Crack - Farmacocinética, Farmacodinâmica, Efeitos Clínicos e Tóxicos

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14/11/2021 08:53 RMMG - Revista Médica de Minas Gerais - <i>Crack:</i> farmacocinética, farmacodinâmica, efeitos clínicos e tóxicos

Crack: farmacocinética, farmacodinâmica, efeitos clínicos e tóxicos


Crack: pharmacokinetics, pharmacodynamics, and clinical and toxic effects

Raquel Augusta de Castro1; Raquel Neves Ruas1; Renan Costa Abreu1; Renata Bernardi Rocha1;
Renata de Figueiredo Ferreira1; Renato Cançado Lasmar1; Sofia Andrade do Amaral1; Antônio José
Daniel Xavier2

1. Acadêmico(a) do Curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais -


FCMMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico. Perito Médico Judicial. Professor da FCMMG e da Universidade Federal de Minas Gerais -
UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência


Antônio José Daniel Xavier
E-mail: [email protected]

Recebido em: 17/03/2013


Aprovado em: 15/06/2016

Instituição: Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais - FCMMG Belo Horizonte, MG - Brasil

RESUMO

Esta revisão apresenta os aspectos químicos e farmacológicos do  crack, além de seus efeitos
clínicos e toxicológicos. Foram abordados trabalhos publicados entre os anos de 1990 e 2012, por
intermédio de buscas sistemáticas utilizando o banco de dados Scielo, Lilacs e jornais eletrônicos
disponíveis na internet. O  crack  possui como substância ativa a cocaína, derivada de folhas da
planta Erythroxylum coca. Independentemente da sua forma de consumo (intravenosa, inalatória,
oral e intranasal), exerce seus efeitos tóxicos a partir dos principais metabólitos: benzoilecgonina e
metil-éster de ecgnonina. A alta lipossolubilidade apresentada permite que atravesse a barreira
hematoencefálica e placentária, tendo especial afinidade pelo cérebro. Atua como potente agonista
adrenérgico, dopaminérgico e serotoninérgico e bloqueador dos canais de sódio voltagem-
dependentes, o que justifica seus efeitos clínicos e potencial tóxico. A intoxicação aguda irá se
manifestar pela hiperatividade desses sistemas. O entendimento da toxicologia do  crack  é
importante para detecção e manejo clínico da intoxicação aguda, da sua abstinência e
consequências do seu uso crônico.

Palavras-chave: Cocaína Crack; Cocaína Crack/farmacocinética; Toxicologia; Farmacologia.

INTRODUÇÃO

O nome cocaína refere-se, popular e comercialmente, aos sais de cocaína (cloridrato de cocaína e
sulfato de cocaína), que são os dois produtos mais puros do processo de refinação da coca (feita
com folhas da planta Erythroxylum coca). Os sais de cocaína são termorresistentes, pouco voláteis
e seu ponto de fusão é de 190ºC. São conhecidos por "pó", "talco", "neve", "farinha", "branquinha"
(Figura 1).1-3

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Figura 1 - Estrutura química da cocaína.


Fonte: Mosquera e Menéndez MC.1
 

Denomina-se pasta-base, ou pasta de cocaína, uma sustância branca acastanhada, semissólida ou


sólida, que se obtém como produto intermediário da refinação dos sais de cocaína. É um produto
grosseiro, que contém muitas impurezas, como metanol, éter, acetona, permanganato de potássio,
ácido benzoico, querosene, gasolina e ácido sulfúrico e é denominado basuco ou crack.1,2,4

O crack é obtido a partir da mistura da pasta-base de coca ou da cocaína refinada com bicarbonato
de sódio e água. O composto, quando aquecido a mais de 100ºC, passa por processo de
decantação, em que as substâncias líquidas e sólidas são separadas. O resfriamento da porção
sólida gera a pedra de crack, que concentra os princípios ativos da cocaína e ganhou esse nome
devido aos estalidos emitidos quando fumado.2-6

Essa forma de cocaína tem a propriedade de fundir-se aos 98ºC e alcançar o ponto de ebulição aos
250ºC, o que permite ser fumada. Por ser produzido de maneira clandestina e sem qualquer
controle, o crack possui diferenças no nível de pureza, podendo conter outros tipos de substâncias
tóxicas. Em razão de suas impurezas e das sustâncias agregadas, possui custo menor que o da
cocaína e por isso seu consumo é maior em grupos economicamente menos favorecidos.2,3

FARMACOCINÉTICA

A cocaína é bem-absorvida pela maioria das vias de administração, sendo importante a


determinação dessas vias para caracterizar a velocidade com que se produz o começo de sua ação,
sua concentração sanguínea e a duração do efeito euforizante da droga. Os efeitos psicoativos têm
início mais rápido quando é administrada por via intravenosa e inalatória, comparado à
administração oral e intranasal. Os sais de cocaína são muito difusíveis em água e termolábeis,
permitindo sua fácil absorção pela mucosa nasal. O  crack  é insolúvel em água, mas solúvel em
lipídios e solventes orgânicos; e tem como sua principal via de entrada a inalatória.1,2,6

O início dos efeitos psicoativos produzidos pela cocaína demora entre oito segundos e 30 minutos
e permanecem por cinco a 90 minutos, dependendo, em parte, da via de administração.
O  crack  leva, em média, seis a oito segundos para iniciar sua ação e dura entre cinco e 10
minutos. Quando injetada, a droga demora o dobro do tempo para iniciar sua ação. A duração do
efeito da cocaína via intravenosa e fumada é menor, o que implica que o consumidor tem que
administrar várias doses para alcançar um estado intenso de euforia. A injeção intravenosa e a
inalação de cocaína produzem níveis máximos de concentração no plasma depois de três a cinco e
um a três minutos da administração, respectivamente.2,5-9

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Figura 2 - Concentração sanguínea em função do tempo transcorrido depois de sua


administração intravenosa.
Fonte: Pérez AO.9
 

Ao fumar o crack, o seu princípio ativo, que é a cocaína, é rapidamente absorvido pelos capilares
pulmonares e segue para a corrente sanguínea. Dessa maneira, a cocaína se distribui por todo o
organismo e, devido à sua alta lipossolubilidade, atravessa a barreira hematoencefálica e
placentária, tendo especial afinidade pelo cérebro. A cocaína tem volume de distribuição de 2 L/kg.
A biotransformação do princípio ativo inicia-se rapidamente no sangue devido ao pH do meio
aquoso, o qual é potencializado por colinesterases e posteriormente se completa no fígado, onde é
hidrolisada por colinesterases, produzindo seus metabólitos principais, a benzoilecgonina e a metil-
éster de ecgnonina. Outros metabólitos menores, como a norcocaína e o cocaetileno (metabólito
gerado quando a cocaína é administrada com etanol), são também detectados em quantidades
menores.1,2,6

A cocaína e seus metabólitos não se ligam às proteínas plasmáticas. A vida média de seus
metabólitos oscila entre 4 e 6 horas e é maior que a da cocaína livre, que é de aproximadamente
60 minutos. A quantidade encontrada no sangue corresponde fielmente à quantidade exposta aos
receptores. Em pessoas com superdosagem, apresenta concentrações diferentes e importantes no
cérebro e sangue, chegando a encontrar no primeiro 10 vezes a concentração sanguínea, tomada
ao mesmo tempo. Sua eliminação se efetua principalmente por via renal, representando 85 a 90%
do total. Dessa quantidade, apenas 1 a 5% são cocaína não metabolizada, sendo a
benzoilecgonina e metil-éster de ecgonina as principais formas encontradas, detectadas a partir de
seis horas depois do consumo e com pequena quantidade em forma livre. Testes para verificar o
uso de cocaína podem ser realizados por análise do sangue, da urina e do cabelo. O teste
toxicológico urinário é o teste de referência e identifica o metabólito benzoilecgonina, que pode ser
detectado quatro a 48 horas após exposição à droga.1,6,7

FARMACODINÂMICA

Os efeitos da cocaína podem ser explicados por sua ação em vários receptores:1,2,7

 bloqueia os canais de sódio dependentes de voltagem, exercendo seu efeito anestésico local,
impedindo a condução de impulsos nervosos;

 atua nos terminais monoaminérgicos, o que inibe a recaptação de dopamina, serotonina e


noradrenalina a partir do bloqueio competitivo de seus transportadores. Essa ação sobre os
transportadores aumenta a quantidade de neurotransmissor na sinapse e estimulação sobre os
receptores pós-sinápticos. Acredita-se que as propriedades de dependência e vício da cocaína
estão relacionadas principalmente à inibição do transportador da dopamina;

  atua pré-sinapticamente sobre o transportador vesicular da dopamina, localizado nas


terminações nervosas mesolímbicas e nigroestriais, responsável por armazenar a dopamina
previamente sintetizada no citoplasma e/ou a dopamina recaptada na fenda sináptica;

 possui afinidade por sítios de receptores serotoninérgicos, muscarínicos (M1, M2) e sigma.

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Os efeitos sistêmicos ocorrem como resultado da capacidade de, simultaneamente, aumentar os


níveis de catecolaminas bem como bloquear a sua recaptação, o que leva ao agonismo contínuo
em ambos os receptores, alfa e beta. A exposição à cocaína produz miríade de sinais e sintomas. A
exposição aguda pode estar associada a hipertermia, hipertensão arterial, taquicardia, midríase,
estupor e depressão respiratória e cardíaca, podendo obscurecer a clássica resposta ao trauma e
ao choque hemorrágico. No miócito cardíaco, diminui a velocidade de despolarização, a amplitude
e a velocidade de condução do potencial de ação, podendo causar disritmias cardíacas e morte
súbita. Provoca sensação de poder e infatigabilidade; e em altas doses pode promover agitação,
insônia, alucinações e convulsões. O uso crônico associa-se ao desenvolvimento de psicose e
paranoia. Ambas as formas de cocaína, cloridrato e base livre  (crack), têm alto potencial de
desenvolver vício.1,2,6,7

ASPECTOS TOXICOLÓGICOS

A cocaína exerce seus principais efeitos através dos sistemas dopaminérgicos, adrenérgicos e
serotoninérgicos, podendo ser observado no:

  sistema dopaminérgico:  no uso agudo, impede a recaptação do neurotransmissor


dopamina na célula pré-sináptica do sistema mesocorticolímbico dopaminérgico e aumenta,
portanto, sua disponibilidade na fenda sináptica. Essa maior disponibilidade dos
neurotransmissores dopaminérgicos permite estimulação maior e mais prolongada dos
neuroreceptores D1, D2, D3, D4, D5. Muitas das alterações comportamentais que provoca
podem ser atribuídas a esse mecanismo de ação, porém também induz o aumento da síntese
da dopamina. Em contraste com esses efeitos agudos, o uso crônico de cocaína provoca
esgotamento da dopamina na fenda sináptica;1,2

  sistema adrenérgico:  os dois metabólitos principais da cocaína, a benzoilecgonina e a


ecgoninametilester, atuam como agonistas adrenérgicos diretos no bloqueio do sistema de
transporte na membrana da célula nervosa, impedindo a recaptação dos neuro-transmissores
norepinefrina e epinefrina na célula pré-sináptica, aumentando, portanto, a disponibilidade
dessas substâncias na fenda sináptica.1  Essa maior disponibilidade dos neurotransmisores
adrenérgicos permite a estimulação maior e mais prolongada dos receptores adrenérgicos α1,
α2 e β1, β2 e β3. Também estimula a tiroxina-hidroxilase, que ajuda a produzir mais
norepinefrina no neurônio. A via norepinefrínica está relacionada ao sistema de alerta e vigília.
Também se relaciona à hiperatividade do sistema autônomo, produzindo efeitos diretos sobre
o sistema cardiovascular, endócrino, ocular, etc. Consequentemente, verificam-se: aumento da
frequência cardíaca; vasoconstrição de arteríolas e veias através do músculo liso vascular;
intensa midríase por contração do músculo radial; aumento das secreções salivar, gástrica e
pancreática e intensa sudorose. Essa ativação noradrenérgica pode ser responsável pelo
aumento da pressão arterial sistêmica e da vigilância, devido ao efeito sobre o tronco do
encéfalo (locus ceruleus).2Paralelamente à descarga adrenérgica que se produz inicialmente,
também se produz estimulação da enzima adenilciclase e, portanto, aumento do segundo
mensageiro AMPc a partir da adenosina trifosfato (ATP), o que gera resposta adrenérgica
caracterizada por aceleração geral das funções fisiológicas;1

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Figura 3 - Mecanismo de ação adrenérgica da cocaína


Fonte: Adaptado de Mosquera e Menéndez.1
 

  sistema serotoninérgico:  inibe a recaptação da serotonina e de seu precursor, o


triptofano, dentro dos neurônios serotoninérgicos. Essa ação estimula os autorreceptores
inibitórios pré-sinápticos, aumenta a concentração da serotonina (5-HT) na fenda e provoca
retroalimentação negativa, que esgota rapidamente o 5-HT no cérebro. Em geral, o efeito
sobre a 5-HT é inibitório. Essa via serotoninérgica pode se relacionar aos efeitos alucinatórios
e psicomiméticos produzidos pela cocaína, o que explica as alterações motoras e estereotipias
vistas nas pessoas intoxicadas.1

EFEITOS CLÍNICOS

  efeitos neuropsicológicos:  a cocaína e seus derivados têm amplo efeito sobre o


comportamento e as emoções, sendo altamente propensa à dependência por atuar
diretamente sobre o centro de recompensa. Seu efeito varia desde emoções patológicas, como
estados acentuados de depressão, grandiosidade, ansiedade, até de grave paranoia e
transtornos afetivos.1,4

A ação de uma dose causa perda de apetite, transmite sensação de bem-estar, aumenta a
resistência física ao diminuir a sensação de fadiga, além de promover inquietude, excitação,
loquacidade, ansiedade e até confusão mental. A euforia inicial pode ser seguida de
ansiedade, agitação, delírio, psicose, tremor, rigidez muscular ou hiperatividade e
convulsões.1,4

A euforia é fenomenologicamente diferente das euforias produzidas por outras sustâncias


(opiáceos, álcool, etc.) e inclui ativação, efeito ansiolítico inicial, desinibição, curiosidade e
interesse, autoconfiança e autoestima aumentadas, em estado de alerta e sem alucinações ou
confusão. As consequências adversas podem ser exagerações dos componentes da euforia e
incluem desinibição, desequilíbrio do juízo, generosidade atípica, hipersexualidade, ações
compulsivas repetitivas e extrema agitação psicomotora.1,4

A agitação se converte em disforia, dependendo da dose e da duração do consumo.


Acompanha-se de mistura de ansiedade e irritabilidade. A ansiedade varia de leve a pânico
acompanhado de delírio. Pode haver desorientação em casos graves, à semelhança de
síndrome cerebral orgânica, com transtornos do sensório. Essa disforia pós-cocaína leva à
readministração, porém o individuo pode estar exausto ou carecer de dinheiro ou sofrer
tolerância.

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Consequentemente, aparece um período composto de duas fases: inicialmente, estimulação e,


logo, depressão (chamado "crash"). Nesta, surge o desejo de parar e descansar e são
procuradas então sustâncias que facilitam o sono (opiáceos, barbitúricos, ansiolíticos, álcool,
etc.) ou aparece um período de hipersonolência e hiperfagia. É observada síndrome de
esgotamento no abuso de cocaína depois de intoxicação prolongada, que consiste em letargia
e sono profundos, que podem durar várias horas ou dias, seguidos de recuperação
espontânea.1,4

 efeitos cardiovasculares: o coração manifesta cronotropismo e inotropismo positivos, em


concomitância ao encurtamento da diástole cardíaca, resultado do aumento da frequência
cardíaca, que posteriormente causa diminuição da eficiência do coração, aumento do período
refratário efetivo da fibra muscular, enquanto encurta o tempo de condução do tecido
condutor.1,4

O aumento na frequência cardíaca associa-se ao aumento da demanda de oxigênio e, por


causa da vasoconstrição periférica, eleva-se a pressão arterial sistêmica. Esses dois efeitos são
mediados por receptores α1, β1 e β2, localizados na vasculatura arterial periférica (α1 e β2) e
no coração (β1).1,4

Na vasculatura se produz estimulação excitatória sobre os receptores α1 das coronárias,


originando sua constrição. Nas arteríolas cerebrais e pulmonares há estimulação dos
receptores α2 de tipo inibitório, ocasionando vasodilatação. Essas ações moleculares explicam
o alto risco de a superdosagem de cocaína produzir infarto agudo do miocárdio e disfunção por
mecanismos, como vasõespasmo e oclusão coronariana por trombo. Pode associar-se à
dissecção aguda da coronária após o uso da droga.1,4,6,10,11

  efeitos neurológicos:  o uso de cocaína está associado a eventos cerebrovasculares,


isquêmicos (45%) e hemorrágicos (55%). A angiografia cerebral de pacientes que sofreram
acidente vascular pode apresentar estenose ou oclusão, única ou múltiplas, de grandes vasos,
como da artéria carótida interna. Acredita-se que portadores de malformações vasculares ou
aneurismas cerebrais estejam mais propensos a sofrerem hemorragia após o uso de cocaína.
São necessários estudos que determinem se outros fatores como hipertensão arterial
sistêmica, tabagismo, etilismo ou tendência genética predispõem a eventos cerebrovasculares
com o uso da cocaína.6,12

  efeitos em outros sistemas: no olho, a cocaína produz midríase devido à contração do


músculo radial da íris, secundária à estimulação do receptor α2 e visão borrada secundária ao
relaxamento do músculo ciliar para visão à distância, por estimulação inibitória do receptor β2.
No trato urinário, produz retenção urinária moderada, secundária a relaxamento do músculo
detrusor da bexiga, contração do trígano e esfíncter vesical. Nos pulmões, produz
broncodilatação, diminuição das secreções bronquiais e melhor capacidade ventilatória
pulmonar. No tecido adiposo, ocorre estimulação dos receptores β3, ocasionando liberação de
ácidos graxos livres, por ação lipolítica sobre os adipócitos. Nas ilhotas pancreáticas há
estimulação dos receptores α2 inibitórios e β2 excitatórios, produzindo diminuição na secreção
de insulina pelo efeito α2 inibitório e aumento na secreção de glucagon por estimulação do
receptor β2 excitatório, com aumento da produção de glicose. Esses efeitos no pâncreas
resultam no aumento da glicose sanguínea.1,4

TOXICIDADE AGUDA

A cocaína administrada topicamente, como anestésico local, não apresenta efeitos sistêmicos
notáveis e sua ação é predominantemente anestésica, por estabilização da membrana axonal e
bloqueio da condução nervosa periférica. A verdadeira ação sistêmica da cocaína se apresenta com
a administração pelas vias nasal, pulmonar e parenteral, que desencadeiam rapidamente efeitos
notáveis no organismo.2,4

A dose tóxica varia amplamente e depende da tolerância individual, da via de administração


(aspirada, fumada, injetada) e do uso concomitante de outras drogas (álcool, heroína e outros
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agentes) e outros fatores. Produz efeitos em 1-2 minutos, quando é administrada via intravenosa.
Pode produzir níveis altos transitórios no cérebro e coração capazes de provocar convulsões ou
arritmias cardíacas, enquanto a mesma dose via nasal pode causar só euforia. Considera-se que
níveis sanguíneos de cocaína entre 100 e 200 mcg% produzem alterações clínicas evidentes.2,4,13

As complicações agudas capazes de levar o usuário a procurar serviço médico são individuais. As
complicações psiquiátricas ocorrem em 35,8% dos casos, destacando-se episódios de pânico,
depressão e psicose. Os sintomas psicóticos (delírios paranoides, alucinações) podem desaparecer
espontaneamente após algumas horas (ao final da ação da cocaína), mas agitações extremas
podem necessitar de sedação com benzodiazepínicos intramusculares (midazolam 15 mg).12

Em geral, as alterações clínicas produzidas pela cocaína se apresentam em três fases:1,4,13,14

  Fase I. Estimulação inicial:  as suas ações primárias são efeitos anestésicos locais,
estimulação do sistema nervoso central e inibição da recaptação neuronal de catecolaminas. A
euforia induzida pela cocaína se deve ao bloqueio da recaptação de dopamina induzido pela
droga, porém seu uso crônico pode causar redução dos níveis de dopamina e alteração da
função dopaminérgica cerebral. Essa primeira fase é rápida (na absorção nasal, inicia-se 3-5
minutos depois do contato; na endovenosa, de 10-60 segundos; e na fumada; em 3-10
segundos) e se caracteriza clinicamente por euforia, agitação, aumento da amplitude do pulso,
da frequência cardíaca e da pressão arterial sistêmica, cefaleia, náuseas, vômitos, vertigem,
instabilidade emocional e movimentos involuntários ("tiques") de pequenos músculos da face;,
e nos olhos ocorre midríase. Essa sintomatogia pode ser observada com níveis sanguíneos
superiores a 40 mcgr%.

  Fase II. Estimulação tardia ou avançada:  ocorre entre 30 e 60 minutos depois do


contato com a cocaína, com acentuação da taquicardia, hipertensão arterial sistêmica,
desencadeamento de arritmias ventriculares, dificuldade respiratória, respiração irregular e
hipertermia; hipercinesia, encefalopatia maligna, convulsões tônico-clônicas e  status
epilepticus.  Essas manifestações clínicas podem ser observadas com níveis de cocaína no
sangue entre 100 e 200 mcgr%;

 Fase III. Depressão: é a fase mais grave da intoxicação aguda por cocaína, apresentando-
se como depressão dos diversos sistemas do organismo e, de acordo a dose ingerida, ocorre
1-2 horas depois do consumo. Essa fase caracteriza-se por coma arreflexivo e arresponsivo,
midríase fixa, paralisia flácida, instabilidade hemodinâmica, insuficiência renal, fibrilação
ventricular ou assistolia, insuficiência respiratória, edema agudo de pulmão, cianose perioral,
pulso fino ou não palpável, diminuição das funções vitais, inconsciência e morte. Verificam-se,
com frequência, as tentativas de suicídio. Essa sintomatologia se observa com níveis acima de
3 mg por 100 mL de sangue.

O diagnóstico da toxicidade aguda é feito ao se observar, geralmente, adulto jovem que


desenvolve síndrome adrenérgica de curta duração com agitação psicomotora, movimentos
estereotipados e dor torácica. Os exames complementares que podem ajudar a definir seu
diagnóstico incluem: hemograma (leucocitose frequente), eletrólitos (atenção para os níveis de
cálcio, magnésio e potássio, pois sua deficiência pode mimetizar a intoxicação por cocaína),
glicemia (hiperglicemia), ureia e creatinina (podem estar elevadas), gasometria e pH (acidose),
CPK (elevada nos casos de rabdomiólise), urina I (mioglobinúria na rabdomiólise), radiografia de
tórax e eletrocardiograma (em caso de dor torácica), CK-MB e troponina (em caso de enfarte do
miocárdio), tomografia computadorizada de crânio, punção lombar (pacientes com sintomatologia
neurológica persistente), culturas de sangue e urina.13

A superdosagem é a complicação aguda mais conhecida relacionada ao consumo de cocaína,


sendo considerada emergência médica. Caracteriza-se como falência de um ou mais órgãos,
decorrente do seu uso agudo e consequente aumento de estimulação central e simpática. Seus
sinais clínicos são: palpitações, sudorese, cefaleia, tremores, ansiedade, hiperventilação, espasmo
muscular e sinais de superestimulação adrenérgica como midríase, taquicardia, hipertensão
arterial sistêmica, arritmia e hipertermia. Pode evoluir para crises convulsivas, angina do peito com
ou sem infarto agudo do miocárdio, hemorragia intracraniana e rabdomiólise e morte
frequentemente por insuficiência cardíaca e/ou respiratória.14

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A desintoxicação constitui-se em abordagem de curta duração, de duas a quatro semanas,


realizada em ambiente ambulatorial/domiciliar e hospitalar. Essa abordagem tem sido cada vez
mais valorizada no processo de tratamento, uma vez que parece aumentar a adesão às medidas
subsequentes.14  Nos casos menos graves, a sintomatologia de intoxicação por cocaína são,
geralmente, de curta duração e respondem bem ao uso de benzodiazepínicos, em doses
suficientes para normalizar o ritmo cardíaco e a pressão arterial sistêmica. Pacientes
assintomáticos, com sinais vitais e exames laboratoriais normais por mais de 12 horas, podem
receber alta hospitalar. Nos casos moderados ou graves, deve-se fazer:

 suporte vital respiratório e cardiovascular;

 considerar na agitação/convulsão a administração de benzodiazepínicos ou barbitúricos;

  diante de hipertermia: estabelecer medidas físicas, como o uso de compressas frias e


controle da temperatura ambiente;

  diante de hipotensão e choque: colocar o paciente em posição de Trendelemburg e


administrar por via venosa cristaloides e aminas vasoativas;

  na rabdomiólise: administrar NaCl 0,9% para manter volume urinário de 2-3 mL/kg/h.
Monitorar eletrólitos, CK e função renal. Pode ser necessário o uso de diuréticos e de
alcalinização urinária.13

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