Seminário Sobre Os Caminhos Da Formação Dos Sintomas - Miller (Opção Lacaniana 60)
Seminário Sobre Os Caminhos Da Formação Dos Sintomas - Miller (Opção Lacaniana 60)
Seminário Sobre Os Caminhos Da Formação Dos Sintomas - Miller (Opção Lacaniana 60)
Neste seminário sobre o texto freudiano acerca da formação dos sintomas, trata-se
de construir uma placa giratória que, em primeiro lugar, distribua e relacione todas as
partes e.la obra ele Freud; que, em segundo lugar, dislsibua e relacione todas as cons-
truções elaboradas ao longo do ensino de Lacan;-e que, em terceiro lugar, distribua e
relacione a obra de Freud com a obra de Lacan.
Esta placa giratória é indispensável para orientar-se no trabalho sobre o sintoma,
mas também para se desorientar um pouco. Para estar bem orientado em um tema ana-
lítico é preciso também desorientar-se, quer dizer, não pensar no tema de forma dema-
siadamente familiar. O "perder-se um pouco" tem todo seu v:1lor.
A esse eixo opôe-se o par imaginário a-a', que provém do estádio do espelho.
r,acan toma como referência Introdução ao ncercisismo, anterior a essas conferências, e
considera que a libido freudiana circula no eixo imaginário, na medida em que é fun-
damentalmente narcisista, que se situa no narcisismo. Entre a-a' há libido, Befriedtgung,
O que chamamos ele "gozo", de maneira que para Lacan o eixo imaginfüfo é também o
eixo pulsional.
Lacan entrou na psicaniUise com um binarismo de oposição entre sentido e gozo.
A primeira oposição lacaniana que nós mesmos praticamos se caracteriza por separar,
dividir, cortar o imaginá!io do simbólico. Sempre com a orientação de ir do imaginário
ao simbólico, com certo desprezo pelo imaginário e, por isto mesmo, pela pulsão. Na_
primeira orientação de Lacan, há uma desvaloriza~:ão da pulsão, embora não advertida
quando falamos cio imaginário, mas presente. Há o princípio de que, na prática, sempre
é perigoso confundir o simbólico com o imaginãrio.
Essa primeira operação lacaniana na psicanálise é um instrumento maravilhoso.
Lacan toma os casos de Freud e os reordena,como por milagre, separando as águas
corno um Moisés freudiano. Nos casos de Freud, nos casos atuais, nas teorizaçôes etc.,
nada resiste a tal operação.
Nessa perspectiva, o que são os caminhos da formação dos sintomas? Vou colo-
car no singular: é essencialmente o caminho simbólico. No texto inaugural de Lacan,
o sintoma aparece como um sentido, um sentido recalcado. Evidentemente, é preciso
considerar o significante desse sentido recalcado, razão pela qual direi que o sintoma
aparece como um enigma. Manifesta-se suportado por um significante cujo significado
está recalcado, quer dizer, que não foi comunicado ao Outro ou por ele aceito. O sinto-
mático consiste em um significante cujo significado está recalcado. O material significan-
te do sintoma pode ser tomado em uma parte do corpo, ou parasitando pelo significado
recalcado, ou no pensamento.
Nessa perspectiva, o caminho de formação dos sintomas segue o eixo sujeito ~
Outro. É o que se encontra na segunda operação de Lacan, na qual retoma o eixo sim-
bólico de maneira mais complexa, com a inclusão do efeito de retmação. É algo que não
vou desenvolver aqui, pois o grafo de Lacan. é suficientemente conhecido. Mas, o que é
um grafo? É um conjunto ele caminhos. O ~rafo .de Lacan, feito de vetores, é o equiva-
lente dos Wege freudianos:
$ <>
s A
Isto leva a deduzir o gozo a partir cio sentido. Mostra como o gozo, sob a forma
do objeto a, necessariamente cotnplcmenta o efeito de sentido. Primeiro há significante
e sentido - o que Lacan chama de alienação - e, em um segundo tempo, há mais-de-
-gozar - o que Lacan chama de separaç'.ão.
A quarta operação é produzir:
!
s
1 Sz
(a)
Ouçam este episódio oconido no transcurso da gerra atual. Um dos bravos discípulos da
psicanálise - deve ser Abraham - foi designado oficial médico no front alemão, em algum
lugar da Polônia. Ele chamou a. atenção de seus colegas pelo fato de, ocasionalmente, exer-
cer inesperada influência sobre algum paciente. Indagado a respeito, reconheceu que estava
empregando os métodos ela psicanálise e declarou-se disposto a transmitir seu conhecimento
cio, baseia-se no ciclo anterior. É urna aplicação aos sintomas neuróticos do que havia
sido dito sobre os sonhos e atos falhos. É possível constatar que os sintomas são como
os sonhos e os atos falhos, ou seja, têm um sentido e podem ser interpretados. Algo tão
conhecido merece ser interrogado. É o que faz Lacan, partindo da conferência XVII e
seguindo em diante até a XXIIl, "Os caminhos da formação dos sintomas".
O que há entre as duas conferências? Os títulos intermediários são: "A fixação ao
trauma". "O inconsciente" (XVIII), "Resistência e repressão" (XIX), "A vicia sexual huma-
na" (XX), "Desenvolvimento libidinal e organizações sexuais" (XXI), "Algumas perspec-
tivas sobre o desenvolvimento e a regressão" (XXIú. Como assinala muito bem Strachey,
a conferência XXI é um resumo dos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade".
De que tratam essas conferências que fazem ponte entre a XVII e a XXIII? Freud
introduz o pulsional, a libido, o sexual e, ademais, o perverso do sexual, dado que o
sexual não se refere tanto a normas como a perversões. Nessa extraordinária parte de
sua obra, que v;,1i da conferência XVII à XXIII, Freud procura vincular as duas vertentes,
a saber: a) a da descoberta do inconsciente, dos fenômenos interpretáveis, ou seja, a
descoberta freudiana ele que os tenõmenos considerados c:omo carentes de sentido po-
dem ser interpretados; em suma, a do inconsciente definido pela interpretação; b) a da
descoberta da sexualidade infantil e do caráter perverso da sexualidade.
Estes são os dois eixos da obra de Freud e aqui se pode ver bem seu esforço em
articulá-los. Temos a impressão de que há mais justaposição do que arriculaçào, dedução
ou produção propriamente dita - apesar de que esta é uma questão discutível.
Todas as operações lacanianas provêm desse furo que subsiste no esforço freudia-
no de vincular as duas vertentes. Não deixa de ser uma interpreta\-'âo minha, mas que
não parece forçada, uma vez que, na conforência XXII, pode-se ler: "Todavia devo ad-
verti-los para não confundirem regressão com repressão"2 - em alemão, repressão [recal-
que] e regressão não são hornofônicas, tal como é assinalado na nota de Strachey. Freud
insiste: ''.Assim, o conceito de repressão não implica nenhuma relação com a sexualidade:
devo pedir-lhes que tomem especial nota disto". 3 Significa que Freud separa claramente a
repressão [recalque], que se refere a um mecanismo semântico - algo que não pode ser
dito por que houve um recalcamento-, e o registro da sexualidade. Talvez minha leitura
pareça forçada, mas me parece milagroso encontrar um.a prova tal no texto freudiano.
A conferência XXII fornece uma conceituaJização do próprio caminho de Freud.
Ele mesmo explica que seu ponto de partida clínico é a histeria, na qual o fator da re-
gressão libidi.nal não é tito evidente. Há na histeda uma regressão aos objetos libidinais
ptimãrios . .Pensemos na libido apegada ao pai, que também aparece no <.-aso da suposta
obsessão que verem.os depois, mas não há nada que se pareça com o que se manifesta
na neurose obsessiva, quer dizer, uma regressão a uma etapa anterior da organização
-sexual, o apego a um gozo anterior, especialmente sádico-anal. O papel princlpal no
mecanismo da histeria recai sobre a depressão, e não sobre a regressão.
Sitm e Bedeutung
Voltemos à conferência XVII, Der Sinn der !,_'ymptom, à qual Lac.an se refere e.m
Genebra. Lacan indica que Sínn não é _Bedeutung. As duas palavras são conhecidas, es-
.tão presentes no título do famoso artigo de Frege, Sinn und Bedeutung. Stnn é efeito de
sentido que se determina a partir do significado, enquanto Bedeutung concerne à relação
com o real. A dificuldade de traduzir a segunda palavra para as línguas romanas se dá
pelo fato de indicar, ao mesmo tempo, "significação" e "referência".
Aproveito esta observação para comunicar-lhes minha leitura das diferenças entre
as duas conferências. A primeira intitula-se explicitamente Der Stnn. A segunda, intitu-
lada no volume que a recolhe, "Os caminhos da formação dos sintomas, expõe Die Be-
sar, que não consegue e, então, smge o sintoma. Isto permite a Freud dizer: "A constru-
ção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa diferente que está interceptada"7 •
A palavra "interceptada" é fundamental. Parece inspirar o primeiro esquema de La-
can, onde há a interceptação de um querer dizer de algo distinto. Freud está tão contente
que o repete: "Um substituto do que se intercept,t"8 •
Para ele, isto é o que permite conceber urna semelhança entre a formação do
sonho e a formação do sintoma neurótico. A referência constante de Freud. ao longo
dessa obra é a Traumbildung, ou a 1'raumarbeit, a formação no trabalho do sonho.
Mas, ao mesmo tempo em que Freud destaca esse traço comum entre ambos - base da
inclusão do sintoma na prática analítica -, não cessa de repetir que um sintoma não é
um sonho. A repressão [recalque], motor essencial do sonho,. não é senão a condição
prévia para que se forme um sintoma. Somente o sintoma nos introduz no mais íntimo
da vida sexual. Os sonhos não ficam como uma opacidade subjetiva permanente que,
em (lltima instãncía, modifica o corpo. É deste "a mais" de que é preciso dar conta na
formação do sintoma. A diferença entre sonhos e sintomas, pontua Freud, é que "(... )
os sintomas servem à mesma intenção. Verificàmos que esta intenção é a satisfação de
desejos sexuais" 9 • Freud não se questiona sobre qual poderia ser o uso do sintoma; para
ele é sempre o mesmo: a satisfação sexual ou servir de substituto à satisfação que falta
na vida. É assim que introduz a frustração. Tal como sublinhei, o elemento ''dizer não",
a Versagung, já é um dito.
Em Freud, a definição de sintoma como meio de gozo é patente. Levando-se em
conta, obviamente, seu caráter de formação de compromisso, quer dizer, de conexão en-
tre gozo e defesa. A observação de Freud é que, no sintoma, trata-se de obter satisfação
e de defender-se da mesma. Des~a conexão entre gozo e defesa, Lacan deduzirá que há
algo excessivo no gozo que obriga o sujeito sempre a defender-se do gozo que busca.
Lacan dará conta disso destacando a linguagem (o significante), na medida em que esta
negativiza o gozo. Isto é, o poder de recalque está na própria linguagem; o Nome-do-Pai
é a linguagem. Resta o mais-de-gozar, o ganho de prazer, o Lustgewinn.
Tudo que Freud diz entre as conferências XVII e XXIII prepara a questão de como
adoecem os homens - problema que ele aborda na conferência XXII, onde diz: "a reali-
dade não é a única barreira"111 • Cada ve2. que se produz uma frustração, a libido regressa
e busca uma nova modalidade de satisfação, mas, nesse momento, surge um veto inter-
no, um "não" interno. É o que aparece na pergunta: "quais são os poderes de onde parte
o veto à aspiração libidlnal?" 11 É a porta de entrada aos desenvolvimentos dos anos 20.
Freud diz que fala somente dos sintomas histéricos, pois são os que causam·des-
prazer. O problema dos sintomas obsessivos é que causam prazer. Percebemos a libido
freudiana quando esta encontra um veto no eu, quando encontra na realidade a Vm-sa-
gung. Sempre encontra um significante. Compreende-se, então, a construção lacaniana
e gozo têm urna mesma raiz na impotência. Se ele introduz o sentido-gozc,áo, é por((t,e
ele mesmo põe em questão o objeto a. No Seminário 20, Lacan o faz explicitamente.
o objeto a é somente a parte elaborad~ do goze, a parte fantasmát;ca r;., semântic~, do
gozo, a parte deste já atraída pelo fantasma. O objeto a é um falso real.
A famosa confe:rê11da
O caso do Homem dos lobos e, de modo muito especial, a nota acrescentada por
Freud, são referências muito oportunas para essas conferências. Freud oscila entre o
valor traumático e o valor fantasmático. Em última instância, tal óscilação mantém como
constante que o traumático e o fantasmático podem ser considerados como duas moda-
lidades do mesmo: há algo que não se pode descartar, algo que foi efetivo no passado.
Isto é, entre o traumático e o fantasmático há uma oposição, obviamente, mas também
algo em comrnn. Freud não duvida de que algo aconteceu no passado, no período elas
vivências infantis. Que este x seja traumático ou fantasmático é discutível. Nas notas do
"Homem dos lobos", Freud termina com um non liquet, não está decidido, não está. daro.
Mas há um ltquet; na medida em que algo real aconteceu no real - o real entendido no
sentido psíquico, pelo menos.
Entremos agora no texto da famosa conferência XXIII, intitulada por Freud "Os
caminhos da fonna~:ão dos sintomas". Proponho que a chamemos Die Bedeutung der
Symptom por analogia a Der Sinn der Symptom, que é o título da conferência XVII. Mi'-
nha pmposta se justifica ainda mais quando Freud mesmo indica, na conferência XXIV,
que anteriormente havia empregado indistintamente Der Sinn e Díe Bedeutung (dos
Symptome, no plural). Como o título da conferência XVJ.I apresenta Der Sinn, não parece
excessivo deduzir que a XXIII é a conferência que complementa a XVII. A conferência
XXIII complementa a dimensão semântica ela mensagem sintomática - se aceitamos esta
express~o - com sua dimensão referencial.
Lacan trata da questão da relação da pé1lavra com a realidade ou com o real através
de diversas formulações. É o tema tratado por Freud na conferência XXIII, se a palavra
corresponde ou não à realidade, isto. é? se o que se refere ao aspecto semântico da pa-
lavra, os efeitos de significado, podem organizar-se independentemente da referência à
realidade.
Para avançar passo a passo e, ao mesmo tempo, rapidamente na leitura, quero
comentar o título orig_inal da conferência, assim como mostrar a estrutura e suas partes
articuladas nesse escrito. É importante ser minucioso. Na edição alemã não constam
divisões; na Standard Edition há apenas divisões tipográficas assinaladas com uma
linha em branco - critério que .ignoro se foi introduzido em algum momento por Freud
Uma satisfação inicial, S1, é substituída por uma satisfação segunda, \_ Seria diver-
tido chamar isto de "metáfora libidinal" para comentar a relação entre metãfüra paterna
e metáfora libidinal. Este novo S2 é o que Freud chama de uma satisfação nova ou subs-
titutiva, um Ersatz de satisfação. Mas a palavra Ersatz, ou substituto, faz pensar que o
substituto não vale tanto quando o original - se não podemos comprar pérolas selvagens
verdadeiras, compramos as cultivadas, mas estas não são tão apreciadas, pois as vemos
como um sucedâneo. Mas não ocorre assim com a satisfação substitutiva; é tão boa
quanto a satisfação original. Não importa o objeto, a finalidade libidinal obtém-se custe
o que custar e, como tal, é sempre a mesma. A pulsão não conhece o "semblante de
gozar"; a satisfação pulsional é um real. Os Umwege estão mais no registro do semblante.
O que encontramos em Freud corho .~ym/Jtombildung indica outra expressão de
Lacan: as formações do inconsciente. O termo "formações" procede diretamente do
conceito freudiano de Bildung. Mas Lacan utiliza a pal.avra mais do lado d.o Sinn- que
do lado Bedeutung, a propósito de formações que procedem do inconsciente. Não são
produtos, mas formações que não se separam - como faz um produto - do inconsciente.
Lacan enfatiza o invólucro formal das formações do inconsciente, mas não lhe escapa
que a chave da formação dos sintomas é pulsional. No Seminário 2, faz do supereu a
chave da formação dos sintomas; outras vezes, a chave da formação dos sintomas é a
castração. São duas maneiras de indicar o. pulsional. Freud nos fala das formações que
provêm da libido.
Passamos agora às oito partes do texto, que intitularei:
O único conflito é que não conseguimos fazer os nós que queremos - o que gera
· sofrimento, indicado às vezes por Lacan. Mas a novidade invisível desta clínica, que
agora procuro evidenciá-la, é que se trata de uma clínica sem conflito. É uma clínica do
enodamento e não ela oposição, dos arranjos que permitem uma satisfaç:ào e conduzem
ao gozo. Há dificuldades, mas não hã conflito. A estrutura mesma dos nós não permite
a dimensão do conflito.
É claro que Lacan teve várias clínicas com conflitos. Começou opondo o simbóli-
co e o imaginário, o que já era uma clínica do conflito. Depois privilegiou uma clínica
da oposição do simbólico e do real. Pensem no conceito mesmo de objeto a, objeto
que resiste ao simbólico, aquilo que nâo se encaixa bem no simbólico. Há uma tensão
entre o simbólico e o objeto a, o que também é uma clínica do conflito. Com os nós,
não há oposição, ao contrário, há solidariedade entre as dimensões. Há um mitsein, um
"ir juntos" dos círculos. Por isso, há uma satisfação estética no nó borromeano, já que
Lacan não o encontrou nas matemáticas, mas num emblema da família dos Borrorneo.
11 uma bela figura que às vezes é utilizada com o._prazer estético, como uma decoração
característica da arte islâmica, sem a representação da figura humana. Gozamos disso.
Tais desenhos feitos para cernir o sintoma, transformam-se facilmente numa espécie de
obra de arte.
Então, nesta dínica não se trata, como em Freud, de resolver o conflito, n'l.as de
obter um novo arranjo, um funcionamento menos custoso para o sujeito. Não digo que
seja a única perspectiva clínica válida, mas é um esforço de Bildung por parte de Lacan,
de Bildung do analista, de formar-se nesta perspectiva do sintoma.
il} onde há uma experiência infantil, uma vivência acidental, que parece ser a mola da
perversão adulta numa total continuidade. Mas, fundamentalmente, Freud diz que, se
a libido regressa, é por que há ~lgo qy_e exerce uma atração sobre ela. É o que chama
de fixação.
Nesse ponto, Freud não vacila. Se há uma regressão da· libido, deve-se supor que
há algo que a atrai. Aqui se esconde um mais-de-gozar. Isto abre, em um segundo tem-
po, a questão se o que exerce uma atração é traumático ou fantasmático, mas, seja como
for, Freud não põe em questão este ponto.
J: Na quarta parte - é um tema ao qual já me referi - apresenta o gozo do sintoma,
li
•li
esse gozo oculto como algo estranho, que tem Befremdutig, que não é familiar nem
reconhecível. Aqui Freud fala do auto-emtismo ampliado do sintoma, que constitui uma
J
_;:,
modificação do ser mesmo do sujeito e, eventualmente, do seu próprio corpo. Vou
deixar esta questão pa~a depois, uma vez que foi um dos motivos da escolha do tema
para este seminário. Ao final ela quarta parte, Freud assinafa que se pode observar uma
compreensão particular da libido e destaca a função de um pequeno detalhe, tão impor-
tante como para despertar a libido. Pode-se comprovar que, nesta parte do texto, há um
esboço do objeto a.
Consideremos agora o fantasma, a propósito ,do qual se coloca a questão ela ver-
dade. Freud mantém o .que havia dito: algo ocorreu no passado, seja sob a forma de
acontecimentos ou do fantasma. Por isto, não me parece que haja uma contradição entre
a terceira e a quinta parte. Para Freud, o infantil é levado em conta; as vivências ou os
fantasmas tiveram impo,tf:~1da no ::no:ne:-.:::. <::::·_ :;... e se produz::~::r!. C -:;·.:e cc.:.::h,, :esu-
mida~ente, é o se~tido da realidacie. }L :-~~·üidaC.::::. ~~m ·1f~t;as ·a1odaHC:;r:t~~:e3 ê ~:-~·e·~1cl I~:.~.::i··
<luz a reaiidade psíq:.Jict: ao i~do da rca1ld2-S.c externa. i-Aocliflca o serÁti.:..J c:e ~'zealidade'\
ele modo que a diferenç~ ·e,-:.,:e aconted:u:,-~c'.) ,': fontasrna perde sc:a '.:,,;::.c:ti;·.:::ia.
.·/·é
,:-:' e ;,-, . o lév;l
~. .......... . . ' _•.....,;, ,.,.. -, .:~~ .....
_._.._.::.,._À ..::,. •. ,,.,~ .. e,-~ dos fantaSl'II''<" :c.-s-, .,.,: /,z (]UC o fun-
-·"izer-:,: • "o-oza-se
~,'>C'
--.i· -. ..... .. . .:..~. • .. .............. ···- . -...
O realmente
Anunciei que Lacan tinha seu pr6prio sintoma que ele mesmo identificou. Isto está
relacionado com o ponto anterior. O acento sobre o unívoco da realidade leva-o ao real
sem-sentido. I.acan anunciou ao mundo a instância de um real sem-sentido, que consiste
em uma separação radical entre o real e o sentido. É uma idéia tão estranha, produz tal
Befremdung, que ele mesmo diz: "talvez essa idéia do real seja meu sintoma". De certo
modo, nada sobre ele pode ser dito ele verdadeiro. A palavra "real" já é um paradoxo: é
difícil dizer "o real", porque esta frase jã tem um sentido. Talvez o sintoma de Lacan leja
muito interessante, pois implica que, quando se diz algo sobre isso, necessariamente se
mente - o que elucida o elemento de falsidade que há em qualquer história.
É preciso não se esquecer que se trata dos caminhos da formação dos sintomas
histéricos. Nos sintoÍ11as obsessivos, o elemento de falsidade da história está mais velado
pela fenomenologia de satisfação do sintoma. Pode-se dizer que o real faz o sujeito men-
tir e, definitivamente, que o real mente. Assim, para Lacan, o estatuto do sintoma é final-
mente problemâtico. I.acan diz que o sintoma é da ordem do real, o que é um paradoxo,
1. A partir do simbólico, a anâlise opera sobre o real. do sintoma, na medida cm que o sin-
toma é sentido;
2. Se o real e o si,ntido estão totalmente separados e se excluem, a psicanálise não é nada
mais do que um engodo;
3. Como incidir, a partir dos eleitos de Stnn, sobre um gozo sem-sentido?
4. Talvez exista um efeito real de sentido.
Com seus nós, Lacan experimenta todo tipo de arranjos para resolver o tema. Não
creio que tenha esgotado a questão. 'i)lvez a solução esteja nessas variações mesmas,
em uma demonstração que Lacan fazia na lousa com os nós, uma manipulação cada vez
mais silenciosa de um real sem-sentido, a tal ponto que, a cada vez que Lacan nomeava
um círculo ou outro, indicava que era forçado.
Voltando a Freud, na terceira parte nos fornece um esquema. Assinalarei apenas que
é preciso substituir, na sexta parte e nas seguintes, "as vivências infantis" por "os fantas-
mas originários". Freud reduz o número de fantasmas a três essenciais: a observação do
coito, a sedução por um adulto e a castração. Também o faz nas notas sobre o Homem dos
Lobos. E, finalmente, na nota de 1920, nos ,vl'rês ensaios sobre a teoria da sexualidade",
assinala que toda a fantasmago1ia pode ser incluída no Complexo de Édipo e aponta o
caráter necessário de taL5 fantasmas - diz notwendig, termo que prefiro a das Beclürfnis, a
necessidade no sentido de besotn. Sua solução filogenética da existência desses fantasmas
correspcmde ao pré-histórico. Cito-o: "(...) as crianç.as, em suas fantasias, simplesmente
preenchem os claros ela verdade individual com a verdade pré-hi5tórica" 17• Ele mesmo
experimenta a necessidade ele sair da dimensão l1istórica, tal como faz em 1btem e tabu.
A solução lacaniana para o. pré-histórico em Ft'eud é a solução estrutural. Quando
Freud indica a pré-história, a cristalização de vivências que, diz ele, não podemos co-
nhecer diretamente, Lacan oferece a soluçiio maravilhosa da referência estrutural: são
fatos de estrutura.
1\.tdo isto se articula apesar da diferença que Lacan estabelece entre o Complexo
ele Édipo e o Complexo de Castração: o primeiro é o envoltório imaginário do segundo.
Freud mesmo diz que a fonte disso é o pulsional, o que justifica que se vincule a castra-
ção ao pulsional. É o que Lacan escreve na linha superior do grafo do desejo, a vincu-
lação do gozo à castração. Faz com que a castração, o -<p, retorne sobre o próprio gozo.
Isto implica, finalmente, pensar a relaç:ão entre a linguagem e o corpo que, para
J.acan, se traduz como a captura do corpo pela estrutura com seu duplo efeito: de um
Jado, -<p, a estrutura leva a castração ao gozo, o deserto de gozo; do outro, o suplemento,
o objeto a.
É o único ponto em que Lacan indica seu desacordo com Freud - o que é muito in- ·
teressante, porque implica que todo o resto, as elabora~:ões que pude localizar - com certo
forçamento - na conferência XXIII, estã alinhado com Freud. Passar do pré-lústórico ao
estrutural está alinhado com Freud, bem como ir do papel decisivo da rea.lidade psíquica
ao seu imperialismo. O desacordo situa-se em relação à questão cio auto-erotismo.
Freud refere-se ao auto-erotismo ao indicar que a libido busca e encontra seus
objetos no corpo próprio ao afirmar que as pulsôes sexuais se satisfazem de maneira
auto-erótica e quando propõe uma história da pulsão oral:
Sugar o seio materno é de longe o ato mais importante de sua vida. (. ..) Sugar o seio é o
ponto de partida de toda a vicia sexual, o protótipo de toda satisfação sexual ulterior (. .. ). A
princípio, contudo, o bebê, em sua atividade de sucção, abandona esse objeto e o substitui
por uma parte do seu prôprio corp(). (. .. ) A pulsão oral se toma assim auto-erótica, tal como
o são, desde o h1ício, a pulsão anal e as demais pulsões erógenas [...] O resto do desenvolvi-
mento tem duas metas: em primeiro lugar, abandonar o auto-erotismo e, em segundo, unifi-
car os distintos objetos das pulsões singulares, substituí-lo por um único objeto.'"
Depois passa à mãe como primeiro objeto de amor. Já assinalei que, para Freud, a
passagem da libido pulsional ao amor se dá, nesse texto, de um só golpe.
No entanto, em .Freud estão todos os elementos para concluir que a unificação não
é alcançada e que o pardal perdura. Ele mesmo .indica e sublinha o caráter perverso
fundamental da sexualidade. Lacan chegou a dizer, no Seminário 20, que o gozo em si
mesmo não é sexual, pois o sexual se refere ao Outro sexo. Poder-se-ia dizer, neste sen-
tido, que Lacan se refere a um gozo auto-erótico, apesar de que ele prefira chamá-lo de
autista, por não se referir ao Outro sexo. Lac:an começa o Seminário dizendo: "O gozo do
corpo do Outro não é signo de amor". O que isto significa, senão que o gozo do corpo
do Outro é sempre perverso, parcial, é sempre gozar de pedaços? O gozo do corpo do
Outro não faz aceder ao Outro, somente o amor permite isto. É o oposto de l'reud, pois,
para Lacan, há uma barreira entre gozo e amor, e não uma continuidade.
A referência do sintoma
Em resumo, a sétima parte, Die Bedeutung der Symptom, indica o gozo no sintoma
parn além dos relatos de sedução, castra\:ão e coito. Para Freud, há um núcleo de real no
fantasma. Através de uma referência ao principio do prazer e ao princípio de realidade,
ele indica o fato de que sempre sobra um resto de goz~ - o que chama de fixação - que
não obedece às exigências da realidade, tampouco ao princípio de prazer, cujas exigên-
cias são de redução das tensões. Assim Freud distingue, finalmente, um real dentro do
psíquico mesmo, que se esconde dentro.,ç:lo fantasma.
Diz que há algo reservado que perdura e que não corresponde, nem à exigência
da realidade externa, nem à. interna, pois não responde à anulação das tensões que o
princípio do prazer implica. Seria como a memória do trauma do gozo. Freud compara-o
de maneira muito chamativa aos parques naturais:
O parque natural conserva este antigo estado que foi sacrificado em todos os
outros lugares, a duras penas, em função da necessidade objetiva. Pode-se dizer que
nesta descrição tão chamativa do "encrave" já temos o lugar mesmo onde Lac:an uma vez
mencionou a palavra extimiclade.
Freud evidencia o Lustgewinri, o ganho de prazer, distinguindo duas regressões:
a regressão ao fantasma e, para além desta, a regressão à fixação. Pode-se traçar isto no
seguinte esquema:
fantasma fixação
1. O sintoma como oaridade. Não se trata do que se diz sobre o sintoma, mas do sintoma mes-
mo. Podemos cli7.er, melhor, que se trata, ao mesmo tempo, do sintoma e do que se diz dele,
na medida em que em psicanálise essa diferença se esvaece. Assim, o sint~)1n;1 podt~ aparecer
como um enunciado repetitivo sobre o real e, como tal, o pr6prio sintoma é uma mentira. Nào
somente falar disso é uma mentira, mas o sintoma é uma mentira. É dam que se trata de um
mentir tentando dizer a ·verdade, um mentir estrutural. O sujeito não pode responder ao real a
não s~r sintomati7.ando-o. O sintoma é a resposta do sujeito ao trautllático cio real. É diferente
do mentir verdadeiro do escritor Ar.igon, que se refere à obra de arte. Enquanto o sujeito pacle-
c:e no sintoma, o artista é capaz de fazer um jogo com a resposta sintomática ao real.
2. A mriedade da o,wdade. Entende-se isto muito bem atrnvés do esquema S1-S2 e seus efeitos
de sentido. É o próprio esquema do apres-coup. Mas o caráter val'iável da verdade implica um
estatuto simbólico elo sintoma. Situar o sintoma como real implica que a palavra ''sintoma"
indique, ao mesmo tempo, fantasma e fixação. Pode-se dizer que a palavra "sinthoma" refere-
-se à c:one,cão do fan;asma com a fixação.
3. O sintoma como real. Quando Lacan cunhou esta fórmula, o fez cm um contexto em que
já distinguiu, de modo muito prec:iso, duas incidências do real: o simbolicamente real e o
realmente simbólico.
s R
8 Angústia
8 Mentira
Quando Lacan nos diz que o sintoma é real, de que esquema se trata exatamente,
da angústia ou da mentira? De certo modo, há algo do sintoma que se localiza entre a
angústia e a mentira, quer dizer, entre algo que mente e algo que nâo pode enganar -
velha definiçâo que Lacan dava da angústia. Algo circula entre o que engana sempre e
o que nfü) engana jamais. Mas Lacan, ao propor que o sintoma seja a única coisa verda-
deiramente real, quer dizer, que conserve um sentido no real, localiza-o melhor do lad<J
da mentira.
O sintoma mente; a angústia não. ,'!!
Notas
• Seminário sobre lJie \Vege der Symptombildung, realizado em Bam,lona no dia 30 <ie.novemhro de 1996, com as pattid-
pa~'f.ies de Roser c,,salprim, l.ucia IYAngelo, Vicente Palnmera e Joan Salinas. lí:xtc> estabc,lecido por Vicente l'alomera,
Rosalba Zaidel, 'l.uis Miguel Carrión e Eugenio Díaz e traduzido para o português por .Maria Josefina Sola Fue111'es. Revi-
são: 1eresinha N. M. Prado.
Freud, S. 098011915-171). "Conferência XXI: O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais". ln Edi;:fiostandard
l:>msileira das obras psicológicas comp/elas de Slgmund Freud, vol.XVI. Rio de Janeiro: Imago, p.385-386.
2 l'reud, S. (1980[1915-17]). 'Gonforênda XXII: Algumas idéias sobre dese11volvimento e regressão - etiologia". Ibidem,
p.400.
3 idem, Ibidem.
4 l'reud, S. (1980U915-l7J). "Conferência XVIJI: fixação em traumas - o inconsciente•. /bidom, p.330.
5 Idem, lbid,.,ri, 1>.331.
6 Idem, ibid,'111, p.332.
7 Idem, Ibidem, p.330. N:r. Hfl uma dift~·en1<1 significativa entre a edição em esp11nbol e " bm~ilcim, que tornaria a ob-
serva~,t1o seguinte ele J.-A. Miller incompree11sível. Neste L'llSO, permane<c.eu a tradução livre. Segue. :1 cita~'ào na edição
brasileira: "A construç,lo de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa que não ;iconteceu"
g Idem, ibidem, p.330. N.T. Citação exata na edição brnsileit'a: "Isto não se realizou, e, em seu lugar, - a partir dos proce.'lsos
interrompidos. que tle alguma forma foram perturbados e obrigados a permanecer inl,mscientes - o sinmma emergiu.
9 freud, S. (1980[1915-17]). "Conlerência XIX: resistência e repressão". ibidem, p.351.
10 Traduzido livremente.
li TrAduzido livrcmmte.
12 Lacan,]. (1998). "De no.~sos antecedentes". ln Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ediror, p.70.
13 Freud, S. (1980!!915-171). "Conferência XXlll: os caminhos da formação do.~ simomas", op.cll., p.420.
14 Idem, ibidem, p.421.
15 l'reud, S. (198011915-17]). 'Conferência XXII: Algumas idéias sobre desenvolvimento e rcgr<,:;são - etiologia'. lllidem,
p.411.
16 Freud, s. (1980[1915-171). "Conferê11da XXlll: os caminhps da formação dos sintomas', op.cü., p.426.
17 Idem, ibidem, p.433.
18 Preud, S. (l9801l915-J7l). "Coruerência XX: a vida seKunl dos seres humanos", op.cit., J>.367-373.
19 Idem, ibidem, p. 434.