as motivações que
levam os brincantes a participar do Boi e a relação entre música e dança e aprendizado
no Bumba-meu-boi. Espera-se com isso identificar procedimentos didáticos
pedagógicos que possam contribuir para a Educação Musical.
Para que tais objetivos sejam alcançados deve-se perguntar: Como se dá o
processo de aprendizagem relacionado ao tocar, cantar e dançar no contexto do Bumba-
meu-Boi? Como podemos utilizar esse saber tradicional na nossa prática educacional?
O que motiva os aprendizes? Qual a relação entre a música e a dança no Bumba-meu-
Boi? Essas questões nortearão o nosso trabalho e para respondê-las contaremos com o
apoio dos “brincantes” de Bumba-meu-boi da Cidade de São Luís do Maranhão, no
Bairro de Fátima, no contexto da Festa de São João.
3

O Bumba-meu-boi foi escolhido como tema deste trabalho devido minha


experiência com essa manifestação popular. Apesar de não ter nascido no Maranhão,
desde criança tenho uma forte ligação familiar e pessoal com a cultura deste estado,
principalmente, com o Bumba-meu-boi. Meu avô, Feliciano “Pepê”, era um trabalhador
rural do município de Cururupu - MA, cidade remanescente de quilombos. Nos
momentos de lazer gostava de participar das manifestações populares como o “Tambor
de Crioula” e o “Tamborinho”, além do Bumba-meu-boi, onde foi Amo de um grupo.
Meu pai, José Antônio Pires de Carvalho, mais conhecido como Tião Carvalho, nasceu
no município de Cururupu – MA, e lá viveu até seus oito anos de idade quando foi
morar na capital maranhense. Cresceu em São Luís e cada vez mais se envolveu com
manifestações culturais como o “Tambor de Crioula”, “Cacuriá”, “Bloco de Ritmo”,
“Samba” e o Bumba-meu-boi, entre outros. Além dessas manifestações, que envolvem
principalmente música e dança, se envolveu também com o teatro, participando do
grupo Laborarte. Em 1979, viajando com o grupo Laborarte teve contato com o grupo
Teatro Vento Forte, dirigido pelo argentino Illo Khrugli. Mudou-se, então, para o Rio de
Janeiro com a finalidade de integrar esse grupo.
Em 1980, a sede do Teatro Vento Forte transferiu-se para São Paulo. Tião
Carvalho acompanhou o grupo se transferindo também para a capital paulista. Em São
Paulo um grupo de pessoas, integrantes e não integrantes do teatro Vento Forte, sabendo
da experiência e conhecimento de Tião a respeito das manifestações artísticas populares,
o procurou para que ele ministrasse aulas. Assim, em 1986 surgiu o Grupo Cupuaçu,
que existe até hoje sob a direção de Tião Carvalho, grupo este que tem como objetivo
pesquisar as brincadeiras populares e fazer apresentações como síntese dessas
pesquisas.
Entre as manifestações populares trabalhadas no Grupo Cupuaçu estão o
Tambor de Crioula, a Ciranda, o Baralho, o Pela-porco, o Cacuriá, o Caroço e a
Quadrilha, mas sua atração mais conhecida e requisitada é o Bumba-meu-boi. Em São
Paulo, o grupo organiza três festas do Bumba-meu-boi por ano: Nascimento, Batizado e
Morte. Essas festas acontecem no Morro do Querosene, no bairro do Butantã,
comunidade onde vivem muitos artistas (músicos, pintores, poetas, dançarinos e atores)
e estudantes e professores universitários, devido à sua proximidade com a Universidade
de São Paulo. Tião Carvalho e outros integrantes do grupo cupuaçu, maranhenses,
paulistas e de outras localidades, moram também nessa comunidade.
4

Eu entro nessa história continuando a linha genealógica. Sou filho do


músico Tião Carvalho com a dançarina e educadora Daraína Pregnolatto. Muito cedo
meus pais se separaram. Meu pai permaneceu em São Paulo e eu fui morar em São Luís
- MA com minha mãe. Morei em São Luís parte da minha infância, período
relativamente curto na vida de uma pessoa, porém muito importante para mim, pois lá
conheci uma grande paixão da minha vida: o Bumba-meu-boi. Lá tive a oportunidade
de vivenciar a brincadeira dos diversos grupos de Boi de diferentes sotaques, tendo
contato também com alguns mestres amigos de minha mãe, como Seu Leonardo - Amo
do Bumba-meu-boi da Liberdade, Seu Humberto - Amo do Bumba-meu-boi de
Maracanã, e Seu Apolônio - Amo do Bumba-meu-boi da Floresta.
Aos cinco anos de idade mudei para Pirenópolis – GO. Na adolescência
(com 13 anos) fui morar em São Paulo – SP com meu pai. Com o passar do tempo e
com meu amadurecimento, fui redescobrindo a paixão pelo Bumba-meu-boi e então
entrei (ou voltei) para o grupo Cupuaçu, participando de todos os ensaios,
apresentações, viagens e festas. Nunca abandonei o Bumba-meu-boi. Mesmo durante o
período em que estive afastado do Cupuaçu sempre tocava nas festas em São Paulo e até
tive a oportunidade de viajar para o Maranhão com o grupo. Com 18 anos de idade me
mudei mais uma vez, de São Paulo para Goiânia, com o objetivo de fazer o curso de
Música – Licenciatura na Universidade Federal de Goiás.
Estudando em Goiânia, passava os fins de semana com a família em
Pirenópolis, onde iniciei um grupo de estudos sobre ritmos populares brasileiros no
ponto de cultura “Quintal da Aldeia”. O grupo acabou por se tornar um grupo de
Bumba-meu-boi - o “Boi do Rosário” -, que realiza o ciclo anual de festas (nascimento,
batizado e morte) e hoje está em seu quarto ano de existência. O Boi do Rosário tem
características de “Bumba-bois” maranhenses, como o ritmo (sotaque 1 da Baixada) e
algumas toadas e danças. Tem, por outro lado, características próprias como o figurino e
o próprio Boi que tem a cabeça do mascarado 2, numa tentativa de reinventar a
brincadeira adequando-a ao novo ambiente e contexto social. Assim, pela proximidade
com o Bumba-meu-boi acima relatada essa manifestação foi escolhida como tema desse
trabalho.
1 “Sotaque é o termo usado no Maranhão para designar o estilo de bumba-boi conforme a origem local, e
abrange a lírica das toadas com sua maneira de cantar, a instrumentação musical com sua maneira de
tocar e a indumentária com sua maneira de dançar e atuar”. (BUENO, 200, p.32)

2 O mascarado é um personagem das cavalhadas, uma festa tradicional de Pirenópolis que ocorre após a
festa do Divino Espírito Santo. As máscaras podem ser de pano (conhecida por Catolé), de borracha,
industrializada ou de papel em forma de Boi, Onça ou Homem.
5

Segundo Bueno (2001, p.29), “em levantamento de campo pode-se constatar


que é no Maranhão que este rito lúdico - o ‘Boi’- envolve maior contingente e esforços
da população.” Apesar de vasto o número de grupos de Boi no Maranhão, para melhor
delimitar essa pesquisa foram escolhidos como foco o Bumba-meu-boi da Baixada,
visitando o Bumba-meu-boi “Unidos de Santa Fé” e “Boi de Pindaré”, ambos do
sotaque da baixada. O primeiro fundado em 1981, é atualmente um dos mais
representativos em termos quantitativos e qualitativos, o que justifica sua escolha para o
desenvolvimento da pesquisa; o segundo fundado em 1960, é o mais antigo desse
sotaque na ilha de São Luís. Fundadores e catadores de Bumba-bois como “Unidos de
Santa Fé”, “Boi de Penalva”, “Boi Oriente”, “União da Baixada” e “Boi da Floresta”
passaram pelo “Boi de Pindaré”, devendo a este último parte de seu conhecimento em
relação ao bumba-boi, sendo, ademais, famoso por suas toadas conhecidas
nacionalmente. A toada ‘Urrou do Boi”, que é considerada o Hino do Bumba-meu-boi,
foi tirada3 por um de seus fundadores, Coxinho.
É verdade que existem alguns livros que descrevem e/ou analisam o
Bumba-meu-boi, porém ainda são raras as abordagens a respeito da aprendizagem
musical nesse contexto.

Quando se inicia uma pesquisa sobre os bumba-meu-bois brasileiros,


constata-se logo a carência de materiais publicados a respeito desse
tema específico [...] se fixou uma interpretação reducionista de seus
significados, [...] a pesquisa de campo pode atualizar esses dados,
porque essas manifestações cultivam uma vitalidade cultural bastante
consciente do próprio exercício lúdico. E são chamadas pelos próprios
integrantes de ‘brincadeiras’, pela liberdade de reinterpretação e
improvisação inerente à sua prática. (BUENO, 2001, p.45)

Como embasamento teórico para auxiliar a compreensão do Bumba-meu-


boi foram utilizados Santos Neto(2010), Bueno (2001), Pregnolatto(s/d), Oliveira(2003)
e a coletânea “Memória de Velhos – Depoimentos: Uma contribuição à memória oral da
cultura popular maranhense(1999)”, da qual utilizaremos os volumes III, IV e V. A tese
de Saura (2008) se aproxima do tema desta pesquisa por falar de Bumba-meu-boi e
Educação. Já o trabalho de Figueiredo (2011) aborda a Cantoria de Boi de Mamão, e,
em um trecho específico, descreve esse cantar e como esse conhecimento é passado
adiante.
_______________________
3
Tirar uma toada para os cantadores de Bumba-boi significa compor uma toada.
6

Além de estudos diretamente ligados ao “Boi”, também foram abordados


trabalhos que exploram práticas não formais de aprendizado em outras manifestações
tradicionais, tais como a congada, o pastoril e o candomblé.
A Pesquisa de Campo foi feita na forma observação participante de caráter
explicativo, acompanhando e observando o desenrolar da brincadeira nos ensaios,
apresentações e cerimônias, as quais foram filmadas. Também foram realizadas
entrevistas semiestruturadas com os integrantes de grupos de Bumba-meu-boi.
Como embasamento teórico utilizou-se conhecimentos sobre Educação
Musical, pois, segundo Fonterrada (2003, p.108), “é importante que educadores
musicais pioneiros sejam revisitados [...] para extrair subsídios para propostas
educacionais adequadas à escola e à cultura brasileira”.
7

1. O BUMBA-MEU-BOI

Não se sabe ao certo quando, como ou onde a brincadeira do Boi se iniciou,


ou como chegou ao Maranhão, mas pode-se apontar as culturas árabe/moura, indígena,
africana e europeia como constituintes desta brincadeira. Quando chegou ao Maranhão
o Bumba-meu-boi encontrou sua casa, com uma população que foi cúmplice e o adora
como religião.
O boi é uma figura de grande importância em nossa cultura, tanto a
sua forma animal como suas representações sempre foram motivo de
cantorias, celebrações, crenças, mitos, romances, danças, culinária,
medos e afetos. (FIGUEIREDO, 2011 p.12)

A figura do boi desde muito tempo tem um papel fundamental para distintas
sociedades e uma forte ligação com o homem em diversas culturas. O homem
historicamente respeita o bovino, pois através dele obtém o alimento (o leite, o queijo, a
manteiga, a carne) ou trabalha para conseguir alimentação lavrando a terra, moendo a
cana e transportando cargas pesadas. É uma questão de sobrevivência. O boi aparece
também na Bíblia, no momento em que o menino Jesus nasce é este animal que o abriga
e aquece. Na cultura hindu, a vaca é considerada um animal sagrado. Segundo Arthur
Ramos, há culturas africanas que cultuam o boi historicamente.

O totentismo do boi é largamente disseminado entre vários povos


bantus onde, em algumas tribos, toma um aspecto francamente
religioso. Os Ba-naneca tem uma cerimônia especial, por ocasião das
colheitas, quando prestam um verdadeiro culto a um boi a que
chamam Gerôa. Este boi é conduzido processionalmente esses dias, e
festejado com cânticos e certos instrumentos especiais a ele
consagrados. Cada chefe de família tem ainda um boi que o protege,
objecto de sua affeição. (RAMOS, 1988, p.259)

A condução processional, festejos com cânticos e instrumentos são


semelhanças que podemos identificar entre a referência acima e o Bumba-meu-boi.
Bueno constata também a presença do boi em outras regiões da África.
8

Essas duas referências são importantes por traduzirem uma


complementariedade: uma é de grupo sudanês, os Senufo, outra é de
falantes angolanos do Bantu; portanto não só de uma mas de ambas as
vertentes formadoras da afro-descendência brasileira. Daí se observa a
extensão da presença do boi na África. Num caso os próprios animais
são cultuados em famílias, e no outro, a máscara corporal que
representa o boi é que dança com os jovens recém-circuncidados. Em
ambas as representações, finalmente, o boi é associado à solidez
adulta e à força vital de permanência e sobrevivência. (BUENO, 2001,
p.63)

Bumba-meu-boi é o nome, de provável cunho pernambucano, que prevalece


permanentemente para a manifestação hoje. Mas no Maranhão se diz mais "Bumba-
boi", no Amazonas diz-se "Boi-bumbá", na Bahia 'Boi-de-reis", em Minas Gerais "Boi
de Manta" e em santa Catarina "Boi-de-mamão". (BUENO, 2001 p.28)

Podemos identificar também grupos de Bumba-meu-boi também em


Sobradinho – DF, o Boi de Seo Teodoro e em Pirenópolis – GO, o Boi do Rosário,
grupo este onde participo como Amo e fundador.

1.1. A LENDA E A BRICADEIRA

Descreverei a “brincadeira” através de minha própria ótica, embasado nos


anos de experiência que vivenciei entre “brincantes” e “boieiros”. A maior parte dos
brincantes de Boi, senão todos, são grandes devotos de São João e veem na brincadeira
do Boi uma maneira de demonstrar sua fé. São João Batista era primo de Jesus Cristo e,
segundo a Bíblia, foi ele quem o batizou nas margens do rio Jordão. São João
imortalizou-se na crença do povo através do elemento fogo, o fogo do Divino Espírito
Santo que desceu sobre Cristo em sua visão espiritualizada, por isso, são inúmeras as
fogueiras em homenagem a este santo tão festejado no mundo inteiro.
Diz a lenda que São João teria um boizinho encantado que brincava e
dançava em suas festas de aniversário, dia 24 de junho. Certa vez Pedro, grande amigo
de João, pediu o Boi emprestado para animar sua festa de aniversário no dia 29 de
junho. João tinha muito apego com esse boizinho e só emprestou porque Pedro, que era
como um irmão, havia insistido muito e lhe garantido que nada de mal ocorreria ao Boi.
Na festa de Pedro, um personagem de nome Marçal viu o Boi, gostou, e pediu
emprestado para animar sua festa no dia seguinte. Pedro não queria emprestar, mas de
tanto Marçal insistir acabou cedendo. Acontece que na festa de Marçal faltou comida e
9

o povo esfomeado matou e comeu o boizinho de João. Quando Marçal e Pedro


descobriram já era tarde. Foram contar o ocorrido para João, que ao ver-lhes sem o Boi
entendeu o ocorrido e pôs-se a chorar. Para amenizar o ocorrido fizeram outro Boi
muito enfeitado e colorido. João gostou e agradeceu, mas nada compensaria a enorme
perda. Foi em torno dessa história que surgiu a mais alegre e colorida manifestação
popular do Maranhão, e até hoje as pessoas fazem centenas de bois todos os anos,
concorrendo entre si em beleza, e na noite entre os dias 23 e 24 de junho, os bois são
batizados e oferecidos a São João, na tentativa de alegrar seu coração.

Pessoa responsável por carregar a imagem de São João durante a brincadeira. Bumba-meu-boi São
Cristóvão de Viana.
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O Bumba-meu-boi é um folguedo popular onde a personagem principal é


um boi especial que, diferente dos outros bois, dança e brinca alegrando as festas e
encantando quem olha. Nesta brincadeira mistura-se o sagrado com o profano:
pagamento de promessas demonstrando sua fé e devoção e ao mesmo tempo se
divertindo. Algumas pessoas prometem que se a graça pretendida for alcançada,
formarão uma “brincadeira” (grupo de Bumba-meu-boi) ou sairão brincando em alguma
“brincadeira” no próximo ano ou contribuirão monetariamente com alguma
“brincadeira”. É possível participar da festa sem fazer promessas, motivando-se pelo
gosto de dançar, tocar e cantar.

Para os brincantes de Bumba-meu-boi, a participação e a doação de corpo e


alma justificam-se pelo prazer e satisfação vivenciada no momento da brincadeira, que,
segundo eles, é difícil explicar, “só quem gosta mesmo entende”. A importância que
alguns brincantes dão ao Bumba-meu-boi, e até mesmo a fé que têm, compara-se aos
devotos das religiões conhecidas. De certo modo, pode-se afirmar que o Bumba-meu-
boi é a “religião” dos brincantes. Participam do Bumba-meu-boi famílias inteiras, desde
os avós aos netos. Se a criança já sabe andar, está apta a ter sua fantasia e entrar no
cordão e mesmo crianças que não sabem andar são inseridas na brincadeira ainda no
colo de suas mães e seus pais.
Organizar uma festa como a do Bumba-meu-boi exige muito trabalho e
comprometimento, por isso as funções são divididas entre os participantes mais
responsáveis e aptos para cumprir as funções determinadas. A brincadeira do Bumba-
meu-boi respeita um ciclo anual: nascimento, batizado e morte. O nascimento é o
primeiro encontro/ensaio do ano e costuma ocorrer no Sábado de Aleluia, após a
quaresma católica. Não é caracterizado exatamente como uma festa, porém, nesta
ocasião, as pessoas se mostram tão desejosas por brincar que o ensaio vira uma festa e
acaba durando a noite inteira.
O batizado ocorre no dia de São João, na noite entre 23 e 24 de junho. Nessa
ocasião prepara-se uma grande festa para batizar o Boi, que recebeu um novo couro
como cobertura. Durante o ritual de batizado são rezadas ladainhas em homenagem a
São João. Em alguns grupos, um padre da igreja católica é convidado especialmente
para realizar o batismo. Após o batismo, revela-se o novo couro 4 do Boi e assim ele está
pronto para brincar. Sai brincando e o grupo inteiro vai junto dançando, tocando e
cantando animadamente, com pessoas assistindo entusiasmadas. Em alguns lugares essa
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festa só termina após o raiar do sol.

Boi do Maracanã, 2013. Couro bordado com São João em detalhe na cara do Boi.

Após o período junino, o Boi “já cumpriu sua missão” e “deve morrer” para
que no próximo ano um novo Boi possa “renascer” e assim completar o ciclo. A data da
morte do Boi varia de acordo com o grupo, mas geralmente situa-se entre agosto e
setembro. Essa festa é permeada por uma energia eufórica diferente das outras, pois
como o Boi deve morrer, mas não quer, foge em determinados momentos. Tudo faz
parte de um teatro, porém muito real e espontâneo. Muito embora a fuga do Boi seja
esperada, também há espaço para o inesperado. O Boi é achado e então volta para a
brincadeira e neste estágio ele deve ser laçado e conduzido ao mourão, onde é amarrado
e abatido. Tudo isso é acompanhado por toadas que dão sentido à brincadeira. No
momento que o Boi morre, o amo canta um aboio. É um momento de caráter triste.

Além do dia de São João, há outras duas datas importantes: o dia de São
Pedro, 29 de junho, e o dia de São Marçal, dia 30 de junho. No dia de São Pedro, os
grupos de Bumba-meu-boi, de todos os sotaques, da Ilha de São Luís, e alguns do
interior, vão até a capela de São Pedro para sua homenagem. A partir das duas horas da
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manhã já é possível ver grupos entrando na capela, e outros, ao redor, se preparando.


Seis horas é o auge: os grupos entram e saem ininterruptamente. Até onze horas da
manhã ainda é possível olhar os últimos grupos fazendo sua homenagem, antes que a
imagem do santo seja colocada na barca para assim fazer a procissão marítima.
No dia de São Marçal acontece o encontro apenas dos Bois da Ilha. Começa
por volta de 6 horas da manhã e termina quando o último grupo termina de passar.
Durante o dia inteiro os grupos atravessam a Avenida João Paulo, em sequência.
Funciona por ordem de chegada: o grupo que chega se organiza no início da avenida e
em seguida os outros. Na metade da avenida (fim do percurso) há um palco para que o
amo (cantador) suba para cantar algumas toadas e ao lado um camarote onde estão
posicionados os jurados, que irão escolher o grupo mais bonito daquele ano.

1.2. MOMENTOS: O DESENROLAR DA BRINCADEIRA

Na brincadeira do Boi há uma ordem cronológica de toadas que narram a


brincadeira e em cada lugar que se chega, em cada terreiro que se chega pra brincar,
essa ordem é executada. Começa pelo “guarnicê” ou reunida, seguido pelo “lá vai”,
depois o pedido de “licença” ou “cheguei”, o “urrou” e o “adeus” (SAURA, 2008).
Entre o “lá vai” e o “adeus” há várias toadas, mas que não seguem um tema específico
nem narram necessariamente algum trecho da história. Essas toadas podem falar do Boi,
da natureza, da sociedade, de alguma paixão ou qualquer assunto que os cantores
queiram abordar. Mas os cinco momentos que citei acima não podem faltar.
Guarnicê tem o sentido de guarnição, preparação, alimentação,
fortalecimento. No Bumba-meu-boi é o momento inicial da brincadeira, onde os
brincantes começam a se reunir, concentrar e preparar para a apresentação. Há um tipo
de toada que é chamada de “guarnicê”, cantada justamente nesse momento:

GUARNICÊ
Compositor: Coxinho
Bumba-meu-Boi de Pindaré – sotaque da baixada

Anoiteceu
O galo cantou
Vaqueiro vai na igreja
Que o sino dobrou

É pra reunir
Vamos guarnicê
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Esta é a ordem que São João mandou

REUNIDA
Compositor: Apolônio Melônio,
Bumba-meu-boi da floresta – sotaque da baixada
Se ordem é ordem
Todos têm que obedecê
A turma de São João Batista
Agora eu vou guarnicê

No sotaque da matraca
Vi o pandeiro bater
Reúne, reúne, guarnece
É assim que o santo qué pra fazer.

Depois de guarnecer a turma vem o momento de ir para o terreiro. Então


vem o aviso: “la vai o Boi!”

LA VAI
Compositor: Coxinho
Bumba-meu-boi de Pindaré - sotaque da baixada

Ê vaqueiro tu tange a boiada


E aboia teu gado primeiro
La vai Boi, la vai Boi, la vai Boi
Morena, visitar seu terreiro

LA VAI
Compositor: Tião Carvalho
Bumba-meu boi do grupo Cupuaçu – sotaque de matraca e baixada

La vai, La vai
A turma do morro quando desce é uma beleza
Corre morena vem ver
Boi chegou bonito colorindo a natureza
Aqui se canta uma toada avisando que o Boi chegou e/ou pedindo licença.
Esse é o momento dos “brincantes” apresentarem, mostrarem quem está chegando e
qual é a sua intenção ali.

BOI CHEGOU
Bumba-meu-boi Brilho da Sociedade – sotaque de costa-de-mão

Boi chegou na porta do teu bangalô


E o povo que tava triste se alegrou
Na hora que este fama chega
Ele chega serenando
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Não vão se preocupando que chegou o Boi


Que vocês tavam esperando
Mas o vaqueiro
Fez o que não devia
Por que ele soltou o Boi
Não prendeu no mesmo dia
Esse foi o motivo
Que eu não cheguei a hora que eu queria

PRAZER DE SÃO JOÃO


Compositor: Humberto
Bumba-meu-boi de Maracanã – sotaque de matraca

Cheguei com meu batalhão pesado


Vim trazer Prazer de São João

Eu ainda estou firme e meu povo faz tremer o chão


Com pandeiro e matraca, maracá de prata na mão

LICENÇA
Compositor: Zé Olhinho e Ciriaco
antigo Bumba-meu-boi de Pindaré - sotaque da baixada

Dona da casa seu terreiro alumiou


Varre o terreiro que meu Boi chegou

Vaqueiro sela o cavalo


E vai aonde eu te mandá
Sabê do dono da casa
Se meu Boi pode brincá

O sol entra pela porta


E a lua pela janela
Eu vim foi tirar licença
Ai, eu não vou daqui sem ela

Que sim, oh senhor meu Amo


A licença está tirada
Se apresse e venha subindo
Com a sua linda vaqueirada

Na matança, os personagens Catirina e Pai Francisco roubam a língua do Boi. O


Boi some e então aparece doente, moribundo, quase morto. Com a ajuda do pajé dos
índios, o Boi consegue se recuperar e então urra, mostrando a todos que está vivo, firme
e forte.
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URROU
Compositor: Coxinho
Bumba-meu-boi de Pindaré - sotaque da baixada

La vem meu Boi urrando


Subindo vaquejadô
Deu um urro na porteira
Que o vaqueiro se espantô
O gado da fazenda
Com isso se levantô
Urrou, urrou
Meu novilho brasileiro
Que a natureza criô

URROU
Boi de Lauro – sotaque de zabumba

Já urrou, urrou
Minha beleza de gado
Esse ano eu fiz uma força
Mandei arrumar meu cercado
Que eu não desejo ver
O meu gado misturado
Quem se une com quem não presta
Acaba ficando estragado

Na sequência vem o “Adeus”. Como diz o ditado “tudo que é bom dura
pouco”. No Bumba-boi isso nem sempre é verdade, dizer adeus não significa
necessariamente que os “brincantes” vão para casa descansar, pois a brincadeira pode
durar a noite inteira. Adeus significa que estão se retirando daquele local para ir para
outro lugar, que pode ser outro espaço de apresentação, ou, finalmente, suas casas. A
despedida muitas vezes vem acompanhada da esperança de retorno àquele local de
apresentação onde o brincante foi feliz e de rever a “assistência” - o público. Assim, a
toada se encerra com “(...) adeus morena, algum dia eu vou voltar”.

ADEUS
Compositor: Humberto
Bumba-meu-boi de Maracanã – sotaque de matraca

Cinco letras do nosso alfabeto


Que formam aquela palavra
Que se diz a outro
Na hora de viajar
É um “A”, um “D” e um “É”
É um “U” e um “S”, podem soletrar
Isso quer dizer adeus morena
Algum dia eu vou voltar
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ADEUS
Compositor: João Câncio,
Bumba-meu-boi de Pindaré – sotaque da baixada

Oh vem chegando a madrugada


E o sereno dela me molhou

Adeus moça que o santo já me chamou


Adeus, adeus
Morena linda eu já vou
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2. SOTAQUES

No Maranhão há inúmeros grupos de Boi, cada um com suas personagens,


instrumentos, cantos, figurinos específicos, e até o Boi e sua fisionomia e forma de
dançar. Trata-se de um conjunto de características que definem o “sotaque” de cada
grupo. Esses grupos tendem a preservar características e tradições para assim afirmar
sua identidade. Mas o que é identidade? O que é isso que os grupos não poupam
esforços para manter?
As identidades são construídas historicamente e socialmente: “É necessário
criar laços imaginários que permitem 'ligar' pessoas que, sem eles, seriam simplesmente
indivíduos isolados, sem nenhum sentimento de terem qualquer coisa em comum.”
(SILVA, 2007, p.85) Por outro lado, a identidade difere os grupos. Sendo assim ela está
baseada também na diferença.
Há também o conceito de identidade e diferença como performatividade,
onde a identidade e a diferença estariam em constante movimento e transformação.
Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2007), as proposições performativas se diferem das
proposições meramente descritivas como “O livro está sobre a mesa”, pois as
proposições performativas, ao serem pronunciadas, fazem com que algo se realize e são
absolutamente necessárias para a consecução do resultado. São performativas
proposições como: “Eu vos declaro marido e mulher”, “Prometo que te pagarei no fim
do mês”, “Declaro inaugurado este monumento”.
Para Silva (Ibidem), a identidade não é uma essência da natureza, algo fixo,
algo pronto: é uma construção, um processo de produção. Assim, ao mesmo tempo em
que ela está em constante processo de afirmação, para permanecer como tal, ela também
está em constante transformação. É aí que o conceito de performatividade é útil.
Quando descrevo uma identidade há duas opções: ou reforço, reafirmo uma de suas
facetas ou atribuo-lhe uma nova faceta. Vou exemplificar partindo da premissa “ser
brasileiro é gostar de futebol”, a qual não se pode generalizar, mas serve como exemplo
no momento. No século XIX, não era uma característica da identidade brasileira gostar
de futebol, pois o futebol sequer existia. Na passagem do século XIX para o século XX,
o futebol foi introduzido no Brasil e em pouco tempo tornou-se o esporte mais popular
do país. Então, em algum momento falou-se “ser brasileiro é gostar de futebol”, e de
tanto repetir acabou por ser tornar uma verdade. Por um lado, o futebol ganhou destaque
18

por ser “amado” por muitos brasileiros e, por outro lado, muitos brasileiros começaram
a gostar de futebol por ser um destaque. Assim, temos hoje o futebol transformado em
símbolo identitário nacional, sendo o Brasil conhecido mundialmente como “o país do
futebol”, algo que não nasceu da natureza, e sim, que foi construído.
Trazendo esse raciocínio para o contexto deste trabalho, os grupos de
Bumba-meu-boi do Maranhão, por mais distintos que sejam, todos tem uma
característica em comum: a devoção à São João. É essa característica que faz com que
compartilhem a identidade de serem Bumba-bois maranhenses. No entanto, os
diferentes sotaques, ou características próprias de cada grupo, levam à uma classificação
onde se destaca cinco grandes categorias de Bumba-meu-boi no Maranhão: “Bumba-
meu-boi da Baixada”, “Bumba-meu-boi de Matraca”, “Bumba-meu-boi de Zabumba”,
“Bumba-meu-boi de Costa-de-Mão” e “Bumba-meu-boi de Orquestra”(SANTOS
NETO, 2010).
O Boi de Orquestra é o sotaque de Bumba-meu-boi mais recente. Surgiu na
região das cidades de Rosário e Axixá, no interior do Maranhão. É chamado de Boi de
Orquestra devido à presença de um naipe de sopros composto por trompete, trombone e
saxofone, que se encarregam das melodias e acompanham o canto. Além dos sopros,
utiliza-se também o banjo para o acompanhamento harmônico e o bumbo e o maracá
para marcar o ritmo.

Bumba-meu-boi, sotaque de Orquestra.


19

Padrões rítmicos do banjo5:

Padrões rítmicos do bumbo:

Padrão rítmico do maracá:

O Boi de Zabumba (ou Sotaque de Guimarães) é oriundo da região da


cidade maranhense de Guimarães. Esse sotaque tem seu ritmo marcado pelas zabumbas,
tambores de som grave e forte, feitos com peles de boi dos dois lados. São tocadas na
forma responsorial: umas respondendo às outras, de forma complementar. Em alguns
grupos uma zabumba pode ficar incumbida de marcar apenas o pulso. Além das
zabumbas, utiliza-se também maracás e os tamboritos, conhecidos também por
pandeiritos ou tininideiras: pequenos pandeiros que, aquecidos na fogueira, atingem um
som agudo. Tocados em conjunto formam verdadeiras orquestras de percussão, com
____________________________
Os ritmos escritos aqui foram retirados da pesquisa de Joaquim Antonio Santos Neto encomendada pelo
5

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.


20

toques e ritmos complexos, deixando a brincadeira mais animada. Também caracteriza


este sotaque é um canto responsorial meio gritado, meio entoado, feito pelos brincantes
em alguns momentos de euforia (SANTOS NETO, 2010), ora pronunciando a palavra
boi, ora utilizando o vocaliza “êquiô”. Segundo Tião Carvalho, o responsório faz alusão
ao vaqueiro que vai procurar o boi em terras baixas e grita “Ê boi” e o eco “responde”
“boi”.

Boi de Guimarães, sotaque de Zabumba.


21

Padrões rítmicos dos pandeiritos:


22

Zabumba e Pandeirito. Boi da Liberdade, sotaque de Zabumba.


Padrões rítmicos das zabumbas:

Padrão rítmico do maracá:

O sotaque do Boi de Ilha teve origem na Ilha de São Luis. É conhecido


também por Boi de Matraca, pela grande quantidade de matracas tocadas nas
brincadeiras. Além das matracas, utilizam-se o tambor-onça, o maracá (apenas para o
amo e os cantadores) e os pandeirões. Os pandeirões são grandes pandeiros com
dimensão entre 14” e 34”; para atingir o timbre precisam ser afinados na fogueira. Sua
performance é complexa: um tocador executa um ritmo básico e o segundo toca um
ritmo complementando o primeiro; o terceiro já entra com outro ritmo diferente dos dois
23

primeiros e, assim, consecutivamente, outros vão entrando em levadas que dialogam


com as outras, formando uma intricada trama polirrítmica. A quantidade de variações e
combinações são infinitas. Esse sotaque contém os maiores contingentes de
participantes e é também o sotaque de mais fácil “infiltração” de pessoas que não são do
grupo. Para participar da brincadeira basta ter uma matraca e “bater” no ritmo certo. A
sonoridade resultante da complexidade rítmica e da grande quantidade de tocadores é
chamada de tropeada, como aponta Bueno:

O termo tropeada designa, no contexto, a ambiência sonoro e visual


própria dos Bois da Ilha, os 'batalhões pesados' do Bumba-boi
maranhense, como explicado anteriormente. Essa ambiência inclui,
como expressões marcantes, o “murro” de pandeirão que só os bois
maiores conseguem fazer soar longe, com alas de mais de cinquenta
tocadores do instrumento, e os aboios coletivos. (BUENO, 2001,
p.105)

Boi de Maracanã na Avenida João Paulo. Sotaque de Matraca.


24

Padrões rítmicos dos pandeirões:

Padrões rítmicos das matracas:


25

Padrão rítmico do maracá:

O Boi de Costa-de-Mão (ou Boi de Cururupu) é oriundo do município de


Cururupu/MA. O sotaque de Costa-de-Mão tem seu ritmo marcado por caixas tocadas
com as costas das mãos. Em depoimento, Tião Carvalho afirma que esse costume
originou-se devido ao fato do local ser uma área rural. Os integrantes da ‘brincadeira’,
com as mãos calejadas pelo trabalho do dia, optaram por tocar com as costas das mãos.
Geralmente as caixas fazem a mesma levada, com ocasionais variações. As batidas
unificadas e precisas dão força ao ritmo.

Bumba-meu-boi sotaque de Costa-de-Mão.


Padrões rítmicos das caixas:
26

O Boi da Baixada tem seu sotaque oriundo do interior do estado do


Maranhão, da região denominada de “baixada maranhense”, onde estão localizadas,
dentre outras, as cidades de Matinha, Viana, Penalva, São João Batista e Pindaré. Esse
sotaque é conhecido também por “Boi de Pindaré” por dois motivos: primeiro, porque
Pindaré é uma das cidades de onde ele surgiu; segundo, porque o primeiro grupo desse
sotaque que surgiu na capital São Luís chamava-se Boi de Pindaré. Nesse sotaque
utilizam-se matracas, maracás, tambores-onça e pandeirões, assim como no Boi da Ilha,
porém tocados de maneira diferente. Os pandeiros fazem três levadas complementares.
O primeiro (pandeiro grande) faz apenas a marcação com pequenas variações. O
segundo (pequeno) faz uma levada complementar que vai dialogar com a levada do
terceiro (pequeno) que fica variando fazendo repiques. Há também um instrumento que
é usado apenas nesse sotaque que é o sino de vaca. Utilizado pelos cazumbas, marca os
contratempos da música.

Índio, Boi e Cazumbas ao fundo. Bumba-meu-boi sotaque da Baixada.


27

Pandeirões sendo afinados ao fogo. Boi de Pindaré, sotaque da baixada.


28

Padrões rítmicos dos pandeiros:


1

Padrão rítmico da matraca:

Padrão rítmico do maracá:

Há algumas características em comum entre os sotaques (Santos, 2010): a


presença do Amo, por exemplo, que apita no início e final das toadas para chamar a
29

atenção de todos para o início e final da função. O amo sempre começa cantando
sozinho para em seguida entrar o coro repetindo sua chamada. Outra característica
recorrente são as melodias executadas quase sempre em ritmo anacrústico ou de
maneira acéfala e terminando com a antecipação da tônica no compasso anterior, isto é,
a tônica não acontece no final em tempo forte. Nos sotaques da Baixada, Costa-de-mão
e Zabumba, há presença de vozes fazendo a terça da melodia. Às características
identificadas por Santos, acrescento também outra: a ênfase no pulso.
Além das particularidades aqui citadas, percebo que há outras similaridades
entre os sotaques que mostram ‘parentesco’ ou proximidade entre eles, como os chapéus
de fita dos sotaques de “Costa-de-mão” e de “Zabumba”, a fisionomia dos bois e o
caráter mais agressivo desses ‘sotaques’. Já nos sotaques de “Matraca” e da “Baixada”,
pode-se identificar estruturas rítmicas semelhantes, porém organizadas de maneiras
distintas. Todavia, essa é uma reflexão que exigiria mais tempo para se aprofundar, o
que não cabe aqui, mas pode servir como tema para um próximo trabalho.
30

3. BUMBA-MEU-BOI SOTAQUE DA BAIXADA

Boi Unidos de Santa Fé, sotaque da Baixada.

O Bumba-meu-boi do sotaque da Baixada é chamado assim devido à sua


região de origem, a “baixada maranhense”, cujas principais cidades onde ocorre o Boi
são Viana, Matinha, Penalva, Pindaré e São João Batista. Foi nessa região que surgiu o
referido sotaque, onde até hoje ocorrem festas que duram a noite inteira ao som de
grandes tambores, rústicos e pesados. Em junho de 2012, pude visitar a cidade de
Matinha e vivenciar uma dessas festas no “encontro de Bois de Matinha”, uma
experiência única. Eram vários grupos diferentes espalhados ao redor de uma praça, e
cada grupo concentrado em roda, tocando, cantando, dançando e ‘brincando’ com seu
Boi. Um grupo por vez ia ao meio da praça e se apresentava. Assim passou a noite
inteira. Já de manhã, com o sol despontando e iluminando a ‘brincadeira’, todos os
grupos se reuniram no centro da praça em uma grande roda, onde todos os tocadores dos
diversos grupos tocavam juntos, bailantes bailando juntos e assim por diante,
esquecendo as diferenças e compartilhando da alegria de ‘brincar’ Boi. Ao microfone os
cantadores se revezavam mostrando uma toada nova de seu grupo. Essa foi uma
31

experiência muito importante para mim e a alegria que senti ali é indescritível, só
vivenciando para compreender.

A ilha de São Luís têm atraído pessoas pela crença em uma vida melhor.
Essas pessoas quando se mudam pra lá levam consigo sua cultura, no caso em questão,
o Boi.

O deslocamento de contingentes em busca de trabalho na capital


carregou, em seu bojo, velhos entendedores da ‘brincadeira’, que a
continuaram nos bairros de São Luís, com seus ‘sotaques’ de Boi
originais. E as trajetórias são refeitas a cada ano, tanto por quem volta
para ‘brincar’ no interior, quanto por quem vem com seu Boi ‘brincar’
em são Luís. (BUENO, 2001 p.125)

As pessoas que se mudavam para São Luís e vinham de uma mesma região
iam morar perto umas das outras, formando pequenas comunidades. Em uma dessas
comunidades, o Bairro de Fátima, surgiu o primeiro Boi da Baixada de São Luís, o Boi
de Pindaré, fundado em 1960 por João Câncio. Com o passar do tempo alguns
integrantes desse grupo foram se desmembrando aos poucos e formando outros grupos
do mesmo sotaque, como o Boi Unidos de Santa Fé, o Boi da Floresta, o Boi de Penalva
e o Boi Oriente.

Acontece que quando essas pessoas chegam ao novo ambiente, para cultivar
sua cultura e fazer sua ‘brincadeira’ muitas vezes precisam se adaptar; adaptação esta,
que no sotaque da baixada, pode ser observada nos instrumentos utilizados. Enquanto
no interior são usadas caixas, taróis, repiniques e matracas, na capital São Luiz são
utilizados pandeirões de variados tamanhos, maracás, tambor-onça e matracas. Pode-se
observar que no primeiro caso os instrumentos de pele são tocados com baquetas; já no
segundo caso são utilizados instrumentos de pele tocados à mão. Em conversa com o
Amo de Boi Zé Olhinho, Bueno (2001) constata que essa hibridação renovou o sotaque
da Baixada e adaptando-o ao novo contexto. “Contou (Zé Olhinho) que foi o próprio
João Câncio quem organizou o sotaque com pandeiros e matracas” que já eram
utilizados nos Bois da Ilha.

3.1. PERSONAGENS

O Boi é o personagem principal da brincadeira. Toda festa e enredo giram


ao seu redor e ao redor de seu ciclo vital. No enredo ele é furtado e tem sua língua
32

arrancada para saciar o desejo de Catirina. São chamados todos os doutores e


veterinários da região para salvar o Boi, mas sem êxito. O Amo, sem perder as
esperanças, manda chamar o Pajé dos índios que depois de fazer muita fumaça com seu
cachimbo e suas ervas devolve a vitalidade ao Boi, que urra alegrando o coração de
todos (BUENO, 2001).
O Boi é feito por uma estrutura de madeira revestida com veludo enfeitado
com imagens bordadas com canutilhos e miçangas, o que demanda de grande esforço e
gera um resultado lindo, deixando o Boi com brilhoso. Por baixo do Boi há o “miolo”,
que é quem dá vida ao Boi, sendo responsável por sua movimentação. Conforme Bueno
(2001 p.110), o miolo tem sutileza: faz o boi flutuar com beleza em movimentos
circulares e, por outro lado, tem também enorme resistência física, fazendo o boi
‘brincar’ por horas.

Quando se obseva atentamente a sintaxe discursiva empregada


naqueles procedimentos de ocultamento do ‘miolo’, a pessoa que
manobra o boi por dentro, que diz ‘o boi rola’, ‘o boi brinca’ e evita o
‘eu rolo/brinco’ e mesmo ‘o miolo rola/brinca’, chega-se a uma
percepção mais afinada do Bumba-boi. Essa estratégia discursiva é
conhecida por embreagem, devido à suspensão da oposição entre a
terceira e a primeira pessoa verbal, ou seja, o boi toma o lugar do eu
por não representar uma oposição a esse mesmo eu. O ‘brincante’ de
‘miolo’ e o boi são um só e prevalece a subjetividade centrada na
figura do boi. (BUENO, 2001 p.201)

Pai Francisco (ou Nego Chico) é o empregado da fazenda que cuida do bem
mais precioso do patrão, o Boi. É casado com Catirina, que lhe dá muita “dor de
cabeça” mas, por seu amor a ela, acaba furtando o Boi do patrão. Mãe Catirina é a
esposa de Francisco. Esta se vê grávida e com um desejo um tanto quanto estranho:
comer a língua do Boi. Até aí tudo bem, se o boi não fosse o Boi precioso do patrão. Ela
faz de tudo até que convence seu marido a roubar o Boi, com o pretexto que seu filho
nasceria com cara de língua de boi se não saciasse seu desejo.
Os Vaqueiros, como o próprio nome já diz, são os vaqueiros da fazenda. São
eles que buscam o boi furtado por Pai Francisco e Catirina e também chamam os índios
para curar o Boi. Na brincadeira eles formam o cordão com seus chapéus alegres e
coloridos e tem a enorme responsabilidade de vigiar e cuidar do Boi.
Há também a presença de Índios e Índias: personagens que representam o
espírito protetor da mata e remete à ancestralidade humana. Protege o boi e todo espaço
de brincadeira com suas roupas cheias de penas. Outro personagem mítico é o
33

Cazumba. Fantástico, misterioso e enigmático, o Cazumba é uma espécie de “vodum”


dentro do Boi, tendo relação direta com o sagrado. Nos cortejos, vai na frente para pedir
passagem e limpar o terreiro onde pisa o “batalhão”. Costuma carregar um sino de vaca,
que toca no ritmo da música.
Já a burrinha é uma personagem que dá graça à brincadeira, geralmente
dança e se movimenta de um jeito desengonçado, mas está sempre por perto do Boi para
abrir caminho e dar segurança.

Burrinha e índias ao fundo. Boi de Maracanã.

No enredo do Boi, o Amo é o fazendeiro, o patrão, o dono do Boi. Na


“brincadeira”, é ele quem faz a voz guia para ser respondida pelo coro. Comanda todo o
34

batalhão com seu maracá, instrumento regente e de herança indígena, e o apito que
chama a atenção ou dá o aviso de que a música chegou ao fim. Há grupos em que há
outra figura que é o “cabeceira”. Não é nenhum personagem, mas é o integrante que
dirige o grupo. Mas na maioria dos grupos o Amo é quem assume o papel de dirigir o
grupo.

Seo Humberto, Amo do Boi do Maracanã, tocando maracá. Sotaque de Matraca

Nas manifestações da cultura popular brasileira, em muitos casos, há a


presença de lideranças exercendo o papel de condução musical e
organização coletiva. Estas se tornam os sujeitos que geram a
transmissão ou mesmo a construção e reconstrução da música a ser
executada coletivamente. Esses sujeitos detentores de saberes
tradicionais se utilizam de métodos que se desenvolvem com o
objetivo de transmitir as ideias musicais estruturantes da
manifestação. Os cantos entoados em diversas manifestações da
cultura popular brasileira, por exemplo, estão baseadas em versos
conhecidos ou improvisados por esses sujeitos que, nesse momento, se
tornam referência para o grupo e, portanto, exercem o papel de
educadores. Normalmente, esses são chamados de mestres ou
puxadores. (SOUZA, 2010)
35

No Bumba-meu-boi essa liderança é o Amo, detentor do conhecimento do


cantar, ele é quem faz e canta as toadas, renovando e resignificando a brincadeira com
toadas novas todos os anos.

Na manifestação as toadas são cantadas por um Amo e respondidas ou


repetidas por um coro ou ‘batalhão’ de ‘brincantes’. A simples adesão
a esse coro de resposta, acessível aos presentes, já garante a
participação e faz experienciar o mecanismo da coletivização dos
sujeitos. Como essas brincadeiras se realizam na rua, desenvolvem
práticas de tolerância e liberdade de participação que já se iniciavam
com as primeiras manifestações dos afro-descendentes escravizados
no Brasil. Através das ‘brincadeiras’, pontos de vista político-sociais
dessas comunidades são observáveis pelas identificações étnicas dos
personagens em suas indumentárias, saberes e ações, e pelo confronto
encenado pela classe proprietária do boi e as classes que trabalham
direta e indiretamente com ele. (BUENO, 2001 p.226)
36

4. PROCESSOS DE APRENDIZAGEM E O BUMBA MEU BOI

Segundo Souza (2010), a partir das contribuições de músico-pedagogos


como Jaques-Dalcroze, Maurice Martenot, Edgar Willems, Carl Orff, Zoltan Kodály,
Shinichi Suzuki, John Paynter, Murray Schafer e Hans-Joachim Koellreutter, deu-se a
consolidação do que se consideram os princípios básicos da Educação Musical.
Princípios estes que estão empiricamente presentes nos grupos de Bumba-meu-boi.
Cita-se, dentre estes: a liberdade na manipulação dos materiais sonoro-musicais; a
relação direta com os elementos musicais; a atividade como forma de valorização da
experiência concreta e perceptiva e o desenvolvimento da percepção como ponto de
partida para o acesso aos conceitos musicais.
No Bumba-meu-boi há liberdade para manusear o material sonoro,
expressada na forma de variação rítmica no tocar dos instrumentos. No Boi de Zabumba
os tamboritos é quem vão fazer a “zoada”. À partir das frases básicas surgem outras
complementares e dentre elas há uma enorme quantidade de variações que são
reinventadas manipulando este material, misturando as ideias rítmicas. Já no Boi da
Ilha, o improviso está presente nas frases das matracas, dos pandeiros e tambores-onça.
Aparece também nas frases do maracá, porém em menor frequência, uma vez que este é
responsável por reger o grupo e não pode variar muito. Uma característica marcante do
Boi da Ilha é a polirritmia 3 contra 2 (tercinas contra colcheias). Matracas e pandeirões
manipulam esse material com grande liberdade, misturando as duas células, tercinas e
colcheias, dentro de uma mesma frase. Essa mistura parte de frases básicas, que por si
só já contém a polirritmia. A partir das frases básicas surgem infinitas variações que
buscam dialogar com as frases básicas e entre si.
No Boi da Baixada, por sua vez, há três frases de pandeiros: a marcação
feita pelos pandeiros maiores e as outras duas frases tocadas pelos pandeiros menores.
Essa trama polirrítimica pode ser observada no anexo 1
37

Padrões rítmicos dos pandeiros:

Os pandeiros grandes tocam a levada 1. Os menores tocam a levada 2 e


apenas um dos menores toca a levada 3 com variações, que é a levada que dá ânimo
adicional à brincadeira, talvez por isso a mais cansativa. Por isso, faz-se necessário o
revezamento entre os tocadores, mudando da levada 2 para a levada 3 e vice-versa. Essa
mudança pode ocorrer muitas vezes durante uma mesma toada. É feita sem se perder o
som da levada 3. Para que essa mudança aconteça, sem “deixar a peteca cair”, o
entrosamento entre os tocadores é fundamental. Eles se olham, se escutam e percebem o
momento de efetuar a mudança. Tudo isso é feito de maneira muito dinâmica, assim, o
ritmo é mantido no andamento e na animação necessária.
No Bumba-boi da Baixada o Amo inicia a toada e canta uma vez sozinho.
Em seguida os outros integrantes do grupo repetem a toada. Esse é um processo que
envolve “memória, percepção musical, reprodução de elementos melódicos, rítmicos e
harmônicos, produção de texturas e densidades diversas, além do aprendizado e
interpretação dos versos e do conteúdo expressivo da manifestação.” (SOUZA, 2010)
38

Em março de 2013, fui ao Maranhão com a finalidade de vivenciar o início


da temporada de Bumba-boi e dar continuidade a esta pesquisa, fazendo entrevistas e
registros audiovisuais. Por vezes, não encontrei respostas nos locais em que busquei,
mas por outro lado, encontrei respostas em locais não planejados como na “brincadeira”
do Tambor-de-crioula e até em uma festa na casa de um casal amigo.

Conforme nos coloca Jusamara Souza (1996), o fenômeno ensino-


aprendizagem de música não ocorre só nos locais onde estamos e nem
só da forma como conhecemos. Sendo assim, observar e considerar as
possibilidades de educação em espaços diversos significa estarmos
abertos a processos interculturais, expressos por meio do diálogo entre
diversidades que se apresentam em meio a processos diferentes da
educação formal – e que também não podem ser encerrados pela
definição de educação informal. (SOUZA, 2010)

Mesmo que esses registros não tenham sido coletados no contexto do


Bumba-boi, é relevante descrever aqui, pois são processos que ocorrem em diversos
locais e podem ser observados. Descrevo a seguir:
No Tambor-de-crioula no Centro Cultural do Mestre Amaral, no intervalo da
“brincadeira” enquanto os tambores eram aquecidos na fogueira ví duas crianças (de
oito e nove anos, Felipe, filho do Mestre e Davi filho de um dos tocadores) brincando
em apenas um tambor. Estavam treinando, enquanto um deles fazia o ritmo do meião o
outro fazia o ritmo do crivador (tambor grande, meião e crivador são os três tambores
utilizados na manifestação). É possível perceber que em alguns momentos tocam de
forma correta, encaixando as duas levadas complementares e em outros momentos esse
encaixe não se firma. (Anexo 2) Podemos constatar aqui novamente a presença de
princípios presentes nos métodos ativos como a relação direta com os elementos.
Estavam as duas crianças ali, no contexto da brincadeira, enquanto seus pais
“brincavam” como gente grande, elas treinavam para “imitar” seus pais.
No mesmo local, mas em um dia diferente pude fazer uma observação
acerca da aprendizagem de outro filho do mestre Amaral, de três anos de idade.
Enquanto ele toca em seu tambor eu peço para filmar e inicio a filmagem. Em um
primeiro momento toca sem muita concentração distraindo-se com a minha filmagem. O
pai fala “toca mesmo, toca mesmo!”, então ele toca mais forte, mais rápido e ritmado,
porém de maneira meio descontrolada. O pai diz “toca direito”. O garoto faz uma pausa
e reinicia o ritmo, dessa vez com menos força e menor velocidade, tocando agora de
maneira ritmada e comedida. (Anexo 3)
39

Neste dia havia um curta-metragem sendo filmado naquele espaço


enfocando a “brincadeira” do tambor-de-crioula. No momento em que a roda de tambor-
de-crioula se inicia, o tambor do garoto está posicionado ao lado dos outros três
tambores. (Anexo 4) O tambor que o garoto tocou não era necessário, tendo em vista
que no tambor-de-crioula utiliza-se impreterivelmente três tambores. Quanto ao som
produzido, não tinha volume para ser escutado, tendo em vista que haviam três homens
adultos tocando os outros tambores. Assim, mesmo que estivesse tocando errado, o
garoto não atrapalhava no andamento da “brincadeira”. Porém o que está em jogo é o
estímulo e confiança depositados no garoto, que se sentiu como parte daquilo que
acontecia ali. Aqui percebemos outro princípio presente também nos Métodos Ativos, a
atividade como forma de valorização da experiência concreta e perceptiva .

Em uma festa na casa de um casal amigo pude fazer outra observação. Era
uma festa de músicos e artistas regada com muita música ao vivo de qualidade. Um
garoto filho de um dos convidados brincava livremente entre os músicos, dançando,
indo de um lado para o outro, com passinhos quase pulando e balançando os braços
paralelos ao corpo. No momento que a música para, o garoto para também. (Anexo 5)
Nesse caso o garoto brinca com a música, exercitando sem perceber elementos como o
ritmo e dinâmica além da apreciação musical ativa, desta forma tendo o
desenvolvimento da percepção como ponto de partida para o acesso aos conceitos
musicais.
Assim, pode-se concluir com Jusamara Souza:

Se retomarmos os princípios ligados ao que diversos educadores ao


longo da história formularam como geradores de uma efetiva
educação musical, se faz necessário buscar a intersecção entre os
métodos formais e não formais. Assim podemos gerar a riqueza
necessária para que, em nossas ações como educadores musicais,
sejamos capazes de encontrar caminhos válidos de atuação dentro de
sociedades complexas, permeadas pelo moderno mas também pelo
tradicional. Com isso, passamos a considerar a importância da escrita
e também da oralidade, assim como da comunicação
tecnologicamente mediada, sem deixar de considerar a necessidade
indissolúvel do contato humano. Nesse sentido, podemos observar a
existência de uma temporalidade linear da produção industrial e
capitalista que deve ser contrabalançada pelo tempo ritualístico da
música e da sociabilidade por ela gerada, onde passado e presente
podem se encontrar levando a novas possibilidades de construções
culturais.” (SOUZA, 2010)
40

CONCLUSÃO

O objetivo desse trabalho foi encontrar um ponto de diálogo entre as


práticas formais e não formais na busca do equilíbrio para o desenvolvimento da
educação musical. Não foi intenção apresentar um método a ser seguido, mas sim
apontar para caminhos, possibilidades educacionais que, aproveitando a rica cultura
popular brasileira aqui representada pelo Bumba-meu-boi, busquem a integração entre
corpo e mente, gerando assim o equilíbrio entre a prática, a percepção e conceituação
dos elementos sonoro-musicais.
Nas comunidades onde a brincadeira do Bumba-meu-boi é festejada, as
crianças já nascem inseridas nesse contexto. A experiência destas crianças com a
manifestação inicia-se no momento em que estão na barriga de suas mães e escutam e
sentem as pancadas e vibrações dos pandeiros. Depois de nascer, estão a todo momento
apreciando as músicas através de seus gestos e brincadeiras. Entre suas primeiras
palavras apreendidas estão algumas toadas de Bumba-meu-boi. Durante a adolescência
a participação em um grupo de Bumba-meu-boi é um modo de afirmação social,
dizendo que assim como seus amigos, partilham dessa identidade. Quando adultos, já
não conseguem mais se separar da “brincadeira”. A “brincadeira” já é uma parte
constituinte desses indivíduos e vice-versa, tendo eles agora o papel de preservá-la e
passá-la a seus descendentes e/ou sucessores.
No Bumba-meu-boi as crianças vivenciam o ritmo através da dança e com
isso internalizam o pulso. Segundo Márcia Cristina Pires Rodrigues, o gesto corporal é
um dos modos de vivenciar a música. Quando tem o contato com o instrumento, as
crianças aprendem a tocá-lo com facilidade, pois apenas externalizam o ritmo
vivenciado e absorvido. Assim, conforme Souza,

Essa diferenciação se dá, em princípio, pelo fato de serem criadas


situações didáticas em que os saberes são construídos a partir do
próprio fazer. Nessas manifestações, há uma inserção do indivíduo no
discurso musical - e é através da observação e da prática imitativa ou
criativa que o participante se relaciona com a música, aperfeiçoando e,
principalmente, aguçando a percepção dos elementos musicais e
corporais que constituem a manifestação. O executante, seja qual for o
seu domínio com relação ao material musical, ao ser inserido na
manifestação, precisa ouvir, interagir e adaptar a sua execução à dos
outros integrantes do grupo. Assim, a partir do convívio, o participante
passa a assimilar as células rítmicas, frases melódicas ou sequências
harmônicas. Nesse processo, ao buscar se integrar ao conjunto rítmico
e harmônico, passa a ter uma relação concreta com a música,
41

desenvolvendo a fluência musical. Conforme nos coloca Swanwick


(2003), a fluência e a inserção do educando no discurso musical são
princípios fundamentais para que ocorra a aprendizagem musical.
(SOUZA, 2010)

É interessante observar que, escutando o depoimento dos mestres, a


impressão que se tem é que o conhecimento cai sobre eles de uma maneira mágica. Em
um momento não sabem nada e de repente, já aprenderam. Na verdade há uma série de
fatores entre o “não-saber” e o “saber” que interferem nesta aprendizagem, a qual
aprendizagem acontece com o tempo, de maneira quase imperceptível, na história das
pessoas. O contexto em que ela vive e viveu, a relação que a família dessa pessoa tem
com a música, os lugares frequentados, os amigos, tudo isso interfere no processo.
Durante todo o tempo, o sujeito internaliza o conhecimento e, em um determinado
momento, o externaliza, expressando o que sente dentro dos moldes da linguagem
apreendida.

Essas danças tornam-se importantes para a formação humana em arte,


na medida em que possibilita experiências dançantes e estéticas, bem
como proporciona novos olhares para o mundo, envolvendo a
sensibilização e a conscientização de valores, atitudes e ações
cotidianas na sociedade. (VIEIRA)

Assim como os pássaros voam, cantam e constroem seus ninhos, eu toco,


canto, danço e escrevo, deixando minha contribuição para ampliar o entendimento
acerca da cultura popular. Acredito que uma maior compreensão das manifestações
populares com seus valores e significados leve à sua preservação. Agora é importante
lembrar que para se conhecer manifestações populares como o Bumba-meu-boi, livros,
CDs e descrições são insuficientes. É necessário ir a campo, vivenciar ao lado dos
“brincantes”, em meio às pancadas da percussão e, só assim é possível sentir a
liberdade, o poder e o prazer de “brincar Boi”.
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REFERÊNCIAS

BUENO, André Paula. Bumba-boi maranhense em São Paulo. São Paulo: Nakin
Editorial, 2001.

FIGUEIREDO, Evanise. Cantoria de Boi de Mamão. Trabalho de conclusão de curso.


Florianópolis: UDESC, 2011.

FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. De tramas e fios: um ensaio sobre


música e educação. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

JACKES-DALCROZE, Émile. Le Coeur Chante: impressions d’um musicien.


Lausanne: Jobin & Cie, 1900.

------------------------------------- La Rythmique I. Lausanne: Jobin & Cie, 1916.

------------------------------------- La Rythmique II. Lausanne: Jobin & Cie, 1917.

OLIVEIRA, Andréa. Nome aos bois – tragédia e comédia no bumba-me-boi do


Maranhão. São Luís.

PREGNOLATTO, Daraína. Esse trem de cultura. Livro não publicado.

RODRIGUES, Márcia Cristina. O Ensino aprendizagem em Dança na Construção


das Noções de Espaço e Tempo. Tese de mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2007.

SANTOS NETO, Joaquim Antonio dos. Bumba-meu-boi, música e sotaques. São


Luís: Púrpura Poduções, 2010.

SAURA, Soraia Chung. Planeta de boieiros: culturas populares e educação de


sensibilidade no imaginário do Bumba-meu-Boi. Tese de doutorado. São Paulo: USP,
2008.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais/ Tomaz Tadeu da Silva (org) Stuart Hall, Kathryn Woodward. 7. ed. –
Petrópolis: Vozes, 2007.
SOUZA, Eduardo Conegunes de. A presença da educação musical em espaços não-
formais: um campo de possibilidades. Revista Espaço Intermediário, Vol. 1, No 1 (1)
ESPAÇO INTERMEDIÁRIO, São Paulo, v. 1, n. 1, maio. 2010.

SOUZA, Jusamara. Contribuições teóricas e metodológicas da sociologia para a


pesquisa em educação musical. In: ENCONTRO ANUAL DA ABEM, 5., SIMPÓSIO
PARANAESNE DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 5,. 1996, Londrina, 1996.

VIEIRA, Marcilio De Souza. Pastoril: Arte E Educação Celebrada No Riso. UFRN.

Memória de velhos – depoimentos: uma contribuição à memória oral da cultura


popular maranhense. Volumes III, IV e V. São Luís: Lithograf, 1997.

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