Texto Claudia Carvalho - Ecologia de Saberes
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ARTIGO
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(De)Coloniser Les Savoirs et les Genres : est-il possible une hermeneutique feministe des
épistemologies feministes du sud
Resumo
Neste artigo analiso o fenômeno da colonialidade de gênero, observo os modos como a racionalidade do
pensamento único ocidental subsidia práticas e discursos sociais que atingem a vida das mulheres,
particularmente- nomeadamente as subalternizadas no Sul ou no Norte global. Interessa-me de modo particular,
problematizar de modo interseccional como o sistema colonial aliançada ao capitalismo interagem como o
patriarcado acentuando a invisibilidade e as múltiplas camadas de opressão e desigualdades vivenciadas pelas
mulheres do Sul-global. Por fim, examino as possibilidades de superação da colonialidade do saber e do
colonialismo de gênero presente na racionalidade científica e práticas e discursos sociais a partir de uma diálogo
mais estreito entre as teorias femininas pós-coloniais e as Epistemologias do Sul.
Abstract
In this article I analyze the phenomenon of gender colonialism, I observe the ways in which the rationality of
single Western thinking subsidizes social practices and discourses that affect the women‟s‟ lives, particularly
those subalternized in the South or in the global North. My particular interest is to question in an intersectional
way how the colonial system allied with capitalism interact with patriarchy emphasizing the multiple layers of
oppression and inequalities experienced by women in the global south. Finally, I examine the possibilities of
overcoming the colonialism of knowledge and gender present in the scientific reasoning and social discourse
based on a closer dialogue between the post-colonial feminist theories and the Southern Epistemologies.
Resume
Dans cet article j‟analyse le phénomène de la colonialité, j‟observe la façon dont la rationalité de la pensée
occidentale unique subventionne pratiques et discours sociaux qui touchent la vie des femmes, particulièrement
les femmes subordonnées dans le Sud ou dans le Nord global. Il m‟intéresse, d‟une manière particulière,
questionner, de façon intersectionnelle, comment le système colonial allié au capitalisme interagit comme le
patriarcat accentuant l‟invisibilité et les multiples couches d‟oppression et d‟inégalités vécues par les femmes du
Sud global. Enfin, j‟examine les possibilités de surmonter la colonialité du savoir et du colonialisme du genre
présent dans la rationalité scientifique et pratiques et discours sociaux à partir d‟un dialogue plus étroit entre les
théories féminines postcoloniales et les Épistémologies du Sud.
Introdução
[...] esta femocrácia que se vê a si mesma como um centro que irradia conhecimento
e energia para as periferias preserva e reconstrói a ideia colonial que a maioria das
mulheres-do-mundo-ex-colonizado de hoje precisam ser libertas de si mesmas e das
suas histórias para se emanciparem” (CUNHA, 2014, p.69).
Na obra intitulada Under Western Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Discourses
boundary, considerada um dos fios fundacionais dos estudos feministas pós-coloniais,
Mohanty (1984) alerta sobre os riscos de um pensamento único, das narrativas monolíticas,
universalistas, assimilacionistas que anulam as diferenças, e sobretudo, invisibilizam e
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Substituímos a expressão mulheres do “Terceiro Mundo” por “Mulheres do Sul-global”, por considerar que se
deva designar não apenas as mulheres do “Terceiro Mundo” como aquelas do Sul-global presente também no
Norte-global, como alerta Santos (2009) em suas teorizações a respeito das Epistemologias do Sul.
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El feminismo es la teoría y la práctica políticas que lucha para liberar a todas las
mujeres: a las mujeres de color, a las mujeres de la clase obrera, a las mujeres
pobres, a las mujeres discapacitadas, a las lesbianas, a las mujeres ancianas, así
como a las mujeres blancas, heterosexuales económicamente privilegiadas. (SMITH,
1982.p.3).
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Tal qual Tereza Cunha (2003), usa-se aqui o termo de feminismos dominantes de matriz nortecêntrica para
designar um catalogado frequentemente reconhecido como feminismo liberal, feminismo radical, feminismos
pós-modernos e da diferença, entre outros – que apresentam dificuldades em tematizar outras racionalidades
feministas que divirjam em coisas consideradas nucleares como, por exemplo, o conceito de emancipação
feminina ou das mulheres, como uma versão, não assumida, de um pensamento abissal.
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O sentido de subalterno empregado neste artigo, inspira-se nos conceitos inicialmente proposto por Gramsci e,
mais adiante, trabalhado pelos autores dos Estudos Subalternos – a saber, Ranajit Guha, Dipesh Chakrabarty,
Partha Chatterjee e Gayatri Spivak. Contudo, diferente da hipótese gramisciniana que não vê autonomia imediata
para o subalterno- submetido ao controle das elites –, as mulheres subalternizadas- mulheres negras e periféricas
de comunidades pobres, mulheres indígenas, imigrantes islâmicas, mulheres ciganas, mulheres transgénero, para
citar algumas das que estão em situação de explícita vulnerabilidade, tem demonstrado autonomia, ainda que
pequena e fragmentada, como caminhos para a construção de narrativas e historiografias emancipatórias.
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que conduza a Hermenêutica Feminista das Epistemologias do Sul como a possibilidade para
o alargamento epistêmico, político, ontológico e cognoscente das mulheres do Sul-global.
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O pensamento abissal da ciência moderna e o pensamento pós-abissal tem sido problematizações recorrentes e
revisitadas nas obras de Boaventura de Sousa Santos. Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia
das ausências e uma sociologia das emergências. In: BARREIRA, César (Org.). Sociologia e Conhecimento
além das Fronteiras. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2006.; SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do
Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: STARLING, Heloisa; ALMEIDA, Sandra
(Org.). Sentimentos do Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.; SANTOS, Boaventura de Sousa;
MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: [s.n.], 2006.; SANTOS, Boaventura de
Sousa. Una Epistemologia del Sur. La reinvención del Conocimiento y la Emancipación Social. Buenos Aires:
Siglo XXI Editores; CLACSO, 2009.; SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo. Para uma nova
cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.
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As questões das monoculturas são tratadas com profundidade por Santos, especialmente nas obras Una
epsistemología del SUR: La Reinvención del conocimiento yla Emancipaçao Social (2009); A Gramática do
Tempo: para uma nova cultura política (2006); Epistemologias de Sul (2010) obra organizada conjuntamente
com Maria Paula Meneses; Conhecimento Prudente pra uma Vida Descente: Um discurso sobre a ciência
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revisitado ( 2005); A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência” (2007), dentre outras
obras. Segundo o autor, a razão metonímica utiliza amplamente cinco lógicas monoculturais para produzir
formas de não-existências: a monocultura do tempo linear, a da naturalização das diferenças como
desigualdades, a do saber e do rigor do saber, a da escala dominante, a dos critérios de produtividade e de
eficácia capitalista.
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As epistemologias feministas, do ponto de vista da intensificação da produção epistêmica e metodológica, tem
inicialmente três correntes principais: o feminismo liberal ou reformistas, o feminino radical e o feminismo
socialista, os quais, na década de 1980, pelas reivindicações de igualdade entre homens e mulheres nas lutas
feministas, destacam as políticas de identidade e a questão da diferença, tanto entre homens e mulheres, como
entre mulheres atravessadas pelas categorias sociais não homogênea das divisões de classe, etnia, cultura e
religião, situadas geograficamente e politicamente, dentre outros. Isso evidencia que são heterogêneas as lutas de
emancipação femininas e os diversos patriarcados que as configuram.
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O autor, deixa evidente que o colonialismo é, obviamente, mais antigo, enquanto a Colonialidade é mais
profunda e duradoura que o colonialismo. Mas, sem o colonialismo não poderia ser imposta na intersubjetividade
do mundo tão enraizado e prolongado. Todavia, para Boaventura de Sousa Santos, (2017), o colonialismo
perdura em dias atuais, mesmo em regimes em que o fim do colonialismo territorial se findou. Além disso, é
preciso falar de colonialismos, para que não se recai em totalitarismo e universalismos centrada na experiência
colonial da América Latina para explicar todas as outras formas de dominação colonial-imperialistas do mundo.
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Além disso, Heleieth Saffioti (1976), Silvia Frederic (2017), advogam que a violência
patriarcal e o capitalismo, uniu-se intrinsecamente ao cerceamento da liberdade social das
mulheres nos domínios econômicos, reconfigurou o espaço doméstico numa arena de luta,
num território de tensões onde pessoas socialmente diferentes são tratadas desigualmente, é
consensual que o privado é publicamente e pessoalmente político. A cisão entre o espaço
doméstico e o sistema de produção mercantil ocidental, nada mais fez que descredibilizar
outras formas de organização econômica, desqualificar o espaço doméstico e criar o
imaginário social de que as mulheres não estão para a economia como a economia não está
para as mulheres, como uma das condições necessária a acumulação primitiva do capital:
As mulheres e crianças pobres são aquelas que mais recebem o impacto mais forte
da degradação dos condicionantes ambientais, das guerras, da fome da privatização,
da desintegração do Estado de bem-estar social, da reestruturação do trabalho
remunerado e não-remunerado, a crescente vigilância e o encarceramento nas
prisões. E por isso, é necessário o feminismo além das fronteiras para tratar das
injustiças do capitalismo global (2008, p. 430).
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A globalização contra-hegemônica, diz Santos (2007), em linhas gerais, centra-se no combate contra a exclusão
social, um combate que, em seu sentido lato, inclui não só as populações excluídas, mas também a natureza. A
erradicação do fascismo social, e que a sociedade civil incivil surja como a base social privilegiada do
enfrentamento contra-hegemônicos.
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inteseccionais é preciso atenção ao impasse epistêmico que carrega, que é reconhecer não ser
uma verdade totalizante capaz de ser aplicado a todas os contextos socioculturais, como
campo analitica teórica, porque nem todos as organizações sociais se compreender estrutura
por categorias sociais de gênero, classe, raça ou discriminação sexual.
A exemplo, os trabalhos de Ifi Amadiume (1987) e Oyeronke Oyewumi (1978), Jìmí
O. Adésina (2010) reapropriam do conceito de sociedades de “matrifocality” ou “
matricêntrica” para ilustrarem seus pontos de vista, no caso, em linhas gerais, referindo-se à
família matrifocal como agregados familiares chefiados por mulheres, com significados de
valor heurístico como categoria sociológica, assumidamente como o princípio organizador da
sociedade. Ifi Amadiume ( 1987), ao estudar a dinâmica social de Nnobi ( Leste da Nigéria),
demonstra embora dual-sexo, é predominantemente matricentric, presente em seu mito de
origem, na produção da economia, na governança, a maternidade compartilhada, a rede de
parentesco decorre da maternidade compartilhada “ as primeiras filhas, as mulheres estéreis,
as viúvas ricas, as esposas de homens ricos e as mulher e comerciantes bem sucedidas tomem
em esposa” ( 1987, p. 31- tradução minha) um fenômeno que ela chama de “maridos
femininos”. A herança da terra vai para os filhos, assim como para as “filhas masculinas”, o
direito de uma mulher ao acesso a terra e a produzi-la no lar do seu marido é garantido por ter
um filho ou uma filha do sexo masculino. Oyewuni (2006), lembra que a categoria “marido
feminino” não se pauta na anatomia da masculinidade, nem é fixa num corpo dicotomizado.
Oyeronke Oyewuni, ao formular a pergunta “o patriarcado é uma categoria
transcultural válida?”, demonstrou, em seu livro de 1997, The Invention of women, que nem
todos os sistemas de poder entre homens e mulheres têm como estrutura hierarquia e
subordinação justificada na “bio”logia dos corpos, nos dualismos da diferenciação sexual, da
opressão e força, da cultural e natureza, haja vista que nem sempre o sistema organizativo de
sociedade é fundado e estruturado no gênero institucionalizado. A partir da sociedade Yorubá
do Sul oeste da Nigéria, desenvolveu um estudo notável conferindo um instigante insight de
ruptura ao universalizar da experiência da maternidade nuclear, estruturada na ideia de casal,
tendo uma esposa subordinada, um esposo patriarcal e filhos/as, ou seja, uma família conjugal
ocidental-cristã. Na sociedade Yorubá dá-se importância à cronologia de nascimento, à
linhagem de parentesco na linguagem e na organização social, o rol identitário que definirá a
posição da mulher é sua condição de mãe, pois o útero dos antepassados é o centro do
privilégio societal, símbolo de referência no qual gravita todo uma estrutura ginecrática. A
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Em 1995, Boaventura de Sousa Santos falava do Sul, mas não de Epistemologias do Sul, e foi posteriormente
re-elaborado em várias publicações. Esse conceito tem suscitado vários debates posteriores. (SANTOS, 2003,
2004, 2006). As Epistemologias do Sul conjugam a Sociologia das Ausências, a Sociologia das Emergências e o
Trabalho da Tradução Intercultural e a Ecologia de Saberes.
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Santos (2005, p. 28-29) contextualiza o conceito filosófico de Ernest Bloch, para reforçar a ideia de que o
pensamento ocidental é dominado pelo conceito de Tudo ou Nada. Bloch introduz novos conceitos: o Não e o
Ainda-Não.
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Referências
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Epistemologia do Sul. Coimbra: Almedina 2009.
MOHANTY, Chandra Talpade. Bojo los ojos do Ocidente: academia feminista y discursos
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