Fátima. Modelos Pancrônicos de Descrição Linguística
Fátima. Modelos Pancrônicos de Descrição Linguística
Fátima. Modelos Pancrônicos de Descrição Linguística
DE SENTIDO
Introdução
Este trabalho dialoga com os modelos pancrônicos de descrição linguística,
considerando o ponto de vista da semiótica de linha francesa que tem por objeto de
estudo a significação, entendida como função semiótica e definida em discurso. Fazer
uma revisão das dicotomias linguísticas: língua e fala/competência e performance,
sincronia e diacronia com base nos estudos semióticos pancrônicos e, depois, aplicá-la à
análise do discurso etnoliterário constituiu o objetivo geral do trabalho. Examinamos,
em princípio, o sentido de pancronia e as mudanças operadas no hoje da língua, tendo
como fundamento a semiótica de linha francesa e a semântica cognitiva. Buscamos
aplicar a teoria estudada à análise do romance oral O Cego, estabelecendo os percursos
que mostram as mudanças operadas no texto linguístico.
Palavras chave: Semiótica. Linguística. Dicotomias.
Revisitando as dicotomias
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pertence ao individuo e, ao mesmo tempo, à sua comunidade e, no próprio indivíduo,
apresenta – se como alteridade, como algo que pertence também a outros.” Coseriu
(1979:p.51), considerando a importância dessa questão levantada por Pagliaro, propõe
um novo elemento: a norma, que são as realizações coletivas da língua e não “elementos
únicos e ocasionais, mas sociais, isto é, normais e repetidos no falar de um comunidade
e que, entretanto, não pertencem ao sistema funcional das formas linguísticas”.
Chomsky (1965: p.3-14) aproximou a dicotomia língua e fala de competência e
performance. A competência seria o saber linguístico do falante, a possibilidade de fazer
frases novas, continuamente, utilizando este saber que é o conhecimento das estruturas
linguísticas da comunidade onde se encontra o falante.
Os autores mencionados tentaram elucidar o conceito da dicotomia saussuriana o
que será melhor explicitada pelos pancrônicos.
A noção de pancronia, proposta inicialmente pelo sociolinguista francês
Marcellesi (Congresso semiótico de Viena – 1979) e ampliada pelo semioticista
brasileiro Cidmar Pais (1993), neutraliza a oposição saussuriana Diacronia e Sincronia.
Firma-se no fato de que o sistema não é estático, nem mutável apenas em longo prazo,
quando marca a passagem de uma língua para outra, conforme o estruturalismo rígido
leva a compreender, mas se encontra em contínua mudança. É o hoje da língua que faz a
mudança. A língua funciona mudando e muda porque funciona é o princípio pancrônico
básico. O sistema não é apenas coletivo, mas é, também, individual e representa o
conhecimento linguístico que o falante possui para expressar sua visão de mundo,
transformando-se em uso a cada enunciação. Assim sendo, o conhecimento da língua é
variável de um falante para outro e, mesmo com relação a um mesmo indivíduo, de uma
enunciação a outra (PAIS: 1993). Uma vez que os usos se dão em discurso, considera-
se, então, a terminologia sistema e discurso para nomear a dicotomia proposta pelo
genebrino.
Quanto à dicotomia significante e significado de Saussure, cuja releitura feita
por Hjelmslev propõe nomeá-la conteúdo e expressão, observa-se que a expressão não é
apenas fônica, mas pictórica, musical, gestual, etc. Isto permite considerar o mundo
como semioticamente construído, estando as significações presentes em todos os
objetos e atividades humanas, não apenas na língua. A linguística é, portanto, um dos
momentos da ciência da semiótica. Esta constitui a metateoria, à qual estão vinculadas
todas as ciências humanas, o que não contradiz o pensamento de Saussure, mas o
complementa. Aliás, realiza o seu sonho de construção de uma nova ciência que ele
115
nomeou Semiologia (hoje Semiótica) que daria conta do “estudo dos signos no seio da
vida social, da qual a linguística seria um de seus ramos”. (CLG)
116
identifica os objetos manifestados. Em seguida, (re)semiotiza: reconstrói o texto
completo e sua significação. Portanto, faz a leitura e a interpretação do texto com sua
visão de mundo, nele incluindo aqueles elementos que são próprios de sua cultura. A
(re)semiologização é a etapa seguinte, quando o enunciador reorganiza os campos
semânticos e os universos semiológicos. Na (re)conceptualização, ele faz a
reconstituição do metassistema conceptual, analisando a experiência nesse nível. Com
isso, o enunciador realimenta e auto-regula o seu sistema conceptual que lhe chega à
mente modificado, fazendo aumentar sua competência e seu saber sobre o universo em
questão. Por mais fiel que o enunciatário reproduza o texto do enunciador, este não será
o mesmo. Diz-se, portanto, que em cada enunciação existem, no mínimo, dois textos:
um produzido pelo enunciador na codificação e outro pelo enunciatário na
decodificação. Se houver mais de um enunciatário, cada um produzirá o seu texto
interpretativo.
Vejamos, agora, a aplicação das teorias mencionadas à análise semiótica do
romance oral O Cego que tem como referência histórica os disfarces do rei James da
Escócia (1512-1542), pai de Maria Stuart. Este costumava vestir-se de cego e
maltrapilho para conquistar suas amantes em vilarejos e bairros pobres da periferia da
cidade. Esta análise se atém aos cinquenta e nove textos publicados no Nordeste do
Brasil, por diferentes estudiosos, entre os quais incluímos os que levantamos na Paraíba
e em Pernambuco para a realização de um Romanceiro. Os textos levantados foram
codificados com a sigla CE (De Cego), seguida de um numeral cardinal de 1 a 59.
No Nordeste do Brasil, o romance resulta da articulação de quinze segmentos
temáticos figurativos, de extensão variável. Alguns têm apenas um hemistíquio (como o
Sg2) e outros apresentam vários (Sg9 na versão 13). Vejamos, a seguir, os segmentos
enumerados de 1 a 15:
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Sg5 — A mãe ordena à filha que dê esmola ao cego e/ou que a
deixe dormir.
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No de Versões em que Identificação dos
aparecem segmentos
48 Sg5
44 Sg11
41 Sg6
38 Sg10
36 Sg12
31 Sg9
27 Sg1
25 Sg2
24 Sg3
16 Sg7 e Sg8
11 Sg4
Os segmentos Sg5 e Sg11 foram os que mais resistiram à ação do tempo, logo
seguidos de Sg6, Sg10 e Sg12. Os demais tendem a uma frequência que varia de mediana
(9,1,2,3) à baixa (7,8,4,14,15). Os de frequência alta e mediana representam o núcleo
significativo do texto, bem como, a aceitação popular. Os de frequência baixa mostram
o pouco apreço na preferência popular.
O quadro a seguir mostra, em ordem decrescente, o número de segmentos por
versões, bem como a referência da obra que as publicou.
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Versões Segmentos Localidade onde foi levantado
CE40 11 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.262-263
CE13 11 COSTA, Recife-PE, 1974: 340-342
CE59 10 GALVÃO, Natal-RN, 1993: p.44-45
CE35 10 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.254-256
CE33 10 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.252-253
CE21 10 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.239-240
CE17 10 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.234-236
CE16 10 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.233-234
CE9 9 BATISTA (inedito), Boqueirão-PB, 1988
CE29 9 LIMA, Propriá-SE, 1977: p.248-249
CE24 9 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.242-243
CE15 9 COSTA, Recife-PE, 1974: p.340-342
CE6 8 BATISTA, (inédito) Sítio Pau D’arco
(Salgado de São Félix-PE), 1987
CE5 8 BATISTA, (inédito) Aroeiras-PB, 1987
CE34 8 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.253-254
CE30 8 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.249-251
CE28 8 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.247-248
CE20 8 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.238-239
CE19 8 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.237-238
CE14 8 COSTA, 1974: p.340-342
CE11 8 BATISTA, (inédito) Sítio Paquivira
(Macaparana-PE), 1987
CE10 8 BATISTA, (inédito) Sítio Pau D’arco
(Salgado de São Félix-PE), 1987
CE58 7 GALVÃO, Natal-RN, 1993: p.44-45
CE42 7 Riachão do Jacuípe-BA, 1986: p.184
CE38 7 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.258-260
CE25 7 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.243-244
CE23 7 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.241-242
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Versões Segmentos Localidade onde foi levantado
CE43 6 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: P.184
CE37 6 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.257-258
CE3 6 BATISTA, (inédito) Ipojuca-PE, 1988
CE27 6 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.246-247
CE26 6 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.244-246
CE1 6 BATISTA, (inédito) Cabo-PE,1988
CE4 5 BATISTA, (inédito) Recife-PE, 1988
CE2 5 BATISTA, (inédito) Lagoa do Carro-PE,
1987
CE18 5 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.236-237
CE12 5 BATISTA, (inédito) Serra Talhada-PE, 1987
CE8 4 BATISTA, (inédito) Pilões de Dentro-PB,
1988
CE54 4 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.188
CE47 4 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.186
CE45 4 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.186
CE41 4 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p183
CE36 4 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.256-257
CE31 4 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.251-252
CE55 3 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.189
CE53 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.188
CE52 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.187
121
Versões Segmentos Localidade onde foi levantado
CE51 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.
CE50 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.186-187
CE49 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.186
CE48 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.186
CE46 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.185
CE44 2 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.185
CE32 2 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.252
CE22 2 LIMA, Aracaju-SE, 1977: p.240-241
CE7 1 BATISTA, (inédito) João Pessoa-PB, 1988
CE56 1 ALCOFORADO e ALBAN, Salvador-BA,
1996: p.189
122
libertação da filha que se resigna à vontade da mãe; grupo d (Vd) acrescenta a Vc o fato
de a mãe retirar de si a própria culpa para jogá-la na filha e o grupo e (Ve) que elimina
toda a opinião da filha sobre a mãe, ficando isentas de análise sob este aspecto.
Considerando o percurso da enunciação, observa-se que a percepção é feita
através de dois sentidos: é sonora, quando a filha escuta o bater na porta, representada
em algumas versões,com onomatopeias do tipo de: Tac, Tac, Tac (CE6) e é visual
quando ela própria vê o cego. Em seguida, ela atribui ao que vê conceitos como cego,
pobre. Esses momentos são anteriores a realização dos enunciados linguísticos. São pré
– linguísticos. Com a pergunta que a jovem faz: quem me chama? (na versão: CE6)
surgem as figuras de superfície que vão dar concretude ao texto, culminando com a
semiose que produz, acumula e transforma as significações em discurso. A resposta do
Cego: É um pobre ceguinho, é um pobre ceguinho que vem lhe pedir (CE 6) instaura o
cego como sujeito semiótico cujo valor é esmola. Isto na ordem do parecer, uma vez
que ele não é cego nem quer ser. O interesse dele é a jovem: Eu nunca fui cego, nem
Deus não permita/ Eu só me fiz cego por moça bonita (CE5). A jovem, destinada pela
mãe, atende o pedido do cego e torna-se, também, sujeito semiótico na ordem de um
dever fazer/ dar a esmola ao cego/ensinar o caminho, etc:
─Vai, Helena, ao armarinho
Pegar pão e vinho pu pobre ceguinho
De inicio, em todas as versões, a mãe, é respeitada pela filha que nela confia e
atende - lhe todos os pedidos. Portanto, a mãe é boa. A descoberta de que a mãe havia
tido um acordo anterior com o cego transforma o conceito que a filha tinha da mãe: ela
não é verdadeira, nem digna de sua confiança; portanto, é má, o que a deixa triste em
algumas versões:
“Adeus minha mãe, adeus meu jardim, adeus minha mãe que
foi falsa a mim / Adeus minha mãe que tão falsa me foi.”
(CE5)
123
Usado, muitas vezes como teatro, nas festividades escolares do interior
nordestino, o texto apresenta uma disposição dialógica onde acontece a mudança de
turno do enunciador para o enunciatário e vice – versa. Assim, o procedimento de
recepção acontece, quase que simultaneamente, com o de recepção. Os sujeitos
enunciador e enunciatário são atores dos enunciados e, portanto, estão embreados entre
si com o tempo da enunciação e do enunciado.
Conclusão
Referências
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Ibérico na Bahia. Salvador: Livraria Universitária, 1996
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______ Léxico, Produção e criatividade. 3 ed. São Paulo: Plêiade, 1996
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral. São Paulo: Nacional, 1976
CHOMSKY, Noam. Aspects of the theory of syntax. Cambridge. Mass: MIT Press,
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COSERIU, Eugenio. Teoria da linguagem e linguística geral. Rio de Janeiro:
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GREIMAS, A. J. Semantique structurale. Paris: Larousse 1966.
124
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COURTÉS, J. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Almedina,
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GALVÃO, Hélio. Romanceiro – pesquisa e estudo. Introdução e notas de Deífilo
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PAIS, Cidmar Teodoro. Conceptualisation, dénomination, désignation, reference:
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______ Conditions sémantico-syntaxiques et sémiotiques de la procuctivité
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tomes. Directeur de Recherche: Bernard Pottier. Paris: Université de Paris-Sorbonne
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POTTIER, Bernard. Sémantique générale. Paris: Presses Universitaires de
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POTTIER, Bernard. Théorie et analyse em linguistique. Paris: Hachette,1987
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 9° ed. São Paulo: Editora
Cultrix.
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Anexo
CE6 - O CEGUINHO
Cantado por Maria Cristina Lopes, 15 anos,
estudante do 1º grau, Sítio Pau d’Arco (Salgado de
São Félix) em 20 de janeiro de 1987.
Tac, tac, tac, — quem me chama?
—É um pobre ceguinho, é um pobre ceguinho, é um pobre ceguinho
—Vai Helena ao armário (bis)
Pegar pão e vinho pr’este pobre ceguinho (bis)
—Não quero o seu pão, não quero o seu vinho (bis)
Só quero que Helena me ensine o caminho (bis)
—Vai Helena devagarinho (bis)
Ensina o caminho a este pobre ceguinho (bis)
—Nem sou cego, nem quero ser (bis)
Só fingi de cego prá roubar você (bis)
—Adeus minha casa, adeus meu jardim (bis)
Adeus minha mãe, que foi boa prá mim (bis)
(BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de
Mesquita. Romanceiro em Pernambuco.
Inédito: 1988)
CE3 - O CEGO
Cantado por Isabel Maria Alves, 66 anos, Usina
Salgado, Ipojuca-PE, em 14 de janeiro de 1988.
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