Fátima. Modelos Pancrônicos de Descrição Linguística

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MODELOS PANCRÔNICOS DE DESCRIÇÃO LINGUÍSTICA: PERCURSOS

DE SENTIDO

Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista


UFPB/Programa de Pós-Graduação em Letras
Produtividade em Pesquisa - CNPq

Introdução
Este trabalho dialoga com os modelos pancrônicos de descrição linguística,
considerando o ponto de vista da semiótica de linha francesa que tem por objeto de
estudo a significação, entendida como função semiótica e definida em discurso. Fazer
uma revisão das dicotomias linguísticas: língua e fala/competência e performance,
sincronia e diacronia com base nos estudos semióticos pancrônicos e, depois, aplicá-la à
análise do discurso etnoliterário constituiu o objetivo geral do trabalho. Examinamos,
em princípio, o sentido de pancronia e as mudanças operadas no hoje da língua, tendo
como fundamento a semiótica de linha francesa e a semântica cognitiva. Buscamos
aplicar a teoria estudada à análise do romance oral O Cego, estabelecendo os percursos
que mostram as mudanças operadas no texto linguístico.
Palavras chave: Semiótica. Linguística. Dicotomias.

Revisitando as dicotomias

Em Saussure, a língua é o sistema linguístico, “a parte social da linguagem,


exterior ao indivíduo que, por si só, não pode nem criá-la, nem modificá-la: ela não
existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da
comunidade.” (CLG: p.22). Duas observações merecem ser feitas em cima deste
conceito: a língua é social, e, portanto, exterior ao indivíduo e este não pode modificá-la
nem criá-la. A fala, ao contrario, “é um ato individual de vontade e inteligência” em que
o autor distingue a existência de “combinações pelas quais realiza o código da língua no
propósito de exprimir seu pensamento pessoal“ e, ainda, a existência do “mecanismo
psicofísico que lhe permite exteriorizar estas combinações.”
Para Bally (1950: P. 124), a língua é o acervo linguístico social e a fala é o
funcionamento linguístico individual, ou seja, a realização individual da língua. Antonio
Pagliaro (1950: P. 57 – 103), partindo da “realidade concreta do falante e da
consideração da linguagem cognoscitiva” considera a língua como “projeção objetiva e,
ao mesmo tempo, condição técnica da linguagem (atividade linguística). A língua

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pertence ao individuo e, ao mesmo tempo, à sua comunidade e, no próprio indivíduo,
apresenta – se como alteridade, como algo que pertence também a outros.” Coseriu
(1979:p.51), considerando a importância dessa questão levantada por Pagliaro, propõe
um novo elemento: a norma, que são as realizações coletivas da língua e não “elementos
únicos e ocasionais, mas sociais, isto é, normais e repetidos no falar de um comunidade
e que, entretanto, não pertencem ao sistema funcional das formas linguísticas”.
Chomsky (1965: p.3-14) aproximou a dicotomia língua e fala de competência e
performance. A competência seria o saber linguístico do falante, a possibilidade de fazer
frases novas, continuamente, utilizando este saber que é o conhecimento das estruturas
linguísticas da comunidade onde se encontra o falante.
Os autores mencionados tentaram elucidar o conceito da dicotomia saussuriana o
que será melhor explicitada pelos pancrônicos.
A noção de pancronia, proposta inicialmente pelo sociolinguista francês
Marcellesi (Congresso semiótico de Viena – 1979) e ampliada pelo semioticista
brasileiro Cidmar Pais (1993), neutraliza a oposição saussuriana Diacronia e Sincronia.
Firma-se no fato de que o sistema não é estático, nem mutável apenas em longo prazo,
quando marca a passagem de uma língua para outra, conforme o estruturalismo rígido
leva a compreender, mas se encontra em contínua mudança. É o hoje da língua que faz a
mudança. A língua funciona mudando e muda porque funciona é o princípio pancrônico
básico. O sistema não é apenas coletivo, mas é, também, individual e representa o
conhecimento linguístico que o falante possui para expressar sua visão de mundo,
transformando-se em uso a cada enunciação. Assim sendo, o conhecimento da língua é
variável de um falante para outro e, mesmo com relação a um mesmo indivíduo, de uma
enunciação a outra (PAIS: 1993). Uma vez que os usos se dão em discurso, considera-
se, então, a terminologia sistema e discurso para nomear a dicotomia proposta pelo
genebrino.
Quanto à dicotomia significante e significado de Saussure, cuja releitura feita
por Hjelmslev propõe nomeá-la conteúdo e expressão, observa-se que a expressão não é
apenas fônica, mas pictórica, musical, gestual, etc. Isto permite considerar o mundo
como semioticamente construído, estando as significações presentes em todos os
objetos e atividades humanas, não apenas na língua. A linguística é, portanto, um dos
momentos da ciência da semiótica. Esta constitui a metateoria, à qual estão vinculadas
todas as ciências humanas, o que não contradiz o pensamento de Saussure, mas o
complementa. Aliás, realiza o seu sonho de construção de uma nova ciência que ele

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nomeou Semiologia (hoje Semiótica) que daria conta do “estudo dos signos no seio da
vida social, da qual a linguística seria um de seus ramos”. (CLG)

Uma linguística dos percursos e sua aplicação à análise do discurso etnoliterário:

O estabelecimento de percursos (da significação e da enunciação) passa a ser o


agir do analista semioticista, a fim de mostrar as mudanças operadas no hoje da língua.
Greimas (1966/1970) considerou a significação como um percurso constituído
de três níveis: um fundamental ou profundo, o narrativo ou intermediário e o discursivo
ou superficial. No primeiro caso, têm-se as relações de oposição básica, encontradas no
texto; no segundo, ocorre a instauração do sujeito semiótico que busca o objeto de valor
e, finalmente, no terceiro nível, são destacadas as relações intersubjetivas e espaços
temporais de enunciação e enunciado, bem como o percurso temático-figurativo do
texto.
A enunciação foi também descrita como percurso por Pais (1993) e Pottier
(1992) que, partindo da mente do enunciador, precisamente de sua competência sobre
um universo qualquer (y), só está concluído na mente do enunciatário, reformulando sua
competência sobre o mesmo universo. Apresenta várias etapas, desde a percepção dos
objetos do mundo natural pelo sujeito enunciador até a implantação na mente do
enunciatário dos elementos linguísticos produzidos em discurso.
O percurso da enunciação de codificação, chamado pelos sociossemioticistas de
fazer persuasivo, compreende, segundo Pais (1977:40), as etapas que descreveremos a
seguir. A primeira é a percepção, na qual o enunciador toma consciência dos objetos do
mundo natural. A conceptualização é a etapa que se segue onde transparece o conceito
que o enunciador tem a propósito dos seres e dos objetos percebidos. Denomina-se
semiologização a instância onde se passa do conceito às formas semiológicas. Em
seguida, tem-se a semiotização que, como o próprio nome indica, consiste na ação de
um Sujeito determinado que busca o seu valor. Ocorre, aqui, a passagem do nível
cognitivo ao semiótico. Esta se dá através da leximização, ou seja, através da escolha
das lexias que vão ser utilizadas na atualização em discurso. A semiose é o
procedimento seguinte que consiste na produção, acumulação e transformação da
significação culminando com a produção do texto que é percebido pelo enunciatário.
O percurso da enunciação de decodificação, também chamado fazer
interpretativo, parte do sentido inverso, isto é, da produção do texto que é percebido
pelo enunciatário. Este (re)atualiza: reconhece a semiótica objeto, o código utilizado e

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identifica os objetos manifestados. Em seguida, (re)semiotiza: reconstrói o texto
completo e sua significação. Portanto, faz a leitura e a interpretação do texto com sua
visão de mundo, nele incluindo aqueles elementos que são próprios de sua cultura. A
(re)semiologização é a etapa seguinte, quando o enunciador reorganiza os campos
semânticos e os universos semiológicos. Na (re)conceptualização, ele faz a
reconstituição do metassistema conceptual, analisando a experiência nesse nível. Com
isso, o enunciador realimenta e auto-regula o seu sistema conceptual que lhe chega à
mente modificado, fazendo aumentar sua competência e seu saber sobre o universo em
questão. Por mais fiel que o enunciatário reproduza o texto do enunciador, este não será
o mesmo. Diz-se, portanto, que em cada enunciação existem, no mínimo, dois textos:
um produzido pelo enunciador na codificação e outro pelo enunciatário na
decodificação. Se houver mais de um enunciatário, cada um produzirá o seu texto
interpretativo.
Vejamos, agora, a aplicação das teorias mencionadas à análise semiótica do
romance oral O Cego que tem como referência histórica os disfarces do rei James da
Escócia (1512-1542), pai de Maria Stuart. Este costumava vestir-se de cego e
maltrapilho para conquistar suas amantes em vilarejos e bairros pobres da periferia da
cidade. Esta análise se atém aos cinquenta e nove textos publicados no Nordeste do
Brasil, por diferentes estudiosos, entre os quais incluímos os que levantamos na Paraíba
e em Pernambuco para a realização de um Romanceiro. Os textos levantados foram
codificados com a sigla CE (De Cego), seguida de um numeral cardinal de 1 a 59.
No Nordeste do Brasil, o romance resulta da articulação de quinze segmentos
temáticos figurativos, de extensão variável. Alguns têm apenas um hemistíquio (como o
Sg2) e outros apresentam vários (Sg9 na versão 13). Vejamos, a seguir, os segmentos
enumerados de 1 a 15:

Sg1 — Batida ou chamada do suposto cego à porta

Sg2 — Sondagem da jovem (ou da sua mãe). Recusa da jovem em


abrir a porta

Sg3 — Apresentação e pedido do cego

Sg4 — Pedido de Aninha/Helena/Maria à mãe ou vice-versa para


que acorde e tome conhecimento da presença do cego.

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Sg5 — A mãe ordena à filha que dê esmola ao cego e/ou que a
deixe dormir.

Sg6 — O cego recusa a esmola e faz um novo pedido: que a menina


o guie.

Sg7 — A mãe ordena que a menina guie o cego

Sg8 — Aninha/Helena/Maria/a menina deixa a roca e o linho e


ensina o caminho ao cego. Despede-se dele depois.

Sg9 — O cego insiste para que Aninha/Helena/Maria ande mais um


bocadinho

Sg10 — Aninha/Helena/Maria pede para ele ir ligeiro/espanta-se ao


ver uma cavalaria se aproximando/ou o castelo. Desconfia do
cego

Sg11 — O cego revela o motivo da mentira e/ou a participação da


mãe no rapto e/ou obriga-a a subir no cavalo.

Sg12 — Aninha/Helena/Maria se despede (mãe/casa/jardim) e


considera a mãe boa (em Vb) e má (Va , Vc e Vd), caso em
que se lamenta e pede socorro à mãe ou à madrinha/pede para
elas virem buscá-la (Vd). Tristeza/alegria da jovem.

Sg13 — O cego ordena que as portas e janelas estejam abertas e/ou


que o cachorro deixe de ladrar para acolhê-la.

Sg14 — A mãe noticia a fuga da filha à vizinha.

Sg15 — A vizinha não parece gostar do fato, ao responder que vai


colocar as filhas dela na peia.

Agrupamos, a seguir, os seguimentos, determinando, em ordem decrescente, o


número de versões em que aparecem:

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No de Versões em que Identificação dos
aparecem segmentos

48 Sg5

44 Sg11

41 Sg6

38 Sg10

36 Sg12

31 Sg9

27 Sg1

25 Sg2

24 Sg3

16 Sg7 e Sg8

11 Sg4

3 Sg13 , Sg14 , Sg15

Os segmentos Sg5 e Sg11 foram os que mais resistiram à ação do tempo, logo
seguidos de Sg6, Sg10 e Sg12. Os demais tendem a uma frequência que varia de mediana
(9,1,2,3) à baixa (7,8,4,14,15). Os de frequência alta e mediana representam o núcleo
significativo do texto, bem como, a aceitação popular. Os de frequência baixa mostram
o pouco apreço na preferência popular.
O quadro a seguir mostra, em ordem decrescente, o número de segmentos por
versões, bem como a referência da obra que as publicou.

Versões Segmentos Localidade onde foi levantado

CE39 13 LIMA, Aracaju-SE. 1977: p.260-262


CE57 11 VILELA, Maceió-AL, 1983: p.77

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Versões Segmentos Localidade onde foi levantado
CE40 11 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.262-263
CE13 11 COSTA, Recife-PE, 1974: 340-342
CE59 10 GALVÃO, Natal-RN, 1993: p.44-45
CE35 10 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.254-256
CE33 10 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.252-253
CE21 10 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.239-240
CE17 10 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.234-236
CE16 10 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.233-234
CE9 9 BATISTA (inedito), Boqueirão-PB, 1988
CE29 9 LIMA, Propriá-SE, 1977: p.248-249
CE24 9 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.242-243
CE15 9 COSTA, Recife-PE, 1974: p.340-342
CE6 8 BATISTA, (inédito) Sítio Pau D’arco
(Salgado de São Félix-PE), 1987
CE5 8 BATISTA, (inédito) Aroeiras-PB, 1987
CE34 8 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.253-254
CE30 8 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.249-251
CE28 8 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.247-248
CE20 8 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.238-239
CE19 8 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.237-238
CE14 8 COSTA, 1974: p.340-342
CE11 8 BATISTA, (inédito) Sítio Paquivira
(Macaparana-PE), 1987
CE10 8 BATISTA, (inédito) Sítio Pau D’arco
(Salgado de São Félix-PE), 1987
CE58 7 GALVÃO, Natal-RN, 1993: p.44-45
CE42 7 Riachão do Jacuípe-BA, 1986: p.184
CE38 7 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.258-260
CE25 7 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.243-244
CE23 7 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.241-242

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Versões Segmentos Localidade onde foi levantado
CE43 6 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: P.184
CE37 6 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.257-258
CE3 6 BATISTA, (inédito) Ipojuca-PE, 1988
CE27 6 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.246-247
CE26 6 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.244-246
CE1 6 BATISTA, (inédito) Cabo-PE,1988
CE4 5 BATISTA, (inédito) Recife-PE, 1988
CE2 5 BATISTA, (inédito) Lagoa do Carro-PE,
1987
CE18 5 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.236-237
CE12 5 BATISTA, (inédito) Serra Talhada-PE, 1987
CE8 4 BATISTA, (inédito) Pilões de Dentro-PB,
1988
CE54 4 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.188
CE47 4 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.186
CE45 4 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.186
CE41 4 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p183
CE36 4 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.256-257
CE31 4 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.251-252
CE55 3 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.189
CE53 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.188
CE52 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.187

121
Versões Segmentos Localidade onde foi levantado
CE51 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.
CE50 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.186-187
CE49 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.186
CE48 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.186
CE46 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.185
CE44 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.185
CE32 2 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.252
CE22 2 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.240-241
CE7 1 BATISTA, (inédito) João Pessoa-PB, 1988
CE56 1 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.189

Observe-se que nenhuma versão se acha completa, isto é, apresentando os


quinze seguimentos, o que comprova a existência de modificações que atingiram a
estrutura do romance como um todo.
A versão mais completa é a CE39, anônima, recolhida em Lagartos por Sílvio
Romero no final do século XIX e publicada por Lima (1977: p.260 – 262). Além de ser
a mais completa, a CE39 é a mais extensa, apresentando setenta e dois hemistíquios.
Como é uma entre as mais antigas, observou-se uma redução de quase 50% na extensão
do romance, em relação às coletas mais recente. As que recolhemos, no máximo,
apresentaram nove segmentos (CE9), portanto, quatro a menos do que aquela. Houve,
portanto, uma redução significativa na estrutura formal do romance, o que se pode
explicar pelo espaço de tempo decorrido entre as duas recolhas: entre setenta a cem
anos, aproximadamente.
O exame da textualização permitiu observar a existência de cinco naturezas de
versões: grupo a (Va) onde a filha não gostou do contrato da mãe com o cego e por isso
tenta libertar-se; grupo b (Vb) em que a filha não levanta oposição ao desejo da mãe,
antes se alegra com o fato; grupo c (Vc) corresponde a Va, eliminando-se a tentativa de

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libertação da filha que se resigna à vontade da mãe; grupo d (Vd) acrescenta a Vc o fato
de a mãe retirar de si a própria culpa para jogá-la na filha e o grupo e (Ve) que elimina
toda a opinião da filha sobre a mãe, ficando isentas de análise sob este aspecto.
Considerando o percurso da enunciação, observa-se que a percepção é feita
através de dois sentidos: é sonora, quando a filha escuta o bater na porta, representada
em algumas versões,com onomatopeias do tipo de: Tac, Tac, Tac (CE6) e é visual
quando ela própria vê o cego. Em seguida, ela atribui ao que vê conceitos como cego,
pobre. Esses momentos são anteriores a realização dos enunciados linguísticos. São pré
– linguísticos. Com a pergunta que a jovem faz: quem me chama? (na versão: CE6)
surgem as figuras de superfície que vão dar concretude ao texto, culminando com a
semiose que produz, acumula e transforma as significações em discurso. A resposta do
Cego: É um pobre ceguinho, é um pobre ceguinho que vem lhe pedir (CE 6) instaura o
cego como sujeito semiótico cujo valor é esmola. Isto na ordem do parecer, uma vez
que ele não é cego nem quer ser. O interesse dele é a jovem: Eu nunca fui cego, nem
Deus não permita/ Eu só me fiz cego por moça bonita (CE5). A jovem, destinada pela
mãe, atende o pedido do cego e torna-se, também, sujeito semiótico na ordem de um
dever fazer/ dar a esmola ao cego/ensinar o caminho, etc:
─Vai, Helena, ao armarinho
Pegar pão e vinho pu pobre ceguinho

─Vai, Helena, devagarzinho,


Ensina o caminho a este ceguinho.

De inicio, em todas as versões, a mãe, é respeitada pela filha que nela confia e
atende - lhe todos os pedidos. Portanto, a mãe é boa. A descoberta de que a mãe havia
tido um acordo anterior com o cego transforma o conceito que a filha tinha da mãe: ela
não é verdadeira, nem digna de sua confiança; portanto, é má, o que a deixa triste em
algumas versões:
“Adeus minha mãe, adeus meu jardim, adeus minha mãe que
foi falsa a mim / Adeus minha mãe que tão falsa me foi.”
(CE5)

Em outras, todavia, embora reconhecendo ter sido enganada, alegra-se em


virtude da posição elevada que passará a ocupar:
“Adeus minha casa, adeus meu jardim / Adeus minha mãe
que foi boa prá mim.” (CE2)

123
Usado, muitas vezes como teatro, nas festividades escolares do interior
nordestino, o texto apresenta uma disposição dialógica onde acontece a mudança de
turno do enunciador para o enunciatário e vice – versa. Assim, o procedimento de
recepção acontece, quase que simultaneamente, com o de recepção. Os sujeitos
enunciador e enunciatário são atores dos enunciados e, portanto, estão embreados entre
si com o tempo da enunciação e do enunciado.

Conclusão

A análise das cinquenta e nove versões do romance oral permitiu considerar


que o núcleo do enredo é o mesmo, mas cada informante o superficializa
diferentemente, ora ampliando momentos especiais, ora os reduzindo, ou ainda,
utilizando figuras de expressão diversas para dizer a mesma coisa, o que mostra não
apenas uma escolha estilística da língua, mas conhecimento diverso da mesma. Isto vem
a comprovar que a competência dos sujeitos envolvidos não é a mesma, mas se
modifica de um sujeito para outro. Além disso, alguns conceitos são modificados no
interior da narrativa. Por exemplo, a ideia de mãe boa, perfeita e caridosa, considerada
em principio, é desconstruída para o sujeito filha quando descobre ter sido vitima de
uma traição da qual a mãe é mentora junto com o cego. Em cada atualização, o sujeito
responde por modificações operadas no seu sistema e no daqueles com quem interage.
Novas são as figuras de expressão ou novos são os conceitos apreendidos. Há um
processo contínuo de autoalimentação e autorregulação, de formulação e reformulação
do sistema. São os discursos que respondem por estas mudanças no sistema. O sistema
produz o discurso que, por sua vez, produz o sistema continuamente.

Referências
ALCOFORADO, Doralice Xavier e ALBAN, Maria del Rosário Suárez. Romanceiro
Ibérico na Bahia. Salvador: Livraria Universitária, 1996
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Brasileira de Professores de Lingüística, vol. 8 São Paulo: Ed. Plêiade, 2000, p. 95-120.
______ Léxico, Produção e criatividade. 3 ed. São Paulo: Plêiade, 1996
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral. São Paulo: Nacional, 1976
CHOMSKY, Noam. Aspects of the theory of syntax. Cambridge. Mass: MIT Press,
1965.
COSERIU, Eugenio. Teoria da linguagem e linguística geral. Rio de Janeiro:
Presença; São Paulo: Edusp, 1979.
GREIMAS, A. J. Semantique structurale. Paris: Larousse 1966.

124
______ Du sens. Paris: Seuil 1970.
COURTÉS, J. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Almedina,
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GALVÃO, Hélio. Romanceiro – pesquisa e estudo. Introdução e notas de Deífilo
Gurgel. Natal: UFRN: Fundação Cultural Hélio Galvão: Fundação Sócio Cultural Santa
Maria, 1993.
LIMA, Jackson da Silva. O folclore em Sergipe: romanceiro. Rio de Janeiro: Cátedra;
MEC – Brasília: INL, 1977
PAIS, Cidmar Teodoro. Conceptualisation, dénomination, désignation, reference:
reflexions à propos de l´énonciation et du savoir sur le monde. In: Textures. Cahiers
du C.E.M.IA. Lyon, Université Lumière Lyon 2, 1998 p. 271-311.
______ Conditions sémantico-syntaxiques et sémiotiques de la procuctivité
systémique, lexicale et discursive. Doctorat d´État em Lettres et Sciences Humaines. 3
tomes. Directeur de Recherche: Bernard Pottier. Paris: Université de Paris-Sorbonne
(Paris IV), 1993
POTTIER, Bernard. Sémantique générale. Paris: Presses Universitaires de
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POTTIER, Bernard. Théorie et analyse em linguistique. Paris: Hachette,1987
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 9° ed. São Paulo: Editora
Cultrix.

125
Anexo
CE6 - O CEGUINHO
Cantado por Maria Cristina Lopes, 15 anos,
estudante do 1º grau, Sítio Pau d’Arco (Salgado de
São Félix) em 20 de janeiro de 1987.
Tac, tac, tac, — quem me chama?
—É um pobre ceguinho, é um pobre ceguinho, é um pobre ceguinho
—Vai Helena ao armário (bis)
Pegar pão e vinho pr’este pobre ceguinho (bis)
—Não quero o seu pão, não quero o seu vinho (bis)
Só quero que Helena me ensine o caminho (bis)
—Vai Helena devagarinho (bis)
Ensina o caminho a este pobre ceguinho (bis)
—Nem sou cego, nem quero ser (bis)
Só fingi de cego prá roubar você (bis)
—Adeus minha casa, adeus meu jardim (bis)
Adeus minha mãe, que foi boa prá mim (bis)
(BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de
Mesquita. Romanceiro em Pernambuco.
Inédito: 1988)

CE3 - O CEGO
Cantado por Isabel Maria Alves, 66 anos, Usina
Salgado, Ipojuca-PE, em 14 de janeiro de 1988.

— Minha mãe, aqui tem um cego cantando e pedindo


— Se ele está pedindo dá-lhe pão com vinho
— Eu não quero o teu pão nem quero o teu vinho
Só quero que me ensine somente o caminho
— Se alevanta, Aninha vai guardar teu linho
Pega as mão do cego e ensina o caminho
— Eu não sou cego, nem Deus tal permita
Eu só me acho cego por moça bonita
— Adeus minha casa adeus meu jardim
Adeus minha mãe que foi falsa a mim.
(BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de
Mesquita. Op. Cit. Inédito: 1988)

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