FICHAMENTO MEMORIAIS ACADÊMICOS (Vanessa Lea)
FICHAMENTO MEMORIAIS ACADÊMICOS (Vanessa Lea)
FICHAMENTO MEMORIAIS ACADÊMICOS (Vanessa Lea)
A autora chama atenção para a frustração de estudar América Latina sem conhecer o
continente de primeira mão:
Ao pleitear a bolsa de estudos no Brasil, a autora chama atenção que, ainda que em tempos de
ditadura militar, fazer pesquisa no Brasil não era tão perigoso quanto seria no Chile de Pinochet..
Nesse ínterim, aproveitou seus estudos sociológicos para redigir um projeto sobre a colonização da
Transamazônica, ministrou aulas de inglês e agiu como intérprete de refugiados chilenos. Enquanto
aguarda resultados de sua bolsa, conseguiu em Boston um emprego voluntário no jornal Mohawk
Akwesasne Notes:
[...] Fui morar numa casa de madeira, sem água encanada ou luz
elétrica, nas montanhas Adirondack no estado de Nova Iorque, na
fronteira com Canadá. Depois de pouco tempo, um voluntário
cubano convenceu os Mohawk a expulsar os não índios da
comunidade (eu e um holandês; o cubano permaneceu). Em seguida
encontrei um ride center, coordenando pessoas oferecendo e
precisando de carona. Parti com um motorista de ônibus de Oregon
para entregar um carro em Los Angeles numa viagem de uns dez
dias. Convenci meu co-motorista a visitar Grand Canyon e as áreas
indígenas dos Hopi e Navajo no meio do caminho. Viajei de Los
Angeles a San Francisco e de lá a México e Guatemala. (LEA, 2010,
p. 8-9).
Em 1977 sua bolsa é aprovada, de modo que pôde começar a pôr em prática seus
estudos sobre os indígenas da Amazônia. Sua primeira experiência de campo foi com a tribo
Kayabi, um povo Tupi-Guarani do Parque Xingu. Ali, teve seu primeiro contato com um
Mebengokre, povo no qual viria a realizar estudos significativos por toda sua carreira, tanto
etnologicamente quanto linguísticamente. No Museu Nacional, a autora aprofundou seus
estudos em antropologia econômica, etnologia, campesinato, linguística e nomenclaturas
indígenas. Entre 1977 e 1978, iniciou seu programa de doutorado em antropologia:
Dando continuidade a sua formação na Inglaterra, Lea entrou em contato com Darcy
Ribeiro, sendo influenciada também pela obra de N. Wachtel, La vision des vaincus, bem
como Pierre Bourdieu, autor que não era muito bem visto pelos etnólogos da época. Com
esse arcabouço epistemológico, somada às primeiras experiências de campo, tem o mote de
sua tese: Bens simbólicos, matrilinearidade e genealogias Mebengokre. Segundo Lea:
[...]Encontrava-me na contramão do clima intelectual do meu tempo,
sintetizado por um artigo do meu orientador intitulado “By Gê out of
Africa”, ou seja, propondo uma rejeição dos modelos provenientes
da Antropologia inglesa, e em particular a teoria de descendência e
todas as suas implicações, tais como a existência de grupos
corporados e transmissão de propriedade[...] O tema da rejeição dos
modelos africanistas clássicos foi divulgado no Brasil através do
artigo “A construção da pessoa nas sociedades indígenas
brasileiras”, de Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, publicado em
1979 no Boletim do Museu Nacional (NS 32. pp. 2–19. [...] Na minha
opinião, o corpo é elaborado simbolicamente de forma universal,
embora o tema só ganhasse proeminência e outras áreas
etnográficas mais tarde. Acontece que o destaque dado ao corpo
nas humanidades deu um novo alento à noção de pessoa, ligado a
um novo enfoque na questão da subjetividade e à noção de agency.
Uma das lições importantes para mim daqueles anos no Museu
Nacional foi a percepção de que o indivíduo é um produto histórico e
não uma pedra angular das sociedades de modo universal (LEA,
2010, p. 13)
Não obstante, pôde visitar etnias distintas daquelas pesquisadas diretamente, como as
aldeias Waurá, Kamayura, Yawalapati e Trumai, vitais para entender o contexto de criação e
funcionamento do Parque do Xingu e as especificidades dos Metyktire. Nessa dinâmica de
pesquisa, a autora chama atenção pelas proximidades de aparência, linguísticas e culturais
entre etnias e aldeias. No que concerne à linguística, seu contato com os Apinajé é
sobremaneira ilustrativo:
Em 1986, termina sua tese de doutorado. Após uma troca de orientadores, comenta
sobre sua banca, na qual:
Ainda sobre a banca da tese, afirma que a questão da matrilinearidade levantada não
estava bem resolvida, em virtude da noção de “sociedade de casas” de Lévi-Strauss como
ferramenta de análise para sociedades cognáticas. A autora nega a pertinência do cognatismo
no que diz respeito à sociedade Mebengokre, a não ser no sentido de que “todas as sociedades
reconhecem uma parentela cognática, mesmo tendo descendência matrilinear, patrilinear ou
dupla” (LEA, 2010, p.19).
Ao estudar e publicar mitos das sociedade Jê, a recorrência de nomes pessoais e seus
usos entre a população foi importante para a percepção entre conexões entre diferentes
organizações sociais, aspecto que retornaria em seu livro. Na mesma toada, a geração
ascendente de “jêoólogos” trouxe novas problemáticas e questionamentos que levaram Lea a
se aprofundar na relevância matrimonial entre os Mebengokre. Em 1987, retorna para a
pesquisa de campo, financiada pelo FIEP, onde consegue verificar que as matri-casas
provenientes das duas aldeias que estudou no doutorado (que tinham se juntando em 1985)
estavam situadas no círculo de acordo com sua posição tradicional em relação aos pontos
cardeais. Por conseguinte, também pôde gravar mitos e realizar censos sobre os casamentos.
Entre 1994 e 1996, após um tempo afastada da pesquisa de campo pelo nascimento de
sua filha Julia, desfrutou de uma bolsa da Fundação Wenner-Gren dos EUA, menos
burocrática, que proporcionou a oportunidade de viajar até duas novas aldeias Metyktire,
levando à questionamentos sobre a relação do papel dos homens na vila como provedores
exclusivos de dinheiro, bem como o levantamento de genealogias, a pesquisa de histórias
conjugais, gravação de mitos e as forma de narração pelos homens e mulheres da aldeia. Em
1990, passa a digitalizar suas pesquisas e utilizar o CorelDraw para desenhar plantas das
aldeias no computador.
[...] Isso foi indispensável para fazer uma lista de todos os nomes
Mebengokre anotados no campo (totalizando 63 páginas), para
padronizar sua escrita. Por tratar-se de um povo ágrafo, tive que
decidir como uniformizar a ortografia dos nomes para evitar, por
exemplo, listar duas vezes uma mesma pessoa num banco de
dados, devido à mudança de uma letra ou apenas um acento. Uma
mera diferença desse tipo pode subverter tal organização
provocando diferenciações espúrias. Wilmar indicou uma aluna de
iniciação científica, Patrícia Azeredo, para digitalizar dados
linguísticos, uma tarefa que durou sete meses, de dezembro de 1994
a julho de 1995. Ela incorporou dados provenientes de Earl Trapp,
um missionário do Miceb que estudou a língua na década de 1950, e
os dados provenientes dos missionários do SIL nas décadas de
1960 e 1970.
Para a confecção da obra, Lea precisou reler uma série de mitos Jê, bem como
examinar os bens simbólicos, a fauna e a flora, e comparações semânticas entre o latim,
português e Mebengokre. Após se convencer que seria melhor a publicação no Brasil que no
exterior, a autora optou por traduzir por si mesma a obra, aproveitando-se da oportunidade
para melhorar o português, empreendimento que se mostrou gigantesco, pois começou a
tradução em 2007 e a finalizou apenas em 2010. Após ter sua publicação recusada por
algumas editoras, teve a confirmação por parte da Edusp com recursos fornecidos pela
FAPESP em 2012.
Em 1988, lecionou Tópicos da Linguística Antropológica e Língua Kayapó pela IEL
da UNICAMP, demanda que ofereceu a Lea mais possibilidades para se aprofundar na
fonética, sintaxe e fonologia, bem como no processo de educação bilíngue nas tribos. Porém,
visto que não houveram alunos para levarem a demanda adiante, apenas em 1995 começou a
digitalizar os dados lexicais disponíveis, além da padronização da escrita dos nomes
Mebengokre. O resultado foi a publicação de um artigo sobre a poética dos nomes em 2008,
pela Universidade Federal de Pernambuco.
Desde 2002, a autora participa dos Encontros Macro-Jê, que resultaram na publicação
de artigos, publicações e contribuições internacionais no que tange a linguística, poética dos
nomes e terminologia de parentescos. Ainda que sem muito vulto no Brasil, suas
contribuições sobre o fenômeno dos termos triádicos Mebengokre não passaram
despercebidas pela Australian National University da Austrália.
Quanto sua atuação em perícias, a autora é breve em seu memorial, ainda que frutífera
no que diz respeito ao aprendizado de certas dinâmicas da legislação brasileira relativa aos
povos indígenas:
Já no que diz respeito ao trabalho docente na UNICAMP, a autora reserva uma boa
parte de seu memorial, o que deixa implícito a importância da universidade e do trabalho de
pesquisa com seus discentes em sua trajetória acadêmica. Neste momento do memorial,
pouco depois da metade, a autora prefere recapitular sua trajetória na instituição antes de se
concentrar no período após 2001. De 1983 até 2001, ministrou cursos regularmente na
graduação do curso de Ciências Sociais (LEA, 2010, p.30).
Já entre 2001 até o final de 2009, ministrou treze cursos na graduação nas áreas de
parentesco, etnologia, pesquisa antropológica e mito/rito. A autora destaca sobremaneira o
curso sobre parentesco, que foi ministrado 8 vezes entre 2001 e 2007, com temáticas como
Natal, Réveillon, relacionamentos modernos, gênero e sexualidade, moral familiar. Para Lea:
Já que se trata de um curso obrigatório para a formação em
antropologia os alunos tendem a encará-lo sem muita empolgação,
embora eles mesmos tenham resistido durante muitos anos às
tentativas de reforma curricular propostas pelo Departamento para
transformá-lo em curso optativo. Para tornar o tema menos árido
venho propondo a realização de pesquisa por parte dos alunos sobre
um determinado assunto. Em 2006 o tema elegido foi o natal como
palco para representar a família e o parentesco na sociedade urbana
contemporânea. Foi um desafio convencer os alunos a dissociar
natal de suas conotações religiosas para concentrar no seu aspecto
de ritual de parentesco, mas acabou rendendo trabalhos
interessantes. Os alunos eram unânimes em interpretar o natal como
ritual que mobiliza a parentela enquanto o réveillon é um evento que
envolve os amigos. Ou seja, configura-se de modo ego-centrado
uma rede de parentes no natal, marcada pela comensalidade. Foi
interessante constatar a dificuldade em fazer os alunos
reconhecerem que se dá um presente para mãe, irmão etc. não por
ser parente, mas para marcá-los como parentes, ou seja, para
reafirmar uma relação. Foi proveitoso concentrar num tema
específico, pois esse permitia maior aprofundamento (LEA, 2010,
p.31)
Já em 2009, ministrou o curso de Etnologia Sul Americana e Mito e Rito. Ainda que
com a impossibilidade de levar os alunos para o campo, Lea ressalta as tentativas de
ambientar o máximo possível a sensação, por meio do uso do audiovisual. A autora destaca
que o acesso à filmografias, bem como o conhecimento de cineastas clássicos da produção
brasileira como Glauber Rocha, foi um” ingrediente importante para sua formação” (LEA,
2010, p.33).
Quanto suas orientações, das cinco dissertações de mestrado defendidas, três foram
publicadas como livros: Da terra das primaveras à ilha do amor: reggae, lazer e identidade
em São Luís do Maranhão, de Carlos Benedito Rodrigues da Silva, publicado pela editora
da Universidade Federal de Maranhão, em 1995; Cayapó e Panara: Luta e Sobrevivência de
um povo Jê no Brasil Central, de Odair Giraldin, publicado pela editora da UNICAMP em
1997 e Aspectos Fundamentais da Cultura Kaingang, de Juracilda Veiga, publicado pela
editora Curt Nimuendajú em 2006 (LEA, 2010, p.36).
Tópico importante é quanto à educação indígena, tema que a autora passa rapidamente
no início e retorna, para falar de sua participação no curso para a formação de professores
bilíngues Mebengokre, na aldeia de Kubenkokre, no estado do Pará em 1998. Ali, pôde
uniformizar a escrita e elaborar a produção de materiais pedagógicos, bem como realizar
diversas modificações em sua ortografia Mebengokre, minimizando certas discrepâncias que
percebeu. É interessante perceber que a conotação da palavra “pesquisa” vai se alterando ao
longo de sua participação no curso. Inicialmente, era tido como pejorativa e associada à
predação de dados de pesquisadores para se enriquecer às custas dos povos indígenas. Para a
autora, os “próprios indígenas têm assumido gradativamente o papel de pesquisadores, ainda
que com certas ambivalências”. (LEA, 2010, p.38).
No que concerne às suas publicações, a autora foca nas de caráter etnográfico, a maior
parte fruto da participação em reuniões científicas. Em especial, cita um de 1983 sobre
indigenismo (de co-autoria com Bruna Franchetto, colega de doutorado), um artigo sobre a
onomástica Mebengokre e um capítulo sobre matri-casas Mebengokre, já citado. Também
destaca um capítulo sobre a amizade formal e aliança matrimonial Mebengokre, em 1995. Já
em 2005, tem um artigo publicado numa revista polonesa de estudos latino-americanos, sobre
cerimônias de nomeação Mebengokre.
Na mesma toada, Lea passa a se interessar pela comparação entre a etnologia das
terras baixas da América do Sul e de Mali, o que renderia a publicação de um artigo no
Journal of the Anthropological Society of Oxford (JASO) em 1994. Quanto à temática de
gêneros, a autora teve a oportunidade de apresentar dois trabalhos no Núcleo de Estudos
Pagu, também em 1994. Em 2003, publicou um artigo sobre a performance do choro
cerimonial feminino em Berlim, bem como outras contribuições em capítulos e trabalhos de
iniciação científica.
Quanto suas resenhas, Lea chama atenção para quatro realizadas desde 2003: Uma
coletânea póstuma do etnobiólogo Darrell Posey; uma tradução em inglês de um livro de
Louis Dumont; tatuagem Maori da Nova Zelândia e a última uma resenha sobre
matrilinearidade e uxorilocalidade em diversas regiões do mundo (LEA, 2010, p.42).
No que diz respeito ao trabalho de assessoria, a autora chama atenção por ser uma
atividade “invisível e que consome uma quantidade enorme de tempo”. Não obstante, a partir
de 2001 realizou aproximadamente trinta pareceres para FAPESP, cinquenta e três para o
CNPq, dezesseis para FAEP, UNICAMP, um para FAPES do Espírito Santo e um para a
revista Cadernos Pagu. Um total de cento e um pareceres entre 2001 e 2009. (LEA, 2010,
p.43).
No que diz respeito a atividades administrativas, Lea destaca sua participação na
criação da Área de Etnologia, no Doutoramento de Ciências Sociais, em 2004 e efetivamente
implantada em 1995 no IFCH. Segundo a autora:
Por último, mas não menos importante, Lea reforça que os esforços intelectuais
empreendidos em sua carreira foram, até a atualidade do memorial, na etnografia dos
Mebengokre, chamando atenção para a enorme quantidade de dados de pesquisa ainda não
processados. Como perspectivas, cita a “pretensão de uma abordagem mais aprofundada
sobre os vínculos entre as casas e mitologia e a amizade formal e a questão da aliança
matrimonial, respectivamente, temáticas que iniciou em 1987 e 1990” (LEA, 2010, p.46).
Na mesma toada, iniciou um estudo comparativo entre amizade formal em todas as
sociedades Jê, tendo em vista uma tese de livre docência, que resultou na publicação de um
enfoque mais delimitado num modelo hipotético de aliança matrimonial Mebengokre, nas
filhas das amigas formais como cônjuges virtuais. A autora pretende também, após a
publicação de seu livro, "digitalizar as genealogias e incorporar dados dos censos realizados
em 1987, 1994-5 e 2002”. (LEA, 2010, p.46).
Em síntese, a pesquisa de Vanessa Lea tem como enfoque a organização social, temas
de matrifocalidade, matrilinearidade, uxorilocalidade e o mito do matriarcado. No que diz
respeito a etnologia brasileira, a autora considera que a área se encontra num momento de
crise:
Atualmente, a autora reconhece uma melhoria nesse cenário, com os povos indígenas
tendendo a ver os antropólogos como uma ajuda na obtenção de melhorias e no pleito de
melhorias nas áreas de educação, saúde e defesa de terras. Para Lea, ainda que a linguística
tenha sofrido um boom, a etnologia passa por uma crise identitária, visto a consciência
antropológica de que a cultura não é reificada, estando assim num processo de reformulação
constante. Numa perspectiva teórica, a autora comenta se interessar pela questão da
conciliação entre os polos cidadania e economia globalizada, temática que pediria uma
investigação intercultural que vá além de proselitismos neoliberais (LEA, 2010, p.48).
Segundo Lea:
Por fim, quantos as projeções futuras de pesquisa, Lea pretende disponibilizar seu
livro para a língua inglesa, redigir um artigo sobre os termos triádicos, bem como
desenvolver projetos voltados para o desenvolvimento da educação e as implicações da
desigualdade, tanto entre homens e mulheres quanto indígenas (LEA, 2010, p.51). Além
disso, pretende organizar um banco de dados multimeios e transcrever seus diários de campo,
além de perspectivas de uma pesquisa sobre a escrita criativa dos povos indígenas brasileiros
e, ainda mais distante, porém dentro do horizonte da autora, pesquisar sobre a Nova Zelândia
e a literatura Maori.