Luciete de Cássia Souza Lima Bastos
Luciete de Cássia Souza Lima Bastos
Luciete de Cássia Souza Lima Bastos
EDUCAÇÃO:
culturas das infâncias e identidades em construção no quilombo
Sambaíba, Caetité-BA/Brasil
Belo Horizonte
2018
Luciete de Cássia Souza Lima Bastos
EDUCAÇÃO:
culturas das infâncias e identidades em construção no quilombo
Sambaíba, Caetité-BA/Brasil
Belo Horizonte
2018
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 376.742
Ficha catalográfica elaborada por Rogério da Silva Marques - CRB 6/2663
Luciete de Cássia Souza Lima Bastos
EDUCAÇÃO:
culturas das infâncias e identidades em construção no quilombo
Sambaíba, Caetité-BA/Brasil
_________________________________________________________________________
Profa. Dra. Magali Reis PUC Minas - (Orientadora)
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Amauri Carlos Ferreira - PUC Minas - (Banca Examinadora)
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Carvalho de Santana - UNINASSAL - UNIBAHIA - (Banca
Examinadora)
_________________________________________________________________________
Profa. Dra. Lisandra Ogg Gomes - UFRJ - (Banca Examinadora)
_________________________________________________________________________
Prof. Dra. Vânia de Fátima Noronha Alves - PUC Minas - (Banca Examinadora)
SER GRATO...
É imensamente difícil ser grato.
Dizer “muito obrigada” a quem tanto nos ajudou no percurso desta tese e em toda
nossa vida soa desproporcional ao reconhecimento.
Ignorando as críticas acadêmicas, sou grata a DEUS, todo poderoso, que amenizou a
dor causada pelos momentos de incapacidade para produzir, em razão de doenças
psicossomáticas, e a vencer os obstáculos insistentes e inexplicáveis apostos no final deste
percurso.
Receosa de ser injusta ao particularizar agradecimentos...
Sou grata a todas as meninas e meninos do quilombo e aos meus alunos da graduação
e da especialização, razão desta tese, amor que levarei por toda a minha vida.
Às mulheres responsáveis pela minha educação na pessoa de minha mãe (in
memoriam), mulher aguerrida que me ensinou a lutar pelos meus sonhos, a tudo fazer com
amor e ética e a me posicionar, frente aos obstáculos, substituindo a letra D pela letra R.
Desistir jamais. Resistir sempre.
À minha família. Em primeiro lugar ao meu esposo, José Homero, por entender
minhas ausências, suportar minhas rabugices e meus conflitos e compreender, ora meus
silêncios insistentes, ora meus blá...blá....blás, sem sentido para ele. Aos meus filhos Homero,
Felipe e Gabriel pelo incentivo, mesmo a distância, com mensagens no what’s app “Mãe você
consegue, sempre consegue vencer os desafios que se impõe!”
À minha netinha Maria Clara, ainda no berço humano que a forma, mas que me deu
energia para terminar esta escrita.
À Danielle, minha nora, sempre presente com palavras carinhosas e encorajadoras.
À Dona Bela, uma mãezona que me recebeu em seu lar, cujo carinho muitas vezes
amenizou a distância e a ausência do meu aconchego, foram oito meses, com intervalo em
fins de semana quinzenais, e três anos de idas e vindas. Além de contribuir com seus relatos
para que pudesse melhor compreender o cotidiano de Sambaíba. “Fia, cê num fica maluca de
tanta leitura? Tem hora que cê tá aí. Tenhu pra mim que é bom pará e preciá o tempu, adispois
cê continua...”
Também a muitas pessoas da comunidade que compreenderam o meu projeto e
ajudaram, fornecendo informações preciosas, deixando que eu compartisse de suas histórias
de vida e de sua labuta diária. Em especial ao Sr. José Pedro, seu irmão Silvano e sua esposa
dona Maria, minha primeira interlocutora em Sambaíba, ao Sr. Domingos e dona Laurinda,
que me apresentaram muitos objetos antigos de trabalho e também vasilhas e utensílios dos
“antigamente”. Também ao Sr. Joel e dona Amezina, estes uma família que adotei/adotaram-
me por lá, sempre com um cafezinho quente e um beiju da hora para “me distrair”.
À Secretaria de Educação do Município na pessoa da Secretária Municipal de
Educação, Rosemária Juazeiro e, posteriormente, Iamara Junqueira, por autorizarem minha
presença nas escolas.
Aos professores da Escola Municipal 25 de Dezembro, aos quais agradeço na pessoa
do diretor Genilton Gordo, que também facilitou meu trânsito entre os moradores. E também
à secretária, à merendeira e as pessoas do serviço geral que aceitaram minha presença,
comendo com as crianças e zanzando com elas dentro da escola em “malinesas”. Inclusive ao
motorista da coordenação, com o qual ia e vinha do município ao quilombo quando possível.
À coordenadora da Escola Municipal 25 de Dezembro, Letícia, pelo apoio durante o
trabalho de campo no interior da escola, na realização das rodas de conversa, oficinas e
entrevistas, também por requisitar minha ajuda nas comemorações escolares, uma negra de
fibra e competente, que muita falta fez para as crianças.
Também aos profissionais da Escola Municipal Prof.ª Emiliana Nogueira Pita
(EMENP), da diretora ao zelador por me permitirem e facilitarem a convivência com as
crianças quilombolas nas salas de aula e nos espaços livres.
À bolsa do Programa de Apoio à Capacitação de Docentes e Técnicos Administrativos
da UNEB - (PAC-DT), sem a qual não poderia cursar o doutorado.
Ao meu Departamento na pessoa dos Diretores Ginaldo Araújo, e posteriormente,
Reinaldo Silva e em especial ao colegiado do Curso de Letras, ao qual pertenço, por
facilitarem a minha licença.
A todos os professores doutores do Programa de Pós-Graduação da PUC Minas:
Simão Pedro Pinto Marinho, coordenador do programa, com o qual aprendi, a fórceps, a
interagir via EaD; Carlos Roberto Jamil Cury, por me apresentar a História da Educação com
tantos pormenores e precisão, que somente uma memória privilegiada é capaz de propiciar,
Lorene dos Santos, com a qual mantive debates interessantes; Maria Auxiliadora Monteiro
Oliveira, com a qual nunca consegui entrar em acordo, mas com ela aprendi a diferença entre
marxista, marxiano e marxólogo, mesmo que para este fim tenha me feito cair, literalmente,
da cadeira; e Teodoro Adriano Costa Zanardi por me resgatar o orgulho da docência. A todos,
em conjunto, por buscarem fazer do programa de Pós-graduação em Educação um programa
de excelência. No meu coração, haverá sempre um lugarzinho salpicado de carinho para
vocês.
Especialmente, à Profª. Drª Magali Reis. Primeiro, por ser apaixonada pela infância
deixando-se transbordar de afeto nas pesquisas e textos que realiza. Em segundo, pela
generosidade em me acolher como orientanda em março de 2018, reta final para defesa, em
razão do desligamento de minha orientadora titular do Programa, pois compreendo como é
difícil assumir um trabalho realizado por outra pessoa, cuja área de conhecimento difere da
nossa. A você meu reconhecimento.
Aos professores doutores, Amauri Carlos Ferreira (PUC Minas) e Luiz Alberto
Oliveira Gonçalves (UFMG), por participarem de minha qualificação, oferecendo valiosas
contribuições, que acolhi, tornando este texto mais completo.
Aos colegas de doutorado, em especial aos companheiros mais próximos, Ailton Reis,
Paula Andréa e Simei Andrade, irmãos abençoados, por dividirem comigo as conversas, as
experiências durante as idas e vindas a Belo Horizonte e momentos difíceis em que trocamos
incentivos on-line.
Às meninas da Secretaria do PROPPG/PPG: Valéria das Dores Ermelindo, secretária,
e Sirlane Silva Rodrigues, auxiliar administrativo, pela competência e disponibilidade em
dirimir nossas dúvidas com atenção e carinho.
À Lucinha, que faz a limpeza de minha casa, semanalmente, com tanta dedicação e
que tudo fazia para evitar que seu trabalho perturbasse meus estudos.
À minha afilhada, Vanessa, uma garotinha de dez anos, que se compadecia de minhas
dores no pescoço e aparecia, de quando em vez, “Dinda, vou passar o dotorzinho no seu
pescoço, e fazer uma massagem que aprendi na internet, a senhora vai ficar boazinha”.
Obrigada, minha linda.
Às amigas, tantas graças a Deus, por orarem por mim neste final de tese, foram
testemunhas de meu sofrimento por me tornar, sem o desejar, escudo entre e o certo e o certo,
muito mais difícil do que quando se é colocado entre opostos.
Pode parecer estranho e incompreensível para muitos, mas para mim tem todo sentido,
a Aisha, Bento, Chica, Lady Mel, Max, Mike e Scott (in memoriam) por tornarem menos
cansativos e estressantes meus dias de estudo, trazendo a alegria necessária para que eu
prosseguisse.
Propositalmente, deixei para agradecer ao final a professora Drª. Sandra de Fátima
Pereira Tosta, minha orientadora titular. Devo muito a ela, ensinou-me um novo olhar para o
Outro. A despir de conceitos cristalizados e a exercitar a alteridade. Mas, principalmente, por
não desistir de mim e de minha pesquisa, nem mesmo depois de demitida da PUC Minas,
exemplo de responsabilidade e respeito ao educando. Apesar dos obstáculos enfrentados, sua
tranquilidade e competência mantiveram-me no curso. Atitude ética fundamental para que eu
pudesse chegar até aqui.
Se me esqueci de ser grata a alguém, perdoe-me. Aceite meus agradecimentos, mesmo
no anonimato, porque fazer para o Outro é mais gratificante do que receber.
The present research is aimed at understading how quilombola children from Sambaída, in
the county of Caetité/BA-Brasil, build their identities based on the representation they have of
themselves, created in the familiar day-to-day life, in the community and school environment,
so that it strengthens them, or not, to face the social segregation imposed on them outside the
quilombo. It is qualitative research with an ethnographic basis, in which the goal was to
expand the children’s understanding of the various cultural expressions, constructed through
the interactions with their peers, and among them and the adults in the territory. It can be said
that, in these interactions, the children were the infantile cultural agents singular to Sambaída,
considering that it is in the free spaces in their territory, which they appropriated, that their
identities are built. The theoretical background was supported by studies on ethnography,
cultures, quilomboola communities, infancies, quilombo education and identities, as well as
anthropological theories to substantiate the ethnographic act. In addition to th observation and
listening of the children with the writings on the filed notebook, other resear ch instrument
were used, such as photography, conversation circles and workshops. In these activities, the
children were heard on the meaning/significance that they attributed to drawings; magazines
cutouts; photographic records made by them and also their essay productions; which made
possible the dense and interpretative description of the dynamics of this childhood. It is
understood that the identities are built in the relationships socially established, it is for this
reason that it was also necessary to notice what the adults from the community, the ones that
live with them, in and out of the quilombo, thought of these children. For this purpose, semi-
structured interviews were performed with a few parents, grandparents, members of the
community and professionals from two schools. The achieved results of the data analysis
indicate relationship difficulties between quilombo children and the others with whom they
interact outside of the community, as well as between them and the teaching staff within and
without their territory. Another finding was that the quilombo children also use prejudiced
expressions to offend each other in moments of confrontation, which is the result of an
education forged by Eurocentric, colonizing, intolerant and racist thoughts, with which they
have been built in school. The teachers, even though they present an argument of racial
equality development, in reality, they demonstrate how unprepared they are to face these
everyday situations of discrimination, separation, plundering and marginalization, because
they were formed by the same school of segregation. Therefore, they act as though reinforcing
this situation.
Key-words: Education. Ethnography. Childhood of Sambaíba. Identities. Segregation.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 5 - Quilombo de São Gonçalo (1769): I -Casas de ferreiro; II - Buracos por onde
fugiram; III - Horta que tinham; IV- Entrada com 2 fojos; V-Trincheira de altura de 10
palmos; VI - Parede de Casa; VII - Casa de pilões; VIII - Saída com estrepes; IX - Matos; X
................................................................................................................................................ 176
FIGURA 6 : Quilombo de um dos Braços da Perdição: I - Casa do Rei; II - Casa do Tear; III -
Aguada com uma bica; IV - Algudoais; V - Mandiocal; VI - Matos. (descrição conforme
fonte)....................................................................................................................................... 176
FIGURA 7 - Quilombo dos Santos Fortes: I - Casas do quilombo; II - Roça que se plantou; III
- Petipé de [ - ] 5 passos, -Pelipé: escala de reduções utilizada em mapas e cartas. (descrição
conforme fonte) ...................................................................................................................... 177
FIGURA 8 - Quilombo chamado Rio da Perdição: I-Casa do Concelho; II - Casas do Tear; III
- Morro do tigre; IV - Morro do Uribu; V - Roça; VI - Matos. .............................................. 177
FIGURA 16 - Distribuição espacial da população segundo cor ou raça preta e parda- Censo
Demográfico 2010 .................................................................................................................. 279
QUADRO 3 - Representativo dos escravos inventariados em Caetité – 1860 a 1888 .......... 198
QUADRO 15 - Demonstrativo da matrícula dos alunos por ano e sexo em 2014 ................. 351
FOTO 6 - Árvore Sambaíba (curatella americana): macro do caule e das folhas ................. 200
FOTO 24 - O lugar onde vivo – autoria de Tamires Costa de Souza (2015) ......................... 221
FOTO 25 - Bitu ...................................................................................................................... 226
FOTO 33 - Separação da massa em grânulos para farinha e goma para o polvilho .............. 243
FOTO 36 - Crianças descascando mandiocas com facas afiadas e pontiagudas .................... 247
FOTO 43 - Experiência com bonecas baseada na pesquisa do casal Clark ........................... 368
FOTO 44 - Experiência com bonecas baseada na pesquisa do casal Clark ........................... 368
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 49
PARTE III CRIANÇAS NEGRAS E EDUCAÇÃO: UMA LUTA CONSTANTE ....... 251
INTRODUÇÃO
A investigação exige “[...] se saber quem se é, quem se quer ser e como e quem são os
outros” (VIEIRA, 1999, p. 140). Para esta tese foi necessário considerar ambas as dimensões
da relação adulto/criança, tanto o saber adulto (meu e de meus pares), que é legitimado pela
ordem social, como aquele resultante da experiência da própria criança. Sabemos que a
criança deseja aprender para ser aceita e aprovada pelos adultos, mas é também pelo saber que
ela passa a conhecer melhor o mundo à sua volta. “O acesso ao saber é, assim, o caminho pelo
qual crianças e adultos se tornam capazes de entender o mundo em que vivem,
compreendendo suas contradições e seus limites” (GUSMÃO, 2012, p. 171).
É importante relativizar nossas crenças, convenções e valores; desnaturalizar a
infância e compreendê-la como uma construção da vida em sociedade para além de suas
características físicas, biológicas e psicológicas. Nesse sentido, “a criança não é uma versão
reduzida do adulto nem este uma reprodução ampliada da criança [...] Precisamos deixar de
olhar as crianças como “adultos em potencial”, como alguém que ainda virá a ser” (NUNES,
1997, p. 4), tampouco podemos ir em direção ao extremo oposto e considerar a criança como
um ser humano diferente. Ela é um ser humano como eu sou e, ao mesmo tempo outro, no
que vivencia a realidade da infância que lhe é peculiar com relação ao mundo adulto ao qual
pertenço, no qual a imaginação cede lugar ao concreto e ao real, mas não por completo.
Essa visão acostumada e convencional acaba por nos cegar, impossibilitando uma
perspectiva mais aberta e livre dessa relação. Nesse sentido, “a reflexão permanente sobre o
outro exige, assim, pensá-lo como algo que nos inquieta e nos surpreende, mas é preciso
deixar-se surpreender e querer ser surpreendido” (GUSMÃO, 2012, p. 176), assim como é a
ação de ensinar e aprender - uma via de mão dupla, de um lado há aquele disposto a partilhar
seus conhecimentos e, de outro, alguém desejoso de conhecê-los; se uma das duas posições
falha, a aprendizagem não se realiza, ou se realiza incompleta e/ou deficiente. Assim como
educar exige ação/reação, também a pesquisa demanda desafio/desejo de realização.
Pesquisar a criança, em particular a criança quilombola e a sua infância, constitui uma
incógnita que me desafiou a pensá-la, assim como outras pesquisas “[...] desafia nosso
conhecimento e nos coloca diante da circunstância de ter que admitir que não sabemos tudo,
não detemos todo o conhecimento disponível sobre a realidade e as coisas. (GUSMÃO, 2012,
p. 176).
Venho falando das dificuldades de se pensar e de se pesquisar as crianças. Mas a que
criança estou me referindo?
50
Esta tese é sobre crianças quilombolas, suas aprendizagens dentro e fora da escola.
Procurei, nestas páginas escritas, elaborar uma descrição densa das culturas da infância
quilombola similares e, simultaneamente, diferentes de outras culturas da infância brasileira
em sua relação com a cultura dos adultos.
Para este estudo selecionei as crianças do território quilombola de Sambaíba em seus
contextos: na Escola Municipal 25 de Dezembro (única dentro de um território quilombola no
município) e espaços livres1 onde as crianças se reúnem para conversar, brincar e trabalhar e a
Escola Municipal Professora Emiliana Nogueira Pita (para onde migram as crianças após
concluírem o 5º ano). O referido quilombo situa-se no Distrito de Caldeiras, Município de
Caetité, Alto Sertão da Bahia, Brasil. As crianças participantes da pesquisa possuem idade
que varia entre 05 e 14 anos, estudantes da Educação Infantil ao 7º ano do Ensino
Fundamental.
Cenários estes interligados e, às vezes, sobrepostos em razão da coincidência de seus
protagonistas dentro e fora dos espaços institucionalizados. Assim como em outras sociedades
e temporalidades, a escola e os espaços livres constituíram/constituem loci privilegiados de
socialização e formação de identidades, consequentemente, de aproximação e observação das
crianças e de suas experiências.
Para esse percurso, considerei dois tipos de educação: aquela formal que se realiza na
escola e a que se realiza no “mundo”2. Enquanto a escola é uma agência social, símbolo de
convivência controlada, espaço delimitado, regras instituídas, tempo cronometrado e criada e
organizada, tradicionalmente, para formação e transmissão de conhecimentos sistematizados,
assim como para disseminar seus costumes e valores dos quais dependerão as estratégias
abordadas na formação da cultura que deseja formar; a educação nos espaços livres, fora das
paredes da escola é mais flexível, predomina a fluidez, a informalidade, a organização ocorre
segundo interesse das crianças, elaboram brincadeiras mistas com meninos e meninas3, com
regras determinadas consoante o interesse de seus pares. Além das atividades culturais da
infância, próprias a elas, essa educação se processa, também, em outras atividades culturais
como reuniões na comunidade, trabalho, festas religiosas e sociais, onde as idades se
misturam.
1
A expressão espaços livres corresponde às estradas, ao campo de bola, a quintais e terreiros, leito seco do rio e
à mata.
2
Explicita referência a Paulo Freire (2003), a palavra ‘mundo’ será substituída, neste texto, pela expressão
“Espaços livres”.
3
Nesta tese, para maior leveza do texto, os termos masculinos serão utilizados de forma genérica, referindo-se a
ambos os sexos. Assim, quando escrever menino, entendam: menina e menino, como quilombola: homens e
mulheres.
51
[...] a construção social e histórica da raça em nosso país e que nos acompanha com
contornos diversos desde os tempos coloniais, quando a diferença percebida pelo
colonizador não foi apenas de costumes, credo, forma de vestir, de guerrear, de
comer, entre outros. Foi, também, a forma como a corporeidade se apresentou. Uma
corporeidade marcada por sinais diacríticos que revelam diferenças. Uma
corporeidade sobre a qual as relações de poder imprimiram hierarquias e marcas de
uma suposta inferioridade. (LABORNE, 2014, p.137)
4
Embora a historiografia tenha enfatizado o quilombo de Palmares, e nesta tese inclusive, tomando-o como
referência de resistência na luta pela terra e afirmação da identidade negro/africana no Brasil, há que se
lembrar de outros quilombos, espalhados por diferentes espaços do território nacional que, também, deixaram
suas marcas de luta por seus direitos, aqui sito o exemplo daqueles situados em Minas Gerais: Quilombo do
Ambrósio, Campo Grande e Caraça.
55
5
As crianças oriundas do quilombo formam grupos específicos, distanciados das demais crianças, vindo com
elas interagir somente depois de um, ou mais, anos de convívio.
6
Escola nucleada é um modelo de organização que consiste em reunir várias escolas ou salas ditas “isoladas” e
multisseriadas, agrupando-as em uma única escola nos distritos ou comunidades que reúnam maior número de
pequenas comunidades em seu entorno. Implantado nas séries iniciais do Ensino Fundamental nos estados do
Sul e do Sudeste do Brasil, na década de 70, tendo como base o modelo norte-americano. Nas regiões Norte e
Nordeste a implantação foi feita após a LDB 9.394/96. (BRASIL, 1996).
57
COTIDIANO FAMILIAR
Para atingi-lo, fez-se mister buscar atender a cada objetivo específico que, em seu
conjunto, possibilitou ter uma compreensão ampliada e profunda do problema em questão:
A definição dos objetivos foi crucial para a indicação da pesquisa qualitativa como
referência para esta tese, assim como a etnografia como metodologia e teorização. Essas
definições não significaram uma simplificação do percurso para o conhecimento científico
sistematizado. Pelo contrário, sugeriram um compromisso com uma pesquisa de campo
centrada na relação teoria/prática que demandou profundo conhecimento das teorias que
embasam o saber/fazer no campo. A complexidade de uma escrita, que tem por tarefa
amealhar fragmentos de um diário intimista e transformar a subjetividade numa episteme que
sirva a novos pesquisadores, demanda cuidados. Ademais foi preciso ficar atenta ao
compromisso ético com os participantes que, por sua especificidade, exigiu maiores cuidados
Importante tributo com respeito à ética e as contradições que envolvem a pesquisa
com crianças, Sonia Kramer (2002) deu-se no texto Autoria e autorização: questões éticas na
59
pesquisa com crianças, no qual escreve que, no exercício de sua profissão, tem se defrontado
com vários questionamentos que permeiam o movimento de aproximação e de afastamento,
necessários à realização da pesquisa nas ciências humanas e sociais, que consistem sempre
numa oscilação entre a objetivação e a subjetivação. Do diálogo com colegas e orientandos,
emergiram/emergem questões polêmicas referentes à ética na pesquisa com crianças, pois
“quando trabalhamos com um referencial teórico que concebe a infância como categoria
social”, considerando-as como “cidadãos, sujeitos da história, pessoas que produzem cultura,
a ideia central é a de que as crianças são autoras”, embora tenha consciência de que elas
necessitam de cuidado e atenção. Outra questão sobre a qual reflete é o desejo de que “a
pesquisa dê retorno para a intervenção”, mas, ao mesmo tempo, considera que essa ação pode
colocar as crianças em risco. Noutras situações, as crianças já estão vulneráveis, em situação
de risco, e “não denunciar as instituições” ou os responsáveis “pelo sofrimento imposto às
crianças nos torna cúmplices”. Comungo com o pensamento da autora, pois estas são decisões
complexas, que exigem prudência, conhecimento profundo e mais estudos.
Outra reflexão que considero fulcral é aquela em que a pesquisadora nos chama a
atenção para a contradição em utilizar um referencial teórico que ressalta as crianças como
atores sociais e sujeitos produtores de cultura e, simultaneamente, têm sua autoria negada ou
encoberta pelo anonimato. Se por um lado, o anonimato apresenta-se como positivo, ao
proteger a criança em situação de risco, expropriada de bens materiais e culturais, por outro,
impediu que essa mesma criança tivesse uma identidade marcada na pesquisa, que a
considerou como sujeito e que supostamente pretendeu ouvir sua voz. A criança participante
conta sua história, ri, brinca, revela segredos e vontades, emociona, faz denúncias, e mesmo
considerada autora “pelo marco referencial que orientou a pesquisa”, tem a autoria refutada
(KRAMER, 2002).
Significativo, também, para esta pesquisa, por se tratar de um contexto quilombola, foi
estar atenta às diferenças culturais entre sociedades e tempos. Na maioria dos países do
Continente Africano, “um velho que morre é uma biblioteca que se queima”, porque nessas
culturas os idosos detêm a história do grupo, são os guardiões da sabedoria do povo.
Tradicionalmente, possuem um grande saber e poder. “A maldição de um velho sobre um
jovem significa a morte” (EZÉMBÉ, 2009, p. 113). A noção de indivíduo não tem sentido
para essas comunidades, o indivíduo não possui valor por si só, não tem existência própria,
existe em função da sociedade. Assim, a criança interessa enquanto pode interessar à
sociedade. “Ser criança, jovem, adulto ou velho, é mais ocupar uma posição no espaço social
e institucional que manifestar um estado dado de maturação” (EZÉMBÉ, 2009, p. 112).
60
7
Sujeitos em construção: refiro-me à construção da pessoa cidadã e não a um sujeito que não é e que esperamos
venha a ser.
61
percorrer, exatamente por ser novo, provocou medo. Veredas instigantes, mas também
encruzilhadas em que as opções são inumeráveis e, manter-me na senda escolhida, exigiu uma
luta constante comigo mesma para resistir aos desvios não menos interessantes.
Se ainda não há um corpus teórico hegemônico ao qual pudesse me reportar, havia um
conjunto de teorias afins e diferentes formas de se pesquisar já testadas, ou em
desenvolvimento, não só na Antropologia, mais recente, mas também em outras áreas do
conhecimento, que atestam a pertinência do tema e sua vitalidade, o que requereu uma análise
interdisciplinar, interfaces em que o diálogo, assim construído, pode sustentar a minha
pesquisa sobre/com as crianças.
O tempo de agora não é dos compartimentos lacrados, de disciplinas estanques, de
conhecimentos açambarcados, em que “os setores especializados são compartimentos e se
fecham em um domínio, muitas vezes delimitado de maneira artificial, ao passo que deveriam
estar unidos em um tronco comum e se comunicar entre si.” (MORIN, 2005, p. 149). Penso
como o teórico, é tempo de diálogo, de compartir saberes e de aprender novos conhecimentos.
Um quadro que vem, paulatinamente, mudando ao viabilizar a permuta entre os
conhecimentos de diferentes disciplinas em busca de resultados mais positivos. Esses temas
vêm sendo discutidos em diferentes áreas do conhecimento e a Antropologia e a Educação
iniciaram um diálogo que vem dando certo para pensar uma educação para além da
interdisciplinaridade realizada com a Pedagogia a Psicologia, aí se incluindo a Psiquiatria, a
Sociologia, a Filosofia e as Artes, trata-se de olhar a Antropologia pelo viés da Educação e
vice-versa na formação da pessoa.
Por estas razões mencionadas, antes de adentrar às discussões específicas sobre as
crianças quilombolas, sua vida e relações estabelecidas entre seus pares, entre elas e as
crianças fora do quilombo e entre elas e os adultos, em suas dimensões e especificidades,
como sujeitos sociais e atores culturais, foi preciso compreender como o conceito de criança e
suas infâncias vinha sendo construído nos diferentes campos do conhecimento: o da
Sociologia, da Educação e da Literatura, em especial, o da Antropologia.
Busquei apoio na teoria da Sociologia da Infância, que defende as crianças como
protagonistas, em oposição à compreensão das concepções tradicionais que as compreendem
nos processos de socialização, como receptoras passivas do saber que apenas o adulto possui.
Agrego, ainda, as concepções da antropologia da criança que possibilita ampliar a questão ao
aprofundar a dimensão cultural da infância, buscando-nos “fazer capazes de entender a
criança e seu mundo a partir do seu próprio ponto de vista” (COHN, 2005, p. 8). Esses dois
campos mantêm diálogo permanente com a Educação, seja aquela formalizada numa
62
instituição, seja aquela que se constrói no dia a dia na convivência familiar, nos grupos
infantis, nas relações com a comunidade, por meio da fala/escuta, do observar/entender, do
observar/entender/repetir/recriar/praticar. Esses campos assim conjugados, em frequente
intercâmbio de conhecimento, nos emprestam ferramentas teórico-metodológicas que
possibilitam exercitar uma análise das infâncias a partir do ponto de vista das próprias
crianças, de suas representações sobre os lugares onde vivem, sobre o que pensam de si, sobre
os adultos com os quais convivem e a respeito do mundo.
Em razão dos resultados promissores que a interdisciplinaridade viabiliza foi que
considerei necessário dialogar com diversas disciplinas, incluindo também a literatura.
Embora aprofunde minha discussão na Antropologia e na Educação em diálogo com a
Sociologia e a Literatura, pode ser possível que tenha, em algum momento, lançado mão de
outros campos de saber que não façam parte do quarteto. Se meus estudos, nas mencionadas
disciplinas, indicam a existência de diferentes infâncias não é de surpreender que, mesmo
num contexto menor como o de Sambaíba, haja também infâncias plurais.
Não pretendi fazer um mapeamento exaustivo, completo e audacioso sobre o tema,
mesmo porque as publicações que têm o termo criança e/ou infância em evidência são muito
numerosas, principalmente em Educação. Ative-me às crianças quilombolas. Por isso, fiz um
recorte que me pareceu atender ao propósito desta pesquisa: criança e quilombo.
Busquei dar um formato didático a este texto para melhor compreensão do percurso,
por isso dividi o texto em quatro partes e cada parte em capítulos:
No primeiro capítulo, fiz uma leitura sobre mim e o meu contexto, por entender que
toda pesquisa é o resultado da visão do pesquisador sobre o mundo. Foi necessário
compreender a mim mesma antes de qualquer possibilidade de ler e buscar compreender o
Outro e seu mundo, principalmente quando este Outro é o que não sou, ou fui, e nem meu
estar no mundo: adulta, branca e minha infância citadina, versus criança, negra e sua infância
quilombola.8 No segundo, mapeio a construção/evolução/adensamento do conceito de
crianças/infâncias nas perspectivas da Educação, da Sociologia, da Literatura e da
Antropologia do século XX aos nossos dias, período de referência em razão do surgimento do
interesse da pesquisa com criança nessas áreas, antes dominada pela Medicina, pela
Psicologia e pela Pedagogia. Inicio pela Educação, por entender a sua importância na relação
com as demais. Ao tempo em que discuti algumas categorias importantes a esta tese. No
terceiro, Nas pegadas da tese: desenhando o caminho, faço um percurso teórico sobre a
etnografia que serve de aporte a esta tese. Nos dois capítulos posteriores contextualizo a
pesquisa e situo, geograficamente, o território quilombola de Sambaíba, descrevo sobre seus
moradores e suas lutas, atividades econômicas desenvolvidas, sobre o lazer, religiosidade,
crenças e costumes. Nos capítulos da parte três, abordo sobre a educação do negro no Brasil,
do período Colonial até os dias atuais, por entender a necessidade/importância de
compreender as conquistas das crianças na educação institucionalizada, também escrevo sobre
a educação quilombola e a educação das crianças quilombolas de Sambaíba. Na parte quatro
aprofundo a discussão sobre o ponto nevrálgico desta tese: o protagonismo da infância de
Sambaíba, seus saberes e aprendizagens nos espaços livres e na escola, sobre as dificuldades
das crianças para enfrentar a discriminação e a construção de sua identidade, em constante
metamorfose9.
Encerro, com o texto: O espelho sou eu? com a certeza de que uma pesquisa não
finda, antes incita novas investigações.
8
Desejo desde o início situar a minha criança em sua especificidade: quilombola, por entender que esse adjetivo
é uma categoria muito importante para o contexto da pesquisa.
9
“Metamorfose” termo tomado de empréstimo a Antônio da Costa Ciampa (1984) sobre o qual discutirei mais
adiante.
64
Assim, iniciei a escrita desta tese, com a certeza de que “[...] poesia e ciência são
entidades que não se podem confundir, mas podem e devem deitar-se na mesma cama”.
(COUTO, 2011, p. 60).
65
10
PARTE I:
Achadouros das infâncias:
da pesquisadora e das crianças
Da ‘busca de quem somos’,
subjaz a conservação das tradições
como memórias vivas de um povo a que pertencemos
e, nesse sentido,
a procura de identidade assenta
no estabelecimento de laços afetivos com o passado,
porque ‘Aqui ao leme sou mais do que eu […]’(PESSOA, 1972)
10
Woforo dua pa a - Símbolo de apoio, cooperação, incentivo e encorajamento. Da expressão: Woforo dua pa a,
na yepia wo. Quando você subir a boa árvore, receberá um empurrão. Trabalhando por uma boa causa, você
obterá o apoio necessário. Em sentido mais amplo, significa Reflexão coletiva dos movimentos sociais, do
processo social de foro mundial e das perspectivas e estratégias para o futuro, garantindo a sua contribuição
para a realização eficaz para um mundo possível e urgente para todos nos. (ZEIGER, 2007d, tradução nossa)
67
11
11
Ananse (aranha) é uma personagem bastante conhecida nos contos folclóricos africanos. Conta a lenda que
havia um mundo antigo, onde não havia histórias e, por isso, viver ali era muito triste. Ananse, um homem
conhecido por saber fazer belas teias, descobriu que no céu Deus, o todo poderoso do universo, guardava um
baú cheio de histórias. Teceu uma teia e por ela subiu, pedindo o baú para que pudesse contar as histórias para
a humanidade e torná-la feliz. Deus propôs um desafio a Ananse que o cumpriu. Ele, então, trouxe o bau para a
terra. Ao chegar, abriu o baú e as histórias fugiram e se espalharam pelo mundo. Ananse é a proprietária do
espaço e dos muitos caminhos da teia. Ela é chamada frequentemente de malandro (trickster). Ananse
ntontan (teia de aranha), símboliza a sabedoria, a criatividade, o engenho e as complexidades da vida.
(ZEIGER, 2012a)
12
Fragmento de As metamorfoses do vampiro de Charles Baudelaire.
68
Há, nesse poema de José Régio, uma negativa ao apelo social, condicionado por regras
e imposições. A voz instaurada é resoluta, indignada e, por vezes, irônica. Professa a livre
escolha, por se considerar um ser em construção, opondo-se ao processo existencial. Ela
clama ser ouvida por pessoas na/pela civilização, num exercício de busca pela autoafirmação.
Seu interlocutor é plural e indiferente. Rejeita a voz exterior de comando que,
insistentemente, diz: “vem por aqui”. Recusa-se a ser conduzida por caminhos anteriormente
trilhados e opta por obedecer às próprias escolhas. Compreende que o seu caminho é
construído no movimento de seus passos. Alguns preferem aderir à multidão, deixando-se ser
conduzidos pela maioria que acredita deter verdades, perdendo a consciência de si mesmos.
Se loucura ou se cansaço, não sei, sei que vou por onde me levam meus passos.
A ironia reflete seu olhar cansado sobre o mundo, em razão de enxergar o cindir de
sua existência, simultaneamente, desperta para a responsabilidade que a consciência da
liberdade lhe impõe, nesse sentido, opõe-se ao apelo da sociedade que o obriga à convivência
com homens desprovidos de consciência e que, por essa razão, consideram-se detentores da
verdade. O poeta quer distância da demarcação utilizada pela maioria, no trajeto comum,
como se pudesse relativizar a humanidade ao “criar desumanidade”; reforçando o caráter
opositor de seu trajeto, que corresponde àquele do homem no mundo, que se faz no momento
69
em que caminha. Assim a consciência o humaniza; em oposição aos desumanos que negam o
princípio da individualidade e se entregam a normas e leis (pré) estabelecidas por contextos
maiores. “Não acompanhar ninguém” é a principal escolha do eu poético. O menosprezo que
demonstra é pela forma como vivem as pessoas e não por elas mesmas, em obediência ao
instituído, como consequência, o desconhecimento das próprias vontades que condicionam a
perda da condição humana. (ANDRADE, 2009)
É o homem deste mundo. Consciente de haver nascido sem projeto definido, o eu
consciente está livre para agir, buscando seus próprios caminhos e seu jeito de caminhar. Não
há, pois, entre esse ser pensante e as pessoas à sua volta interesse mútuo, porque sua visão de
mundo é imparcial, diferenciado do saber dos outros que é parcial e obediente. O poeta
ironiza a percepção que têm dele, como se fosse pelo desvio e não pela norma que deveria
seguir, relativizando, destarte, as posições assumidas pelos homens, por verem a opção de sua
vida como um descaminho, enquanto para ele próprio é apenas uma opção de viver.
O poeta sabe que vive num mundo de possibilidades, o que significa dizer que possui
livre arbítrio para assumir suas escolhas, mas, embora livre dos próprios julgamentos não
consegue se esquivar do julgamento alheio. Ao atingir o nível de consciência de viver nas
possibilidades, é incontestável que assuma a responsabilidade de sua existência e segue o seu
caminho mesmo nas desventuras, pois a força é inerente àqueles que atingiram a consciência
de ser e de estar no mundo. Ele rompe com sua ancestralidade por perceber que a vida é
reiniciada a todo instante, o presente não é reafirmação do pretérito, mas experiência
inovadora e única. Se não há um caminho acabado para ser percorrido, então deve ser
edificado com as ferramentas escolhidas também pelo próprio indivíduo, porque apenas ele
tem a dimensão do que necessita para se realizar no mundo. Trata-se, sem dúvida, de uma
visão individualista, entretanto de um individualismo humanizado, na medida em que a
consciência cobra do indivíduo a sua condição de homem na essencialidade, ainda que livre,
deve agir e seguir adiante com responsabilidade.
Para aqueles que vivem em concordância com as verdades impostas, os caminhos que
lhe são disponibilizados são caminhos acabados e dispostos para eles como única
possibilidade. “Eu tenho a minha Loucura!” Loucura é, no poema, empregada na perspectiva
da relatividade e ironia, pois mesmo excluída das relações cotidianas, a consciência de estar
no mundo pode ser vista de forma positiva, porque embora o caminho do “doido” seja
sinuoso, não há submissão às regras e exigências, seu caminho é imprevisível, é a contramão
do que querem os demais. Assim é com as figuras de Deus e do Diabo, que reforçam e
relativizam os conceitos do “bem” e do “mal”, há tempos, incorporados pelos homens e
70
13
Tomada aqui no sentido de ignorar.
71
que esta relação tem para elas. Também é sobre mim, em toda a falibilidade humana para
compreendê-las, mas também é sobre/com elas. O modo como me veem, o que representa a
minha pessoa no seu espaço, qual o significado de minha presença? O que essa presença pode,
ou não, interferir no quotidiano do quilombo15? É uma tese sobre a vida, a minha e a delas,
que se revelou, cotidianamente, no tempo que durou esta pesquisa, entrelaçadas em nozinhos
de brincadeiras, caminhadas, rodas de conversas e oficinas.
Talvez este texto possa apresentar uma imagem do que sou e do que faço e do modo
como me sinto em relação a ambos. Creio que se perguntarão como é que cheguei a esta
pesquisa e quais as decisões que, ciente ou não, a ela me conduziram. Tentarei apresentar, em
síntese, alguns dos aspectos mais importantes dessa trajetória, especialmente aqueles que têm
uma relação particular com a necessidade dessa revisão sobre a constituição da pessoa que
sou hoje, a qual não se aparta da profissional que atua na docência e na pesquisa.
Sou filha única de mãe solteira na década de 1950. Descendente de portugueses por
parte de pai, e por parte de mãe só na metade, meu avô era filho de portugueses. Minha mãe é
fruto de uma mulher incrível que passou a vida na labuta, não sei a sua descendência por parte
de mãe, sei apenas que não é portuguesa. Talvez indígena. Quando nasci, a família estava
falida. Meu avô dilacerou o patrimônio da família com prostitutas e jogo. Quando se casou
com minha avó já era viúvo e cinquenta anos mais velho do que ela, uma criança que acabara
de completar 13 anos nas núpcias. Conheceu o meu avô na véspera do casamento, aceitou o
arranjo como sina e seguiu em frente, sendo mãe de três meninas que o marido trouxe com a
bagagem. A filha do meio de meu avô, contraíra poliomielite antes dos 7 anos e fora ser filha
de minha avó aos dez. Não sei como conseguiu, mas conseguiu ser amada e respeitada pelas
filhas do marido, sem precisar usar de violência. Penso que os conquistou pela ternura e força
delicada que carregou pela vida inteira. Teve com ele mais quatro filhos, dois homens e duas
mulheres, incluindo minha mãe. Contam que, não raras vezes, era despertada de madrugada
para fazer galinhada para o marido e amigos. Quando os convidados partiam já era madrugada
alta. As crianças mais novas choravam pela mamadeira e as mais velhas corriam para o café
antes da escola. Assim, seguia o dia de vó Dita, arrastando o sono pelas pálpebras.
15
As expressões: quilombo e quilombolas, nesta tese, deverão ser lidas como remanescente de quilombos, ou
remanescentes quilombolas. Embora utilizados indiscriminadamente para evitar repetições de palavras no
texto, a compreensão do termo é atualizada.
76
Vovó ficou viúva cedo, e a luta foi grande para criar e educar os oito filhos e mais uma
menina que adotara, além de cuidar de uma irmã mais nova que veio morar com ela. Quando
nasci, em casa de vovó habitavam: tia Hilda, tia Miluca, tia Maura e minha mãe. Vim para
completar o sexteto de mulheres.
Penso que minha mãe enfrentou muitos preconceitos e falatório com meu nascimento.
Num país machista e conservador nos anos cinquenta, principalmente no estado de Minas
Gerais, numa cidadezinha do interior, ter um filho solteira era a desgraça e a desonra de uma
família. Minha avó aceitou o desafio e protegeu sua filha e neta. Com o tempo, a dignidade de
minha mãe calou a boca da população que se virou contra o irresponsável que a engravidara.
Não o culpo, era um rapaz assustado de 19 anos, recém-chegado de Portugal, sem emprego,
sem residência, sem perspectiva alguma. Desde sempre, assumiu a paternidade no verbo. Na
criação não se meteu.
Minha mãe tornou-se merendeira na escola na qual eu estudava. Tinha apenas o
terceiro ano primário, mas suas merendas eram disputadas, inclusive pelos alunos que não
pertenciam à Caixa Escolar e podiam levar merenda própria. Eu, quase nunca comia merenda
escolar, tinha vergonha, não me orgulho disso, mas sei que sentia vergonha por minha mãe ser
merendeira. Ela também era contratada para fazer jantares, salgadinhos e doces em eventos,
era uma cozinheira de mão cheia. Herdei dela essa habilidade. Nas noites, fazia vestidinhos
para crianças e mortalhas para defuntos. Minha mãe costurava as duas extremidades da vida.
Ficava ali no meio só vivendo.
As mulheres da família só concluíram o terceiro ano. Meu avô, o coronel Horácio,
dizia que mulher que ia estudar fora virava mulher “dama”, por isso abortou os estudos das
meninas. Se vivo fosse quando minha mãe mostrou barriga, teria sido tragédia consumada.
Lembro-me do uniforme azul marinho de pregas largas bem passadas, as alças subindo
sobre a blusa alva, que mostrava o logotipo do Grupo Escolar Cristiano Machado. Meus
cabelos longos eram distribuídos em duas tranças, atrás das orelhas, arrematadas por um laço
enorme de fita branca. Meia até os joelhos onde balançavam duas bolinhas irritantes, alvas
como a blusa. No pé, um sapato masculino que eu odiava, situação que piorou no colegial,
quando foi trocado por um kichute, uma coisa horrorosa, que não existe mais, benza a Deus.
Naquele tempo, alguns de nós sofríamos bullying, só não conhecíamos o nome importado,
ninguém ousava confessar. Embora saiba que minha mãe teria ignorado se eu delatasse,
porque naquele tempo ninguém dava ousadia para “intrigas de criança”. Sofríamos calados e
com medo. Eu sofri, e muito. Aquelas tranças da primeira série serviam de rédeas para os
meninos maiores do terceiro e quarto anos que, ao balançarem, entoavam os versos: “Luciete,
77
canivete, põe na chapa não derrete, pra fazer camionete, na rua 37, mascando chiclete,
raspando com gilete, maluquete”. Se meio século não apagou a lembrança é porque me
marcaram profundamente. Sobrevivi.
Vó Dita benzia as crianças contra quebranto e os adultos contra espinhela caída, carne
quebrada e outros males que só ela entendia. Para o quebranto, colocava água num copo,
pegava uma brasa acesa e jogava na água, ao tempo que ia sussurrando a reza. Repetia até
completar três brasas. Se uma ou mais brasas boiavam significava que a criança estava mesmo
com quebranto. Depois das orações, a vó entregava o copo à mãe que molhava a chupeta, ou
dava um pouquinho desta água na colher para a criança até terminar a água do copo. Noutros
males passava o terço pelo corpo do doentinho enquanto proferia a oração correspondente.
Noutras, pegava um ramo de alecrim e passava pela frente e costas do bebê, dizendo algo
parecido com: “Com Deus eu te benzo, com Deus eu te crio, com a graça de Deus e da
Virgem Maria [...]” Se o ramo ficasse murcho, o quebranto passara para a planta, livrando a
criança do mau olhado. Também benzia, costurando um pedacinho de pano, à medida que
costurava, repetia três vezes a reza: “O que cozo? Carne quebrada ou nervo torto? Se for carne
quebrada, a torne a emendar. Se for nervo torto, que volte ao lugar. Em nome de Deus e do
Divino Espírito Santo, Amém.” As brasas e o ramo eram jogados em água corrente, o
patuazinho jogado às chamas do fogo do fogão à lenha, mas não tenho certeza. Eu olhava,
maravilhada, o ritual, encantada com o poder de minha avó que salvava os bebezinhos
daqueles males e também gente bem crescida que a procurava regularmente. Era uma santa a
minha avó. Acreditava. E ninguém dizia o contrário.
Sempre se colocava entre mim e minha mãe na hora do cinto. Ocultava minhas fugas
para a rua, não contava sobre brincar na enxurrada descalça sob a chuva. Preocupava-se com
os arranhões causados pelo pique de esconde-esconde no fundo do quintal, onde havia um
pequeno canavial, receava de eu me queimar, fazendo comidinha num pequeno fogão à lenha
construído no quintal. Inquietava-se com minhas escaladas nas árvores até os últimos galhos,
muito finos e de pouca resistência, anunciando queda livre. Vigiava minhas brigas com os
garotos vizinhos com os quais disputava bolinhas de gude. Também resultava em briga o
monte de figurinhas que eu conquistava nos “bafos” e colecionava em álbuns. Das estrepolias
ficaram as cicatrizes que marcam, hoje, o meu rosto e meus joelhos. Naquele tempo,
acreditava mesmo que ela fosse uma santa, nascida para a bondade, a generosidade e a
meiguice. Hoje, pondero que talvez sua vida tenha se construído sobre renúncias, desamores,
abdicação, inquietações, abandono, tristezas resguardadas, sonhos adormecidos, resignação.
Mas os seus silêncios podem ter sido a forma que encontrou de resistência. Sua força pode ter
78
sido construída na ausência de escolhas que não via, e se decidiu pedra angular da família,
alicerce em que todos puderam se sustentar. Sob o véu da fragilidade, resistência. Ela
participou de grande parte de minha vida. Ensinou-me a ser resiliente, mesmo sem se dar
conta.
Minha mãe aproveitava o fato de trabalhar na escola para se informar sobre tudo: meu
rendimento escolar e comportamento. De todas as mães que tive foi sempre a mais durona. O
exercício do não, o mais difícil, coube a ela. Era necessário impor os limites que minha avó e
tias não delimitavam. Por esta razão, parecia-me que tinha mais medo dela do que afeto, esse
sentimento me incomoda desde que partiu. Hoje percebo que foi a forma encontrada para que
eu compreendesse que não tinha necessidade e nem direito a tudo, preocupou-se em formar o
meu caráter, a ensinar-me os direitos e os deveres.
Algumas lembranças me marcaram. A casa de minha avó parecia mágica. Cercada de
janelas por todo lado, muitas mesmo. Um quarto dentro do outro como um dédalo. Sala
imensa. O que mais apreciava eram as pinturas nas paredes da casa. Nos quartos ramos de
flores, na cozinha frutas e legumes, mas eu amava a pintura da sala. Fileiras de passarinhos de
várias espécies dispostos em galhos de árvores. Eu fantasiava que eles cantavam toda manhã
para me acordar.
Fui criada e educada por cinco mulheres de fibra. A casa das mulheres girava em torno
de responsabilidades.
De Vó Dita ficaram seus olhos, redondos e negros. Penso que talvez tenham sido duas
jabuticabas miúdas que fugiram do pé, trazidas pelo vento, para cama de vovó bebê. Eram
pretinhos e ternos, de quando em vez marejavam silenciosos, coisa de ninguém perceber. Eu
percebia, mas não dizia nada. Podia ser eles marejando por mim. Sei de sua força e de sua luta
para criar os sete filhos e uma neta e deles fazer homens e mulheres dignas. Nenhum deles se
perdeu pelo caminho. Aqueles olhinhos atentos de jabuticabas maduras não tiravam a atenção
do ninho. Foi assim que aprendi a ser mãe e generosa.
Tive uma amiga de uns doze anos da qual jamais me esquecerei. Uso o verbo no
passado, porque desde que crescemos e cada uma foi para um lado, nunca mais nos
encontramos. O nome dela é Maria Aparecida do Zé Bié. A mãe dela a ofereceu para tomar
conta de mim bebê à minha mãe. Em troca, minha mãe dava tudo a ela. Minha mãe ajudava a
mãe dela com o que podia para criar os outros filhos pequenos, pois o marido fora embora,
deixando a mulher e as crias para trás.
Maía, assim a chamava, foi uma menina linda. Alta, magra, pele negra reluzente, olhos
de pantera esperta e um cabelo crespos, feito em tranças sobre a cabeça. O amor entre nós
79
duas foi imediato. Ela não se sentia na obrigação de estar comigo, disseram, fazia com gosto e
vivia me levando para a rua. Gosto de pensar que eu era a boneca que ela não tinha. Por meu
lado, adorava ser a boneca dela. Fazia mil penteados e pintava de rosado as minhas bochechas
com o ruge de minha mãe. Eu, depois dos três anos, gostava mesmo dos passeios na casa dela.
Maía me colocava na taipa do fogão caiado de tabatinga branquinho, abria as minhas pernas e
no meio colocava uma lata vazia de marmelada com feijão que a mãe dela fazia, misturava
com farinha de milho, e eu comia fazendo montinhos com a mão. Maía dizia: “Cê é um saco
sem fundo minina” e eu ria até não poder mais. Ela me abraçava, com aquele abraço
quentinho de amor de verdade. Até hoje sinto a sinceridade daquele afeto.
Maía ficou comigo por seis anos, depois ela se casou com um rapaz muito bonito e eu
fui a sua daminha de honra. Foi a Tia Hilda quem fez o vestido de noiva de Maía, ela ficou
linda, parecendo uma nossa sehora. Minha mãe cuidou do bolo e dos docinhos. Foi uma festa
simples, mas muito bonita e alegre, todos dançaram muito depois da cerimônia. No momento
em que soube que Maía iria morar com o marido na casinha dela e não voltaria para a minha
casa, cai no choro agarrada na cintura dela. Jamais me afastei dela, ou ela de mim, até vir
embora para Bahia. A sua casa era meu destino todas as tardes. Sempre que podia, fazia para
mim bolinhos de chuva, os meus prediletos. Encantados, pois só os dela tinham aquele sabor
de ternura. Quando o bebê de Maía nasceu, eu não tirava o menino do colo. Ela ralhava,
dizendo que eu estava deixando o garoto mal acostumado.
No tempo em que Maía brincava comigo, minha tia Maura ficava sempre de olho para
nenhum acidente acontecer a nós duas, porque uma e outra eram crianças. Se algum radical
ler este parágrafo, certamente, dirá que a minha mãe explorava uma criança negra para tomar
conta de sua cria branquinha. Relação entre colonizador e colonizado. Acreditem, ou não, não
me importo. Nunca reparei que Maía não tinha a mesma cor de minha pele, só dava atenção
ao amor que sentíamos/sentimos uma pela outra. Maía foi a irmã que eu tive, um presente.
De tia Hilda ficaram na lembrança os cachos loiros e os olhos doces, azuis como um
pedaço de água marinha. De minha mãe ficaram os olhos negros, diferentes dos de minha avó,
estes severos e atentos, agudos e destemidos. Olhos de lince.
De tia Miluca ficaram os cabelos lisos, cortados à altura do pescoço, longos e finos. Os
cabelos balançavam quando ela caminhava, deixando-a, ainda, mais bonita. Olhos castanhos,
sem brilho. Imagino que se apagaram durante o mês em que esteve casada, esperando a
anulação do compromisso. Desde então, fica sentada na canastra a olhar o vazio dentro dela.
De forma que não consigo lembrar-me deles de outro modo. Ela nunca mais se olhou no
espelho, olhava só para dentro do labirinto em que se encolhera.
80
Dar cabo a uma dissertação bem sucedida não garantiu a satisfação natural que toda
conclusão anuncia: orgulho e sensação do dever cumprido. A incompletude foi, por alguns
anos, a companheira de minhas pesquisas. Por quê? Persegui a resposta que não parecia fácil e
nem única. Andei envolvida em atividades intensas, pesquisas sobre literatura infantil com
foco em personagens negros, discussões com parceiros de diversas áreas do conhecimento:
História, Educação, Psicologia, Geografia, Biologia, Letras (linguística e literatura), mais
recentemente, Sociologia e Antropologia, andanças entre seminários e congressos. Nada, nada
81
16
Adiante descrevo a Comunidade Quilombola de Sambaíba, onde realizei esta pesquisa.
17
Caldeiras é um distrito do município de Caetité, Bahia, onde há uma escola nucleada para atender a todos os
alunos da região, quilombolas e não.
82
dos fatos. Um caminho incerto, por ser novo. Uma aprendizagem em curso e a exigência do
conhecimento de mim mesma. Minha experiência sou eu em processo de construção da
pessoa que não cessará a não ser com a morte do corpo. Nesse processo de construção,
aprendemos e somos aprendidos por outrem, nos deixamos transformar em todas as instâncias
do ser, nas atitudes e comportamentos e no modo de pensar o mundo. Faço-me crítica,
proponho mudanças, construo novos caminhos para a aprendizagem. Aprendo, significando.
Envolta por esse turbilhão de perguntas e reflexões retorno ao lar. A casa não me
recebeu idêntica naquele dia, foi a inquietação que me conduziu para dentro. O desassossego,
vindo à bagagem, não deu trégua: Quem são essas crianças de Sambaíba? Como vivem essas
crianças quilombolas? O que apresentam de diferente para que se tornem alvo de exclusão?
Como são educadas dentro e fora da escola? Como as crianças da escola de Caldeiras veem
as crianças quilombolas? Há diferenças/semelhanças na forma como brincam? Há alguma
atividade dentro ou fora da escola que vise à construção da identidade dessas crianças? Como
seria uma educação para (re)afirmar a identidade de forma positiva? O pensamento lógico
rendeu-se à ebulição. Era um turbilhoar de ideias que não se juntavam em conexão.
Tarde. A escuridão não se ofereceu ao descanso. Olhos pregados no teto. Trouxe-me,
contudo, duas compreensões: a primeira, com relação à insatisfação no mestrado. A razão não
se encontrava no objeto da pesquisa, mas na metodologia. Hoje sei que minha incompletude
advinha da ausência de relacionamento humano na investigação que, por ser bibliográfica,
tornou-me íntima dos livros e vazia de pessoas. Era mais outros que eu mesma. Se a infância
foi solitária a idade adulta não conheceu solidão. Sou um bicho que gosta de viver em
manada. Dois anos divorciada de mim mesma e apartada do grupo teve consequências:
resistência a imposições e força de vontade para lutar pelo que acredito ser verdadeiro18. A
escrita de um livro resgatou parte perdida de mim: salvação. A segunda nasceu da inquietude
que não findara com a luz do dia seguinte. Veio, ao acaso, nascido naquela aula corriqueira, o
meu problema de tese, que não se fez inteiro e com sentido naquela noite insone. Iniciou ali o
germe que de um processo reflexivo e de busca incessante cresceria.
A partir daquele evento busquei informações a respeito das crianças do quilombo. São
crianças que estudam na comunidade e suas relações são com outros quilombolas. As raras
relações com não quilombolas se dão com três professoras que ensinam na escola local e com
o diretor que vem do município vizinho. Elas ingressam na instituição no Infantil I e lá
permanecem até o 5º ano, quando migram para uma escola nucleada, onde dão continuidade
18
Verdade: tomada neste contexto como coerente consigo mesmo, com sua trajetória, com sua ética e seus
princípios.
83
aos estudos. As crianças quilombolas não são bem recebidas e aceitas pelas crianças de
Caldeiras, distrito onde se situa a escola para onde vão, permanecendo isoladas no grupo
comum do quilombo de onde se originam por um longo período. Não sei se,
metodologicamente, estava no caminho certo. O fato é que foram as questões que construíram
o problema que me levou a esta investigação: como se constrói a identidade das crianças
quilombolas de Sambaíba, Caetité, Bahia-Brasil, a partir da representação que elas têm de si
mesmas, formada no cotidiano familiar, comunitário e escolar no quilombo, de modo a
fortalecê-las, ou não, para o enfrentamento da exclusão imposta pelas crianças da escola do
Distrito de Caldeiras, onde passam a estudar após concluírem o 5º ano?
Mesmo que a problematização não se tenha construído nesses termos, naquele dia
nasceu o sentido. Posteriormente, foi reformulada e resultou no enunciado que apresentei. Sou
Fênix19. O entusiasmo ressurgiu. Uma pesquisa de atuação em campo, onde a relação entre as
pessoas, necessariamente, acontece era tudo que desejava, mesmo sem ter consciência no
pretérito. Mas, a problematização me encarava, com modos de quem zomba dos ingênuos.
A euforia cedeu lugar à hesitação e ao medo.
Já sentiu um gelar o estômago? Ou um nódulo na garganta? Foi assim que me senti.
Dei-me conta de que jamais havia feito pesquisa de campo. Ideia não tinha como fazer. Meus
sertões trilhados foram outros. Construí uma trajetória pela língua de Camões e me lapidei,
pouco a pouco, com Machado de Assis e seus pares. Fui acostumada aos livros e estantes
empoeiradas, depois aos palcos e saraus. Olhos atentos que transitavam, embevecidos, pela
poética desde as cantigas trovadorescas da Idade Média a composições de Sérgio Vaz, da
Tribo da periferia20, e de tantos outros que atravessaram meus olhos e ouvidos e que
alimentaram meu espírito com séculos de prosa e poesia. Formada pelo prazer e pelo prazer
formei outros apaixonados por literatura e por crianças. Justapor esses elos e viver por anos,
assim, nesse ir e vir do texto para o contexto, entre livros e leitores se tornou a minha vida.
Foram mais de 30 anos nessa relação passional.
Diante deste texto, por horas, teorias fazendo ninho na minha cabeça e as palavras
fugitivas negando-se ao trabalho, como se não houvesse comando dos dedos, e havia. Tantas
folhas foram descartadas antes de chegarem a ser texto. E eu, estátua de mim mesma, lia
teorias sem fim, e quanto mais o fazia, mais me distanciava daquilo que desejava significar.
19
Segundo relatam Heródoto ou Plutarco, é um pássaro mítico de origem etíope, que tem o poder de se
consumir em uma fogueira [autocombustão] e de renascer de suas cinzas. Simbolismo: ressureição,
imortalidade e reaparecimento cíclico. (CHEVELIER et al., 2001, p. 422)
20
“ É, o mundo tá fosco, os sábios terão o mesmo final que os loucos, as lágrimas e os sorrisos se confundem no
rosto. E a história se repete entre uns e outros” (anotações pessoais da pesquisadora).
84
Onde estaria a coerência que tanto buscava e que se afastava ou se perdia, quanto mais
forçava o domínio da palavra? Por ironia, o processo se dava às avessas, quanto mais eu lia
mais me afastava do objetivo: a escrita da tese. A solidão, que o momento reivindicava,
tornava mais fecunda a sensação de incapacidade, de insegurança e de receio de não conseguir
realizar a escrita que desde sempre fez parte de minha vida. Os dias se faziam curtos e,
quanto mais o tempo fugia, mais a sensação de incapacidade me dominava. Desistir? Nunca.
Há em mim uma força que renasce, gestada pelas cinco mulheres, quando deixar tombar o
corpo parecia ter mais sentido.
A família resiste aos descasos, às crises histéricas, à indiferença, ao cansaço, às
acusações injustas. O amor fala mais que a crise temporária. A compreensão busca, no
passado, razões para resistir e amar mais. Sempre que o desânimo insistia no domínio. A
esperança encontrava nelas (as crianças do quilombo) a quem devia, por gosto e por vontade,
esta tese. E, creiam, talvez Elas nem desejassem nossos encontros formalizados num papel.
Meu interesse em tudo que cheirasse a algo de inaudito, que apontasse para uma
realidade viva e verdadeira, capaz de destruir o meu isolamento interno e explodir a minha
inércia, atraía-me. E me curar do desespero, que de mim se apoderou, tornou-se imperativo,
em razão de uma escrita forçosamente distante do que me fiz e do que sou. Era preciso me
reencontrar no corpo e na escrita. Não foi rápido e nem foi fácil. Essa batalha, entre o dever e
o desejo de ser, prolongou-se mais que deveria. Mas foi preciso despir as “máscaras”21 para ir
ao encontro de mim mesma. Ninguém conhece o Outro se escondendo sob o véu da academia,
que nos torna tão parecidos, que, às vezes, nos confundem uns com os outros.
Sou diferente? Talvez não completamente. Movida pelo ensejo de atrair a admiração
das pessoas, acabamos por criar uma imagem pessoal para mostrar com o objetivo de ser
admirado, a exemplo de Narciso, para quem a imagem que vê no espelho é aquela que
acredita ser. Há um capítulo nos ensaios de Montaigne em que ele trata da vaidade e outros
vícios. Alguns escritores contemporâneos também vêm se dedicando a analisar a influência da
vaidade na vida do homem e seus impactos na sociedade. Uma das abordagens sobre a
vaidade, na literatura, é feita por Oscar Wilde em O retrato de Dorian Gray e, na atualidade,
Tomás Eloy Martinez escreveu sobre ela em O vôo da Rainha, um dos sete pecados capitais
pertencentes ao conjunto da coleção: Plenos pecados. Aceitar-nos como somos, com limites e
receios é parte da construção da pessoa. No ímpeto de nos livrar do vício da vaidade podemos
21
Recurso usado por Eliot para mostrar ao leitor não só a “imaginação moral” do mundo presente, mas também
uma forma de distanciamento da emoção; fingir emoções a fim de dominá-las e, desta forma, poder expressá-
las corretamente, com o equilíbrio necessário para que o leitor pudesse compreender que o assunto do texto
não é algo meramente subjetivo, mas objetivo, concreto e real. (recurso usado por Ezra Pound na poesia).
85
incorrer em outro risco o de julgar o Outro. Não me cabe aqui fazê-lo, mesmo porque faço
parte dessa vaidade consentida. O que pelas lentes de alguns é elevação da autoestima; pelas
lentes de outros pode ser, ou parecer, vaidade.
Imodéstia é que não tenho. Noto que foram, nos momentos de desilusão, com relação
ao texto produzido para uma autoridade, quando me encontrava no centro das críticas, por
mim mesma elaboradas, é que comecei a duvidar e a questionar sobre quem sou e do que sou
capaz de conceber. E, progressivamente, fui dando forma às minhas ideias oriundas da
experiência de meu trabalho cotidiano. Mas essas ideias, que para mim pareciam brilhantes e
fecundas, talvez pudessem representar para outrem uma bobagem. No momento em que tudo
me pareceu perdido num labirinto de indecisão, encontrei o fio de Ariadne22. Percebi que
tinha algo a dizer e eis-me aqui escrevendo a minha tese. Poderiam perguntar: e não é a
mesma coisa? Quiçá. Mas, a escrita, assim nascida, salva-me da condenação de não me perder
por completo ou de não fazer parte disso, mesmo tendo trabalhado as teclas. Isto pode ser, e
tem sido, estimulante. Condena-me, contudo, a possibilidade de não aceitação. Pode ser
alarmante e, muitas vezes, o foi quando alguém exigiu de mim além do que fui/sou capaz de
oferecer para corresponder às expectativas. Na antítese entre o ser e o não ser, escolho a mim
mesma, e ao fazê-lo, assumo o risco que opto por correr. No desejo de, sendo eu mesma,
conseguir compreender o Outro e por ele ser compreendida. Cumpro o destino a mim por
mim imposto e assim diálogo com o Régio a minha teima.
Neste texto, sou seduzida pelo impulso a quebrar as regras, sem pudor e sem medida,
para me manter inteira. Sinto necessidade de descrever e narrar os fatos e as experiências,
assim como refletir as teorias que me sustentaram, pois não é possível apartar o corpo das
influências e dos pensamentos com os quais fui formada. Caminho para uma integração entre
o vivido e o que tenho aprendido e a consciência com o desenvolvimento de um modo mais
autêntico de ser. Procurando aproximar o vivido e a consciência, assim como Carl Rogers
(2001) fez: “[...] a autenticidade encurta a distância entre o que a pessoa sente (experiência),
pensa (consciência, percepção da experiência) e faz, ou fala (ação e comunicação). Essa
concepção de pessoa, proposta por Roger, encoraja minha construção como pessoa.
Falar sobre o próprio texto em construção, na explicação da opção transgressiva de
uma forma textual, dificilmente utilizada na academia para fins de tese, fora do campo das
literaturas, comentando capítulos e frases, a organização do todo, fazendo uso de
22
Termo usado para descrever a resolução de um problema que se pode proceder de diversas maneiras óbvias.
Um método singular que permite seguir completamente pelos vestígios das pistas ou assimilar gradativo e
seguidamente uma série de verdades encontradas em um evento inesperado, ordenando a pesquisa, até que
atinja um ponto de vista final desejado. (SOUZA , 2012).
86
interpolações de episódios, recordações e reflexões que se afastam, por vezes, da linha central
da tese, é um desvio da norma, mas me refaz e me põe inteira. Aparentemente, são
intromissões que se afastam do tema central e correspondem a procedimentos de digressões,
que produzem retardamentos da narrativa, porque provocam uma interrupção temporária na
leitura do texto para reflexão, que vale a pena ser vivida. Penso eu.
Daniel Pennac (1993), no livro: Como um romance, fala-me de uma realidade
derradeira, (des)construída e (re)construída numa forma que é em si mesma reveladora e
Magda Soares (2001), em Metamemórias - Memórias: travessia de uma educadora,
memoriza uma pessoa por si e por outros construída, simultaneamente, com a carreira que
abraçou. Esses estudiosos da realidade das coisas tiraram-me do lugar comum, sacudiram
minhas certezas, embaralhando-as para que, a meu modo, pudesse reorganizá-las. O primeiro
apresentou-me as delícias de ler, quer o chão de Paulo Freire, a sutileza da ironia machadiana,
quer o entorno, aparentemente familiar, mas sempre surpreendente. O prazer de aprender com
o Outro, ensinou-me Daniel Pennac (1993):
[...] E nada de patrimônio cultural, de segredos sagrados grudados nas estrelas [...]
os livros e suas histórias estão ali mesmo nas estantes em repouso a se oferecerem a
todos os leitores; e com o seu pai [...] os textos não caíam do céu, ele os apanhava na
terra e nos oferecia para ler. Tudo estava ali, em torno de nós, fremente de vida [...]
Nós tínhamos vontade de ler e pronto. Era tudo. (PENNAC, 1993, p. 86-89).
Assim descobri, com um de meus professores, que a leitura das mídias ou do mundo
efetiva-se por aproximações e afastamentos, por amor ou ódio, por prazer ou repúdio. Em
todos esses sentires antagônicos, por uma relação entre o criador e seus leitores. Nessa
relação, eu sou outros também.
Magda Soares (2001, p. 15), por seu turno, me faz refletir a respeito de minha
trajetória. Os lugares por onde passei, onde estou e onde pretendo chegar; sobre quem fui,
quem sou e quem pretendo ser. Ensinou-me a “não apenas descrever minhas experiências
passadas” ensinou-me a “deixar que essa experiência falasse de si” e, ensinou-me mais, a
“pensá-la”. Nessa trajetória, carreira e pessoa são uma. Sou, porque a escolhi e, na mesma
medida, ela me possui.
Em ambos, forma e conteúdo, aproximaram-me dessa escrita de prazer que agora teço,
porque verdadeira. Porque sou eu, porque é minha. Nela, a etnografia nasce do broto que me
tornei ao conhecê-la. Nem posso garantir que vingou árvore, mas o broto me contenta, e eu a
ele, porque vive. Foi um rito de passagem das literaturas para as Ciências Sociais. Não sem
compreender, mais tarde, que como parte do homem, em sua construção no mundo, elas estão
87
em sintonia. Segundo Roberto da Matta (2010, p. 30), referindo-se às Ciências Naturais, mas
que também poderia, resguardadas as proporções, aplicar-se às Letras, a literatura em
particular: “no caso das ciências sociais, o objeto é muito mais do que isso, ele tem também o
seu centro, o seu ponto de vista e as suas interpretações que, a qualquer momento, podem
competir e colocar de quarentena as nossas mais elaboradas explanações”. No caso da
literatura, o texto, objeto de estudo, se oferece à interpretação, há um diálogo entre o autor e o
leitor que significa simbologias imanentes, mas também onde os pontos de vista do escritor e
do leitor são colocados em xeque, embora nos levando a refletir e a ampliar nossa
compreensão sobre o mundo. Sua forma de contestação nunca é explícita, tampouco
evidenciada pela refutação ou apoio às nossas ideias fomentadas durante ou após a leitura,
porque se trata de um objeto inanimado.
No caso das Ciências Sociais trata-se de pessoa, ou grupo delas, a ser investigado, o
diálogo se processa numa ação- reação imediata entre seres humanos com direito e com livre -
arbítrio. O informante pode contestar, desaprovar, concordar, comungar, aproximar ou afastar
conforme sua vontade. As Ciências Sociais ocupam-se, portanto, de um saber “construído
sobre os homens em sociedade” (MATTA, 2010), a literatura da recriação da realidade sob o
ponto de vista de um artista, imortalizado na escrita. Objetos de estudo distintos que requerem
metodologias próprias; em comum a palavra escrita, ou não.
E agora? “E agora José? José para onde?”23
A instantaneidade do agora me fez sair dessa zona de conforto, navegar por “mares
nunca dantes navegados”24. Parecia assustador. E era mesmo paralisante. Corpo e alma
afetados pela insegurança que gera a escolha de um caminho novo.
Um tornado.
Dos Estudos Literários, na UFMG, para a Educação, na Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Da orientação em Estudos Literários para a
Antropologia e Educação, da cidade para o campo, dos livros para as pessoas. E agora José?
Sou Maria25, agora “[...] é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana
sempre. Quem traz no corpo a marca [...] é preciso ter manhã, é preciso ter graça, é preciso ter
sonho sempre. Quem traz na pele essa marca, possui a estranha mania de ter fé na vida.” E
tive força e garra. Foi preciso o deslocamento do certo para o duvidoso, do seguro para o
movediço, das respostas para novas perguntas. Se por um lado terminou a dor pela tentativa
23
Poema de Carlos Drummond de Andrade (2018).
24
Terceiro verso, da primeira estrofe, do canto I da epopeia Os lusíadas de Luís Vaz de Camões (1882).
25
Música de Milton Nascimento e Fernando Brant (1978).
88
da escrita que não vingava; por outro, fermentou, ali, a ansiedade por transitar por caminhos
até então desconhecidos.
No ano seguinte em que fui aprovada na seleção para o doutorado PUC Minas, 2014,
fixei residência em Belo Horizonte para o cumprimento dos créditos. E quantos créditos. A
mudança de um curso para outro exigiu a frequência em todas as disciplinas possíveis, porque
era necessário construir uma base teórica sólida para a pesquisa. Vinha de ideias prontas, o
que me incomodava muito, pois me interessava explorar as minhas próprias questões e
dúvidas e descobrir aonde isso poderia me levar. Foi, nesse espaço de profícua leitura,
discussão e reflexão, no convívio diário com o corpo docente da pós-graduação em
Educação da PUC Minas e com os colegas do curso, no diálogo com os temas clássicos e com
temas contemporâneos, que pude encontrar respostas a muitas indagações acumuladas ao
longo de minha vida acadêmica, mas o fundamental foi, sem dúvida alguma, aprender a fazer
melhores perguntas.26
Essa aprendizagem e experiência, certamente, povoará este texto que agora
escrevo. Nesse tempo de descoberta, aprendi muito. Especialmente com a professora Drª
Sandra de Fátima Pereira Tosta que tem profunda crença na liberdade de investigação e na
busca pela “verdade”, levasse onde levasse. Tornei-me sua orientanda e com ela aprendi algo
que levarei para a vida toda: o respeito ao Outro, mesmo que esse outro pareça exótico para
mim, porque sou, na mesma medida, exótica para ele também. Conhecendo as universidades
como conheço agora e sabedora da rigidez de seus regulamentos, fico verdadeiramente
impressionada pela enriquecedora experiência que tive na PUC Minas.
Do ano de ingresso para cá, venho participando do Grupo de Pesquisa: Estudos e
Pesquisa em Educação e Culturas (EDUC), sob a coordenação de minha orientadora. O grupo
tem fortalecido o debate a respeito da pesquisa em Antropologia e Educação na América
Latina e Portugal, não exclusivamente, assim como, ratificado a importância da etnografia
como epistemologia. Conviver com minha orientadora e poder desfrutar da generosidade com
que compartilha seu conhecimento é um privilégio, o seu apoio e compreensão foram/são
significativos e basilares para essa fase de minha vida. Deu-me asas e me empurrou do ninho
para que pudesse ganhar confiança e aprender a voar por mim mesma, acreditar que o meu
26
Uma referência a Claude Lévi-Strauss (2004).
89
caminho é único, porque o escolhi, e que posso percorrê-lo com seu apoio. Não pela
imposição de um itinerário ímpar, mas pela possibilidade plural de encontrar o mesmo porto,
ou até novo porto, quem sabe? E nos surpreender a ambas. Compreendi, com ela, que as
possibilidades eram/são inúmeras, que era/é possível seguir junto, mesmo que eu tivesse
escolhido um caminho nem sempre seguro. Ela foi responsável pela minha introdução na
Antropologia. Se tenho gosto pela disciplina, é a ela que agradeço. O respeito à escolha do
Outro é um mister. Ela foi/é coerente. Penso que não se ensina aquilo que não vivenciamos,
para ser verdadeiro é necessário ser coerente consigo mesma. A priori, essa coerência facilitou
a aprendizagem da metodologia que foi a sustentação desta pesquisa. Sou também, porque
Ela é. Somos pessoas, antes de pesquisadoras.
Resgatei nessa relação, algo essencial que havia perdido no mestrado, a força de ser eu
mesma, de lutar por aquilo que acredito, respeitar a experiência daquele que percorreu esse
caminho antes de mim e, o principal, respeitar o Outro como pessoa, na medida em que fui
respeitada da mesma forma, porque sou humana e, portanto, limitada. Conforme escreveu
Nuno Judice (1992, p. 117) num outro contexto, mas que aqui se aplica: “[...] a situação de
absurdo do ser que quer exprimir a diferença, o desvio, a ruptura, numa sociedade que
pretende impor a uniformidade de comportamento e a normalidade dos gestos e da linguagem,
na maior parte das vezes é abandonado à sua própria escolha e risco”. Eu, nem
completamente divina nem completamente demoníaca, fiz esta escolha e tenho o apoio de
minha orientadora. Isto é importante. Por isso, segui em frente e escrevo.
Não creio que possa falar do cotidiano quilombola como uma dimensão poética da
vida que procura transformar em matéria poética toda e qualquer realidade, mas creio na
procura de uma realidade quilombola capaz de encontrar, na linguagem poética, uma
representação que não lhe retire a identidade.
E não é para ser? Desejável que não, lembram-se da neutralidade na pesquisa? É
imperativo, para que se construam dados, o máximo possível, não contaminados pela
subjetividade. Mas como me manter objetiva e neutra interagindo com crianças brincalhonas e
carinhosas? Não posso ser outra e tentar compreender o Outro. Para poder conhecê-lo e me
dar a conhecer seria necessário despir as máscaras. Nu da hipocrisia imposta, desarmada das
pesadas teorias e dos vocabulários rebuscados pude, talvez, humanizar as relações entre mim
e as crianças.
Se esse discurso narrativo/argumentativo faz parte dos estudos autobiográficos ou da
auto ficção é uma questão delicada e foge ao mérito desta tese discutir. Nas frinchas desse
texto sou eu que me exponho em palavras aos meus leitores, despindo-me das armaduras
90
acadêmicas para tentar traduzir em texto a simplicidade e a autenticidade que da relação entre
mim e as crianças do quilombo emergiu.
Essa forma que o texto assume não é a única dificuldade, a própria interação
estabelecida entre mim e as crianças exigiu grande desafio e esforço, na medida em que sua
configuração construiu-se em consonância com o que ela não é, em oposição aquilo que sou:
mulher, mãe, adulta, acadêmica, urbana, economicamente estável, católica e branca e as
crianças quilombolas: negras, pobres e assistidas, na maior parte das vezes silenciadas, ou
pior, invisibilizadas. Com fulcro numa assimetria de poder, pois socialmente naturalizou-se o
poder do adulto sobre a criança e, embora as teorias científicas pretendam a objetividade,
como instituições sociais elas também não se furtam à assimetria. Penso ser preciso refletir
algumas questões: sou uma adulta falando da/sobre a infância, atribuindo-me, às vezes, o
dever, ou o direito, de lhe tomar a voz ao analisar sobre suas experiências. Precisei pensar
melhor para poder falar com elas. Por outro lado, discutir essas questões implica, também,
colocar em xeque a minha posição adulta. E assumo.
Já não sou a professora no alto de minha cátedra, apenas um projeto de etnógrafa
empolgada por haver descoberto semelhantes, pela visão de mundo baseada na
espontaneidade, uma ampla e possível concepção da vida, com penetração em profundidade.
Ao mesmo tempo, porém, para encontrar um equilíbrio, é necessário passar por uma
metamorfose de todo o ser, uma experiência autêntica que a pesquisa de campo pode
proporcionar. Ao fim, o que importa é o que a vida nos pergunta, não o que queremos
responder a ela.
E é fácil esse percurso na contramão da ciência, ou seria um caminhar em vias que,
embora paralelas, podem/devem dialogar? Não é fácil e pode não ser aceito. Uma coisa é
certa, a subjetividade é parte de mim como pessoa que assim foi edificada nos anos de
aprendizagem dentro e fora da escola, e penso que esta aceitação favorece perceber a criança
também como pessoa que é. Assim como a loucura, a subjetividade aceita pode melhor ser
controlada para que não obscureça a compreensão dos fatos e, consequentemente, o seu
registro, ordenado e vigoroso, que se evidenciam em toda a etnografia. E na minha não foi
diferente.
Ao fim e ao cabo, é de mim mesma que eu falo, mesmo quando falo do Outro. É a
mim mesma que descrevo num espelho. O Outro para mim é crisálida, a quem me proponho
conhecer. Despida dos medos e de (pré)conceitos, olhar e ouvido apurados para o mundo,
entreguei-me à experiência etnográfica certa do meu desejo de me aprender com o(s)
Outro(os). Assumo a pessoa que me tornei e que me agrada. Aos outros cabem conhecer a
91
pessoa que sou com a disposição que tive em me conhecer e ao(s) Outro(s).
E como o poeta que fez a sua poesia no recôndito silêncio, tendo por companhia o
sussurro da criação; eu, sem nenhum estrondo, escuto a experiência da pesquisa que realizei
no quilombo, com a imagem das crianças em suas atividades de (re)inventar a vida. Sigo em
frente, em uma narrativa que abarca a reconstrução de minha trajetória, num exercício de
compreender e autocompreender para dar sentido ao futuro.
Agora sei, sei que vou por aqui!
93
27
A infância...
Lembrança de um tempo em que o tempo era todo meu.
Em que os quintais e a rua eram a extensão de minha casa.
Um espaço em que o entorno se oferecia à bisbilhotice e à criatividade.
Em que os animais viravam gente e as bonecas nossos filhos.
As latinhas e os pedaços de pau eram animais ferozes ou fofos gatinhos.
Tudo aguçava nossas invencionices. (Da Autora).
27
Nsoromma - Estrela, a criança do infinito. Símbolo de proteção divina, estrela da guia. Do proverbio “Oba
Nyankonsoromma te Nyame so na onte ne ho so.” Que significa “Como a estrela-filha do Ser supremo eu
conto com Deus e não dependo só de mim Filho de Deus, seu brilho é o reflexo do divino. É uma afirmação
que evoca a paternidade de Deus que zela por todos os filhos. (ZEIGER, 2006)
94
Os estudos sobre a infância na perspectiva das Ciências Sociais são recentes, ainda que
as crianças tenham sido consideradas há tempos por essas ciências, elas nunca manifestaram
interesse em pesquisá-las pela perspectiva das próprias crianças: como pensam, sentem,
dizem, observam, idealizam , realizam e praticam. Mesmo que alguns pesquisadores já
tenham iniciado o percurso e deixado suas contribuições, a literatura a respeito do tema é
ampla e não há convergência quanto ao seu conceito e, quando há, parece que fica um gosto
de incompletude e de quero mais quando chegamos ao ponto final de um estudo.
Ademais, o estudo sobre a(s) infância(s) perpassa(m) várias áreas do conhecimento,
requerendo um olhar interdisciplinar sobre o objeto que, hoje, faz uma incursão pela
Sociologia, pela Antropologia, pela Literatura e pela Educação, entre outras áreas, além da
Psicologia que dominou o seu estudo até a década de 1980. Portanto, eleger a criança como
sujeito participante é um desafio enorme, exigindo um esforço maior no sentido de considerar
as contribuições que cada área do conhecimento pode oferecer para a composição de uma
hermenêutica da infância que, para mim, considere a cultura como elemento fundamental nas
relações estabelecidas nos espaços de agência das crianças. A expressão “agência” origina-se
do termo agency e se relaciona à capacidade de os indivíduos atuarem no mundo, realizando
ações, transformando-se e transformando o entorno; ela está presente nessas várias áreas de
conhecimento entrelaçando-as. Na Sociologia da Infância, essa expressão é utilizada para
designar a forma encontrada pelas crianças para se organizarem e agirem espontaneamente,
com seus pares, bem como as relações que estabelecem com outros grupos sociais.
(SANTOS, 2012).
Sob a ótica da Antropologia, o termo carrega um conceito bastante fecundo, segundo
pesquisas realizadas pela antropóloga americana Sherry Ortner (1989) que, desde seu primeiro
estudo, Power and Projects: reflections on agency, investiga a construção cultural da
expressão e, simultaneamente, “como uma espécie de empoderamento e como a base que
permite que se persigam ‘projetos’ dentro de um mundo de dominação e de desigualdade.”
(ORTNER, 2007, p. 37). Posso dizer, então, que na percepção da autora a agência é tanto
sustentáculo para a intenção em conquistar projetos, instituídos culturalmente, como
possibilita o poder, tanto daqueles que dominam, como daqueles que resistem ao domínio.
Esta compreensão nos leva a dois campos semânticos que coadunam com a minha tese:
Pensar que as crianças não possuem intencionalidade e que brincam sem objetivo
algum é um grande equívoco. Deslocando o conceito de agência proposto por Ortner para a
infância, é possível conjecturar que as crianças elaboram projetos e vão ao encalço de sua
realização, assim como, em suas brincadeiras, as relações de poder são claras, muitas delas
resultantes das desigualdades sociais por elas vivenciadas no cotidiano, contexto em que as
forças sociais são estabelecidas. Como, por exemplo, a relação entre crianças mais fortes
fisicamente em relação às crianças mais fracas, entre sexos, ou ainda, quando representam
relações entre adultos/crianças, como pais e filhos, professor e estudantes entre outras mais.
Nessa perspectiva, é pertinente afirmar que o poder provoca uma ação de cima para
baixo, mas também, outra força de baixo para cima. Ambas verticalizadas. Mas, se de cima
para baixo manifesta-se através da dominação, o seu oposto configura-se na resistência. Se
nas relações adulto/criança é axiomática essa relação de poder, entre as crianças ora é mais,
ora é menos evidente. Em alguns contextos e em grande parte das instituições, seja familiar ,
seja escolar, predomina a dominação. No entanto, não é justo dizer que não há resistência,
pois ela se manifesta nas reações mais simples do dia a dia, seja na birra da criança, na fuga
para a rua, na mentira, na fantasia, na briga, nos palavrões, na inércia, no silêncio, enfim, são
inúmeras as formas encontradas pelas crianças para resistirem. Em se tratando de conflito de
interesses, entre dominador e dominado, a negociação parece ser o melhor caminho na relação
de poder entre gerações.
É possível afirmar, com Ortner (2007), que em certo sentido, a agência é “uma
capacidade de todos os seres humanos, ao passo que sua forma e, por assim dizer, sua
distribuição sempre são construídas e mantidas culturalmente”. (ORTNER, 2007, p. 58)
Assim, são as culturas infantis, nesta tese, que determinam a forma de agência que predomina
nas relações entre as crianças e entre elas e os adultos.
Ao considerar a composição de uma concepção de infância quilombola faço-a,
estabelecendo um diálogo entre a Antropologia (culturas infantis) com a Sociologia (ação,
interrelação e organização das crianças com seus pares e com os adultos), com a Educação
(cultura escolar e suas interfaces) e com a Literatura (humanização e identificação).
Percebo que um grande desafio é imposto: o de entender a criança como cidadã e ator
social, o que não significa desconsiderar a função dos adultos como essencial no
desenvolvimento dela, mesmo porque é na relação entre o adulto e a criança, e desta com seus
96
pares, que ela se desenvolve como pessoa singular. Trata-se de garantir uma participação ativa
que considere as potencialidades da criança.
28
Tatiane Consentino Rodrigues, Andreia Braga Moruzzi, Fabiana de Oliveira, Débora Barros Silveira,
Gabriela Guarnieri de Campos Tebet, Ana Cristina Juvenal da Cruz e Carolina Rodrigues de Souza.
29
Termo cunhado por Fúlvia Rosemberg (1976).
97
(1985,1986), Sônia Kramer (1986) e Tizuko Morchida Kishimoto (1988). Considero que, em
se tratando de publicação de livros e textos científicos, esse prognóstico se confirma. Esse
avanço, no entanto, não abarca as crianças quilombolas, que permanecem, praticamente,
invisíveis na academia, o que é extensivo aos pesquisadores sobre o tema.
Embora minha pesquisa não trate da discussão sobre gênero, não posso ignorar o fato
de que esse levantamento demonstra que todas as pesquisas desenvolvidas no período foram
realizadas por mulheres. Abro um parêntese para um breve questionamento/reflexão. O
interesse pela criança/infância restringe-se ao sexo feminino? Por que há essa predileção das
mulheres pelo tema? Por que o tema pouco instiga os homens? Em que medida o tema está
diretamente relacionado à afetividade e à maternidade? Há uma correlação entre formação
em Pedagogia e objeto de pesquisa? Mesmo num contexto de mudanças socioeconômicas, em
que o homem passou a assumir as lidas domésticas e o cuidado com os filhos, em oposição à
mulher que ganha espaço no mercado de trabalho, o tema, ainda, continua sendo uma opção
da mulher pesquisadora. Por quê?
Estas perguntas demandam outra pesquisa de campo, questão que foge ao meu intento
neste momento, entretanto, levou-me a algumas leituras na tentativa de saciar uma
curiosidade em meio a ebulição da tese, as quais levaram-me à constatação de que o número,
quase inexistente de pesquisadores homens, deva-se ao fato de que na sociedade,
principalmente a brasileira, poucos homens estão atuando na educação de crianças das séries
iniciais, campo feminizado30 e, como tal, marcado por simbologias pertencentes ao sexo
feminino. Além disso, a sociedade vê com cautela a profissão para o sexo masculino, algumas
pessoas se opõem à ideia radicalmente (receio do risco de abuso sexual). Ainda persiste a
impressão que se tem de que a profissão seja um atrativo apenas para os homossexuais, e há
ainda, o mito de que a educação dos pequenos não seja trabalho para homem, sintomático de
um país preconceituoso e machista. No interior das práticas pedagógicas, o gênero implica
produção de significados de identidades plurais, respeitando a cultura, o lugar e o tempo.
Os obstáculos são impostos por questões socioculturais que vêm de longa data. Se
poucos homens são educadores da primeira infância, sintoma de uma força de trabalho
dividida por sexo, que traduz a desigualdade tanto com relação ao status, quanto em relação à
autoridade, e os problemas de pesquisa relacionados à criança são, em grande parte,
30
A feminização do magistério deu-se a partir da industrialização, quando as práticas pedagógicas foram
influenciadas pelas representações que a sociedade tinha dos docentes. De um lado, o homem marcado por
práticas duras, autoritárias e disciplinadoras; de outro, as práticas marcadas pelo afeto, carinho e doçura,
realizada pelas mulheres. Apesar das transformações e do equívoco desse discurso, persiste como marca no
imaginário social. (CARVALHO, 1998).
99
detectados em sala de aula, parece elucidativo que os pesquisadores sobre o assunto sejam em
maior número feminino mesmo. Cito algumas pesquisas para não radicalizar a questão em
dois extremos: a de Tomaz Spartacus Martins Fonseca (2011), que buscou conhecer quais os
discursos e representações de gênero e masculinidade que surgem na escola a partir da
presença do professor homem nos anos iniciais, e de que forma esses discursos contribuem
para sua subjetivação; a de Joaquim Ramos (2011), em que ele investigou o ingresso e a
permanência de professores homens na educação de crianças pequenas em instituições
públicas de educação infantil do município de Belo Horizonte; a de José Luiz Ferreira (2008),
cuja pesquisa teve como ponto de origem as experiências dos homens professores que
ensinam crianças nas escolas rurais do município de Coxixola e que teve como objetivo
verificar se e como a inserção desses professores num campo feminizado (magistério infantil)
produz novos significados para o magistério e o ensino infantil; a de Frederico Assis Cardoso
(2004), que pesquisou sobre as marcas da identidade de professores homens no trabalho
docente com crianças de seis a oito anos de idade e a de Lucélia Costa Araújo (2015), que
investiga os significados e os sentidos que o professor homem produz sobre a docência nos
anos iniciais do Ensino Fundamental e suas relações com a constituição da identidade. E aqui
encerro minha contribuição nessa discussão, sugerindo aos interessados que leiam pesquisas
sobre gênero na docência. Fechando o parêntese.
Retomando a discussão sobre as pesquisas com criança e a infância, estas estiveram,
de certa forma, atreladas à pesquisa de gênero, etnia, preconceito, pobreza, trabalho infantil,
desigualdade social. O que me possibilita deduzir que a maioria dessas estudiosas realiza suas
pesquisas vinculadas a uma militância e sob a perspectiva da desigualdade social, embora
tratem sobre raça, gênero e diferença, essas questões não são vinculadas, explicitamente, nos
textos daquele contexto teórico em que se fundamentaram.
Maria Machado Malta Campos, Fúlvia Rosemberg, Ana Lúcia Faria, Tizuko Morchida
Kishimoto e, posteriormente, Sônia Kramer contribuíram para a mudança de cenário da
infância e Educação Infantil no país no que concerne às políticas públicas. Participaram
ativamente da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988)
(BRASIL, 1988), das proposições para a Infância na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) e muitos outros movimentos nos estados e municípios brasileiros, além do
fortalecimento da área de Educação Infantil na pesquisa nacional de Educação, com a criação
e manutenção do GT7 (Educação de crianças de 0 a 6 anos) na Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED).
100
Essas pesquisas são úteis para pensar a criança do quilombo, na medida em que
colocam a criança como centro da investigação, como protagonista a quem é delegada voz.31
A partir de 1995, ganha destaque as pesquisas que trazem as relações etnicorraciais como
tema, a exemplo de Sônia Kramer (2002).
Os anos de 1990 também foram profícuos em legislação, cuja preocupação era a
infância, a criança e a Educação Infantil no Brasil, incluindo aqui a criação, aprovação e
publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional para a Educação Infantil (1996). Podemos afirmar que essa década foi
bastante proveitosa à geração, produção, discussão, análise, proposição e encaminhamento de
políticas públicas destinadas à educação infantil, intensificadas com a migração da Educação
Infantil do campo da Assistência Social para o da Educação, conquista que veio atender às
reivindicações para a superação do assistencialismo de políticas compensatórias.
O período de 2000 a 2011 ratifica as preocupações com as políticas públicas, o direito
das mulheres correlacionado às crianças, o combate à desigualdade social e também as
políticas de formação para professores da infância. Esse debate adensou-se com a
implementação do Ensino Fundamental com duração de nove anos, analisado por Maria
Machado Malta Campos et al. (2011). As pesquisas apontam, também, para a aproximação
com o cotidiano das práticas pedagógicas nas instituições de formação de professores, com
enfoque social e o preconceito, além de outros fatores de exclusão, com ênfase para a
produção de Rosemberg, desde o final da década de 1970, passando pelas décadas de 1980,
1990 e 2000, tempo em que trata de raça, relação étnico-racial; raça/etnia e gênero, ação
afirmativa, combate ao sexismo. A criança também passa a ser compreendida em outros
contextos: tempos, espaços e infâncias em que está inserida, a exemplo das publicações de
Tizuko Morchida Kishimoto e Célia Vectore (2001) e Tizuko Morchida Kishimoto et al.
(2005).
Em síntese, as pesquisas apontam para a migração do conceito de pesquisa a respeito,
ou seja, sobre crianças e de suas condições de vida e de aprendizagem nas instituições (1970-
1980) para as pesquisas com crianças, interagindo com elas, o que vem sendo considerado
“dar vozes” às crianças e suas infâncias, de 1990 até nossos dias.
Com relação à Educação, penso refleti-la a partir da relação entre escola e comunidade
quilombola, considerando a criança como o elo entre ambas, neste intuito, o papel social da
31
Alguns pesquisadores trazem a criança como protagonista, seus textos encontram-se reunidos no livro:
História das crianças no Brasil, organizado por Mary Del Priore (2001). A obra faz uma panorâmica sobre a
criança na história brasileira desde as embarcações cabralinas até as crianças pós Brasil Colônia.
101
escola no quilombo. Na atual sociedade, uma reflexão necessária, e de certa forma ousada,
considerando as dificuldades encontradas no sistema escolar brasileiro e, em particular, por
escolas de descendentes negros, cujas leis não foram implantadas, quer por não haver
profissionais com competências e habilidades para tal fim, quer porque as secretarias
municipais, ainda, não descentralizaram a elaboração do currículo, “obrigando” as escolas a
fazerem uso de um currículo padrão.
A desobrigação de cumprir o que determina a Lei 10.639, imposta pelo “governo
interino” Michel Temer, representa um retrocesso nas conquistas dessa parcela da população
secularmente discriminada. Penso que existe uma força movida pela elite racista, que não
suporta ver dissolver as amarras invisíveis que, ainda, mantém cativos uma parte significativa
da população brasileira. A luta continua. Continua porque não há correntes que
impossibilitem o pensamento de voar e a consciência de processar.
do problema das gerações, versa sobre a educação da infância e discorre sobre as técnicas do
corpo. Marcel Mauss (2010) aborda a infância tomando-a como meio social para a criança,
esboçando o que viria a se tornar a SI, que vem se afirmando como um campo fecundo para
pesquisas sociológicas e educacionais.
A educação, ou instrução, é para Marcel Mauss “[...] os esforços conscientemente
feitos pelas gerações para transmitir suas tradições uma a outra.” E acrescenta, de forma que
considera menos abstrata, a “[...] ação que os antigos exercem sobre as gerações que chegam a
cada ano para moldá-las em relação a eles mesmos e, em segundo lugar, para adaptá-las a
seus meios social e físico.”(MAUSS, 2010, 238) Tanto quando se utiliza de “humilhações
constantes”, como quando usa de um arcabouço de cuidados que possibilita educar a criança
na mais tenra idade, referindo-se aos mimos dos adultos para com os pequenos.
Com relação a essa percepção da criança tenho minhas ressalvas, pois a criança para
mim não é passiva a maus-tratos, tampouco a “paparicações”, ela reage a esses estímulos, ora
resistindo, ora silenciando, ora ignorando, ora adaptando, ora recriando, enfim a criança não
se limita a copiar ipsis litteris os adultos, ela age segundo estímulos de sua própria vontade
numa aprendizagem que se dá também pela convivência com seus pares.
Marcel Mauss (2010) antevê a necessidade de se pensar a infância numa perspectiva
interdisciplinar, embora, não use a terminologia. Assim pensando, principia a reflexão,
fazendo uma crítica às pesquisas de Jean Piaget por “ter feito, não psicologia da criança em
geral, mas psicologia da criança mais civilizada”, sugerindo que ele fizesse “observações
rigorosas e extensas, por exemplo, na África do Norte, antes de tirar qualquer conclusão mais
geral”, porque a criança de Marrocos trabalha cedo em determinadas habilidades, como as
manuais, ela raciocina antes, mais rápido e de modo diferente daquelas crianças de famílias
burguesas. Outra divergência deu-se com relação à metodologia, enquanto os durkheimianos
desenvolveram/desenvolvem suas pesquisas sobre elementos da razão, tomando categoria por
categoria, os piagetianos as fizeram/fazem abraçando o sistema inteiro da experiência em
geral. A última crítica deu-se “do ponto de vista moral”, Piaget torna a “noção de
reciprocidade um privilégio do indivíduo saído da infância, ou da sociedade já civilizada”,
para Marcel Mauss (2010), entretanto,“a distância entre os ‘primitivos’ e nós é menor’” do
que Piaget supunha.
Comungo com, o autor anteriormente citado, no que ele se refere às habilidades das
crianças serem diferentes e não inferiores a depender do lugar onde vivem, pois as crianças do
quilombo, com as quais trabalhei, são mais ativas e maduras na resolução de determinados
problemas do que as crianças citadinas, ou aquelas de classes sociais diferentes, ou ainda,
103
grupo social distinto daquele do quilombo. Ademais, é pertinente considerar que, para além
das similaridades que aproximam os quilombolinhas das demais infâncias, delas também se
distanciam em razão de suas especificidades.
A perspectiva dos sociólogos é, simultaneamente, evolucionista e relativista, enquanto
a dos psicólogos é individualista. Marcel Mauss (2010) finaliza sua crítica, alegando que o
pesquisador faz “análise muito aprofundada da mentalidade de um pequeno grupo de crianças,
em particular das suas”, o que propulsiona “aparecer rapidamente o substrato social”, em
razão de ser um “estudo determinado” sobre “crianças determinadas”, oriundas de um “meio
determinado” cuja língua falada era o francês e educadas, de certo modo, por método
“historicamente determinado”. (MAUSS, 2010, 243)
Marcel Mauss (2010) sugere o que Chapin chamou de a formação do leader,
exemplificando por meio de um jogo em que as crianças determinam os objetivos e quem será
o líder, percebem a noção de quem é campeão, qual a criança mais forte e a mais fraca, a mais
esperta, o mais rápido, enfim, quando as crianças brincam juntas, “formam um meio que tem
sua moral, suas regras de jogo, sua força”. (MAUSS, 2010, 242) Embora este não seja o foco
de minha pesquisa, analisar os jogos e as brincadeiras, ajudou-me a observar nas relações
entre as crianças quilombolas como eram determinadas as posições das crianças no grupo e
como era estabelecida a hierarquia entre elas, constatei que nem sempre a liderança era
ocupada pela criança maior, ou mais forte, tampouco por um menino (sobreposição de
gênero), mas por aquela que conquistou maior empatia no grupo.
Ao analisar questões da sociologia, Marcel Mauss (2010) esclarece como a SI pode
servir ao campo geral da Sociologia e também a outras partes que compõem esse campo. O
pesquisador alerta para o problema das gerações, que afeta tanto a sociologia como a
educação; um problema fundamental sobre o qual linguistas, juristas, teóricos da história da
arte, e até críticos, deram conta e que foi postergado nos estudos sociológicos. Ele explica
que, por razões desconhecidas, não saberia descrever, precisamente, como a fonética de uma
linguagem, a semântica, o vocabulário, as palavras mudam entre gerações como, por exemplo,
as gírias que se modificam com o tempo. Em especial essas transformações ocorrem nas
infâncias, meio no qual se criam novas linguagens, difundem-se novos vocabulários e, de
igual modo, desaparecem. Dando relevância para a relação entre crianças maiores e menores e
a importância de compreender como se agrupam, segundo idade e sexo. Conforme suas
palavras: “o meio infantil é sempre, sobretudo quando é livre, e não o fruto de uma educação,
mas sim de uma educação das crianças pelas próprias crianças, uma forma de compreender
esses fenômenos muito vastos das gerações.” (MAUSS, 2010, p.243)
104
Outra questão que Marcel Mauss (2010) considerou importante discutir diz respeito às
técnicas que nos possibilitam perceber os movimentos do corpo humano no tempo, modos de
ensinar/aprender humanos, uma invenção do homem que se propaga socialmente, seja por
“via tradicional”, seja por “empréstimo”, uma questão cultural, portanto, que se modifica. De
forma similar, penso, podemos constatar a transformação de certos costumes/comportamentos
sociais adotados por crianças quilombolas “nos antigamente, fazer cozinhado numa clareira
na mata” e “mais pra agora, brincar de casinha no quintal”33.
O estudo das crianças e suas infâncias e dos jovens como meio social são tão
relevantes quanto os estudos dos historiadores, dos moralistas e das literaturas que servem
para a educação transmitir a moral e o comportamento que a sociedade deseja que a criança
adquira, de forma indireta, por meio da autoridade, ou da arte. Mas não há apenas esse lado
pelo qual a SI pode servir ao campo da sociologia simplesmente, e também à teoria geral da
educação e, mesmo, da promoção dos valores físicos da criança e, mais tarde, do homem.
Quando aborda sobre “a infância como meio social para a criança” e o “problema de
gerações” mostra como a SI serve/pode servir a todas as partes da Sociologia e à Sociologia
geral. Por outro ângulo, quando discute as “técnicas do corpo”, explica como a sociologia em
geral serve/deve servir à educação da infância. (MAUSS, 2010)
Da década de 1980 para cá, os trabalhos sobre a infância, com viés sociológico,
multiplicaram-se. Muitas publicações dedicadas ao tema surgiram em revistas não
especializadas e especializadas em infância, como, por exemplo, a Sociological Studies of
Children, na América, e Éducation et Societés, em França, nos anos de 1980. Ademais,
começam a assomar publicações com resultados de pesquisa como aquelas realizadas por
Qvortrup, Sirota e Pinto em 1993. No ano de 1994, Qvortrup Sirota realiza sua pesquisa sobre
o cotidiano da escola e, em 1985, Jens Qvortrup inicia seus estudos sobre a infância,
realizando em 1995 a grande pesquisa Infância como fenômeno social. Corsaro, em 1997, e
Cunningham, James, Prout e Jenks em 1998 também dão grande contribuição para a
construção do campo. Sgritta, Saporiti, Qvortrup, Wintersberger inauguram primeiro um
grupo ad hoc e, depois, o comitê de pesquisa SI na Associação Internacional de Sociologia
(ISA), em 1998. Para todos esses pesquisadores as crianças são atores sociais, interagem,
participam de trocas, perpetuam e, também, transformam a sociedade34.
O mapeamento realizado por Sirota (2001), na língua francesa, e Montandon (2001),
na língua inglesa, inscrevem-se no emergente campo da SI. As pesquisadoras discorrem sobre
33
Expressões empregadas pelos pais das crianças participantes.
34
Qvortrup Sirota (2001) faz um mapeamento detalhado da evolução da SI, tanto na América quanto em França.
105
curso: Patrick Rayou (2003): Um mundo de verdade, a construção das competências infantis
na escola (ponto de vista construtivista); Monique Buisson e Françoise Bloch: A guarda
remunerada da criança, suporte do valor de vínculo (criança considerada em sentido pleno);
Dominique Dessertine e Bernard Maradan: A socialização da criança fora da escola: a belle
époque dos patronatos (1900-1939) (representação da infância pós-maternal e pré-juventude);
Michel de Certeau (1974-1978): A criança, caçador furtivo das práticas culturais (articulação
do ponto de vista macro e micro, entre as lembranças de infância, o relato autobiográfico);
Claude Javeau (1994): Corpos de crianças e emoção coletiva (analisa o caso Dutroux);
Suzanne Mollo-Bouvier (1994): Os ritos, os tempos e a socialização das crianças
(implicações da construção intelectual sobre a especificidade da infância com base na
construção de suas temporalidades).
Há 21 anos, em Lille, o Colóquio Anual da Sociedade de Etnologia Francesa teve
como tema Sociedades e culturas infantis. “O ponto de vista se torna essencialmente
‘internalista’, mediante a exploração da hipótese da existência de sociedades infantis e, mais
especialmente, de culturas infantis, pretendendo contribuir para definir o que poderia ser uma
etnologia da infância” (SIROTA, 2001, p. 12). A partir de então, a atualização científica se
intensifica, pois, paralelamente à demanda de parceiros institucionais da pesquisa, muitos
deles se tornam implementadores de trabalhos, de reflexões teóricas e de sínteses sobre esse
assunto. A revista Informations Sociales da Caisse d’Alocations Familiales organizou um
número especial sobre a evolução do lugar da criança e, mais especificamente, sobre o
aparecimento da palavra “criança”, cruzando essa problemática com as questões colocadas
pela evolução de seu estatuto jurídico.
No Brasil, como campo, começou a se constituir na confluência entre os pedagogos e
os sociólogos a partir de 1944. Mas é com o trabalho de Florestan Fernandes (1979) sobre as
Trocinhas do Bom Retiro que a SI toma corpo. Entre vários pesquisadores em nosso meio,
vale ressaltar, além de Florestan Fernandes, Bernard Charlot (2009), Sônia Kramer (2007),
José de Souza Martins (1993), Rita de Cássia Fazzi (2007) e Jucirema Quintero (2002-2005),
que, embora filiados a diferentes tradições teóricas, reconhecem que a distribuição díspar de
poder entre adultos e crianças tem razões sociais, com consequências no controle e na
dominação de grupos, o que favorece a compreensão da infância na perspectiva histórico-
sociológica, ideológica e cultural.
Os pesquisadores deixam claro o afastamento da posição durkheimiana, rompendo
com a cegueira das ciências sociais para acabar com o paradoxo ao deixar ausentes as crianças
nas análises científicas da dinâmica social, presença inquestionável nas práticas de consumo e
107
no imaginário social. Trata-se da infância como grupo social em si mesmo com traços
peculiares. Destarte se retoma a proposição de Marcel Mauss (2010) de considerar a infância
como meio social da criança, articulando a SI à Sociologia Geral. No âmbito dessas
contribuições, trata-se de tomar a criança e sua infância como categorias sérias interrogando-
se sobre as teorias disponíveis ou necessárias que possam subsidiá-las. Como vimos, a
construção de uma SI não é nova, Marcel Mauss já pensava sobre ela. Mas a estruturação do
campo é bastante recente, até bem pouco tempo era ignorado e postergado. Embora as
abordagens sobre a criança começassem a ser foco de interesse há mais de dois séculos,
apenas no século passado, ao perceberem que a categoria “infância” era um veio rico para ser
desbravado, outras disciplinas juntaram-se às primeiras, como foi o caso da História, da
Economia, da Ciência Política, da Antropologia e da Sociologia e, mais recentemente, a
Geografia. Mesmo que cada um desses campos de conhecimento seja significativo para o
estudo e dê seu contributo para o fortalecimento dessa abordagem, a categoria analítica
“infância” tem se mostrado complexa, requerendo, para esse exame, tomar a
interdisciplinaridade como suporte epistêmico.
As pesquisadoras Reis e Gomes questionam-se sobre as razões pelas quais os estudos
sobre a infância sugerem a diminuição das fronteiras entre as disciplinas. E concluem que
“[...] a pesquisa sobre as crianças utiliza hipóteses, explícitas ou latentes, de teorias e
disciplinas afins, qualquer que seja o seu registro [...]” procurando produzir um “[...]
intercâmbio de pressupostos teórico-metodológicos com ganhos para os seus campos de
conhecimento [...]” (REIS; GOMES, 2015, p. 77).
ressignificação dessa fase humana para a compreensão da estrutura social mais ampla.
Assim começo, precisando ser outro. Outros, para me reconhecer a mim mesma no
mundo, em que me ergui à deriva das descrições feitas. Eleitas por quem? Preconcebidas de
pecado, nada original, no preconceito de cores pretas e brancas edificadas, separação bicolor,
como se possível fosse, os seres humanos serem, assim apartados, se cores tantas são.
Brancas, pálidas, hirtas, puras, duras, orgulhosas, hegemônicas, bem nascidas, centralizadas,
dispostas e predestinadas ao sucesso. Dos outros lados, nos contornos das luzes do cerne, que
reforça a (in)visibilidade das periferias na cegueira daqueles que não querem ver as dores e as
ausências, uma negritude que o centro clama crime de maior idade para menor, mais pequeno
ainda, reconhecida e legalizada. Espanta tanto. Não!
Para me reconhecer, preciso ser outro(s), assim como Mia Couto e tantos mais que
percorrem o caminho de volta. É preciso retroceder ao passado, às origens das identidades que
constroem as culturas, ou seria o inverso? e nas quais me fortaleço pela (r)evolução. É nessa
ebulição que encontro os motivos da luta e as razões para renascer sempre e cada vez maior.
Não desanime, caro leitor(a), não se trata de uma história de vida lapidada na poesia
prosaica. Apenas ensaio. Sou educadora, sou leitora. Sou leitora educadora. O fato é que não
sei se seria, não fosse uma na outra. Careço fazer uma digressão para compreender, mesmo
que em parte a contribuição da literatura para pensar as crianças quilombolas.
O final do século XIX e princípio do século XX trouxeram a modernidade consolidada
com a Revolução Industrial e o advento do capitalismo, momento denunciado por Karl Marx
(1818-1883) como “[...] tudo o que é sólido desmancha-se no ar”, um tempo de crise, de
promessas e incertezas, provocadas pelas descobertas e inúmeras mudanças na sociedade
como as novas tecnologias e os avanços científicos, instituindo a crença de que estava nas
mãos do homem o próprio destino.
Com a Revolução Industrial, veio o trabalho operário, uma conquista do “progresso e
do ideal civilizatório”. Esse espetáculo capitalista não tardou a dar sinais de fragilidade, a
sociedade entra em crise. Longe do conforto e em meio aos eventos revolucionários movidos
109
pela Revolução Industrial, que atraiu para os grandes centros a população rural. A indústria
têxtil absorve a mão de obra desses espoliados e o trabalho infantil é explorado na economia
inglesa.35 Embora não tenha se assumido como revolucionário, Dickens fez crítica social
ferrenha à sociedade de sua época. Em suas obras, encontramos diálogos e comentários sobre
uma sociedade injusta, onde impera a estratificação social que permite a extrema pobreza e a
sustenta, além de descrever as péssimas condições de vida e de trabalho da população. Oliver
Twist (1837- 1839), seu romance mais conhecido no Brasil e, quiçá, no mundo, traz como
tema a delinquência juvenil dos órfãos, desencadeada pela exploração do homem pelo
homem. Por meio da narrativa ficcional, Dickens, preocupado com a vida dos desvalidos,
denuncia, além da exploração infantil, a péssima condição das escolas numa Inglaterra
considerada a potência política e econômica mundial.
Entre nós, como mencionei, o contexto é outro, consequentemente, o plano de fundo
diverge, mas vale lembrar Capitães da areia de Jorge Amado (2008), Menino de Engenho
José Lins do Rego (2003), Açúcar amargo de Luiz Puntel (1996) que trazem os temas criança
e trabalho, numa relação de exploração do homem pelo homem. Esses romances refletem a
infância pobre brasileira, marcada pelo abandono: familiar e institucional. O capitalismo não
poupa as crianças e o homem explora a mão de obra infantil. A família, refém da condição
social inferiorizada, é obrigada a se valer também do trabalho dos pequenos para sobreviver.
E as políticas públicas, cujo objetivo é erradicar o trabalho infantil? Mais adiante discutirei o
trabalho infantil no quilombo. Não necessariamente nessa perspectiva, mas em como o
trabalho infantil na comunidade de remanescentes é vista e vivida de forma diferente.
Foi com a destruição em massa, causada pela Primeira Guerra Mundial, que levou
antropólogos, de diferentes partes do mundo, a se preocuparem com a extinção de culturas
primitivas. As pesquisas na área se intensificaram, assim como a preocupação com o futuro
incerto, o que impulsionou estudiosos, de diferentes áreas do conhecimento, a se dedicarem
aos estudos sobre a criança e a educação a ela destinada. No livro Antropologia & Educação
Gilmar Rocha e Sandra Pereira Tosta (2013) escreveram sobre esta questão:
35
Ler (ENGELS, 1975),livro no qual analisa a condição dessa classe e (JAMESON, 2002)
111
36
Mário de Andrade também foi um dos mentores e fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Entretanto não foi adiante por limitações políticas e financeiras, o projeto, inicialmente com o
objetivo de investir radicalmente no inventário artístico e cultural de todo o país, restringiu-se às atribuições do
instituto, fundado em 1937, cuja função era a de preservar sítios e objetos históricos correlacionados a fatos
histórico-políticos e religioso da nação. (LIMA, 2006).
37
Termo ligado à tradição oral da literatura e relacionado com a atividade do autor como a música.
38
Makunaima é personagem de uma rica tradição narrativa, compartilhada por diversos povos indígenas da bacia
do Rio Branco, como os Taulepangue e Arekuná, pertencentes à família linguística karib. (FARIA, 2006, p.
279)
112
39
Os Congos são um bailado, de origem africana, rememorando costumes e fatos da vida tribal. Na sua
manifestação mais primitiva e generalizada, não passam dum simples cortejo real, desfilando com danças
cantadas. (ANDRADE, 1934)
113
Nas crônicas, Os Congos, Mário de Andrade (1934, p. 178) reflete a respeito de como
os negros buscavam preservar suas tradições, mesmo depois de terem chegado ao Novo
Mundo. Conforme pensamento andradiano, o Congado remete a um fato que, possivelmente,
marcou o passado africano. Para usar seus próprios termos: [...] o que me parece mais
inesperado e comovente é que o assunto essencial dos Congos, já convertidos em dança
dramática e não mais um simples cortejo real, tem todas as probabilidades de se referir a um
fato histórico, passado na África.
Em sua busca pela brasilidade do folclore, deu atenção especial à música popular
brasileira, encontrando na música negra, com raízes africanas, o suporte no qual se
alinhavavam aspectos da influência negra e branca. Nesse sentido, criticava a resistência da
sociedade brasileira à música negra, pois atribuía aos negros a maior contribuição rítmica à
música do país como, por exemplo, ao samba, ao maxixe e ao lundu. As músicas executadas
nos terreiros de umbanda e candomblé, tocadas com instrumentos de percussão simples e
artesanais, mas com ritmo, harmonia e melodia encantavam de modo especial ao estudioso. O
pesquisador cria que a música negra deixaria, como deixou, de pertencer apenas ao grupo
negro e passaria a compor a musicalidade de todo o povo brasileiro. Hoje, percebemos que a
música negra não apenas penetrou com força no mundo musical de influência europeia como
caiu no gosto do brasileiro; tamanha é a influência em todos os estilos musicais que se torna
raro encontrar uma música popular que não traga traços do continente africano. De fácil
aprendizagem e de um ritmo contagiante não passa despercebida aos ouvidos e movimentos
das crianças, que abraçaram o ritmo desde o seu nascedouro.
Mário de Andrade (1934) visitou, numa Missão de Pesquisas Folclóricas em 1938,
mais de trinta localidades em seis estados brasileiros em busca de material etnográfico,
especialmente na música. Entretanto, essa missão foi abortada e o pesquisador pediu demissão
do departamento, assim que se instaurou o Estado Novo por ser de política adversária. Sua
admiração pela música popular brasileira, sobretudo por aquelas com raízes afro-brasileiras, e
a preocupação com a pesquisa e divulgação dessa manifestação artística para a formação da
identidade cultural de nosso povo nunca o abandonaram e refletiu-se na obra literária que
produziu em especial nas crônicas.
O folclore sempre esteve/está inerente à própria infância fosse/seja através da música,
ou dos contos em todas as suas variantes. Segundo Luís Câmara Cascudo (2012), sua
classificação dos contos populares procura ater-se a aspectos intrínsecos da construção
narrativa, buscando vinculá-las a uma codificação internacional do imaginário humano.
114
40 Nesse ponto, vale lembrar Mário de Andrade (1934) e a incansável militância intelectual em busca de novos
desafios, cujo objetivo era tornar a cultura brasileira mais nacional, sobretudo a admiração pela música popular
brasileira, em particular aquelas com raízes afro-brasileiras, e a preocupação com a pesquisa e divulgação
dessa manifestação artística para a formação da identidade cultural de nosso povo, refletidas na obra literária
que produziu, em especial as crônicas.
41
As quadrinhas populares são trovas simples, inventadas pelo povo. Como o nome indica, possuem quatro
versos, cujas rimas, geralmente, imperfeitas costumam aparecer no 2º e 4º. A escrita, muitas vezes, é incorreta
por traduzir a linguagem simples do povo. Caracterizam-se pelo humor de cunho popular e por expressarem
sentimentos desejos amorosos, reclamações, desejos, admiração, atitudes maliciosas ou juízos.
(QUADRINHAS..., 2017)
42
Cantigas de roda, ou Cirandas, são brincadeiras que constituem na formação e uma roda em que o grupo dá as
mãos e canta músicas folclóricas, criadas por anônimos e transmitidas oralmente entre gerações, ou inventadas
na comunidade, acompanhadas, ou não por coreografia. Geralmente folclóricas, com letras, melodia e ritmo
bastante simples e lúdico, com temas cotidianos e infantis. Hoje mais raras na zona urbana do Brasil, mas eram
muito comuns, brinquei muito de roda quando criança. Como são passadas oralmente é comum haver
alterações de uma região para outra. Essas brincadeiras possibilitam a sociabilidade das crianças, auxiliam no
desenvolvimento corporal, senso rítmico e organização coletiva, elementos importantes para a integração e o
lazer, além da preservação das culturas infantis. (MAFFIOLETTI, 2004)
43
A cantiga de roda é praticada pelas mulheres e meninas da comunidade, entretanto a criação de versos é
comum em ambos os sexos, quando se trata de crianças. Inclusive, encontrei um garoto de 12 para 13 anos que
me deixou folhear um de seus vários cadernos de composição. Trago comigo uma página de sua criação, que
me foi presenteada.
115
MARIETA
Refrão:
Chora Marieta, chora
Marieta, meu amô
Quando foi di madrugada,
Marieta
Foi imbora e me deixô
Verso:
Sambaíba tem saída
Sambaíba tem intrada
Sambaíba tem um minino,
Qui mi deixô apaxonada.
Refrão
Refrão
Plantei um pé de cravo
Na moenda do ingenho
Cala boca minha sogra
Que seu fio eu já tenho.
O refrão vai sendo repetido por todas as crianças, que ao ouvirem: “e me deixou” uma
delas inicia outro verso, que vão se sucedendo ao outro até se cansarem da brincadeira.
Muitos versos pertencem à tradição local, memorizado pelas crianças nas apresentações dos
adultos, mas algumas crianças gostam de inventar e escrever seus versos. Um menino do 4º
ano possui vários cadernos com suas produções. Deixou-me ler e passou alguns para mim.
Pesquisar e fazer a recolha desses versos instiga novos estudos que se afastam do
propósito desta pesquisa, mas pelo valor cultural que encerram, serão fomentados num
momento futuro, com os discentes, na universidade na qual trabalho, pois eles são reflexos da
vivência, do meio sociocultural e econômico em que vivem os quilombolas Para além do
discurso, representam suas histórias de vida, desejos e aspirações que demonstram, não
apenas na melodia, como também, na expressão corporal.
44
Transcrição gravação.
116
Introduzo esta discussão com o que escreveu Schwartz (1981, p.4) “[...] a antropologia
tem ignorado as crianças na cultura, enquanto os psicólogos do desenvolvimento têm
ignorado a cultura na infância”. Esta afirmação pode ser atestada em anos de pesquisas
antropológicas que têm o adulto participante, o que nos possibilita interpretar que essa
ocorrência se deve à importância que nossa sociedade confere a esta fase da vida, em
oposição àquela conferida à velhice e à infância como agentes de produção de significados e
de reflexões sobre a vida social e, consequentemente, as culturas pelas sociedades produzidas.
Após ano de 1990, a criança saiu da periferia para o centro das atenções nos estudos
acadêmicos, ainda que modestamente. Sua voz passou a ser ouvida, mesmo porque a criança
também é produtora de culturas, interage uma com as outras e também com os adultos, tem
opiniões próprias, faz escolhas e, assim, como os adultos e os idosos, transforma o entorno.
Escolhem os brinquedos que querem possuir, os livros que desejam ler, as roupas e acessórios
que vão usar e as mídias que pretendem acessar, movimentando um nicho no mercado, em
franco desenvolvimento, movido por necessidades e hábitos específicos. As empresas estão
atentas e produzem marketing direcionado aos seus interesses e gostos, porque são
consumidores exigentes e dispostos a consumir. Engana-se quem pensa que a criança não é
crítica, quem convive com elas e as observa no cotidiano percebe o quanto é difícil agradá-las,
pois são exigentes em suas escolhas. Todas essas transformações da realidade social
promovidas por elas no seu ser e fazer diário constroem culturas, não apenas imitam os
adultos com os quais vivem, (re)elaborando os costumes, as crenças, as festividades e
comemorações, enfim os saberes dos mais velhos, mas também, criam novas formas de ser na
117
Marcel Mauss imerge num campo teórico entre a sociologia e a antropologia, criando
uma rede de significados, abarcando o homem comum em sua completude e, ao fazê-lo, acaba
por responder a muitos problemas educacionais. Assim, começa o diálogo entre a
Antropologia e a Educação que permeia toda esta pesquisa.
Vale realizar uma breve retrospectiva teórica acerca da construção do conceito de
cultura para melhor compreender a sociedade em que vivemos. Faço um recorte do livro
organizado por Celso Castro (2005) que atendeu ao propósito pretendido.
Nos fins do século XIX, respaldados na teoria darwinista, estudiosos elaboraram um
modelo que, hoje, conhecemos por antropologia evolucionista, ou evolucionismo cultural.
Conforme defende seus pensadores, são os estágios evolutivos do desenvolvimento, do
primitivo às etapas avançadas de um processo universal, que determinam os diferentes grupos
humanos. Por meio do método comparativo, cotejam as diversas manifestações culturais de
diferentes povos, cujo objetivo é encontrar semelhanças no desenvolvimento cultural,
segundo um padrão universal.
Morgan, Tylor e Frazer são considerados pelo pesquisador como os teóricos mais
influentes, do pensamento intelectual da época, decisivo para determinar as bases da
Antropologia como a conhecemos hoje. Para Morgan (1818-1881), toda a humanidade
pertence à mesma história, a qual é determinada por uma natureza comum. Tal postura
etnocêntrica, teológica e idealista conduziu-o a pensar a própria cultura como paradigma para
as demais culturas, considerando que todos os povos necessitam atingir uma civilização
padrão. Na perspectiva de Tylor (1832-1917), tanto as leis que regem a sociedade como
aquelas que atuam na natureza devem ser as mesmas. Embora marcado por forte
etnocentrismo, vale ressaltar que é possível perceber, mesmo que sublinarmente, as bases da
perspectiva antirracista e relativista: “[...] parece tanto possível quanto desejável eliminar
considerações de variedades hereditárias, ou raças humanas, e tratar a humanidade como
homogênea em natureza, embora situada em diferentes graus de civilização” (TYLOR, 2014,
p. 76). Assim como suas pesquisas esclarecem que “[...] estágios de cultura podem ser
comparados sem se levar em conta o quanto tribos que usam o mesmo implemento, seguem o
mesmo costume ou acreditam no mesmo mito podem diferir em sua configuração corporal e
na cor de pele e cabelo (TYLOR, 2014, p. 76). Para um e outro, Morgan e Tylor, o
“pensamento selvagem” é mais ignorante do que “civilizado”, o que é ratificado pelo
estruturalista Lévi-Strauss, herdeiro de Franz Boas, importante crítico do evolucionismo
cultural. Frazer (1854-1941) parte da noção da desigualdade, que considera natural entre os
seres humanos, dando ênfase à evolução dos povos “primitivos” mediante a atuação da
119
Conforme escreveu Celso Castro (2005) sobre a concepção de cultura em Fraz Boas:
Se antes era usada [cultura] muitas vezes como sinônimo de civilização, com certo
tom de superioridade, de ponto mais alto da evolução sociocultural humana, sob a
orientação de Boas a antropologia passou a utilizar o termo principalmente no
plural, adotando uma perspectiva relativisadora e não hierarquizante das diferentes
culturas. Boas tomava cada cultura singular como uma totalidade, sem dissolver
seus ‘elementos’ numa grande trajetória evolutiva . (CASTRO, 2005, p. 7)
45
A questão pode ser aprofundar em: (BOAS, 1964).
121
violência e o sadismo impostos ao dominado “ao simples e puro gosto de mando” do senhor
dos engenhos. Embora Gilberto Freyre reconheça a violência com que os escravizados eram
tratados, adota uma concepção integradora da cultura brasileira.
Trata-se, nos dias atuais, da representação de nossa cultura como integradora de seus
componentes, uma cultura que confunde miscigenação com democratização social. Talvez
venha daí o mito da democracia racial difundida entre nós. Esta inverdade pode ser
facilmente comprovada pela desigualdade social extrema a que são submetidos, a
predominância de negros mestiços nas periferias, nos hospitais, nas carceragens, nos
cemitérios, em contrapartida a quase inexistência deles nas universidades e nos bons
empregos. Vale ressaltar o avanço conquistado nos últimos anos até 2016.
A crítica não diminui a importância e o significado da obra. Desde o momento em que
foi publicada ela revolucionou nossa história cultural, porque representou o desenvolvimento
das Ciências Sociais entre nós. Atualmente, é quase consenso os estudiosos fazerem alusão à
apreciação de Antônio Cândido sobre Casa grande & senzala feita no prefácio da obra de
Gilberto Freyre (2003). Podemos considerar que esta obra, juntamente com Caio Prado
Júnior: formação do Brasil Contemporâneo (2011), Os donos do poder-formação do
patronato político brasileiro, Raymundo Faoro (2000) e Raízes do Brasil de Sérgio Buarque
de Holanda (1936/1996) constituem o pensamento sociocultural brasileiro.
As lições do mestre serviram ao aprendiz, penso que Casa-grande & senzala
contribuiu para a valorização da cultura negra ao expor argumentos sólidos e evidências de
que o negro, apesar da condição de escravo, é um agente civilizador, imputando às condições
culturais e à miséria a inferioridade que lhe é atribuída.
Essa relação entre os elementos que compuseram nossa cultura parece ser esquecida e,
posteriormente, retomada toda vez que volta à consciência a importância de discussões sobre
as diferenças culturais e outros temas mais atuais como, multiculturalismo, respeito às
diferenças, educação inclusiva entre outros. Assim como, em outros países, as questões da
miscigenação cultural trazem debates acalorados pela discriminação imposta por uma parte
racista da população que tende a crer que exista uma raça pura, como Adolf Hitler e seus
asseclas; no Brasil, como já mencionado, vivemos sob a máscara da democracia racial.
Antecipando o campo da Antropologia da Infância e da Antropologia da Educação,
merecem destaque alguns trabalhos como o de Margareth Mead. Vale lembrar que tanto ela,
como Ruth Benedict e Edward Sapir, foram alunos de Franz Boas e associados à escola de
“Cultura e Personalidade”. A escola reunia antropólogos e psicólogos, cuja temática central
de interesse de ambas as áreas era os estudos de formação do “caráter nacional” de uma
123
uma civilização poderia evitar de guiar-se por categorias como idade ou sexo, raça
ou posição hereditária, numa linha familial e, em vez de especializar a personalidade
ao longo de linhas tão simples, reconhecer, treinar e dar lugar a muitos talentos
temperamentais diferentes. Poderia construir sobre as diferentes potencialidades que
ela tenta agora artificialmente extirpar em algumas crianças e criar em outras.
(MEAD, 1969, p. 301)
estrutura social menos arbitrária e mais democrática na qual cada habilidade diferente
encontre o seu espaço para o seu crescimento pessoal, intelectual, emocional e social.
Vale ressaltar algumas contribuições da pesquisadora como, por exemplo, em um
artigo sobre a educação em Bali, ela antecipa a importância que viria a ter o psicodrama como
terapia moderna ao descrever sobre como o teatro com crianças balinesas reprimidas
possibilita a sua expansão através da transferência dos impulsos agressivos.
Margaret Mead defendeu, sem reservas, em plena Segunda Guerra Mundial, o ideal
antirracista frente ao mito ariano. Entretanto, seu etnocentrismo é enorme, ao ponto de
considerar a democracia americana como supremacia rara e única de governo, capaz de
reorganizar o mundo de após guerra. Penso que posso dizer que o amor exacerbado pela terra
natal fez com que a pesquisadora concluísse que a “estrutura do caráter americano”
respaldava-se na estreita conexão entre virtude e sucesso. Como todos os demais povos o bem
estar do povo americano se deu à custa dos povos vencidos e explorados. Da educação
americana não se espera a valorização da tradição, mas a preparação para o futuro. Não se
trata de educação, mas de preparo técnico para vencer na vida. O sucesso é sinônimo de poder
econômico. Está em jogo a competição individualista numa luta onde quem pode mais
esmaga quem pode menos.
Ao longo de suas pesquisas Margaret Mead apega-se à ideia da responsabilidade de
educar, ensinando aos nativos as técnicas modernas e os hábitos de higiene e, embora
modifique os hábitos da tribo, acredita que possa preservar a integridade cultural desses
povos. Percebi que sua obra perpassa pela esperança de mudar e salvar o mundo, aperfeiçoar a
democracia, repensando a educação. Ingenuidade? Evidente que não. Penso que a utopia faz
parte de toda ação educativa, movida pelo otimismo e esperança em transformar o mundo,
mas em seu caso moldar o mundo segundo as regras dos norte-americanos.
Quando retorna às ilhas do grande Almirantado, Margaret Mead publica New lives for
old (1953) em que observa as transformações ocorridas em Manus desde sua estada em 1928.
Agora, a “descontinuidade” que marca a civilização, da experiência na escola ao “ingresso”
na vida, é analisada com maior profundidade, pois admite não ter o mesmo otimismo daquela
data e a fé de que gerações futuras compensariam o fracasso de uma geração anterior. Conclui
que as potencialidades despertadas pela educação, sem um ambiente cultural propício para
desenvolvê-las, são passivas e inúteis. A pesquisadora constata que sentimentos generosos e
cooperativos, comuns na infância dos Manus, não são ratificados entre os adultos, e se
lamenta por ver preponderar o egoísmo e o individualismo sobre o coletivo. Passou
despercebido à pesquisadora, com relação à sociedade norte-americana, que o espírito de
125
As crianças eram vistas apenas como receptáculo de papeis que devem assumir e
desempenhar na engrenagem social, no processo de socialização e em momentos a elas
apropriados, privando-lhes, portanto, do protagonismo necessário para a definição e
consolidação de seu lugar na sociedade. Conforme escreveu Márcia Lúcia Anacleto de Souza
(2015):
Ao conceber o avanço da teoria antropológica a partir dos anos 1960, Clarice Cohn
ratifica tanto a importância dos conceitos de agência e de estrutura, quanto o de sociedade e
de cultura, rediscutindo-os, o que possibilita alargar, sobremaneira, o olhar sobre a criança.
Revê o sistema de simbolização compartilhado como formado pelos sujeitos a partir de suas
relações e interações, não mais como algo pré existente. Essa capacidade de agência permite
conceber as crianças como criadoras de seu próprio sistema simbólico e visão de mundo, e
não mais como um depositário de papéis:
Para explicar a criança produtora de cultura, a pesquisadora faz uma interlocução com
a antropologia da cognição, exemplificando com os trabalhos da antropóloga britânica
Christina Toren, com quem concorda. Clarice Cohn corrobora com Toren por entender que o
estudo da criança é importante na medida em que ela expressa o que pensa e de forma
132
distinta, o que nem sempre ocorre com os adultos. Não se fala aqui sobre uma cisão entre os
mundos adulto e infantil, mas de uma relativa autonomia, em que as crianças se expressam a
seu modo, elas não sabem menos que os adultos, sabem outras coisas sobre o mundo, sabem
de forma diferente, porque é particular o modo como observam e compreendem o mundo.
Considerando que se trata de uma área em desenvolvimento, convém lembrar que o
trabalho de Clarice Cohn faz menção frequente à educação, associada de imediato com a
criança. A pesquisadora preocupa-se em romper com divisões cristalizadas como, por
exemplo, sociedades complexas/simples, primitivas/tradicionais. Uma das formas de impor a
diferença entre as sociedades recai na educação formal e escolarizada, em contraposição à
tradição oral e/ou informal. Segundo a autora “apreciações culturais sobre as capacidades de
aprendizagem e as competências são diversas e devem ser levadas em conta” (COHN, 2005a,
p. 40). Por isso, a autora relembra - e nunca é demais lembrar - que “concepções do que é ser
criança, do desenvolvimento e da capacidade de aprender, devem ser entendidas de maneira
interligada” (COHN, 2005a, p. 40). A temática da educação emerge do texto da autora como
algo mais próximo ao cotidiano das crianças e é explorado, enquanto as relações jurídicas (em
nosso caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente) e/ou o trabalho infantil são, pela autora
abordados en passant. A ênfase atribuída ao seu trabalho de campo demonstra a importância
dada à etnografia para o estudo com crianças, porque entende, e estudiosos de outras áreas
passaram a entender, ser este o melhor meio para compreender a infância em seus próprios
termos, porque possibilita “uma observação direta, delas e de seus afazeres, e uma
compreensão de seu ponto de vista sobre o mundo em que se inserem”. (COHN, 2005a, p. 09)
A partir da década de 1980 até nossos dias, houve uma ampliação da pesquisa com
crianças indígenas no Brasil, procurando, através da observação e/ou da participação,
compreender não apenas suas vivencias infantis, como brincadeiras e jogos, mas também suas
relações com outras crianças, com adultos e com idosos, a forma como se expressam e o que
dizem sobre si mesmas e sobre o contexto em que vivem. Com as palavras da autora:
que os etnólogos não leem as pesquisas sobre/com crianças dos povos que estudam,
consequentemente, esses estudos têm provocado pouco efeito no debate da etnologia indígena
em geral e de outros povos. Reconhece o problema sério que é preciso enfrentar, caso
contrário, corremos o risco de falar apenas para nós mesmos, sem entrada no debate maior da
antropologia. É preciso avançar para poder ganhar um alcance maior e efetivo na
“compreensão dos vários fenômenos sobre os quais antropólogos se debruçam como
pesquisadores e como cidadãos”. (COHN, 2013, p. 223)
Nessa perspectiva, um questionamento se impõe: “O que os estudos com e sobre
crianças têm podido revelar e que nem sempre é revelado pelos demais estudos?” Para
responder à questão e para demonstrar o papel que as concepções de infância exercem não só
nos fenômenos observados, mas também na análise antropológica desses fenômenos, Clarice
Cohn realizou uma pesquisa em que fez o levantamento do estado da arte das pesquisas
antropológicas, principalmente no Brasil, cuja preocupação é a criança. Constatando aquilo
que hipoteticamente já considerava: um avanço das pesquisas nessa temática, a necessidade
de maior abrangência do tema na antropologia, como também o entrecruzamento teórico-
metodológico que pode contribuir para pensar a compreensão da criança e suas infâncias em
diferentes sociedades.
Embora reconheça a presença de crianças há muito tempo referendadas na história,
pelos cronistas viajantes, ou ainda nos estudos etnográficos, quando são mencionadas como
acompanhantes dos pesquisadores no trabalho de campo, entendo que a presença delas parece
ser ilustrativa, não havia consideração sobre si mesmas ou sobre o contexto. Em todas essas
descrições a criança é pensada e caracterizada pelo viés adulto.
A pesquisadora afirma que apenas no final da segunda metade do século XX,
Das constatações de Clarice Cohn (2013), algumas merecem ser ratificadas, pois
estamos vivendo um momento de aprendizagem da escuta das crianças, o que demanda
repensar teorias e metodologias, consequentemente a própria disciplina Antropologia e seu
fazer científico. Algumas questões como a veracidade dos dados colhidos e a validade das
informações impõem-se na pesquisa, o que implica pensar o que é ser criança para ela mesma
e o que é ser criança para o coletivo onde vive. Essa reflexão impede que o (pre)conceito
134
sobre existência de uma única infância nos turve a visão das muitas infâncias existentes,
mesmo numa comunidade que, aparentemente, pareça ser uniforme. O exemplo a respeito da
pesquisa realizada por Thaís Regina Mantovanelli da Mantovanelli (2010, 2011) nos confirma
o equívoco em pré estabelecer conceitos, pois esses somente o campo pode fornecer,
principalmente, quando o que se busca é estudar a criança. A pesquisadora foi a campo,
estudar a infância kaingang em Icatu, SP. Suas leituras sobre diferentes povos indígenas a
fizeram construir uma imagem de um grupo de crianças festivas que a recepcionariam. A
busca frustrada por essas crianças fugidias foi, paulatinamente, elucidando outra infância, cuja
valorização da casa e seus quintais como espaço de aprendizagem sobre a ética, o respeito e a
restrição devem reger as relações.
A realização do estado da arte de pesquisas antropológicas sobre/com crianças
brasileiras, atentam sobre a existência de diversas infâncias em diferentes contextos: crianças
indígenas (NUNES, 2002, 2003; TASSINARI, 2007), ou não; crianças mediadoras em
comunidades indígenas (ALVAREZ, 2004; OLIVEIRA, 2005); em espaços
institucionalizados, como a escola (CODONHO, 2007; COHN, 2005b; LIMULJA, 2007;
MARQUI, 2012; TASSINARI; COHN, 2009); ou nas suas andanças e circulação pelos
espaços da aldeia (SILVA, 2012); por categorias de idade (FERNANDES, 1976; COHN
2000; NUNES, 2003).
A pesquisadora questiona-se sobre a importância de mais pesquisas sobre como as
crianças indígenas veem seus mundos e menciona os estudos de Rogério Correia da Silva
(2012), Melissa Oliveira (2005) e Amanda Rodrigues Marqui (2012), alegando que pouco se
fez, ainda, para compreender como as crianças indígenas percebem seu mundo. Nessa
perspectiva, Clarice Cohn (2005b.) investigou e interpretou os desenhos realizados pelas
crianças xikrin. Nenhum desses estudos, entretanto, indica que há uma noção de infância para
os indígenas. Segundo a autora: “[...] crianças são, como todos e continuamente,
humanizadas, pessoalizadas”. (COHN, 2013, p.227).
Interessa-se também por pesquisas com crianças não indígenas em espaços escolares
como a etnografia realizada por Marcos Vinicius Malheiros Moraes (2012) na qual o autor
problematiza o pressuposto de dar voz às crianças como parte importante da prática
pedagógica nas escolas e AntonellaTassinari (2009) que problematiza a possibilidade de
pesquisadores escolarizados pesquisarem infâncias não-escolarizadas.
Na área da saúde (hospitais), Cohn cita Eunice Nakamura (2004, 2009) referendada
por Antonella Tassinari (2009) que acompanhou casos de crianças com diagnóstico de
depressão e revela que este diagnóstico é sempre feito tendo por referência a uma imagem de
135
infância tida como normal, ou seja, uma (pre) concepção de infância. Assim, os médicos estão
tomando por referência uma concepção de infância para julgar se cada criança está adequada
ou não a esta condição mesma. Este seria outra forma de negar a infância às crianças, na
medida em que julga aquela determinada infância como não-infantil, consequentemente, uma
infância errada que necessita ser corrigida. Clarice Cohn (2013) considera um relevante
esforço para a compreensão das infâncias e sugere a sua complementação no sentido de
investigar a visão da criança sobre a sua condição, diagnóstico e tratamento, das relações que
estabelece com a família, com os profissionais e como as veem. Outro estudo que cita é o de
Rafael Fioravanti (2006) que reflete a respeito da recompensa do trabalho voluntário exercido
no hospital infantil Pequeno Príncipe, em Curitiba. Embora registre a euforia das crianças ao
receber os voluntários, o pesquisador não estuda a relação sob a ótica das crianças.
Na área jurídica, especificamente nas audiências realizadas nas Varas Especiais da
Infância e Juventude de São Paulo, a etnografia de Paula Miraglia (2005) chama a atenção:
[...] por demonstrar que é uma concepção de infância que está em jogo, analisando
as cenas em que o Estado, os adolescentes e suas famílias disputam sua
culpabilidade e definem as medidas socioeducativas adequadas ao “ato infracional”,
e demonstrando a supremacia do juiz nestas cenas e o papel de figurante de família e
adolescentes. (COHN, 2013, p. 237)
crianças podem e devem ter, informa o modo como se age sobre elas e também informa (mas
não determina) o modo como elas agem sobre o mundo”. Trata-se de concepções de infância
e de como as crianças pensam o mundo, com as palavras de Clarice Cohn (2013):
[...]as ações voltadas às crianças e o lugar que lhes é destinado são definidos por
concepções de infância na mesma medida em que o modo de como as crianças
atuam e o que elas pensam do mundo acontece a partir (mesmo que contra) desta
posição que lhes é oferecida e que elas conhecem. (COHN, 2013, p. 241).
Os meninos e meninas da Galera não aceitam sua posição de crianças: não querem
ser tutelados, e não aceitam estarem situados em uma posição relacional de
subjugação frente aos adultos. Afirmam, então, serem crianças, sim, mas crianças
diferentes: são donas de si, pensando-se e repensando-se continuamente, e tentando
fugir aos mecanismos de controle e submissão (CALAF, 2008, p. 44 apud COHN,
2013, p. 238).
A marca dessa infância reside, portanto, na diferença estabelecida com outra infância,
não está, pois, na condição de ser criança, que eles aceitam. Meninos e meninas que
“desafiam a noção de infância naquilo que ela tem de mais central”, a sexualidade, a sua
maternidade e a paternidade, que reconhecem, ratificam e praticam. A “etnografia fina”
mostra que esta prática e esse discurso acerca da sexualidade, que faz gente grande e/ou
moleques, são marcados pelo aprendizado e pelo segredo.
137
Mais uma vez a pesquisadora mostra, por meio das pesquisas coletadas sobre/com
crianças que há, em curso, um desafio aos antropólogos de pressupostos
teóricos/metodológicos diante do que podem ou não informar a criança, desvencilhando-se do
preconceito que nutrem por essa faixa etária como objeto de pesquisas antropológicas, pois
elas têm muito a dizer e para mostrar, ampliando o campo da disciplina.
Como refletir sobre as realidades dessas crianças, sejam elas da zona urbana ou da
zona rural, de grupos indígenas ou de comunidades quilombolas, tutelados ou livres? Estamos
prontos teórico e metodologicamente para esse estudo, ainda engatinhando? O fato é que
esses sujeitos, visibilizados e dotados de voz recentemente, nos desafiam sobre o que
entendemos sobre eles e seus mundos, exigindo de nós, interessados pelo universo das
crianças, uma postura investigativa que considere as múltiplas infâncias.
Minha intenção primeira foi ouvir apenas as crianças quilombolas, sujeitos de minha
pesquisa, sem considerar os adultos de suas relações (pais, professores, parentes, entre outros
mais), uma vez que as pesquisas com a participação de adultos já se consolidaram há muito
tempo e estudos sobre as crianças na perspectiva dos adultos também. Assim, pretendia focar
apenas nas crianças, pois estudos recentes têm demostrado que existe uma lacuna imensa a ser
preenchida com pesquisas que abordem as crianças no que elas têm a nos dizer sobre si
mesmas e sobre o mundo. Pesquisadores já mencionados, aqui me incluindo, acreditam que
elas podem elucidar muito do que os cientistas se propõem a conhecer sobre a realidade e as
relações humanas e que as pesquisas com adultos não dão conta de responder. Entretanto, a
pesquisa de campo mostrou-me o quão ingênua era essa minha proposição, não é possível
estudar as crianças sem considerar as relações sociais que estabelecem em seu meio, pois são
exatamente essas relações que nos possibilitam compreender o modo de pensar, de criar e de
agir das crianças com/sobre o mundo a sua volta, possibilitando-nos situar essa compreensão
com relação à sociedade mais ampla.
Em todo tipo de sociedade, seja ela rural, ou urbana; em territórios indígenas,
quilombolas, ou outro território étnico; em assentamentos; em instituições escolares,
filantrópicas, orfanato, na rua, ou outro espaço coletivo qualquer, as crianças influenciam e
são influenciadas, educam e são educadas, aprendem sobre si mesmas e sobre os outros,
transformam e são transformadas. A criança, assim considerada, um sujeito sociocultural que
age e que recebe influências educacionais, econômicas, políticas e culturais do meio em que
vive, é corresponsável por processos de elaboração de significados, de organizações sociais e
de variações linguísticas por meio das quais comunica e significa a sua existência e a sua
identidade.
138
A educação, assim como a cultura, se realiza em espaços de relações sociais, por meio
da permuta de aprendizagens, seja entre adultos, seja entre idosos, seja entre crianças, se
efetiva nas relações estabelecidas entre diferentes faixas etárias. Assim compreendido, é
mister que ao estudar as crianças e suas infâncias, o façamos buscando compreender seus
interesses, suas ações, seus desejos, suas expectativas nas relações que estabelece com seu
entorno e com seus pares. Portanto, observar suas vivências implica buscar entender como
aprendem e de que forma se constituem sujeitos culturais, permeados pela simbologia que
lhes é própria. Esse processo de conhecimento passa, necessariamente, pela compreensão da
cultura do grupo a que a criança pertence.
Nessa linha, ainda permanecem abertas muitas interrogações, por isso algumas
questões foram se impondo: O que caracteriza a(as) infância(as) no quilombo? Quem são
essas crianças? Como essas crianças se veem? Com quem se relacionam e de que forma o
fazem? O que dizem sobre ser quilombola? Com quem e como brincam? Como entender suas
infâncias no contexto sociocultural quilombola, para apreender a complexidade de suas ações,
linguagens e interações? Como sua família entende o quilombo? O que é ser quilombola para
outras crianças fora do quilombo? Como os quilombolinhas se relacionam com essas
crianças? Há discriminação? Estas e muitas outras questões foram surgindo, na medida em
que se estreitava a minha relação com elas.
Na proporção que minhas visitas à Sambaíba intensificavam, mais claramente percebia
o quão importante era compreender a criança em suas relações com o entorno e com o
coletivo. Observá-las na família, nas brincadeiras e nos jogos, nos eventos sociais, no trabalho
(sim, grande parte das crianças do quilombo trabalha), na sala de aula e em outras atividades
por elas realizadas, ajudou-me a colher informações para compreender a totalidade das
relações socioculturais estabelecidas em Sambaíba, assim como a importância das crianças
nesse processo identitário.
Nesse ponto é necessário discutir a categoria identidade(s) para compreender a
construção da identidade das crianças quilombolas. Para tanto, convoco os conceitos de
identidade nas perspectivas de Zygmunt Bauman, Stuart Hall e Antonio da Costa Ciampa.
Historicamente, conforme explica Stuart Hall (2011), há três tipos de identidades:
identidade do sujeito iluminista; identidade do sujeito sociológico (idade moderna) e
identidade do sujeito pós-moderno. No primeiro período histórico, entendia-se identidade
como um núcleo no interior do homem, nascido com a pessoa e com ele permanecendo
inalterado até a sua morte; no segundo o núcleo, ou essência interior (identidade), era
considerado inato, entretanto era modificado na interação entre o eu e a sociedade e, por fim,
139
como meus parentes, o nome diferencia a pessoa de sua família e o sobrenome a iguala. O
pesquisador destaca, ainda, que possuímos várias identidades que são utilizadas
separadamente, simultaneamente em diferentes momentos e espaços, sou mãe e ao mesmo
tempo filha, sou esposa e ao mesmo tempo professora e assim poderia enumerar muitos
outros exemplos. Nesses diferentes momentos ocorre uma manifestação de uma parte da
unidade, porque a pessoa é uma totalidade. Destarte nos representamos em diferentes espaços.
Mesmo com as diferentes identidades que assumimos e as constantes “metamorfoses” a nossa
identidade é uma totalidade. Com as palavras de Antonio da Costa Ciampa (1984, p. 61):
“Uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, no entanto una.” .
Constatamos que há entre esses autores aproximações e distanciamentos quanto ao
conceito de identidade. Stuart Hall (2011) e Zygmunt Bauman (2001, 2005) enfatizam a
sociedade e sua história. Para eles, as identidades atuais estão fragmentadas, descentradas
(HALL, 2011) e liquidas (BAUMAN, 2005), as quais eram únicas e coesas em épocas
anteriores. Antonio da Costa Ciampa (1984, 2007) compreende a identidade em
metamorfoese, evidenciando a história pessoal dos sujeitos, permeada pelo contexto histórico
social. Assemelham-se, entretanto, apesar de distinta formação, Stuart Hall e Zygmunt
Bauman (sociólogos) e Antonio da Costa Ciampa (psicólogo), concebem a identidade como
um processo de reformulação e mudança que tem sua base nas influências sociais e históricas.
A pesquisa com crianças exige desafios constantes, porque se trata de um tema
complexo e ainda em construção, embora nos últimos tempos se firmando como categoria
analítica, por isso mesmo é preciso rever e refletir conceitos cristalizados e concepções já
ultrapassadas. A criança não é um ser passivo, desprovido de vontade, um recipiente vazio,
onde se deposita os conhecimentos que o adulto deseja inculcar. Os pedagogos criticam essa
posição unívoca, segundo a qual o adulto é sempre quem educa e a criança é sempre aquela
que aprende, incapaz de ensinar alguma coisa ao adulto, incapaz de pensar por si mesma,
incapaz de criar e de agir por conta própria; assim como os sociólogos e antropólogos da
infância criticam sobre a criança ser incapaz de promover uma “cultura de pares” segundo a
qual promovem relações e permuta de conhecimento seja entre colegas de faixa etária similar,
seja com adultos, ou mesmo com idosos com quem convive cotidianamente. Hoje as ciências
colocam-se contra qualquer pensamento que retira da criança seus direitos, pois creem na
competência de a criança produzir conhecimento, ser capaz de falar por si mesma, em sua
capacidade de expor suas ideias e desejos.
Trata-se de concepções que consideram a participação da criança na elaboração de
formas de entender a realidade que a cerca, de significar o seu contexto, nas relações que
141
estabelece com seus pares e com outras gerações com as quais convive, dar visibilidade e
protagonismo à criança, pois ela é também um sujeito capaz de aprender e ensinar, como os
demais seres humanos durante toda a existência.
Toda criança é um sujeito histórico e de direitos que constrói sua identidade pessoal e
coletiva ao brincar, ao imaginar, ao fantasiar, ao desejar, ao observar e aprender. Ela
questiona, narra, experimenta e constrói sentidos para objetos, significa a natureza e a
sociedade, produzindo cultura nas interações e práticas cotidianas que vivencia. Nessa
perspectiva, é preciso reconhecer e considerar a especificidade da infância e dos saberes, com
o objetivo de captar a lógica desse “Outro”, diferente do adulto que, simultaneamente,
educa/aprende, buscando superar os estereótipos que lhe são impostos e conhecer as
especificidades de um determinado universo social e cultural.
Pela complexidade que o tema criança e suas infâncias envolve, buscar entendê-lo sob
uma única perspectiva teórica, ou uma única área do conhecimento, revelou-se impossível. O
próprio tema exigiu um olhar múltiplo para o sujeito da pesquisa e para os outros que com ele
se relacionam, sempre em interação. Daí adveio a necessidade de trazer para o debate as
contribuições da Sociologia, da Antropologia, da Literatura e da Educação, pois entendi que,
somente um diálogo que perpassasse o conhecimento dessas disciplinas, em especial, e outras
quando fosse necessário recorrer, como a História escrita, e oral principalmente, seriam
capazes de abarcar com maior êxito a investigação a que me propus.
143
46
PARTE II
A experiência e a ciência
Toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e infantil – e,
no entanto, é a coisa mais preciosa que temos. (EINSTEIN, 2018)
46
Owo foro adobe – A cobra subindo a palmeira de ráfia - Representando o excepcional ou o impossível.
Símbolo de diligência, prudência e firmeza. Há momentos na vida de uma pessoa em que seus objetivos
parecem inalcançáveis e que as metas podem parecer muito distantes, tal como a serpente tentando chegar ao
topo da árvore de espinhenta de ráfia, que representa um desafio perigoso para a cobra. O indivíduo pode
sentir-se perturbado diante da enorme tarefa ou empreendimento. Os objetivos ou aspirações podem parecer
inatingíveis ou além da capacidade. Owo-foro-adobe fala a respeito da superação de tais circunstâncias com a
realização de uma tarefa aparentemente impossível ou alcançar de uma meta incomum. Tal como a cobra
desse provérbio, cuja capacidade para subir é um modelo de persistência e prudência, os indivíduos devem
trabalhar arduamente para obter seus objetivos na vida. (ZEIGER, 2008).
145
47
47
“Dwanimen” é o símbolo que traduz a essência da experiência holística. O poder da mulher. Símbolo da força
de espírito e da humildade. Do provérbio: Dwonnin ye asise a ode n'akorana na ennye ne mben. Tradução: A
força simbólica de um carneiro não vem apenas de sua estrutura física, mas da integridade de seu coração. É o
coração e não a força que leva o homem à crueldade. O chifre é a arma que pode ser usada tanto para a defesa
como para a sedução, um componente de graça e elegância que também simboliza a aptidão para aprender e
saber. Dwanimen também significa o equilíbrio necessário para a vida. As mulheres nessas sociedades são
ensinadas a serem submissas e terem humildade e para isso precisam buscar força. Uma pessoa pode ser
talentosa e sábia, mas essas virtudes isoladas não propiciam grandeza. Apenas com o uso criativo desses dotes,
a força de espírito, a força física e a humildade é que se consegue compreender qual o papel de cada um na
sociedade. (ZEIGER, 2013).
146
(BORGES, 2013)
Jorge Luis Borges (2013) admite a falibilidade humana como primeiro passo para
compreender o que somos e a que viemos. Numa sociedade plural é preciso reconhecer-se
limitado e passível de engano. Assim é que a alteridade é fundamental para uma compreensão
mais profunda da vida em sociedade. Não se trata, pois, da oposição entre o ser adulto e o ser
criança, mas de admitir que a sociedade é heterogênea e de que podemos relativizar as formas
de compreender e lidar com as diferenças, mesmo que em princípio essa diferença diga
respeito apenas a fases distintas do desenvolvimento humano. Perceber o que eu sou e o que o
Outro é pela perspectiva de reflexibilidade, pois é no Outro que me reconheço. Essa
experiência é propiciada pela etnografia: conhecer o Outro, para conhecer a mim mesma.
Para me aventurar na etnografia, apoiei-me em alguns teóricos, de cujos trabalhos
emergem a ética pelo compromisso/comprometimento de fazer etnografia no contexto de
novos problemas sociais fervilhantes neste século com a emergência da imagem e da palavra
do Outro, em confluência com o deslocamento de pensar o próprio Ser e estar no mundo,
procurando colocar em sintonia os processos atuais de reconhecimento de si e do Outro.
Refiro-me aos artigos: O ofício de etnólogo, ou como ter 'anthropological blues’ de Roberto
da Matta (1978)48 e Observando o familiar, de Gilberto Velho (1978), publicados no livro: A
aventura sociológica, organizado por Edson de Oliveira Nunes (1978) e o artigo Aventuras de
antropólogos em campo ou como escapar das armadilhas do método, de Ruth Cardoso do
livro: A aventura antropológica: teoria e pesquisa organizado por Ruth Cardoso (1986), que
me ensinaram a respeitar a etnografia como um processo em que a teoria e a prática são
imanentes. Compreender os conceitos de estranhamento e de relativização sem o auxílio de
Roberto da Matta (1978), que nos ensina a vencer as adversidades do trabalho de campo pelas
48
Roberto da Matta em O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues tomou o termo de empréstimo à
Dra. Jean Carter Lave, terminologia utilizada por ela numa carta de campo. Segundo entendimento de
DaMatta: “Por anthropological blues se quer cobrir e descobrir, de um modo mais sistemático, os aspectos
interpretativos do ofício de etnólogo. Trata-se de incorporar no campo mesmo das rotinas oficiais, já
legitimadas como parte do treinamento do antropólogo, aqueles aspectos extraordinários, sempre prontos a
emergir em todo o relacionamento humano. De fato, só se tem Antropologia Social quando se tem de algum
modo o exótico, e o exótico depende invariavelmente da distância social, e a distância social tem como
componente a marginalidade (relativa ou absoluta), e a marginalidade se alimenta de um sentimento de
segregação e a segregação implica estar só e tudo desemboca-para comutar rapidamente essa longa cadeia- na
liminaridade e no estranhamento.(MATTA, 1978, p. 23-35)
147
quais passam todos os antropólogos em sua formação, é partir para o campo como se
estivessem vendados os olhos e os ouvidos ensurdecidos.
Ser seduzida à reflexão sobre a alteridade, à descoberta do Outro que está mais
próximo geograficamente do que imaginava em princípio, sob a ótica das categorias
antropológicas foi, para mim, uma descoberta ímpar. Esses teóricos contribuíram para que eu
atingisse a compreensão de que o conhecimento antropológico é resultado de “um singular
processo de construção de pensamento [...]” (ECKERT; ROCHA, 2009, p. 2) que, assim
como em Grande sertão: veredas, “[...] o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe
para a gente é no meio da travessia.” (GUIMARÃES, 2013, p. 4) A compreensão da
etnografia não se dá antes, tampouco depois, mas no interior do trabalho de campo, onde tudo
acontece. A teoria é aplicada e refletida, cotidianamente, no próprio fazer e se transforma
segundo a concepção de práxis49 defendida por Paulo Freire. O conhecimento antropológico é
um conhecimento científico que não pode se privar da prática, muito menos de deixar
implícito, ou parcialmente explícito, o processo de conceituação que acompanha seus saberes
práticos. Cornélia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha (2009) nos apresentam uma
premissa para a produção etnográfica, segundo a qual:
Por conseguinte, toda pesquisa de campo, embasada pela etnografia, é motivada pela
intencionalidade e pensamentos de seus envolvidos. Na interlocução desses atores,
pesquisador e pesquisados, durante a experiência que transforma o banal no inusitado, é que a
etnografia se realiza.
Assim refletindo, a leitura do artigo de Mariza Gomes e Souza Peirano (1995), A favor
da etnografia, se fez necessária. Nele, a autora investe na (re)leitura da tendência crítica da
antropologia internacional e homenageia a retomada reflexiva do fazer etnográfico,
inaugurada por Clifford Geertz (1999). A partir de interlocuções teóricas profícuas dos
clássicos, ensina-nos a fazer etnografia com quem sabe realizá-la, elucida que o “mal-
49
Paulo Freire aprofunda o conceito de práxis, como sendo a capacidade de o sujeito atuar e refletir, i.é, de
transformar a realidade conforme as finalidades concebidas pelas pessoas envolvidas. Engendra uma “teoria
pedagógica a partir da práxis, da dialética consideração entre a vivência das condições identitárias do ser
humano e a sua disposição à educabilidade.” Refletir sobre os conceitos do humano e da educação no
pensamento de Freire envolve ação fundamental no processo de compreensão da sua teoria pedagógico-
libertadora. (SOLON FREIRE, 2017).
148
entendido” e/ou “desconhecido” não se referem a uma situação em que o sentido do que está
sendo dito e ouvido pelo pesquisador se polemiza com a racionalidade de sua comunidade
linguística, mas o sentido do que está sendo dito e ouvido contempla uma tensão inerente ao
encontro etnográfico e se faz necessária à compreensão mais profunda do Outro.
A compreensão sobre esse saber/fazer é ampliada pelo texto de Roberto Cardoso de
Oliveira (1993), O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir e escrever, pois foi a partir dele que
passei a observar com atenção, coloquei-me à disposição da escuta e me concentrei na escrita,
etapas básicas da etnografia, cujo projeto científico é produzir conhecimento antropológico.
São ações que demandam exercícios cognitivos e reflexivos indissociáveis do pensamento
antropológico. É por esse processo, em particular pela escrita, que nos colocamos
representativamente no mundo do Outro. E, ao fazê-lo, colocando a voz do outro fora do seu
campo de enunciação, o dito não se restringe à racionalidade do logos da escrita, mas se
sujeita às interações do pesquisador em interlocução com os participantes da investigação.
Mariza Gomes e Souza Peirano (1995), Roberto Cardoso de Oliveira (1993) e Clifford
Geertz (1999) nos fazem mergulhar no campo pela sensibilidade da escritura etnográfica,
desvendando a simultaneidade da aventura e da vocação do etnógrafo que narra atores em
seus dilemas, personagens em seus conflitos, sujeitos em seus dramas, pesquisador e
pesquisados em suas éticas, encontrando-se, em constante diálogo, no interior da interpretação
que se faz escrita.
Por estas razões, fiquei atenta a alguns desafios e dilemas gerados nas situações de
campo e suas implicações para o encontro etnográfico entre mim e as crianças e sua cultura
como: pensar e procurar compreender mal-entendidos; relativizar o desconhecido; refletir
sobre minha experiência na promoção do diálogo; cuidar da linguagem para que fosse
compreendida pelo pesquisado; nunca me esquecer do rigor metodológico na busca de um
diálogo mais cuidadoso e diligente com o Outro; questionar a minha representação no mundo
do Outro, em especial pela via da escrita. Não atentei para estas questões sozinha, devo
créditos aos teóricos lidos em conjunção com a orientação recebida. É necessário considerar,
penso, que as respostas elaboradas sobre o Outro nos trabalhos canônicos são apreendidas a
partir da leitura e interpretação de novas gerações de etnógrafos que podem, agora, fazer
novas perguntas.
Todos esses teóricos marcaram minha trajetória de pesquisa e minha introdução na
etnografia ao fazerem reflexões acerca do lugar da etnografia na produção do conhecimento e
sobre a complexidade de se colocar no lugar do Outro, principalmente quando esse outro está
tão próximo que se torna difícil enxergá-lo em sua profundeza. Depois das leituras realizadas
149
fica difícil não avaliar as implicações de nossos saberes/fazeres sobre aqueles com quem
partilhamos nossa pesquisa.
Lembro-me do véu romântico com que me cobri no encontro intersubjetivo com as
crianças nos primeiros contatos e, posteriormente, sendo preciso despi-lo para problematizar o
campo. Uma prática atravessada por reflexões acerca das diferentes condições sociopolíticas e
econômicas no processo de interlocução entre mim e as participantes, o que revelou algumas
tensões e questões éticas que perpassaram a minha experiência etnográfica, neófita que sou.
Por isso, foi fundamental ficar atenta às relações de poder, e aos constrangimentos que toda
prática etnográfica nos coloca e que se impõem como condição para o conhecimento do Outro
e de mim mesma.
Em nossa época, as complexidades convocaram habilidades etnográficas de outros
modos de ver, de interpretar e de expor o apreendido. Reconhecer que houve mudanças no
estilo de escrita em face de novas possibilidades de comunicação, com a consolidação de
novas tecnologias, já é um passo rumo aos novos meios de fazer etnografia. Assim, também é
com as fotografias e vídeos que são, por si só, etnografia. Numa interação, num jogo de
atribuições de reconhecimentos/estranhamentos que me possibilitam experimentar uma teoria
em ato. No olhar intrigado do Outro, a questão do adulto da pesquisadora que convoca ao
debate as crianças (autores e atores) que dão à etnografia a dimensão de uma descoberta de si
no descobrir o Outro. Nas pegadas de Paul Ricoeur (1968) viver a experiência intersubjetiva
da etnografia sobre/com o Outro em minha experiência com o corpo. Ver-me pensando e
observando e, simultaneamente, sendo pensada e observada pelas crianças.
Constatamos a presença constante da Antropologia nos embates sociopolíticos da
contemporaneidade. Assim foi, entre outros temas, com relação ao: reconhecimento dos
direitos humanos e das minorias, da globalização, do risco global, da propriedade intelectual,
que vemos configurados novos movimentos intelectuais da disciplina em transformação e de
questões epistemológicas que interrogam a escrita etnográfica e a autoridade do antropólogo.
Mariza Gomes e Souza Peirano (2009) atualiza, na investigação etnográfica, os temas
da ampliação dos direitos, do reconhecimento da cidadania e do poder do Estado, que se
consolidam no campo do saber antropológico neste século XXI. A etnografia O paradoxo
dos documentos de identidade: relato de uma experiência nos Estados Unidos revigora os
sentidos da configuração social do mundo moderno.
Patrick Gaboriau e Philippe Gaboriau (2009) em Vers un nouvel artisanat? Quelle
enquête pour quel terrain nos apresentam o fazer etnográfico como um esforço artesanal.
Assim como a arte de bricolagem, a etnografia exige cuidado com a diversidade de fatores em
150
encontraram para estabelecer contato com os balineses, embaraço compartilhado pela maioria
dos pesquisadores, eu inclusive. O teórico nos ensina como lidar com essa dificuldade:
mostrando-se aberto, acessível e disponível para possibilitar que o outro tome a iniciativa e
não forçando a aproximação. Talvez o mais importante, nos primeiros contatos de imersão no
campo, fosse sentir o lugar, observar o espaço, ouvir as pessoas e buscar compreender as
suas configurações e movimentos, pois, é necessário considerar que nossa presença interfere,
sobremaneira, no contexto.
Essa presença é marcada por observações, reconhecimento e interpretação dos
paradoxos entre pertenças e identidades versus discriminações, embates, conflitos e
resistências que a rede de relações movimenta. Também busca reconhecer as disputas que
estão em jogo nesse palco em torno dos sentidos que a noção de cidadania pode comungar.
Nessa instância, Marluci Menezes (2012) abre para as interpretações possíveis desse lugar em
suas dramáticas relações sociais no contexto urbano, através dessa etnografia da circunstância
presente.
Hélio Silva (2009), numa evidente referência ao texto de Roberto Cardoso de Oliveira
(1993) em seu artigo: A situação etnográfica: andar e ver mostra-nos que entre prescrições e
efemeridades, a etnografia é um jogo dramático, acionado pelo ato de andar, ver e escrever,
que apresenta tensões entre objetividades e subjetividades, sendo, pois, movimentos entre "os
influxos dos outros". O etnógrafo segue seu percurso, que também é o percurso da etnografia,
o deslocamento de um lugar ao outro, de uma pessoa à outra. Lembrando Marcel Mauss
(1974) são sempre misturas. Nesse fluxo (andar, ver e escrever), nada ingênuo, puro, ou fácil,
reside o mistério e a inteligibilidade da imaginação criadora, assim como a arte da circulação
do conhecimento revelado pela etnografia.
Um pesquisador que não considera a imaginação das crianças investigadas em
comparação com sua própria imaginação, não “compreende a natureza do que observa, do que
vê e experimenta na relação com esse outro sujeito que com ele partilha a vida.” Cabe,
portanto, para essa apreensão procurar, constantemente, compreender-se a si próprio,
“resgatando sua infância na infância do outro”; assim como “as experiências vividas por ele
próprio e pela criança”; e não deixar de considerar “os adultos significativos que mediaram
seus caminhos em busca de outros horizontes” (GUSMÃO, 2012, p. 175).
Esse exercício de conhecer exige flexibilidade para pensar quem sou e o que não sou
no contexto em que vivemos, para, a partir daí, reconhecer no nosso mundo o mundo alheio, a
vida do outro como parte integrante da nossa vida e criar pontes, abrir passagens para que haja
o trânsito democrático e solidário num espaço comum que se materializa nesta tese.
152
[...] uma dimensão, uma esfera interativa e interligada com outras, um elo e uma
trama (no bom sentido da palavra) na teia de símbolos e saberes, de sentidos e
significados, como também de códigos, de instituições que figuram uma cultura,
uma pluralidade interconectada, (não raro entre acordos e conflitos) de cultura e
entre culturas, situadas em uma ou entre várias sociedades. (BRANDÃO, 2013, p.
12).
educação como cultura, tornou-se um referencial por tudo que representa de respeito, ética e
comprometimento político-pedagógico com as pessoas que anseiam por uma sociedade onde
haja justiça social e não contradições, em que a exploração do homem pelo seu semelhante
tenha sido extirpada. Na perspectiva do autor,
50
Segundo informações dos idosos do quilombo, as terras eram delimitadas e pertenciam às famílias, fosse por
herança, fosse pelo uso.
156
neles mergulhar, acaba sendo por eles fecundada, alargando suas possibilidades ao se
descobrir múltipla e plurissignificativa. Sua identidade é assim concebida através do olhar
antropológico, reconhecer-se no(s) Outro(s).
Sei que vou por aí. Decidi. Mas precisei definir como seguir as pegadas e trilhas.
Para compreender os avanços na pesquisa sobre temas similares ao tema de minha
tese, fiz um levantamento quantitativo e breve análise da produção acadêmica registrada no
banco de teses e dissertações da CAPES e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia (IBICT). Selecionei, entre as pesquisas cadastradas, aquelas que trouxeram os
termos: criança e quilombo, em particular, e uma ou mais palavras da relação: infância,
cultura, educação, ludicidade e etnografia, dentro do recorte temporário de dez anos de
pesquisa de 2006 até 2016.
Tratou-se de um esforço no sentido de contribuir para a composição do estado da arte
das pesquisas com crianças quilombolas e buscar construir instrumentos e subsídios para
investigações sobre as crianças quilombolas do Nordeste, Alto Sertão da Bahia, em especial,
do município de Caetité. Para tanto, adotei a seguinte metodologia:
O quadro demonstra que entre os anos de 2006 e de 2015 apenas doze pesquisas
tiveram a criança quilombola como sujeito de investigação. Essas pesquisas ocorreram em
diferentes partes do Brasil e em diferentes instituições, havendo uma predominância nas
instituições públicas, principalmente as federais. A temática gira em torno do pertencimento,
da constituição do autoconceito e da autoestima, violências silenciadas, políticas públicas e
diferença, o lúdico, participação no cotidiano e relatos orais, educação infantil, território e a
constituição da identidade quilombola.
O ápice da produção acadêmica ocorreu no ano de 2008, com a produção de cinco
dissertações de mestrado. Informação que possibilitou constatar o aumento significativo da
produção acadêmica nessa direção. Uma das hipóteses desse aumento pode ter sido em
decorrência do lançamento do Programa Brasil Quilombola, em 2004, pela Secretaria
Especial para a Promoção da Igualdade Racial, que propiciou maior visibilidade à causa
quilombola em âmbito nacional. Entretanto, o aumento ocorrido em 2008 não se confirmou
nos anos seguintes em nível de mestrado e doutorado. E a primeira tese de doutoramento
encontrada sobre o assunto data de 2010, portanto, é ainda recente o interesse dos
pesquisadores pelas culturas das crianças e suas infâncias.
Não é difícil constatar que o tema não atraiu, até a data pesquisada, muitos
interessados, não em nível de mestrado e de doutorado. No período de dez anos, os estudos
tendo a educação de crianças quilombolas como tema expandiram muito pouco, o que
significa dizer que se houve um aumento nas pesquisas, cujo interesse é a criança quilombola,
este se deu no nível da graduação e especialização lato senso..
Não bastasse a dificuldade de realizar pesquisa no Brasil e constatar que o número de
produção de pesquisa nessa temática é praticamente irrelevante, o interesse do Sul e Sudeste
para com as pesquisas realizadas no Norte e Nordeste do país é inexistente, como se nesses
estados “periféricos” não houvesse pesquisa de qualidade que fosse relevante conhecer. As
investigações realizadas fora do eixo Centro-Sul são colocadas numa espécie de limbo, ou é
completamente ignorada por nossos pares. Uma produção de ciência que deve ser visibilizada
como as demais do país, porque o Norte e Nordeste tem realizado pesquisas de relevância
para a humanidade que merecem ser divulgadas e respeitadas pelos pares.
As mencionadas pesquisas foram fulcrais para os meus estudos, entretanto, os recortes
não privaram a referência a algum pesquisador ou pesquisa de outras épocas que tenham
contribuído, significativamente, para este estudo.
A etnografia mostrou, nesse percurso, ser o melhor meio de se atingir os objetivos.
Não pense que foi fácil. Fazer etnografia é uma tarefa complexa para nós, neófitos nos
160
Examinei meus dragões, que, às vezes cuspiam fogo, noutras me permitiam voar pelos
campos em profundo relaxamento. Confesso que as cuspidelas foram mais frequentes, mas
não assustaram, antes desafiavam. Assim foi, entre fogo e ventania, o meu percurso no
campo. Na bagagem, muitas expectativas e receios desta escrita.
Retomar o caderno de campo, companheiro inseparável da máquina fotográfica e de
meu punho, examinar com um olhar crítico e, simultaneamente, terno pelas lembranças de
passagens saborosas (e outras nem tanto) de um momento único vivido com as crianças. A
memória, fragmentária por natureza, por isso o registro no caderno ajudou a compor o painel
onde tudo aconteceu. “O sentido de identidade depende em grande parte da organização
desses pedaços, fragmentos de fatos e episódios separados. O passado, assim, é descontínuo”
(VELHO, 1987, p. 103), e prega peças, ao deixar espaços vazios que precisamos preencher
com a imaginação, “[...] o projeto existe no mundo da intersubjetividade" e de lá o trouxe
estruturado em sentido que compartilho com o leitor. Construir um texto que tenha sentido e
signifique para mim e para você, requer coerência na costura desses fragmentos de memória.
Aqui e acolá, nas páginas do caderno fui grafado o que me pareceu no momento interessar a
esta tese. Hoje, percebo que fora do caderno ficaram, dispersos na memória, outros registros
tão importantes quanto e que preciso recuperar, num exercício de catar feijão à moda de João
Cabral de Melo Neto, para cerzir às anotações, dando-lhe corpo coeso e sentido denso. “[...]
A consistência e o significado desse passado e da memória articulam-se à elaboração de
projetos que dão sentido e estabelecem continuidade entre esses diferentes momentos e
situações.” (VELHO, 1987, p. 103)
Assim fui, caminhando na poeira e entre pedras, sem contudo, perder de vista minhas
suposições de que o adjetivo “quilombola”, agregado ao substantivo criança, carrega um peso
semântico relacionado à escravidão, fazendo com que outras crianças negras se considerem
superiores a elas por não serem quilombolas. Desta forma pensando, me veio outra suposição:
a de que a construção dessa(s) identidade(s), pelas narrativas, repercute nas formas de
162
51
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“Hye won hye” - Símbolo da indestrutibilidade e da durabilidade. Do proverbio: Hye wonnhye. Tradução:
Aquele que não se queima. Este símbolo adquiriu esse significado através da prática dos sacerdotes
tradicionais de caminhar sobre o fogo sem queimar os pés, servindo como inspiração para os homens a
suportar e superar as dificuldades. Um exemplo de resistência e de superação das dificuldades e das
adversidades. (ZEIGER, 2012b)
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Fonte: Núcleo de Pesquisa e Extensão do Território Sertão Produtivo: Fortalecendo o Semiárido (NEPETESP,
2018).
Fonte: Organizado pela pesquisadora e elaborado por Rafael Dias de (CAETITÉ, 2018)
166
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As expressões: “Sampauleiro” e “ilhas de civilidade” foram tomadas de empréstimo à autora Ely Souza Estrela
(2003).
167
habitantes em 2010, passou para 52.166 em 2014. Esse aumento da população elevou o seu
status para municípios com população superior a 50 mil habitantes. O que significa que o
Fundo de Participação Municipal (FPM) do coeficiente 2.0 passou para 2.2 a partir de 2014,
trazendo maior arrecadação e, consequentemente, possibilidade de maior acesso aos diversos
programas federais.
Entre as razões deste crescimento estão o êxodo populacional e a incorporação de
áreas de direito ao município de Caetité, anteriormente localizadas nos municípios limítrofes:
Paramirim, Tanque Novo e Livramento de Nossa Senhora, e que eram mantidas por políticas
públicas de Caetité sem, contudo, haver repasse de verbas do governo federal, em razão do
pertencimento demográfico dessas comunidades aos citados municípios. As estimativas
populacionais são fundamentais para o cálculo de indicadores econômicos e
sociodemográficos e são, também, um dos parâmetros utilizados pelo Tribunal de Contas da
União (TCU) na distribuição do Fundo de Participação aos Estados e Municípios (FPM).
Com a redefinição territorial, pela Lei nº 12.057 de 11/01/2011, Caetité passou a
abranger mais 14 comunidades rurais: Cercado, Vereda dos Cais, Paiol, Bacamarte, Lajedo de
Orouca, Vargem do Sal, Baixão, Gerais da Pindobeira, Baixa do Cardoso, Riacho de Pinto,
Alagadiço, Barrinha dos Cais, Buracão dos Magalhães e Sambaíba. (QUINTÃO, 2013) A
seguir, representados no mapa do município com a indicação das áreas que foram agregadas
destacadas em verde escuro:
O distrito é bem pequeno, com uma população estimada de 1500 a 2000 pessoas. A
maioria dos moradores é constituída por trabalhadores do campo que trabalham na agricultura
familiar. Da fonte de renda da população sobressai a agricultura e a agropecuária, ambas em
pequena quantidade, dividindo a criação em suínos e bovinos. Entre os alimentos plantados
destacam-se: o milho, o feijão, a cana de açúcar, as hortaliças e a mandioca, com destaque
para os seus derivados.
A Secretaria de Desenvolvimento Rural do Estado, por meio da Secretaria Especial de
Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (CAR), vem propondo parcerias com
Organização, Funcionamento e Planejamento do Serviço Territorial de Apoio à Agricultura
Familiar (SETAF’s) e Serviço Municipal de Apoio à Agricultura Familiar (SEMAF’s) para
implementar programas, projetos e ações para melhorar a qualidade de vida dos agricultores.
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Desenvolvido pela Secretária Municipal de Desenvolvimento Social com objetivo de proporcionar a inclusão
social dos idosos
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Em 1994, o Ministério da Saúde criou o PSF, composto por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e
agentes comunitários de saúde para atendimento na unidade básica de saúde ou no domicílio. Seu objetivo
principal era reorganizar a prática da saúde em novas bases, levando a saúde preventiva para mais perto da
família, melhorando a qualidade de vida das pessoas.
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Ainda no tocante ao lazer, existe no entorno da escola uma pracinha arborizada que é
utilizada para realização de alguns eventos escolares e religiosos da comunidade, como: as
festas juninas, com apresentação de quadrilhas, concurso de forró, barraquinhas, quebra-pote,
casamento caipira e outras atividades festivas.
Como em muitos lugares pequenos, a comunidade se vira com o que tem para distrair.
O futebol nos finais de semana, no campinho improvisado, ou um passeio na pracinha de
mãos dadas com a namorada, ou ainda, uma visita dos amigos para ouvir música ou assistir
TV envolve os mais jovens; os adultos bebem e jogam sinuca nos bares.
Às mulheres sobra uma conversa rápida no mercadinho, as tarefas domésticas
diminuídas, a feitura de um almoço mais elaborado, incluindo o frango caipira, a TV depois
de a cozinha arrumada, ou uma visita à comadre e parentes. Só mesmo nas festas sociais e/ou
religiosas é possível garantir maior diversão. Como em muitos outros lugares, o trabalho
feminino não cessa, nem mesmo aos domingos.
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Mmere dane - Símbolo da mudança e da dinâmica da vida. Ensina a aceitar o fluir da vida e a deixar de
pensar que somos vítimas. Originado do provérbio “Mmere dane, dane”, que significa “O tempo muda,
muda”. A vida não é água parada, é um rio que corre. Sem mudanças, o tempo não pode existir. As pessoas
mudam, a terra se transforma, os alimentos amadurecem e apodrecem, os governos têm sua ascensão e
colapso, os organismos evoluem e se extinguem. As mudanças geralmente acompanhadas por aflições. Ao
aceitarmos a mudança, nossa alma se harmoniza e pacifica. Este símbolo nos alerta a fluir de acordo com os
movimentos da vida. (ZEIGER, 2012c)
174
deixou como legado sua história de bravura. É um símbolo da luta contra a escravidão e um
dos grandes líderes de nossa história, razão pela qual o dia 20 de novembro, data de sua
morte, foi escolhido para comemorar o Dia da Consciência Negra em todo território nacional.
A historiografia não faz justiça à esposa de Zumbi, Dandara, mulher forte e guerreira,
que lutou bravamente ao lado do companheiro, não atrás dele, pela libertação de sua gente.
A forma de organização social e a construção identitária do Quilombo Sambaíba estão
atravessadas por questões mais amplas que afetam todos os membros da comunidade,
inclusive as crianças. Estudar essas crianças envolve a compreensão de seu cotidiano e suas
lutas diárias, suas lutas institucionais e territoriais internas, as relações estabelecidas entre
seus membros e também fora da comunidade. Não posso desconsiderar, ou colocar em
segundo plano, que o quilombo é um espaço de disputas e nascer neste espaço específico,
determina o modus vivendi de todos, mas, principalmente, das crianças, que são as mais
afetadas quando há ausência de políticas públicas. São elas que sofrem as consequências do
descaso dos governantes.
Conforme nos explica Kabengele Munanga (2012), a forma de organização no
quilombo, foi introduzida no Brasil pelos negros de etnia Bantos, em razão de ela ser comum
aos territórios pertencentes a esse povo em África. Com as palavras dele: “Os bantos, os
primeiros a chegar, deram o primeiro exemplo de resistência à escravidão na recuperação do
modelo africano do “quilombo”, importado da área geográfico-cultural Congo-Angola.”
(MUNANGA, 2012, p. 92) Como não existem fontes primárias visuais de Palmares, a
imagem descritiva de um típico quilombo colonial possibilita-nos reconstruir o que poderia
ter sido Palmares no século dezessete. Podemos deduzir que muitos quilombos eram
semelhantes no que diz respeito à construção e proteção: localizado num descampado,
cercado por floresta. Ao lado de sua estrutura militar e política, a geografia tornou bastante
difícil derrotar Palmares.
176
Figura 5 - Quilombo de São Gonçalo (1769): I -Casas de ferreiro; II - Buracos por onde
fugiram; III - Horta que tinham; IV- Entrada com 2 fojos; V-Trincheira de altura de 10
palmos; VI - Parede de Casa; VII - Casa de pilões; VIII - Saída com estrepes; IX -
Matos; X
Isto não quer dizer que não tenha havido diferentes formas de ocupação e organização.
Segue alguns exemplos:
Figura 7 - Quilombo dos Santos Fortes: I - Casas do quilombo; II - Roça que se plantou;
III - Petipé de [ - ] 5 passos, -Pelipé: escala de reduções utilizada em mapas e cartas.
(descrição conforme fonte)
estavam localizados.
As comunidades de remanescentes quilombolas atuais, também, variam em forma de
organização e geografia, mas conservam, embora os tempos sejam outros, o modo de
sobrevivência e o respeito à natureza e às tradições herdadas, mesmo que transformadas,
porque dinâmicas. Podemos inferir que as plantações de milho e mandioca, assim como
destinar uma das casas para reuniões permaneceram vivas na memória coletiva desse povo.
Segundo pesquisa realizada pela Fundação Cultural Palmares (FCP, 2016a), existem
comunidades remanescentes de quilombos em quase todos os estados, com exceção dos
estados do Acre, Roraima e do Distrito Federal. Os que possuem o maior número de
comunidades remanescentes de quilombos são Bahia, Maranhão, Minas Gerais e Pará. Vale
ressaltar, com base em dados da FCP, que ao longo dos quinze anos de vigência do Decreto nº
4.887/2003 (BRASIL, 2003a), foram pela fundação certificadas 2.958 comunidades e
tituladas no todo, ou em parte, pelo INCRA, 151 territórios. Ainda publicou o Relatório
Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) de 238 comunidades, possuindo em aberto
1.536 processos. Afirma a FCP que no período essas comunidades “[...] foram adquirindo
prestígio e sua proteção, preservação e promoção foram ganhando reconhecimento”, possível
de ser constatado “[...] pelo número de normativos jurídicos que foram editados”, os quais
tratam da questão quilombola. (FCP, Em defesa do Decreto 4887/2003) (FUNDAÇÃO
CULTURAL PALMARES, 2016a)
A Bahia concentra o maior número de quilombos, distribuídos por todo Estado.
Apenas no Município de Caetité, existem 24 comunidades identificadas que se reconhecem
como remanescentes quilombolas, entre elas, apenas 13, inclusive Sambaíba, são
reconhecidas e certificadas pelos órgãos competentes FCP e Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
O quadro a seguir apresenta as Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs)
do município de Caetité para as quais foram expedidas as certidões, com respectivas datas da
abertura do processo:
180
dentro”. A festa de São João é tradicional no sertão. As casas se enchem de fartura para
receber a família, cada qual dentro de sua possibilidade. Do forno brotam chimango, xiringa e
bolos. No dia da fogueira, galinha assada, os mais “fortes56” leitão. Muitos que foram para
São Paulo, em busca de melhores condições de vida regressam. No dia 24, todos se assentam
em volta da fogueira. É junho. Reunir em torno do fogo é um costume de brancos, índios e
negros, assim permanece até hoje entre nós, mestiços, esse aquecer e conversar sob a luz das
estrelas e do calor das labaredas que brincam na escuridão e aquece do frio.
Não houve demora, precisávamos seguir viagem para Sambaíba, a casa do caminho
ficou para trás, assim como o nome dos donos que não me lembro de nos ter dito. Curvas,
retas, poeira, solavancos, paisagem bonita, outras nem tanto pelo castigo da estiagem. Senti-
me aliviada com a visão da primeira casa de Sambaíba. Cessaram os solavancos de uma
estrada pouco cuidada pela administração pública.
A comunidade remanescente de Sambaíba possui as casas dispostas, mais ou menos,
num percurso linear.
Foto 3 - Vista aérea de Sambaíba
56
É costume no sertão dizer que a pessoa pobre é fraca e o abastado é forte.
184
Casas de um lado e outro da estrada formando uma rua. Não eram simétricas,
tampouco regulares, mesmo assim em uma disposição em paralela. Encontrei meninos que
jogavam bola numa área de areia resultado do alargamento, em ambos os lados da estrada,
talvez em decorrência das frequentes brincadeiras, o chão foi se acomodando e sedimentando
em favor das crianças. Desci do carro e me aproximei. Em princípio, olhares desconfiados,
estranhando nossa presença intrusa. De outro, o meu olhar “ignorante” de alguém que julga
tudo conhecer. Puxei conversa sobre futebol, eles responderam monossilábico sem
continuidade. Pergunto se posso jogar com eles, assentem, duvidando da façanha. Adentro na
peleja. Minha performance provoca risos na garotada. Quebra-se o gelo. Anos de
sedentarismo e excesso de peso resultaram num desempenho pouco convincente de que jogara
futebol um dia. Mesmo assim, continuo para conquistar a confiança dos meninos. A peripécia
não dura, sinto-me ofegante, sintoma de que atingira o meu limite. Preciso de cadeira e água.
As crianças me indicam a casa do senhor Silvano, agradeço pelo jogo e pela indicação.
Dona Maria, seu Silvano e a filha Marina nos recebem desconfiados. Conversamos curto
tempo, peço água. Saciada, levanto para partir. Dona Maria pergunta o motivo de nossa
presença por aquelas “bandas”, digo apenas que estou de visita para conhecer o lugar. Minha
amiga diz que está em campanha política, pois se candidatou à vereadora. Sinto meu rosto em
chamas. Na parede da pequena casa uma estampa enorme do candidato da oposição. Tenho de
admitir, ela foi corajosa. Mas a mim pareceu desrespeito. Com explicação de minha amiga,
enterro a verdade de meu propósito. Não mais convenço. Em véspera de eleição, tudo parece
185
enganação. Só parece? É enganação. Coisa mais não teria a dizer naquele momento, além do
dito. Por ser verdade.
Seguimos em frente para o outro lado de Sambaíba que disseram ser o início.
Descobri, depois, que chegamos pela estrada de Caldeiras, menos usada e mais distante. Para
ser sincera, leitor, não entendi por que onde chegamos seria o fim, se poderia também ser o
início. O ponto de vista decide. Posteriormente, entendi que do outro lado se chegava à
Sambaíba de cima, ou seja, Sambaíba pertencente ao município de Riacho de Santana.
Noutros tempos, “dos antigamente uma única Sambaíba”, de parentes e de apadrinhamentos.
Hoje, separando os parentes em Sambaíba de baixo (Riacho de Santana) e Sambaíba de cima
(Caetité), por conveniência política para garantir mais recursos para o município que
conquistou maior território e população como já mencionado.
Um deles é o repasse e verbas da União aos municípios, FPM, cujo aumento
percentual de repasse das verbas é determinado, entre outros fatores, principalmente, pela
proporção do número de habitantes, estimado anualmente pelo IBGE. Assim como o aumento
do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação (FUNDEB). Trata-se de um fundo especial, originado de recursos
dos estados, Distrito Federal e municípios, complementado por verbas da União, vinculados à
educação por força do disposto no art. 212 da Constituição Federal. Independentemente da
origem, todo o recurso gerado é redistribuído para aplicação exclusiva na educação básica
(modalidades de ensino regular), assim como na educação especial, educação de jovens e
adultos e ensino profissional integrado. Na distribuição desses recursos, são consideradas as
matrículas nas escolas públicas e conveniadas, apuradas no último censo escolar realizado
pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP/MEC). (FUNDO DE
MANUTENÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO BÁSICA E DE
VALORIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO, 2018)
Assim compreendido, seguimos para a casa de Dona Bela, uma senhora de uns 80 e
vários anos, indicada como anfitriã do lugar. Ela nos recebeu, era só sorriso largo.
Conversamos minguado, não por que ela não adiantasse prosa, conversa solta e gostosa era
com ela mesma, mas havia pressa da amiga na conquista de votos em outros rincões. Para a
candidata, Sambaíba era trabalho perdido, de “cabo à rabo” era eleitor marcado na situação,
eleitores de fidelidade canina ao presidente da associação que indicava quem deveria ser, ou
não votado naquela eleição, bastava um rápido olhar nas porta, ou janelas das casas para
constatar a coincidência das imagens estampadas. Palavra dita por ele era cumprir e pronto.
Dona Bela explicou à candidata que lhe pediu voto:
186
Dona moça, a sInhora parece inté ser boa pessoa, mas Zé Nilto [Genilton] já falô em
quem nóis vai votá esse anU, ocêIs viram aí na minha porta a foto do prefeitu com o
veriadô? Eu inté nem voto, passei da idade, mais meus fio e meus neto vota nesse
aí. Zé Nilto é um pai prá nóis aqui na Sambaíba. Ele fala pra nóis acompanhá ele e
nóis acompanha. (Residência de Dona Bela, conversa na primeira visita).
Nesta visita, ficou claro para mim que se tratava de um quilombo, cujo comando
estava nas mãos do Sr. Genilton, a quem todos “obedeciam”. Com essa explicação de Dona
Bela pusemos ponto final na prosa. Terei algumas fotos com a permissão dela. Ofereceu-nos
café com beiju. Aceitamos, agradecemos e partimos, com a promessa de lhe enviar a melhor
foto.
Tempo passou, cumpri a promessa num porta-retratos que ela conserva na estante da
sala.
A maioria dos quilombolas de Sambaíba não sabe ler: “[...] sei di praticá só o meu
nomi, de cor dona, e não di iscrita, só sei issu memu desenhá meu nomi. Si a sinhora virá a
foia di cabeça pra baxu já num sei si é ou num é meu nomi” (Joel, conversa em 12/2015).
Mas, o povo vive enredado num dilema com leis, normas, processos e burocracia. O tenso
diálogo para a legalização do território exige uma linguagem que não dominam, por esta
187
razão, precisam ser tutelados, dependendo de terceiros para a obtenção dos documentos
necessários tanto para certificação, como para o registro definitivo da terra, assim é em
Sambaíba também, uma trilha desigual que percorrem em busca da cidadania.
Esses grupos se organizam conforme regras que estabelecem, que pode ser segundo
laço de parentesco consanguíneo, ou não, num território onde levantam moradias e retiram o
sustento material e simbólico, que lhes dá sentido de pertencimento étnico racial (ABA, 1995;
ARRUTI; GUSMÃO 1995, 2012)
As crianças, parte dessa comunidade, aprendem desde cedo o valor da terra e a
importância de sua identidade negra, embora não saibam direito o que vem a ser “SER
QUILOMBOLA”. A partir desse ponto, busco situar estas crianças de Sambaíba no contexto
histórico, social, político e econômico em que se encontram desde a história contada por seus
ancestrais, modo de vida, patrimônio material e imaterial preservados, e o cotidiano atual para
que possa mapear os saberes e fazeres dessa infância tão parecida com outras de outros
quilombos brasileiros e, ao mesmo tempo, singular às demais crianças negras do país.
tenha sido clara o suficiente. Disseram que não acreditavam em pesquisadores, porque outros
lá estiveram, com quem contribuíram, mas que depois nunca mais os viram, deixando-os sem
saber o que haviam escrito sobre eles. Acrescentaram que pesquisa alguma trouxe benefícios
à comunidade e que esta não seria diferente.
Tentei explicar sobre as razões da escolha, afirmei que todo o material colhido nas
entrevistas, as fotografias e outros materiais, seriam disponibilizados para que pudessem
opinar o que poderia, ou não, ser publicado. Também falei de meu propósito de escrever a
história de Sambaíba ao final da tese para deixar como agradecimento à comunidade. Um
deles disse que um professor havia pesquisado, e depois escrito um livro, mas que nunca o
viram de fato. Respondi que conhecia o professor, mas que nada sabia sobre o mencionado
livro, mas que procuraria saber para eles, assim como não poderia dizer pelo colega, mas
poderia garantir-lhes, com minha palavra, que faria diferente e que para esse fim tinha comigo
documentos de autorização de publicação tanto da fala, quanto da exposição das fotografias.
Expliquei sobre a divulgação do nome verdadeiro se consentissem, ou do uso um nome
figurado. Momento de silêncio. Nem as crianças falavam. Nunca imaginei sofrer tanto por
causa de um momento de silencio. Pareceu eterno. Nada pude perceber nas expressões de seus
rostos. Aguardei.
Um senhor idoso pediu a palavra e perguntou se podia falar sobre a fundação do lugar,
assenti. O que ouvi em seguida foi uma narrativa incrível, que a falta de experiência
impossibilitou-me gravar. Não levara o gravador em razão de ainda não ter os termos de
consentimento assinados. Poderia ter solicitado no momento, mas por não imaginar que
pudesse emergir naquela reunião uma oportunidade, perdi. Mas sai dessa experiência com a
aprendizagem de que fazer etnografia significa estar preparada para colher informações a todo
instante e em qualquer lugar, independentemente do propósito do encontro. Um lapso que
jamais voltou a ocorrer. Aprendi a lição.
À medida que o senhor narrava, creio que os demais observaram o meu interesse na
escuta e alguns também se aventuraram a acrescentar uma lembrança, ou outra. Que foram,
semanas depois, aprofundadas nas entrevistas.
Após as narrativas, senti certo alívio em ver pessoas sorrindo se abrindo mais. Disse
que encaminharia os termos de consentimento e assentimento pelos alunos da escola e mais
uma vez expliquei sobre a finalidade deles. Tive a impressão que todos haviam entendido.
Terminada a reunião agradeci a presença de todos e pedi aos presentes para
assinassem uma lista, que serviu para ir conhecendo o nome das pessoas e possíveis
parentescos.
190
Segui para conversar com Dona Bela, indicada como a casa que costuma receber
visitantes. Algumas crianças seguiram-me curiosas, mas indiferentes. Espiavam minha
conversa da porta. Como já a conhecia a abordagem foi bem mais tranquila. Conversei com
ela sobre a possibilidade de me hospedar em sua residência, considerando não haver em
Sambaíba casa vazia para aluguel e o fato de apenas ela receber pessoas. Ela aceitou de
imediato. Perguntei sobre o pagamento ou se preferia que eu trouxesse supermercado ao que
ela afirmou “Tomu conta di tudo podi deixá, eu costumu recebe o povu que vem da rua
[cidade]. Mas sô diabética, quandu tiver ruim da duença, você cozinha pra nois duas”.
Balancei a cabeça assentindo. Nada acrescentei, ela deixou claro que comanda. Uma
aprendizagem: na comunidade o que se tem pode ser repartido.
A viagem de volta foi bem tranquila, meu coração se acomodara. As informações
colhidas durante a reunião foram anotadas no caderno de campo, assim que regressei à casa,
elas apontaram alguns caminhos.
A indiferença, sem dúvida, era estudada; os aldeões vigiavam cada movimento que
fazíamos e dispunham de uma quantidade enorme de informações bastante corretas
sobre quem éramos e o que pretendíamos fazer. Mas eles agiam como se nós
simplesmente não existíssemos e esse comportamento era para nos informar que de
fato nós não existíamos, ou ainda não existíamos.(GEERTZ, 2014a, p. 185, grifos
nossos)
E, com Anthony Goldman (2008), buscar fortalecer o que há em mim de comum com
essas crianças e seus contextos pelo intercâmbio de ideias e conhecimentos que esse diálogo
pode suscitar. Essas conexões surgem quando nossas ideias são desorganizadas pelo
surpreendente. As respostas não vieram prontas nem rascunhadas, simplesmente não vieram.
Coube a mim o risco de aceitar ou recusar de imediato uma contrapartida, mesmo antes de
realizar a pesquisa.
193
57
Informações extraídas em sala de aula ministrada pela prof. Sandra Pereira Tosta, da Pós-graduação em
Educação, doutorado, em 2014 na PUC Minas.
194
58
O grupo de cantiga de roda da comunidade é composto por doze mulheres entre 35 e 80 anos. São elas:
Adenice, Bernardina, Edina, Eliene, Generoza, Ivaneide, Judite, Lurdes, Meza, Neuza, Valdete e Zilmar. Elas
se apresentam em diferentes ocasiões como o Encontro de Comunidades Quilombola de Caetité. As mulheres
disseram que, em epócas passadas, os rapazes cantavam roda também e que aproveitavam para pegar na mão
delas. Muitos casais se formaram nessa cantoria, porque os versos também eram uma declaração de amor à
moça que podia , ou não aceitar, o cortejo do rapaz.
195
meninas. Não pedi que me acompanhassem, elas foram encostando devagar, depois uma
pergunta, depois outra. Tive a sensação de estar sendo investigada pelas crianças. Não mostrei
resistência, e as perguntas foram se multiplicando à medida que eu as respondia. Do meu
nome todas já sabiam. Onde você mora? Você têm filhos? Menino ou menina? Grandão, ou
do meu tamanho? Você é professora de crianças do tamanho de nóis? O que você vai fazer
aqui? Foram muitos questionamentos. E, todos os dias, a partir daquele, novas perguntas
foram sendo incorporadas às anteriores. Esses diálogos, ora apresentados em perguntas e
respostas, ora em narrativas, ora em cantorias nunca configuraram uma relação de hierarquia
entre mim (pesquisadora) e as crianças (pesquisados).
Ao retornar às 18 horas, fui informada por Dona Bela que deveria tomar banho, para
jantar, porque às 19 horas era hora de repousar. Como conseguir dormir às 19h, quando o
costume é as madrugadas? Noite longa naquele dezoito de agosto.
O tempo vai acomodando às coisas. Do mesmo modo que aprendi no susto a tomar
banho gelado, aprendi a dormir cedo. Com o tempo, acordando às seis da manhã o sono
começou a vir mais cedo e o corpo acostumou ao ritmo do quilombo. Nas ruas não há energia
elétrica, a escuridão toma conta. Apenas os cachorros, muitos, atrevem-se a perambular
latindo e brigando em noite sem lua.
Vou dançar conforme a música, como no ditado popular. E foi assim que, a partir
daquele dia, aprendi a tomar banho gelado e a antecipar o sono que, nas primeiras noites,
negava-se a comparecer. O leitor deve estar se perguntando por que não lia até vir o sono.
Tentei, mas logo Dona Bela veio ao quarto e “aconselhou”: “apaga essa luiz fia, ocê pricisa
durmi cedu, amanhã tem trabaio”. E assim fui me socializando na cultura do quilombo.
histórias. Adiantando o que ouvira do pai, ainda menino, sobre igualdade racial:
Sabe, Dona Luca [desde o primeiro encontro me batizou assim e assim foi até o fim]
Tem um tempo rompendo mais para beira de nois [atualmente] que todos são igual.
Tem nosso direito de viver todos igual. Hoje tem umas estrelas que brilham para o
amor. Todos igual até encostam, como a moça [referindo-se a mim, gostei demais de
ser tratada por moça]. Mas muito tempo passado, meu pai contava, tinha essas
pessoa mais asseado [brancos], que vivia em rebanho mais afastado. Deus fez o
mundo e não deixou nada dividido. Mas essa gente mais asseada deixava os moreno
[negros] recantiado. Agora, nunca tinha parado, minha irmã [vocativo, como minha
amiga], onde tiver os asseados os moreno também tão, tudo igual, e não lavam mais
as mão depois que pega na mão da gente, gente moreno, como na comunidade de
Riacho de Santana (Sambaíba de baixo), só tem gente moreno cumo nois, tudo
parente, tudo parente. (Conversa com o senhor Silvano Silva, em sua casa no dia
31.08.2015, grifos nossos)
Em seguida, conta uma história que ouviu “muito nos antigamente, ainda menino
pequeno” que ouviu da avó:
Quando Deus crio o mundo, ele crio todo mundo alvo. Numa brincadeira de mutirão
lá no paraíso, todo mundo ficaro cheio de lama preta. Deus ordeno que todo mundo
fosse tomá banho no rii. Os asseado correro na frente e voltaro alvinho. Os
preguiçoso ficaro pra trás, já tava escureceno e fazia frii. Aí os atrasado pusero na
água só a sola do pé e a palma das mão, por isso nós preto só tem a sola do pé e a
palma da mão mais branca. (Conversa com o senhor Silvano Silva, em sua casa no
dia 31.08.2015, grifos nossos)
Esse conto do Senhor Silvano Silva, não me é novo, já ouvi em diferentes ocasiões
essa explicação para a cor da pele dos negros, inclusive na infância. Mas é nesse contexto que
ele me remete a algumas reflexões, ele justifica os problemas sociais pelo conhecimento que
tem da religião, reforça o discurso branco e eurocêntrico de que o negro é preguiçoso e frágil.
E, pior, concebe a cor da pele como um castigo imposto pela divindade àqueles que são
preguiçosos, reforçando o estereótipo de que o branco é melhor, mais ativo e por isso mesmo
merece ter a cor que possui. Deduz-se ainda que, segundo a história, o branco é limpo, porque
toma banho da cabeça aos pés, enquanto os negros apenas encostam parte dos membros
superiores e inferiores na água, atestando sua tendência espurca.
É dado a muita prosa. Contou-me que
Sambaíba tem mais de 200 anu. Ouvi dizê que us iscravo fugitivu da iscravidão das
fazendas de Igaporã, fizeru morada de primeru na Fazenda Mucambu. Uma mulher
chamada di Maria Grossa caçou rezenha com us companheru e foi imbora, indu
procurá otru lugá pra morá. Acabô posseandu das terra pertu di um rio, ondi muitu
“nos antigamente” tinha pexe, hoje tá sequim. Adispois chegou mais famia de
negru. O rio é esse secu no fundo da casa de cumadi Bela, dessis primeiru nasceram
tudo nóis de Sambaíba. Mais nóis num temu parenti iscravu não.
explicaram, mas de uma coisa tinha certeza: não teve escravizados na família. Essa história do
senhor Silvano foi repetida depois por seu irmão José Pedro. Esta imposição da elite colonial
aos africanos ainda fere muito a alma desse povo. Não posso afirmar com precisão a origem
do povo de Sambaíba, pois não há documentos escritos sobre o quilombo, entretanto a história
que passa oralmente é a que acabei de relatar.
As primeiras famílias instaladas em Sambaiba tanto podem ter se originado de
escravizados fugitivos das fazendas próximas, como narração do Senhor Silvano Silva, como
se instalado no local após abolição. Conforme pesquisa de Maria de Fátima Novaes Pires
(2009), o “comércio de escravos” em Rio de Contas e Caetité, especialmente na década de
1870, foi intenso. “Muitos senhores do alto sertão da Bahia vendem os seus escravos e
registram essas transações em livros de notas do tabelionato, através de procurações e
escrituras de compra e venda”. (PIRES, 2009, p. 39) A seguir, reproduzo o quadro
apresentado pela pesquisadora em seu livro:
1860-64 42 43 46 07 138
1865-69 27 24 32 09 92
1870-74 33 33 41 06 113
1875-79 24 15 12 01 52
1880-84 19 20 02 06 47
1885-88 03 04 00 06 13
O quadro, mais que apresentar dados numéricos, ajuda a confirmar a presença de mais
ou menos 500 escravos no Alto Sertão da Bahia. Também nos leva a algumas reflexões, entre
elas a constituição de famílias, união tão cara à sobrevivência dessas pessoas nos períodos em
questão. O número de crianças nos leva a crer que foram nascidas dessas famílias formadas
no decorrer da trajetória que vai da escravidão à abolição, dentro de uma união estável que
possibilitou a resistência desse povo. Tais registros evidenciam que uniões consensuais e
casamentos ocorriam de forma regular entre os escravizados, sob a aquiescência dos senhores
proprietários.
199
Embora o quadro trate do município de modo geral, ele contribui para a compreensão
das redes de parentesco formadas, do que podemos inferir que em toda região houve
escravizados e alforriados, antes mesmo da assinatura da Lei Aurea, conforme registra a
pesquisadora em outros momentos de sua tese. Assim sendo, é possível afirmar que os
quilombolas de Sambaíba podem ter se originado de qualquer um dos descendentes dessas
famílias escravas compradas pelos senhores de Caetité que, após a abolição, espalharam-se
pelo município em busca de sobrevivência.
Ninguém sabe contar ao certo o nome das duas primeiras famílias que formaram a
população de Sambaíba, tampouco como seus antepassados adquiriam as terras, se
compraram dos donos da mencionada fazenda, se foram doadas pela Igreja, ou se
simplesmente tomaram posse. De lá para cá, são séculos de referência de suas famílias
morando naquele território. Nos cartórios do município de Caetité e circunvizinhos não há
registros que remete ao século XIX que faça menção da origem do território.
O Senhor Silvano Silva também explicou que o nome da comunidade originou-se da
árvore Sambaíba.59 Perguntei se havia muitas nas redondezas e ele informou que restou
apenas uma no meio da mata e que apenas cumpadi [Zé Pedro, seu irmão] sabia o lugar exato.
Segundo sua informação, quando a planta era abundante na região, era utilizada para
fazer gamela, utensilio importante nas tarefas dos engenhos e nas casas de farinha. As
menores utilizadas para amassar bolos nas cozinhas. As folhas ásperas, semelhantes a uma
lixa, eram indicadas para lavar panelas de barro. Assegura, entretanto, que o melhor da planta
são suas propriedades medicinais, ela é rica e poderosa como estimulante, depurativa e
afrodisíaca e no tratamento de doenças venéreas. O chá das folhas é bom para uma infinidade
de males, como auxiliar na contenção de inchaços nas pernas, diabetes, pressão alta e até dor
nas juntas, afirmou. Pesquisas revelaram que seu chá é eficaz como agente diurético, tônico,
adstringente, estimulante do sistema nervoso central, contra artrite, agente antiespasmódico,
antifebril, antiasmático, anti-inflamatório, purgativo em doses mais elevadas e emenagogo.
Mas somente a flor cura contra tosse, bronquite e resfriado60.
59
A curatella americana, conhecida popularmente por diferentes designações como, por exemplo, sambaíba-de-
minas-gerais, sambaíba, sambaíba-do-rio-são-francisco, caimbé, lixeira, cajueiro-bravo, cajueiro-bravo-do-
campo, cajueiro-do-mato, cambarba, craibeira, penteeira, sobro e marajoara. É da família das dileniáceas, uma
árvore ou arbusto tortuoso. Mede entre 1 a 12 metros, seu tronco de madeira pesada e compacta é ideal para
marcenaria, lenha e carvão. (CARVALHO, 2012).
60
Essas propriedades da Sambaíba fui colhendo ao longo das conversas informais.
200
Se Dona Maria não colocasse um ponto final à conversa, alertando para o horário do
almoço, seu Silvano Silva prolongaria as histórias pela tarde a dentro. Confesso que ouvi-lo
provocava imenso gozo.
a) As pessoas
Homens 176
Mulheres 162
Mais de 65 anos 20
De 18 a 64 anos 167
De 7 a 17 anos 104
De 0 a 6 anos 47
Fonte: Levantamento realizado pela pesquisadora.
Avós Avós
Malvi Malvi
na na
Malvi Malvi
Telvina Francisca
na JovelinanaMaria da
Francisco Oliveira Manoel Gomes
Neves
a da Silva
a da
espos espos
a a
Pais Pais
Maria Amélia da
Domingos Francisco Casou-se com a Laurinda Maria da
Silva
Oliveira Malv
(85 anos) prima Malvina Silva (75 anos)
(in memorian) Malv
ina ina
Malv Malv
ina ina
a da aPais
da
Pais
espos espos
a a
Malv
ina
Malv
Olímpio, Joel, Elder, Valdir, Manoel, Laurita,
ina
Felinna, Dorivaldo, Noêmia, Marivaldo
a da
Falecidos: Adolfino e José Malv
espos
a ina
Malv
ina
DESCENDENTES DESCENDENTES a da
D espos
E a
S
C
E
N
Tem: Tem:
D
E
11 filhos 10 filhos
N
73 netos 36 netos
T
62 bisnetos 56 bisnetos
E
04 tataranetos 03 tataranetos
S
O senhor Joel possui, nos dois casamentos, onze filhos, setenta e três netos, sessenta e
dois bisnetos e quatro tataranetos. Não consegui completar uma árvore genealógica da
203
b) Titulação
Federal 170.456,7035
Podemos dizer que houve um aumento no número de titulações, porém não podemos
afirmar que tenha sido expressivo, considerando uma média de 19,25 comunidades por ano.
Há que se considerar que a situação de vulnerabilidade dessas comunidades está, diretamente,
relacionada aos conflitos por posse de terra, com a precariedade do acesso: a estradas de terra
de longa distância e pouco conservadas, à falta de infraestrutura básica, necessária para uma
vida digna, como: água potável, saneamento básico e saúde. Assim, quanto mais lenta for a
burocracia, mais grave se torna o problema.
Ademais, os reflexos da situação de irregularidade fundiária da grande maioria dos
territórios quilombolas afetam a escola, pois as crianças dessas comunidades participam,
ativamente, da vida comunitária lado a lado com os adultos.
Transcorridos mais de sete anos de sua certificação, ocorrida em 2010, Sambaíba
ainda não recebeu seu título. Essa demora é comum no processo de titulação, o INCRA
caminha a passos lentos, fazendo da burocracia uma legitimação. Em Sambaíba há uma
discórdia interna entre moradores mais velhos e mais jovens que, tendo herdado a terra de
seus pais, por compra da propriedade ou mesmo conseguida mediante processo de
usucapião61, não aceitam socialização para que o território seja registrado, pensam na
possibilidade de precisar negociar a terra e não poder fazê-lo no futuro. Mesmo assim, no mês
de julho de 2017, os técnicos do INGRA estiveram na comunidade mediando as terras com o
fim de limitar o território para conceder o título definitivo à Sambaíba. Somente o tempo
poderá dizer se as demandas internas foram resolvidas com satisfação para ambos os grupos.
c) Infraestrutura
61
Usucapião: aquisição de propriedade e ou de qualquer direito real que se dá pela posse prolongada da coisa, de
acordo com os requisitos legais, sendo também denominada de prescrição aquisitiva. (USUCAPIÃO ..., 2008).
62
O diferencial deste programa é ter “[...] nascido no seio das experiências da sociedade civil, proposta como
política pública de convivência com a região pelas organizações atuantes no Semiárido através da Articulação
Semiárido (ASA) e assumida pelas gestões de Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma e , atualmente,
Michel Temer, tornando-se, na prática, uma política de Estado”. No dia 22 de agosto de 2017, o programa
recebeu o Prêmio Política para o Futuro 2017, em segundo lugar como a iniciativa mais importante do mundo
no combate à desertificação, conferido pela World Future Council em parceria com a Convenção das Nações
Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD). (INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS, 2017).
206
muitos moradores com caixas d’água para coleta de água das chuvas. Bem melhor que
antigamente, quando não havia água encanada e as mulheres precisavam carregar água em
cabaças , ou potes, na cabeça. Quantas crianças ajudavam as mães a lavarem as roupas no rio.
Depois que o rio secou ficou ainda mais difícil. A água encanada foi “uma benção de Deus”
argumentam as mulheres felizes por terem a vida melhorada.
d) As moradias
O lugarejo é humilde, poucas casas são construídas de blocos e cobertas por telhas de
cerâmica, a maioria só possui reboco na fachada. Ainda há muitas casas de adobe, cobertas
207
por telhas artesanais. O que não significa dizer que tenham sido feitas “nas coxas”63, como
muitos acreditam, que as telhas eram confeccionadas pelos escravizados no Período Colonial.
A tese é tão difundida quanto “furada”. A associação dessa locução adverbial informal
grosseira que significa “mal, de modo precário ou descuidado, sem capricho” é associada ao
trabalho escravo por racismo e preconceito.
63
O superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), professor e arquiteto José La
Pastina Filho, em um ensaio realizado para o IPHAN do Paraná, indica que a associação entre “coxas
humanas” e “telhas” não passam de boatos. As telhas feitas no Brasil colonial eram feitas em moldes de
madeira. Afirma: “Sem maiores preocupações com aspectos de anatomia humana, se estabelecer uma simples
regra de três, poderemos verificar que, para fabricar uma telha de 77 cm, precisaríamos contar com um escravo
de 3,95m de altura. Além disto, em termos de otimização de força de trabalho, mesmo numa sociedade
escravocrata, teríamos uma perda substancial na força de trabalho”. [...] (RODRIGUES, 2017)
208
e) O comércio
No quilombo não há supermercado, nem feiras livres, estas últimas uma tradição das
cidades e dos lugarejos do interior do Nordeste. Por esta razão, os quilombolas deslocam-se
para os sítios vizinhos como, por exemplo, Igaporã o mais procurado pela proximidade,
Riacho de Santana e Tanque Novo, com a finalidade de vender e comprar produtos
necessários à subsistência. Levam pouco: uma ou duas sacas de farinha e, quando é um bom
ano de safra, levam milho, o feijão, mas na maioria das vezes plantam apenas para o consumo
da família. Mas precisam comprar quase tudo: arroz, óleo, macarrão, sal, biscoitos, pão,
carne, toucinho (de vez em quando matam porco no lugar e vendem), alimentos básicos,
remédios e sabão, quando este não é feito por lá mesmo. Além de roupas e calçados, móveis,
roupa de cama, mesa e banho, ferramentas, entre outros produtos necessários.
f) Saúde e doenças
64
Essa distância foi marcada por mim no percurso, em razão de tantas informações desencontradas, inclusive no
site da prefeitura.
209
g) O tempo na comunidade
Em conversas sobre o que fazer em caso de dores, os quilombolas dizem recorrer aos
remédios de horta. Folhas como hortelã, mastruz, boldo, poejo, entre outras e também de
raízes e cascas de árvores da mata.
Ao ser perguntado para uma das professoras se ela percebia alguma atividade aqui em
Sambaiba que vai passando de pai para filho e se as crianças aprendem esse modo de fazer no
cotidiano através da observação e escuta, ela disse que:
Nós professores não estamos aqui só pra ensinar, ensina e aprende, é uma troca, né.
Quando alguém está com uma dor de cabeça: “oh professora tal remédio é bom”. Tá
com uma dor de barriga logo vai na erva-cidreira, esses remédios de horta, e eles
ensinam direitinho, quem ensinou? “Meu avô, minha avó, meu pai, minha mãe”,
então é uma coisa que a gente aprende, que a gente vê que eles aprenderam com a
família, e tem muitos exemplos familiar. (Prof. Luciene Rocha Silva, 2015)
65
De Alguma poesia (1930)
210
i) As crenças e a fé
resistência, fosse mesmo uma crença oculta, fosse desconhecimento do significado, a opção
pelo não dizer encerrava o assunto.
A Igreja católica é bastante frequentada. Duas vezes por semana, são realizadas
orações sob a orientação do Senhor Silvano Silva, seu conhecido leitor. É uma Igreja simples,
mas bastante acolhedora. Diferentes imagens de santo dividem o pequeno altar sem
ostentação de nenhum deles. Nem a Nossa Senhora Aparecida, padroeira do lugar, faz mais
vista que os demais. Flores artificiais dividem espaço com outras naturais sem competição,
ambas com o fim de ornar as imagens.
A senhora Aurelina Maria de Jesus, Nina para os mais próximos, é nora de Dona Bela,
minha acolhedora em Sambaíba. Seu trabalho é muito respeitado pelos quilombolas, pois
além de ministrar o catecismo para as crianças, juntamente com a catequista Sideni da Silva,
preparando as crianças para a primeira eucaristia e a crisma, ela faz parte da Pastoral da
Criança e da Juventude, desenvolvendo ações importantes para a comunidade. Ela e o senhor
Alicinto Pereira Lopes, coordenador da igreja, cuidam da conservação do prédio, da
organização dos eventos e também dos fiéis que frequentam o templo cristão. Elas respeitam
muito a professora, a fé é algo muito sério na comunidade.
As imagens só ficam expostas em dias de oração, nos intervalos são guardadas numa
das casas da comunidade. Flagrei dona Bela limpando-as para levar à Igreja.
A Igreja tem influência enorme sobre os moradores. São os rituais cristãos que
determinam, muitas vezes, as atividades na comunidade, que obedece os ensinamentos dos
padres e dos cristãos que ministram tais rituais católicos. Nos dias de novena a igreja fica
sempre repleta de fieis. As missas são realizadas algumas vezes durante o ano. Realizam
também a ladainha e a rezam em latim, um latim quilombola, possivelmente aprendido por
seus antepassados no tempo da catequese, mas nada é revelado nesse sentido, dizem apenas
que aprenderam com os antepassados a rezar a ladainha dessa forma e assim passam a nova
geração.
Latim quilombola. O que isto significa? Essa ladainha composta por dezenove
estrofes, variando as estrofes de três e quatro versos, vem passando, oralmente, há centenas
de anos de pai para filho, até que alguém a transcreveu pela primeira vez, não sabem dizer
quem a copiou , tampouco de quem foi copiada, apenas que é sempre cantada oralmente, a
cópia é uma garantia, para o caso de alguém esquecer algum verso. Coisa que nunca
aconteceu acrescentam. . O latim foi transformado, fazendo surgir uma cantoria num latim
muito próprio de Sambaíba, por esta razão o nomeei de latim quilombola. Foi Dona Generosa
quem emprestou a cópia para ser fotografada por mim. Ela, segundo afirmam os parentes,
deve ter mais de oitenta anos, mas ela não confirma.
214
a) Os leilões
Os altares não se restringem à igreja, em quase todas as casas existe um altar em que
são colocados diferentes santos ao lado de fotos de familiares e amigos. Mais que um espírito,
os santos são divindades a quem os quilombolas recorrem nos momentos de aflição. Fazem
parte da família, a eles contam as dificuldades, pedem proteção no infortúnio, agradecem a
saúde, pedem pelos filhos, enfim recorrem a eles sempre que necessário. O altar é enfeitado e
uma, ou mais, vela é acessa na hora da oração realizada diariamente por intenção de alguém
ou algo.
68
O termo ximango é de origem tupi-guarani e se refere a uma ave de rapina. A palavra em outros países da
América Latina é grafada com CH. Não consegui perceber a relação entre o pássaro e o biscoito. Ele é feito
com polvilho, ovos, sal, leite e água e gordura. Enrola-se na mão ou faz com massa mais mole para colocar em
forma de bolo.
69
Biscoitinho assado de polvilho, ovos, gordura, água e sal, em formato de bolinhas ou pequenos bastões que
são modelados por um orifício feito num tecido ou saco plástico por onde é expelida a massa. O nome talvez
tenha relação como borrifar, sinônimo do termo chiringa, pois a massa é literalmente borrifada na forma
através do buraquinho dando a forma desejada.
218
b) Festas
Na comunidade eram comemoradas muitas festas religiosas como a de São João, São
Pedro, Santo Antônio Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora Aparecida. Todos os anos as
famílias se reuniam para fazer a festa do santo daquele mês. Faziam procissão, enfeitavam a
Igreja, rezavam novena, faziam leilão. Como afirma, entristecido, o senhor Silvano “Hoje o
povu da comunidade tá afastadu de Deus, não tem mais animação pra festa da igreja, nos
antigamente nois num perdia” [pausa] dá uma risadinha maliciosa e completa: “Mas acho que
era mais pra arrumá namorada mesmu.” O fato é que reduziram as festa religiosas a duas, ao
São João, festa muito animada em todos os lugares do sertão e a da Padroeira Nossa Senhora
Aparecida. Nesse cenário cristão, a Nossa Senhora Aparecida é destaque, pois quase todos,
senão todos, são devotos desta santa que é a padroeira do quilombo. Sua festa é animada,
além do culto religioso a festa tem uma parte profana: o leilão, realizado para angariar fundos
para reforma ou outra precisão da paróquia.
Em Sambaíba havia um reisado, o Reisado de Nossa Senhora Aparecida, que percorria
as casas do quilombo, assim que o mês de dezembro anunciava. Algumas casas faziam as
lapinhas, com pedras, folhagens, enfeites, bibelôs e fotografias da família para esperar a
comemoração do nascimento de Jesus no dia 25 de Dezembro. Mas, há cinco anos, o reisado
deixou de percorrer as ruas da comunidade, com a ausência do reisado, as famílias pararam de
fazer as lapinhas. O comandante do reisado era o senhor Zé Pedro que me explicou que os
219
instrumentos acabaram, razão pela qual não podiam mais tocar. Indignada com o fim de uma
manifestação tão importante para o lugar, fiz um movimento entre amigos e adquirimos para
eles os instrumentos, a vestimenta e o estandarte. Agora é com eles retomar a tradição de
visitar as lapinhas, alegrando a chegada do menino com muita cantoria.
Desde 2010, as comunidades quilombolas reúnem-se, numa das comunidades, para
trocar sabores e saberes. O encontro tem o apoio da Secretaria de Educação e de Infraestrutura
do município. O evento “Encontro de comunidades quilombolas de Caetité-BA: consciência
negra” já está em sua oitava versão e, em novembro de 2017 foi realizada no quilombo
Sambaíba.
Fonte: A cópia é de Maria Jucelina da Silva Santos, Comunidade de Mercês. Registro pesquisadora.
E o poema feito por uma garota da comunidade de Contendas, que apresento por
considerar relevante para se pensar identidade.
221
c) Benzer e Rezar:
A palavra benzer, segundo dicionários, significa fazer o sinal da cruz, por esta razão os
benzimentos iniciam-se com este sinal. Conforme saber popular espírito e corpo são
indissociáveis, assim para todos os males do corpo e/ou espírito corresponde uma reza para a
cura. Benzer alguém é um ato de rezá-la pedindo o afastamento, ou proteção, de todos os
222
males que possam afligir-lhe. A tradição das rezadeiras persiste na sociedade moderna e
apesar dos avanços da medicina. Parafraseando Elda Rizzo de Oliveira (1985), a bênção é um
meio pelo qual o seu executor estabelece relações de solidariedade e de aliança com os santos,
de um lado, com os homens de outro e entre ambos, simultaneamente.
É uma prática muito antiga e comum a várias culturas, mas aqui no Brasil ganhou
força no período da colonização. É valido lembrar que os índios brasileiros já praticavam seus
rituais de cura num conjunto de orações próprias de seus dialetos. No Brasil colonial, havia a
classe das parteiras e a do(as) benzedeires(as).
Algumas leituras a exemplo de Elda Rizzo de Oliveira (1985) e Francimário Vito dos
Santos (2007) indicam que a prática é simples. A vontade de fazer o bem aciona um “campo
fluídico de magnetismo benéfico”, composto de “agentes restauradores” de energias e forças,
que reparam livrando dos males que se instalaram. Essas enfermidades, conforme apontam os
estudiosos, afetam o cotidiano, na medida em que configuram perturbações que atuam para
além da esfera física, atingindo as relações sociais, aspectos psicológicos e/ou espirituais.
Acredita-se que essa “praga” pode ser constatada através de indicativos como, por exemplo,
certas espécies de plantas/flores que murcham, queda de pelos de animais, morte de aves, o
que ocorre após receber energias negativas. O que também vale, segundo crença popular, para
nós, seres humanos, nos deixando sonolentos e fracos, melancólicos, tristes, inquietos, às
vezes com insônia, dores pelo corpo, sem vitalidade para nada. A reza pode, ainda, ser
utilizada para levar bem-estar a um lugar.
Geralmente, as mulheres benzem mais as crianças e os homens os adultos,
principalmente contra o veneno das picadas de cobra. A fé é a propulsora de energia, sem a
qual nada se realiza. O elemento mais usual, coadjuvante do processo, é o ramo, que fica
murcho ao fim do ritual se a pessoa estiver carregada de males. Entre as ervas mais
conhecidas estão a arruda, o levante, o alecrim e o guiné, em razão das propriedades de cada
uma delas, de limpar a energia negativa.
Um misto de magia e religiosidade, hoje, a reza tem cada vez menos adeptos, mais
raras do que foi no passado, geralmente praticada por idosos, sem instrução, ou de pouca
escolaridade e de baixo poder aquisitivo. Embora não cobrem pela oração, sempre recebem
presentes do beneficiado.
Minhas leituras sobre comunidades africanas indicam que essas práticas também
fazem parte de suas culturas. Constatei que, no quilombo, apenas três pessoas, as mais velhas
da comunidade, ainda realizam o ritual. Afirmam ter aprendido a prática da cura com suas
mães e avós. E asseguram: “só funciona se houver muita fé”. Assim explicou o senhor
223
Silvano.
Entre as pessoas que benzem no quilombo, os mais “poderosos”, acreditam os
moradores de Sambaíba, são o Sr. Silvano e seu irmão José Pedro. Mas, são vários que se
dispõem a ajudar as pessoas com sua fé e orações, entre eles cito aqueles que me foram
indicados, além dos já mencionados: Tião, Zé de Duzinha, Dona Generosa e Deor. Diz o
senhor Silvano que o poder de cura está em Deus, que os benzedores são apenas instrumento
Dele para servir, com sua fé e orações, a quem necessita. Eles ainda socorrem,
principalmente, as crianças do lugar, rezando contra quebranto, dor de barriga, vômito e mal
olhado, o mais comum entre esses males. Mas há também rezas para adultos: picada de cobra,
espinhela caída, izipa [erisipela], cobreiro, vento virado e enxaqueca. Os benzedores são uma
benção para o quilombo que não possui Posto de saúde. Além das rezas eles se utilizam
também das ervas para cura. Não cobram nada pela benção, pois, como afirma o senhor José,
é uma dádiva de Deus, um “dom dado por Ele”, e assim como o receberam devem doar a
quem precisa.
Muito usual em Sambaíba é a reza com o rosário e também a “passagem do ramo”
forma de descrever o movimento de passar a planta em torno do corpo da pessoa enquanto
rezam. Percorrem um itinerário corpóreo que passa pelo peito, pela cabeça e pelas costas,
formando o sinal da cruz. Os benzedores locais creem residir nesse centro o comando da vida
e o alvo de ataque do “feitiço”, ou do mal olhado quando se trata de seres humanos. E
concluem que para cada mal que afeta o corpo e a alma há sempre uma reza que derrube. A
título de exemplo, cito essas rezas, passadas por um dos benzedores, que me pediu para não
dizer o nome: “Terra pariu santuária, Maria ganhou Jesus, assobe só o sereno. Para riba
daquela altura, tirai essa dor de cabeça desta pobre criatura.” E esta “Terra, vento e sol. Terra
que Deus criou. Onde está essa dor de barriga? Jesus Cristo retirou. Corre vento, com Jesus
Cristo aqui na cura. Com esse vento, corre, cura a dor desta criatura. Em nome de Deus Pai,
Deus Filho e Espírito Santo, esse mal curo. Amém.” Também falou sobre reza contra
engasgo: “São Brás, anda adiante e anda pra trás, mandou que subisse, ou que descesse a
espinha do pescoço, pra livrar bem ligeiro do engasgo a moça”. E esta para afastar mau
olhado: “Foge, foge veneno da cruz. Que lá vem u Mienino Jesus. Com três facas amarelas
Sete apanha espeta as costelas”.
Não há como eles escaparem dessas crenças. Muitas dessas orações com pequenas
modificações povoam o mundo mágico-religioso de rezas, de crenças e de simpatias. Na
maioria das vezes é o único recurso desse povo, abandonado pelas políticas públicas de saúde.
224
d) A comunicação
A comunicação não é muito difícil, primeiro por que existem duas antenas particulares
de celular que em caso de urgência atendem aos moradores. Além disso, a comunidade
conquistou em junho de 2017 um telefone público que foi instalado num orelhão em frente da
associação de moradores, bem no centro da comunidade, o qual já não funciona mais.
Todos os dias há transporte escolar que levam os alunos do 6º ao 9º ano para o Distrito
de Caldeiras e, duas vezes por semana, um transporte coletivo faz a viagem para a cidade de
Igaporã para as compras, além disso, há o carro que leva e traz a coordenadora da escola de
segunda à sexta-feira, com exceção das quartas. Ademais há algumas pessoas que vivem indo
e vindo da sede do município, a exemplo do presidente da Associação que resolve pequenos
problemas como documentação e também compra remédios para os sambaibenses. Quase
todos possuem televisão ou rádio. Uns dois ou três assalariados possuem computador e
internet. Desta forma a comunidade fica informada de tudo que ocorre e com o que há de
novo para o consumo no comércio, mesmo que não possam adquirir a maioria dos produtos.
e) O transporte
70
Vadiagem termo muito usado no quilombo para se referirem a brincadeiras.
225
“De primerão, nóis fazia e de um tudu aqui no quilobu” afirma dona Belarmina.
“Armava presépi no do dia 23 de dezembru, inté 6 de janero, quando os reis parava as visita
nas lapinha. Era uma bença ouvi o reis tocá, minha fia, faze as reza e abençoá a casa, adespois
bebia uma pinga comia paçoca e ia pra outra casa.” Ao ser questionada se a paçoca era de
amendoim (típica de minha terra), sorriu e disse: “ Não fia, de carne , ou intão de bófu.” Ela
deve ter percebido minha expressão de ignorar o quitute e me explicou: “ Agente lava bem a
fissura do porco, fais o sarapatéu bem temperadim e pisa no pilão de pau com farinha de
mandica, fica hummm.” (pegando na ponta da orelha para expressar que ficava gostoso).
➢ Bitu
Na sequência da conversa, ela fala sobre o tempo em que a família fazia cobertores,
toalhas e roupas de vestir de algodão, ora natural, ora tingido com tintas naturais extraídas de
casca de madeira. “Ora a pois, eu fiava a linha na roda e no fuso, minha cunhada tecia o corte
de riscado, nóis morava num acasa de enchimento. Nóis fazia calça de riscado e camisa de
algodão branco com anil mais tecelone [não compreendi o que significa essa palavra] . Mais
também fazia bitu [coberta] e toalha para mesa. Depois nosso pai comprava madrasto [tecido
de loja] para fazer anagua pra nóis e nóis fazia renda de birro [bilro] pra colocá na
barra.[Riso] “Adispois nós colocava a anágua, um vestido de chita e ia pro ajuntamento de
gente no terreiro do vizinho para uma roda de embalo, mais isso era de primeirão, agora fia,
acabô tudo.”
226
Foto 25 - Bitu
Alguns costumes permanecem no quilombo, entre eles o de fazer bolos para o São
João. Na maioria das casas, faz-se chimango e xiringa para receber os familiares, a maioria
das pessoas sabe fazer a guloseima, principalmente porque produzem o polvilho, ingrediente
principal. A brevidade, no entanto, é de difícil execução e apenas duas pessoas na
comunidade ainda fazem o bolo, que também tem como ingrediente principal o polvilho. Por
levar uma quantidade enorme de ovos e necessitar bater muito para eliminar o cheiro ativo,
poucos se arriscam a fazê-lo. Tive o prazer de acompanhar a execução e provar do delicioso
bolo.
227
Talvez seja a última artesã do lugar que sabe fazer cestos, sacolas e esteiras de fibras
de palmeiras. Tapetes de retalhos, assim como pintura em tecido, encontrei outras pessoas que
também sabem fazer. O Programa mais Educação vem contribuindo para que esses saberes
não se percam, essa artesã é professora no programa para ensinar sua arte às crianças na
escola.
228
h) O sobrenatural
71
Referem-se a uma baixada, onde passava o rio quando era volumoso.
72
Garupa
230
rabo típico era apenas uma criança travessa. Posteriormente, por influência da mitologia afro-
africana, o saci tornou-se preto e perdeu uma das pernas jogando capoeira e herdou um pito
que depois virou cachimbo. Dos europeus herdou o goro vermelho. Podemos, portanto,
reconhecer o personagem da lenda como a fusão das três raças que compõem o povo
brasileiro. Sua principal característica é mesmo a travessura, por ser muito brincalhão,
diverte-se causando transtornos a humanos e animais. As crianças falam dele com receio,
aliás, são elas que dão vida a ele através do medo que a lenda lhes causa. No quilombo não é
diferente. Marleu disse-me que “ ver memo num vi, mas escutei ele pulandu no terreru, nu
outro dia, a minha vó acho a galinha dela istraçaiada dibaxu du piquizeru.”
i) Culinária
j) Os problemas e dificuldades
Não é difícil perceber que os problemas dessa comunidade não são poucos e requerem
atenção do gestor municipal e da sociedade. Embora existam as políticas públicas
mencionadas, há mais de vinte anos nenhuma obra de infraestrutura foi realizada no local.
Trata-se de um sítio sem posto de saúde, sem iluminação elétrica na rua, sem um mercadinho,
onde possam comprar seus proventos. Mas o mais grave é que são reféns de um cabo eleitoral
que assegura ao candidato, de seu interesse, todos os votos dos quilombolas em seguidas
eleições. Por esta razão, o prefeito eleito não tem nenhum interesse em investir em Sambaíba,
231
Assim como a conquista de um trator para a Associação, por meio do vereador votado
pelos quilombolas. Penso que esta foi uma significativa conquista deles, considerando os
vinte anos de ausência de ações públicas no quilombo. A próxima reivindicação será uma
quadra ou pátio coberto para que as crianças possam brincar fora da sala de aula durante o
recreio.
k) História
Na comunidade, não existe nenhum documento escrito que verse sobre sua história,
nem mesmo uma cópia do processo que encaminharam à FCP 73 ficou na associação de
moradores. Recentemente, consegui a cópia do processo de certificação com a referida
fundação, mas o processo nada acrescenta às informações colhidas. Também vasculhei os
cartórios dos municípios circunvizinhos, a diocese de Caetité e nada foi encontrado. O que
escrevo sobre Sambaíba é aquilo que seus moradores dizem dela, conseguido por meio das
entrevistas e do cruzamento das informações colhidas das narrativas.
73
Encaminhei e-mail, após contato telefônico com a FCP, solicitando cópia da referida documentação, mas
ainda aguardo o retorno.
233
l) Geografia ambiental
74
Palavra originária do tupi-guarani, caatinga significa “mata branca”. Considerada pelo Projeto
RADAMBRASIL (2017) “como homóloga da Estepe Africana [...] pode ser caracterizada como sendo uma
vegetação lenhosa e decidual, composta por muitas fanerófitas espinhentas, cactáceas suculentas áfilas e com
tufos eventuais de gramíneas”.
75
Site criado por iniciativa do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN, 2017) em parceria com
234
Cooperativa Central Cerrado (CCC), a Organização Não Governamental (ONG): Acessoria e Gestão em
Estudos da natureza, desenvolvimento Humano e Agroecologia (AGENDHA) e a Bodega de Produtos
Sustentáveis do Bioma Caatinga (BPSBC). O ISPN “é uma organização não governamental, sediada em
Brasília, que atua no campo ecossocial, com foco nos povos e comunidades tradicionais e agricultores
familiares e suas organizações. Sua missão é contribuir para viabilizar o desenvolvimento sustentável com
maior equidade social e equilíbrio ambiental, por meio da democratização do acesso a recursos financeiros e a
conhecimentos e informações de forma adequada à realidade e às necessidades desse público.” (INSTITUTO
SOCIEDADE, POPULAÇÃO E NATUREZA, 2017).
76
Cerratinga: produção sustentável e consumo. (INSTITUTO SOCIEDADE, POPULAÇÃO E NATUREZA,
2016).
235
77
O feijão de corda, Vigna unguiculata, também conhecido como vagem ou feijão verde, além de ser delicioso é
muito nutritivo, rico em nutrientes e vitaminas C, K e A, possui um alto teor de fibras e substâncias
antioxidantes, ajuda na formação do colágeno, o que fortalece a pele, os ossos, tendões e alguns órgãos e
ajudam a diminuir o colesterol ruim do sangue, fazendo dele um aliado da saúde. Feijão de corda e seus
benefícios para o organismo (BEZERRA, 2016).
236
Nos quintais alguns plantam horta e produzem alface, couve, maxixe, abóbora,
coentro e cebolinha verde. Encontramos muitos pés de manga. Mas é possível encontrar
outras frutas em menor quantidade como: laranja, jabuticaba, melancia, ingá, umbu, goiaba,
banana, mamão, seriguela, melão, amora, abacate, caju, coco, maracujina (maracujá do mato)
araçá, olho de boi, bacuri amarelo, pitomba, carambola, gabiroba, grão de galo, mangaba e
pursá. Embora em pouca quantidade faz a festa da meninada.
As famílias de agricultores não possuem um calendário agrícola definido, este é
comandado por Deus quando envia chuva para o sertão. Com exceção do arado, as demais
tarefas de plantação são feitas manualmente. No plantio observei uma divisão sexual e etária
de tarefas agrícola. Cabe aos homens jovens a preparação da terra para o plantio: derrubada
do mato, ou roçada, a queimada e a abertura das covas com a ajuda do arado, desse estágio os
homens mais velhos também participam; as mulheres e as crianças cuidam da semeadura, do
cuidado e manutenção da roça. Todos participam da colheita e novamente à mulher cabe a
armazenagem, assim como a preparação dos alimentos. Caso haja produção excedente,
homens e mulheres cuidam da venda dos produtos. A unidade de produção é a família
conjugal, em caso de muito serviço, a família mais extensa é acionada, geralmente na colheita
do produto e fabricação da farinha de mandioca. O papel da mulher nesses afazeres reflete
uma estrutura já consolidada no grupo (quilombo) em que as mulheres têm papel social e
cultural muito forte.
237
população, as terras não são mais suficientes para suprir as necessidades de todos do
quilombo. Criar animais está ficando cada dia mais custoso com a dificuldade de alimentação
para os bichos, explicam. Necessitando da aposentadoria dos mais velhos da família, assim
como de Programas Sociais do Governo Federal para sobreviver, como o Programa Bolsa
Família, Seguro Safra e Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(PRONAF). Mas quando estes programas são, por alguma razão, suspensos, se não
socorridas pelos parentes, as famílias passam necessidades básicas.
É bem provável que venha de alguns territórios africanos o costume antigo de aliviar a
carga de trabalho sobre as mulheres com a ajuda das crianças. Essa aprendizagem do cultivo e
240
Ao sair da escola, naquele dia, visualizei numa casa em frete à escola um grupo que
me chamou a atenção. A maioria eram mulheres, algumas com crianças no colo, outras com
crianças maiores sentadinhas ao lado da mãe, ambas descascando mandiocas.
Continuei a observar de longe, sentada na calçada em frente à escola. Dei um tempo, a
conversa seguia animada com risadas intercalando. Devagar fui aproximando. Acheguei,
cumprimentando, responderam sem levantar os olhos. Em silêncio prosseguiram o descascar
das mandiocas. No lugar, apenas três homens, o dono da casa e dois filhos. Todos na lida no
mesmo ritmo. Pedi ao senhor Joel (antes de me aproximar perguntei quem era o dono da casa)
licença para sentar na roda, consentiu. Uma moça levantou a cabeça e falou “Não quero que
tire fotografia minha”, olhando para a máquina que eu trazia ao pescoço, respondi que tiraria
apenas das pessoas que permitissem. Ninguém mais disse nada. Continuaram na labuta no
mesmo cadenciado, sei que percebiam a minha presença, porque ninguém mais conversou.
Não queriam prosa e nem fotografias. Eu era mesmo “uma estranha no ninho”.78As mulheres
de cabeça baixa, para os homens o tempo seguia como se eu não existisse. As crianças
pequeninas brincavam, as de cinco para frente também descascavam mandioca. Elas
conversavam entre si e riam. De quando em vez me olhavam.
Desisti das fotografais por hora. Assentei, pedi uma faca, oferecendo ajuda. A faca
veio, sem explicação ou pergunta, comecei a descascar como eles, ninguém olhou para mim,
continuaram a labuta como se eu não estivesse ali. Pela primeira vez me senti invisível.
Estariam eles me ignorando? Estranhando a minha ajuda, ou até a minha presença? Com
vergonha? Ou o silêncio foi a forma de resistência encontrada para a minha presença. Uma
78
Do livro de Ken Kesey Um estranho no ninho publicado em 1962, adaptado para o cinema e lançado no
Brasil em 1976, estrelado por Jack Nicholson. A analogia não se faz em razão da loucura, mas do
estranhamento entre nós.
241
invasão do cotidiano? O fato é que estavam incomodados com a minha presença por algum
motivo que eu desconhecia naquele momento.
Um silêncio assustador pesava no local. Tentei puxar conversa, as mulheres
respondiam com um sim, ou não e, às vezes, não sei. O único simpático foi o senhor Joel, que
veio diversas vezes em meu socorro, quando percebia que ninguém dava atenção às minhas
perguntas, sequer levantavam as vistas e não prosseguiam a conversa. Não desisti, fiquei ali,
descascando mandiocas e observando com discrição. Vez por outra, fazia um comentário
banal sobre as características das mandiocas (moles, duras, cascas mais soltas), sobre meu
mau jeito naquela atividade, mas o monossílabo era o determinante do diálogo frio, apesar do
Observei que nem todos estiveram presentes na reunião para a apresentação da
pesquisa, creio ser esta a razão do estranhamento com minha presença ali. O Senhor Joel
percebeu a minha aflição e falou: “Por que a senhora num fala presse povu aqui o que falô
onte na escola?” Entendi a deixa e expliquei sobre a pesquisa. Senti que ficaram mais a
vontade depois, mas sem muita conversa comigo. Começaram, aos poucos, conversas entre si.
Tão baixo que eu não conseguia saber sobre o que conversavam. Perguntei à moça sobre o
porquê de não querer que eu a fotografasse. O receio vinha de que eu pudesse expor as fotos
no facebook. Pelo menos soube de onde vinha o receio. Embora tenha afirmado que jamais
faria qualquer uso das fotografias sem o consentimento delas, não convenci. A máquina
fotografia era uma espécie de ameaça para elas. Com a explicação de que me interessava pelo
trabalho delas, mas que só usaria na minha pesquisa com a autorização delas fui conquistando
a confiança de algumas mais idosas. Fiquei de encaminhar a autorização pelas crianças para
que assinassem. Sai depois de algum tempo, já era hora do almoço e as mulheres iam
esvaziando o local que ficou deserto em pouco tempo
Na tarde daquele dia, encontrei o dobro de pessoas que havia visto pela manhã, num
ritmo alucinante, pouquíssimas mandiocas restavam no chão para o descasque. Fiquei
arrepiada ao ver o processo de moagem, manipulado pelo dono da produção com maestria.
Seus braços adentravam a perigosa geringonça até próximo ao meio, num vai e vem frenético,
parecendo que ele alimentava um mostro faminto, que uivava sem dar tréguas. Seu rosto, seu
tronco e seus membros ficavam cobertos pela massa branca.
242
As vasilhas transbordavam uma massa cheirosa, que era transportada para o tanque
onde seria lavada. Fiquei ali observando o trabalho. À tardinha, a maioria das pessoas foi
embora, restou os “mais chegados”79da família. As filhas lavavam a massa, espremiam para
separar a goma da farinha que era colocada no forno para torrar, a goma era conduzida para
secagem para se transformar em polvilho.
79
Filhos e netos.
243
Um processo lento que o escurecer adiava para o dia seguinte. Retirei-me da casa do
senhor Joel, depois de longa conversa sobre o processo de transformação da mandioca em
seus derivados. No meio da conversa, o senhor Joel me confidenciou sua preocupação com
um filho que segundo ele “[...] seguia internado em Conquista80 por conta da depressão, já
tentou o suicídio duas vezes, com veneno.” Seus olhos marejaram, revelando uma tristeza
profunda, mas suas palavras eram de um pai que se conforma com a responsabilidade de criar
dois filhos com problemas mentais, além dos outros sadios e ajudar na criação dos netos.
80
A cidade de Vitória da Conquista fica distante aproximadamente 300 km de Sambaíba, mas é a única cidade
com recursos de internamento para problemas mentais da região do Sertão Produtivo.
245
“Espero que amanhã, quando a gente voltar de Conquista ele aceita tomar os remédio, sei não
[...]” balbuciou seu Joel, como se falasse para si mesmo. Não sei por que razão disse ao
senhor Joel que também tomava antidepressivo e me ofereci para conversar com o filho sobre
a importância dos medicamentos já que sob alta médica deveria estar consciente. Percebi,
naquele momento, que o envolvimento com a comunidade seria inevitável, fiquei com receio
de que esse envolvimento demasiado viesse a prejudicar a pesquisa. Depois entendi que
neutralidade talvez pertença mesmo às pesquisas quantitativas e ponto.
Não tinha sentido algum observar/analisar fatos descontextualizados, naquela família
conviviam crianças de todas as idades, que interagiam com seus tios doentes cotidianamente.
O mais velho dos tios, Wilson, referência do Sr. Joel anteriormente, apreciava frequentar a
escola, fosse para comer da merenda, fosse para observar o estudo das crianças. Laplantine
fez-me compreender o quando a contextualização é importante para o estudo dos sujeitos,
pois o que a antropologia “ [...] pretende estudar é o próprio contexto no qual se situam esses
objetos [sujeitos participantes], é a rede densa das interações que estas constituem com a
totalidade social em movimento”. (LAPLANTINE, 2003, p. 156) Fazer etnografia é, por
conseguinte, estar atenta à metodologia que visa à aproximação entre os sujeitos envolvidos,
pesquisador e pesquisados, considerar o campo de reflexão e debate sobre culturas, levando
em conta as diversidades e o estranhamento causado, exatamente por considerar múltiplas as
culturas.
Nesse sentido, estar aberta aos imprevistos do trabalho de campo é fundamental para
que semelhanças e distanciamentos se revelem significativos à pesquisa. Estar no campo
significa também estar disposta à interação, à troca com o Outro (s), tentar se colocar no lugar
do Outro para compreender e, na mesma medida, para que o outro possa compreender o lugar
que ocupamos na esfera de interesse em seu cotidiano. Retomando François Laplantine (2003,
p. 23), “[...] numa relação que nos permite deixar de identificar nossa pequena província de
humanidade, e correlativamente deixar de rejeitar o presumido ‘selvagem’ fora de nós
mesmos [...]”, num exercício de alteridade, despir de resquícios de etnocentrismos,
eurocentrismo e de superioridade, buscando uma horizontalidade em que nós, pesquisadores,
possamos nos conhecer pela equidade embora diferentes sócio culturalmente.
Foi com o oferecimento da conversa com Wilson que me despedi. Tirei mais algumas
fotografias para registrar o rebuçar do sol em Sambaíba. Descanso? Para quem? Nem para
mim, nem para eles, cada um na sua lida, eu na tecla, eles no machado para as chamas do
fogão precisado se alimentar para parir “a janta”.
246
Essas crianças têm infância como as demais crianças do Brasil da mesma condição
econômica, mas não se trata de uma infância idealizada, um faz de conta apenas, trata-se de
uma infância concreta, histórica e social, construída conforme o contexto em que vivem. Ela é
uma criança quilombola e, como tal, constrói a sua infância em interação com a sua realidade.
As condições do lugar são precárias, portanto pensar em brinquedos produzidos para
elas é limitar a algumas dessas crianças. A criança, assim, tem uma produção simbólica
diferenciada, na qual o mundo adulto torna-se fonte de sua experiência social e o material de
suas formas de expressão.
Para Manuel Jacinto Sarmento (2005, p. 21), mesmo sendo um sujeito ativo no
processo de socialização, a criança tem uma peculiaridade advinda de seu lugar no mundo
social, “[...] mediadas por produtos culturais a ela dirigidos [ou não], a criança recebe,
significa, introjeta e reproduz valores e normas tidos como expressões da verdade”. Creio,
entretanto, que o processo ocorre mesmo quando a criança se apropria de objetos da cultura
adulta, ou mesmo sucatas, para o fim que deseja dar e significar em suas brincadeiras,
principalmente no quilombo. Fiquei um tempo por ali, observando a descasca da mandioca, a
destreza das mulheres, o comportamento das crianças que faziam daquele momento uma
forma de brincar.
Nessa dinâmica, conscientemente, ou não, ficou patente para mim um momento
importante de aprendizagem. O grupo de mulheres ensinava, sem que aquele fosse o objetivo,
aos filhos, sobrinhos, netos, como transformar a mandioca, uma forma de sobreviver da
agricultura, sem metodologia planejada, sem intencionalidade, sem qualquer forma de
imposição ou castigo. Outra aprendizagem é passada de mãe para filho: a importância das
ações coletivas no quilombo. Longe da obrigatoriedade de ensinar/aprender, apenas fazem o
que sabem fazer no quilombo. Num exercício coletivo em que fazer junto é motivador da
aprendizagem, do querer ser capaz de fazer, para fazer parte do que é comum no grupo.
Nem havia percebido que ficara tanto tempo a olhar a lida. Onze horas anunciava o sol
quente, resolvi ir à casa do senhor José Pedro, irmão e vizinho do Senhor Silvano,
pertencentes ao grupo de moradores mais antigos do lugar e contadores da história de
Sambaíba, para agendar com os dois uma entrevista conjunta. O senhor José Pedro não estava,
mas seu irmão Silvano e sua senhora receberam-me com cordialidade. Dona Maria me
reconheceu da viagem que fizera em 2012. Conversamos a respeito e eu expliquei o motivo
de minha presença em Sambaíba desta feita, desconfiei que o seu marido nada lhe contara
sobre a reunião em que fui apresentada e na qual ela estava ausente. Sua compreensão me
surpreendeu, aquela mulher de três anos passados não existia naquela que via em 2015, mais
249
determinada, falante e o mais surpreendente que me apoiava no sentido de que era importante
escrever sobre o quilombo para que as pessoas soubessem mais sobre eles e que parassem de
olhá-los como se fossem “bichos do mato”. Esta revelação de uma nova Dona Maria, bastante
diferente daquela calada da primeira vez me surpreendeu positivamente, percebi nela uma
parceria que podia facilitar o meu diálogo com o grupo, em especial com seu marido e seu
cunhado que segundo, já informado, andava descrente de pesquisadores e se negava a dar
entrevistas.
A região mantém, assim, como descrevi anteriormente, o modus vivendi adotado por
seus ascendentes, quanto às razões da emigração e o destino dos trabalhadores, típico do
modelo de colonização adotado em toda região, decorrente das condições socioambientais que
se agravaram com a escassez das chuvas. Os indicadores socioeconômicos evidenciam, ainda,
uma região cuja população apresenta altos índices de analfabetismo, baixo nível de
escolaridade, raros assalariados, grande necessidade de programas governamentais de
sobrevivência e pouco acesso à informação. Não cabe, neste texto, discutir, com
profundidade, as peculiaridades e causas socioeconômicas e culturais deste movimento
migratório, assim como apresentar e discutir os dados apresentados pelo IBGE, apenas ative-
me às consequências dessa migração para as mães e seus filhos que ficam para trás.
No Quilombo Sambaíba, a vida não é fácil, as famílias vivem com muito pouco e a
seca traz a míngua e a miséria para algumas delas. A estiagem prolongada mata as plantações
e os animais, forçando os homens a deixarem a comunidade. Muitas vezes nem conseguem
plantar por falta de chuva. As políticas públicas antes mencionadas não são suficientes, sendo
preciso que os homens deixem o quilombo para ganhar a vida em outros estados no corte de
cana, ou colheita de laranjas. Esse processo de despovoamento da comunidade, em parte do
ano, como ocorre em outros lugares do município, ainda é crescente. Os jovens abandonam os
estudos, pais de família deixam as mulheres e os filhos e todos partem para o corte de cana no
Sul do estado da Bahia, Paraná e São Paulo. Conforme explica o agente de saúde Mazinho
(entrevista realizada em agosto de 2015): “O movimento quem faz é o pessoal mesmo, mas
muitos está pro corte de cana, sai e vai ficando vazio, porque se não saísse aqui você vê a
situação não ganha nada. E lá é um trabaio escravizado, mas o recurso é correr pra esse lugar
pra ganhar o pão pros fio”.
250
São mulheres “viúvas” e filhos “órfãos” por seis, e até mesmo por 8 meses,
consecutivos. Revezando entre as safras, ora para no corte de cana, ora na colheita de laranjas.
Eles não escolhem, juntam as trouxas e partem sem olhar para traz. Não podem correr o risco
de, no último instante, serem traídos pela coragem. Deixam mulheres de olhares perdidos,
marejados de incertezas, a consolar os filhos chorosos pela partida dos pais.
Ano após ano, essa migração temporária e forçada abala o quilombo. Essa situação,
promovida pela falta de oportunidade, investimento sustentável e ausência masculina, coloca
sobre as mulheres enorme fardo que para nós parece ser impossível suportar. As famílias
ficam bastante fragilizadas e vulneráveis, o que tem resultado em alguns casos de alcoolismo
e infidelidade conjugal.
O álcool é consumido sempre no quilombo e na presença de crianças, sejam nas festas
religiosas, nas comemorações em família, nos domingos de futebol, ou seja, em vários
ambientes. Os jovens, de ambos os sexos, desde muito cedo, convivem e também
experimentam bebidas alcoólicas em casa, nos botecos e nas festas. A bebida em uso
moderado e, muitas vezes, excessivo é uma prática social na comunidade. Mas o problema
vem se agravando, principalmente, em razão de essas mulheres se entregarem ao vício, por
serem deixadas pra trás, abandonando os afazeres domésticos, o cuidado com o próprio corpo
e negligenciando os filhos pequenos que ficam aos cuidados dos irmãos “mais velhos”,
também crianças.
As crianças são as mais afetadas com esse problema. A indisciplina avoluma em casa
e na escola, são crianças se tornando outras, irreconhecíveis por aqueles que as amam. A
execução das tarefas escolares é abandonada em descaso e sem vontade, tornam-se crianças
distraídas, tristes e silenciosas. As mulheres que não bebem vão sobrevivendo com o pouco
que os homens mandam da colheita e do corte, quando o parco dinheiro acaba, a família
“vive” com o pouco que o vizinho/parente oferta e vai tocando a vida até o regresso do
marido.
Uma máscara estranha à infância se apodera do rosto dos pequenos que são
confortados por uma mãe que também precisa de alento. Os amigos são solidários e inventam
brincadeiras que só o tempo vai curando devagar. E a rotina do quilombo volta e se instala. É
tempo de corte de cana, todos sabem o que isso significa. Nas terras de Zumbi dos Palmares
grandes e pequenos iniciam um modo singular de viver esses meses e a contagem regressiva à
espera dos maridos, pais, filhos e parentes que partiram. Perto do problema de subsistência, a
questão fundiária constitui um problema menor.
251
81
PARTE III
Crianças negras e educação: uma luta
constante
A descolonização do currículo implica conflito, confronto, negociações e produz
algo novo. Ela se insere em outros processos de descolonização maiores e mais
profundos, ou seja, do poder e do saber.
(GOMES, 2012, p.107)
81
Pempamsie - Símbolo de prontidão e alerta. Tradução: Há apenas uma unidade real, que é união com a vida
universal. Do provérbio: Se Pempamsie, bebebre ahooden ne koroye. Boa vontade, perseverança, força,
firmeza, solidez, coragem e destemor. Conforme a simbologia Adinkra, a concepção deste símbolo lembra os
elos de uma corrente e implica em dois ensinamentos: a união faz a força e a importância de estarmos
preparados. Os elos da corrente também implicam nos homens que não vão se deixar submeter e que não irão
romper. (ZEIGER, 2012d).
253
82
82
Aya (Samambaia) - Símbolo de resistência, desafio contra as dificuldades, riqueza de recursos, perseverança,
independência, desenvoltura e autonomia, durabilidade e desafio contra opressão. Originário da expressão:
“Mensuro wo”, que significa “Não tenho medo de você. Sou independente de você”. A samambaia é uma
planta delicada, mas resistente que é capaz de vingar em ambientes adversos. O indivíduo que usa este símbolo
sinaliza as muitas adversidades que sofreu e ultrapassou. (ZEIGER, 2007a).
254
as injustiças cometidas por nós “brancos”. Cabe-nos, portanto, mais que a eles próprios,
remediar as consequências danosas, uma vez que não é possível modificar o passado, pelo
menos minimizar as chicotadas deferidas, na carne e/ou no espírito por nossos antepassados.
Entendo que essas injustiças cometidas no passado por brancos devam ser reparadas com
políticas afirmativas, reivindicadas, principalmente, por aqueles que, mesmo indiretamente, as
praticaram através de seus ascendentes.
Penso que investigar a trajetória da educação do negro no Brasil e conhecer o processo
histórico em que as políticas públicas se deram e como dificultaram, e por vezes tolheram, o
acesso do negro à educação pode, em primeiro lugar, compor um conjunto de fontes
necessárias a toda e qualquer tema de pesquisa relacionado aos negros na atualidade, assim
como compreender a necessidade da Lei 10.639/03 como ação reparatória, considerando a
história de desigualdade entre os trajetos escolares do negro e do branco em nosso país.
Ademais, ressignificar os processos de educação da criança negra foi relevante para que eu
pudesse, ao longo desta pesquisa, entender a construção da identidade das crianças
quilombolas.
Nesse percurso, busquei pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e até da
literatura, por entender que esse conhecimento sonegado no tempo e tão pouco registrado só
se faz, ratifico, mediante um estudo interdisciplinar, realizado sob diferentes óticas. Tenho
consciência de que nessa busca fui injusta com alguns deles, deixando de mencionar os seus
trabalhos, reconheço as limitações que o tempo e a pressão de uma tese nos impõem, além do
que não damos conta de ler tudo nesse tempo de informações simultâneas. Cada tese é um
recorte do universo teórico que nos antecedeu, por essas razões injustiças são cometidas em
nome da ciência.
Confesso que não foi fácil. Mais difícil, entretanto, deve ter sido para esses
pesquisadores que vêm buscando compor uma base teórica para essa discussão no Brasil que
tão pouco documentou sobre a história de vida dos homens, das mulheres e das crianças que
foram sequestrados do continente africano e submetidos a um processo subumano de
escravidão. Colher, aqui e ali, fragmentos de documentos escritos por negros, raros
alfabetizados no Brasil Colônia, escritos por brancos sob suas óticas, fotografias, desenhos,
objetos, histórias contadas de pai para filho e de avós para os netos e fazer dessa memória um
acervo confiável é, deveras, uma luta, travada em anos de dedicação, de responsabilidade e de
respeito.
Fiz um estado da arte das pesquisas a respeito da educação dos negros no Brasil da
Colônia aos dias de hoje, mas reconheço que o resultado é a composição de algumas
255
referências sobre o tema que pode servir de base para novos empreendimentos, porém distante
de ter esgotado as possibilidades de fontes. Mesmo porque toda a literatura encontrada acaba
por ratificar o que a atualidade nos revela de invisibilidade, de exploração, de exclusão, de
preconceito, de racismo, enfim de desrespeito ao Outro, lembrando aqui Gonçalves e Silva
(2000). De forma sucinta, portanto, tento transcrever a história da escolarização das crianças
negras, considerando os mecanismos de inclusão e exclusão dela decorrentes e o processo de
conquista da cidadania (penso se já foi conquistada de fato).
Algumas pesquisas sobre o assunto, a exemplo de Clarice Nunes e Marta Maria
Chagas de Carvalho (1993), Eliane Cavalleiro (2001), Eliane Peres (2012), Jeruse Romão
Romão (2005), Jorge Nagle (1984), Leonor Tanuri (1997), Luiz Alberto Oliveira Gonçalves
(2000), Marcus Vinícius Fonseca (2002ab), Mariléia dos Santos Cruz (2005), Mirian Jorge
Warde (1984) Paulo Ghiraldelli Júnior (1993) e Regina Pahim Pinto (2013), indicam que os
trabalhos realizados sobre a história da educação apresentam algumas limitações a exemplo
do emprego do termo ‘educação’ restrito à escolarização da classe média; fatos político-
administrativos, determinando a periodização; enfoque no Estado e nas legislações,
desconsiderando as fontes que poderiam elucidar as experiências educacionais alternativas de
negros e de afrodescendentes, seja quanto aos mecanismos para conquistar a alfabetização;
seja sobre a exclusão desse segmento populacional das instituições oficiais; da conquista de
meios para alcançar a escolarização institucionalizada, da experiência nas primeiras escolas
formais a admiti-los, temas entre muitos outros, que não encontraram assento na historiografia
oficial. (GONÇALVES; SILVA, 2000).
Conforme escreveu Clarice Nunes e Marta Maria Chagas de Carvalho (1993), a
"importância de problematização e do alargamento da concepção de fontes em história da
educação, no intuito de construir uma historiografia menos generalista e estereotipada"
(NUNES; CARVALHO, 1993, p. 8) é de suma necessidade para a compreensão da
escolaridade do negro na atualidade e requer estudos mais aprofundados, porque o que
sabemos é que não foi de forma maciça, nem ampla, nem fácil, para esse seguimento da
população atingir níveis de instrução. Mas essa luta pela inclusão no processo evidencia que
os negros, mesmo à margem da cidadania, acompanharam os processos de desenvolvimento
nacional e nele exerceram grande influência. Necessitando, portanto, estudos sistemáticos,
respaldados, em grande parte, na história oral em diálogo analítico com a interpretação de
documentos oficiais, o que foge ao intento desta tese, por isso percorro caminho similar
apenas para situar a educação quilombola no contexto da inclusão do negro na educação
brasileira.
256
Na simbologia das cores da civilização europeia, a cor preta representa uma mancha
moral e física, a morte e a corrupção, enquanto a branca remete à vida e à pureza.
Missionários decepcionados com o fracasso da conversão afirmavam que o negro refletia a
257
natureza pecaminosa de suas almas resistentes à palavra de Deus, assim a escravidão era a
única possibilidade de ‘salvação’ desses povos. (JESUS, 2012)
Embora algumas pesquisas afirmem que as práticas escolares jesuíticas foram
realizadas com crianças de etnias variadas, Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala
(2003), evidenciou o contexto de que apenas crianças brancas, indígenas, mamelucas e
mulatas tiveram, inicialmente, atenção dos Jesuítas que reuniram “ [...] filhos de caboclos
arrancados aos pais; filhos de normandos encontrados nos matos; filhos de portugueses;
mamelucos; meninos órfãos vindos de Lisboa.” Mas os filhos das escravas, mesmo que
livres, esses “[...] negros e muleques parecem ter sido barrados das primeiras escolas
jesuíticas. Negros e muleques retintos.” (FREYRE, 2003, p. 413)
Confesso, prezado leitor, que a literatura verte em minhas veias, exigindo sua presença
em tudo que escrevo. Casa Grande & Senzala foi a primeira obra que versa sobre a
predominância das teses científicas de superioridade racial do branco sobre negro,
considerado inferior; segunda, que a obra tenha sido marcada pelo estigma do preconceito,
principalmente quando se refere às negras como mulheres mais fogosas e, portanto, mais
propensas ao sexo. Mas é preciso, entretanto, considerar que a obra percorre caminho oposto à
tese do branqueamento, pois constitui a primeira tese a ressaltar a importância de “ser” e do
“sentir” brasileiro. Segundo seu autor, existiu certa afetividade entre senhores e escravizados,
uma democracia, sobre o que tenho minhas ressalvas, pode ter havido entre um, ou outro caso,
esporadicamente, uma relação mais humana, mas a relação entre senhores e escravizados foi
marcada, segundo minhas leituras, pelo poder entre o dono e seu objeto lucrativo para uso
diverso, sem qualquer espécie de consideração, ou zelo; pelo contrário, era o emprego de
castigos e torturas que determinava a relação de poder e mando.
Outra contribuição da obra foi sistematizar o conceito de democracia racial, colocando
a escravidão sob a ótica de dominação. A condição de escravo é historicamente articulada
com relatos e dados documentais utilizados por Gilberto Freyre (2003), que atestam situações
diferentes daquelas de trabalho forçado sob chicote, nas quais os escravizados desfrutam de
certos privilégios materiais, ou mesmo, ocupam posição de confiança de seu senhor e
prestígio na hierarquia colonial, muitas vezes no papel de algoz de seus pares. Podemos
afirmar que a democracia racial (ou na minha versão: demagogia social) é uma eficiente
ideologia segundo a qual os grupos étnicos primordiais da composição do povo brasileiro,
brancos, negros e indígenas, vivem em harmonia, ou tolerância social, e não numa relação de
respeito. O discurso da democracia racial foi contestado na década de 1950 por Oracy
Nogueira e Florestan Fernandes e não poderia ser diferente. É evidente que a tolerância não é
258
um tipo de aceitação, tampouco equivale ao respeito mútuo, o que existe, na maioria das
vezes, é a camuflagem do racismo.
Minha defesa da obra de Gilberto Freyre (2003) reside no fato de ser ela um
testemunho das relações negro/branco naquele período e nos possibilitar conhecer o modus
vivendi e modus operandi entre senhores e escravizados, pois é a partir desse conhecimento
do passado que podemos melhor compreender as relações entre as etnias no presente. Como
fonte de pesquisa o livro é inquestionável.
É possível perceber que o livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda
(1996), dialoga com algumas teses de Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre (2003), a
exemplo da visão culturalista e psicológica da história, ao se referir às "determinantes
psicológicas" da expansão portuguesa na América. A descrição elaborada por eles dos
portugueses colonizadores que consentiam, sem oposição, aos costumes, às seitas e à
linguagem dos nativos e negros. Ambos percebem, com referência à época, uma singularidade
brasileira que acentua o irracional, a afetividade, o passional, antepondo-se às normas
disciplinadoras, racionais e ordeiras. E podemos ler da lavra de Sérgio Buarque de Holanda
(1996, p. 33), referindo-se à relação entre senhores e escravizados, "[...] exíguo sentimento de
distância entre os dominadores, aqui, e a massa trabalhadora constituída de homens de cor",
cuja mudança das relações trabalhistas reformulou as relações com os donos que variavam
"da situação de dependente para a de protegido, e até mesmo de solidário e afim".
(HOLANDA, 1996, p. 66).
A tese de que "a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade -
daremos ao mundo o ‘homem cordial’" (HOLANDA, 1996, p. 33) é, até nossos dias, pouco
compreendida. Diferentemente de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda não faz
apologia aos senhores de escravizados, e sua prudência revela a sua visão da revolução
brasileira como um processo. Ao ir ao encalço do que denomina de traços definidores do
caráter brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda, na figura do homem cordial, sugere a
indistinção entre o domínio do público e do privado, construída no interior de uma ética de
cunho emotivo, conforme padrões de convívio oriundos patriarcado do meio rural.
Opondo-se à polidez, a noção ritualista da vida não está presente em nosso convívio
social, manifesta na ojeriza às distâncias sociais e no desejo de estabelecer intimidade,
conforme pensa o autor citado e com o qual concordo, constituindo-se um dos traços
característico do caráter brasileiro. (HOLANDA, 1996, p. 101-105). O homem cordial por ele
nominado é resultado histórico social e não um traço essencial ou natural dos brasileiros.
Representa, simultaneamente, uma denúncia e uma crítica ao autoritarismo da sociedade e a
259
6.2 Segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX: educação dos
negros libertos
Com pretas e pretos boçais, e com os filhinhos destes vivemos desde que abrimos os
olhos; e como poderá ser boa a nossa educação? (FREYRE, 2003, p. 404)
A conquista da liberdade dos recém-nascidos pela Lei do Ventre Livre (1871) não
garantiu a essas crianças os direitos concedidos a crianças de outras etnias por diversas razões,
a principal delas foi a ambiguidade, pois a lei não deixava claro que caberia aos senhores de
suas mães a responsabilidade de proporcionar a educação elementar a essas crianças, um
abismo separava a lei da realidade das crianças. Para Serafim Leite (2001) “[...] claro está que
os senhores não os compravam [negros] para os mandar aos estudos e fazer deles bacharéis ou
Sacerdotes. A instrução ou educação que lhes permitiam, essa, e mais do que essa, lhes
ensinava a Igreja.” (LEITE, 2001, p. 144 apud DEL PRIORE, 2001). A educação das crianças
“de cor” não se realizava da mesma forma que aquela destinada às crianças brancas, a elas
cabia a catequese, mas muitas dessas crianças negras souberam aproveitar a brecha e
aprenderam mais que o catecismo.
A articulação entre abolição e educação não foi colocada em destaque para proteger
aquelas crianças, libertas pela lei do ventre livre. No fundo, no fundo, a preocupação girava
em torno da tentativa de minimizar o impacto que o fim do trabalho escravo poderia gerar na
sociedade brasileira, por receber um número significativo de cidadãos livres. Era o poder
econômico ditando as normas como sempre, não havia expectativa de instrução mais efetiva,
apenas prepará-los para exercer atividades de lavoura, ou um trabalho mecânico, jamais uma
atividade ligada ao intelecto, pois criam que os negros eram incapazes, inferiores em
260
inteligência.
Até o final do século XVIII, a Igreja foi a única educadora dos negros no Brasil.
Juntamente com crianças indígenas e brancas órfãs, as crianças negras eram catequizadas por
meio da metodologia da memorização e da repetição, cujos erros tinham por consequência
nefasta o sadismo, realizado através de castigos corporais e morais aplicados contra as
crianças. As crianças negras sofriam, desse modo, “ [...] um processo de aculturação, gerado
pela visão cristã de mundo, organizada por um método pedagógico que preconizava uma
visão repressiva de modelagem da moral cotidiana do comportamento social” (FERREIRA
JÚNIOR; BITTAR, 2000, p. 13). Não é de se estranhar, portanto, que nossa formação social
seja marcada por um processo de inculcação de valores eurocêntricos, repressivos e de
exploração. É difícil compreender a lógica de funcionamento dessas instituições, que tiveram
papel fundamental no Brasil Colônia, sob a concepção de educação do Ratio Studiorum, uma
educação que punia as crianças como os escravizados adultos sob a lei do chicote e do tronco.
Ao analisar a violência com que os subjugados foram tratados pelos grupos
dominantes, na colônia, Sérgio Buarque de Holanda imputou a responsabilidade aos jesuítas
pela introdução de um dos traços distintivos do autoritarismo em nossa cultura, imposto pelo
princípio da disciplina pela obediência, segundo compreende “[...] nenhuma tirania moderna,
nenhum teórico da ditadura do proletariado, ou do Estado totalitário, chegou sequer a
vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que conseguiram os padres da
Companhia de Jesus em suas missões.” (HOLANDA, 1996, p. 39)
A organização do trabalho livre exigiu a necessidade da educação para o trabalho.
Nesse contexto, a educação dos negros foi apontada como condição estratégica necessária
para transposição de um sistema trabalhista a outro. Para construção de um país modernizado
era fundamental pensar a educação para a “liberdade” e para ser livre seria preciso ter um
ofício para o trabalho, só assim seria possível a construção dessa nação. A inserção da
população negra tornou-se preocupação das autoridades, pois era desejável que se
desvencilhassem da herança escrava, considerada atrasada pelos anos de cativeiro, o que
poderia atrapalhar os planos de construir uma nação “civilizada”. A justificativa na qual se
respaldaram era a de que cabe ao branco “civilizado” a responsabilidade de ajudar os tidos
como “ignorantes” a darem um salto civilizatório. Como aventado, a preocupação da elite era
a construção da nação, que não seria possível sem o fortalecimento das instituições públicas
nas províncias.
A “inclusão” do povo negro como partícipe da nação se faria mediante ingresso na
escola, lugar de disciplinar e de formar cidadão ideal, pois era comum, à época, os discursos
261
O nosso grito vive nos fatos e nós advogamos os direitos da raça negra,
porque ela tem uma grande herança dentro do Brasil.
(Manchete de o Clarim d'Alvorada, 1931)
Nas últimas décadas do séc. XIX e princípio do século XX83, o Brasil foi sacudido por
discussões referentes ao progresso e ao desenvolvimento capitalista internacional,
necessitando se posicionar sobre os rumos para a construção de uma nação "civilizada". As
novas ideias econômicas, políticas, educacionais e científicas tiveram por referência o
discurso do liberalismo em vigência na América do Norte e alguns países europeus,
capitaneados pela Inglaterra, considerados modelo de desenvolvimento. Em meio a essas
discussões nasceu o entusiasmo pela educação no país.
Não há que duvidar sobre o ingresso de crianças negras no sistema oficial de ensino,
pesquisas, como a realizada por Rosa Fátima de Souza (1999), por exemplo, sobre os
primeiros grupos escolares em Campinas, no período entre 1897 a 1929, revelam a presença
de crianças negras nas escolas. Ele identifica "a presença de crianças negras em fotografias de
turmas de alunos de diferentes grupos escolares e em diferentes épocas." (SOUZA, 1999, p.
118)
83
A quem interessar ler mais sobre a questão ver: (SANTOS, 2008). O texto propõe analisar como se deu o
processo de inserção da população negra à escolarização, no período entre o final do séc. XIX e o início do
séc. XX, buscando compreender as dificuldades ao acesso e à permanência no sistema oficial de ensino.
262
Quadro 5 - Leis que estabeleceram mudanças no sistema educacional brasileiro no fim do século XIX e início do século XX
Nº DA LEI NOME CONHECIDO PRETENSÃO CONSEQUÊNCIAS
Constituição de Restringiu o acesso à instituição oficial apenas aos Exclusão dos africanos
1824 cidadãos brasileiros.
Decreto Reforma Couto Ferraz Estabeleceu a obrigatoriedade e a gratuidade da escola Exigência: crianças oriundas de famílias com
1.331/1854 primária para crianças maiores de 07 anos, inclusive algum recurso;
libertos Proibições:
Não apresenta formas de instrução destinada aos - não seriam admitidos escravos;
adultos;
- acesso de crianças portadoras de alguma
- instrução de adultos negros dependia da moléstia contagiosa e filhos de escravas
disponibilidade de professores.
Decreto nº Como a Reforma Benjamin Introduziu a disciplina Moral e Cívica Medidas punitivas, proibitivas, elitistas e
982/1890 Constant Objetivo: normatizar a conduta moral da sociedade centralizadoras
Decreto nº Reforma de Epitácio Pessoa Estabeleceu a criação de instituições de ensino Possuíam o mesmo status do sistema federal e
3.890/1901 superior fundadas pelos governos estaduais e suas matrizes de diferenças socioculturais
iniciativas particulares
Decreto nº Lei Orgânica Concede maior autonomia aos diretores Instituição de taxas e exames para admissão
8.659/1911 Rivadávia Corrêa no ensino fundamental e superior
Decreto nº A Reforma de Carlos Tentou sistematizar o ensino oficial através da criação O ensino primário que continuou a cargo dos
11.530/1915 Maximiliano do Conselho Superior de Ensino estados, permaneceu extremamente precário
Decreto nº Reforma de João Luís Alves, Restringiu o número de vagas nas escolas secundárias Dificulta o acesso dos mais pobres.
16.782/1925 conhecida como Lei Rocha Vaz e superiores que passaram a ser determinadas pelo
próprio governo.
Fonte: Elaborado pela pesquisadora.
265
Não é difícil constatar por meio da leitura do quadro que as reformas educacionais
ocorridas no período em questão não criaram condições para a inclusão do negro livre no
sistema escolar oficial. Embora sob a promessa de democratização, universalização e
gratuidade do ensino, as leis não favoreceram o acesso de modo a, efetivamente, inclui-los na
educação institucionalizada. A Reforma Couto Ferraz, por exemplo, associava os negros a
doenças contagiosas; a Reforma de Rivadávia Corrêa baseou-se em critérios econômicos, em
oposição ao que se propunha, acentuando ainda mais a exclusão dessa população.
Não podemos, contudo, depositar nas leis toda a carga de responsabilidade pela
exclusão dos negros à educação. É preciso considerar também o preconceito e a discriminação
sofridos por essas crianças no cotidiano escolar84. Conforme relatório do Professor José
Rhomens, encaminhado ao Inspetor Geral da República da Província de São Paulo em 1877,
podemos conferir a forma como as crianças negras eram vistas naquela época:
[...] negrinhos que por ahi andão, filhos de Africanos Livres, que matriculão-se,
mas não frequentão a escola com assiduidade, aparecendo la uma vez por outra, de
modo que nenhuma utilidade tirão da escola; mas deixão nella os vicios de que se
achão contaminados; ensinando aos outros pratica de actos e uso de expressões
abominaveis, que aprendem ahi por essas espeluncas onde vivem. [...] Para estes
devião haver escolas a parte [...] (BARROS, 2005, p. 48).
84
Detectar as dificuldades existentes para educar a criança negra na escola no final do século XIX é uma tarefa
enorme, principalmente, devido à falta de documentação e a bibliografia que trate dessa matéria. Cabe-nos
consultar a parca documentação disponível do Arquivo do Estado de São Paulo que se refere à Instrução
Pública da Província de São Paulo. Também pesquisas de referência que nos antecederam a exemplo de:
(BARROS, 2005; FONSECA, 2002a; GONÇALVES, 2000).
85
O termo encontra-se entre aspas para me referir aos senhores detentores do poder econômico e político.
266
e à discriminação não impediram a luta dos negros por sua inclusão na escola. Pesquisas
apontam que foram criadas alternativas para superar os entraves colocados à educação, como
algumas iniciativas de educação institucionalizada e outras informais.
Com relação às escolas oficializadas, as pesquisas realizadas por Jomar Moraes (1995)
mencionam as aulas públicas ministradas pela Irmandade de São Benedito, em São Luís do
Maranhão até 1821, ainda no século dezenove; Cléber da Silva Maciel (1997), Irene Maria
Ferreira Barbosa (1997) e José Galdino Pereira (1999) que abordam acerca do Colégio
Perseverança ou Cesarino, exclusivamente para crianças negras, criado em 1902 em
Campinas, São Paulo. Vale acrescentar outras escolas citadas em diferentes pesquisas, como
as de Regina Pahim Pinto (1993ab), Henrique Cunha Júnior (1999), Irene Maria Ferreira
Barbosa (1997) em São Paulo, capital com cursos de alfabetização, curso primário regular e o
curso preparatório para o ginásio, oferecidos pela Frente Negra Brasileira; São Carlos-SP com
a Escola Primária no Clube Negro de Maio e no Rio Grande do Sul a Escola dos Ferroviários
de Santa Maria.
No que se refere à educação informal, Geraldo da Silva e Márcia Araújo (2005)
levantam a hipótese de que muitos negros aprendiam a ler e a escrever, e outras coisas mais,
por meio de diferentes situações improvisadas e, para exemplificar, citam: a observação das
aulas ministradas às sinhás moças, a instrução religiosa dos padres e também a possibilidade
de os senhores contratarem professores para lições elementares aos negros, com vistas a
obtenção de lucros, o que contribuiu para a instrução dos negros apesar das adversidades . Os
pesquisadores ainda mencionam a possiblidade do encaminhamento de rapazes às escolas
vocacionais, ou de aprendizado da profissão, principalmente a agrícola, e o ensino das letras
como aprendizado consequente.
Outra informação elucidativa dos pesquisadores diz respeito à possibilidade de os
escravizados africanos serem alfabetizados em árabe, conforme consta em A vida dos
escravos no Rio de Janeiro (1808 a 1850), escrito por Mary Karasch (2000), em que a autora
menciona uma queixa colonial de que negros minas da cidade do Rio de Janeiro
correspondiam-se em escritos cifrados com os negros minas de Minas Gerais, São Paulo e da
Bahia. Também o registro de Perses Maria Canellas da Cunha (1999, p. 81) em que menciona
uma escola criada pelo negro Cosme para ensinar a leitura e a escrita aos escravizados
aquilombados do Quilombo da Fazenda Lagoa-Amarela, em Chapadinha, Maranhão.
Fica óbvio que a inclusão do negro na educação oficial sem obstáculos impositivos
possibilitaria a ascensão dessa camada da população e consequente participação
socioeconômica no país, o que não interessava às elites. Conforme Demerval Saviani (2004)
267
escravocrata inerente ao homem negro livre, mas abandonado às margens das cidades
grandes, sem recursos básicos para sobrevivência. Por isso mesmo, submetidos a um novo
tipo de escravidão, imposta por brancos espertos e financeiramente estabelecidos, que
submetiam os negros às mais árduas e/ou torpes tarefas, por trocados, uma exploração que
nem a condição de cidadãos livres foi capaz de extirpar.
A cidadania, instituída no século anterior, formalmente na primeira Constituição
Brasileira, a de 1824, em seu Art.1º reza que o “Império do Brazil é a associação política de
todos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação livre, e independente, que não
admitte com qualquer outra laço algum de união, ou federação, que se opponha á sua
Independência” (BRASIL, 1824, grifo nosso), embora legal, não garantiu a inclusão do negro
como cidadão pleno de direito.
São inúmeras as pesquisas sobre a militância negra, movimentos de protesto, lutas e
ações efetivas com objetivos definidos, entre eles, conscientização por meio de discussões,
palestras, publicações em jornais, realização de eventos. Reivindicação de políticas públicas
reparadoras e projetos de ação afirmativa, preservação de valores afro-brasileiros, valorização
da beleza negra, mobilidade social, elevação da autoestima e algumas ações educativas
independentes, culturais e artísticas (escolas de samba, hip-hop, blocos afros, funk, entre
outros) que nos ajudam a compreender como se deu a mobilidade do negro na sociedade
brasileira, aí incluída a educação. Os estudiosos Marília Pontes Spósito (1994), Nilma Lino
Gomes (1999) e Vera Maria Candau (2000) têm pesquisado sobre os grupos de jovens e
concluído o quanto esses movimentos culturais têm contribuído para o desenvolvimento do
senso crítico.
Embora tenhamos indícios de que os negros se organizavam em diferentes partes do
país no início da República, foi nas grandes capitais que esses movimentos tomaram corpo e
visibilidade. Podemos citar, a título de exemplo, os estudos de Luiz Alberto Oliveira
Gonçalves e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2000) em que trazem um mapeamento de
pesquisas sobre o tema, o qual serve como referência, e também elucidam alguns desses
movimentos e suas conquistas, que se fortaleceram por todo século XX, como, por exemplo, a
pesquisa de Clóvis Moura (1983) sobre os anos de 1930; Luiz Alberto de Oliveira Gonçalves
(1998) final dos anos 1940 e Maria Ercília do Nascimento (1989) que escrevem sobre os anos
setenta e oitenta em que a expansão do movimento negro tornou-se evidente. As pesquisas de
Sidney Chalhoub (1988); Florestan Fernandes (1986), Lilia Moritz Schwarcz (1987) e Celia
Maria Marinho de Azevedo (1993), que discorrem sobre a convivência marcada por tensão e
conflitos entre negros e brancos, contrariando o discurso da Democracia Racial. Regina
269
Pahim Pinto (1993a) que aborda sobre as iniciativas educacionais dentro dos movimentos,
voltadas para uma educação complementar das crianças e alfabetização dos adultos e também,
Petrônio Domingues (2007), sobre a importância desses movimentos os pesquisadores Luiz
Alberto Oliveira Gonçalves e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2000) asseveram que,
86
Primeiro bloco afro da Brasil, fundado em 1º de novembro de 1974 no Curuzu, bairro Liberdade, o maior em
população negra do país, com aproximadamente 600 mil habitantes. Tem como objetivo preservar, valorizar e
expandir a cultura afro-brasileira. Ao longo de sua trajetória, homenageia países africanos e revoltas negras
brasileiras que contribuíram para o processo de identidade étnica e autoestima povo negro. Apropriou-se,
popularmente, da história africana para trabalhar a construção da história do negro no Brasil. (PERFIL...,
2017).
270
diferença e respeito humano” (GONÇALVES; SILVA, 2000, p. 337). Não foi sem motivo,
tampouco em vão, que Abdias do Nascimento (1978) fez da educação a maior bandeira do
movimento de luta em prol da raça87 negra.
Entre os anos de 1920 e 1930, argumentam os pesquisadores Luiz Alberto Oliveira
Gonçalves e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2000), a imprensa negra, principalmente
de São Paulo88, serviu de aporte às reivindicações, a informações importantes para este
seguimento da população, mas principalmente, meio de convocação do povo negro para
estudar como estratégia fundamental para o ingresso no mercado de trabalho. Os jornais: O
Alfinete, O Kosmos, A Voz da Raça e o Clarim d’Alvorada, O Progresso, entre outros,
tornaram-se um dos maiores, senão o maior, instrumento de luta.
Os movimentos negros e a imprensa constituíram, e ainda constituem, importantes
meios de inclusão social. Seja quando a imprensa contribui para a conscientização política,
seja quando divulga a produção e ascensão dos afro-brasileiros. Os movimentos contribuem
na luta, no compromisso, na construção de bibliotecas e cursos, no incentivo e promoção da
educação e da cultura, na realização de conferências e outros eventos. Não é de se estranhar,
portanto, que os movimentos tenham tomado para si a responsabilidade de educar seus pares,
uma vez que o Estado não assumia o seu papel. (GONÇALVES, 2000)
O primeiro sinal de militância ocorreu no Nordeste, em 1930. O que nos permite
deduzir que algumas iniciativas já vinham acontecendo mesmo antes do meado do século,
quando houve um movimento de valorização de cultura negra com a criação, em Salvador, da
“Academia dos Rebeldes”, na qual estavam envolvidos Jorge Amado, Edson Carneiro e
outros intelectuais baianos. (GONÇALVES, 2000). Conforme escreveu Beatriz Góis Dantas
(1995) uma aliança interessante entre intelectuais e membros de cultos-africanos. Nada de
extraordinário, tendo em vista que grande parte dos intelectuais de Salvador são Filhos de
Santo. Não sei dizer sobre os demais fundadores da academia, mas posso afirmar que Jorge
Amado foi introduzido pelo amigo Edson Carneiro na religião afro-brasileira aos 16 anos89.
87
O conceito é definido como uma construção social. O conceito atribuído por Telles me atende: “o uso do
termo raça fortalece distinções sociais que não possuem qualquer valor biológico, mas a raça continua a ser
imensamente importante nas interações sociológicas e, portanto, deve ser levada em conta nas análises
sociológicas [e antropológicas]”. (TELLES, 2003, p. 38).
88
Aos interessados sobre a imprensa negra, ler: (BASTIDE, 1951; DOMINGUES, 2004a; DOMINGUES,
2004b; FERRARA, 1986; GARCIA, 1997; LOPES, 2002; MACIEL, 1997, p. 96-102; MELLO, 1999;
SANTOS, 2003, p. 79-152).
89
Jorge Amado (2012) recebeu o seu primeiro título no candomblé de babalorixá Procópio Xavie: ogã de
Oxóssi – um dos sacerdotes que auxiliam nas cerimônias religiosas. No terreiro de Mãe Senhora, o Ilê Axé
Opô Afonjá, na Bahia, ele foi um dos doze conselheiros, chamado de obá de Xangô”.
271
93
Breve histórico do GT 21 Educação e Relações Étnico-Raciais. (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-
GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 2001).
94
Sem desmerecer nenhuma contribuição ao grupo de pesquisadores, vale ressaltar o nome daqueles, e suas
instituições, que estiveram a frente da coordenação do GT21 de sua criação até nossos dias, a exemplo de
Iolanda de Oliveira - Universidade Federal Fluminense (UFF) e Maria Lúcia Rodrigues Muller - Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT) de 2001 a 2002; no ano seguinte até 2004 reeleita Iolanda de Oliveira -UFF;
Iolanda de Oliveira UFF e Regina Pahim Pinto - Fundação Carlos Chagas (FCC) de 2004a 2005; Ahyas Assis
- Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Maria Lúcia Rodrigues Muller UFMT de 2006 a
2007; Ahyas Assis UFRRJ e Paulo Vinícius Baptista da Silva - Universidade Federal do Paraná (UFPR) de
2008 a 2009; Paulo Vinícius Baptista da Silva - UFPR e Nilma Lino Gomes - UFMG de 2010 a 2013;
Erisvaldo pereira dos Santos (UFOP) e Cândida Soares da Costa (UFMT) de 2014 a 2015; Wilma de Nazaré
Baia Coelho - Universidade Federal do Pará (UFPA) e Julvan Moreira de Oliveira - Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF).
273
95
O primeiro realizado ocorreu em Porto Alegre em 20/11/1971 em homenagem ao professor Oliveira Silveira
da Fundação Palmares.
96
Programa de Ação do Movimento Negro Unificado (1982, p. 4-5).
275
Causa da marginalização do negro A escravidão e o despreparo moral/ A escravidão e o despreparo cultural/ A escravidão e o sistema capitalista
educacional educacional
Solução para o racismo Pela via educacional e moral, nos marcos do Pela via educacional e cultural, eliminando o Pela via política (“negro no poder!”), nos
capitalismo ou da sociedade burguesa complexo de inferioridade do negro e marcos de uma sociedade socialista, a única
reeducando racialmente o branco, nos marcos que seria capaz de eliminar com todas as
do capitalismo ou sociedade burguesa formas de opressão, inclusive a racial
Métodos de lutas Criação de agremiações negras, palestras, Teatro, imprensa, eventos “acadêmicos” e Manifestações públicas, imprensa, formação
atos públicos “cívicos” e publicação de ações visando à sensibilização da elite branca de comitês de base, formação de um
jornais para o problema do negro no país movimento nacional
Relação com o “mito” da Denúncia assistemática do “mito” da Denúncia assistemática do “mito” da Denúncia assistemática do “mito” da
democracia racial democracia racial democracia racial democracia racial
Capacidade de mobilização Movimento social que chegou a ter um Movimento social de vanguarda Movimento social de vanguarda
caráter de massa
Relação com a “cultura negra” Distanciamento frente alguns símbolos Ambigüidade valorativa diante de alguns Valorização dos símbolos associados à cultura
associados à cultura negra (capoeira, samba, símbolos associados à cultura negra (capoeira, negra (capoeira, samba, religiões de matriz
religiões de matriz africana) samba, religiões de matriz africana) africana, sobretudo o candomblé)
Como concebiam o fenômeno da De maneira positiva (discurso pró- De maneira positiva (discurso pró- De maneira negativa (discurso contra a
mestiçagem mestiçagem) mestiçagem) mestiçagem)
Dia de reflexão e/ou protesto 13 de Maio (dia da assinatura da Lei Áurea, 13 de Maio (dia da assinatura da Lei Áurea, 20 de Novembro (dia de rememoração da
em 1888) em 1888) morte de Zumbi dos Palmares)
Principais lideranças Vicente Ferreira, José Correia Leite, Arlindo José Bernardo da Silva, Abdias do Nascimento Hamilton Cardoso, Lélia Gonzalez
Veiga dos Santos
Fonte: (DOMINGUES, 2007, p. 117-119).
277
atual situação educacional dos negros brasileiros, encontramos dois eixos sobre os quais elas
foram estruturadas: exclusão e abandono. Tanto uma quanto o outro têm origem longínqua em
nossa história. (GONÇALVES; SILVA, 2000, p.135) Essa afirmativa dos pesquisadores, há
dezessete anos, é muito atual, chaga que pode ser evidenciada desde a educação jesuítica. Não
ignoro que tivemos avanços, mas ainda falta muito para considerar a educação dos afro-
brasileiros equânime à dos brancos.
Com população inferior apenas à Nigéria, escreveu Eliane Cavalleiro (2001), o Brasil
fomentou a desigualdade entre os grupos étnico-raciais negros e brancos. Os negros,
diferentemente dos brancos, representam os índices mais baixos de desenvolvimento humano.
Não é difícil constatar, caro leitor, que são a minoria na educação, na saúde, no trabalho
formal, em moradias; suplantando os brancos, apenas, em situações de abandono: moradia de
rua, população carcerária, analfabetos, não-escolarizados, frequentadores da Fundação Centro
de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (FEBEM, 1960), Fundação Estadual do Bem-
Estar do Menor (FEBEM, 1970) e mortes por tiro e arma branca. O Estado brasileiro não
reconhece o racismo, a discriminação e o preconceito racial para explicar essa realidade de exclusão.
Sinto que o mito da democracia racial, enfraquecido é certo, permanece vivo no
imaginário social e é disseminado como qualidade de nosso povo, mesmo depois de tanta
discussão e denúncia. Parece-me que o poder se cega à realidade e aos problemas dessa
população como se não lhe coubesse a responsabilidade. Um país de negros dentro do Brasil,
um subconjunto maior que o conjunto que o detém, às avessas das matemáticas (se é que
posso, assim, me expressar), relegado às periferias, o povo que tudo oferece e que pouco, ou
nada, parece merecer.
O mapa, a seguir, mostra as regiões onde há maior concentração de pessoas negras no
país. Nas regiões Sul e Sudeste há maioria de pessoas brancas, o que pode ser explicado pela
migração de europeus para essas regiões, onde se instalaram e em muitos municípios
constatamos a preservação, transformada claro, da cultura de diferentes países europeus, na
maioria, imigrantes da Alemanha (Sul) e Itália (Suldeste).
279
97
Percentagem das vagas destinada ao ingresso de estudantes negros nas universidades.
282
segmento da população, as leis são criadas, mas daí à sua implantação com ações efetivas
demanda uma nova luta.
Não vou aqui discutir todas as importantes leis e ações resultantes das lutas
reivindicatórias, apenas darei ênfase às cotas nas universidades por considerar de suma
relevância, embora não diga respeito à criança, objeto dessa pesquisa, usarei esse espaço para
corrigir um lapso e dar o crédito a quem realizou de fato.
O déficit histórico entre negros e brancos nas universidades sempre foi um dos
indicativos de que a academia não foi criada para negros. Também, no Brasil, testemunhamos
essa exclusão. Em alguns países as cotas foram adotadas como medida numa tentativa de
reduzir as desigualdades sociais, econômicas e educacionais entre as etnias. Foi adotada, pela
primeira vez em 1960, nos Estados Unidos buscando minimizar as desigualdades entre negros
e brancos. A discussão iniciou tímida no finalzinho do século XX, marcado pelas relações
interculturais e multiculturais, e pela busca de alternativas de inclusão dos negros nas
universidades.
A solução encontrada foi, como mencionei, a adoção de políticas afirmativas. Mas, se
o tema foi pauta de discussão em muitos eventos no Sul e Sudeste brasileiro, foi no Nordeste,
precisamente na Bahia, mais especificamente na Universidade do Estado da Bahia-UNEB,
onde atuo, que em julho de 2002, após ampla discussão ao longo do ano anterior, a primeira
ação se efetivou. Foi aprovada a implantação de quotas para afrodescendentes egressos de
escolas públicas, tanto no curso de graduação, como nos cursos de pós-graduação espalhados
por todo território do estado da Bahia, pois minha universidade é organizada em multicampia,
conforme resolução de n.º 196/2002:
Art. 1º - Estabelecer a quota mínima de 40% (quarenta por cento) para a população
afro-descendente [sic]98, oriunda de escolas públicas, no preenchimento das vagas
relativas aos cursos de graduação e pós-graduação oferecidos pela Universidade do
Estado da Bahia UNEB, seja na forma de vestibular ou de qualquer outro processo
seletivo. (UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA, 2003)
Penso que a professora Ivete Sacramento não vai ser esquecida por aqueles que
lutaram/lutam pela equidade social, pois foi por meio de sua iniciativa que muitos
encontraram oportunidade na Bahia e/ou em outros estados. Seu ineditismo revelou que é
possível lutar e conquistar políticas públicas quando se está no lugar certo e com vontade de
fazer a diferença com a coragem que toda ação polêmica demanda. A adoção de ações
98
Para os efeitos desta Resolução serão considerados os candidatos pretos ou pardos, ou denominação
equivalente, conforme classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
283
afirmativas por meio de reserva de vagas encontrou muita resistência para a sua implantação,
como era de se esperar. Mas a professora resistiu a todas as pressões sofridas, não perdeu a
oportunidade e ousou, consciente de que estava indo ao encontro dos interesses daqueles cuja
hegemonia desejam preservar. O ineditismo da ex-reitora é ímpar, ratifico, ela foi/é a primeira
mulher negra a dirigir uma universidade no país, implantou, em sua gestão, um modelo de
quotas para negros que se tornou paradigma para instituições de ensino superior em todo
território nacional. O sistema de cotas foi transformado em lei pelo Congresso Nacional e
sancionada pela presidente Dilma Rousseff em 2012, após ter sido considerado constitucional
por unanimidade do Supremo Tribunal Federal- STF. (VASCONCELOS, 2012)
Em seguida, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro adotou o mesmo princípio
em 2003, citada nas pesquisas acadêmicas e documentos da FCP (2017a) e outros, como a
primeira estadual a adotar as ações afirmativas, um deslize incompreensível, tendo em vista,
os documentos disponíveis com a data da adoção do sistema de cotas em ambas as
instituições Universidade Estadual da Bahia (UNEB) (resolução de n.º 196/2002)
(UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA, 2002) e Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) (Lei nº 4151, promulgada em 4 de setembro de 2003 para o ingresso no
vestibular 2004) (UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2003). Quanto às
federais a Universidade Federal de Brasília (UnB, 2004) foi a pioneira. De lá para cá, a
exclusão da academia vai cedendo e ampliando as oportunidades para esse seguimento da
população. Vale lembrar que o sistema de cotas não beneficia apenas os afrodescendentes,
mas também os índios.
Embora aparentemente os conflitos tenham cedido lugar ao entendimento, a
subjetividade que envolve o reconhecimento e a identificação como afrodescendente não é um
problema simples. Para tanto, basta lembrar o caso ocorrido na UnB, em que gêmeos
idênticos foram considerados de etnias diferentes ao serem selecionados para o ingresso
naquela instituição pelo sistema de cotas, um deles foi considerado branco e o outro negro.
Outro problema enfrentado é a consequente discriminação sofrida por esse segmento da
população já dentro das universidades, seja pelas piadinhas maldosas, olhares enviesados e
apelidos rebaixadores, seja pela dificuldade para superar a defasagem no ensino médio, seja
pela indiferença do professor, seja pela invisibilidade que lhes é imposta por grande parcela
da comunidade acadêmica. A discussão é ampla e polêmica e não há garantias de que deixará
de sê-lo um dia. Mas a garantia de um lugar na academia e de que não haverá mais silêncio
sobre o assunto é uma conquista para a qual não há retrocesso.
284
Outra conquista que o século registrou foi a Lei nº 10.639 (BRASIL, 2003b),
promulgada em 9 de janeiro de 2003, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional n°. 9.394/96 (BRASIL, 1996), instituindo a obrigatoriedade do ensino de história e
cultura africanas e afro-brasileiras. É importante dizer que a Lei 10.639/03 incluiu,
definitivamente, o negro na lei educacional de maior peso do país, que estabelece a
obrigatoriedade do ensino da história e cultura brasileiras e africanas nas escolas do ensino
fundamental e médio, públicas e privadas de todo país. Posteriormente, a aprovação pelo
Conselho Nacional de Educação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas
(Parecer do CNE/CP 03/2004) que vem consolidar as lutas dessa parcela da população. Além
das referidas leis, a pesquisadora Nilma Lino Gomes (2011) aponta:
99
Narrei até aqui aspectos da história da educação dos negros respaldada em alguns
pesquisadores do tema, claro é que não se trata de um mapeamento, apenas síntese dos
principais acontecimentos históricos e sociais que importaram para analisar a questão
educacional dessa população nos nossos dias. É quase consenso, se não o for, a afirmação de
que a história da educação dos negros é ainda uma recém-nascida. O que dizer, então, sobre a
educação quilombola? Seria um embrião se comparado aos estudos realizados, levando-se em
consideração a educação dos negros da zona urbana no contexto nacional.
99
Sankofa – estilização de um pássaro, simbolizando que para ir adiante é preciso retornar ao passado,
lembrando-nos que é impossível entender o presente sem entender e estar conscientes do passado. Do
proverbio: “Se wo were fi na wo sankofa a yenkyi”, que significa “Não é tabu voltar para trás e recuperar o que
você perdeu. Esse provérbio ensina a sabedoria do aprendizado com o conhecimento do passado e do
aperfeiçoamento que isso produz no futuro. Volte e pegue, ou retorne e aprenda com o passado, sempre se
pode corrigir os erros. O retorno às raízes. Não importa quão longe estamos, havemos de retornar para casa.
(ZEIGER, 2012e).
286
Mas, antes de escrever sobre a educação dos quilombolas, creio ser necessário
compreender o que é um quilombo.
Para o pesquisador Kabengele Munanga (2004), a palavra “quilombo” refere-se a um
tipo de instituição sociopolítica e militar conhecida na África Central, principalmente na
região constituída pela atual República Democrática do Congo (Zaire) e Angola. Para o autor
a expressão quilombo vem de um dialeto de Angola: ochilombo. A palavra designava as
povoações construídas nas matas pelos negros fugidos. Também eram conhecidas como
mocambos, palavra de origem quimbundo, que significa esconderijo.
Onde quer que tenha havido escravidão na América, essas comunidades marcaram
presença, com características diversas, seja em proporção e duração, seja na composição
étnica de seus habitantes. Os negros capturados como escravos que eram retirados da Angola,
Congo e Moçambique, são identificados como Bantos e os negros da Costa da Guiné e Sudão
são identificados como sudaneses.
No Brasil, durante os anos em que predominou o regime de trabalho escravo, os
negros foram utilizados como mão-de-obra nas plantações de cana-de-açúcar, na mineração,
nas lavouras de cacau e café e, também, nos trabalhos domésticos. Conforme Carlos
Rodrigues Brandão (2009ab, p. 23), essas relações de trabalho davam-se entre os brancos
(europeus e seus descendentes) e os negros advindos das culturas majoritárias trazidas para o
Brasil (banto e nagô). Fixaram na Bahia os negros Mina, em São Luiz os cabo-verdianos
Olinda os de Cabo Verde e Mina, ou seja, a cultura dos sudaneses, com exceção dos bantos,
oriundos de Benguela que também chegaram à Salvador. No Rio de Janeiro, além do tráfico
dos bantos de Benguela, foram escravizados também negros de Mombaça e Moçambique.
Esses grupos “[...] constituíram um mosaico étnico e cultural bem diversificado,
considerando-se a origem de distintas regiões como Guiné, Ardras, Congos, Angolanos,
Minas, Cafres, Cabo Verde e São Tomé”. (FREITAS, 1982, p. 48).
Não há um consenso quanto às rotas do tráfico de escravizados para o Brasil. Assim
sendo, fiz uma leitura de vários mapas e escolhi este que apresento, em seguida, porque
pareceu ser o mais coerente em comparação com os demais, por trazer apenas as rotas
principais e porque atende ao meu propósito já que todos os mapas analisados são unanimes
quanto à origem dos escravizados que foram levados para Salvador.
287
todas as lutas dos negros que se seguiram depois. Quilombo e liberdade são, portanto, faces
opostas de uma mesma realidade histórica. De um lado, a imposição por força arbitrária dos
senhores de engenho, impunham a sua vontade sob o chicote. De outro, a resistência dos
escravos e libertos, de forma explícita ou implícita, violenta ou silenciosa.
Com as mudanças decorrentes da industrialização, o quilombo deslocou-se dos
abolicionistas para os movimentos sociais, incorporando uma parte do projeto político de uma
sociedade mais democrática e “justa”. A unidade familiar que serviu de suporte ao modo de
produção colonial incorporou as populações egressas da escravidão. “Os quilombos passaram
a integrar a ordem pós-abolicionista relacionando-se, não sem conflitos, com as estruturas
pós-coloniais” (LEITE, 2008, p. 965).
Os negros sofreram/sofrem marginalização sociopolítica que tem por consequência
uma lógica de segregação sutil, camuflada pela ideologia da mestiçagem, a qual vem sendo
vencida com a luta incansável dos movimentos. “Essa lógica introduziu um modelo de
relações interétnicas que se adaptou à ideologia racial em vigor”. (LEITE, 2008, p. 966)
Mas o que entendemos por quilombo na contemporaneidade? Concordo com as
pesquisadoras quando afirmam que:
Não são poucos aqueles que relacionam imediatamente o termo ao conceito estipulado
pelo Conselho Ultramarino em 1740, em que dizia: “[...] toda habitação de negros fugidos,
que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se
achem pilões nele.” (MOURA, 1988, p. 16)
Conceito consagrado na história de dominação branca e, ainda, arraigada na
imaginação coletiva numa referência aos remotos anos setecentos. Segundo Alfredo Wagner
Berno de Almeida (1999),
Essa definição pode, conforme escreve o autor, ser criticada mediante instrumentos da
observação etnográfica por se sustentar em cinco pilares:
a) fuga;
b) uma quantidade mínima de fugidos;
c) o isolamento geográfico em locais de difícil acesso (próximos da natureza selvagem e
distante da chamada civilização);
d) moradia habitual (rancho);
e) autoconsumo e capacidade de reprodução (simbolizados na imagem do pilão), que
podem ser contestados a partir de exemplos que ele próprio apresenta: alguns
quilombos se localizavam a apenas 100 metros da casa grande, ou ainda, quilombos
localizados dentro das próprias senzalas, de onde se comunicavam com comerciantes
das vilas, e onde ocorria uma produção autônoma, principalmente em períodos de
declínio dos ciclos econômicos (agrícola ou de mineração). Trabalhos mais recentes
têm demonstrado que a economia interna desses grupos está longe de representar um
isolamento em relação às economias regionais da Colônia, do Império e da República.
100
Auto definição utilizada pelas comunidades negras rurais, em particular no Maranhão e Pernambuco.
(ALMEIDA, 1999, p. 38)
101
Nome atribuído pela Igreja católica às terras doadas, sob a condição da construção de uma Igreja (REIS;
SILVA, 1989).
102
Atribuída às comunidades negras ribeirinhas do baixo Amazonas (FUNES, 1996, p. 147).
290
[...] foi a produção científica ainda atada a exegeses restritivas e pouco plásticas que
subsidiou a luta política em torno das reivindicações da população rural negra que,
sofrendo expropriações incessantes, se colocava como um segmento específico no
palco dos movimentos sociais. Desta forma, a denominação quilombo se impôs no
contexto da elaboração da constituição de 1988. (SCHMITT; TURATTI;
CARVALHO, 2002, p. 2).
103
Instituição criada em 22 de agosto de 1988, fruto de dois movimentos convergentes de um momento
histórico, expressos pelos movimentos negros em suas variadas matizes, e pelo novo ordenamento político e
jurídico do país, materializado na Constituinte de 1988. (BRASIL, 2010).
291
Foi a partir da Carta Magna de 1988, inscrito em seu Art. 68 do ADCT: “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”
(BRASIL, 1988), que os quilombolas começam a lutar pela emissão dos títulos definitivos de
suas terras, cabendo ao Estado Brasileiro a titulação definitiva.
É pertinente compreender que o artigo não invoca, exclusivamente, uma “identidade
histórica” que pode ser garantida e/ou acionada conforme a lei a determina. Ele presume a
existência de um sujeito histórico que ocupa uma determinada terra, que pode ser reivindicada
por direito. Esta condição básica imposta corresponde a um sistema de relações sociais que
demarcam o lugar deste sujeito na atualidade. Respaldada em Marshall Sahlins (1990) e
Fredrik Barth (2000), Eliane Cantarino O’Dwyer (2007) ratifica:
quilombolas rurais.
Essa participação na luta pelo reconhecimento de direitos étnicos e territoriais das
comunidades negras rurais rompe com o papel tradicional desempenhado por intelectuais que
garantem, pela autoridade manifesta em documentos políticos, apoio às reivindicações da
sociedade civil. Os antropólogos, diferentemente dos intelectuais impositivos, vêm
desempenhando função importante no processo de reconhecimento desses grupos étnicos
diferenciados ao assumirem a responsabilidade social como pesquisadores que detém um
“saber local” acerca dos grupos que estudam, fazendo de sua autoridade um instrumento de
reconhecimento público de direitos constitucionais. (GEERTZ, 1999, p. 11)
Foi a partir das reflexões de antropólogos, dentro e fora do país, que as diferenças
culturais adquiriram um caráter étnico segundo as diferenças culturais percebidas como
relevantes socialmente para os próprios atores e não apenas como modo de vida exclusivo de
um determinado grupo. Segundo escreveu Roberto Cardoso de Oliveira (1998, p.273-4), os
laudos antropológicos e/ou relatórios de identificação106 de comunidades negras rurais, para
efeito do artigo em voga (Art. 68/1988), não podem desconsiderar o conceito de grupo étnico,
com todas as implicações dele advindas. A afiliação étnica se constrói, portanto, com base na
origem comum e nas orientações de ações coletivas.
Em se tratando de comunidades quilombolas brasileiras, as diferenças culturais
reportadas costumam ser mencionadas de forma estereotipada e discriminatória segundo
percepção dos não quilombolas e não como é usado pela Antropologia como criação e
aplicação de noções padronizadas de “distintividade cultural” de um grupo e também
diferenças de poder (ERIKSEN, 1998, p. 66).
Os relatórios antropológicos para o reconhecimento das comunidades quilombolas,
conforme decreto (nº. 4.887/03) mencionado anteriormente, passou a não ser uma exigência
legal. A ABA, em audiência pública antes de sua promulgação, manifestou-se defendendo a
auto definição dos atores sociais como prova para o reconhecimento em apoio à legislação,
entretanto defende a importância dos estudos antropológicos na medida em que os resultados
das pesquisas podem subsidiar a decisão governamental e fornecer elementos para que os
próprios quilombolas possam “[...] se defender de possíveis formas de intervenção estatal que
possibilite apenas a reprodução das categorias sociais, sem garantir as condições para a
perpetuação de padrões culturais, modos de vida e territorialidades específicas.” (O’DWYER,
106
O Decreto Federal n° 4.887, promulgado em 2003, não prevê a elaboração de estudos antropológicos no
processo de identificação territorial das comunidades remanescentes de quilombos pelo Ministério de
Desenvolvimento Agrário (MDA) e pelo INCRA. (BRASIL, 2003a).
294
2007, p. 49)
Após debates e demandas jurídicas sobre a inconstitucionalidade do Decreto n°
4.887/2003, a perspectiva de procedimentos, adotada pela ABA, para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelas comunidades
remanescentes de quilombos de que trata o art. 68 do ADCT, tornou-se um elemento essencial
na defesa da legislação. Por essa razão os antropólogos voltam a participar dos processos de
reconhecimento através da elaboração de estudos e relatórios. O referido artigo, para melhor
entendimento do que são remanescentes de quilombo, estabelece:
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-
raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de
relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
opressão histórica sofrida.
Um dos maiores desafios dos educadores que formam alunos e/em comunidades
quilombolas é a valorização da tradição oral numa sociedade europeizada, cuja prioridade é a
língua escrita.
Conforme escreveu Clifford Geertz (1999, p. 323), a representação normativa dos
relatórios antropológicos gera problemas para os pesquisadores envolvidos. “As
interconexões entre normas e acontecimentos em algum tipo de manual”, pode ser uma forma
não de lidar com as diferenças, mas de eliminá-las pela adoção de uma uniformidade jurídica
que se sobrepõe a outros saberes e tradições. E acrescenta que o próprio Direito não é um
princípio abstrato que reflete a vida social, mas uma forma de também construí-la e “[...]
imaginar que a variedade etnográfica não existe ou esperar, simplesmente, que ela
desaparecesse” é um grave erro. Por isso, é preciso promover a separação do “direito e da
antropologia como disciplinas, a fim de estabelecer a conexão entre elas através de
interseções específicas e não de fusões híbridas” (GEERTZ, 1999, p. 331;352).
No artigo: Identidade étnica e a moral do reconhecimento, Roberto Cardoso de
Oliveira (2006) apresenta o fenômeno da territorialidade em conexão com o da identidade
étnica das chamadas populações tradicionais, entre elas, os quilombolas, inseridos na temática
da etnicidade. Segundo o autor, podemos considerar a etnicidade como um processo social em
que os grupos orientam suas ações numa interrelação com o território, relação esta com base
em signos étnicos carregados de metáforas, inclusive biológicas, referindo-se a uma afirmação
positiva dos estereótipos impostos ao corpo negro, mas, que ratifica uma identidade
étnica/racial, também necessária para reivindicar os direitos a uma cidadania equânime. Na
perspectiva de Roberto Cardoso de Oliveira (2006), além do reconhecimento jurídico há o
295
reconhecimento como “ente moral”, cuja extensão do reconhecimento se faria pelo respeito.
Neste sentido, a luta dessa população pelo reconhecimento extrapola conquistas materiais, é
uma luta pela cidadania plena, traduzida na busca de respeitabilidade a si mesmos, de seus
valores e formas de ver o mundo.
Conforme escreveu Marshall Sahlins (1990, p. 187), a categoria quilombo como
objeto simbólico representa para os diversos sujeitos históricos um interesse diferente,
conforme “sua posição em seus esquemas de vida”.
Sob uma perspectiva relativisadora adequaram-se os critérios, a fim de que as
comunidades negras pudessem reivindicar a titularização de suas terras com base nessa
categoria comprovada, por meio de estudos científicos, a “existência de uma identidade social
e étnica por eles compartilhada, [...] a antiguidade de ocupação de suas terras” OLIVEIRA,
1976) e também nos seu modo de vida, na resistência, na manutenção e “reprodução de suas
práticas econômicas e sociais, bem como o respeito pelos seus saberes tradicionais”
característicos de um determinado lugar.” (O’DWYER ,1995, p. 49)
Em conformidade com o conceito antropológico apresentado, a situação de ser
remanescente de quilombo se efetiva de forma dilatada, enfatizando como elementos
caracterizadores a identidade e o território. Com efeito, [...] “a situação presente dos
segmentos negros, em diferentes regiões e contextos, é utilizada para designar um legado,
uma herança cultural e material que lhe confere uma referência presencial no sentimento de
ser e pertencer a um lugar específico.” (GARCIA apud ANDRADE, 1997, p. 47)
Este sentimento de pertença a um grupo e sua terra é uma forma de expressão da
identidade étnica e da territorialidade que é sempre construída em relação aos outros grupos
com os quais se confrontam, ou se relacionam. Identidade étnica e territorialidade são,
portanto, conceitos fundamentais quando se fala de quilombo, pois estão imbricados e “o
interesse de brancos e negros sobre um mesmo espaço físico e social revela “[...] aspectos
encobertos [negro: submissão, dependência, exclusão; branco: preconceito, exploração,
racismo] das relações raciais” (GUSMÃO, 1995, p. 14). É preciso lembrar sempre que a
Abolição não garantiu aos libertos o acesso à terra em que trabalhavam.
São bastante significativas as pesquisas que trazem o território como tema. Nelas
observamos a ênfase dada à questão do parentesco, pois a situação dos proprietários
camponeses, aqui se incluindo os povos tradicionais, faz-se mediante doação de pai para filho.
Posso mencionar algumas pesquisas entre muitas outras: Clóvis Moura (1998), Edna Ferreira
Alencar (2002), Edna Ferreira Alencar e Isabel Souza (2012), Olympio Barbanti Júnior
(2006), Paul Little (2005-2002) e Renata Medeiros Paolielo (1992). Conforme este último,
296
[...] pela via hereditária, isto quer dizer que alguém tem direito virtual de ‘dono’
sobre a terra não simplesmente porque é um indivíduo, mas porque o é enquanto
filho e herdeiro. Na definição da herança igualitária, assim, está imbricada uma
definição estrita das relações de parentesco, seguindo o critério prioritário da
filiação. (PAOLIELO, 1992, p. 158)
As terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos são aquelas
utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
Como parte de uma reparação histórica, a política de regularização fundiária de
Territórios Quilombolas é de suma importância para a dignidade e garantia da
continuidade desses grupos étnicos. (BRASIL 2003a)
Para honrar a MEMÓRIA dos que foram mortos. Em defesa da Mãe Terra, nosso
Chão Sagrado: Declaramos nossa disposição e determinação para lutar até que todas
as terras sejam tituladas, mesmo que para isso coloquemos nosso próprio corpo nas
fronteiras dos campos de luta como fizeram nossos Antepassados, pois ‘Já chega de
tanto sofrer, já chega de tanto esperar. Na lei ou na marra nós vamos ganhar’.
(CARTA..., 2016).
Como a epigrafe que abre esse subtema, o território tem valor simbólico muito grande
para os quilombolas, portanto educação e território caminham lado a lado na construção da
identidade dessas pessoas. Conhecer a história desse povo não é importante só para eles, mas
para todos nós, porque são também brasileiros espalhados por todo o território nacional.
Segundo Quilombolas em Oriximiná (2017), existem comunidades quilombolas em pelo
menos 24 estados do Brasil: Amazonas, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo,
Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba,
Pernambuco, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul,
Rondônia, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.
O território negro, desde sempre, foi urdido pelas e nas situações de tensão e conflito.
Hoje, essa constatação reintroduz um debate acerca de questões persistentes e que nos incitam
a revisitar o passado com uma intenção comparativa, capaz de revelar elementos constitutivos
de situações com as quais nos defrontamos no presente. Assim pensando, percebi ser de
fulcral importância que observemos a realidade local para perceber o que é relevante nas
diversas situações analisadas, suas articulações, formas, dimensões e realces. É dessa
299
A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o
debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser
uma farsa. Precisamos contribuir para criar a escola que é aventura, que marcha, que
não tem medo do risco, por isso que recusa o imobilismo. A escola em que se pensa,
em que se cria, em que se fala, em que se adivinha, a escola que apaixonadamente
diz sim a vida. É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz,
de tal maneira que num dado momento a tua fala seja a tua prática. (FREIRE, 1986,
p. 68)
ações públicas. Essas políticas de diversidade passaram, assim, a ter visibilidade político-
governamental, acarretando uma série de leis direcionadas à inclusão dos negros nas políticas
públicas, cujo objetivo respaldava-se na reparação dos danos causados ao longo da história a
essa população, como as já discutidas Lei Federal 10.639/2003 e a política de cotas para o
ingresso na universidade. Também foi criada no mesmo ano a Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)107, que gerou e coordenou o Programa Brasil
Quilombola (PBQ) e, em 2004, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade (SECAD/MEC)108, dentro da qual funcionava a Coordenação Geral de
Diversidade e Inclusão Educacional, que tinha por demanda principal a implementação da
mencionada lei. Essas conquistas ampliaram os debates, possibilitando também a discussão
sobre as demandas acerca da educação em comunidades quilombolas, que sequer foram
considerados na mencionada lei, seja como quilombo, remanescentes de quilombo,
comunidades remanescentes, comunidade negra rural, enfim a lei não trata diretamente da
educação desses excluídos.
Somente em 2004, no texto das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana o
termo quilombo é mencionado, embora não tenha sido contemplada, nessas diretrizes,
nenhuma abordagem específica acerca de que tipo de educação institucionalizada teria as
comunidades quilombolas.
Nesse sentido, o primeiro passo foi dado pela SECAD em 2006, por meio da
publicação de um guia de orientações para implantação da Lei 10.639/2003. Publicação na
qual a Educação Quilombola emerge como uma especificidade, ampliando-se, tanto para as
escolas situadas no território quilombola, quanto para aquelas que recebem estudantes
quilombolas.
Embora o ano de 2008 tenha sido um marco importante na significativa história dos
negros, 120 anos de abolição da escravatura; 100 anos de umbanda, 100 anos do nascimento
do poeta Solano Trindade, 40 anos do assassinato do líder Martin Luther King, 25 anos dos
107
Atualmente denominada Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão -
SECADI em articulação com os sistemas de ensino implementa políticas educacionais nas áreas de
alfabetização e educação de jovens e adultos, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação
especial, do campo, escolar indígena, quilombola e educação para as relações étnico-raciais. O objetivo da
SECADI é contribuir para o desenvolvimento inclusivo dos sistemas de ensino, voltado à valorização das
diferenças e da diversidade, à promoção da educação inclusiva, dos direitos humanos e da sustentabilidade
socioambiental, visando à efetivação de políticas públicas transversais e intersetoriais. (BRASIL, 2017).
108
Objetivo: consolidar os marcos da política de Estado para as áreas quilombolas. Como seu desdobramento foi
instituída a Agenda Social Quilombola (Decreto 6.261/2007), que agrupa as ações direcionadas às
comunidades nos seguintes eixos: acesso a terra; infraestrutura e qualidade de vida; inclusão produtiva e
desenvolvimento local; direitos e cidadania. (BRASIL, 2007)
301
Posso afirmar que esse foi um ano profícuo para a educação quilombola. Em
novembro do mesmo ano, foi realizado, em parceria com a FCP, a SEPPIR e o apoio do
INCRA e da CONAQ, o I Seminário Nacional de Educação Quilombola em Brasília, com o
objetivo de “construir os alicerces do Plano Nacional de Educação Quilombola” e “subsidiar o
CNE na produção das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola”.
(SEMINÁRIO NACIONAL DE EDUCAÇÃO QUILOMBOLA, 2010)
Esse evento agrupou seguimentos importantes da educação como Secretarias
Estaduais e Municipais de Educação, gestores e professores de escolas quilombolas e
pesquisadores da educação para as relações étnico-raciais e também lideranças quilombolas.
Todos os temas caros à educação foram debatidos em grupo de trabalho, daí resultou
a formação de uma comissão quilombola de assessoria à comissão especial da Câmara de
Educação Básica (CEB). A partir da comissão instituída podemos deduzir a multiplicidade de
pontos de vista que o tema educação quilombola reivindica:
109
Viralização: termo que surgiu com o crescimento do número de usuários das redes sociais e blogs. A palavra
é utilizada para designar os conteúdos que acabam ganhando repercussão (muitas vezes inesperada) na web.
As pessoas chegam a compartilhar o conteúdo quase que inconscientemente, criando uma “epidemia” de
internautas falando sobre o mesmo assunto. (ENTENDA..., 2014)
305
Quadro 7 - Elaboração das diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola na educação básica
Leis que a fundamentaram
Conforme disposto na alínea “c” Lei nº 9.131/95 - Art. Leis nº 11.645/2008 e nº Leis nº 11.645/2008 e nº 10.639/2003 e com Homologação: Ministro da Educação,
do § 1º do art. 9º da Lei nº 26-A e 79-B da Lei 10.639/2003 e com fundamento no fundamento no Parecer CNE/CEB nº publicado no diário Oficial da União -DOU
4.024/61 nº 9.394/96 (LDB) Parecer CNE/CEB nº 16/2012 16/2012 de 20 de novembro de 2012” (SEPPIR, 2012)
Documentos precedentes
Constituição Federal (1988): Decreto nº 5.051 Conferência Mundial contra o Declaração Universal sobre a Decreto nº Declaração Universal Lei nº
Caput do Art. 210; (2004), Decreto nº Racismo, a Discriminação Racial, a Diversidade Cultural 65.810 (1969); dos Direitos 9.394/96
Ato das Disposições Gerais art. 99.710(1990) Xenofobia e Formas Correlatas de (UNESCO,2001) Decreto nº Humanos (1948)
242, § 1º; Intolerância (Durban, 2001) 63.223(1968)
Art. 3o e 4o da CF/88.
2013 2014
PROFESSORES
Com Ensino 121.220 38,00% 5.026 43,50% 29.412 8,50% 1.093 7,70%
Médio
Com Ensino 90.216 28,30% 4.078 35,30% 79.055 22,90% 4.255 29,90%
Médio Magistério
Com Educação 195.465 61,20% 6.446 55,80% 233.994 67,90% 8.836 62,10%
Superior
Sem formação em 141.290 44,30% 5.762 49,90% 128.560 37,30% 6.045 42,50%
licenciatura
De 2007 para 2014 houve um aumento considerável de 129.466, ou seja, mais que o
dobro do número de crianças quilombolas teve acesso à escola. A maioria dessas crianças está
matriculada nas escolas de comunidades quilombolas situadas na Região Nordeste, o que não
significa afirmar que se tratam de escolas quilombolas, apenas de escolas que funcionam
dentro do quilombo. O que isso quer dizer? Que o currículo, material didático pedagógico e o
308
Projeto Político Pedagógico (PPP) são comuns às demais escolas do município. Assim como
os professores e gestores não têm formação específica para trabalhar em escolas quilombolas,
ou seja, com pedagogia própria. A que pedagogia me refiro? Àquela que considera os saberes
locais, que articula a herança e a tradição do quilombo com os conhecimentos
institucionalizados de forma a respeitar e valorizar esses saberes como fundamentais para a
formação da identidade das crianças remanescentes.
O quadro, a seguir, apresenta a distribuição das escolas pelos Estados do Nordeste,
onde se concentra a maior parte das comunidades quilombolas do país, em especial, no da
Bahia. O número de alunos de comunidades quilombolas da Bahia, embora ultrapasse o do
Estado do Maranhão em 11.958 estudantes, possui um número bem menor de escolas, o que
me permite deduzir que estamos longe de ter escolas suficientes para atender à demanda de
alunos.
Piaui 44 2.663
Ceará 22 3.707
Paraíba 21 2.693
Pernambuco 82 10.508
Alagoas 15 4.173
Sergipe 23 4.215
Quadro 8 - Diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola na educação básica
Lei Redação Artigo Lei Parecer Publicação
Lei nº 4.024/61, Art. 9º, § Redação dada pela Art. 26-A e 79-B da Lei Redação dada pelas Leis nº Fundamento no Parecer Publicação DOU
1º , alínea “c” Lei nº 9.131/95 nº 9.394/96 11.645/2008 e nº 10.639/2003 CNE/CEB nº 16/2012 20/11/2012” (SEPPIR, 2012),
110
DCNEEQ – criada para esta tese
313
a) promover maior acesso dessas comunidades às políticas públicas como acesso à terra;
b) infraestrutura e qualidade de vida;
c) inclusão produtiva e desenvolvimento local;
d) direitos e cidadania (COSTA, 2012).
111
Nasceu do reconhecimento das lutas históricas do Movimento Negro brasileiro e se refere ao Dia
Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, instituído pela ONU em memória do Massacre de
Shaperville, em 21.03.1960, na cidade de Joanesburgo, na África do Sul. (COSTA, 2017).
112
É necessário considerar o retrocesso causado por algumas decisões do governo interino Michel Temer em
junho de 2016.
316
Como quer o MEC, a Escola quilombola não é aquela construída com os ideais dos
remanescentes, uma escola participativa e com identidade, aquela que traduz ancestralidades,
a história de lutas, a resistência, as culturas, a estética, a oralidade e os saberes do quilombo,
mas uma escola como as outras, que por se localizar no quilombo assim se designa, trazendo
para o seu interior, em datas específicas, como da abolição da escravatura e do dia da
consciência negra, referências ao tempo da escravidão e a importância da liberdade civil,
ilustradas em textos escritos por brancos, uma história contada e encomendada para calar
direitos.
Carlos Roberto Jamil Cury (2002) reforça essa ideia:
Coaduno com a ideia de Carlos Roberto Jamil Cury (2002) quanto às lutas pela
conquista de direitos que não se efetivariam sem conflitos e acrescento que não basta que as
leis sejam aprovadas, é necessário dar significado a elas também pela voz daqueles que têm
autoridade histórica para fazê-lo, aqueles que resistiram. E isto só se concretiza na medida em
que mais jovens negros, quilombolas ou não, tenham acesso e permanência ao Ensino Médio
e Superior. Assim, as leis passam da subjetividade do papel para a concretude da vida,
deixando de serem pretos os reformatórios e as celas das prisões. É fazer valer os direitos e
colocar na prática os anseios reais da comunidade a que se destinam. Na mesma direção,
Kabengele Munanga (2010) escreve:
317
A formação educacional não deve ignorar, como sempre ignora, o legado dos
remanescentes quilombolas e deve contribuir para que as crianças se (re)conheçam como
brasileiras com direito a ter direitos, sobremaneira numa educação cidadã. Conforme
Kabengele Munanga (2010):
A história, o poder público e o povo costumam referir-se ao negro como se ele fizesse
parte de um pretérito escravocrata; como se no Brasil contemporâneo não houvesse mais lugar
para ele. Evidencia-se, assim, um ranço preconceituoso, herdado do período colonial que
ainda insiste em permanecer para alguns segmentos da sociedade. O direito à cidadania é uma
prerrogativa de todo brasileiro, sejam brancos, negros, pardos, ou amarelos. Diz respeito aos
direitos inalienáveis de todos os brasileiros, independentemente e sua etnia, que votam e que
contribuem com a nação. Se a Educação Básica é um direito de todos e dever do Estado
garanti-la ao cidadão, aqui inclusos os negros e pardos, também é dever do Estado garantir
aos quilombolas uma educação básica que contemple suas histórias, culturas e saberes. Mas
garantir, além do acesso, a permanência desse segmento da população numa escola
democrática e plural como é o nosso país multicultural. Segundo Carlos Roberto Jamil Cury
(2002),
É preciso ressaltar que embora a Lei n. 10.639, em seu Art. 26-A, torne obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e
318
médio, oficiais e particulares e não apenas nas comunidades quilombolas e/ou que recebem
remanescentes, as escolas estão sentindo dificuldades na implementação da lei, segundo
diversas publicações a respeito, e na comunidade quilombola de Sambaíba a situação não é
diferente. Quatorze anos depois os professores ainda se queixam de não estarem preparados
para ensinar os alunos quilombolas. Na verdade percebi certa má vontade de buscar conhecer
o assunto, a escola recebeu, em 2014, material de leitura para os professores, assim como
revista em quadrinhos que versam sobre os quilombos de Bom Jesus da Lapa-Bahia,
entretanto, não tiveram interesse de manuseá-los até hoje. Os docentes desejam um curso de
atualização nesse sentido e material para trabalhar com as crianças. (Penso que desejam algo
pronto e acabado como um manual) Pois a própria comunidade é rica em material para
estudo.
A legislação educacional brasileira propõe que educadores atuem para o
enfrentamento das desigualdades etnicorraciais nos espaços educacionais. Inicialmente, com
temas transversais que dialoguem com pressupostos sobre “pluralidade cultural”,
posteriormente, com a institucionalização da Lei Federal 10.639/2003, possibilitando ações e
projetos mais significativos para valorização da cultura negra brasileira e africana, bem como
da Educação Quilombola. (BAHIA, 2013).
A Educação Quilombola, em conformidade com as Diretrizes Curriculares Nacionais
Gerais para a Educação Básica,
muitas vezes, sendo expulsas de suas terras por empresas ou grandes latifundiários e, ao
serem dispersos pela região, acabam por perder relações e, com elas, a cultura e a identidade
que os unia como grupo, como ocorreu em algumas localidades do município de Caetité. Para
além das questões étnicas, existem outras questões também a serem consideradas nesse
contexto como: relações de gênero saúde, trabalho, religião, manifestações culturais, por
exemplo. Razões que também possibilitam o reconhecimento dessas pessoas como grupo
descendente de quilombo, primeiro passo para uma vida escolar digna para essas crianças.
Transcorridos onze anos da publicação da Lei 10.639/2003, alguns esforços estão
sendo desprendidos no sentido de trazer para sala de aula os saberes da comunidade, mas o
resultado ainda é muito limitado.
Aqui e ali, encontramos professores que se arriscam a introduzir tais discussões em
sala de aula, como na escola 25 de Dezembro em Sambaíba, mas, como a maioria não foi
preparada para esse fim em seu curso de formação, quando o fazem, apresentam o tema de
forma superficial e/ou equivocado em datas comemorativas. Estas e outras razões, preconceito
do professor, por exemplo, acentuam a exclusão e promovem a indiferença em relação
àqueles alunos que não se enquadram no estereótipo da maioria das escolas do país: branco e
da classe média. Mesmo quando pensamos nas escolas públicas de periferia ou de escolas no
território quilombola, os alunos mais “clarinhos” e/ou em condições financeiras superiores,
são mais bem tratados. Em muitas comunidades, nas várias regiões do país, faz-se presente
uma situação de vulnerabilidade frente à situação socioeconômica dos negros, gerada pela
falta de oportunidade e de conhecimento.
Estudos como os de Eliane Cavalleiro (2001), Luiz Alberto Oliveira Gonçalves e
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2000), Nilma Lino Gomes (2003, 2005), Vera Maria
Candau (2000) entre outros, vêm discutindo a existência de uma relação tênue entre cultura e
conhecimento, entre a diversidade étnico-cultural e os complexos processos de apreensão e
construção do conhecimento; outras pesquisas constataram que houve mudança de postura de
alguns professores posterior à mencionada lei em suas práticas escolares, a exemplo da
pesquisa realizada por Paulo de Saulo Oliveira (2010), mas o resultado demostrou que são
iniciativas individuais. A pesquisa de Patrícia Patrícia Maria de Souza Santana (2003) revela
que não basta apenas uma mobilização individual dos docentes, pois esta acaba sendo
interpretada pelas instituições como uma escolha pessoal e militante e não como um
compromisso pedagógico do conjunto de educadores. É, nesse sentido, que uma reflexão
sobre as ações e projetos, cujo tema é a diversidade étnico-racial, desenvolvidos por coletivos
de educadores, no interior das escolas e nos cursos de formação de professores precisa ser
320
pensado. Se no Sul e Sudeste essas questões parecem ser melhores resolvidas, não me parece
ser no Nordeste.
Diante das mencionadas conquistas desse segmento da população no âmbito do
Governo Federal, o governo da Bahia reuniu, em Salvador, comunidades quilombolas,
professores, coordenadores e gestores das redes públicas Estadual e Municipal de ensino,
pesquisadores da área e representantes de universidades e de movimentos sociais para o III
Fórum de Educação Quilombola, realizado pela Secretaria da Educação do Estado da Bahia,
por meio da Coordenação de Educação para a Diversidade. (BAHIA, 2013)
Nesse Fórum, foram discutidos problemas educacionais que vão muito além da sala de
aula. Resultaram das discussões realizadas algumas ações, no âmbito do estado, que
começaram a tomar forma no ano de 2014, com vistas a melhorar a educação nas escolas
localizadas nas comunidades quilombolas, tanto no que se refere à infraestrutura, como no
que tange aos profissionais que nela trabalham, ou àqueles que, embora não atuem em
comunidades reconhecidamente quilombolas, atendem a crianças oriundas de comunidades de
remanescentes. Essas ações, ainda em fase de desenvolvimento, contam com a participação de
vários segmentos sociais como: político; associações, grupos comunitários, docentes, pais,
religiosos, movimentos negros, entre outros interessados.
A primeira constatação foi a necessidade de um mapeamento das escolas para
averiguação de suas condições de funcionamento com vistas à melhoria das construções já
existentes, assim como construção de novas unidades nos locais onde o número de crianças
constitui um indicativo da necessidade da criação de uma escola local.
Quanto à melhoria no campo da pesquisa, sugeriram a criação de laboratórios de
informática; criação e ampliação de bibliotecas e aquisição de materiais pedagógicos
específicos, ações que foram/estão sendo realizadas paulatinamente nas comunidades,
segundo interesses políticos, que não cabe neste texto esclarecer, por não ser objeto desta
pesquisa.
Também ficou decidido na ocasião que, além da Educação Básica, pretendia-se
oferecer a educação profissional e o EJA, mas, por falta de verbas, os cursos ainda continuam
em fase de planejamento.
Constatou-se, ainda, a necessidade da inserção, na matriz escolar, de temas comuns à
cultura, à educação, aos valores e aos saberes quilombolas; que deveriam ser contemplados no
PPP, com temas/abordagens/metodologias sobre a história e cultura quilombola e sobre a
história e cultura africana e afro-brasileira. O que vem sendo feito de forma “experimental”,
segundo depoimento informal de professores com os quais venho mantendo diálogo.
321
a) 6.020 kits para estudantes e 78 kits para professor sobre a Educação Escolar
Quilombola em comunidades tradicionais;
b) publicação e distribuição de textos sobre a educação quilombola e no Portal da SEC
(definição e orientações para educadores e gestores);
c) parceria com o Canal Futura/Projeto: A Cor da Cultura - formação de 30
educadores/multiplicadores; distribuição de 330 kits pedagógicos, neles algumas
informações referentes a conquistas dos negros, a exemplo da Lei 10.639/03;
d) distribuição, nas comunidades quilombolas, do calendário pedagógico no qual se deu
relevância à Revolta dos Búzios.
Hoje eles não têm mais vergonha de serem negros. Graças a Deus, a coisa já evoluiu
bastante, as crianças estão estudando, indo para as universidades, são bem recebidos
na sociedade. Eu já começo a sentir orgulho disso. No meu tempo de estudante não
era assim. (SEE-BA) (BONFIM apud EXTENSÃO..., 2014)
Essa afirmação nos dá esperança de que um dia, queiramos em médio prazo, nossa
sociedade possa receber bem as pessoas de quaisquer etnias, nascidas ou não no Brasil, sem
preconceito e com o respeito que todo ser humano merece. Tivemos alguns avanços, é
verdade, mas estamos ainda longe das políticas afirmativas ideais e das relações sociais de
que precisamos.
Segundo as pesquisadoras Edileia Carvalho, Kalyla Maroun e Suely Noronha de
Oliveira (2013), mesmo anterior à legislação e à implantação de políticas públicas, como
proposição nacional das DCNEEQ, alguns estados brasileiros vinham discutindo políticas
públicas específicas para esta modalidade de educação, tais como Mato Grosso, Paraná, Rio
de Janeiro e Bahia, onde algumas comunidades quilombolas já ofereciam uma educação
institucional diferenciada:
113
Referem-se a pasto( pastagem para os animais)
325
114
O conceito de raça adotado tem um significado político e identitário construído, considerando as dimensões
histórica e cultural a que esse processo complexo nos remete.
326
para o desenvolvimento sustentável, o trabalho, a cultura, a luta pelo direito ao território com
toda simbologia que o termo encerra.
Com Glória Moura (2007), penso que estudar a história dos quilombos, em especial
dos quilombos contemporâneos é deveras importante para compreender como se constrói a
afirmação da identidade do povo brasileiro, assim como a inclusão dessa história de luta como
temática que compõe o currículo da Educação Básica é fulcral para a formação da
nacionalidade.
Após esse percurso histórico e social da educação do povo negro, em especial sobre a
comunidade quilombola e sua educação, pude compreender que as publicações sobre esse
tema ainda são insuficientes para abarcar as demandas desse povo. E é compreensível que
assim o seja, considerando-se os anos de invisibilidade e de exclusão impostas pelas leis,
pelas políticas públicas, pela academia, ao ponto de a sociedade em geral negar-lhes uma
cidadania plena.
Considero que conhecer a história da educação dos afro-brasileiros é estratégia
indispensável para o combate aos mecanismos políticos, legais, administrativos e pedagógicos
que foram/são adotados pelos sistemas de ensino para restringir o acesso dos negros ao
sistema educacional formal. As diferenças persistem, evidenciando que os esforços de
universalização das políticas públicas não se mostram suficientes quando se trata do combate
às desigualdades raciais.
A Educação Quilombola, mais que as escolas urbanas, necessita ser estudada para ser
compreendida. Penso ser durante o processo de construção de uma identidade quilombola que
germina a necessidade da efetivação de uma escola diferenciada, que reflita a especificidade
de cada quilombo, sendo construída com a coletividade, que deve se sentir parte dela e nela
representada.
São séculos de desigualdade que requerem pesquisas que venham subsidiar novas
conquistas para esse segmento da população brasileira que faz nossa Nação ser o que é:
multifacetada, pluricultural, multiétnica, enfim ímpar. Espero que a visão do conjunto, aqui
expressada, possa ajudar a situar e melhor compreender o meu sujeito de pesquisa na história
da Educação Brasileira. Trata-se de uma tentativa de me situar, para melhor refletir sobre a
educação dessas crianças e de um esforço para contribuir, mesmo que modestamente, para a
pesquisa sobre a história da educação brasileira na modalidade Educação Quilombola ou,
mais precisamente, Educação dos Remanescentes de Quilombos.115
115
É a própria comunidade que se auto reconhece “remanescente de quilombo”, conforme amparo legal da
Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, cujas determinações foram incorporadas à
327
116
Embora a Comunidade de Sambaíba tenha uma escola no quilombo ela não é uma
escola quilombola. Considerando o contexto histórico, posso afirmar que a educação
quilombola é recente, envolve vontade política, compromisso da equipe escolar e capacitação
dos professores para que compreendam a diferença entre escola no quilombo e escola do
quilombo para, conhecendo os anseios da comunidade, toda a equipe escolar possa promover
o diálogo com a comunidade, levando para dentro da escola os fazeres e saberes locais e
legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 143/2002 e Decreto nº 5.051/2004. Coube à FCP emitir certidão
de reconhecimento, após tramite legal para este fim.
116
Esse símbolo também é conhecido como” Odenkyem Mmemu”, Crocodilos siameses ligados pelo estômago.
Símbolo da unidade na diversidade, da democracia e da unidade de propósitos. O provérbio: Funtumfunafu,
denkyemmfunafu, won afuru bomu nso wodidi a na worefom efiri se aduane ne de ye di no mene twitwi mu.
Tradução: Dois crocodilos brigam pelo alimento que vai para o estomago comum que ambos desfrutam nas
suas gargantas. Esse símbolo refere-se à unidade entre os humanos apesar de sua diversidade cultural.
Enfatiza a individualidade dos membros dentro da sociedade. Ilustra em essência as noções dos Akans sobre as
dificuldades inerentes às reconciliações individuais e de grupo dentro de uma sociedade democrática.
(ZEIGER, 2015)
328
8.1 Escola Nucleada: Escola Municipal Profa. Emiliana Nogueira Pita (EMENP)
Situada na Rua Tamarindo, s/nº, no Distrito de Caldeiras, a EMENP foi criada pelo
Decreto nº 02 no dia 02 de fevereiro de 1995. Nela, funciona o curso Fundamental II, do 6º ao
9º ano, com o quantitativo de 157 alunos no ano de 2016. Ela é mantida pela Prefeitura do
Município de Caetité-Bahia e a principal linha de financiamento é o Programa Dinheiro
Direto na Escola do Governo Federal. Para construir um painel geral sobre a escola, recolhi
informações com a coordenadora itinerante e a equipe da escola, também, pesquisei em
documentos disponibilizados pela secretária.
A instituição recebeu esse nome em homenagem à primeira professora do Distrito que
teve parte de sua vida dedicada à formação das crianças do local. A escola teve como seu
primeiro diretor o Prof. Lenaton Santos Silva e um quadro de professores formados por
profissionais vindos da sede do município, realidade que perdura até nossos dias com o
deslocamento desses profissionais em ônibus contratados pela prefeitura.
M F
6º A Matutino 04 01 05
6º B Matutino 04 05 09
7º A Matutino 00 00 00
7º B Matutino 05 01 06
8º Matutino 05 04 09
9º Matutino 00 01 01
TOTAL 30
Fonte: Elaborado pela autora com dados cedidos pela Secretaria da EMENP.
O quadro indica que nem a metade dos ingressantes no 6º ano conclui o 9º ano, o
número de iniciantes vai diminuindo à medida que os anos avançam. É por esse caminho que
pretendo questionar mais profundamente quais as razões dessa queda significativa? O que
leva a essa exclusão tão alta? O que essa exclusão tem a ver com a identidade dessas crianças?
330
Negras e quilombolas?
A EMENP tem por fins educativos questionar e romper com a estrutura político-
econômica e social vigente, acreditando no eixo básico que sustenta o trabalho pedagógico
que é de comprometimento com a construção do conhecimento pelo próprio sujeito. Um PPP
que expressa os princípios básicos para a construção de uma proposta que vise à articulação
entre os saberes locais dos sujeitos e a estruturação de projetos interdisciplinares que
possibilitem o acesso ao conhecimento sistematizado, em cada uma das áreas, com vistas à
aprendizagem significativa.
Assim pensando, afirma a equipe117 escolar, deu-se a elaboração do PPP da escola,
pela mediação do sujeito com o objeto de conhecimento através da cooperação, articulado ao
compromisso sócio-político e os interesses reais e coletivos, assumindo um compromisso
ético com a identidade da escola e de todos os sujeitos que dela fazem parte e constroem,
cotidianamente, a sua história.
E a equipe complementa: se até hoje as instituições escolares estiveram à mercê da
política e da situação social é, também, por meio da educação escolar, que acredita ser
possível a construção de uma sociedade mais justa, que respeite as diferenças, que garanta
espaço para que o individual possa emergir do social, favorecendo e garantindo os direitos de
todos. Nesses termos, penso que os esforços dessa instituição de ensino convergem para a
concretização do projeto pedagógico que parte do entendimento de que os tempos e espaços
escolares de convivência, de ensino e de aprendizagem pautem-se pela ética e constituem-se
em favor do bem maior que é a vida. E se realiza da forma como foi pensado?
Ainda com base no PPP elaborado pela escola na descrição do Distrito, a maioria dos
moradores são analfabetos funcionais, assinam o nome apenas para votar e aqueles que leem,
leem muito mal. A organização da escola, segundo seu PPP, baliza-se por alguns parâmetros
básicos, assim definidos:
117
A direção, assim como os docentes, solicitou que as informações que me forneceram fossem divulgadas de
forma coletiva. Por esta razão, o informante da EMENP terá designado como “equipe”.
331
sociedade sustentável;
d) interdisciplinaridade;
e) predomínio da construção do conhecimento sobre a informação;
f) articulação entre teoria e prática;
g) indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que fazeres se encontram
um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino
porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar
e constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o
que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (FREIRE, 2002, p. 32).
Assim como Paulo Freire, compreendo a prática educativa como reflexiva e dialógica
e o ato pedagógico como ato político. Creio na força de transformação social do ato de
educar, por esta razão, penso o professor como um ser dinâmico, criativo, atento às questões
locais, mundiais e tecnológicas; um ser conhecedor das concepções pedagógicas adotadas
332
pela escola, norteadoras da sua ação educativa, como condição essencial para a autonomia e
autoria de pensamento.
Nessa perspectiva, como o currículo dessa escola vem sendo construído? Há nele
espaço para conteúdo cultural? Os educadores estabelecem um projeto para que esta cultura
escolarizada concretize-se de forma crítica e participativa junto aos sujeitos do processo? Os
docentes constroem o currículo de forma coletiva envolvendo também outros profissionais da
escola e os pais dos alunos? Penso que as trocas entre os diversos profissionais, pais,
membros da comunidade e estudantes podem proporcionar maior integração das disciplinas e
dos projetos, enriquecendo-os com diferentes olhares.
O projeto da escola tem caráter propositivo, pois define as concepções e os princípios
coerentes com a legislação vigente no país, no Plano Nacional de Educação, Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional e Diretrizes Curriculares Nacionais, que baliza a Educação,
bem como da relação entre os seus diferentes níveis de ensino. Não encontrei no documento
nenhum dado ou referência à cultura ou aos saberes local, quer do distrito quer dos lugares de
origem de seus estudantes, pois sendo uma escola nucleada118, nela frequentam estudantes
originados de vários lugares não apenas do distrito, mas também do entorno.
Todavia, a leitura do PPP da escola não ratifica o discurso da equipe, a começar por
sua elaboração que não foi feita de forma participativa conforme o anunciado, ele é o mesmo
adotado em todo o município. Com efeito, as intenções de ser ele o resultado de uma
reflexão/ação, construída coletivamente, não se processaram, a instituição adotou o mesmo
encaminhado pela Secretaria de Educação do Município, procedendo-se apenas a alteração de
algumas particularidades. Penso que o projeto pedagógico e político da escola poderia
articular o compromisso sócio-político com os interesses reais e coletivos, assumindo um
compromisso ético com a identidade da Escola e de todos os sujeitos que dela fazem parte e
constroem, cotidianamente, a sua história.
Quanto à infraestrutura posso afirmar que não atende às necessidades dos estudantes,
pois, na ocasião em que lá estive pela primeira vez, um grupo de crianças estudavam no rol
principal, sendo distraídos constantemente pelas crianças que utilizavam os sanitários, ou que
iam tomar água. O prédio conta com uma diretoria, uma sala de professores, quatro salas de
aula, uma dispensa, uma cozinha, dois sanitários (masculino e feminino) para os alunos, um
sanitário para professores e funcionários, um rol que serve de sala de aula e um pequeno
118
Escola Nucleada é um processo que corresponde, na prática, ao fechamento ou desativação de escolas
multisseriadas, seguido pelo transporte dos alunos para escolas maiores, melhor estruturadas e abrangendo
ciclo ou ciclos completos, funcionando como núcleo administrativo e pedagógico. O processo de que estamos
tratando encontra amparo na legislação educacional. (BRASIL, 2007c, p. 4).
333
pátio. O espaço da sala da direção é dividido com o da secretaria, contêm duas mesas, três
cadeiras, dois armários de aço para arquivo de documentos da escola. A sala dos professores
divide espaço com o almoxarifado e o banheiro de docentes e funcionários. Nesse espaço, são
colocados também os recursos didáticos pedagógicos a exemplo de: aparelhos de DVD, dois
aparelhos de TV, mapas, livros, CDs, jogos, bolas, bambolês, damas, xadrez, uniformes,
mimeógrafo, entre outros mais.
A equipe dirigente da escola atualmente é composta por uma diretora, uma vice-
diretora e uma secretária. A equipe pedagógica é integrada por uma coordenadora geral e dez
professores, sendo sete do sexo feminino e três do masculino.
Alguns dirão melhorou muito. Não nego, melhorou, mas ainda é insuficiente. Os
indicativos do IBGE, certamente, são resultado do programa Brasil Alfabetizado119 e da
inclusão da educação de jovens e adultos no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), passos
importantes para a redução do analfabetismo de jovens e adultos. Ademais, ampliou-se o
financiamento para abertura de novas turmas, com foco nas populações do campo,
quilombolas, indígenas, egressos do Brasil Alfabetizado e pessoas em privação de liberdade.
Difícil de aceitar, mas as ações desses programas já enfraqueceram
no governo Temer. Basta lembrar que as políticas públicas de gênero e raça (como a Lei
Maria da Penha, a Lei 10.639/2003, as cotas nas universidades e no serviço público, entre
outras mais) foram conquistadas depois de muita luta dos movimentos feministas e
movimento negro, considerando-se o machismo e o racismo como elementos estruturantes da
formação socioeconômica desigual de nossa sociedade eurocêntrica. Mesmo necessitando de
ajustes e aprofundamentos foram conquistas significativas para esses segmentos da
população. Extinguiu os Ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos
Direitos Humanos, um retrocesso sem medidas. Fica prejudicada a produção e a disseminação
de conhecimento científico e empírico sobre o tema com a extinção da Coordenação de
Gênero e Raça do IPEA. Com as palavras das Pretas Candangas (2016):
Não bastasse o desmonte das políticas públicas de gênero e raça pelo Governo
Ilegítimo – o qual se revela no esvaziamento contínuo e profundo das ações e dos
postos de trabalho da Secretaria de Políticas para as Mulheres e da Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial –, na última semana teve fim a
Coordenação de Gênero e Raça do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA). Com estas medidas, a ação pública de gênero e raça e a reflexão sobre o
assunto no Brasil perdem, em pouco mais de cem dias, mais de uma década de
acúmulo de experiência nestas áreas. Confirma-se mais uma vez o profundo
desprezo da Gestão Michel Temer pelas mulheres e pela população negra deste país.
(PRETAS CANDANGAS, 2016)
Mais uma vez é preciso continuar a luta contra a exclusão dos marginalizados,
principalmente, desses que não sabendo ler, são mais facilmente enganados, manipulados e
roubados. Não é difícil deduzir que é o analfabeto adoece mais, passa fome, é desempregado,
ou vive de subemprego, e é invisibilizado como essa merendeira que, mesmo trabalhando
num lugar cujo objetivo é a instrução, a ela é negado esse direito, ninguém se incomoda,
119
Ação do governo federal desenvolvida em colaboração com outras instâncias de poder público como o
Distrito Federal e os municípios para enfrentar o analfabetismo nacional. O programa garante recursos
suplementares para a formação dos alfabetizadores; aquisição e produção de material pedagógico; alimentação
escolar e transporte dos alfabetizandos. Prevê, ainda, bolsas para alfabetizadores e coordenadores voluntários
do programa. (BRASIL, 2013).
336
ninguém se dá conta dela, ninguém a convida para se incluir no grupo como cidadã.
Com a criação da escola de Ensino Fundamental II ampliou-se a possibilidade de
mudança dessa realidade, pois os jovens têm a oportunidade de ingressar ou de retomar os
estudos e concluírem o Ensino Fundamental, que antes era realizado em outros lugares.
Esse acontecimento fez mudar as expectativas do lugar quanto a prosseguir os estudos,
tanto que a conclusão do 9º ano é um evento importante para a comunidade, que realizada
uma festa de “Formatura" em comemoração à conclusão do curso e consequente partida dos
alunos para outras escolas. Mas o que observo é que a maioria encerra a carreira acadêmica
por aí, pois a necessidade de trabalhar e a falta de condições de deixar o Distrito tolhe
qualquer possibilidade de sonho. Essa festa tem outro propósito também importante: reunir
alunos, professores e a comunidade, traduzindo-se num momento de confraternização e
integração entre os vários segmentos escolares, que não se conseguiria em outro momento.
Os professores que trabalham na escola são itinerantes em sua maioria, como já
mencionei, vêm do Município de Caetité, todos os dias para lecionarem, assim como a
coordenadora.
O quadro nos mostra que todos os professores são efetivos e que possuem a mesma
carga horária, o que pode ser um indicativo de que possuem segurança e mais tempo para
elaboração das aulas. A significativa maioria possui especialização lato sensu, o que me leva
a deduzir que estão mais bem preparados para o exercício da docência, mas isto não significa
que estejam qualificados para trabalhar os temas relacionados à educação étnico-racial.
M F
6º A Matutino 11 14 25
6º B Matutino 15 10 25
7º A Matutino 12 12 24
7º B Matutino 16 07 23
8º Matutino 12 14 26
9º Matutino 05 18
TOTAL 123
Fonte: Elaborado pela autora com dados cedidos pela Secretaria da EMENP.
filhos causam problemas disciplinares, ou não realizam as tarefas de casa, não comparecem.
Talvez a participação dos pais esteja relacionada ao seu grau de instrução, levando-os a crer
que sua participação não teria muito a contribuir com a escola. Essa reflexão, embora, não
tenha dados de pesquisa que a comprove, os argumentos de uma das mães do quilombo
Sambaíba me fez fazer analogia. Quando questionada sobre o porquê de não a ver nas
reuniões realizadas na escola, respondeu-me “ [...] pra que minha fia, não tenho istudo, só vô
fala bobage [...]”, quiçá a escola promovesse reuniões festivas e convocassem os pais para
realizarem aquilo que sabem fazer bem, ao se sentirem valorizados, essa aproximação com a
escola se faria mais facilmente. Mas são apenas ponderações.
Os eventos promovidos por esta e a outras escolas fazem parte das comemorações
oficiais do distrito e também do município, tais como o 7 de setembro, que envolve alunos e a
comunidade. Nessas ocasiões, há apresentações típicas e jogos internos, campeonato de jogos
que envolvem as escolas de várias comunidades. Uma oportunidade de os alunos trocarem
informações e conhecerem a diversidade entre os distritos.
A infraestrutura da escola constitui um dos entraves para a realização de um bom
trabalho ensino-aprendizagem, pois o número de salas de aula é insuficiente, há uma sala
equipada com recursos tecnológicos, mas não pude averiguar naquele momento se
funcionavam plenamente e com acesso à internet, e local adequado para funcionar uma
biblioteca, os livros disponíveis para empréstimo não estão em bom estado de conservação,
tampouco organizados. As salas de aula existentes são forradas e com ventilador, porque é um
lugar bastante quente. Ao observar as salas de aula constatei que haviam muitas carteiras
danificadas em diferentes partes.
A cozinha possui um fogão industrial com quatro bocas, uma geladeira e um frízer
para acondicionar os alimentos perecíveis. Na dispensa, com aproximadamente 4,40m2, são
armazenados os utensílios e produtos alimentícios.
A rua em frente à escola não possui pavimentação, tampouco dispõe de rede de esgoto.
Ao lado da instituição há uma quadra poliesportiva para a realização de atividades físicas,
bem como para realização de eventos culturais e, também, um muro em torno da escola para
proteção do patrimônio e dos alunos. Segundo as professoras, o evento mais importante e
aguardado do local é a festa junina com apresentação de quadrilhas, concursos de forró,
barraquinhas, quebra-pote, casamento caipira e outras atividades festivas. Tais eventos “[...]
poderiam ter outra dimensão se a escola dispusesse de um espaço coberto para esse fim e
também para outros eventos, podendo, inclusive, servir para eventos religiosos e sociais da
comunidade”. (Diretora da escola, formada em Educação Física)
339
Conforme afirmou seu corpo docente, a EMENP possui uma história de luta, buscando
fazer a diferença para a comunidade com coragem e compromisso, tentando vencer os
obstáculos e superar as adversidades, com soluções criativas para os problemas com vistas a
oferecer uma educação melhor para essas crianças já excluídas das políticas públicas.
Afirmação que não se confirmou no decorrer da pesquisa. A escola reforça atitudes
discriminatórias.
Uma particularidade da Escola Municipal Emiliana Nogueira Pinta é o fato de ser uma
escola nucleada.
Podemos afirmar que, embora o Brasil tenha uma tradição agrícola, a preocupação
com a Educação do Campo é recente, últimos 10 anos, como consequência, a educação chega
ao campo travestida de urbanismo. Conforme palavras do redator conselheiro da Secretaria de
SECAD/MEC, Murílio de Avelar Hingel: “a escola rural nada mais foi do que a extensão no
campo da escola urbana, quanto aos currículos, aos professores, à supervisão” (PARECER
CNE/CEB nº: 23/2007). (BRASIL, 2007c).
Entre as justificativas relevantes para a oferta e melhoria da Educação Básica no
Campo, sustenta:
a) as escolas do meio rural ainda são a única presença do poder público nas comunidades
que atendem;
b) a presença da escola na comunidade é forte elemento na preservação de valores que
mantêm as populações rurais vinculadas aos seus modos de vida e convivência;
c) a escola é importante instrumento de mobilização para o diálogo com a realidade (no
sentido mais amplo pode aglutinar as ações necessárias ao desenvolvimento rural
integrado: projeto de ser humano vinculado ao de sociedade mais justa e equilibrada);
d) garantia do direito à educação articulado ao direito: à terra, à água, ao saneamento, à
alimentação, à permanência no campo, ao trabalho, às diferentes formas de reprodução
social da vida, à cultura, aos valores, às identidades e às diversidades das populações
do campo;
e) a manutenção das escolas no campo, com qualidade, sempre que possível e desejável,
é condição para se assegurar a educação como direito de todos e, evidentemente, dever
do Estado. (BRASIL, 2007c, p. 2).
120
O aprofundamento em torno da Educação do Campo, pelos interessados em seu planejamento e prática,
Recomendo a leitura dos Cadernos SECAD 2 – Educação do Campo: Diferenças mudando paradigmas,
mar./2007. Publicação que contém dois anexos importantes: Anexo 1 – Diretrizes Operacionais da Educação
Básica nas Escolas do Campo, Parecer CNE/CEB nº 36/2001do CNE, aprovado em 4/12/2001; Resolução
CNE/CEB nº 1 de 3/4/2002, que “Institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do
Campo”. Anexo 2 – Parecer CNE/CEB nº 1/2006, aprovado em 1º/2/2006, que “Recomenda a adoção da
Pedagogia da Alternância em Escolas do Campo”. O Parecer trata especificamente dos CEFFA, em suas
formulações de EFA, de Casas Familiares Rurais (CFR), e de ECOR. Tive oportunidade de trabalhar como
docente na EFA, com professores monitores, na formação profissional, uma experiência gratificante, nunca
tive alunos tão comprometidos e colaboradores entre si.
341
importante conquista desse modelo de organização deu-se, aqui no Brasil, na década de 1970,
sob a inspiração norte-americana, primeiramente no Sul e no Sudeste. Reunindo escolas
“isoladas”, que foram desativadas e as agrupando em uma única escola nos distritos, ou
comunidades maiores que reunissem pequenas comunidades em entorno para as crianças das
séries iniciais do Ensino Fundamental. Os alunos do Ensino Médio passaram a ser
transportados para a sede dos municípios.
É verdade que no processo de implantação das escolas de nucleação, começado no
Brasil na década de 1970 nos Estados do Sul e do Sudeste, quando se seguiu
predominantemente o modelo norte-americano, a providência consistia em reunir várias
escolas ou salas ditas “isoladas”, que foram fechadas ou desativadas, agrupando-as em uma
única escola nos distritos ou comunidades que reunissem maior número de pequenas
comunidades em seu entorno, surgindo o modelo de organização conhecido como escola
nucleada. Isso se fez para as crianças das séries iniciais do Ensino Fundamental, enquanto
para as séries finais e para o Ensino Médio os alunos passaram a ser transportados para a sede
dos municípios.
Considerando que os dados apresentados pela SECAD/MEC são baseados nos
indicadores do INEP/MEC 2006, não interessa transcrevê-los todos, apenas menciono aqueles
que são relevantes e que contribuíram para o estabelecimento das Escolas Nucleadas (EN).
No período compreendido entre 1999 e 2006:
(BRASIL, 2007c, 2007c, p. 4) Um problema, vale ressaltar, ainda não resolvido, pois apesar
de haver disponibilidade de transporte para o deslocamento cidade/campo e entre localidades
situadas na zona rural, os veículos usados nem sempre se encontram nas condições de
segurança121 exigidas em lei.
O ECA, Lei nº 8.069/90, enriqueceu essas diretrizes da CEB. Em seu art. 53, inciso V,
ao tratar especificamente do direito e proteção a crianças e adolescentes, estabelece que “[...]
o acesso à escola pública e gratuita será efetivado em unidade escolar próxima de sua
residência” e no art. 58, dispõe que “[...] no processo educacional respeitar-se-ão os valores
culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente,
garantindo-se a estes liberdade de criação e o acesso à fonte de cultura.” (BRASIL, 1990).
Todas essas possibilidades de transporte, garantido para alunos e professores da zona
rural, só têm sentido se observado o disposto no inciso II do art. 15 da Resolução CNE/CEB
nº 1/2002: “[...] as especificidades do campo, observadas no atendimento de materiais
didáticos, equipamentos, laboratórios e condições de deslocamento dos professores apenas
quando o atendimento não puder ser assegurado diretamente nas comunidades rurais”.
(BRASIL, 2002, grifo nosso).
Não obstante, evidencia-se que, em todo o conjunto de leis e normas mencionadas,
existem lacunas que precisam ser preenchidas e problemas a ser superados, o que referenda a
solicitação da SECAD/MEC para que a CEB regulamente a oferta de educação apropriada ao
atendimento das populações do campo: “ [...] as populações do campo continuam enfrentando
os mesmos problemas há décadas como fechamento de escolas, transporte para os centros
urbanos e outros, fazendo com que muitos alunos hoje permaneçam mais tempo dentro do
transporte escolar do que propriamente dentro da sala de aula.” (BRASIL, 2007c, 2007c, p. 5)
Agravando o modelo e suas variações, o que caracteriza as escolas nucleadas é a
adoção de uma mesma organização e o mesmo funcionamento das demais escolas urbanas do
município em termos de calendário escolar, currículo, estrutura física, equipamentos. Em que
pese a favor do modelo de nucleação, foram alegados vários argumentos:
121
No que se refere ao transporte escolar, o Código de Trânsito Brasileiro, Lei nº 9.503/97 (BRASIL, 1997), em
seu capítulo XIII, fixa as condições, em termos de segurança e adequação, em que se deve realizar a condução
dos estudantes.
343
122
Com efeito, a Emenda Constitucional nº 53, promulgada em 19 de dezembro de 2006, contém determinações
aplicáveis a projetos de planejamento e expansão da Educação Básica do Campo de qualidade expostos nos
art. 7º, art. 23, art. 30, art. 206, art. 208 e art. 212, considerando-se seus capítulos e parágrafos; e o art.60 das
Disposições Transitórias da Constituição Federal que passou a vigorar com nova redação § 1º “[...]A União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão assegurar, no financiamento da Educação Básica, a
melhoria da qualidade de ensino, de forma a garantir padrão mínimo definido nacionalmente. Seguida da Lei
nº 11.494 (20/06/ 2007) e seus numerosos dispositivos que regulamenta o FUNDEB e estabelece nos art. 10,
incisos: VI, XI , art. 36, incisos: IV , VI e IX legislação referente à educação no campo. Para os interessados
no tema: melhoria da oferta e da qualidade da Educação Básica recomendo: Emenda Constitucional nº 53 e Lei
nº 11.494/2007, bem como o Decreto Presidencial de regulamentação dessa Lei.
344
Todos nós [...] sabemos quando as coisas não fazem sentido. É uma experiência
profundamente perturbadora, muito mais do que simplesmente causar perplexidade.
Quando ficamos confusos, suspeitamos que, em algum lugar, existe uma resposta
que nos permitirá compreender. Mas a falta de sentido pode ser uma sensação
assustadora. (LIPMAN, 1994, p.31.)
123
Cabe distinguir uma escola “no” quilombo de uma escola “do” quilombo. A primeira é uma escola que em
nada difere das demais, mesmo aquelas que funcionam na cidade. O Currículo e PPP são os mesmos. No caso
do município de Caetité, um PPP que é seguido por todas as escolas do município, independentemente de ser
urbana ou rural, sem considerar as especificidades do local onde foi edificada. A segunda é uma escola, cujo
currículo traduz a realidade dos quilombolas, pois a escola são eles. Os conteúdos valorizam a cultura local,
trazendo para dentro da escola os saberes tradicionais. Mantém diálogo permanente com a comunidade e conta
com a participação de membros da comunidade nas atividades escolares. A construção do PPP é coletiva,
considerando as necessidades e interesses dos remanescentes, portanto um projeto participativo. Todos os
conteúdos obrigatórios das disciplinas estão correlacionados aos conceitos das relações etnicorraciais.
345
23.10
.15 4.80 .15 8.30 .15 1.08 .15 1.08 .15 2.50 .15 4.30
0,60x0,90=1,00 0,60x0,90=1,00 ,40x,60=1,80 ,40x,60=1,80 ,40x,60=1,80 ,40x,60=1,80 ,40x,60=1,80 ,40x,60=1,80 1,10x1,00=1,00
.15
.15
07
A= 1,45 m²
08
A= 1,45 m²
1.34
PD= 3,00 m² PD= 3,00 m²
0,60x0,90=1,00
,40x,60=1,80
05
.15
,60/2,10 ,60/2,10
A= 9,12 m²
PD= 3,00 m²
3.65
1.00
.15
,80/2,10
03 02
7.60
7.30
7.30
7.60
A= 35,04 m² A= 60,59 m²
.15
PD= 3,00 m² PD= 3,00 m²
01
A= 31,39 m²
,80/2,10
PD= 3,00 m²
4.66
06
A= 13,34 m²
PD= 3,00 m²
04
3.50
A= 8,75 m²
PD= 3,00 m²
0,60x0,90=1,00
El=+0.60
,80/2,10
1,10x1,00=1,00 1,10x1,00=1,00 1,10x1,00=1,00 1,10x1,00=1,00 1,10x1,00=1,00 1,10x1,00=1,00 1,10x1,00=1,00
.15
,80/2,10 1,00/2,10 ,80/2,10
LEGENDA
1/100
A ÁREA
PLANTA BAIXA DATA:
PD PÉ DIREITO 02/05/2011
RESPONSÁVEL TÉCNICO: VISTO:
Ela foi construída de modo estratégico, pois a comunidade se dividiu à sua direita e à
sua esquerda, facilitando o acesso das crianças que moram de um lado e outro do prédio. É
um local de destaque, sítio que possibilita à maioria das pessoas vê-la da estrada pois esta
passa à sua frente.
A escola é muito valorizada pelos moradores. Nas entrevistas semiestruturadas, ao
serem perguntadas sobre a educação das crianças, as famílias monstraram ter muito respeito
pela escola, pois acreditam ser o único caminho para que seus filhos conquistem ascensão
social, “subir na vida” foi o termo utilizado, principalmente porque grande parte dos
348
moradores não sabe ler. Conforme escreveu Jamil Cury, num outro contexto, “[...] seja por
razões políticas, seja por razões ligadas ao indivíduo, a educação era vista como um canal de
acesso aos bens sociais e à luta política e, como tal, um caminho também de emancipação do
indivíduo diante da ignorância.” (CURY, 2002, p. 254)
Quando pensam em educação, os quilombolas referem-se à educação
institucionalizada, pois consideram o único caminho para a conquista do respeito e da
ascensão social. Não raro, falavam sobre a vergonha de não terem leitura, do quanto isso
tornou difícil suas vidas. Quando perguntei se havia escola para adultos, afirmaram que sim, e
ao serem questionados por que não iniciavam os estudos, um senhor afirmou “meu tempo já
passô, moça, mais meu neto rapaiz estuda na iscola da professora Cleide Pereira, referindo-se
ao curso noturno do Programa TOPA124. Por essa razão, é muito difícil ver criança fora da
escola em horários e dias letivos.
A equipe que compõe o quadro de profissionais da escola tem origem em lugares
diferentes. O corpo administrativo e funcionários de apoio são da Comunidade, conformo
apresento em quadro a seguir:
124
O Programa Todos pela Alfabetização (TOPA) foi iniciado em 2007 com o objetivo de realizar estudos e
pesquisas, formação continuada de professores alfabetizadores, desenvolvimento de instrumentos e
mecanismos de acompanhamento e avaliação, produção de material didático-pedagógico, entre outras ações
que assegurem a sua efetividade. Tem por desafio erradicar o analfabetismo na Bahia, através de políticas de
educação de jovens e adultos (seguindo os mesmos princípios do Projeto Político-Educacional do Estado), o
Topa persegue a meta de alfabetizar, um milhão de pessoas de 15 anos ou mais. (BAHIA, 2017).
349
O quadro nos apresenta algumas situações que vale a pena comentar. Após o ano dois
mil, os concursos públicos, principalmente municipais, para efetivação de professores
tornaram-se mais escassos. Os estados e os municípios estão dando preferência à contratação
temporária dos profissionais da educação, incluindo-se a zona rural. A Contratação sob o
Regime Especial de Direito Administrativo (REDA) surgiu para suprir necessidades
temporárias, emergenciais e excepcionais, mas, somos testemunhos de que passou a ser
utilizado como “permanente”, penso que serve aos interesses governamentais, pois a lei não
exige o pagamento de direitos trabalhistas aos profissionais, como o seguro-desemprego, por
exemplo, porque não está previsto no artigo 39, § 4º, da Constituição Federal. O artigo 7º,
inciso II, da Carta Magna prevê o direito ao seguro-desemprego em caso de desemprego
involuntário e o artigo 3º da Lei 7.998/90, devido ao empregado dispensado sem justa causa,
portanto. Não é o caso do trabalhador contratado sob o regime do REDA, que não tem direitos
e garantias trabalhistas porque esse trabalhador não é empregado, não é trabalhador regido
pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Direitos e garantias previstos no referido
artigo da Constituição, no artigo 11 da Lei 8.745/93 (BRASIL, 1993), o qual se reporta a
vários artigos da Lei 8.112/90 (BRASIL, 1990), bem como na lei estadual ou municipal,
respectivamente. Tem direito apenas aos benefícios previdenciários previstos na Lei 8.213/91
(BRASIL, 1991), na condição de segurado obrigatório, desde que preencha os requisitos de
cada benefício como, por exemplo, por exemplo: auxílio-doença, auxílio-acidente, salário
maternidade, aposentadoria, pensão, entre outros. Isso ocorre porque o conceito de
empregado, no Direito Previdenciário, é muito mais amplo do que no Direito do Trabalho.125
Outra constatação diz respeito à relação formação profissional, tempo de trabalho e
residência do profissional, os residentes em Sambaíba possuem nível mais baixo de
escolaridade e, consequentemente, desempenham funções de menor prestígio social.
Percebemos, ademais, que a relação trabalhista com o órgão empregador, a prefeitura do
município, é provisória.
125
Maiores informações, vide: (SANTANA, 2018).
350
F M
Infantil I multisseriada 01 06 07 M
Infantil II multisseriada 02 03 05 M
1º ano multisseriada 02 06 08 M
2º ano multisseriada 03 03 06 M
3º ano Seriada 05 04 09 V
4º ano multisseriada 04 07 11 M
5º ano multisseriada 06 07 13 M
Total de alunos 59
Fonte: Informações adquiridas na documentação da secretaria da escola.
126
São classes heterogêneas que congregam estudantes de séries e níveis cognitivos diferentes e são atendidos,
simultaneamente, pelo mesmo professor; situação exclusiva da zona rural do município, onde o número de
professor é insuficiente para a demanda.
127
Será que essas classes multisseriadas impossibilita ensino de boa qualidade? Penso na Escola da Ponte
(Portugal) em que a pedagogia se sustenta exatamente na multiplicidade de séries para dar qualidade à
educação, vendo nas experiências em níveis diferentes propiciar o crescimento de todos. Lembro minha
experiência pessoal, como ex-Secretária Municipal de Educação de Caetité (BA), na década de 1980, quando
as escolas eram exclusivamente rurais e praticamente todas as turmas compostas por multisseriadas, com a
maior parte dos professores leigos (não graduados) e que tivemos alguns êxitos. Creio que a qualidade
relaciona-se mais à formação inicial e continuada de professores e à assistência permanente da equipe de
assessoramento, além de infraestrutura e material didático pedagógico específico e adequado, merenda regular
e participação da família do que, propriamente, a multisseriação. Ratifica o Ministério da Educação, dentro do
Fundo de Fortalecimento da Escola (FUNDESCOLA), com o projeto Escola Ativa colheu bons resultados nas
avaliações estaduais onde foi implantado.
352
turma organizada conforme a proposta do Programa Mais Educação128. Este programa sugere
à escola, conforme projeto educativo que adota o desenvolvimento de atividades de “[...]
acompanhamento pedagógico; educação ambiental; esporte e lazer; direitos humanos em
educação; cultura e artes; cultura digital; promoção da saúde; comunicação e uso de mídias;
investigação no campo das ciências da natureza e educação econômica.” (BRASIL 2007d)
Mesmo assim, há por parte dos profissionais, que nela atuam, pouco interesse em fazer
da escola um espaço de dialógico entre a comunidade e os estudantes, com exceção nas festas
realizadas pela escola, quando os pais participam. Com o Programa Mais Educação, que
funcionou apenas por 8 meses no ano de 2016, a comunidade foi representada por uma
senhora que ministrou oficinas de artesanato como tapeçaria, pintura e esteira, oportunizando
aos estudantes aprenderem uma prática que é aprendida há gerações, estas oficinas foram
bastante significativas para todos os envolvidos, pois mesmo que por pouco tempo, foi
possível reunir, no mesmo espaço, comunidade e escola, diminuindo uma distância secular
entre as culturas. Com exceção deste programa, conforme admitiram as professoras, embora
existam muitos projetos interessantes, discussões e ideias, as ações concretas que visam os
estudos de África e dos afro-brasileiros restringem-se, mesmo, às datas comemorativas.
Percebi que essas atividades tomaram corpo na coordenação da Professora Letícia, uma
militante da etnia, que se empenhava em fazer estreitar a relação escola/comunidade. Antes da
chegada da coordenadora na comunidade nenhuma ação mais efetiva para discussão,
aprendizagem, troca de saberes entre estudantes, professores, direção, pessoal de apoio no que
se refere ao continente africano e a cultura de seus moradores, assim como dos afro-
brasileiros era fomentado na escola, tampouco entre escola e a comunidade. Após seu
afastamento da coordenação, no final de 2017, as ações voltaram a ser realizadas apenas nas
datas comemorativas.
Segundo documento do MEC, a maioria dos professores que trabalha em comunidades
remanescentes no Brasil não é capacitada adequadamente e o número é insuficiente para
atender à demanda. (BRASIL, 2013). No caso de Sambaíba, os professores atendem a três
turmas multisseriadas e não há nenhum curso que as prepare para trabalhar com turmas
mistas, além do fato de a escola ser de uma comunidade quilombola que exige do professor
além de seu conhecimento de matemática, Geografia, Língua Portuguesa, um trabalho com
história que valorize os negros e suas culturas. Essas questões pode impossibilitar um trabalho
128
Programa instituído pelo Ministério da Educação pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado
pelo Decreto 7.083/10, como estratégia para induzir à ampliação da jornada escolar e a organização do
currículo com vista a uma Educação Integral.(BRASIL, 2007d).
353
de qualidade.
Embora a prefeitura forneça o transporte, a inadaptação ao local, o cansaço do ir e vir
diário, as dificuldades para integrar as tradições da comunidade ao currículo oficial da rede
pública municipal e ao trabalho em classes multisseriadas, provoca rotatividade entre os
professores que não gostam de trabalhar nessas turmas. Conforme informação da orientadora
da Escola 25 de Dezembro, as professoras ficam, em média, dois anos na comunidade, depois
solicitam transferência para uma localidade mais perto da sede do município. Os problemas
dessas comunidades não são poucos, além da separação das crianças de seus genitores em
decorrência do corte de cana, enfrentam mães pouco estruturadas emocionalmente,
dificuldade financeira, falta de perspectiva, ausência de lazer, saúde precária, alimentação
fraca de nutrientes, entre outros que requerem atenção do município e da sociedade.
Os alunos que concluem o 5º ano, na comunidade, prosseguem seus estudos no
Distrito de Caldeiras, ou no Município de Igaporã, este mais próximo da comunidade do que
o município de Caetité. Essas instituições urbanas nem sempre recebem de forma respeitosa
esses alunos. Conforme informação da coordenação da Escola Profª. Emiliana Nogueira Pita e
de alguns professores, os alunos, geralmente, não recebem bem os alunos vindos de
Sambaíba. Segundo informações da direção da Escola 25 de Dezembro, a maioria dos alunos
prossegue os estudos em Caldeiras e, lá chegando, permanece por volta de um ano excluídos
dos demais alunos da escola do Distrito, formando o grupo de Sambaíba, pois os alunos do
Distrito, embora negros ou mestiços, não os aceitam, fazendo com que sofram discriminação
por mais de um ano. Por essa razão, afirma, muitos alunos abandonam o curso por sofrerem
muita “perseguição” na escola, retornando à comunidade para se dedicarem à lida na terra
com a família, ou partem para o corte de cana assim que completam idade, desistindo dos
estudos; raros, apesar da discriminação, resistem e permanecem naquela escola além do nono
ano. A realidade dessas crianças é dura, pois além da discriminação que os exclui da escola, o
trabalho os convoca para atender às necessidades essenciais da família. Na pesquisa de
campo, busquei investigar, em princípio, os alunos ingressantes na Educação Infantil e o
grupo de alunos do 4º e 5º anos da escola 25 de Dezembro, em Sambaíba e, posteriormente, o
mesmo grupo na EMENP, no Distrito de Caldeiras, para onde migraram as crianças para
cursarem o 6º ano. O objetivo, ao fim e ao cabo, foi compreender, pelas narrativas das
crianças quilombolas, o que elas pensam sobre si mesmas e o que as crianças de Caldeiras
pensam sobre as crianças quilombolas, que constituem indícios possíveis para a construção da
identidade desses alunos. No próximo capítulo descrevo essa relação entre as crianças de
Sambaíba e a recepção das crianças na escola de Caldeiras.
354
Para tanto, tomei por base os dados do Censo Escolar produzido pelo INEP (2012), as
leis que fundamentam essa modalidade de educação, assim como as entrevistas
semiestruturadas realizadas com as coordenadoras, diretores, professores das referidas
escolas, a fim de compreendê-las no contexto maior do estado e do país. Trata-se de uma
tentativa de me situar, para melhor refletir sobre a educação dessas crianças e de um esforço
para contribuir, mesmo que modestamente, para a pesquisa sobre a história da educação e
para a modalidade Educação Quilombola ou, mais precisamente, Educação dos
Remanescentes de Quilombos129.
Meu interesse precípuo foi refletir a presença da escola na comunidade quilombola,
considerando que a ela cabe a formação cidadã das crianças, o que requer, nesse contexto em
particular, um currículo significativo e um educador no sentido profundo do termo,
conhecedor da história dos negros em geral e do quilombo e do saber/fazer dos quilombolas.
Nesse sentido, algumas questões foram impostas: a escola compreende o valor do coletivo,
em ações que envolvam o pessoal da escola (educadores, direção, coordenação e pessoal de
apoio) os pais e estudantes?
Penso que uma escola quilombola precisa estar preparada para atender às necessidades
do educando para além do ensino-aprendizagem, em que a proposta político-pedagógica seja
alicerçada numa pedagogia dialética, que desafie as crianças a pensar a realidade social,
política e histórica de forma crítica. Assim como um professor comprometido com essa
proposta. Está o educador de Sambaíba, como agente mediador do conhecimento, preparado
para exercer esse papel?
Defendo, com diferentes pensadores, que o educador não deve se esconder sob o véu
de uma impossível/inexistente neutralidade de sua prática, deve educar para além do conteúdo
que ensina de forma reflexiva e crítica. Vale convocar nosso mentor da educação dialética:
129
É a própria comunidade que se auto-reconhece “remanescente de quilombo”, conforme amparo legal da
Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, cujas determinações foram incorporadas à
legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 143/2002 (BRASIL, 2002) e Decreto nº 5.051/2004 (BRASIL,
2004). Coube à FCP emitir certidão de reconhecimento, após tramite legal para este fim.
355
[...] fortalecer, cada vez mais, uma parceria importante e indispensável para que o
processo de ensino-aprendizagem de nossas crianças e adolescentes[sic] se
concretize [...] caminhar juntas, unir forças, estreitar e buscar soluções em torno de
um mesmo objetivo da: EDUCABILIDADE.
130
Cabe uma reflexão, estaríamos retornando à década de 1960? Não seria de se estranhar, considerando as
últimas ações do governo federal e o clamor de uma parcela da população que é a favor da ditadura militar.
Situação preocupante.
357
longo caminho a ser percorrido ainda nesta luta, que não cabe apenas aos movimentos negros,
pois o racismo é um tema que deve ser, cotidianamente, discutido e não apenas em um dia ou
uma semana. O racismo está institucionalizado em diferentes espaços: educacional, na saúde,
na segurança pública, no lazer e por isso mesmo, necessita ser debatido a cada dia, o ano todo.
Quando o espaço é o escolar temos a impressão de que a história do negro começou
após a Lei Áurea, desconsideram a história da origem africana, da posição social do negro no
Continente Africano, seus saberes, sua cultura e, principalmente a liberdade em que viviam,
para reportar apenas à escravidão como se o negro fosse escravo e não um ser humano que foi
escravizado por ambiciosos capitalistas. Sem pretender ser prescritiva, a escola precisa e deve
resgatar essa história para que as crianças sintam orgulho de seus ancestrais, para que saibam
a importância que o negro teve na história do Brasil seus saberes na geometria, nas
matemáticas, na agricultura e outros. Na construção deste país como o conhecemos
miscigenado, pluricultural, diversificado.
Mais uma vez reforça-se a necessidade de ir a fundo nessas questões. Ainda são
muitas as barreiras a vencer para implantar um ensino voltado para a realidade dos povos
negros, em particular dos quilombolas de forma a que se sintam parte da história do país como
deve ser.
Tudo que escrevi até aqui sobre as duas escolas, corpus de minha pesquisa, teve
origem nas entrevistas realizadas com a equipe administrativa, docente e pessoal de apoio, no
PPP e outros documentos das secretarias de ambas as escolas, assim como nos documentos
Secretaria Municipal de Educação- SME de Caetité.
359
131
PARTE IV
O PROTAGONISMO DA INFÂNCIA DE
SAMBAÍBA
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura. (PESSOA, 2004).
131
Sesa wo suban - Transformação de vida. Da expressão: Sesa wo suban - mude ou transforme a sua atitude.
Esse símbolo combina dois outros, a estrela da manhã que simboliza um renascer a cada dia, dentro de uma
roda, representando a rotação e a autonomia de movimentos. “ As pessoas são como janelas, quando o vidro
delas se quebra jamais pode voltar a ser o que era, porém as peças estilhaçadas refletem uma luz muito mais
bela do que antes, quando janela estava inteira... e você então se torna o vitral de uma Catedral. (ZEIGER,
2012f).
361
132
132
“Mate masie” é um símbolo de Adinkra de Gana, que representa dois pares de olhos. Vem do provérbio:
“Nyansa bun mu nne mate masie”, traduzido por: “Eu guardo aquilo que ouço”. O significado implícito da
frase é a compreensão, que denota sabedoria e conhecimento, e também significa prudência de levar em
consideração aquilo que foi dito por outra pessoa. (ZEIGER, 2007c).
362
esperança e motivados pela fé, os quilombolas caminham com garrafas d’água em procissão
até a Igreja pedindo chuva que ensaia escurecendo e lentamente juntando as nuvens mais
pesadas. Assim repetem o ritual a cada período de seca demorada, na esperança que se renova
anualmente. O significado pedagógico deste tipo de postura reside na esperança transmutada
em orações e procissões realizadas no quilombo. Os devotos clamam por chuva para a lavoura
e a chuva responde ao pedido coletivo.
Chego dando e recebendo bom dia. Meu coração comunga dessa benção e eu
reverencio a natureza que as crianças ensinaram-me a respeitar. Registro com a câmera esse
chão agradecido e as crianças aproveitando pra brincar. Hoje, decidiu-se um dia feliz e não é
pouco.
ainda não aprenderam, porque não lhe foi ensinado. O que fazer se outros não sabem e nem
desejam desse bem compreender para ensinar? A Lei 10.639/03 é travessia no folclore. Tento
traduzir o olhar em significados, que o tempo se incumbiu de me ensinar.
O corpo dos pais, que herdou por nascimento, traz muito além do DNA registrado nas
células em cor da pele, no tipo de cabelo, no formato do nariz e outras características físicas,
traz um corpo de linguagem social, que é alvo de preconceito e discriminação, mas também
possibilita ser ícone de resistência cultural. A Antropologia nos ajuda a pensar o corpo em
diferentes culturas e a compreender para além do que ele representa biologicamente, para
além da sua fisiologia e plástica. Sobretudo ela nos faz percebê-lo como construção cultural,
ligado a percepções particulares do mundo. O corpo é importante para se pensar a cultura,
porque ele nos diz das singularidades com relação à postura, às predisposições, humores,
gestos, manipulação pelo olhar, tipos de sorriso. Movimentos empreendidos pelo corpo,
inclusive comunicando nos momentos de silêncio. A compreensão cultural do corpo negro
deve levar em consideração o contexto social, histórico e etnográfico no qual os sujeitos
vivem.
Quando cheguei à Sambaíba, em agosto de 2015, para iniciar a pesquisa de campo,
eram raras as meninas que usavam tranças, ou deixavam os cabelos soltos. Na verdade, duas,
uma que revelou usar as tranças porque a mãe a obrigava, afirmando que os cabelos delas
(mãe e filha) eram ruins e só a trança dava jeito no volume; e outra, que descobri depois ser
consciente de sua “beleza negra”. Esta última usava cabelo rastafári, trançado com fios
vermelhos, também influência da família, conscientes da beleza negra. As demais meninas
usavam os cabelos presos em coques, com grampos por todo lado, não deixando um fio
sequer solto. Os meninos, a maioria de cabeça raspada, não tiravam o boné, nem na sala de
aula.
Assim como demais tendências de moda, o cabelo de mulheres e homens mudaram o
estilo em conformidade com as tendências das épocas. Com os cabelos de pessoas negras não
foi diferente, alisados na década de 1960, afro nos anos de 1970, permanente-afro na década
de 1980, alongados e relaxados na década de 1990. De lá para cá, com o fortalecimento da
identidade negra em razão do aumento da militância, dos movimentos negros e das ações
afirmativas, os negros deram aos cabelos formas diferenciadas, sempre assumindo o volume e
o crespo como forma de resistência e identidade. Por carregar importantes significados
365
Esses dois eventos fizeram-me lembrar de uma experiência sobre a qual havia lido há
alguns anos. Tendo por norteadora a pesquisa realizada, nos fins da década de 1930, pelo
psicólogo norte americano Kenneth B. Clark e esposa Mamie Clark, que teve por objetivo
investigar a auto percepção das crianças negras com relação à raça, principalmente com
relação à autoimagem, realizei o mesmo teste com as crianças de Sambaíba. O experimento
do casal mostrou uma clara preferência pela boneca branca por todas as crianças. Essas
descobertas expuseram o racismo internalizado em crianças afro-americanas. Esta pesquisa
também abriu o caminho para um incremento na pesquisa psicológica em áreas de autoestima
e autoconceito, a exemplo do trabalho do cineasta Kiri Davis que recriou o estudo da boneca e
o documentou em um filme intitulado A girl like me (2005), porque encontrou resultados
semelhantes aos da família Clark. A conclusão do casal foi a de que a segregação de raças na
sociedade norte-americana daquela década também influenciava o pensamento das crianças,
que optavam pelas bonecas brancas por saberem que, na vida real, eram os brancos os
escolhidos, tidos como os melhores e mais bem aceitos na sociedade, pensamento que não era
apenas dos adultos, mas também dos filhos, sugerindo que, por sua própria natureza, a
segregação prejudica os filhos e, por extensão, a sociedade em geral.
Resguardadas as diferenças temporais, geográficas, social, política e cultural a
pesquisa realizada com as crianças quilombolas teve o mesmo resultado. Inicialmente, apenas
as crianças até 8 anos, ou seja, do Infantil I e II, primeiro e segundo anos. Apresentei às
crianças 3 bonecas iguais representativas do sexo feminino, diferindo apenas na cor da pele e
cabelo, e 1 menino. A cor da pele variava do branco ao preto, passando por dois tipos de
marrom. As bonecas eram posicionadas na frente da criança, que era chamada ao teste
individualmente. A cada uma delas era dado alguns comandos do tipo: indique a boneca mais
bonita, a mais feia, a boneca que tem carinha de má, aquela que parece boazinha, aquela que
mais gosta, aquela com a qual gostaria de brincar, qual levaria consigo para casa etc. Sem
exceção as crianças apontavam para as características positivas a boneca branca e para as
negativas as mais escuras, aquelas cujo tom de pele mais se aproximava do seu. Ampliando a
pesquisa do casal, apresentei ao final um espelho, solicitei que a criança se olhasse e depois
me entregasse aquela boneca que mais se parecia com ela. Novamente, todas as meninas
indicaram a boneca branca, como não havia boneco branco, os meninos indicaram o único
boneco presente, cuja pele era preta, os mesmos garotos que nos testes anteriores apontaram a
boneca branca para as qualidades positivas. Dois deles chegou a dizer que não tinha um que
se parecesse com ele. Ao ser questionado como deveria ser, ele indicou, novamente, a boneca
branca, dizendo “[...] igual a essa só que homem” (Matheus, 7 anos). Creio que se houvesse
368
um boneco branco, também eles o teriam escolhido. Comungo com a conclusão dos
pesquisadores, principalmente, porque ratifiquei o resultado com outro experimento, entendo
as opções feitas pelas crianças miúdas como auto rejeição e baixa autoestima.
Outra constatação que me parece importante mencionar: todas as meninas, sem
exceção, indicaram o boneco preto como sendo o de aparência feia, mau, aquele que não
gostariam de brincar com ele. Penso que o sexo aqui tenha influenciado a escola, uma vez que
os meninos pirraçam as meninas nas brincadeiras, beliscam e dão tapas e xingam de nomes
pejorativos.
A mesma oficina foi aplicada aos alunos do quinto ano e os resultados obtidos foram
similares. Revistas Veja foram disponibilizadas para os alunos, eles folhearam e escolherem a
imagem de uma pessoa que consideravam parecidas com eles, conforme solicitado. Depois,
escreveram o que na pessoa da imagem parecia com eles: o cabelo? A cor da pele? Dos olhos?
Enfim, em que aspectos eram semelhantes. A seguir, apresento as imagens escolhidas e a
transcrição literal das crianças.
374
As marcas fenotípicas são ainda mais fortes quando se trata de repetir o que ouvem
quando são objetos de racismo. Os binarismos antagônicos aparecem na textura dos cabelos:
cabelo bom, liso e mole versus cabelo ruim, crespo e duro.
Chamou a atenção o fato de uma delas haver escolhido a imagem de uma mulher
negra, entretanto, escreve que ela se parece com a imagem, porque ambas são brancas. Posso
inferir que ela se acha bonita porque escolhe uma mulher negra bonita mas, como a cor branca
é referência de beleza em sua história de vida, ela assim se caracteriza e a imagem.
Outra criança escolhe uma mulher loura para se representar, deixando claro que o seu
padrão de beleza, melhor, que o padrão de beleza a que foi submetida é uma mulher loira,
entretanto busca encontrar, na imagem, uma referência com a qual pode estabelecer parâmetro
e a encontra na cor dos olhos. Escolha feita, penso, para esquivar-se de uma situação de
conflito.
A cor azul dos olhos133 é preferência de quase todas as crianças, nesse quesito não é
difícil deduzir a razão, o padrão de beleza estabelecido pelo colonizador é branco, loiro de
olhos claros.
Essa rejeição/aceitação da criança negra como indivíduo superior/inferior está,
diretamente, relacionada à cristalização das diferenças marcadas por traços fenotípicos
congênitos, que leva à sociedade branca, racista e etnocêntrica a traduzir tais sinais como
marcadores de desigualdade e de inferioridade a priori.
A não aceitação do corpo confirmou-se em outros momentos de convívio nos espaços
livres, nas conversas despretensiosas e outras observações em atividades na escola. A
aceitação, ou não, do corpo negro está relacionada com uma dimensão estética que pode ser
trabalhada de forma positiva, referendando-a à beleza dos ancestrais africanos, com imagens
com as quais possam se identificar.
Com o tempo, as discussões, as oficinas e as rodas de conversa, os cabelos das
crianças foram se transformando, as garotas passaram a exibi-los em diferentes tipos de
trança, com ou sem amarrados coloridos, muitas delas com cabelos soltos em cachos. Os
133
Lembrei-me de um documentário com esse nome “Olhos azuis” feito com um dos workshops sobre a
extensão da discriminação racial, realizado por Jane Elliot, uma professora norte-americana, com base num
experimento que realizou em sala de aula com crianças de sete e oito anos, cujo objetivo foi explicar aos seus
alunos como é se sentir discriminado. Depois desse evento que criou muita polêmica e ações discriminatórias
contra ela e seus pais, passou a realizar workshops com adultos. Ela cria uma situação controlada em que faz
reversão de papeis, as pessoas que geralmente discriminam, passam a ser por duas horas discriminadas.
Situação na qual as pessoas começam a se dar conta de como é doloroso ser oprimido e percebem como as
coisas ficam muito difíceis quando tem muitas pessoas contra si. Esse exercício de alteridade faz com que as
pessoas reflitam sobre suas ações. Embora a experiência seja realizada nos USA ela se aplica a uma realidade
universal que precisa ser refletida. (DOCUMENTÁRIO..., 2013).
379
garotos traziam diferentes tipos de raspados com desenhos tribais, outros além do desenho
feito na parte raspada, pintavam de cores fortes a parte deixada sem cortar no alto da cabeça,
como um topete moicano. Já não usavam mais bonés, ou usava-os raramente. O cabelo, alvo
de insatisfação, em especial das meninas, passou a ser valorizado, gerando tensões entre pais e
filhos e entre as próprias crianças, o que é próprio ao processo da construção de identidade,
pois excede o âmbito individual e impacta o grupo a que pertence e, ao fazê-lo,
conscientemente ou não, remetem a uma ancestralidade africana recriada em nosso solo.
A compreensão e aceitação do corpo e do cabelo como belo e bom, iniciou um
caminho que perpassa pelo orgulho da etnia, à medida que a idade vai florescendo. Ser o que
é, porque significa, porque ligado à matriz africana que se ramifica nos rincões deste país
miscigenado e ressignificado. O que não significa dizer que essa compreensão do próprio
corpo na relação com o outro se deu/dá de forma harmônica, não, essa é uma relação
complexa, tensa e conflituosa. Principia pelo olhar interior do próprio sujeito sobre si mesmo
e seu corpo, mas é também na relação com o outro que essa identidade se consolida de forma
positiva, construída no contato, na negociação, no contraste, na troca, no diálogo com o outro,
e no conflito, por que não? (GOMES, 2012). Num país racista e preconceituoso como o
nosso, em que o preconceito é camuflado de democracia racial, a criança quilombola enfrenta
discriminação diariamente quando está fora da comunidade.
Embora eu não tenha medido esforços para discutir a questão com as crianças e tenha
apresentado a elas diferentes livros em que os personagens negros se viam de forma positiva
não tiveram o efeito que a presença de Letícia provocou. Não sei se ela tem noção da
dimensão que sua presença provocou nas crianças e na comunidade em geral. As crianças
ficaram próximas de mim, tinham-me como amiga que as respeitava e as ouvia, que
valorizava tudo no quilombo, principalmente, o que era feito por elas. Identifico-me e
comungo com a causa negra, mas eu não sou uma negra. Nesse quesito, não há o que fazer.
Tenho ideia do que sofrem por discriminação, luto por justiça ao lado delas, mas jamais
sentirei o que sentem “na pele”. Colocar-se no lugar do Outro nesta questão é imensamente
difícil, principalmente porque, mesmo não aceitando, tenho o corpo do colonizador, daquele
que fez dos antepassados escravizados.
No ano em que Letícia permaneceu no quilombo, os avanços foram enormes com
relação à percepção das crianças sobre si mesmas de forma mais positiva. Quando Letícia
chegou ao quilombo eu já estava há alguns meses, já havia conquistado a confiança das
crianças, e de algumas pessoas, entretanto alguns deles ainda tinham dúvidas a meu respeito e
a respeito da pesquisa. Dúvidas que foram dirimidas com o tempo e com a aproximação entre
380
[...] são atores sociais porque sua própria existência modifica o entorno social e
obriga a adotar medidas em relação a eles [elas]. Portanto, crianças têm uma
participação social bilateral: afetam e são afetadas pela sociedade. As crianças são
atores sociais nos mundos sociais de que participam e a investigação sociológica
com crianças deve focar suas condições de vida, atividades, relações, conhecimento
e experiências; deve centrar-se nas experiências cotidianas das crianças,
especialmente nas suas relações com outras crianças e com os adultos. (FINCO;
FARIA, 2011, p. 166)
A criança tem um papel social na família para além das brincadeiras próprias da
infância. Assim é também na comunidade. No dia a dia do quilombo, a presença das crianças
se faz sentir por todo o território. De forma natural e descontraída, elas participam desde a
elaboração das atividades à finalização das tarefas comunitárias. Sempre por perto,
acompanham os adultos ajudando, ou observando, sempre de ouvidos e olhos abertos. Sempre
pude contar com elas na preparação de um evento, pois gostam muito de colaborar.
Nos quilombos de hoje, a cultura da festa pode ser também considerada um modus
vivendi, que atravessa as manifestações, ressignificando as práticas antigas. Por meio delas a
transmissão das tradições do grupo vai se confirmando, constantemente (re)criadas,
(re)inventadas, (res)semantizadas, conforme interesse da comunidade e dinâmica do tempo.
Aprender sobre a importância do período que antecede a festa (preparação) e a realização
possibilita desvendar a lógica desse modo de vida quilombola, assim como se dar conta de
que não há diferença marcante entre o lúdico e o sagrado do tempo da festa.
Forma-se, desse modo, um tecido cultural tramado com fios de significado que
permanece transformado, permitindo adequar o passado (herança cultural dos antepassados)
ao presente (contato com outras culturas). Os valores culturais são transmitidos e assimilados
paulatinamente, “ao mesmo tempo em que proporciona oportunidade de reflexão sobre a
necessidade de mudança, sempre que as circunstâncias o exigirem, para que a comunidade
possa adequar-se às novas condições do momento.” (MOURA, 2005, p. 73)
Há um aprender observando e fazendo na informalidade do cotidiano quilombola que
constrói um saber que as pesquisadoras, Nilma Gomes e Glória Moura, denominam de
“currículo invisível”134.
134
De autoria de Hane Lane Hicks (1969). O termo aparece no livro da Harvard University Press: Promoção
de David Perlmutter, baseado em colunas que ele escreveu para The Chronicl. O autor aborda sobre momentos
382
é a transmissão dos valores, dos princípios de conduta e das normas de convívio, ou,
numa palavra, dos padrões socioculturais inerentes à vida comunitária, de maneira
informal e não explícita, permitindo uma afirmação positiva da identidade dos
membros de um grupo social. A construção desse currículo invisível constitui,
assim, um processo histórico, no qual a linguagem e, em especial, as linguagens
musicais e corporais, desempenham um papel essencial. (GOMES, 2012, p. 24)
Nas festas, os valores que a comunidade reputa essenciais e que condensam esse
saber são constantemente reafirmados e renegociados, constituindo, assim, um
currículo invisível por meio do qual são transmitidas as normas do convívio
comunitário. Sem uma intenção explícita, esse currículo invisível vai sendo
desenvolvido, dando às crianças o necessário conhecimento de suas origens e do
valor de seus antepassados, mostrando quem é quem no presente e apontando para
as perspectivas futuras. (MOURA, 2005, p.70, grifo nosso).
extra currículo institucionalizado em que educador e educando conversam/discutem sobre temas diversos,
constituindo-se um momento de elevação do espírito para ambos. Instâncias espontâneas em que nos
afastamos do objetivo de aprendizagem declarado (o currículo "visível"), oferecendo aulas não planejadas
sobre vida e/ou a educação (LANG, 2010). Não posso afirmar que Nilma Lino Gomes Gomes, ou Glória
Moura, tenha tomado o termo de empréstimo diretamente do autor, uma vez que nenhuma delas menciona o
fato em suas obras.
383
oral e passado para a geração seguinte sem imposições, ou exigências, de aprendizagens para
avaliações futuras. Ele tem papel significativo para a cultura do grupo, pois é impregnado de
experiências de vida das pessoas da comunidade.
No quilombo, como já afirmei, todos são parentes, assim todos tomam conta de todos.
Principalmente das crianças. Todos se sentem responsáveis pela integridade física delas,
portanto, se alguém as vir em perigo logo interferem, alertando. Assim também é com
pequenos favores. Todos se sentem a vontade para requisitar a alguma criança que lhes faça
um “mandado”. Em contrapartida as crianças recebem da comunidade balas, doces ou bolos.
Também quando brincam, os adultos se divertem, olhando-as em seus
entretenimentos, ou mesmo imiscuindo nas brincadeiras, para sugerir alguma outra forma de
diversão do tempo em que eram meninos (as). Na maioria das vezes são caçoados pelas
crianças.
No período em que vivi no quilombo percebi a interação entre adultos e crianças
cotidianamente. O senhor José Pedro é considerado por todos como o detentor da história da
tradição oral dos quilombolas de Sambaíba de tal forma que as crianças veem nele um avô
contador de histórias e o respeitam demais por isso. Não perdem um momento em que o Sr.
José esteja presente para ouvir a história que ele conta sobre Sambaíba. Tanto que um dos
meninos, quando perguntado o que desejaria fazer, quando fosse mais velho, respondeu “Zé
Pedro, que guarda na cabeça a história de Sambaíba” (Marleu, 11 anos).
Assim como Marleu, outras crianças admiram muito o senhor José, mas ele não é o
único, também outras crianças afirmaram que gostariam de ser como o senhor Joel, ao ser
perguntado sobre a razão da escolha respondeu: “Ele é um pai de família muito trabalhador,
cuida bem dos filhos e todo mundo gosta dele” (José, 12 anos). Essa segunda escolha nos
direciona para compreender melhor o que seja uma criança quilombola. O garoto tem como
referência um homem digno, trabalhador e que convive bem na comunidade, dá indícios do
quanto é importante no quilombo a família e o cuidar uns dos outros. Esta forma de viver é
valorizada pelos quilombolas, inclusive pelas crianças, como constatei.
Os remanescentes têm princípios morais e normas de conduta que são aceitos e
respeitados pelo grupo e passados para a geração seguinte. Entre esses valores socialmente
cultuados pela comunidade está o dever de trabalhar, respeito à família, o convívio harmônico
com a natureza, a importância dos rituais de devoção, o casamento consanguíneo e a união e
cooperação no grupo. Trata-se de uma educação informal realizada pela comunidade e que é
transmitida a cada geração. A importância desse ensinar/apender de forma cultural é
fundamental para a construção das identidades no quilombo, principalmente das crianças, o
384
que raramente ocorre numa escola tradicional. No currículo invisível, o que está em foco são
“padrões socioculturais inerentes à vida comunitária, de maneira informal e não explícita,
permitindo uma afirmação positiva da identidade dos membros de um grupo social”.
(MOURA, 2005, p. 72)
Não há necessidade de receber aulas sobre ritual desta ou daquela celebração, assim
como sobre papeis desempenhados, pois cada um sabe aquilo que precisa fazer, como deve
fazer e a hora de realizar, expressando o valor da tradição secular que exige reciprocidade.
Lembro-me da dádiva de Marcel Mauss (1974). As festas/celebrações religiosas
potencializam, movimentam e dão vida aos valores transmitidos, que são recriados segundo
exigências no presente.
Antes de discutir a identidade das crianças quilombolas, quer no interior das escolas
que frequentam/frequentaram durante o período desta pesquisa, quer nos espaços livres, é
385
Lembrando Roberto Cardoso de Oliveira (1976, 2000), falar sobre identidade(s) passa,
necessariamente, por compreender que ela(s) de define(m) sempre pela diferença: sou porque
ele não é, eles são aquilo que nós não somos, nunca isoladamente, com outras palavras, é
mediante uma comparação que a identidade emerge, uma identidade “contrastiva”.
É pertinaz dizer que diferentes antropólogos brasileiros, a exemplo de Montero (1997)
Roberto Cardoso de Oliveira (1976) e Rodrigues Brandão (1985) reconhecem e atribuem a
Fredrik Barth a maior contribuição para sedimentar uma concepção relacional de identidade e
etnia. Nesta tese, não levei a termo aprofundar na obra do autor citado, restringi-me a ler as
contribuições dos dois últimos compatriotas, que me pareceram suficientes para sustentar esta
discussão a que me propus.
O conceito de identidade formulado por Roberto Cardoso de Oliveira (1976) em seus
próprios termos:
386
Quando comecei a observar as crianças na escola, uma das discussões apontou para o
fato de os alunos “não se aceitarem quilombolas”. Ficou evidente que esta influência vinha
de casa. Por que, então, se auto reconheceram remanescentes de quilombos, quando entraram
com o processo de certificação na Fundação Cultural Palmares? Eles mesmos explicaram que,
segundo informações de outras comunidades e de pessoas que vieram fazer reuniões com eles,
ao se reconhecerem como descendentes de quilombos teriam direitos a muitos benefícios do
governo, com outras palavras, teriam acesso às políticas públicas direcionadas a comunidades
remanescentes. Infelizmente,
Além de não encontrarem na família suporte positivo para que possam se identificar
como quilombolas e se virem positivamente, as crianças encontravam mais obstáculos na
388
largo dos saberes e fazeres da comunidade. Não posso negar que no ano de 2016, com o
Programa Federal “Mais Educação”, a direção dedicou parte das oficinas ao ensino de
confecção de tapetes de retalhos, esteiras e bolsas e pintura em tecidos ministrada por uma
senhora da comunidade, para alunos do 3º ao 5º anos de ambos os sexos. Excluídas essas
atividades, realizadas em duas aulas semanais e não concomitantes, esses saberes não eram
trabalhados pela escola. Qualquer que fosse o assunto, mesmo quando a professora de
Ciências foi trabalhar as partes das plantas, optou por desenhá-las no quadro de giz, em vez de
ir com as crianças estudá-las in loco.
As crianças da escola não são as mesmas dos espaços livres. Na escola, são
desinteressadas, não participam da aula, não mostram curiosidade, fazem a tarefa sem
motivação, quando fazem, a maioria não realiza as tarefas de casa. Disseram-me que não
entendem direito o que a professora explica. Que ela fala de um jeito que eles não
compreendem e que sentem dificuldade para aprender. Nesse depoimento das crianças,
percebo o quão distante a escola está da realidade dos alunos. Com exceção de dois
professores que trabalham com crianças menores, os demais, vindos da cidade, trazem a
linguagem urbana e o português da academia. A escola foi feita para a elite dominante e
continua sendo, mesmo no interior de um quilombo da zona rural. As crianças percebem que
aquela escola não foi feita para elas, por isso não se sentem parte dela, pelo contrário sentem a
exclusão desde a linguagem.
O corpo fala, como já foi dito. Assim sendo, as crianças percebem uma postura de
superioridade dos professores que vem de fora e acabam por influenciar os professores locais
que, por não compreenderem a comunidade, ou talvez por falta tempo para conhecer, tratam
as crianças com desdém e como se elas não fossem diferentes das outras com as quais
trabalham na cidade. Tampouco se preocupam em atender as dificuldades apresentadas pelas
crianças.
Testemunhei, em diferentes momentos, atitudes de desrespeito às crianças, uma
postura, que não posso dizer que foi apenas antiética, foi desumana. Foram momentos de
vergonha e de muito constrangimento, ficou evidente a forma discriminatória com que esses
alunos são tratados, embora não seja uma prática coletiva. Trata-se de uma exclusão
anunciada e dolorosa para as crianças que são apontadas, diariamente, como incompetentes,
“doentes” e incapazes.
O que causa situações como essas que deveriam ser interditadas no interior da escola,
da comunidade, da sociedade, enfim? Ausências pedagógicas e educativas da direção? Da
coordenação? Dos pais? Das próprias crianças? Da professora? Sinto que a ação de uma das
390
professoras, em sala e na minha presença, em pequena parte, pode estar relacionada à minha
presença. Uma intrusa que, aos olhos da professora representa uma sociedade branca,
discriminadora, repressora, crítica e pouco generosa. Esse lugar de acadêmica, que ocupo,
pode, indiretamente, haver forçado um “saber” profissional que se redime da culpa, na medida
em que mostra uma instrução atualizada, “competência”, mesmo que a profissional não saiba
o que isto significa, direcionando à criança, mais fragilizada e receptiva, conteúdos
descontextualizados envoltos numa postura desrespeitosa e discriminatória que incapacita os
estudantes a aprender.
A mais genuína escola tradicional revelou-se na professora que se posiciona num
pedestal em que dita as regras e as crianças obedecem, silenciosas e temerosas.
O problema é muito sério e não é isolado, o despreparo dos professores para trabalhar
em escolas no quilombo tem provocado inúmeras discussões com vistas a que haja promoção
de formação docente para preparar os professores que venham a trabalhar em comunidades
tradicionais.
A esse respeito, Shirley Aparecida de Miranda (2012) escreve:
A maioria das crianças afirma que o que mais gosta na escola é a merenda. Não é por
menos, também me alimentei da merenda escolar que é diferenciada135, principalmente, no
período em que funcionou o Programa Mais Educação, pois as crianças passam o dia todo na
escola. A merenda é fortalecida com a horta orgânica da escola plantada pelas próprias
crianças.
135
Para aprofundar no tema, ler: (SOUSA, et al., 2013) E as leis: (BRASIL, 2009a), (BRASIL, 2009b).
392
a) “A professora sabe tudo e manda a gente saber igual ela” (Micaela, 12 anos);
b) “Ela que que nois aprende na marra” (José, 12 anos);
c) “As prova é muito difícil, ela pergunta coisa complicada” (Daiana, 13 anos);
d) “Eu sou burro, não consigo fala a tabuada decorado e nem as capitais que ela que que
a gente fala.” (Mateus 12)
394
e) “Ela passa muito dever pra casa e não fala o que é pra gente faze, chego lá em casa
não consigo fazer, minha mãe não sabe ensina e ela fica brava no outro dia” (Simone,
11 anos);
f) “Onti ela me pego fazendo verso e ganhei um carão” (Edinon, 13 anos);
g) “A professora explica, explica, muito tempo, mas a gente não entende nada, a gente do
quilombo é burro´. Foi ela que falo.” (Darlene, 12 anos)
h) “Amanhã a senhora não pode ir na minha sala, vai ter revisão pra prova. Amanhã a
minha cabeça doi” ( Janete, 9 anos);
i) “A professora falou que eu fui ruim na prova, que eu não respondi nada do que ela
ensino.” (Laison, 9 anos);
j) “Minha mãe não sabe ensinar a tarefa, então eu não faço tarefa de qualquer jeito”
(Irineu, 12 anos).
Com base no depoimento das crianças, podemos afirmar que a forma como os
professores desenvolvem suas aulas e a relação estabelecida entre eles e as crianças delineia
um tipo de escola, cujo modelo é a tradicional, a qual se preocupa apenas com a transmissão
de conteúdos formais e com o acúmulo de informações como se a aprendizagem se resumisse
em memorizações. E que o domínio desses conteúdos decorados pode definir, para distinguir,
os inteligentes daqueles que não são. Este tipo de abordagem caracteriza-se pela concepção de
educação como um produto da aprendizagem, em que este produto é o ponto fundamental do
processo, uma vez que os modelos a serem alcançados estão pré-estabelecidos. O ensino-
aprendizagem se dá na sala de aula, onde os alunos são instruídos e ensinados de forma que os
conteúdos e as informações têm de ser adquiridos segundo os modelos apresentados. Em
outros termos, o papel do professor está intimamente ligado à transmissão de certo conteúdo
que é predefinido e que constitui o próprio fim da existência escolar. Nesse tipo de escola
compete ao indivíduo obter o conhecimento pela memorização/imitação, porque o tipo de
relação estabelecido entre professor (autoridade intelectual e moral) / aluno (subalterno e
tábula rasa) é vertical, o professor traz o conteúdo pronto e o aluno se limita a escutá-lo/imitá-
lo. Nesse tipo de relação não há atividade e espaço em que o aluno possa apresentar dados
intuitivos, ou recorrer à criatividade e à imaginação.
Além da merenda escolar o que mais atrai as crianças para a escola é o encontro com
os amigos, mesmo não podendo brincar com eles durante o tempo que permanecem na escola,
pois o tempo é gasto em “decorar o conteúdo” e “dar a lição” em resposta ao professor que
“manda decorar” e “toma a lição”. Nessa relação, o professor é sempre o agente e o aluno é o
395
[...] fazer educação como cultura demanda não perder de vista seu processo
organizativo e de ação dos sujeitos nele envolvidos para perceber descontinuidades e
diferenças oriundas de trajetórias e vivências particulares de professores, alunos,
gestores e funcionários, famílias etc. Implica, também, conhecer as instituições e
estruturas sociais formadoras e conformadoras do processo de aprendizagem, como,
por exemplo, a divisão social do trabalho, a instituição e hierarquização de
conteúdos e suas formas de distribuição (no currículo), nos embates de objetivos que
permeiam a complexidade institucional e as numerosas tradições culturais que
expressam visões de mundo diferenciadas (e mesmo contraditórias) presentes e
ativas no espaço escolar. (TOSTA, 2011, p. 427)
Ratifico e reitero, sem desejar ser prescritiva, que a educação institucionalizada deva
favorecer a formação de cidadãos que respeitem a diferença, sem perder de vista a dimensão
plural de nossa identidade nacional e o caráter universal do saber. Esta educação deve
fomentar nos alunos o respeito aos valores positivos que emergem do confronto entre as
398
culturas, com exceção daquelas autóctones por nós desconhecidas, ou com pouco contato com
outros humanos.
As crianças sobre as quais discorro, como afirmado nesta tese, são crianças
remanescentes de quilombo. Crianças que possuem uma infância diferenciada, porque
convivem, cotidianamente, com o sentimento de pertencimento a um território cuja
comunidade possui objetivos comuns e que está relacionada ao vínculo de parentesco e de
culturas que determinam uma identidade de grupo.
Como mencionei, a identidade do grupo vai se transformando na medida em que a ela
vão se incorporando elementos culturais de outras culturas das quais se aproxima. Mas é
preciso reconhecer que as culturas de seus antepassados são marcas que referendam as
identidades que as diferenciam dos demais grupos, alguns desses elementos é o sentimento de
coletividade, de compartilhar saberes e fazeres, de partilhar o que tem com os vizinhos, que
são parentes, porque o casamento é parental. Essas crianças são fruto dessas culturas e serão
identificadas como quilombolas, onde quer que estejam.
Concomitantemente à identidade grupal, elas possuem identidade individual que é
chancelada pelo nome da família a qual pertencem. A identidade individual também é
dinâmica, pois está sempre em construção nas relações que estabelecem ao longo da vida. As
crianças chegam à escola e, embora tragam de suas famílias as marcas da identidade coletiva,
as crianças do Infantil I e II, primeiro e até o segundo ano, são muito pequenas para entender
a dimensão dessa identidade, assim como a identificação que fazem pessoas, estranhas ao
quilombo, às pessoas de sua família.
136
Assim denominei as crianças, porque, no nordeste, as aves migratórias são conhecidas por arribação, rebaçã,
avoante, ou avoete. São aves pequenas que andam sempre em grandes bandos e migram em certa época do ano
em busca de alimentos, assim como as crianças de Sambaíba, andam em bando e migram para Caldeiras
quando precisam prosseguir os estudos. As aves alimento para o corpo, as crianças para o intelecto. (ANTAS,
1986).
400
voam para onde desejam no território. Dividem-se entre a estrada, o quintal, a mata, e o
terreiro das casas.
Com relação às crianças negras, Anete Abravowicz e Fabiana de Oliveira (2010)
escrevem:
Essas atitudes de comando do adulto sobre a criança, para além do exercício de poder
instituído do mais forte sobre o mais fraco, revela-se um momento de aprendizagem, que
ratifica o quanto as crianças são capazes de se apropriar de saberes do seu cotidiano, não
apenas para copiar, mas para aprender e reinventar, transformando informações em
conhecimento para uso diverso em outros contextos. No quilombo, onde a oralidade é mais
forte que a escrita, o “moleque de recados” e realizador de pequenas tarefas tem grande
importância não só para a comunicação, como para a aprendizagem e disseminação do saber.
Ademais, a identidade das crianças, vem sendo construída também pelo trabalho infantil em
outros meios, no quilombo já é uma realidade há muito tempo {creio mesmo que desde a sua
criação], com as palavras de uma moradora “desdi sempre qui mininu faiz mandado e dá
adijutótio pra nóis, né memo Marleu?” A mãe pergunta e, sem seguida, Maleu completa: “
Nóis gosta de trabaiá, profi, módi nóis faiz cum gostu e animação. Quandu nóis num qué,
iscondi nu matu”.[fala baixinho para mãe não ouvir e ri]. Percebo que a criança quilombola,
assim como as demais, também têm suas estratégias de resistência.
Quando realizei a primeira roda de conversa com as crianças tinha alguns objetivos em
mente: o que era ser criança para elas, o que significava brincar, que tipo de brincadeiras mais
gostavam, quem fazia os brinquedos e/ou ensinava as brincadeiras.
A priori ouvir essas crianças, entre 7 e 10 anos na ocasião da pesquisa, era o principal
objetivo do encontro. Assim sendo, comecei por perguntar se todas eram crianças. Após
olharem uns para os outros a Daiane respondeu: “ora que sim, ora que não”. Fiquei sem
entender, perceberam e riram muito. Depois de átimo de segundo, responderam em jogral: um
sim, seguido de um questionamento para mim. Criança namora? E eu respondi com outra
401
Casinha Madeira da árvores, As meninas limpavam um pedaço na mata, os meninos Grupo misto Casinha Não permanece
caldeirão, ou panela, faziam duas forquilhas atravessadas por um pau, onde era
colher, toucinho, dependurado o caldeirão para s meninas fazerem o
feijão “cozinhado” com feijão e toucinho. Enquanto elas
cozinhavam, os meninos brincavam de cavalo de pau.
Enquanto esperavam o feijão ferver as meninas brincavam
com suas bonecas de milho ou de pano.
Chicotinho queimado Pedaço de pau Quando eu estudava a gente brincava de chicotinho Grupo Misto No quintal, no Não Permanece
pequeno queimado, que hoje em dia a gente não vê mais. A gente terreiro, na frente
fazia um círculo, aí uma criança passava atrás das outras e da escola
colocava, sem ninguém ver, o chicotinho (um pauzinho ou
raminho do mato) se aquela pessoa desse fé, pegava o
chicotinho e corria atrás de quem deixou o chicotinho atrás
dela. Se quem colocou o chicotinho chegar primeiro no lugar
da outra, ela passa a ser quem deixa o chicotinho)
Pega pedra ou Cinco Pedrinhas de No jogo são usadas cinco pedrinhas. O participante joga Grupo feminino No quintal, no Permanece
Marias tamanhos similares todas as pedrinhas no chão e tira uma delas sem mexer com terreiro, na
as outras, depois com a mesma mão joga a pedra escolhida calçada da escola
para o alto e pega uma das que ficaram no chão. Assim
sucessivamente até ter pegado todas. Na segunda rodada ao
invés de pegar uma por vez, pega duas. Na terceira rodada
três ao mesmo tempo e na última rodada você pega todas.
Ciranda nenhum Em círculo as crianças cantam: Grupo feminino Terreiro e frente Permanece
ciranda cirandinha, da escola
vamos todos cirandar,
uma volta, meia volta,
volta e meia vamos dar.
o anel que tu me destes
era vidro e se quebrou,
405
137
Outra cantiga, já apresentada, é a Marieta, mais apreciada do que a Carioca. Verso: Os meninos de Sambaíba/ Ranca tronco com raíz/Os meninos do Rio do tanque/ Foi
tentar quebrou o nariz.
406
vertical, no quilombo perto do pino onde está a outra equipa, lançando-a com uma
usavam os discos de mão.
ferro e plaquinhas de Pontuação: 6 pontos por cada derrube, 3 pontos para a malha
madeira) . que fique mais perto do pino. Quando uma equipa atinge 30
pontos, ganha. (Edmar Pereira da Silva, conhecido por
Mazinho- Agente de saúde) desejo que divide com o Sr. José
Pedro e seu irmão Silvano.
Matar passarinho ou Bodoque: Um O atirador coloca uma pedra no pedaço de couro estica a individual Em todo território Permanece
derrubar obstáculos pedaço de madeira borracha e dispara a pedra que passa no centro do Y,
em forma de y em atingindo o objetivo.
cada ponta uma tira
de borracha unidas a
30 cm, na outra
extremidade, por um
pedaço de couro.
Ondim (ônibus Nenhum Os garotos fingem ser o ônibus e saem correndo , fazendo No fundo dos Permanece
escolar) movimento de girar o volante e imitando o som da buzina quintais ou na
mata
Pé- de- meninu Nenhum Os meninos sobem em árvores e ficam desbravando o lugar Geralmente em turma mista
Pescar/nadar no rio Folhas de tiquim, No rio a gente cercava de areia, uma porção de água, e aí Geralmente em turma No rio que Não Permanece
vasilhame pegava o tiquim. É uma árvore, uma pranta, né. A gente passava pelo (rio secou)
pegava ele, cortava e batia ele numa pedra e botava dentro quilombo
d’agua aí daqui a poucos minutos os peixes já tava tudo
chumbado[bêbado] porque era muito forte. Aí era só pegar os
pexe chumbado, limpar e fritar pra come. (Edmar pereira da
Silva, conhecido por Mazinho- Agente de saúde)
Peteca Penas de galinha, Dividia-se o grupo em duas turmas iguais. Uma em frente da Grupo misto No quintal, no Não Permanece
palha de milho, outra. Cada dupla disputava batendo a peteca de um lado terreiro, na frente
couro e algodão para o outro até a peteca cair. Quando a peteca caia no chão, da escola
aquele que a deixou cair saia do jogo e entrava outro de sua
equipe, até o fim dos jogadores. Vencia o grupo que ficou
com mais jogadores.
Pipa Papel, vareta, linha , Os meninos fazem pipa em forma de losango, prendem o Masculino, Quintais, campo Permanece
grude cabresto, depois a linha. Esperam um vento bom e vão Individual e em grupo de bola e terreiro
empinar
Pega-pega nenhum Determina-se onde fica o “pique” e tira no par ou impar o Grupo misto No quintal, no Permanece
pegador, que fica de costas, enquanto os demais correm. terreiro, na frente
Aquele que for pego torna-se o pegador, assim vão se da escola, rua
revezando as crianças
Pique de esconde nenhum Determina-se onde fica o pique e tira no par ou impar o Grupo misto No quintal, no Permanece
/esconde pegador, que fica de costas e olhos tampados com as mãos terreiro, na frente
contando de 1 a té 10. Os demais participantes se escondem. da escola, rua
407
Roda nenhum Consiste em se colocarem em círculo cantando. Existe uma Grupo misto No quintal, no Permanece
variedade enorme de músicas. terreiro, na
calçada da escola
Roda-rola Aro de bicicleta ou O menino roda o aro e corre atrás Geralmente individual ou em Espaços livres Permanece
moto, pneu dupla
Sião Cipó Balaço no cipó como se estivesse numa rede Individual revezando Na mata Não permanece
Subir em pau nenhum Escalada livre nas arvores Grupo misto Árvores do Permanece
território
Três...três passará o nenhum As crianças fazem fila. Duas delas se dão as mãos formando Grupo feminino Quintais, terreiros Não Permanece
derradeiro vai ficá uma casinha, por onde passam todas as crianças. As duas vão das casas e rua
cantando, “três, três passará o derradeiro vai fica” a criança
que estiver em baixo da casinha, sai da brincadeira.
Três...três passará o nenhum [...] É uma fila e aí ficava duas pessoas com a mão arribada, Grupo feminino Quintais, terreiros Não Permanece
derradeiro vai ficá aí as pessoas que ficava com as mãos assim decidia, ah um das casas e rua
(uma variação da quer o que? Garfo, o outro quer o que? Colher. Os da fila não
brincadeira anterior) sabia quem era colher e quem era garfo, nem quem era
inferno nem céu. Aquelas coisas assim, aí no caso quem
escolhia garfo ia pro céu e colher pro inferno, ai falava assim:
“três, três passará o derradeiro vai ficar”. Aí a derradeira
pessoa que ficava tinha que escolher: “O que você quer garfo
ou colher?”, íi se for garfo vinha pro meu lado, se fosse
colher ia pro outro lado. (riso) (Marisete Maria de Oliveira,
professora do 3 e 4 anos)
Currupio de botão Um cordão/ou fio de Passar o fio dentro de um dos buracos do botão, depois no Individual Nos espaços livres Permanece
linha e um botão , outro e amarrar as pontas. Em seguida, segurar cada lado
com o dedão e o indicador de cada mão e rodar o botão em
círculo e depois esticar. O brinquedo está pronto, o botão
desliza de uma lado ao outro emitindo um som.
Vuvuzela Frascos de Corta-se a parte superior e o fundo de um frasco vazio de Individual masculino Quintais, rua, em Permanece
desodorante ou desodorante , depois corta-se a parte mais larda do papo (a gincanas na escola
408
canos, uma papo de parte mais larga é que será usada). Introduzir a parte superior
aniversário, uma faca do frasco (o bico) que foi cortada na abertura do fundo,
levando o bico até a borda do outro lado. Em seguida,
colocar o papo cortado fechando a abertura, segurar o papo e
empurrar o bico colocado dentro forçando um pouquinho
para ficar firme na entrada e deixar aparente o bico
introduzido para ser soprado. O som eu sai é estridente.
Fonte: Elaborado pela pesquisadora.
409
[...] uma criança de um ano que manipula uma boneca pela primeira vez, faz uma
exploração sensorial da mesma- aperta, lambe, chacoalha, puxa o cabelo, joga no
chão e recolhe-a. Num segundo momento, a imagem da boneca, o bebê, convida-a
para um gesto de maternagem próprio à sociedade na qual vive e é possível de ser
imitado por meio de seu uso. Esse gesto, porém, será aquele próprio da sociedade e
da cultura mais próxima da experiência da criança, como por exemplo, uma criança
africana moradora em Paris, carregava sua boneca no dorso, como é característico
das mulheres de sua cultura de origem. Numa terceira etapa que impulsiona infinitas
410
outras possibilidades, a criança inicia um diálogo com sua boneca, depois tenta usá-
la como parceira em brincadeiras em que outras crianças exercem papéis
complementares, experimentando novas formas de maternagem características de
comunidades diversas que viu ou vivenciou, e assim por diante. (WAJSKOP, 2018)
Com esta exemplificação, posso afirmar que cada situação relaciona-se a um conjunto
de imagens que instiga a criança à brincadeira e que estão associadas a um contexto cultural
específico que representa, por meio de ações especificas, a maternidade. O objeto somente se
transforma num brinquedo pela possibilidade de a imaginação agir sobre ele. Por meio da
manipulação criativa do brinquedo, ocorre uma aprendizagem multidisciplinar das formas de
ser, estar e pensar da sociedade. As crianças, através das imagens que estes objetos lhes
transmitem, aprendem sobre formas relacionamento interpessoais e conhecimentos já
conquistados pela humanidade.
Na coleta dos brinquedos e brincadeiras encontrei diversos jogos, conhecidos e
inusitados. Sou sabedora das diferenças entre brincadeira e jogo, mas por questão de
imposição de limites para esta tese, falo de brincadeiras abrangendo os jogos. Discuto a
importância das brincadeiras para o protagonismo infantil, para a educação das crianças e a
construção de suas identidades. São elas que agenciam a escolha do que brincar, com quem
brincar, as equipes a participar, delimitam regras nos jogos e confeccionam os próprios
brinquedos. Nesse fazer lúdico falam de si e do lugar que ocupam, o quilombo, pelo
movimento do corpo, das traquinagens, malinesas, risadas, bagunças, correrias, gritos e
algazarras, conversas com os adultos, construção dos brinquedos, elaborando o modo de ser
uma criança quilombola. Apropriando dos saberes/fazeres e da memória dos mais velhos
transmitidos oralmente, para recriar, de forma similar/particular as representações do
território. Apresentando, por vezes modos peculiares de simbolizar/justificar historicidade e
territorialidade.
Esse universo lúdico e organizado em propostas coletivas revelam os valores do grupo
pautados na união, cooperação, solidariedade, cumplicidade e respeito. Frente aos adultos,
que insistem em ensinar formas de pensar e agir, as crianças demonstram, com criatividade,
sua capacidade de agência nos processos de aprendizagem enquanto estudam, trabalham e
brincam. Criando uma cultura singular para a infância movida pelo ensinar/aprender pela
oralidade e o fazer fazendo, caracterizadas por “[...] lealdade e adesões que fazem do agir uma
motivação para aprender.” (ITURRA, 1996, p. 34)
Ao brincarem aprendem sobre si mesmas e o território por meio de uma lógica
própria: o que consegue realizar e aquilo que não consegue, o que sabe e aquilo que ainda
411
precisa aprender, sobre coragem e receio, sobre o que foi internalizado desde o nascimento e
as descobertas, sobre realidade e invenção, mentira e verdade, múltiplos sentidos que
necessita apropriar, num trânsito entre aprender e ensinar.
Segundo Lev Semenovich Vigotiski (1999), a imitação é deveras importante nos
jogos/brincadeiras infantis:
[...] com muita frequência estes jogos são apenas um eco do que as crianças viram e
escutaram aos adultos, não obstante estes elementos da sua experiência anterior
nunca se reproduzem no jogo de forma absolutamente igual e como acontecem na
realidade. O jogo da criança não é uma recordação simples do vivido, mas sim a
transformação criadora das impressões para a formação de uma nova realidade que
responda às exigências e inclinações da própria criança. (VIGOTISKI, 1999, p.12).
Sambaíba, entrelaçados pelos saberes aprendidos/ensinados nas relações com os adultos, que
lhes permitem agenciar possibilidades de reutilização do material com outras formas e
funções possíveis no universo infantil, concedendo-lhes novo sentido/significado.
Assim pensando, as criações das crianças não são esvaziadas da realidade vivida de
Sambaíba, relacionam-se ao contexto do quilombo e suas vivências que são recriadas nos
brinquedos e brincadeiras. Tornam-se plenas de significado, pois brincar é atividade séria.
Complemento com o pensamento de Oliveira: “o fluir da imaginação criadora dá densidade,
traz enigmas, comporta leituras mais profundas, manifestações efervescentes, ricas em
significados” (OLIVEIRA, 2010, p. 9).
Numa outra tarde perguntei aos garotos que brincavam de carrinho de lata
quem havia feito o brinquedo: “Nóis!” Responderam, ao mesmo tempo, parecendo ensaiado.
José, adianta-se para me ensinar a confeccionar a gerigonça. “Olha aqui pra senhora vê. Tá
vendo? Facinhu. A genti corta uma lata di óliu nu mei, dipois faiz dois furu, um mais na
frenti , otru atrais. Nu di trais a genti põi um pedaçu di pau e roda de chinelu dus dois ladu.
Podi inté duas di cada ladu si tive bastante chinelu. Dipois pega um purrete grandi e abre um
denti num ladu é prá enfiar no pau da frenti ondi a genti enfia as roda. Dipois di montadu, põi
uma roda de chinelu em cima pra se a direção do carru. Entendeu tudu direitu? [Quando
respondo que entendi, ele convoca] Agora é a veis da senhora fais um aí pra genti ve se
entendeu direitu mesmu. Kkkkkk” Entendi que os meninos perceberam que eu não seria capaz
de reproduzir o brinquedo e quase sai correndo de receio que eles insistissem para que eu
fizesse um. José é um menino muito esperto e gosta demais de desafios.
414
“Istilingue nóis tudo fais. É só pegá um peneu vei e tirá duas tira fina ca faca. Dipois
procura no mato um gancho duro e corta do tamanhu certinho e rapa com a faca. Tem de ter
um pedaço de coro pra amarrá as tiras do peneu, mais isso é fácil, aí amarra as ponta na
cabeça do ganho e tá pronto pra mata passarinho, fritá e cumé. KKKK.”
Em sua obra, Imaginação e Criação, Vigotski escreve sobre como ocorre o processo de
criação quando o sujeito imagina, combina e modifica sua realidade. Trata-se da capacidade
de o homem imaginar, descobrir, combinar e ultrapassar a experiência imediata. Quanto mais
ricas forem as experiências que as crianças vivenciam, maior a possibilidade de elas
desenvolverem a imaginação e a criatividade em suas brincadeiras. Assim, quanto mais
possibilidades tiverem para desenvolver a imaginação, mais criativas serão nas suas
ações/interações com a realidade. É necessário elucidar que o brincar é um processo histórico
e socialmente construído, o que significa dizer, que as crianças aprendem a brincar com os
outros membros de sua cultura. Destarte suas brincadeiras são impregnadas pelos hábitos,
valores e conhecimentos de seu grupo social. Ao imaginar, combinar, reelaborar experiências,
o novo, desenvolve a capacidade que “faz do homem um ser que se volta para o futuro,
erigindo-o e modificando o seu presente”. (VIGOTISKI, 2009, p. 14).
415
Foto 52 - Estilingue
“Eu memo fizu o currupio. Peguei uma tampa que achei no compo de bola e furei dois
buraco nela. Aí pedi pra Darnele pra mim dá um pedaço de linha. Ela mim deu e eu passei nos
buraco da tampa e amarrei, pronto. Olha ele aqui.”
Os meninos maiores também fazem brinquedos para seus irmãos menores. O carrinho
de boi é bem elaborado. Perguntei a José como foi feito. “Professora u carru a genti faiz de
pedaço di pau qui incontra, as roda podi se de chinelu ou di pedaçu di pau qui a genti prega
416
cum pregu. U boizinhu é di sementi di jatobá i a genti amarra a ganga cum barbanti ou imbira.
Tá prontu.” Os brinquedos industrializados, ou artesanais, podem ter vida curta, quando
inventados e produzidos pelas crianças em determinada brincadeira, mas também podem
durar várias gerações, quando transmitidos de pai para filho.
Pelas entrevistas e conversas informais, um dos brinquedos bastante citados foi a
confecção de carrinho de boi com sementes de jatobá e madeira. Esses brinquedos feitos pelas
crianças é um mediador da criança com o sistema cultural de Sambaíba, “com as propriedades
físicas e materiais dos objetos com as quais essa mesma sociedade se relaciona”, destarte esta
brincadeira possibilita a criação de um espaço imaginário onde crianças e, adultos com os
quais convivem, trocas simbólicas através da linguagem. (WAJSKOP, 2008)
As crianças do quilombo gostam muito de animais e com eles também brincam, além
de cuidar: os domésticos como periquitos, gatos, cachorros (em grande número), passarinhos,
mas brincam também com borboletas, grilos, joaninhas, besouros, libélula, formigas, bicho-
pau, louva-deus e vaga-lumes.
Uma reflexão se faz necessária, essas crianças são filhas de um momento histórico
importante e muito significativo para todos os quilombolas: o reconhecimento das
comunidades remanescentes e as incertezas sobre os direitos advindos dessa certificação. É
uma aprendizagem coletiva e simultânea, uma permuta de conhecimentos que, muitas vezes é
ensinado pelas crianças aos adultos, porque “sabem lê e lê os documento pra nóis” dizem.
Vivenciam, juntos, a nova designação que o território e seus sujeitos recebem e passam a
vivenciar uma nova relação com instancias governamentais e movimentos sociais, haja vista a
criação, em Sambaíba, de uma associação comunitária para terem o quilombo reconhecido.
Paralelamente à associação a preocupação em manter as tradições locais, cuidado com a
natureza e aprendizado com os guardiões da memória local, com a revitalização de cantorias,
418
Assim, a brincadeira da criança não é uma mera reprodução, mas recria novas
realidades em resposta às suas necessidades. É a infância, portanto, uma fase propícia para
esse desenvolvimento, não que ele cesse na idade adulta, pelo contrário é ainda mais forte,
mas o adulto não faz questão de exercitá-lo.
questão de escolha, cabe-lhes decidir em grupo o que é bom, ou ruim para determinada
brincadeira. São sempre elas que decidem e não um adulto que decide por elas. São agentes
protagonistas de suas histórias.
Também esta oficina teve a participação das crianças do Infantil I e II, 1º, 2º e 3º anos.
Fiz com os desenhos feitos pelas crianças uma composição das imagens. Tive o cuidado de
selecionar aquelas que traziam um elemento novo, uma informação diferente.
verso do desenho. Não fosse essa estratégia, é muito provável que não discerniria tantos
detalhes apenas o olhando para esses desenhos.
Em novembro de 2017, a mesma oficina foi realizada com os estudantes do 3º, 4º e 5º
anos, porém em vez de desenhos solicitei que escrevessem sobre Sambaíba o que gostavam e
o que não gostavam no lugar. Da mesma forma, selecionei, entre as redações das crianças,
aquelas que me trouxeram um elemento novo, que pudesse acrescentar às demais e juntas
possibilitarem uma visão conjunta das crianças sobre o seu lugar. A percepção das crianças
sobre o lugar e sobre si mesmas mudou, não é mais aquela de 2015.
Da escrita das crianças fica o amor pelo lugar, o respeito à natureza e a vida em
comunidade. A importância do conviver e cooperar. Elas escreveram que o Quilombo é um
425
lugar de alegria e muitas diversões, que aos domingos realizam um futebol muito animado e
que gostam muito de assistir. Explicam que produzem os próprios brinquedos e a respeito das
brincadeiras que mais gostam de participar. Falam da importância de brincar com os amigos.
Falam da importância de cuidar da natureza, porque ela dá os alimentos que comem, porque
muito do que alimentam é produzido em Sambaíba. Também sobre o mês de novembro,
período das águas, em que aproveitam para plantar. Enfatizam as atividades das mulheres no
quilombo que, além dos afazeres domésticos e cuidar das crianças, participam da produção de
alimentos. Enumeram as hortaliças, os legumes, as frutas e os cereais que consomem e
aqueles que produzem no próprio quilombo, além das frutas nativas e aquelas planadas nos
quintais. Dizem que gostam muito de suas famílias e que participar das atividades na lavoura
é muito bom, porque dela depende o sustento da família. Escrevem sobre os costumes e
tradições mesmo que não de forma explicita. Um deles lembra-se que o rio Jatobá corria
muito e que seus avós contavam da fartura de peixes, depois o rio secou. Dizem que no
quilombo dançam muito, cantam cantigas de roda, jogam capoeira e gostam de acompanhar o
reisado. As crianças reconhecem seu território, mostram suas identidades. Elas se apresentam
como sujeitos agentes de sua história.
Explicam sobre a importância de conversarem sobre a vida dos africanos na
comunidade. E também sobre ser quilombola: “Nos aqui na Sambaíba faze um monte de coisa
legal como brincar e plantar”. Falam sobre a importância da mata e do trabalho coletivo nas
plantações e na produção de farinha de mandioca. Que sentem orgulho de ser negro e de
pertencer à comunidade quilombola. As crianças depõem sobre suas identidades.
Mas um deles se lembra do tempo da escravidão, tempo em que os negros viviam na
senzala para se defenderem dos brancos e fugiam dos maus tratos pelas plantações, mas que
eram capturados pelos brancos que andavam a cavalo e os cativos fugiam a pé. E quando
eram pegos eram violentamente castigados. As crianças conhecem a história de seus
ancestrais.
Também versam sobre preconceito com eles e com a comunidade:
[...] porque ajente é negro e chegam algumas pessoas brancas e chinga nos de preto,
aí ajente fala bem asi se nos for negro nos temos orgulho de ser negro, branco é
papele e Branco não tem direito de nada como os Negros Tem. Hoje em dia-a-dia se
ajente tiver cabelo duro ninguém impor[ta] por que nos tem orgulho de ser negro.
(Cristina Oliveira,12 anos, 2017)
Elas têm consciência de que há racismo, que são discriminadas por serem negras e que
o preconceito as entristece. Mas, também, reconhecem que são felizes na comunidade e a
426
Corroboro com a afirmação de Boris Kossoy (2001), cada uma dessas imagens
registradas pelas crianças de seus colegas revela muito das identidades dessas crianças e seu
cotidiano no quilombo. Comparando-as percebemos que o sorriso é uma expressão presente e
marcante nos quilombolinhas. Mas também as expressões de força e de atitude. As crianças
brincam a sério em tudo que fazem, trabalham divertindo. Gostam de cores e as fotos revelam
esses prazeres da infância quilombola.
As imagens nos falam da importância do lugar. O território é para eles mais que um
pedaço de chão, é onde criam os animais, desenvolvem suas lavouras, retiram a água para
429
matar a sede, colhem frutos e interagem com outras pessoas. É também o lugar onde chegam
e de onde saem para estudar, para “se tratar” e para fazer a feira. Registram a planta verde da
caatinga, que a seca não consegue amarelar. O território envolve os quilombolas como uma
mãe a seus filhos, protegendo-os das adversidades e das investidas daqueles que não o
respeitam e não o têm como parte pertencente das identidades dos remanescentes.
Foto 61 - O território
existente, considerando que nessa comunidade não há pessoas de pele mais clara. Entretanto,
percebo que não faz(em) relação com minha cor de pele a maus tratos, seja físico, seja
psicológico, ou moral. Sinto-me acolhida por ser incorporada às imagens das pessoas do
quilombo, principalmente porque é uma família.
Foto 63 - A água
Foto 64 - O fogo
Foto 65 - O trabalho
Para interpretar uma imagem pode haver necessidade de comparar a outras, pois as
fotografias são suscetíveis a diferentes interpretações. Na interpretação, começamos a
enxergar coisas mais sutis e propor hipóteses sobre valores de alguns sinais. Nada é assim tão
evidente, já que tudo é muito subjetivo. Mas como esse tipo de fotografia foi um recorte de
um momento extraído da realidade vivida pelas crianças, é possível inferir que as crianças
conhecem as plantas do quilombo e para que servem. Registraram árvores frutíferas,
temperos, mas também plantas medicinais. Corroborando o que as professoras disseram que
as crianças conhecem as plantas que servem para fazer chá para aliviar de determinados males
das crianças.
433
O referente, coisa real a ser fotografada (homem, paisagem, animal), está ligado ao ato
que constitui o fazer ver uma imagem. Atrás da lente o fotógrafo observa e seleciona aquilo
que deseja registrar. É como dizer que toda a fotografia anuncia o seu sujeito. A fotografia,
como signo indicial, pressupõe (pensando o signo como a representação de algo gerador de
significados e o índice como a lógica do resquício deixado por algo) a existência material de
alguma coisa diante da câmera, derivando daí sentidos múltiplos. As imagens feitas pelas
crianças registram a relação que eles têm com seus animais. Os animais, mesmo para as
crianças não são tomados como bichinho de estimação, como nós os concebemos. São criados
com um fim específico, a vaca para o leite, o boi para o carro, o cavalo para o transporte de
pessoas e de cargas, o porco e a galinha para o alimento. Os cães para a vigília (há no
quilombo o costume de não alimentar os cães, que são soltos para que possam caçar o próprio
alimentos, como são muitos, os cães são muito magros e de dia ficam presos) e os gatos para a
caça de ratos. São, portanto, vistos pela perspectiva de sua utilidade.
434
Foto 67 - Animais
17).
A terceira questão importante a ser considerada, a apreensão dos significados,
conduziu-me ao interesse pelo modo como as crianças quilombolas produziam/produzem
sentidos para suas experiências, sejam quando brincam, seja quando trabalham, seja quando
participam do cotidiano no quilombo com os adulto, ou outras crianças, de modo a prepará-
las para a construção de suas identidades e, consequente, fortalecimento de sua alteridade.
Esses significados são construídos via interpretação de fatos, relações, viveres e experiências
compartidas no contexto quilombola e fora dele. Embora a pesquisadora não trate,
especificamente, de crianças quilombolas, afirmo com Ana Cristina Coll Delgado e Fernanda
Müller (2005) que as crianças criam significados em culturas de pares “[...] aprendem a
orientar-se por entre os sistemas de significados das suas culturas” e [...] operam em termos
de crenças, valores e quadros de referência partilhados com os quais interpretam a
experiência.” (DELGADO; MÜLLER, 2005, p.10) Nas trocas estabelecidas no quilombo
entre mim e as crianças, durante o exercício de ensinar/aprender recíproco, ficou patente uma
nova identidade construída tanto dos participantes, como da pesquisadora que dialoga com o
leitor. Assertiva que pode ser testada por meio da interpretação que acrianças passaram a fazer
sobre si mesmas e sobre mim.
Penso, com William Corsaro (2003, p.2), que consegui deixar registrado, por meio
desta descrição densa, o caminho percorrido que se deslocou de uma pesquisa sobre para uma
pesquisa com crianças.
439
138
Esta pesquisa não estaria completa se eu não investigasse essa passagem da escola no
quilombo para a escola nucleada e a relação dessas crianças com o novo espaço de
ensino/aprendizagem. Pensei que a melhor forma de fazer essa observação seria me
instalando, novamente, em Sambaíba e fazer o trajeto de ônibus escolar com os estudantes.
Assim fiz. Dona Bela me recebeu em sua casa com a alegria de sempre, já era noitinha
quando cheguei. Ela me esperava. Assustou-se com o peso que havia perdido. O costume em
Sambaíba era se aconchegar cedo à cama, pouco falamos, nos recolhemos para madrugar
antes do sol.
A manhã nem espreguiçava no horizonte. É cinco de dezembro de 2017. Em pé na
estrada aguardava o veículo, que não demorou a chegar. O ônibus era um retrato do descaso
com a educação no Brasil. Cadeiras quebradas e pichadas, assentos insuficientes para todos os
138
Ese ne tekrema - Simbologia Adinkra dos Axantes (Gana). Originou-se do provérbio: “Wonnwo ba ne se”. É
um lembrete da necessidade de fazer amizades, de compartilhar e também de que podemos melhorar e evoluir.
Evocam a necessidade da interdependência e da natureza complementar da humanidade. Os dentes e a língua
podem entrar em conflito, mas precisam trabalhar juntos. Nenhuma criança nasce com dentes eles vêm com a
evolução. (ZEIGER, 2015).
440
estudantes, pneu velho jogado ao fundo, pedaços de cano e um galão, que observo, trata-se de
um recipiente para reserva de combustível.
Acomodei-me num dos bancos situado no meio do ônibus, lugar estratégico para
observação. Alunas sentam umas nos colos das outras, mesmo tendo bancos vazios, um
conjunto de bancos parece ser reservado para duas amigas, porque neles estão registrados seus
nomes, ninguém senta naquele lugar. Os rapazes mais velhos se reúnem no fundo do ônibus,
viajam em pé. Amanhã haverá prova, alguns seguem estudando. Não sei como conseguem ler
com aqueles solavancos. São vinte e quatro quilômetros de estrada de chão que leva cinquenta
441
Pelo caminho o ônibus vai engolindo alunos que esperam pelo caminho. Nessa viagem
vão estudantes quilombolas e outros não. Começo a perceber a separação. Os alunos de
Sambaíba sentam juntos, os outros vão se acomodando ao lado dos outros recolhidos em
silêncio. Quando conversam com algum colega o fazem aos sussurros. Entram duas garotas
no meio do caminho. As meninas de Sambaíba as olham com hostilidade. No dia seguinte a
mesma coisa, pergunto a Daniele o porquê daquele tratamento. Ela me explica que as duas
sujaram o ônibus de propósito. Senti que as meninas têm o ônibus como um lugar delas e esse
comportamento lhes pareceu um desrespeito. Mas não pude confirmar se o motivo fora
mesmo aquele.
A maioria das conversas é paralela. As meninas mais animadas, duas ou três, transitam
pelo ônibus dialogando com os outros do quilombo. Os alunos “de fora”, como chamam, não
se comunicam vão e vêm em silêncio. Percebo que, sendo a maioria, as crianças do quilombo
dominam o espaço.
No percurso, desenvolvem várias atividades, poucos estudam, mas não se incomodam
com as conversas dos outros. Um toca berimbau. As garotas parecem mais maduras, embora o
tempo entre o quinto ano e a sexta série tenha sido de três meses. Os cabelos bem penteados,
alguns enfeitados com fitas, flores ou tiaras. Bocas coloridas de batom, algumas
individualidades no uniforme: um boton, um colete, uma blusa por cima da farda vão
442
Minha presença no meio dos quilombolas chama a atenção dos alunos de Caldeiras.
Olham-nos de cima a baixo. Percebo curiosidade (estranhamento?) com minha presença no
meio deles. Aproximo. Explico porque estou ali e pergunto se posso tirar uma foto. Aceitam
fazendo pose. Daliela inclui-se na foto. Assim que registro o momento, afasta-se,
acompanhando-me em direção à porta da escola.
Inicialmente, interpretei o fato de Daniela inserir-se na fotografia como uma atitude de
entrosamento, principalmente, porque sorria, aparentando estar feliz. Pensei, talvez não haja
rejeição, ou discriminação, dos estudantes de Caldeiras com relação aos estudantes de
443
Sambaíba. Mas seu comentário, quando nos afastamos, sugeriu a dimensão do que me
esperava dali para diante. “Lu, você trabalha com nóis do quilombo, ia sair na foto só as
menina de Caldeira”. Ficou claro que havia uma separação e confronto, de um lado “nóis do
quilombo”, de outro “as menina [os] de Caldeira[s]”. Naquele momento, seria prematuro fazer
qualquer firmação a respeito, mas hoje posso confirmar que, em sua comparação “eu sou
quilombola” e “elas são de Caldeiras”, ela se distingue das demais crianças e inclui os colegas
de Sambaíba num grupo de pertencimento. Essa identificação pela diferença lhe concede,
além das noções de identidade e pertencimento, uma ação de enfrentamento o e resistência.
casa. Penso que eles não têm tempo de tomar café em casa. Razão que explica a farofa, a
carne de sol com mandioca, o arroz com carne e salada de frutas. Resolvi estabelecer
aproximação pela comida. Cumprimento e ofereço parte do meu lanche, respondem e fazem o
mesmo. Sento para comer com eles e aproveito para explicar a minha visita à escola naquela
semana. Explico que farei o possível para não perturbar as atividades escolares e que só
entrarei na sala de aula do professor que me convidar a fazê-lo. O clima melhora. As
conversas começam sobre as crianças em geral. Contam coisas de casa e até sorriem.
A “confiança foi estabelecida”. Sou convidada primeiramente pela irmã da diretora, a
mesma professora que me convidou a adentrar a escola. Passei o dia revezando nas salas de
aula do sexto ano.
A esta pesquisa não me interessa analisar a metodologia, se a professora domina ou
não o conteúdo. Mas para refletir sobre as identidades das crianças quilombolas necessito
compreender a forma como a escola trata essas crianças. Após explicação todos os
professores sabem que estou ali para estudar as crianças de Sambaíba.
Talvez pensem que desejo saber de suas “competências e habilidades” e sobre
disciplina na escola. Mal adentram a sala de aula, começam a dizer que esses alunos não
aprendem, chegam sem saber ler, que não sabem como foram aprovados, que são desatentos e
que não respondem a questionamentos. E sem constrangimentos apontam com o dedo para
aqueles que consideram “mais fracos” segundo suas avaliações.
Os alunos se entreolham e abaixam a cabeça. Faz questão de explicar que, oralmente,
saem-se “até” bem, mas na prova escrita são um “fracasso”. Explica também que eles não
fazem e nem respondem perguntas e que sentam no fundo da sala para “brincar”. Observo que
um dos alunos senta-se na última carteira do canto e puxa a folha da janela para se esconder
atrás dela. Tudo isso antes de perguntar como estão, dizer um bom dia, ou começar o tema
que trabalhariam naquele dia. Minha presença mudou o comportamento dos professores? Para
melhor, ou pior? O tempo de uma semana seria difícil responder com precisão a esses
questionamentos não fosse os comentários dos alunos no ônibus sobre os quais falarei adiante.
445
mas por tudo aquilo que silencia”. Neste caso, podemos dizer que a escola pesquisada possui
um ritual pedagógico que silencia a diversidade das culturas de seus alunos, bem como de
suas comunidades de origem.
Quando a aula exigia trabalho em equipe, os alunos de Sambaíba compunham grupo
entre eles, porque segundo informação na primeira vez que a professora misturou as crianças,
as outras pediram à professora para sair, depois disso só fazem trabalhos juntos.
Numa turma o(a) professor(a) pergunta sobre a prova do livro e por que José não veio
a aula, se estaria doente. Os colegas explicam que ele não estava doente, mas que ele não teve
culpa, que o irmão rasgou o seu livro, razão pela qual não poderia fazer a prova. Segue-se um
sermão sobre a conservação do livro, a responsabilidade dos alunos, a reutilização do livro
por outra criança no ano seguinte. Para quem não conheceu o contexto em que o livro fora
rasgado, a atitude do(a) professor(a) foi necessária. Os alunos se calam, a prova segue seu
curso. No intervalo explico o motivo de o livro ter sido rasgado. José é irmão de Wilson, filho
do Sr. Joel, que sofre de esquizofrenia. Faz algum tempo que se recusa a tomar o remédio e
teve uma crise, na qual expulsou os pais da própria casa, quebrou muitos objetos e utensílios
do lar e entre os estragos, rasgou roupas e o livro do irmão. Os pais tiveram de construir outra
casa às pressas para acolher a família, o quilombo ajudou na construção. Ao saber do
ocorrido, fui convocada a fazer “alguma coisa”, porque José andava faltando muito.
A participação nas aulas de Educação Física é grande e os alunos se divertem bastante,
sempre formando o time com crianças de Sambaíba, não importa se menino ou menina.
Segundo informação do professor da matéria, os alunos não frequentam a direção, seja para
pedir, seja para reclamar. Em eventos realizados aqui, principalmente os meninos, ficam
escondidos no banheiro, no início do ano havia muita briga entre as crianças do quilombo e as
outras. Fala que depois dos jogos internos esse recolhimento dos meninos ao banheiro
diminuiu. Confirma o que observei: que os meninos gostam de participar das aulas, porque
praticar esporte é divertido para eles, principalmente futebol. Considera que as crianças de
Sambaíba têm muita velocidade e coordenação, além do interesse pelas aulas que ministra.
Acredita que elas ficam sempre em grupo para se fortalecerem. Esse foi o único professor no
qual percebi interesse pelas crianças, conversava com eles, incentivava, jogava com eles e os
ouvia.
Nas aulas de Educação Artística a participação deles também é grande, porque adoram
representar, dançar, desenhar, pintar, fazer maquetes e cantar. A professora me explica esses
gostos complementando ter sorte, porque os meninos gostam das atividades de suas aulas,
mas que ouve muita reclamação dos colegas pela falta de interesse e dificuldade dessas
447
crianças.
As professoras de todas as matérias informaram que as crianças quilombolas gostam
de fazer apresentações no dia da abolição da escravatura e na semana da consciência negra.
Não é complicado entender o porquê. Nessas apresentações falam do que conhecem,
representam a si mesmas e aos seus, de suas culturas e lutas. Mas também tentam mostrar,
conscientemente ou não, às outras crianças e professoras que são diferentes, que a sala de aula
é um espaço multicultural, em que a diversidade é positiva oportunizando aprendizagens mais
significativas.
A semana foi toda assim, nas diferentes aulas e turmas em que havia alunos de
Sambaíba. Alunos excluídos, enjeitados, tidos pelos docentes como fracassados, chegaram a
dizer que os alunos andam em grupos como bichos. Que não sabem escrever nada, que não
entendem o assunto, que são preguiçosos e lentos na aprendizagem.
Num levantamento feito sobre o progresso das crianças, na escola de Caldeiras,
constatei o que resumo no quadro a seguir.
Cleyton 2015 4º D
Daniela 2015 4º A
Darlene 2015 4º A
Ednon 2015 4º A
Irineu 2015 4º A
Marleu 2015 4º R
Samira 2015 4º A
Serena 2015 4º A
Matheus 2017 6º N
Ednon 2016 5º N
Irineu 2016 5º N
Samira 2016 5º N
Serena 2016 5º N
Beatriz 2016 5º N
Matheus 2016 5º N
Legenda:
C: Calendário anual
AE: Ano escolar
SE: Situação escolar do aluno
N: Novatos
R: Repetentes
D: Desistente
Observando o quadro, é possível perceber que de nove alunos que cursavam o quinto
ano em Sambaíba, quando iniciei esta pesquisa, apenas cinco deles ingressaram na escola
nucleada em 2016. Desses cinco, apenas dois foram aprovados para cursar o sétimo ano em
2017 quando a pesquisa foi encerrada. E dos doze alunos, frequentando o sexto ano em 2017,
nove são novatos. Se comparado o número de alunos que foram aprovados no quinto ano em
Sambaíba (2015) e aqueles que conseguiram, sem reprovação, chegar ao sétimo ano,
percebemos que menos de um quarto deles conseguiu prosseguir sem tropeços.
Não é a matemática que me importou discutir, mas o que levou/leva esses alunos a tão
altos níveis de repetência? Como essas crianças veem as outras crianças e como se relacionam
449
com elas na nova escola? Como se sentem em relação a eles mesmos, aos colegas e à escola?
Se há discriminação, como as crianças quilombolas a percebem?
Logo compreendi que a ideia de me deslocar com eles foi bastante producente à
pesquisa, aos poucos o ônibus foi transformado numa roda de conversa. Foi através desse
diálogo que pude compreender como as crianças se sentiam/sentem na escola de Caldeira.
Nossas conversas eram realizadas na metade do caminho. Na ida, entre Sambaíba e a coleta
da primeira criança fora do quilombo; na volta, o contrário, para que pudessem se sentir
seguros para comentarem as sensações/impressões que tinham da escola nucleada.
Sinceramente, não me surpreendi com a fala dos meninos e meninas, pois se
testemunhei várias situações de discriminação em apenas uma semana, dirá quando estão
apenas os professores e os alunos.
Infelizmente, os professores pensam que o racismo está na realidade norte-americana,
no nazismo e esteve no regime do Apartheid na África do Sul. Acreditam no mito da
democracia racial brasileira e não se dão conta de que compartem de “imperceptíveis”
atitudes racistas no cotidiano escolar. Nilma Lino Gomes (2005) escreve sobre esses conceitos
fulcrais para a compreensão das relações étnico-raciais em sala de aula:
Eles explicam que desde o começo as outras crianças afastavam-se deles, e “não fazia
grupo com a gente”. Quando havia aproximação, era para insultá-los, o que gerava muita
briga. “Nois é assim, mexeu com um, mexeu com todos” (Carlos, ainda está no 6º ano).
Questiono, quais eram tais insultos, e eles enumeram. Começo a imaginar o que seria ouvir
aqueles desaforos eivados de racismo e preconceito: “café azedo” “café amanhecido”,
“tostadinha” “queimadinha”, “Sambaíba só tem gente maluca”, “doidos”, “bicho de coco”,
“rola de poço”, “rola bosta”, “marruda”, “sujenta”, “pezão”, “pé lascado” “cabelo
desarrumado”, “boca ruída”, “fedô de mijo”, “ Subaquera”, “feia”, “porco”, “ analfabeto”,
“não tomam banho”, “fedem muito” , “Não sabem nada”, “Bicho de porco”, “bicho de pau”,
“negô da Sambaíba”, “não presta pra nada”, “feiosa”, “vão comer capim cambada de burro”,
“cabeluda”, “pretão dentuço”, “gente sem educação”, “nega caneluda”, “ farda suja”. Nem foi
necessário indagar mais expressões para compreender o quando eram discriminados pelos
colegas e o quanto era doloroso conviver, cotidianamente, com esses xingamentos
450
humilhantes.
Rita de Cássia Fazzi (2015) corrobora com meu pensamento, quando afirma que mais
importante que analisar como os agentes de socialização transmitem, por intermédio de suas
falas e ações, as noções raciais para as crianças é como “[...] a criança aciona e experimenta
essas noções em suas relações com outras crianças, e como aprende o que significa ser de uma
categoria racial ou de outra, criando e recriando o significado de raça.” (FAZZI, 2015, p.243)
As interações das crianças com seus pares são tão relevantes, quanto aquelas estabelecidas
entre elas e outros agentes socializadores.
Nesse sentido, a criança é um membro ativo da sociedade. Segundo Jucirema
Quinteiro e Carolina Spinelli (2015),
Com outras palavras, é um sujeito competente que pode testemunhar a sua história,
mas, embora as pesquisas tenham avançado nessa direção, ainda é relativamente pouco o
conhecimento sobre a infância, em especial, a infância negra. Uma pesquisa em qualquer das
universidades brasileiras pode revelar que o número de pesquisas com crianças quilombolas é
pouco significativo.
Não bastassem as agressões dos alunos de Caldeiras às crianças quilombolas, elas
vinham sempre acompanhadas da indiferença silenciosa (cúmplice) dos docentes, os próprios
profissionais da educação reforçam esse preconceito e discriminação, levando-me a pensar
como essas crianças são inferiorizadas nesse espaço e tentar compreender como resistem a
tanto racismo.
Continuam a narrar. Lembram-se do primeiro dia de aula, dizem como se sentiram
mal. Todas as crianças e professores “reparando em nóis da cabeça até o pé e olhando a nossa
roupa”. Disseram sentir como se estivessem pelados, com uma vergonha enorme, sem
entender direito do que sentiam vergonha. Falaram do olhar como era ruim ver aqueles olhos
dos colegas, que eles se sentiam tão incomodados que abaixavam a cabeça.
E as narrativas foram surgindo uma após outra. “Banheiro sujo, culpa de Sambaíba”.
“coisa quebrada, nós de Sambaíba”, “papel jogado no chão, turma de Sambaíba”. “se bufam
na sala, é menino porco de Sambaíba”. “Se a gente esbarrava em outro sem querer, gritavam:
tá chamando pra briga neguinho?”, “Eles falam que nóis gosta do mais educação só pra
comer, que nois é morto de fome” Dá para imaginar o sofrimentos dessas crianças, mas não
451
dá para sentir na pele, seria como descrever que alguém feriu o braço com água fervendo e
que saiu o couro, a gente imagina a dor, mas somente aquele que foi ferido é capaz de sentir a
dimensão. Numa força que lhes é própria, têm um discurso em comum: “Nóis é quilombola” e
“Fez com um, feiz com todos”. Se há uma coisa que as crianças de Sambaíba não são, nem
mesmo no Infantil I e II, é “engraçadinhas”, esse adjetivo não lhes cabe hora nenhuma, pois,
desde muito cedo, aprendem que a vida no quilombo é difícil e uma luta diária.
Pensar as crianças de Sambaíba na escola de Caldeiras é pensá-las, também, na
dimensão político-social e também econômica, pois o preconceito, a discriminação e o
racismo, aos quais essas crianças são submetidas, são ancorados pelo sistema neoliberal,
capitalista e eurocêntrico que sustenta uma hierarquização histórica entre os possuidores de
pele negra, quilombolas e pobre e de outro lado os brancos, com condições financeiras
melhores (pelo óbvio) e não pertencente a comunidades quilombolas. Por estas questões
pouco me surpreendem quando falam sobre os professores.
Desabafam que os professores não os defendem. Que tratam as crianças de Sambaíba
de forma diferente dos outros. Que mandam os meninos sentarem de forma grosseira, a frase
usada por eles foi: “dando coice na gente, mandando sentar como a gente manda cachorro”,
“Se enxerga menina”, “Chama a gente de mal educado”, “Vocês de Sambaíba agem igual à
criança, abestados", “Senta lá menina nojenta”, “Vocês são todo mundo burro”, “Não sabe
ficar de boca fechada? “ Aí a gente tapa a boca com a mão pra ela ver que não é nóis que tá
falando”, “A professora lê os bilhete da nossa mãe na frente de todo mundo, alto pra todo
mundo escuta”, “ Quase não dá licença pra gente toma água e ir no banheiro”. Reclamam que
os professores pedem para eles fazerem perguntas, mas “se perguntar, dá mosca, finge que
não escutou, e se a gente não entende a pergunta e pede pra repetir, nem liga, não repete, finge
que não escuta”. Quando não são totalmente invisibilizadas e silenciadas, essas crianças são
tratadas com desrespeito e agressões verbais, como se não lhes coubessem dar conta do
ensino-aprendizagem delas. Essa expressão não se refere apenas aos conteúdos obrigatórios,
mas a conteúdos referentes à história de África e dos descendentes afro-brasileiros suas
culturas, para que as crianças possam se sentir acolhidas e integradas à escola.
Luiz Alberto Gonçalves (1985) escreveu sobre o silenciamento da voz do negro na
instituição escolar, o qual é concebido como um ritual pedagógico 139. Para usar seus próprios
termos:
139
O silenciamento compreendido como um ritual pedagógico é construído no texto de Luiz Alberto Gonçalves,
tendo por esteio os teóricos Carlos Roberto Jamil Cury, Cornelius Castoriadis e Max Weber, num
entrelaçamento teórico muito bem cerzido entre: (CASTORIADIS, 1982, p. 142-143; CURY, 1979; WEBER,
1971, p. 17-18).
452
A história das lutas escravas e seus personagens vêm sendo negada na transmissão
do conhecimento escolar. Com isso, silencia-se a história da rebeldia dos grupos
étnico-raciais negros cujas consequências na educação das crianças negras são: o seu
silenciamento enquanto cidadão [...] O silêncio enquanto ritual pedagógico a favor
da discriminação racial só será rompido, quando a voz dos criminados se fizer ouvir
na escola por todos os agentes pedagógicos. Não há como democratizar a sociedade,
se o padrão de relações raciais no Brasil não passar por mudanças radicais. A
contribuição da escola neste processo está em transmitir o conteúdo do patrimônio
histórico cultural dos grupos étnico-raciais negros, de forma a que este venha a se
constituir em uma das disciplinas necessárias formação do cidadão brasileiro.
(GONÇALVES, 1985, p. 324-325)
140
Neste espaço de não silenciamento, preciso lembrar a voz de Marielle ecoando: Luto não, LUTA!
453
consequentemente, incluída. Assim como considerar as relações com as crianças com as quais
convive mais uma forma de aprendizagem e interação sociocultural. E não uma relação entre
superiores e inferiorizados pela diferença, marca identitária e não de exclusão.
Mas os meninos de Sambaíba não são inocentes como anjos. Longe disso. Numa rusga
no ônibus, fui surpreendida por ofensas mutuas entre os envolvidos: “rapariga”, “narigão”,
“Olha o nariz desse pivete”, “o negô feio”, “menino fedorento”, “tanajura preta”, “subaco
preto cabeludo”, “zoio remelento”, “cachaceiro” para citar algumas expressões usadas por
eles. Posso afirmar que fiquei mais chocada com essas ofensas do que aquelas proferidas
pelos colegas brancos, porque num país racista, como o nosso, a discriminação sofrida pelos
negros vem de brancos, pelo menos era nisso que eu acreditava. E perceber que as crianças
negras também tinham preconceito, aprendido é certo, nos ambientes racistas e
discriminadores, como a escola que frequentam, foi muito estressante para mim, porque na
minha compreensão o negro já sofre, principalmente os pequenos, tanto com os insultos e
discriminação dos brancos, que jamais deveriam ofender-se uns aos outros. Talvez a
convivência nesse ambiente inóspito tenha cristalizado uma imagem de que fora do quilombo
são mesmo inferiores e que aqueles mais fracos devem ser tratados de forma subalterna. Para
onde foi o fortalecimento da identidade e da autoestima conquistadas nos últimos tempos do
quilombo? Nas “afirmações” de algumas crianças no mesmo instante em que os xingamentos
aconteciam. Os interventores, também crianças, conseguiram calar os briguentos para lembrá-
los de que juntos são maiores, não é de si mesmos que têm de se defender, mas daqueles que
desejam inferiorizar para dominar.
Quando pensamos em identidades em construção é preciso considerar o quanto é
cambiante e complexa essa compreensão, principalmente quando nos referíamos a crianças.
Alguns pesquisadores, que levaram a termo essa discussão sobre construção da identidade de
crianças quilombolas, depararam-se com a mesma problemática. Cito a pesquisadora Elaine
de Paula (2014) na perspectiva do Sul:
Quem pesquisa a construção das identidades quilombolas se depara com essa situação
em que as crianças ora se aceitam (dentro do território), ora se rejeitam (quando confrontadas
por pessoa não quilombolas/ ou brancas dentro do quilombo) e são silenciadas fora do
quilombo (escola nucleada). A autoafirmação identitária passa pelas relações estabelecidas
dentro/fora do espaço simbólico/representativo para o quilombola: o território.
Compreendendo quem se é para quem se diz ser e qual a dimensão dessa autoafirmação. No
espaço do quilombo a criança sente-se pertencente e a sua história de vida a chancela como
tal. Quando é questionada por Outro sujeito sociocultural, estranho ao seu contexto, sua
autoconfiança é estremecida. Por quê? Porque “sabe” o que o Outro pensa e fala dela
inferiorizando-a. Esse lugar em que é colocada faz com que se destitua de sua aceitação e
passe a rejeitar o seu ser e estar no mundo. Essa mobilidade entre o ser e o não ser que é
transitória e faz parte da construção identitária passa, ainda, pelo silenciamento fora do
quilombo, onde a discriminação e preconceito tornam-se evidentes tal como ocorre na escola
nucleada. Como exemplificado anteriormente, levando meninos e meninas, a desferir ofensas
racistas contra os próprios pares.
Constatei que, no processo de construção das identidades desses pequenos, assim
como das demais pessoas da comunidade, as identidades são cambiantes; pois é ainda
bastante recente a percepção de que os quilombolas não são invisíveis, de que os negros
passaram a ser ouvidos, de que a conquista de todos os direitos constitucionais está mais
próxima, porque na totalidade apenas uma pequena elite tem garantia de fato. No que
concerne à criança, a identidade se apresentam em metamorfose, porque não estão isentas de
serem afetadas pelos contextos e pelo tempo. Vale dizer que nem são hoje como foram na
geração passada, tampouco serão iguais à geração futura. Assim como a infância não
permanecem inalteradas pelo tempo, também não o é com relação ao contexto, num
determinado espaço-histórico cultural são e agem de determinada forma e em outro lugar de
forma diferente, embora apresentem similaridades comuns a toda infância. Não obstante
estarem, provisoriamente, nesta etapa da vida, as crianças afirmam a sua identidade: “Nóis
456
[...] trazer para o campo do conhecimento a produção da infância como lugar onde
há agenciamentos infantis que dialogam com um território que não consta no
discurso hegemônico. Uma infância entre as muitas existentes no mundo, que
mostram as formas de ser criança na contemporaneidade. (SOUZA, 2015, p. 232)
141
Em campo. Perplexa. Como uma imagem borrada no espelho não me via, do outro
lado, refletida. Nem eu e nem a menina de cabelos longos cacheados que adormecera. Num
entre lugar perdida no cronograma do tempo. Linear? Quem dera. Em busca do tempo
perdido? Fragmentada em Proust, lá estava. Fazendo dos gritos meninos as minhas
madeleines. Que a lembrança auditiva involuntária, soterrada sob camadas de esquecimento e
indiferença faz ressurgir. Porta de acesso a riquezas insuspeitáveis quando tudo parece não
subsistir. Pessoas amadas cobertas por flores há muito partidas. Resistem. Cobertos em névoa
os sons, os sabores, os aromas, as imagens e os toques na pele. Os sentidos, mais que cinco,
141
“Hwe Mu Dua” é nossa régua Adinkra, símbolo Akan de Gana e Gyaman da Costa do Marfim, salienta a
necessidade de se esforçar para obter a melhor qualidade, seja na produção de mercadorias ou em esforços
humanos. Na rotina do dia a dia acabamos esquecendo que não somos os únicos que estão passando
necessidades. Podemos estar olhando para os humanos, mas deixamos de enxergar o outro como um ser como
igual, que tem medos, amores e ambições. Este símbolo nos faz lembrar não apenas o que é melhor para nós,
mas para os outros também. (ZEIGER, 2007b).
458
não didática, polifônica e não linear; fragmentária e inconclusiva, nesse sentido me aproximei
do autor, não porque formados na/pela literatura, mas por ele haver estudado a cultura sem ser
antropólogo, aventurar-se na história da literatura sem ser historiador, fazer de seu caderno de
campo uma mescla da vida pessoal com reflexões poéticas e, ao recusar o método tradicional
de pesquisa da academia alem㸠rechaçou também o espírito de síntese ou de sistema.
Resguardadas as devidas proporções, assim como o pesquisador alemão, sou uma
pesquisadora “itinerante” e ousada. Esta escrita não é uma busca de reflexão interdisciplinar,
ou uma troca entre proprietários de territórios científicos, mas há uma perspectiva de fusão
dos saberes, sem hierarquização/justaposição de nenhum deles. Sem me afastar das ciências
Sociais, aproximo das humanas, ao questionar os limites rígidos da racionalidade técnica,
preconizando um tipo de conhecimento que inclui paixões e utopias indispensáveis à vida. Ao
recorrer a imagens, metáforas, aforismos, alegorias e citações, construo uma visão de mundo
distanciada daquela preconizada pelo pensamento sistemático da academia, em contrapartida
numa concepção que amplia as possibilidades da razão, deslocando-se e se refazendo nas
inflexões da linguagem.
Trata-se de uma “inconclusão”, de uma auto avaliação e autocrítica de um momento
rico de descoberta e de desejos. Foi preciso desconstruir para construir. Não que algo inédito,
devesse, necessariamente, surgir incólume. Mas romper com situações cristalizadas, por meio
de uma crítica séria que leve à reflexão e ação (práxis). Propus-me no objetivo geral:
compreender como as narrativas e atividades intra e extraescolares contribuem para a
construção da(s) identidade(s) das crianças, buscando ampliar o conhecimento das diversas
expressões das culturas construídas no território do Quilombo de Sambaíba, em Caetité-
Bahia. Esse objetivo se desmembrou em vários outros que me possibilitaram ter uma
compreensão ampliada e profunda do problema em questão.
Uma de minhas maiores preocupações foi a de realizar uma pesquisa com crianças,
elas atuando como protagonistas de sua história, agenciando suas atividades, fossem elas no
estudo, no trabalho, ou em momentos de lazer. Numa evidente postura historicamente
hierarquizada, de que o adulto sabe mais que a criança, contaminada que sou pelo
“adultocentrismo”, confesso, não poucas vezes imiscui na escrita, apropriando do discurso
pertencente a elas. Reconhecer o erro, mesmo que o tempo tenha engolido o reparo é o
primeiro passo para um saber que transcende as vaidades acadêmicas que eu prezo não
absorver. Precisei de me submeter a um controle permanente para não lhes usurpar de todo o
direito de voz, voz que lhes são singulares: infância quilombola. Desde o início, quis que
fosse uma pesquisa com crianças e não sobre elas, razão pela qual foi necessário me
460
autocriticar por haver, em alguns momentos, ido de encontro ao meu próprio intento.
No Sertão Produtivo, há apenas uma escola que trabalha, segundo as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, a escola do
Quilombo Santo Inácio, com a qual mantenho relações significativas. No município de
Caetité, como informei anteriormente, apenas Sambaíba tem uma escola no seu território, mas
em nada se diferencia das demais escolas do município, portanto trabalhei com os alunos de
uma escola no quilombo e não uma escola do quilombo.
Desde agosto de 2015 que busquei observar, escutar e descrever as atividades
escolares das crianças e também suas ações em seus momentos de lazer, atenta às interações
estabelecidas entre as crianças e delas com os adultos, tanto no cotidiano escolar das duas
escolas, como nos espaços livres. Assim como os modos como as escolas, através de seus
educadores e de seus projetos político-pedagógicos, relacionam-se com as crianças
quilombolas.
Adiantei algumas reflexões necessárias para pensar a construção das identidades das
crianças quilombolas a partir da representação que elas têm de si mesmas (educação na
comunidade, na família, na escola quilombola) e nas interações que estabelecem na escola
fora do quilombo. Procurei desvelar o universo dos usos e costumes ali presentes, a dinâmica
de criação e recriação das culturas afro-brasileiras, constatando a influência das brincadeiras,
do trabalho, das preparações de comemorações (casamento, nascimento, datas comemorativas
na escola) e festas religiosas e profanas como formadoras de identidades das crianças
quilombolas
Logo de início, percebi que discutir questões etnicorraciais e diversidade cultural
dentro das escolas é um grande desafio para nós, pesquisadores, principalmente, porque a
escola tem sido, indiferente, na maior parte das vezes, uma instituição conservadora e silente
que não admite a heterogeneidade, a diversidade, seja ela étnico-racial, ou tantos outros
marcadores de pertença. Ainda respaldada pelo mito da democracia racial, apregoa que não
existe discriminação em seu meio e trata a todos de forma igual. Sem entender que é
exatamente o oposto, é preciso tratar a cada um de forma diferenciada, respeitando suas
especificidades, necessidades e direitos para que conquiste a equidade. Ela deve ser um
espaço de diálogo, de negociações, de trocas, um espaço favorável para a construção das
identidades das crianças de forma positiva.
Ao examinar as diferenças e similitudes nas relações estabelecidas na escola no
quilombo e a escola nucleada, os resultados indicaram as diferentes e variadas formas pelas
quais a discriminação racial se manifesta, seja através das informações repassadas pelos
461
docentes, seja da forma como tratam seus alunos quilombolas, seja ainda, nos “rituais
pedagógicos”. Entre estes, ressalta-se o silêncio dos educadores diante de ações
discriminatórias contra as crianças negras. A indiferença e o silêncio apresentaram-se como os
maiores marcadores de discriminação e as atitudes que mais afetam as crianças
negativamente, mais até que os adjetivos preconceituosos e desrespeitosos ditos em alto som.
Compreendi os sentidos/significações oportunizados pelas narrativas das crianças e
também dos adultos com os quais se relacionam. Constatei que não se tratava de compreender
o conceito de identidade, mas de identidades, principalmente, quando investigamos relações
infantis quilombolas. Paulatinamente, fui entendendo como se constrói essas identidades na
infância de Sambaíba nos processos de interação escola/comunidade/crianças do/no
quilombo. Interpretar as atividades realizadas nas oficinas, assim como as narrativas e as
fotografias por elas registradas foi elucidativo para a compreensão do ser criança quilombola.
Entendi que o adjetivo quilombola, agregado ao substantivo negro, tem um peso ainda
maior sobre essas crianças. Ignorantes do tema e influenciados por uma sociedade branca,
eurocêntrica, marcadamente racista, as crianças e adultos, com os quais as crianças se
relacionam fora de Sambaíba, monstraram intolerância com relação ao “ser quilombola”. As
expressões utilizadas para se referirem, ou mesmo dirigidas a eles, os inferiorizam, como se o
quilombola fosse alguém desprovido de higiene, sem educação, incapaz de aprender, com
problemas de saúde, principalmente, associados à demência. São tantas as agressões, que fica
difícil entender como essas crianças suportam. Elas são resistentes, são duronas, ficam
ressentidas, mas não quedam, resistem como podem: ora caladas, ora encarando; ora se
escondendo, ora lutando, ora se expressando por meio de imagens e outros textos. A forma de
resistência que mais os fortalece é viver em grupo “Mexe com um, mexe com todos”, dizem
sempre. Essa união em prol de um objetivo comum é singular àqueles quilombolas, tem raízes
históricas e sociais nos quilombos coloniais e é prática frequente nas comunidades
contemporânea, tema exaustivamente tratado nos capítulos desta tese.
Ao fim, o que significa quilombo para mim? Despida de (pré)conceitos de que
comunidades quilombolas são grupos passivos, isolados, formados apenas para preservação
da tradição de seus antepassados, compreendo a comunidade quilombola, hoje, como uma
organização social, econômica e política que tem por suporte a solidariedade, composta por
atores que são protagonistas de sua história. A troca está intrinsecamente ligada à vida social
do grupo e revela diferenças nas relações interpessoais, resultando formas peculiares de se
relacionar com a propriedade e a economia, se de um lado há alguém digno de receber algo;
de outro, todos estão em posição doar. O que leva à união do grupo na defesa de seus direitos
462
mediadores dessa aprendizagem das crianças. Mas as escolas, alheias a esses saberes, não
conseguem construir cognitivamente esses conhecimentos, de forma a promover uma
barganha entre aprendizado escolar e cultura local, conhecimento que extrapola o conteúdo
instituído e fortalece os vínculos entre a comunidade e a escola.
Demonstrei a importância da construção das identidades na autoafirmação da criança
quilombola como forma de enfrentamento de situações discriminatórias impostas pela
mudança de escola. Entretanto, é preciso considerar que essa autoafirmação é dolorosa e
cambiante entre “o ser e o não ser” dependendo do lugar em que as crianças estejam e com
quem se relacionam a identidade é mais, ou menos, evidente.
Por esta razão, tive bastante cuidado ao analisar o que me foi dito, pois é bastante
complexo compreender o Outro em sua subjetividade, historicidade e cultura, ouvindo de um
lugar que não é o dele com culturas outras. Nesse sentido, foi necessário despir-me de pré-
conceitos, aprofundar conhecimentos, analisar depoimentos e cruzar informações, pois tudo
que nesta tese está escrito sobre as crianças nasceu da observação cuidadosa e da escuta
permanete.
Constatei que a ausência de uma educação quilombola, dentro do território,
estruturada física e pedagogicamente para este fim, torna muito difícil a educação
institucionalizada dessas crianças, que não se veem representadas e respeitadas em seus
saberes e fazeres. Tampouco há um currículo que articule a educação escolar formal com o
saber local, o que, provavelmente, elevaria a qualidade da aprendizagem dessas crianças,
porque, partindo do conhecido, a compreensão do novo torna-se mais fácil.
Com relação à escola nucleada, não existe interesse por parte dos profissionais em
conhecer o quilombo e a escola no quilombo, experiência que proporcionaria, sem dúvida,
oportunidade de conhecimento e aproximação entre as culturas e, consequentemente,
aproximação entre as crianças de Caleiras e Sambaíba, minimizando o preconceito e a
discriminação gerados pela ignorância do Outro e seus saberes/fazeres. Este é um debate que
precisa ser fomentado em todas as escolas nucleadas, ou não, que recebem crianças e jovens
quilombolas.
Entre este e outros desafios atuais, encontra-se a formação profissional para esse fim
específico, qual seja trabalhar em escolas quilombolas. Tenho conhecimento de que são raras
as formações docentes para trabalhar com questões étnico-raciais, mesmo assim, quando
ocorre é em nível superior, ou de pós-graduação, como ocorre agora em universidades na
Bahia, em particular na UNEB que criou, recentemente, curso graduação na área. Mas estes
profissionais, dificilmente, aceitam atuar em comunidades de remanescentes, seja em razão da
465
distância, seja pela falta de recursos tecnológicos nos territórios. Penso que a solução seria
proporcionar oportunidades para que os próprios remanescentes se tornassem professores na
comunidade, com formação qualificada.
Os profissionais da escola necessitam tomar conhecimento das demandas, lutas e
conquistas do MNU, porque a inclusão da temática racial nas escolas e a sua inclusão no
currículo deve muito à atuação deste movimento. Essa inclusão social dependerá, ainda, de
muita luta do movimento negro e quilombola para fazer valer a lei, melhor, colocá-la em
prática. Entre tantos desafios, creio, o maior deles é os profissionais compreenderem que
numa educação quilombola é necessário primeiro aprender para depois ensinar, em primeiro
lugar sobre a história e luta dos negros e depois sobre os saberes e práticas locais. E os
educadores, tanto aqueles que ensinam em Sambaíba, como aqueles que ensinam em
Caldeiras, não foram formados para esse fim, não aprenderam a trabalhar com crianças
quilombolas, e não se interessam sobre a questão, por esta razão, não se articulam para que a
cultura escolarizada se concretize com respeito à diversidade, procurando compreender que o
espaço institucionalizado é multicultural, que o contato com outras culturas enriquece o saber,
exercitando a crítica sobre materiais didático/pedagógicos distribuídos, os quais não
possibilitam a inclusão dos sujeitos do/no processo.
Esta pesquisa possibilitou-me entender que a luta do negro pela educação é real e
constante. Que muito se tem discutido nos últimos anos sobre as relações etnicorraciais como
forma de combater o preconceito. Mas, constatei, também, que ainda é longo o caminho que
precisa ser percorrido e se fazem necessárias mais pesquisas em todas as áreas do
conhecimento para que o negro, em especial a criança negra, saia da invisibilidade e do
silêncio e passem a protagonizar a sua história, a nossa história, para a (re)construção de um
país pluricultural e pluriétnico.
Conclui também que as crianças negras quilombolas vivenciam o preconceito racial e
a discriminação pela cor da pele e pelo lugar de origem. A indiferença e silenciamento por
que passam é uma forma muito dolorosa de preconceito, talvez doa muito mais que a chibata,
porque invisível, porque institucionalizada, por ser uma ação contra CRIANÇAS, porque
estamos no século XXI, o século das grandes descobertas nas ciências e do distanciamento da
humanização. Ciência e humanidade necessitam caminhar lado a lado.
Iniciei esta tese pensando em reparação, minha responsabilidade, como branca, de
lutar ao lado dos negros, buscando justiça social pela vergonha das ações praticadas por meus
antepassados, pelas injustiças e violências causadas aos outros em nome de um processo
civilizatório amparado no capitalismo. Sempre li a nossa história de desonra com tristeza e
466
revolta, e a solução que via era a luta pela reparação ao lado dos injustiçados. Por esta razão,
em diferentes momentos desta tese falo sobre reparação das injustiças contra os negros. Mas
seria mesmo reparar anos de exclusão e de injúria, de violência física, social e humana?
Percebo, ao fim e ao cabo, que não se trata de reparação (recompor, restaurar, remendar,
compor, refazer, consertar, arranjar, reformar). Não! Não podemos mudar o passado,
eliminando dele as injustiças, as exclusões, a violência, as humilhações, a tentativa de
exterminação da cultura africana e tantas outras injurias. Isto é irreparável. Não se recupera o
tempo para desfazer as injustiças e re(construir) eliminando o acontecido, como se nunca
houvesse existido. Reparação é muito pouco.
Como inspiração para novos debates, sugiro uma educação interdisciplinar e
multicultural destinada à formação de educadores para atuação de/para/com as crianças e pré-
adolescentes quilombolas, e não quilombolas, a fim de que, preparados, os professores
possam atuar de forma a respeitar e valorizar a heterogeneidade e diversidade na prática social
e educativa.
O que, penso, podemos fazer aqui e agora, em respeito à luta dos ancestrais negros,
fazer valer suas ideias e seus sonhos de conquistas. Construir o presente por outras vias, a via
da humanidade, da diversidade, das culturas, da compreensão e da alteridade, buscar uma
cidadania justa para todos.
Não é tempo de discutir as injustiças vividas pelos antepassados senão numa
bibliografia que conte a história pela perspectiva do colonizado para que as nossas crianças
conheçam a história pela perspectiva dos explorados, porque elas têm direito de saber.
Entendo que o presente exige uma postura não de reparação, pois para a barbárie cometida
não há conserto. O tempo pretérito é recuperável somente pela memória e esta memória pode
servir de alerta para que não ocorra novamente racismo, injustiças e perjúrios.
O agora exige compromisso e luta em prol da libertação de uma escravidão, que ainda
bafeja fortemente em nossa sociedade. Os brancos desejam perpetuar uma superioridade
cultivada por séculos e inculcada na memória como inquestionável, que lhes concede
benefícios e propicia vantagens. Travestidos de inteligência proeminente, ocupam cargos mais
altos com salários superiores, enquanto aos negros são destinadas ocupações menos
gratificantes com salários bem menores.
Homens, mulheres e crianças são cotidianamente humilhados, invisibilizadas,
silenciados e discriminados em nome da posição social conquistada pelo branco por acreditar
que pode mais, que merece mais, pois assim foram ensinados a ser.
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Iniciei esta tese me autoconhecendo, depois percorri um longo caminho para conhecer
o Outro, sua cultura e identidade. Quem sou na chegada, como pessoa e profissional?
Ninguém sai indene de uma viagem como esta. Somos, em grande parte, resultado das
relações que estabelecemos em nossas vidas. Existe sempre a relação de causa/efeito entre as
pessoas. Estes efeitos podem ser para melhor ou para pior, para uma das partes ou para as
duas. Mas quando uma das partes é considerada significativa, os feitos são especialmente
marcantes. Constatei que nem sempre aquele mais considerado socialmente, desempenha
maior influência sobre a outra parte. O resultado do encontro depende da disponibilidade de
uma parte abrir-se mais, ou menos, ao conhecimento da outra e, assim, deixando-se
influenciar mais, ou menos. Os ingredientes da relação podem ser de disponibilidade em
conhecer, respeito à cultura do Outro e estar disposto a se surpreender com o novo. Essas
habilidades, apesar de caracterizarem a etnografia são, parece-me, básicas para todo encontro
entre duas culturas diferentes, são elas que determinam a qualidade desse encontro.
Respondendo a pergunta: sou uma pessoa melhor, mais social, mais generosa e solidária,
aprendi a COM -VIVER. O coletivo tornou-se o pilar mais resistente de minha vida e é por
essa perspectiva que doravante me oriento. Como profissional, percebi o quanto precisamos
amadurecer e abrir a reflexões críticas, nossos discursos estão bastante distantes das
realidades que nos circundam. É preciso reconhecer e fazer diferente. Pertenço a um
Departamento, como já mencionado, de formadores docentes, e nosso compromisso com
esses futuros professores tem de ser direcionado à formação mais crítica, prepará-los para
lidarem de forma consciente com a diversidade, para que possam trabalhar com as minorias
cientes de seu fazer docente. Lembrar que essa luta deve ser uma constante para que não
sejamos, pela indiferença, ou pouco caso, conivente com o status quo instituído pelos
poderosos em nosso país.
Numa visão mais ampliada, o racismo, o preconceito e a discriminação, enfrentados
por crianças negras, passaram a ser tema de pesquisas nos últimos anos, algumas delas citadas
no corpo deste texto. Embora um número, ainda, pequeno começou a dar o devido valor a
essa parcela da população invilibilizada também pela academia.
Diferentemente do que o senso comum difunde a(s) identidade(s) não se explica(m),
naturalmente, segundo caracteres físicos, como o tipo de cabelo, a cor da pele, ou do formato
do nariz. Esses traços fenotípicos, considerados como fator de identificação de determinados
grupos, passam, necessariamente, por interpretações socioculturais que criam, de modo
simbólico, a identidade daquele grupo. Inicialmente, levados a crer na imagem que os outros
criam delas, muitas vezes as crianças demonstraram, nas oficinas realizadas, identificação
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com imagens aceitas como belas (crianças brancas = boas e bonitas e mulheres loiras de olhos
claros como estereótipo de beleza), ou que a sociedade “sentencia” como profissão que
determina ascensão social para meninos/homens negros; jogador de futebol, ou cantor de
pagode. Fora desse lugar, preconcebido por uma elite racista, os demais não “conseguem”, ou
“não podem”, sair do lugar que essa elite branca os colocou após a abolição, o de
subalternidade: empregadas domésticas, porteiros e motoristas, lavadores de carro, garçons,
entre outras profissões dignas, porém inferiorizadas. Ou pior, correlacionados à bandidagem,
à feiura, à maldade, entre outros. Assim, a criança sabendo-se boa, faz uma correlação entre a
imagem que tem de si e a imagem de bondade construída socialmente. Facilmente perceptível
na oficina de bonecas em que meninos e meninas fizeram suas escolhas baseadas nesse
critério estabelecido.
Esta não é uma luta de negros, é uma luta de pessoas que não comungam com injustiça
social. Assim como os negros não têm domínio sobre a cor da pele, da textura do cabelo do
formato do nariz, nós não temos controle sobre a cor de nossa pele, dos olhos azuis/verdes
com que olhamos. Entretanto, temos controle sobre nossas ações e nosso caráter. Índios,
pretos e brancos, miscigenamos este país, tornando-o plural, mas, profundamente desigual.
Portanto, cabe-nos lutar para que tenhamos as mesmas oportunidades e direitos. Não dá para
construir um futuro que propicie vantagem de uma etnia sobre outra, principalmente, num
país como o nosso fenotipicamente misturado. Que o passado nos sirva de exemplo sobre
aquilo que não é justo nem certo repetir, não lutamos para substituir a desigualdade mudando
a cor da pele dos privilegiados e daqueles que serão subjugados. Mas lutamos por equidade
entre as pessoas de todas as aparências, porque o físico, no fim das contas, não deve ser
indicativo de privilégios ou exclusões, de sucesso, ou fracasso, de felicidade, ou tristeza.
(R)existência sempre. As crianças quilombolas existem, são e estão. Para além da
cultura de pares, os quilombolinhas são nosso patrimônio cultural.
Reparação só se for em partes. REPARA! é AÇÃO do que precisamos, com coragem
e determinação no enfrentamento das injustiças sociais. Mesmo parecendo usar um bordão: as
crianças são o nosso futuro e é nelas que precisamos investir, cabe a nós, professores, a
responsabilidade de lhes proporcionar condições para que tornem cidadãos melhores,
conscientes, respeitosos, solidários, compreensivos e justos para si mesmos e para o mundo.
Este deve ser o nosso emprenho: desconstruir este discurso/postura racista e preconceituosa
arraigada há séculos na cabeça de nossas crianças. É hoje, nem ontem nem amanhã, que a luta
exige o compromisso de ação. Não para apagar aquilo que os ancestrais conquistaram, mas
para, inspirados em sua coragem, não desistir nunca e resistir sempre. DESSA
469
Voltei!
Muitas novas vezes,
Pois que,
A gente é, ou não é?
Território de pertença.
Se... identificou,
Fica.
Ora, pois,
Criou raiz.
471
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ZOLA, Émile. Germinal. Tradução de Francisco Bittencourt. São Paulo: Abril Cultural,
1972. (Coleção os Imortais da literatura Mundial).
509
Luciete Bastos
Profª Assistente e Pesquisadora da UNEB
510
É de conhecimento dessa Secretaria que venho desenvolvendo, há quatro anos, uma pesquisa
etnográfica com as crianças de Sambaíba para as instituições de Ensino Superior UNEB/PUC Minas.
Com a mudança da administração municipal em 2017, houve mudanças na equipe de trabalho.
Por esta razão, venho comunicar aos novos gestores: secretária, coordenadora da Escola 25 de
Dezembro e diretora da Escola Municipal Profª. Emiliana Nogueira Pita (locus continuativo da
pesquisa) que estarei concluindo a coleta de dados com as crianças participantes da pesquisa esta
semana a partir do dia cinco até sexta feira, dia oito, tanto no trajeto Sambaíba/ Caldeiras (transporte
escolar), como na escola do Distrito.
Para tanto, no início dos trabalhos solicitei , respeitando a ética na pesquisa, autorização para
fazê-lo nesses espaços. Para coleta de dados, usarei os procedimentos teórico-metodológicos da
etnografia: observar, ouvir, escrever (entrevistas, roda de conversa, conversa individual), utilizando os
instrumentos necessários como, por exemplo, gravador, caderno de campo, máquina fotográfica).
Quanto às fotografias e às gravações, só serão realizadas com suas autorizações prévias das
pessoas envolvidas.
Há algum tempo aguardava a liberação da direção escola do distrito para realizar a coleta de
dados, porque minha intenção sempre foi a de não alterar a programação da escola, mas infelizmente,
estamos a duas semanas do término das aulas e a conclusão de minha pesquisa está marcada para o
final de fevereiro de 2018, portanto está descartada a hipótese de adiar para o próximo ano letivo.
Feitas as considerações, solicito dessa secretaria que comunique, por gentileza, a coordenação
e os diretores das escolas envolvidas na pesquisa, para que minha chegada não os surpreenda e crie um
mal estar desnecessário.
Na certeza de poder contar com sua colaboração, subscrevo.
Ubuntu,
Luciete Bastos
Profª Assistente e Pesquisadora da UNEB
511
Prezada coordenadora:
Vimos pelo presente solicitar de Vossa Senhoria que encaminhe ao setor competente
nossa reivindicação, descrita num pequeno projeto anexo, para que possamos realizá-lo o
mais breve possível, considerando-se a sua importância não apenas para comunidade de
origem, mas para a cultura de modo geral. As apresentações são realizadas do dia 20 de
dezembro ao dia 06 de janeiro, daí a urgência numa resposta, que esperamos, seja positiva.
Salientamos que toda a contribuição será bem-vinda, mas sem os instrumentos o grupo
não tem como voltar a se apresentar, desde já agradecemos o apoio, fundamental para o
sucesso da nossa causa.
Atenciosamente,
Esperamos, com nossos esforços e a ajuda da empresa, revigorar o reis de Nossa Senhora
Aparecida na Sambaíba para que não se perca essa manifestação cultural, bem como as crianças
possam aprender, com os avós, uma prática secular de render reverências aos Santos Católicos e
alegrar a comunidade.
PESQUISA EM SAMBAÍBA
NOME DA CRIANÇA
Idade
Sexo
Série
Irmãos(as)
Nome:
Idade
Sexo
Série
Não estuda
PAI
Nome
Idade
Sabe ler e escrever? Assina o nome?
Tipo de trabalho:
Aqui ou fora?
Brinquedos, festas e causos da infância:
MÃE
Nome
Idade
Sabe ler e escrever? Assina o nome?
Grau de parentesco com o marido
Prima:
1º ou 2º grau:
Tipo de trabalho:
Aqui ou fora?
Brinquedos, festas e causos da infância:
Aqui ou fora?
Brinquedos, festas e causos da infância:
AVÓ PATERNA (viva ou morta)
Nome
Idade
Grau de parentesco com o marido
Prima:
1º ou 2º grau:
Sabe ler e escrever? Assina o nome?
Tipo de trabalho:
Aqui ou fora?
Brinquedos, festas e causos da infância:
AVÔ MATERNO(vivo ou morto)
Nome
Idade
Sabe ler e escrever? Assina o nome?
AVÓ MATERNA (viva ou morta)
Nome
Idade
Grau de parentesco com o marido
Prima:
1º ou 2º grau:
Sabe ler e escrever? Assina o nome?
Tipo de trabalho:
Aqui ou fora?
Brinquedos, festas e causos da infância:
BISAVÓ PATERNA (viva ou morta)
Nome
Idade
Grau de parentesco com o marido
Prima:
1º ou 2º grau:
Tipo de trabalho:
Aqui ou fora?
516
_____________________________________
Assinatura do(a) responsável pelo menor
518
_____________________________________
Assinatura do(a) pesquisador(a)
Em caso de dúvidas com respeito aos aspectos éticos deste estudo, você poderá consultar:
TERMO DE CONSENTIMENTO
N.º Registro CEP:
Meu nome é Luciete de Cássia Souza Lima Bastos, aluna do doutorado do Curso de
Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-
Minas, Coração Eucarístico, Belo Horizonte/MG, meu trabalho é pesquisar a construção das
identidades das crianças da Escola 15 de Dezembro, Quilombo Sambaíba, Distrito Caldeiras,
município de Caetité-Bahia. Desejo compreender como as narrativas contribuem para a
construção da(s) identidade(s) dessas crianças e se a construção da identidade de forma
positiva contribui para que essas crianças sintam-se fortalecidas, de modo a interagir com
outras crianças, fora da comunidade de Sambaíba, mais confiantes.
A pesquisa envolve a observação das crianças, a participação em oficinas, suas
brincadeiras, suas conversas, análise de seus desenhos e de fotografias por elas e por mim
tiradas. Ademais o estudo envolve a obtenção de dados através de documentos da associação,
assim como de depoimentos orais (dos adultos) acerca da infância vivida.
A sua participação de todos voluntária e muito importante, além disso, em qualquer
momento da pesquisa o participante será sempre esclarecido (a) sobre qualquer dúvida que
venha a ter. E estará livre, a qualquer momento para desistir de participar ou continuar, assim
como se recusar a responder a uma pergunta, ou a não participar de um procedimento, mas
participar do outro.
Todos os procedimentos que iremos realizar são seguros, no entanto, o senhor deve se
sentir à vontade para nos chamar a qualquer momento e falar sobre suas preocupações ou
dúvidas da comunidade.
Acreditamos que a pesquisa traga benefícios a todos no que se refere à autoestima e ao
fortalecimento da identidade quilombola. Esse estudo pode, ainda, contribuir, para entender
que há muitas vivências infantis brasileiras e que, em se tratando de comunidade quilombola,
a infância e as crianças são múltiplas e devem ser valorizadas e compreendidas como agentes
da história ligadas aos costumes e tradições de sua comunidade, podendo, assim, levar à
compreensão do próprio ser quilombola. Também contribuir para pensar uma educação
escolar que valorize e que aborde a diversidade étnico-racial e a cultura negra, bem como a
cultura e a história das comunidades quilombolas.
Depois que a pesquisa acabar, iremos informar os resultados sobre o que descobrimos
e aprendemos com a pesquisa. Todo material coletado durante a pesquisa ficará sob minha
guarda e responsabilidade pelo período de 5 (cinco) anos e, após esse tempo, ficará arquivado
no Laboratório de Oralidade da Universidade do Estado da Bahia –UNEB- Campus VI-
Caetité.
Você receberá uma via deste documento com o telefone e o endereço de contato das
pessoas responsáveis pela pesquisa, para tirar suas dúvidas agora e a qualquer momento.
Se você quiser falar sobre alguma coisa que está te incomodando na pesquisa com
alguém diferente daquela pessoa que está realizando a pesquisa com você, e que também
manterá segredo sobre você, ligue para o Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, e fale com a coordenadora, que é a professora
Cristiana Leite Carvalho, pelo telefone 3319-4517 ou email [email protected].
Este documento será assinado por você em 02 (duas) vias e uma ficará com você para
que guarde os telefones de contato.
520
___________________________________________
Presidente da Associação Quilombo de Sambaíba
_____________________________________
Luciete de Cássia Souza Lima Bastos
Pesquisadora Responsável
RG.09840180-77
Endereço: Av. Divino Espírito Santo, 590
Caetité (BA) - CEP: 46400-000
Fone: (77) 998003575 / e-mail: [email protected]
TERMO DE CONSENTIMENTO
N.º Registro CEP:
Meu nome é Luciete de Cássia Souza Lima Bastos, aluna do doutorado do Curso de
Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC
Minas, Coração Eucarístico, Belo Horizonte/MG, meu trabalho é pesquisar a construção das
identidades das crianças da Escola 15 de Dezembro, Quilombo Sambaíba, Distrito Caldeiras,
município de Caetité-Bahia. Desejo compreender como as narrativas contribuem para a
construção da(s) identidade(s) dessas crianças e se a construção da identidade de forma
positiva contribui para que essas crianças sintam-se fortalecidas, de modo a interagir com
outras crianças, fora da comunidade de Sambaíba, mais confiantes.
A pesquisa envolve a observação das crianças, a participação em oficinas, suas
brincadeiras, suas conversas, análise de seus desenhos e de fotografias por elas e por mim
tiradas. Ademais o estudo envolve a obtenção de dados através de documentos da associação,
assim como de depoimentos orais (dos adultos) acerca da infância vivida.
A participação de todos é voluntária e muito importante, além disso, em qualquer
momento da pesquisa o participante será sempre esclarecido (a) sobre qualquer dúvida que
venha a ter. E estará livre, a qualquer momento para desistir de participar ou continuar, assim
como se recusar a responder a uma pergunta, ou a não participar de um procedimento, mas
participar do outro.
Todos os procedimentos que iremos realizar são seguros, no entanto, o senhor deve se
sentir à vontade para nos chamar a qualquer momento e falar sobre suas preocupações ou
dúvidas da comunidade.
Acreditamos que a pesquisa traga benefícios a todos no que se refere à autoestima e ao
fortalecimento da identidade quilombola. Esse estudo pode, ainda, contribuir, para entender
que há muitas vivências infantis brasileiras e que, em se tratando de comunidade quilombola,
a infância e as crianças são múltiplas e devem ser valorizadas e compreendidas como agentes
da história ligadas aos costumes e tradições de sua comunidade, podendo, assim, levar à
compreensão do próprio ser quilombola. Também contribuir para pensar uma educação
escolar que valorize e que aborde a diversidade étnico-racial e a cultura negra, bem como a
cultura e a história das comunidades quilombolas.
Depois que a pesquisa acabar, iremos informar os resultados sobre o que descobrimos
e aprendemos com a pesquisa. Todo material coletado durante a pesquisa ficará sob minha
guarda e responsabilidade pelo período de 5 (cinco) anos e, após esse tempo, ficará arquivado
no Laboratório de Oralidade da Universidade do Estado da Bahia –UNEB- Campus VI-
Caetité.
Você receberá uma via deste documento com o telefone e o endereço de contato das
pessoas responsáveis pela pesquisa, para tirar suas dúvidas agora e a qualquer momento.
Se você quiser falar sobre alguma coisa que está te incomodando na pesquisa com
alguém diferente daquela pessoa que está realizando a pesquisa com você, e que também
manterá segredo sobre você, ligue para o Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, e fale com a coordenadora, que é a professora
Cristiana Leite Carvalho, pelo telefone 3319-4517 ou email [email protected].
Este documento será assinado por você em 02 (duas) vias e uma ficará com você para
522
____________________________________________
Presidente da Associação Quilombo de Sambaíba
Eu, Luciete de Cássia Souza Lima Bastos, comprometo-me a cumprir todas as exigências e
responsabilidades a mim conferidas neste termo e agradeço pela colaboração e confiança.
_____________________________________
Luciete de Cássia Souza Lima Bastos
Pesquisadora Responsável
RG.09840180-77
Endereço: Av. Divino Espírito Santo, 590
Caetité (BA) - CEP: 46400-000
Fone: (77) 998003575 / e-mail: [email protected]