Phoinix 1997 Completa

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História e Arqueologia: a Formação

da Realeza dos Macedônios'

Neyde Theml

Résumé:

Cet article propose une explication de laformation de Ia royauté des


Macédoniens à travers les donnés qui nos avons obtenues des archéologues.
Nous y étudions les idées des plusieurs archéologues et nos y appliquons,
surtout, les modeles théoriques: de Ia "tombe du g uerrier", de Bruno
d'Agostino et Ia suprématie d'une élite guerriêre et l'hypothêse d'une va-
gue avancée pour le peuplement de Ia Macédoine, de Colin Renfrew.

Hoje, o historiador da Antiguidade não pode desenvolver suas pes-


quisas sem que tenha uma aproximação efetiva com a Arqueologia. Sabe-
mos que a documentação arqueológica é a que cresce a cada ano, enquanto
que a documentação textual (não a epigráfica ) permanece mais ou menos a
mesma. Outrossim, o documento arqueológico nos dá um outro tipo de in-
formação que nos possibilita ter uma visão mais circunstanciada do objeto
em pesquisa.
É bem verdade que o nosso objeto de pesquisa nos compelia, mais
ainda, por sua natureza, a este diálogo com a Arqueologia, visto que por um
lado não possuíamos documentos textuais macedônicos e por outro a do-

. Este artigo é parte da Tese de Doutorado que defendemos na UFF, em 1993, sob a orienta-
ção do Professor Dr. Ciro Flamarion Cardoso, com o apoio da CAPES, intitulada: A Realeza
dos macedõnios (Vil/" - VII" séculos a. C}: Uma história do outro. O diálogo que iniciamos
com a Arqueologia deve-se ao excelente Curso que fizemos na École des Hautes Études en
Sciences SociaJes (Paris), 1986/1 987, COmo Prof. Dr. Jean-Claude Gardin, amigo muito que-
rido e no Brasil, com as aulas do Prof. Dr. Ciro Flamarion Cardoso e O apoio dedicado da
Prof. DI"' Haiganuch Sarian. Atualmente desenvolvemos um projeto de pesquisa, com bolsa
de produtividade concedida pelo CNPq e com o apoio técnico do LNCC/UFRJ, intitulado:
Relações e representações da philia em Atenas do V" século.

Phoinix, Rio de Janeiro, 3: 301-320, 1997. 301


cumentação arqueológica, ainda muito pequena, era a que nos informava
sobre as culturas que habitaram as regiões entre os rios Áxios e Haliacmon.
Tínhamos um problema técnico do ponto de vista arqueológico e ao
mesmo tempo uma vontade muito grande de não desistir da pesquisa, pois
considerávamos que a História Antiga, nas vésperas do século XXI, não
poderia deixar de lado nem a documentação arqueológica, nem as práticas
e conhecimento dos arqueólogos, ainda que as informações que deles obti-
vemos sejam provisórias, visto que as escavações referentes ao Vlll" e VII",
séculos a. C. na Piéria ainda não nos fornecem um número de dados relati-
vamente substanciais para que se possa estabelecer explicações mais con-
tundentes.
Sendo assim, procuramos estabelecer um caminho para a pesquisa que
se adaptasse à nossa situação desconfortável. Primeiro fizemos um levan-
tamento do Bulletin de Correspondance Hellénique (BCH) dos anos de 1959
à 1992, observando exclusivamente as indicações acerca da Macedônia entre
os séculos VIIIo e VII" a.C. e organizando os dados que se referissem aos
sítios situados na região da Piéria. A seguir, escolhemos alguns arqueólo-
gos que estudaram outras regiões fora da Macedônia, mas no mesmo perío-
do, para tentarmos seguir o modelo de análise que empregavam, num sen-
tido comparativo.
Dentre os pesquisadores que analisamos durante a pesquisa, escolhe-
mos trabalhar, neste artigo, com N. Hammond, J.-N. Corvisier, M.
Sakellariou, M. Andronicos, Marija Gimbutas, E. Borza, Claude Bérard,
Bruno d' Agostino, Anthony Snodgrass, Patrizia Gastaldi, Gianni Bailo
Modesti e Colin Renfrew e outros que recorreremos para fundamentar o
modelo de realeza heróica guerreira/sagrada.
Claude Bérard analisa as descobertas arqueológicas em Erétria, na
Eubéia, principalmente o complexo funerário de Lefkandi. Compara-o com
o de outras regiões helênicas, no VIIIo a.C. e conclui que a tumba monu-
mental do" príncipe" micênico (hérôon) ou tumba real foi recuperada so-
cialmente no VIII a.C. por um processo político de heroificação que de-
O

nota a emergência da organização políade e o fenômeno de colonização


(fundação de apoikías). Anthony Snodgrass confirma esta tese, distinguin-
do as práticas ligadas ao culto da tumba de um herói (hérôon) àquelas rela-
cionadas ao culto dos mortos. Este pesquisador apresenta a heroificação
como um dos elementos inovadores do VIlIo a.c. capaz de produzir uma
solidariedade inter-grupos e provocar com isso a consciência de identida-
de cultural, fortalecendo a rede político-social das pó/eis que se formavam.
Segundo ele, o hérôon era um espaço coletivo de consagração religiosa e
de proteção social, símbolo da tradição cultural da comunidade.

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o arqueólogo sinaliza que o hérôon, a malha urbana, a ágora, o tem-
plo, a héstia cornunal, as muralhas, as necrópoles fora dos muros e os alta-
res nas fronteiras apontam, de forma espacial, externa e material para a
emergência da pólis.
Materialmente, a tumba do príncipe (hérôon) apresenta-se com uma
arquitetura complexa e monumental, contendo uma variedade de objetos
funerários, muitas vezes artefatos de luxo, fabricados no local ou importa-
dos, denotando a presença de uma divisão social do trabalho e de um espa-
ço urbano desenvolvido.
Paralelamente à "tumba real", transformada num lugar de culto e de
proteção pública (hérôon), encontra-se em outras regiões da península
Balcânica (Macedônia) e na Itália, no VIII" e VII" séculos a. C., um outro
tipo de tumba, chamada de "tumba do guerreiro". Encontramos o modelo
deste tipo de tumba nas pesquisas desenvolvidas por Bruno d' Agostino que
analisa a necrópole do sítio de Pontecagnano, na Carnpânia, e por Gianni
Bailo Modesti e Patrizia Gastaldi que estudam um grupo de sepulturas no
sítio de Oliveto-Cairano e no vale do Sarno, ambos igualmente na Campânia
(Vlll" século a. C.).
r Os três pesquisadores concluem que a presença da "sepultura do guer-
reiro" indica a emergência de um grupo político hegemônico, de uma elite
que promove um tipo de organização política da comunidade. A tumba do
guerreiro se qualifica pela presença de artefatos funerários que procuram
destacar exclusivamente esta "função" militar na sepultura masculina en-
quanto que os bens de prestigio são depositados na tumba feminina.
Observamos que a presença, no VIIIONIIo séculos a.C, destas "tum-
bas reais" heroificadas e a das "tumbas de guerreiros", marcam dois espa-
ços com tempos históricos diferentes. Um centro helênico onde se proces-
sa a formação das pâleis e uma periferia onde as comunidades organizam-
se politicamente através de uma elite guerreira em forma de chefias ou re-
alezas tradicionais.
Os achados arqueológicos dos sítios macedônicos entre os rios Áxios
e Haliacmon que encontramos através da pesquisa no BCH nos indicaram
que as comunidades que aí habitavam apresentavam uma complexidade
mais simples que as do sul da península Balcânica. As sepulturas, do VlUO/
Vll't.a.C; da necrópole de Vergina, pesquisadas por M. Andronicos se apro-
ximam do modelo do tipo de "tumba do guerreiro" de d' Agostino, Bailo
Modesti e Patrizia Gastaldi; podemos, portanto, inferir que se processou,
nesta parte da Macedônia a emergência política hegemônica de uma elite
guerretra.
1"1__ O complexo funerário da necrópole de Vergina, estudado pela equi-
pe de M. Andronicos e as tumbas referentes ao Vlll" e VIlO séculos a.c.

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foram publicados no BCH de 1959, 1960 e 1961 e o próprio Andronicos
publicou um livro, vergina the Royal Tombs, onde trata inicialmente das
sepulturas da Idade do Ferro (1000 a 700/650 a. c.).
A necrópole de Vergina mostra um grande número de sepulturas de
períodos diversos, indicando que a região havia sido ocupada continuamente
desde 1000 a. C. até o período helenístico, com uma crescente complexi-
dade em relação aos ritos funerários, demonstrando que Vergina/Aigai fora
sempre um centro político.
Organizamos algumas pranchas, com o material que encontramos no
BCH, referentes às tumbas do VIUOe VUOséculos a.c. em Vergina, para
que pudéssemos observar atentamente o material selecionado, analisá -10,
compará-Io, estabelecer as homologias com os estudos de Lefkandi e da
Campânia, e, a seguir, tentar uma generalização.

(Manolis Andronicos. 1984, p. 28 - tumbas masculina à esquerda


e feminina à direita - Vergina -Idade do Ferro.}

304
I

I
1

(Andronicos, 1984, P. 29 - sepultura feminina - diadema.fibula em oito,


machado triplo com duplo eixo e skyphos com decoração
em círculos concêntricos - Vergina)

(Bruno d'Agostino, /990 - p. 220 -tumba masculina, Campônia)

305
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t~
J

! !

F~ 13 _ rs.ma.dltDa (oJllb, 111 : U pcdooiaK dd vt:etito funenrlo.

(Patrizia Gastaldi, 1990, p. 238 - tumba feminina


- necrópole do Valle dei Sarna)

Em relação às tumbas masculinas, observamos a simplicidade do


mobiliário funerário. O homem era enterrado com dois vasos de cerâmica,
sem decoração ou imagem, e com as armas de guerra (espada, pequenas
facas, lanças ou pontas de seta). Em contrapartida, as tumbas femininas
possuem uma variedade de artefatos da vida quotidiana da mulher, objetos
votivos e jóias adornando o corpo. O morto ostentava sua função guerrei-
ra; a mulher, o seu papel na família, na casa e na comunidade através dos
bens de prestigio do grupo. A guerra, a riqueza e a fecundidade eram refor-
çados nas tumbas como valores a serem preservados. Além do mais, An-
dronicos encontra, entre os túmulos, um grande número de sepulturas for-
mando uma rede apertada, que segundo ele seria a indicação de que o ce-
mitério pertenceria a uma comunidade bem organizada em famílias ou gru-
pos domésticos que começavam a estabelecer uma hierarquia social.

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Comparando a documentação proveniente de Lefkandi com a da
Piéria, fica claro que, quanto à forma e ao mobiliário funerário, a Macedô-
nia é uma região periférica em relação às regiões de formação políade. A
documentação nos leva a aproximar o caso dos macedônios das teses sobre
a emergência do poder político de uma elite guerreira. Mas, como toda cul-
tura tem suas especificidades, observamos que, se por um lado os pastores
da Piéria iniciam um processo de organização política definindo o territó-
rio, por outro, este processo de formação da realeza se estrutura através de
práticas sociais de conservação da tradição.
Em relação a este aspecto de preservação da cultura ancestral, Hammond
nos diz que, por volta do VIIIO século a.C., os macedônios pastores transu-
mantes, passaram a ser ao mesmo tempo pastores e agricultores. Neste pro-
cesso conservaram inicialmente a organização tribal que conheciam, e aos
poucos foram se adaptando ao princípio de residência fixa. Em relação ao
exercício do poder político, mantiveram a liderança na família dos Argea-
dae/Temenidae.
Acreditamos que os Argeadae/Temenidae possuíam a função de de-
positários da tradição da comunidade dos pastores e que este fator foi que
lhes garantiu uma posição de liderança quando a comunidade se tornou
sedentária. Conhecer o passado garantia a autoridade da família, manter este
conhecimento significava conservar o exercício do poder.
Podemos utilizar estes conceitos de preservação da tradição e da re-
sistência, pela presença nas sepulturas, de objetos que marcavam a identi-
dade cultural das comunidades que habitavam a Piéria, a saber: fibulas em
forma de oito, machado triplo, espada de guerra e diadema da morte. São,
estes, objetos que marcam uma distinção cultural (comunidades ligadas ao
complexo cultural do norte) e "funções" sociais eleitas como prioritárias:
espada/guerra; machado triplo/sacrifício; fibula/adorno/ostentação de rique-
za; diadema/alteridade - vida/morte.
É interessante observar que estas conclusões são respaldadas pela
concepção de Bruno d' Agostino e Alain Schnapp que consideram as sepul-
turas e os ritos funerários como sendo o resultado de atos intencionais, de
condutas determinadas no sentido de possuírem uma significação socio-
ideológica, criando portanto na comunidade representações sociais que
devem ser reproduzidas e valores que devem ser preservados.
Compreendemos o caso da comunidade de Aigai através da dinâmi-
ca que se processa nos embates entre centro/periferia e mudança/resistên-
cia. Para estes dois processos encontramos duas explicações que nos pare-
ceram apresentar pontos comparativos pertinentes ao caso da Macedônia.
Lotte Hedeager, ao estudar as relações dos germanos (periferia) com os
romanos (centro), demonstra que a circulação da cultura fez com que, em

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relação aos germanos, se processasse uma hierarquia social encabeçada pela
atividade guerreira, a formação de confederações tribais e a utilização da
cultura material romana como bens de prestígio ostentados pela Chefia. As
relações de interação cultural provocaram mudanças de ordem política, mas
as tradições germânicas foram mantidas.
Estes fenômenos - comunidade periférica, resistência à mudança e
conservação da tradição - aparecem indubitavelmente na historia da for-
mação da realeza dos macedônios. Podemos afirmar que no VIIIo século as
comunidades de pastores transumantes da Piéria iniciam um processo de
sedentarização e emergência do poder político de uma elite guerreira que
se organiza em forma de realeza através da liderança da família dos Argea-
dae/Temenidae. As tumbas do tipo "do guerreiro" demonstram a formação
de uma hierarquia social e o mobiliário funerário indica a preservação da
tradição e da cultura como elemento de identidade social.
As sepulturas da necrópole de Vergina e de outros sítios da Macedô-
nia, correspondentes ao VIIIoNIlo séculos a.C., apresentam objetos típicos
da cultura do norte, como o machado triplo, os discos em omphalós, o
diadema mortuário e principalmente a decoração da cerâmica com moti-
vos geometéricos, destacando-se os círculos e semi-círculos concêntricos,
decoração favorita das tumbas mais ricas.
Para demonstrar que existia entre as comunidades da Macedônia um
longa tradição de manutenção dos padrões culturais, observamos um tra-
ço, como a decoração da cerâmica com motivos geométricos desde o Neo-
lítico à Idade do Ferro (VlIloNII" séculos a.c.) e constatamos a permanên-
cia da decoração geométrica. Nossa região não conheceu na representação
gráfica nenhuma outra forma que não fosse a geométrica entre 700 e 650
a.c.
A Macedônia entre os rios Áxios e Haliacmon foi povoada desde o
Neolítico até Idade do Ferro por diversas comunidades com culturas dife-
rentes, mas que formaram um complexo cultural comum, o qual passou a
ser compreendido como bem coletivo e referência existencial.
Inicialmente a cultura neolítica se generalizou, com padrões cultu-
rais específicos. Mas, durante os períodos das culturas do Bronze e do Fer-
ro, conviveram simultaneamente padrões culturais diversos. As mudanças
seguiram um ritmo diferente nas regiões da Macedônia que tendiam para
uma unidade cultural, mas também em relação às regiões mais ao sul da
península Balcânica que iam formando a cultura Micênica. A partir da Ida-
de do Bronze poderíamos dizer que o norte organizado em Chefias e o sul
em Realezas palacianas do tipo Micênico marcavam a distinção centro/pe-
riferia.

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Como dissemos acima, existiam entre as comunidades das regiões
macedônicas, uma coerência social e problemas comuns. Os grupos convi-
viam com a diversidade cultural e étnica mas se reconheciam como um
mesmos bloco em relação aos povos do sul.
Faremos uma pequena síntese do povoamento da Macedônia para que
fique clara a formação da identidade cultural.
Hammond apresenta, para a cultura neolítica, uma periodização que
vai de 6200 a.c. a 2800 a.c. Durante este período, as comunidades neolíticas
das regiões do norte da Macedônia entram em contato com a cultura neolítica
chamada de Starcevo, da região da antiga Iugoslávia, com a cultura Karanovo/
Vinca (Trácia) da região atual da Bulgária, com a Cultura Cris, da atual
Romênia e com a cultura Koros, da atual Hungria. Os sítios de Vrsnik e
Anza, a nordeste do rio Áxios, apresentam artefatos de cerâmica que re-
produzem as características da Cultura de Starcevo, Karanovo e Vinca.
Marija Gimbutas estuda o sítio de Anza, de 7000 a.c. a 5000 a.c..
Observa que Anza era uma aldeia organizada e a seqüência estratigráfica
apresenta uma ocupação contínua, sendo o sítio abandonado em 5000 a.c.
Os artefatos, a técnica, a decoração, o estilo da cerâmica demonstram uma
intercomunicação deste assentamento com a Cultura de Starcevo e Karanovo.
A autora apresenta um quadro onde a cerâmica pintada de vermelho, mar-
rom e branco da Cultura de Starcevo aparece em Anza por volta de 7080
a.c.. Os desenhos florais geometrizados de Starcevo aparecem em 6900 a.C,
os motivos geométricos em 6700 a.C e os motivos geométricos com linhas
quebradas da cultura Karanovo em 5300/5000 a.c. Além da cerâmica pin-
tada, o sítio de Anza continha sepulturas em pithoi (6300/6000 a.c.), com
berloques, contas e flautas, (6000 a.Ci); figuras femininas estereotipadas
(5800/5500 a.c.) e ossos de animal com caneluras (5300 a.c.). Tais aspec-
tos, segundo a autora, ligavam-se à cultura KaranovoNinca, como também
um pithos em forma de pássaro pintado em vermelho (5300 a.c.). Para a
arqueóloga, o rio Áxios foi a via de penetração da Cultura de Starcevo e
Karanovo da Pelagônia até Vergina (no sudeste do Haliacmon), no norte
da Piéria.
Hammond, verifica que ainda no Neolítico, o sul da Macedônia en-
trava em contato com a cultura neolítica de Sesklo (Tessália - 6000 a.C}.
Nos sítios de Sérvia, Malik, Porodin, Vergina, por exemplo, ele encontrou
cerâmica com incisões, sepultura em túmulus, casas mais ou menos qua-
dradas, algumas apresentando sinais de três divisões internas, artefatos em
cerâmica em forma de casa, modelos em cerâmica de altares, falos em ce-
râmica e figuras femininas de argila.
Borza apresenta uma periodização diferente para o Neolítico
macedônico. O Neol ítico Antigo iria de 6200 a 5300 a.c.. Toma como exem-

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pIo o sítio de Nea-Nicornédia, onde encontra vestígios de casas, cemitérios
e objetos que estariam ligados à cultura proto-Sesklo. O Neolítico Médio
se estenderia de 5000 a 4000 a.c.. O sítio analisado, neste caso, é o de Sérvia,
onde a cultura material encontrada seria típica da cultura de Sesklo e
Karanovo, enquanto o sítio de Porodin, na Pelagônia apresentaria traços da
cultura de Starcevo. O Neolítico recente caracterizaria a fase de 4000 a 2800
a.C; quando ele observa um certo movimento cultural que atribui à movi-
mentação de povos na área do rio Áxios.
Corvisier nos oferece um levantamento do total de sítios estudados
na Macedônia. Segundo ele são 100 correspondendo ao Neolítico, 70 ao
Bronze Antigo, 60 ao Bronze Médio, 80 ao Bronze recente, 110 para a Ida-
de do Ferro A e 130 para o período Clássico. Segundo os seus cálculos, os
sítios do Neolítico possuem uma densidade demográfica de O, I a 0,5 habi-
tantes por km-, enquanto os da Idade do Ferro A teriam uma densidade de
4 habitantes por km '. Este dado nos indica um crescimento populacional
durante a Idade do Ferro e se aproxima dos modelos de vaga avançada e de
supremacia de uma elite, sugeridos por Renfrew, que estudaremos mais
adiante e são confirmados pela "sepultura do guerreiro" como indicativo
da hierarquização social. Para Corvisier, existem nuances regionais, mas a
tendência era de crescimento demo gráfico.
Encontramos uma referência diferente no livro coordenado por Treuil,
onde aparece, para o Neolítico Médio uma densidade demográfica de 4 a 5
habitantes por km-. Tal obra sugere ter havido uma queda e, posteriormen-
te, uma nova elevação demográfica no período do Ferro.
Colin Renfrew, ao discutir a questões da língua dos indo-europeus,
propõe dois modelos gerais para se opor às explicações migracionista/
invasionista e difusionista da passagem de sociedades de baixa complexi-
dade para sociedades de alta complexidade. Ele apresenta o modelo de Vaga
avançada e o modelo de Supremacia de uma elite guerreira - modelos es-
tes que reforçam as teses, já mencionadas, de Claude Berard, Bruno d'
Agostino, Gianni Modesti e Patrizia Gastadi.
O modelo de Vaga avançada parte dos elementos seguintes: 1°_exis-
te um movimento demográfico de curta distância, por gerações; 2°_ a ado-
ção da agricultura num território de caçadores/coletores ou de pastores pro-
voca um crescimento demográfico; 3°_ a introdução de técnicas agrícolas
faz crescer a população de I hab. por km2 para 5 hab. por km-; 4°_ quando
a população atinge uma densidade maior que a capacidade de inovação téc-
nica aparece no modelo um ponto de saturação: sendo assim, torna-se pos-
sível que cada nova geração forme uma Vaga avançada e se desloque alea-
toriamente de um determinado centro; 5°_ a progressão da Vaga avançada
foi exemplificada da seguinte forma: Se a densidade demográfica de

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cultivadores/pastores se elevar a 5 hab. por km2 e a população dobrar em
18 anos, o primeiro movimento da Vaga avançada pode ser fixado num
movimento aleatório de 18 km para cada geração (25 anos), neste caso a
Vaga avançada se desloca I km por ano; 6°_a nova economia agrícola foi a
que permitiu que a população ultrapassasse a densidade de 0, I hab. por km2
e chegar a 5 ou 10 hab. por krn-: sendo assim, a expansão da gerações dos
locais das "fazendas" distava de 20 a 30 km: as crianças que começavam a
nascer estariam distantes de seus ancestrais e de sua cultura; 7"- a Vaga
avançada, de acordo com a região que vai ocupando, ajusta seu conheci-
mento aos recursos naturais, introduzindo e adaptando os vegetais e ani-
mais que com ela vieram e explorando tudo aquilo que fosse novo: experi-
menta novas técnicas, novas plantas e animais. Novas aldeias são construídas
e o processo se inicia para formação de uma nova Vaga avançada; 8°_ A
interação entre as comunidades se faz através de uma rede de trocas entre iguais.
Renfrew não descarta, ao tratar da Vaga avançada, as variáveis liga-
das ao desejo de aventura, à vontade de conhecer lugares longínquos, à
expulsão de um membro da comunidade e outros casos particulares. E nós
não abandonamos a variável de invasões: ela pode aparecer, dependendo
das circunstâncias de equilíbrio de fronteiras. Para ele, o resultado global
da Vaga avançada é ser sempre o mesmo, ou seja, a agricultura se propaga
para o exterior da zona cultivada numa proporção relativamente estável.
Este modelo pode ser aplicado a qualquer comunidade que venha a
incorporar uma nova técnica de exploração econômica, suscetível de pro-
duzir o aumento da população, da densidade demográfica em alguns locais;
e um ponto de saturação no interior do sistema social.
Renfrew alia o modelo de Vaga avançada ao de Supremacia de uma
elite guerreira. O modelo de Supremacia de uma elite pressupõe: 1°_que a
sociedade seja organizada e que apresente uma hierarquia ou estratifica-
ção, diferente das relações de parentesco; 2°_ que o comando seja assegu-
rado por um chefe, sustentado por guerreiros e por uma administração cen-
tral; 3°_a Vaga avançada composta de um grupo imigrante socialmente or-
ganizado, com eficácia guerreira que permite submeter a população ante-
riormente existente.
O autor considera que, numa sociedade de chefia, embora haja uma
certa centralização, não existe burocracia administrativa associada ao Es-
tado. A sociedade não se di vide em classes sociais, mas funciona por um
sistema hierarquizado através das relações de parentesco, ou por relações
de proximidade com o chefe. ou ainda por atividades diferenciadas como
guerreiros, sacerdotes e artesãos especializados. Muitas vezes, neste tipo
de sociedade aqueles que dominam as técnicas equestres se sobrepõem
politicamente aos demais.

311
Arqueologicamente dAgostino e Bailo Modesti explicaram, através
da análise do mobiliário funerário, a emergência política de uma elite guer-
reira em sociedades do tipo tradicional. Os dois arqueólogos observaram a
existência de uma sociedade de chefia guerreira, através das diferenças do
habitat, mas principalmente pelas sepulturas individuais com a presença de
objetos "funcionais": armas e bens de prestigio depositados cuidadosamente
em tumbas masculinas e femininas. Estes dados indicariam a presença de
um chefe e de uma estratificação social, marcando a formação de uma elite
guerreira,
Tratemos agora de introduzir nestes modelos dois outros componen-
tes. Em primeiro lugar, o fator renovação, que pressupõe que as inovações
numa sociedade circulam de acordo com o controle que certos grupos pos-
suam dos veículos de informação de que dispõe a sociedade. Assim, deter-
minados grupos sociais se diferenciam dos outros, seja pela capacidade de
absorver o novo, seja por se manter ligados às práticas antigas. Este jogo
de mudança e permanência vai delinear os níveis ideológicos dos grupos
sociais. O fator renovação nos induz a afirmar que o homem em sociedade
cria uma linguagem simbólica e a transmite às novas gerações, produzindo
práticas sociais que se tornam hábitos norteadores, ou seja, referências exis-
tenciais. Portanto, a renovação pressupõe a quebra desses hábitos, exigin-
do do homem, dos grupos sociais uma tomada de decisão, uma habilidade
em perceber as oportunidades e manter-se continuamente informados, com-
preendendo o sentido das diversas mensagens que cirulam,
O segundo componente se refere efricção-étnica ou inter-étnica pro-
vocada pelo encontro entre duas culturas diferentes, produzindo a valori-
zação dos costumes ancestrais como forma de defesa e de manutenção da
identidade social.
Os modelos de Vaga Avançada e emergência política de uma elite
guerreira podem ser aplicados ao caso da formação da realeza dos mace-
dônios. As sepulturas de Vergina apresentam as mesmas distinções "fun-
cionais" das da Campânia; e a persistência da decoração com motivos geo-
métricos nos indica a manutenção da tradição, assegurando à elite guerrei-
ra e à família do chefe o exercício do poder político capaz de unificar as
diversas tribos.
A análise do sítio de Anza nos indicou que as comunidades neolíticas
reagiram às inovações técnicas produzidas pela divulgação do trabalho do
bronze e posteriormente do ferro e até mesmo à fundação da realeza mas a
identidade cultural foi se consolidando no seio do éthnos dos macedônios,
que se apresentaram como preservadores da tradição. Este processo de pre-
servação da cultura pode ser explicado pelas condições da Macedônia, um
lugar de passagem de povos e de economia predominantemente pastoril.

3\2
Para se compreender a formação da identidade étnica dos macedô-
nios e sua prática de resistência às mudanças, faremos um breve histórico
da ocupação, conquista e fixação dos macedônios.
Os indo-europeus (bronzeiros) chegam à Macedônia, segundo
Hammond. por volta do ano 2600 a. c.: nesta época se percebe sua presen-
ça nas margens do rio Áxios. O mesmo historiador afirma que teria havido
uma outra vaga aproximadamente no ano de 1350 a. c., com a qual ele já
considera iniciar-se a Cultura do Ferro na Macedônia.
Corvisier, Sakellariou, Borza e Gimbutas apresentam uma situação
um pouco mais complexa. A Idade do Bronze estaria associada, na Mace-
dônia, a três culturas: 1°_ a cultura Kurgan (2400/2300 a. C.); 2°_ a cultura
dos brígios ou da cerâmica de Lausitz (1140/1080 a. c.); 3°_ a cultura trácia,
que estaria presente na Macedônia desde a Idade do Bronze Antigo até 1400/
1200 a. C.
Hammond, Corvisier e Gimbutas acreditam que a cultura do tipo
Kurgan é indo-européia. A cultura Kurgan seria um complexo cultural que
provocou modificações na Europa a partir de 3500 a. C. Ela se espalha pela
Macedônia, Épiro e Tessália.
Hammond apresenta o estudo de sítios arqueológicos do tipo Kurgan
na Sérvia e em Vergina, na Piéria, mas considera que tal cultura teria se
espalhado da Pelagônia a Histiaeotis, no monte Olimpo. Esta cultura ocu-
pou o vale do Haliacmon e seria formada por vários grupos com diferentes
dialetos indo-europeus, entre eles o Dorikon Makednon éthnos, citado por
Heródoto (Histoires:VIlI, 46). Seriam pastores transumantes que haviam
domesticado o cavalo e o cachorro. Este éthnos, como os demais grupos
indo-europeus não era exclusivamente formado de pastores, mas os pasto-
res/guerreiros eram aqueles que constituíam a elite que exercia o poder
político.
Sakellariou e Borza consideram que a cultura Kurgan corresponde-
ria a uma mistura de etnias, entre as quais estariam os indo-europeus, que
se deslocaram da Ucrânia ou das estepes curo-asiáticas e daí desceram para
a Macedônia. Esta cultura se caracteriza por traços com o machado de com-
bate, armas (pontas de lança, clavas de pedra, espada), sepulturas em tumuli
individuais/intramuros, cerâmica cordoada, carro de guerra, casas de ma-
deira com plano retangular e abissal parcialmente enterradas, mós, pilões
de moer e o uso do motivo de círculos concêntricos na decoração da cerâ-
nuca.
Sakellariou apresenta a cultura Kurgan na Macedônia desde o Bron-
ze Antigo ou Heládico Antigo IH, compreendendo vários éthne entre eles
os dos macedônios, dos magnetas (Tessália) e os molossos (Épiro). No seu
entendimento, o monte Lakmos, na cadeia do Pindo, teria sido povoado pelo

313
éthnos dos Makdnoi. Os sítios de Cultura Kurgan são, para ele, aqueles nos
quais se encontram: 1°_ Tumuli funerários - tumbas em fosso, em cista e
tumbas em pilho: os tumuli são montículos artificiais de terra que abrigam
sepulturas individuais (talvez necrópoles da elite guerreira); 2°_ nas sepul-
turas aparecem: ocre, pele de animais, cerâmica cordoada, armas (lanças,
facas, espadas), machado de combate em pedra, alfinetes de bronze; 3°_ casas
em forma abobadada (abissal).
Borza afirma que, entre 2600 e 1900 a 1600 a.c., a seqüência estrati-
gráfica dos sítios de Servia e Vergina demonstram que estas localidades
foram povoadas por povos de língua preto-grega. Quanto à cultura trácia,
estaria presente na Macedônia desde o Heládico Antigo III até 1400/1200
a. c.. Tal cultura corresponde a uma mistura de etnias e, segundo Hoddinott,
foi responsável pela cultura de Karanovo, durante o Neolítico. Na Idade do
Bronze, atravessa o rio Áxios e se expande até a Tessália. Os sítios consi-
derados típicos da cultura trácia apresentam sepulturas em cista, onde se
encontram machados, armas, furadores, cerâmica com desenhos geométri-
cos simbolizando o sol, cornos de animais em forma de lua crescente, espi-
rais, círculo solar com uma cruz atravessada, linhas quebradas, recipientes
antropomorfos e figuras femininas. Hoddinott informa-nos que essa cultu-
ra era formada essencialmente de pastores que procuravam planícies férteis.
Durante a pesquisa, verificamos que a cultura trácia marcou de tal
maneira a Macedônia que, nos documentos textuais, os trácios aparecem
como ocupantes de algumas regiões da própria Macedônia.
Mais ou menos contemporâneos aos brígios chegaram os peônios
entre 1150 e 1080 a.c. Os sítios indicam sua presença, pois aparece um tipo
de cerâmica em forma de âncora, cerâmica desenhada com símbolos circu-
lares em linha cheia ou pontilhada, círculos e quadrados cruzados. Este sfrn-
bolo cruzado permanecer em outros suportes. Bem mais tarde o encontra-
mos, por exemplo, no anverso das primeiras moedas dos peônios e dos
macedônios.
A cultura dos brígios foi responsável pela cerâmica de Lausitz. Na
Macedônia, ela é datada de 1140/J 080 a. C. até 800 a.c.. Eles foram ocu-
pando regiões onde estavam os grupos chamados de cultura peônia e che-
garam até Vergina, convivendo com ou deslocando os éthne de cultura
Kurgan, entre eles os macedônios. Corvisier acredita que os brígios dividi-
ram o território do Bermion com os macedônios. Na região do Monte
Bermion teriam como centro de povoamento a localidade de Edessa. Tal-
vez por esta razão, a historiografia do início do século XX tenha conside-
rado Aigai como Edessa.
Hammond explica que os brígios se moveram do norte do Áxios,
, --
entrando pela Pelagônia. Expulsaram os peônios do vale norte do Áxios.

314
Um grupo seguiu em direção à Ilíria e ao Épiro, a oeste; outro grupo se di-
rigiu para o sul, até Vergina. Neste movimento, empurraram os moi ossos
para o Épiro (Dodona), os macedônios, entre eles os A rgeadae/Temenidae,
do Bermion para Piéria e os Orestae para Orestida. Estes últimos teriam
estabelecido pequenas aldeias (kómai) sem muros em Boufari (que, segun-
do Corvisier, seria a região de Lebaia citada por Heródoto: Histoires VIII,
137). Podemos verificar, então, que a região da Macedônia conviveu com
uma série de etnias.
Em relação à incineração na Idade do Bronze Recente e os sítios em
campos de urnas, que estariam ligados aos brígios, encontramos entre os
pesquisadores uma tendência a mostrar que esta forma de sepultamento foi
temporária. A inumação tendeu a predominar, em túmulos em forma de cista
individuais ou, no interior, em túmulos coletivos em forma de tholoi (cons-
trução circular). Uma outra observação, em relação aos campos de urnas, é
que foram encontrados sítios com esta forma de sepultamento - urnas com
cinzas do morto - desde o Bronze Antigo 1, o que nos leva a crer que não
corresponde a um traço cultural exclusivo dos brígios.
Um outro dado referente à incineração e à inumação, é que estas prá-
ticas não indicariam a presença de novos povos, mas sim, concepções dife-
rentes acerca da morte e dos mortos, nos permitindo observar uma ideolo-
gia funerária que nos indicaria a existência de uma divisão social: de clas-
ses, de idades e de sexos.
Parece que todas essas culturas que se desenvolveram durante a Ida-
de do Bronze utilizaram-se da prática de inumação, o que nos levaria a in-
ferir uma unidade religiosa pelo menos no que referente à representação da
morte, seus ritos e sua estética.
Os brígios movimentaram-se para a Frígia por volta de 800/700/650
a. C .. Segundo a explicação mais freqüente que encontramos, isto seria re-
sultado de um movimento geral, em que os cimérios pressionam os trácios,
os peônios e os ilírios.
Ainda relativo ao Bronze recente, foram encontrados sítios datados
de 1350/1150 a.C, no sul e no centro da Macedônia, onde aparecem vasos
pintados no estilo rnicênico. A forma mais difundida, nestes sítios é oskyphos
e parece que a sua presença se deve as trocas de longa distância.
Podemos verificar que a Idade do Bronze na Macedônia foi formada
por uma rede de povos que produziram uma cultura material calcada prin-
cipalmente na inumação, na fabricação de armas (a espada de ferro encon-
trada nos tumuli próprio da preservação da tradição), e na fabricação de
objetos de adorno pessoal feminino como fíbulas, anéis e braceletes. A ce-
râmica era decorada com formas geométricas: círculos, círculos concêntri-
cos, círculos cortados em cruz, espirais, linhas quebradas, linhas pontilha-

315
das, linha reta, ziguezagues, triângulos e quadrados. Motivos estes que per-
maneceram nos vasos das sepulturas da Idade do Ferro. Os motivos geo-
métricos parecem ser uma marca destes povos, eles estão presentes do Neo-
lítico à Idade do Ferro, sem nenhum desvio até agora encontrado.
O repertório de formas predominantes dos vasos, durante o Vlll" ao
VIIo séculos a.c., são as tigelas com as bordas decoradas com incisões, os
cântaros com alças em forma de cornos de cabra, os cântaros com bico, as
crateras e o skyphos.
Quanto à situação do povoamento dos sítios, encontra-se grande va-
riedade. Ora nos sítios aparecem sinais de incêndio, ora de abandono, ora
de continuidade do povoamento. Com isto, não nos é possível decidir se as
rupturas da ocupação tenham sido resultado de uma grande invasão, de in-
filtrações ou de Vaga avançada. A constante é que a cultura circulou entre
as diversas etnias, formando um complexo cultural padronizado facilmen-
te reconhecível, e que a região da Piéria, VerginaJAigai foi, com certeza,
um assentamento permanente do ano 1000 a. C. ao I séc. a. C ..
A Piéria e a Emathia tiveram contatos estreitos com o norte da Pe-
nínsula Balcânica e, esporadicamente, com o leste do Egeu e o sul rnicênico.
As regiões centrais e do noroeste voltaram-se predominantemente para o
norte da Europa. De qualquer forma, a Macedônia ficou muito mais ligada
ao conjunto cultural do norte/oeste/leste balcânico (periferia) do que com
o sul micênico (centro micênico e mais tarde póleis).
Uma outra observação que fizemos através dos pesquisadores que
lemos é que, para a Idade do Bronze na Macedônia, não foram encontradas
construções do tipo palaciano, como as de Pilos ou de Micenas. Por exem-
plo, em Vergina, Edessa e Boufari o que havia eram assentamentos alde-
ãos, sem muralhas, onde as culturas Kurgan, trácia e brígia predominavam,
permanecendo até o VIIIo/ VIIo séculos a.C ..
As indicações da cultura material encontrada entre os rios Áxios e
Haliacmon, até o monte Olimpo, mostram que os macedônios, os trácios e
os brígios eram culturas guerreiras; e que os objetos micênicos estavam
presentes através de contatos de trocas esporádicas: é o caso, por exemplo,
em Arnydon, no Áxios.
Confirma-se a nossa hipótese de que há uma preservação da tradição
na Macedônia quando observamos que na Idade do Ferro a presença dos
ilírios (8001700 a 650 a. C) e dos helenos do sul (730 a. C - Metone, Mende)
coincide com a emergência política de uma elite guerreira macedônica que
funda Aigai e a realeza, fato demonstrado pela necrópole de Vergina com
o sepultamento do tipo" tumba do guerreiro".
Heurtley considera que, na Macedônia, a Idade do Ferro se estendeu
. --
de 1100 a. C a 650 a. C; Andronicos de 1000 a.C a 700 a.Cc: e Hamrnond,

316
de 1050 a. C a 550 a. C. Isto significa que as comunidades aldeãs agrícolas
e tribos de pastores predominavam e a malha urbana era rara, somente apare-
cendo no litoral através da colonização helênica do Vlll" ao Vll" séculos a. C.
Hammond entende que os macedônios do oeste em 1150/1 100 a.c.,
ao se movimentarem sob a pressão dos brígios, teriam se desmembrado em
três éthne: os makednós que se instalam na Piéria, os magnetos que se diri-
giram para a Tessália e os dórios que passaram pela Tessália e se desloca-
.•..... ram para o sul. Observa que Edessa e Vergina, entre 1400 e 800 a. c., são
sítios de colonização dos brígios e dos macedônios, e que por volta de 1100
a. c., os brígios e macedônios Argeadae/Teminidae teriam formado uma
primeira forma de unidade política, synoikoi.
Para ele, somente as seqüências estratigráficas das escavações de
Vergina datadas de 7251700 a.c., onde aparece a "tumba do guerreiro",
indicariam a independência dos macedônios promovida pela famíliaArgea-
daeíTeminidae. A necrópole de Vergina acaba por ser, posteriormente, sede
da Tumba Real (da mesma família).
Se brígios e macedônios dominaram esta região durante a Idade do
Bronze e do Ferro, (cultura Kurgan/brígios) em 900 a. C. e se o sinal da
emergência do poder político (elite guerreira! realeza guerreira sagrada)
aparece através da tumba do guerreiro, antes da chegada dos ilírios (800
a.c. até 650 a. C.), podemos inferir que o período de 900 a 650 a. C. foi o
tempo de formação e consolidação da realeza dos macedônios, liderada pelos
ArgeadaeíTemenidae, citada na documentação textual por autores da épo-
ca clássica.
Confirmando esta premissa, Sakellariou nos diz que em Vergina, entre
o Heládico Médio/Recente e a Idade do Ferro, de 100 tumuli estudados pelos
arqueólogos, 350 sepulturas são em poço ou cista, o que indica a presença
da cultura Kurgan. O mesmo fato aparece na Pelagônia e na Lincestida.
Corvisier também nos fornece dados que confirmam o período de 900/
650 a. C. para a fundação da realeza. Ao estudar o povoamento da Mace-
dônia nos indica que existem, nos sítios explorados na Macedônia, dois ti-
pos de cerâmica durante a Idade do Bronze e a Idade do Ferro. Assim, se-
gundo sua classificação, teríamos uma cerâmica local fortemente marcada
pela continuidade (Kurgan), e uma cerâmica importada. A diferença entre
estes dois tipos de cerâmica aparece por volta de 1350 a. c., quando a de-
coração com ornamentos retilíneos desaparece em favor de ornamentos lar-
gos, redondos, espiralados, combinados com triângulos e ziguezagues e a
cerâmica de Lausitz (canelada), embora esta ultima cerâmica tenha sua data
de aparecimento discutida.
Corvisier considera que, de 1080 a 800 a. C. é certa a presença do
éthnos dos rnacedônios na Piéria. Acredita que a cerâmica da Idade do Fer-

317
ro seja o resultado de uma mistura entre elementos locais e importados.
Andronicos confirma esta opinião quando afirma que a maior parte da ce-
râmica advinda da necrópole de Vergina, feita à mão, testemunha a conti-
nuação das técnicas mantidas pela tradição local.
Este diálogo com a Arqueologia nos permitiu comprovar, através da
cultura material, algumas hipóteses.
A Macedônia foi povoada por diversos éthne com culturas diversas,
estando entre eles os macedônios, que eram indo-europeus, pastores, guer-
reiros, bronzeiros/ferreiros e agricultores (cultura Kurgan). Tal região foi
um corredor de movimentação de povos e culturas mas viu surgir do Neo-
lítico à Idade do Ferro, um padrão cultural que unia as comunidades e pos-
sibilitava a formação de uma identidade sócio-cultural.
Passou de chefias locais para realezas locais entre 900 e 650 a.C, entre
elas a dos Argeadae/Temenidae, ligados ao ethnós dos macedônios. As se-
pulturas desta época demonstraram que o mobiliário funerário marcava a
emergência política de uma elite guerreira. As tumbas valorizavam a "fun-
ção" social e faziam da elite guerreira alvo da atenção socio-política.
Durante o Vlll" e VIl séculos a.c., a Macedônia corresponde
O
espa-
cialmente à periferia das regiões em que se processava a emergência políade.
Reage às mudanças que provinham das regiões políades voltando-se para
o passado e reativando um processo de valorização da tradição. A elite
guerreira e sagrada promoveu a emergência do poder político, unindo as
populações da Piéria num centro fixo e desenvol vendo um processo de iden-
tidade cultural (norte/periferia/realeza- éthnos).

Documentação citada

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320
o Limes Reno-Danubiano:
Conceito e Prática no Alto Império.

Norma Musco Mendes

Abstract:

The purposes of this paper are to discuss the maintenance ofthe


ideology ofimperium sine fine along of the Roman Empire and the roman
concept offrontier, specifically in the West.

Este artigo é fulcro da pesquisa realizada para elaboração da minha


tese de Doutoramento defendida na Universidade Federal Fluminense, sob
a orientação do Prof. Dr. Ciro Flamarion.
Na definição do instrumental teórico que norteia a elaboração desta
conferência mencionamos que os sistemas sócio-culturais são considera-
dos, ao lado dos sistemas filogenéticos (evolução das espécies) e psicoló-
gicos como sistemas adaptati vos complexos, pois não apenas mantêm a sua
estrutura, mas a reelaboram continuamente, num processo denominado de
morfogênese'. Um sistema aberto, apresenta a propriedade original de man-
ter relações perenes com o meio no qual se situa, de maneira que o sistema
como um todo nunca está em equilíbrio perfeito, mas realiza processos a
partir da decodificação ativa de estímulos enviados do exterior que o for-
çam a assumir um dinamismo e uma complexidade não encontrados nos
sistemas fechados, os quais operam segundo os princípios da homeostase.
Daí, diferentemente dos sistemas biológicos que processam e reagem aos
agentes externos mantendo sua estrutura dentro de limites bem definidos,
os sistemas sociais apresentam a propensão para mudar.
Portanto, os mesmos princípios de interligação, interdependência e
complementaridade que regem o funcionamento dentro do sistema, tam-
bém, são observados entre o sistema e seu ambiente. Entendemos por am-
biente do sistema, segundo definição proposta por c.w. Churchman", algo
que se situa "fora" do sistema, ou seja, um conjunto de elementos sobre o

Phoinix, Rio de Janeiro, 3: 321-334,1997. 321


qual o sistema possui condições mínimas de exercer um controle efetivo
mas que, por outro lado, determina em parte o seu próprio funcionamento.
De acordo com a adaptação dos axiomas gerais do modelo de siste-
ma - mundial de I.Wallerstein3 para aplicação às sociedades da antigüi-
dade, entendemos o Império Romano como um sistema mundial caracteri-
zado por sua estrutura celular, concêntrica e centralizada, evidenciada por
um tipo de relacionamento entre o centro decisório, as áreas integradas,
sem i-periferias e periferias. Assim, torna-se de suma importância o estudo
dos parâmetros externos ao sistema imperial romano que ao serem atingi-
dos, a partir de meados do Ira século, assinalaram um ponto de inflexão ir-
reversível para a manutenção do nível de complexidade social do sistema
imperial romano. Refiro-me à problemática da pressão externa sofrida pelo
Império Romano Ocidental, principalmente nas fronteiras européias, a partir
de fins do no século, a qual se articula ao processo de movimentação de
povos na Europa Central que teve início no primeiro milênio a.e. e conti-
nuou até o final do primeiro milênio d.e. Neste contexto mundial é que
devemos estudar as guerras entre Roma e os germanos, as quais devem ser
analisadas através das transformações estruturais, tanto em função das ver-
tentes internas quanto externas ao sistema intra-imperial romano.
Tal estudo implica a análise de dois processos interrelacionados e
fundamentais para a mudança social, tanto em relação ao Império Romano
como na periferia germânica. O primeiro processo envolve as estratégicas
defensivas e de competição entre o centro e os grupos periféricos. O segundo
processo relaciona-se à criação e manutenção de um relacionamento
interdependente entre várias comunidades, as quais apresentam níveis de
complexidade sócio-política diferentes. Tais processos nos auxiliam a en-
tender como o sistema de domínio imperial romano se reproduzia, assim
como, definem o seu dinamismo e as condições de sua existência.
O objetivo deste artigo é analisar a concepção que os romanos tive-
ram sobre fronteiras, cujo entendimento é imprescindível para o estudo dos
processos acima mencionados.
Tácito" menciona que Augusto deixou para Tibério o seguinte con-
selho: o império devia ser mantido dentro das pedras de limites (intra
terminas imperii).
Dio Cassius' afirma que Augusto aconselhou a Tibério a ficar satis-
feito com as suas existentes possessões e não pretender ampliar o império.
Com base neste consilium Edward Luttwak" sustenta a hipótese de
que a derrota de Q.Varo na floresta de Teutoburgo em 9 d.e., frente ao
exército bárbaro comandado por Armínio, significou o fim da política de
conquista romana e a consolidação da fronteira com a periferia gerrnânica
norteada pela noção de uma estratégia imperial que objeti vava a criação de
I
322
um perímetro fronteiriço de defesa com base em limites naturais guarneci-
dos por tropas auxiliares, estacionamento de legiões, sistema de comuni-
cações rápidas entre as linhas de frente e um bom fluxo de informações entre
os generais e o imperador. Algo que evoluiu, na época dos imperadores
Flávios, para uma linha de defesa militar.
Recentemente, diante dos pressupostos dos teóricos de sistemas mun-
diais, estas afirmações têm sido revistas através de um maior diálogo entre
a história e a arqueologia e pela releitura da documentação textual. Desta-
camos, principalmente os trabalhos de C.R. Whittaker, os quais são
norteados pela hipótese de que a idéia de fronteira no mundo romano não
deve ser entendida em termos lineares, estanques, mas sim, como uma franja
de território, local de união e inregração entre aqueles que são culturalmente
diferentes".
Tal hipótese parece-nos plenamente plausível diante dos seguintes
argumentos:

1- O conceito de limites.

A tradição lendária de Roma já apresenta uma dualidade entre


Rômulo, arquétipo do ideal expansionista romano e Numa, símbolo da lei,
da ordem e dos limites, a qual é evidente na seguinte passagem de Plutarco:

"Foi (Numa), segundo dizem, o primeiro que edificou um templo para


Fides e a Tenninus, ensinando aos romanos a considerar a Boa Fé (Fides)
como o maior de todos os juramentos, algo que até hoje observam.
Terminus relacionava-se ao limite ou marco, e a ele fazem sacríficios
públicos e privados nos limites dos campos (...) Parece ter sido Numa
quem teve o mérito de traçar as fronteiras de todo o território da cidade.
Rômulo não o quis fazer, temendo que ao medir a extensão do seu terri-
tório, estivesse dando reconhecimento da propriedade que ele havia tira-
do de outros, dizendo que o respeito a Terminus é um freio ao uso da
força e o desrespeito é uma prova de abuso de poder'"

o deus Término, portanto, é o deus das pedras de limites de um terri-


tório ocupado e explorado pelos homens e do ager romanus, Na festa anu-
al da Terminália, em 23 de Fevereiro, os chefes dos campos vizinhos depo-
sitavam nos limites de suas propriedades uma coroa e oferendas para o deus
Término. Posteriormente, os vizinhos comemoravam num banquete, como
hóspedes recíprocos, as relações de confiança e amizade. Término funcio-
na como um deus da separação e da proximidade. Tais relações são regidas
pela Fides. Ultrapassar pacificamente um limite territorial garantido por
Término somente é possível na condição de hóspede. Caso contrário, seria
reconhecido como inimigo, algo que significaria a guerra.

323
A importância desta divindade como protetora dos limites do ager
romanus é evidente diante da sua associação a Júpiter Ótimo Máximo e a
Juventas, pois conforme Tito Lívio nos informa a construção do templo de
Júpiter, junto ao local consagrado à Terminus, foi interpretado como um
presságio e um augúrio de solidez e de estabilidade de uma cidade destina-
da a ser a capital do mundo R. Esta tradição lendária nos leva a inferir que a
associação destas divindades à Júpiter representa a idéia de que o deus so-
berano uniria os dois aspectos fundamentais da estrutura social: a sobera-
nia, o controle, a atuação militar dos jovens e a proteção da propriedade pri-
vada, principalmente territorial, a qual era dividida entre eles. A associa-
ção de Terminus à Fides, demonstra que este deus é a garantia da justiça, a
qual regula o relacionamento entre os cives e os povos vizinhos." É, por-
tanto, o símbolo das relações humanas e o protetor dos limites da lei civil
romana, o qual não deve ser confundido com o limite da atuação militar
dos romanos.

2- As representações do Imperium Sine Fine.

Esta mesma linha de raciocínio se articula com a percepção dos ro-


manos sobre a cosmologia.
Os dois espaços fundamentais que estruturavam o universo mental
dos romanos são a Urbs et orbis terrarum. A Urbs é o centro do mundo, a
cidade da vida social, do prazer, dos templos, da riqueza, da cultura e do
poder. O orbis terrarum é representado gradualmente no momento da con-
quista por ocasião das cerimônias de triunfo. Ao longo do desfile eram apre-
sentados os mapas com a lista das cidades, os nomes das montanhas e rios
conquistados, projetando-se a forma e a distância das regiões submetidas.
Após a cerimônia estes mapas das regiões gradualmente conquistadas eram
pintados nos muros dos templos.
Evidentemente, por razões políticas e administrativas estes mapas
tinham como objetivo visualizar a posse do mundo. Com o estabelecimen-
to solene do Principado, em 27 a.c., consolidou-se a missão divina de con-
quista, dominação, pacificação e organização de todo o mundo pelos ro-
manos sob o governo do Princeps. Tal concepção ecumênica foi veiculada
pela Res Gestae Divi Augusti, cuja ilustração pode ter sido o principal ob-
jetivo da elaboração, possivelmente por Agripa, em 7 ou 2 a. c., de um mapa
universal do mundo romano. \O
A cartografia romana, no entanto, não avançou muito daquela dos
gregos ou da época helenística. As representações do mundo eram solida-
mente empíricas, descritivas e tributárias das possibilidades técnicas dos
homens da época. O espaço era organizado e limitado pela prática dos

324
peripli, os quais implicavam numa visão linear. As proporções regionais
eram orientadas segundo critérios analógicos estabelecidos pelas seguin-
tes relações: geometria / percepção empírica; conhecido / desconhecido; eu
/ outro; perto / longe, certo / incerto. As distâncias eram medidas de acordo
com a acessibilidade, prejudicando a observação correta da posição geo-
gráfica e das dimensões regionais. Reproduzia-se, assim, uma visão distor-
cida do universo.
A título de exemplo, o mapa abaixo, elaborado pelas descrições de
Estrabão nos demonstra que a região entre os Pirineus e o Rio Reno foi
percebida como uma série alongada de regiões retangulares, limitadas en-
tre dois rios que corriam de norte para sul. Ademais, a distância entre os
Pirineus e o Rio Reno foi ampliada enquanto aquela entre Marselha e a
Britânia foi reduzida à metade!'.

Fonte: WHITTAKER,C.R. Frontiers of the Roman Empire. A social and


economic study. London: John Hopkins University Press, 1994. p, 13.

Parece-nos evidente, portanto, que os conhecimentos de cartografia


da época não sustentam a idéia de uma política de fronteiras naturais como
um perímetro defensivo. Além disto, os vestígios dos sítios de fronteira não
demonstram a possibilidade de percepção de valores táticos ou estratégi-
cos para o limite de defesa militar. As fortificações e a presença de legiões
ao longo do limes reno-danubiano se articulam à sua função como um ca-

325
minho de passagem de suprimentos, canal de comunicação e uma base de
conquista e não de delimitação da ação militar romana.
As representações dos confins do Império ou do fim do mundo en-
contradas nas imagens veiculadas pela documentação textual ou material
nos reportam para uma percepção de cosmologia, espaço social e ideolo-
gia de um imperium sine fine. Vejamos alguns exemplos: Tácito e Herodiano
descrevem o Império Romano com fronteiras limitadas pelo mar dos ocea-
nos e distantes rios". Os signos de domínio universal estão presentes em
grande parte nos edifícios públicos ou no camafeu de Augusto do ano 10
a.c., reproduzido abaixo.

Fonte: Storia Universale dell 'arte - L' Antichitá Classica.


Novarra: Srarnpa, 1990, p. 287

Neste camafeu Augusto é representado como Júpiter, próximo da


deusa Roma, segurando o bastão de comando militar e olhando para Tibério
em sua carruagem da vitória. Abaixo estão os soldados com os bárbaros
cativos. Atrás de Augusto vemos a personificação do Oceanus e da
Oikomene (Tellus - Terra), a qual está coroando Augusto. Acima de Au-
gusto vemos a imagem do globo terrestre marcado com o seu signo astro-
lógico (capricórnio).
O poeta Ovídio nos informa que o culto ao deus Terminus era feito
no Capitólio especificamente porque de lá não se via outro lugar além das
estrelas. Acrescenta que para os outros povos a terra era dada com limites
fixos. Mas para a cidade de Roma seus espaço era o mesmo que o do mun-
d013•

326
Numa perspectiva cosmológica de acordo com Estrabão o orbis
terrarum imperium tinha duas partes: território organizado pela adminis-
tração romana que poderia ser ampliado e as externae gentes, as quais eram
submetidas. mas não anexadas".
Se considerarmos as seguintes passagens de Estrabão ": "( ... )quando
os exércitos romanos atingiram o Rio Elba, Augusto impediu os generais
de avançar, pois as tribos que lá existiam estavam em paz ( ... )" e de Suetô-
nio": "C ..) Augusto nunca empreendeu uma guerra com qualquer nação sem
LIma justa e necessária causa e estava longe de querer aumentar o Império
ou a sua própria reputação militar de qualquer forma, que forçasse o jura-
mento dos líderes bárbaros (. .. ) ele manteria sua palavra e a paz ( ... ) ", ve-
remos que o mencionado conselho de Augusto a Tibério relacionou-se aos
efeitos da derrota de Q.Varo em 9 d.e. e, não ao fim da expansão militar
romana. Aconselhava a manutenção do espaço da lei civil romana, ou me-
lhor, da área anexada ao império.
A virtude romana articulada à glória militar e a ideologia do imperium
sinefine permaneceram central na figura do bom imperador romano até o
final do Império Romano.
Os panegíricos latinos demonstram que a virtus é a virtude que ador-
na os imperadores desde Augusto a Teodósio. Articulada à virtus se encontra
a Victória, a qual determina que o imperador romano, chefe do imperium
infinitum seja declarado invictus.
Sabemos da importância da política expansionista de Trajano para a
construção da sua imagem como Optinius Princeps. Já Herodiano afirma
que a ambição de Sétimo Severo era aumentar a glória de triunfador não só
nas guerras civis como também contra a barbárie. As inscrições da África
intitulam este imperador de propagator imperii.
Durante o IV século, o limes conservou a sua função de base ofensi-
va. Tal afirmação é sustentada pela organização das campanhas de Juliano
na Gália'", pelas operações de comando para obter informações sobre os
germanos e conservar a vantagem da surpresa"; pela manutenção com
Valentiniano I do esforço para manter o controle dos alamanos e quados
através da construção de fortificações no território destes povos 19 e pela
indignação deste mesmo imperador, frente à reclamação dos quados, os
quais consideraram uma provocação a construção de fortificações em seu
território, situação que provocou, segundo Amiano, a morte de Valeriano
I, vitimado por uma ataque de apoplexia". Ademais, as figuras 2, 3, 4 e 5,
abaixo, demonstram a presença da imagem da Vitória nas moedas e sua
permanência até o reinado de Constâncio Il, momento já de contração do
território imperial.

327
Fig.2: sestércio de bronze - c. 66 d.e. Anv. Imperador Nero;
Rev. Roma segurando a Vitoria na mão direita e a lança na esquerda.

Fig.3: denário de prata, 198 d.C.Anv. Busto laureado de Sétimo Severo;


Rev. Vitória caminhando e segurando uma coroa e uma palma.

Fig. 4: Antoniano de prata - 244/249; Anv. Busto de Felipe I,


Rev. Vitória Augusta.

Fonte: Retratos e Propaganda. Faces de Roma. Brasília: Museu de Valores do


Banco Central do Brasil, s/d. páginas 82, 46, 49.

328
Fig. 5: moeda de ouro do Imperador Constâncio.
Fonte: Atlas of the Roman World. edited by Tim Cornell
and John Matthews. New York,1992. p. 202.

3- Idéia da Alteridade:

Conforme já mencionamos, não podemos ser iludidos pelo mito da


existência de fronteiras naturais cercando o Império Romano, pois as fron-
teiras não tinham o significado de fins, confins, limite onde Roma perma-
necia em confronto com os inimigos. No entanto, havia uma barreira mo-
ral entre romanos e bárbaros fundamentada no conceito dehumanitas, o qual
distinguia o homem civilizado do selvagem". As fronteiras do mundo ro-
mano eram aquelas do "universo civilizado" cercado por "bárbaros". So-
mente a melhor parte da oikoumene deveria ser ocupada e organizada,
embora o resto estivesse aberto à missão civilizadora de Roma e a explora-
ção econômica.
Ademais, a idéia de fim da conquista é muito restrita, pois a linha
administrativa de fronteira nunca inibiu os romanos de avançar por onde
tivessem reais interesses, como foi ° caso, por exemplo da anexação da
Britânia, Trácia, Lícia e Judéia, época de Cláudio (41-54), região da Ger-
mânia de alta população e de produção de alimentos ao longo do Neckar,
Main, Taunus e áreas de possibilidade de existência de trocas comerciais,
J----- durante a dinastia dos Flávios, território da Arábia e da Dácia sob o gover-
I .
no de Trajano (106-117).

329
Em relação às outras regiões menos povoadas c com menores possi-
bilidades de produção de alimentos, bastava o controle polnico indireto. Isto
é evidente na Res Gestae Divi Augusti, onde o padrão de relacionamento
entre Roma e os povos vizinhos é descrito da seguinte forma:

"Muitas vezes travei guerras em terra e por mar, ci vis e externas, no


mundo inteiro; e, vencedor, poupei todos os cidadãos que pediram per-
dão. Preferi conservar a destruir povos estrangeiros, que pudessem ser
perdoados sem perigo.?"

Na Germãnia, Tácito comenta a preferência dos romanos pela inter-


venção na política tribal mais do que no uso da força militar, estimulando a
discórdia entre as tribos". Algo que fica evidente pelo apelo dos reis da
Britânia à Cláudio, motivando a invasão e criação da província do mesmo
nome. Sabemos, ainda por Tácito, que os frísios eram submetidos ao
obsequium romano, apesar de nunca terem sido anexados". Suetônio nos
diz que Augusto, além de fomentar uma política de alianças entre os reis
aliados, tratava-os como se fossem membros e partes do Império".
A dualidade na concepção das fronteiras imperiais criou um tipo de
relacionamento entre romanos e estrangeiros baseado na noção de superio-
ridade dos romanos que se consideravam senhores (patronos) do mundo
inteiro. P.Veyne afirma que:

"(. ..) as suas relações com os súditos ou estrangeiros são um patrocinium;


não são relações com parceiros iguais, segundo regras formais, mas re-
lações pessoais, desiguais e informais; não se atribui uma norma a um
rei, os súditos devem entregar-se com confiança à sua boa-fé e à sua hu-
manidade. Por isso, Roma concebe as relações internacionais como uma
espécie de relações clientelares, que não têm outra lei a não ser a boa-fé
do senhor; se o estrangeiro, por seu lado, não se comportar como um cli-
ente leal, converter-se-a num rebelde, tornar-se á culpado."2ó

Esta dualidade é evidente na noção de ambivalência entre regiões sob


uma administração direta e regiões onde o controle romano se processava
através de uma rede de alianças entre a elite cêntrica c local, quer dizer, "a força
e o poder dos reis dependiam da autoridade de Roma"?". Desta forma, na
qualidade de reis aliados, os socii faziam parte doimperium. pois a posição
de inferioridade dos reinos amigos ficava evidente pela utilização do ter-
tncifides como conceito regulador dos tratados. Desde a época mais arcai-
ca afides significava o abandono confiante e total de uma pessoa a outra.
Agia como garantia dos relacionamentos humanos. seja o casamento, a tu-
teia, os contratos de compra e venda, ou mesmo, as relações entre os clien-
tes e patronos".

:no
Foi o tipo de relacionamento sócio-político com as comunidades es-
trangeiras que definiu a fixação das fronteiras romanas, pois a noção de
fronteira era indeterminada e os romanos, conforme já afirmamos, não se
achavam constrangidos pelas diferenças entre administração direta do ter-
ritório anexado e transformado em província e o controle indireto dos ter-
ritórios mais distantes.
Desta forma, entendemos que as fronteiras do mundo romano devem
ser explicadas por um conceito onde haja a interação entre a economia,
sociedade e Estado para se definir os limites geográficos vantajosos para
os benefícios da sociedade, ou melhor, entender as fronteiras como "parâ-
metro de crescimento'?".
Mesmo de forma bastante rudimentar os imperadores romanos tive-
ram certa consciência do custo marginal da ação imperialista, em função
da qual, as conquistas se restringiram às áreas onde os sistemas sócio-polí-
ticos preexistentes eram desenvolvidos o suficiente para justificar o custo
da conquista".
Diante do exposto, portanto, o sistema de domínio romano era supor-
tado pela ideologia tradicional expansionista e clientelística em relação aos
povos que viviam além das fronteiras provinciais. Isto implicou, sem dúvi-
da, na idéia de negação de existência de qualquer outro poder igual ao de
Roma, o qual pudesse disputar a posse de territórios.
As relações intra-imperiais romanas foram marcadas por profunda
assimetria, a qual se fundamentava numa discriminação étnico-cultural por
parte do centro em relação aos povos periféricos. Esta assimetria, fundada
na absoluta superioridade político-militar, assegura na periferia o privilé-
gio dos interesses do centro, assumidos pelas elites locais. O imperium foi,
portanto, o mecanismo político de incorporação, organização e controle
sobre uma ampla e diversificada região. Ou melhor, consistiu no controle
direto sobre amplas redes econômicas já existentes.
Ressalto que o parâmetro do ambiente do sistema de domínio impe-
rial romano era caracterizado pela noção de fronteiras abertas, cuja inte-
gração era baseada numa variedade de relações de exploração de recursos
materiais e humanos com as inúmeras tribos (frisões, caucos, bructeros,
queruscos, hermunduros, marcornanos, quados, sármatas) localizadas além
do limes reno-danubiano, as quais apresentavam níveis de complexidade
social distintos:
• sistema romano sobre uma base celta, resultado da conquista roma-
na com uma "civil ização arcaica" altamente desenvolvida e incorpo-
rada ao império romano;
• sistema celta, formado por reinos vassalos que atuavam como uma
zona tampão entre o Império e as tribos germânicas do interior;

331
• sistema gennânico independente mediado, particularmente a partir
de 100 a.C; através dos contatos com a região celta."

A região de fronteira representa a mudança de uma área de produção


intensiva para extensiva, onde a capacidade de coleta de excedente alimen-
tício era limitada pelos sistemas sociais, os quais eram incapazes de produ-
zir tais excedentes. Deve ser definida como áreas de troca e agentes de trans-
formação, pois a função das serni-periferias ou periferias era servir ao cen-
tro geo-político para assegurar seu funcionamento e manutenção através de
uma rede de trocas e alianças políticas entre a elite cêntrica e local.
Em uma outra oportunidade pretendemos discutir como este padrão
de relacionamento integrado entre o harharicum e o imperium tornou-se
contraditório. Favoreceu o desenvolvimento da complexidade social da
periferia germânica, o qual superou o parâmetro do ambiente do sistema
de domínio imperial romano, descaracterizando as condições de sua repro-
dução.

Notas

I BUCKLEY, W.A Sociologia e a Moderna Teoria dos Sistemas. São Paulo, Cultrix,
1976. p.33.

2 CHURCHMAN .C, W. Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis, Vozes, 1971,


p.58.

) Vide ROWLANDS, M. "Centre and Periphery: a review of a concept" e HASEL-


GROVE, e. "Culture process on the periphery: Belgic Gaul and Rome during the
late Republic and early Principate". ambos In: ROWLANDS, M. et alli. Op.Cit.;
SCHNEIDER,1. "Was there a Pre-capitalist World-System?" In: Peasant Studies.
Vol. VI, n° I, January, 1977 FRANK, G. A. and GILLS, B. (ed) The World System.
Five hundred years or Jive thousands. London: Routledge, 1993. SANDERSON,
S.K. (ed) Civilirations and World System. London: Altamira Press, 1995. CHAM-
PION, T.e. Centre and Periphery. Comparative Studies in Archaeology. London:
Routledge, 1995.

4 TÁCITO, Anais 1.11

5 Histórias, 56.33

ÓVide UNTOTT, A. Imperium Romanum. Poluics and Administration, London and


New York: Routledge, 1993. Capo I e WOOLF,G. World-systel1ls analysis and the
Roman Empire. In: Journal 01' Roman Archaeology. University of Michigan:
Department of Classical Studies, \990, vol.3, p.44- 58.

332
7 W HITTAKER, C. R.Frontiers of the Roman Empire. A social anel economic studv.
London: Johns Hopkins University Press, 1994. e WHITTAKER,C.R. Trade and
Frontiers ofthe Roman Empire. In: WHITTAKER,C.R. and GARNSEY,P. (edit).
Trade and Famine in Classical Antiguity. Cambridge University Press, 1983.
pag.113.

'Tito Lívio, I, 55 e Y, 55.

"Vide DUMÉZIL,G. La Religion Romaine Archaique Paris: Payot, 1966, p.203 ss.
e MESLIN,M. L'Homme Romain. Paris: Hachette, 1978. p. 38 5S.

10 Yide NICOLET, CI. Space, Geography and Politics in the Earlv Roman Empire.
The University of Michigan Press, 1991

II Yide NICOLET,CI. Rendre à César. économie et société dans Ia Rome Antique.


Paris: Gallimard, 1988 p 278 ss.

12 Anais, 1.9: 2.11.5.

tJFasti 2.667-84 Apud W HITTAKER,C.R. Frontiers of the Roman Empire. A so-


ciaL and economic study. London: Johns Hopkins University Press, 1994.p 29

Cosmographia, 2.5.8 Apud W HITTAKER, C. R. Frontiers of the Roman Empire.


14

A social and economic study. London: Johns Hopkins University Press, 1994. p.
12 ss.

15 Apud. Cosmographia. 7.1.4.

16 Augusto, 21.28.

17 Res Gestae, 16.12. 1-70.

IS Res Gestae, 18.2.12-13.

19 Res Gestae, 28.2.5; 29.6,1-2; 30.7.6.

20 Res Gestae, 30.6.2-3.

21 YEYNE, P. "Humanitas: Romanos e não Romanos". In: GIARDlNA, A. O Ho-


mem Romano Lisboa: Presença, 1992. p.283.

22 Res Gestae Divi Augusti, 1.3. Yide também as passagens de 26 a 32.

21 Germània 33-36.

24 Anais 4.72.

25 Augusto, 48.

26 YEYNE, P. "Humanitas: Romanos e não Romanos". In: GIARDINA,A. O Ho-


mem Romano. Lisboa: Presença, 1992. p. 283

...,.....
- it Germânia 42.

333
2X RICH, J. "Patronage and intcrstate relations" In: WALLACE-HAORILL, A. (ed)
Patronage in Ancient Societv. London: Routledge, 1990. p. 129.
2" WHITIAKER, C. R. Op. Cit. p. 84.

)0TAINTER, 1. The Collapse of Complex Societies. Cambridge University Press,


1988. Capo IIL

)1HEOEAGER,L. "Empire, trontier anel the barbarian hinterland: Rome anel northern
Europe from AO I - 400". In: ROWLANOS, M. et alli. Centre and Peripherv in
lhe Ancient Wor/d. Carnbridge University Press, 1987. p. 126 e FLEMING,
M.I.O'Agostino, "A Cultura Romana e os Povos do Norte Europeu". In: Clássica.
Suplemento 2. Araraquara: UNESP, 1993. p.251/260

. --
334
A Guerra do Peloponeso e o Enfraquecimento do
Sentimento Cívico entre os Gregos"

Paulo Fernandes Louro

Résumé:

L 'offaiblissement du sentiment civique parmi les grecs c 'est un


dédoublement de Ia guerre du Péloponnêse.

Os textos escritos pelos gregos que viveram entre os séculos V a.C e


IV a.C; ressaltam com freqüência os valores que deviam nortear o com-
portamento do cidadão ideal.
A coragem, a obediência às leis, o sentimento de equilíbrio e bom
senso, a consciência de ser livre e viver numa comunidade autônoma e o
sentimento de coexistir numa cultura que se auto-conhecia como civiliza-
da, enfim, tais valores constituíam, em grande parte a paidéia dos gregos.
Desta forma, havia um forte apelo ao cidadão no sentido de fazê-lo
participar da vida pública de sua pôlis. Mas, participar da vida pública não
significava apenas frequentar as Assembléias ou ocupar um cargo na ad-
ministração do Estado. Antes de mais nada, o cidadão devia estar à dispo-
sição de sua comunidade, doar-se, entrega-se a ela, fosse ajudando a
administrá-Ia, fosse contribuindo com seus próprios recursos para mantê-
Ia ou fosse lutando por ela no campo de batalha.
Segundo o relato de Aristóteles na "Constituição de Atenas", este ri-
gor nas relações do cidadão com o Estado já era sentido no tempo de Sólon,
em que o cidadão seria intimado a tomar uma posição quando ocorresse dis-
sensão interna, a favor de um dos lados em conflito, sob o risco dc perder
sua cidadania' .

. Comunicação apresentada no 111Congresso Nacional de Estudos Clássicos, em outubro de


1995. na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Pho/I/ix. Rio de Janeiro, 3: 335-341, 1997. 335


A atividade política do cidadão era sensível sobretudo entre aqueles
que dispunham de recursos e de tempo para dedicar-se à coisa pública. Mas
Tucídides relata veemente discurso de Péric1es, o qual reprova como inútil
o cidadão que se mantém afastado dos négocios do Estado"
Participar da vida pública significava também despender gastos fi-
nanceiros com a pólis, organizando manifestações ligadas aos cultos reli-
giosos, patrocinando festivais de teatro ou enviando embarcações para a
guerra. Estes gastos, no dizer de Aristóteles, conferiam honra ao cidadão"
Por outro lado, os gastos na vida privada não eram bem vistos: os textos
antidos referem-se ao equilíbrio, à moderação e à simplicidade em todos
os aspectos da vida. A ostentação de riqueza era vista como um demérito,
embora a riqueza em si mesma fosse bem vinda. Aristóteles preconiza que
o homem virtuoso gastará com folga na vida privada apenas por ocasião
das "bodas ou coisas afins" e na acolhida dos hóspedes".
Atuar na política ou despender recursos com a pólis ainda não com-
pletavam a atitude ideal do cidadão. Era preciso, também, ir à guerra, inte-
grar-se no exército cívico, manter-se à disposição da defesa da pólis ou lan-
çar-se ao campo de batalha, imbuido de coragem e habilidade com as ar-
mas lado a lado com os demais companheiros, resistindo até a morte se
preciso. Heródoto relata que o único espartano sobrevivente da violenta
batalha no desfiladeiro das Termópilas - Aristôdamos -, era mal visto
em sua pólis'.
Poder-se-ia indagar se o cidadão, uma vez consciente do seu papel
como agente ativo na administração pública, nas celebrações cívico-reli-
giosas e na guerra, era levado a desempenhar tantas atividades sem nada
perceber do erário do Estado.
No caso de Atenas, o período que seguiu à Batalha de Salamina, es-
tendendo-se mesmo até a época de Péric1es, assiste a uma tendência cres-
cente de remunerar as funções públicas. Aristóteles refere-se ao sustendo
de mais de vinte mil homens naquele período, entre os quais jurados, ar-
queiros, cavaleiros, hoplitas, membro do Conselho, guardas dos arsenais,
guardas da cidade, oficiais em tarefas locais e no exterior",
Não se tratava, com efeito, de um salário efetivo e substancial, mas
sim de um pagamento a título de subvenção. Com o Golpe Oligárquico de
411 a. c., o regime dos Quatrocentos decretou a suspensão de tais despe-
sas, sendo que todos os cargos seriam exercidos sem remuneração enquan-
to durasse a guerra contra os peloponésios, com exceção dos arcontes e dos
prítanes. A cidadania ficou reduzida a cinco mil homens os quais por dis-
porem de posses, estariam capacitados a servirem a cidade". Mas aqui esta-
mos no contexto da Guerra do Peloponeso, após o fracasso da expedição
ateniense à Sicília e num momento de dificuldades financeiras.

336
N o momento em que Aristóteles escreveu a "Constituição de Atenas",
portanto depois da Guerra do Peloponeso, as subvenções eram pagas aos
cidadãos pela prestação de serviços ao Estado. Desta forma, como mencio-
na Aristóteles, jurados, membros do Conselho, arcontes e oficiais militares
recebem subvenções, assim como os participantes das Assembléias". Nes-
te caso, parece que a guerra do Peloponeso não alterou o costume de sub-
vencionar os cidadãos que exerciam funções públicas. No entanto, a novi-
dade trazida com os desdobramentos com a guerra foi a subvenção paga
aos participantes das Assembléias, que ganhavam um óbolo nas reuniões
ordinárias, de acordo com Aristóteles.
A guerra, enfim, começava a modificar as relações entre o cidadão e
a sua comunidade. Numa passagem da "História da Guerra do Peloponeso",
Tucídides nos oferece uma impressionante análise da natureza humana, na
qual os valores morais são postos em xeque por ocasião da guerra: "Assim
proliferam na Hélade todas as formas de perversidade em consequência de
revoluções, e a simplicidade, que é a característica mais condizente com a
natureza nobre, provocava sorrisos de escárnio e desapareceu, enquanto
florescia por toda a parte a hipocrisia combinada com a desconfiança. Já
não havia palavras fidedignas, nem juramentos capazes de inspitar respei-
to bastante para reconciliar os homens'":
Em Atenas, a partir do início da guerra, até mesmo a organização
espacial da cidade foi alterada, pois os habitantes dos campos transferiram-
se para o interior do perímetro fortificado pelas muralhas. A dificuldade em
arranjar alojamento na casa de parentes ou amigos fez com que a maioria
se intalasse em aréas não habitadas, inclusive terrenos dos templos. Muitos
ocuparam os torreões das muralhas, mas a verdade é que a ásty (núcleo
urbano) não dispunha de espaço para todos e por esta razão improvisaram-
se tendas, cujo calor era sufocante". Esta ocupação desordenada, feita sob
emergência e em péssimas condições higiênicas, com toda certeza contri-
buiu para o advento e a propagação da peste que viria a dizimar cerca de
um terço da população ateniense, entre 430 a. C. e 426 a. c.11
A Guerra do Peloponeso havia sido travada entre confederações de
póleis que combatiam ou a favor de Atenas ou a favor de Esparta, num jogo
de interesses que poderia muitas vezes alterar as alianças de acordo com as
facções políticas internas existentes em cadapólis consorciada. Vinte e sete
anos de guerra provocaram um saldo de enormes perdas: com cidades
destruídas, campos arrasados, milhares de pessoas desenraizadas de seus
lugares de origem, retração da atividade comercial, o que se pode observar
é uma Hélade enfraquecida.
Em Atenas, apesar de a democracia ter sido restaurada após o Golpe
Oligárquico de 404 a. c., a economia já estava em crise: a agricultura foi

337
atingida com a devastação dos campos pelos lacedemônios, a atividade
comercial diminuiu consideralvelmente, a exploração das minas do Láurion
ficou quase paralisada e a produção artesanal foi em grande parte prejudi-
cada. Também a extinção do império privara Atenas dos tributos que co-
brava sobre as páleis "súditas". No entanto, a organização social foi mantida,
isto é, cidadãos, metecos e escravos continuaram a dispor de um estatuto
jurídico preciso e os cidadãos manti verarn-se enquadrados nas quatro cate-
gorias censitárias formuladas na época de Sólon: pentacosiomedinas, ca-
valeiros, zêugitas e tetas. Todavia, uma nova categoria de homens ricos sur-
gia fora das tradicionais famílas que extraíam sua riqueza da atividade
marftimo-fundiária e controlavam o poder político no século V a. c.12• Ao
mesmo tempo, havia contingentes de miseráveis, tanto no campo como na
cidade, já retratadas principalmente por Aristófanes!'.
Entre o fim da Guerra do Peloponeso e a batalha de Queronéia, em
338 a.c., a Hélade ingressou numa "nova ordem" projetada pela crise. Se- •
guir-se-ã um longo período ainda de hostilidades em que o espectro políti-
co grego será marcado pela articulação de confederações entre póleis, das
quais a Liga Espartana, a Liga Béocia e a Liga Ateniense são exemplos.
Mas a crise expressou-se também sobre as mentalidades, provocan-
do uma espécie de desarticulação do espírito cívico que impulsionava o ci-
dadão no sentido da participação política. O desinteresse pelos assuntos pú-
blicos será crescente e na época de Demóstenes os subornos são registrados
amíude: "Definham-se as cidades, enquanto magistrados e administrado-
res recebiam dádivas e eram largamente subornados" 14.
Esta nova realidade do século IV a.c. marcava também a desarticu-
lação dos exércitos cívicos. O cidadão retirava-se paulatinamente da cena
política e dos assuntos de interesse da comunidade, voltando-se para os seus
próprios. Ao mesmo tempo, os enormes contingentes desenraizados de suas
terras integravam-se nos exércitos como mercenários. Em relação ao de-
senvolvimento do mercenarismo, Claude Mossé nos oferece o seguinte co-
mentário: "Com efeito, parece que, cada vez mais repugna aos cidadãos
abandonar suas ocupações para cumprir seu tempo de serviço militar. O
fenônemo não é peculiar a Atenas, uma vez que, em toda a parte, os exérci-
tos cívicos tendem a ser subsistituídos por exércitos de mercenários. E isso
é muito natural, pois a miséria, oriunda da Guerra do Peloponeso, atirou,
no mercado de trabalho, massas de homens prontos a se alugaram ao que
oferecesse mais".
A situação econômica de Atenas no século IV a. C. somente ganha-
ria uma nova dinâmica com as reformas de Calístrato. Basicamente estas
reformas visaram aprimorar a cobrança da eisphora, isto é, imposto de guer-
ra que recaía sobre os cidadãos, doravante de maneira proporcional à sua

338
fortuna e a estimular a produtividade das minas do Láurion, através de uma
revisão das concessões. Mas é verdade também que Atenas, ao restabele-
cer uma nova liga sob sua hegemonia (378 a.C.! 377 a.C,}, passara a exigir
contribuições de guerra com tanta frequência que estas se configuraram
como autênticos tributos, reproduzindo a situação existente no extinto "im-
pério ateniense" que se formara para combater os persas".
A reorganização das finanças públicas não deve ocultar o quadro de
crise econômica que tomou conta de Atenas desde o fim da Guerra do
Peloponeso, estendendo-se pelo século IV a.c.. Por toda a parte na Hélade,
as interferências do Estado sobre o espaço público foram retraídas, atingindo
a criação arquitetõnica e as obras realizadas em benefício da coletividade.
Hatzfeld assinala que "... de 410 a.c. a 375 a.c. não se construiu na Grécia
um único edifício comparável aos grandes templos do século anterior (sé-
culo V a.C")". Acrescenta que os Propileus e até mesmo o Erecteion, em
Atenas, não foram terminados!'.
Se considerarmos os desdobramentos desta conjuntura sobre a con-
cepção do espaço doméstico, encontraremos nos textos de época uma ten-
dência que parece modificar o antigo gosto pela simplicidade, expresso nos
discursos de Péricles, na vida privada, em direção ao gosto pelo luxo que
se manisfesta nos discursos de Demóstenes cerca de 80 anos depois. Desta
forma, o desinteresse do cidadão pelos assuntos públicos, as ameaças so-
bre a comunidade cívica autônoma provocadas pela ação de Filipe em me-
ados do século IV a. c., a concentração da riqueza em poucas mãos e o mer-
gulho do indivíduos para seus interesses particulares, podem estar na base
das transformações da arquitetura doméstica grega, cuja suntuosidade será
crescente no século IV a. C. e afirmada na época helenística".
Concluindo, avaliamos que os valores cívicos expressos nos textos
anteriores à Guerra do Peloponeso estão presentes também nos textos pos-
teriores, como no caso dos escritos de Platão e Aristóteles. Na "Repúbli-
ca", por exemplo, Platão teoriza sobre as bases do Estado ideal, conside-
rando uma rígida submissão do cidadão diante dos interesses deste Estado.
Mas, no dia-a-dia, o desinteresse pelos negócios públicos, a repulsão em
participar do exército cívico a tendência ao individualismo e o gosto cres-
cente pelo luxo na vida privada, expressam novos valores entre os gregos.
Diríamos, portanto, que o enfraquecimento do espírito cívico, do sen-
timento de autonomia e a construção de uma nova. maneira de sentir a vida
para o próprio indíviduo, não devem ser associadas automaticamente à in-
tegração da Grécia ao chamado "Império de Alexandre". É verdade que o
contato mais estreito com povos e culturas orientais contribuiu para modi-
ficar as concepções ideológicas dos gregos, mas parece evidente que a Guer-
ra do Peloponeso, com toda a sua carga de dificuldade, incertezas e hOITo-

339
res, fermentadas ao longo de vinte e sete anos - ainda que intermitentes
-, foi um processo marcante para a desagregação do sentimento cívico entre
os gregos.

Notas

I ARISTÓTELES. Constituição de Atenas, VIII, 5.

2 TUCÍDIOES. História da Guerra do Peloponeso, 11,40.

] ARISTÓTELES. Ética e Nicôrnaco, IV, 2, 1I.

4 IBIO,IV, 2,15.

5 HERÓDOTO, História, IX,71. Sobre Aristôdarnos pesava a suspeita de fuga.

6 ARISTÓTELES. Constituição de Atenas, XXIV, 3.

7IBID, XXIX, 5. Aristóte!es acrescenta que os arcontes e os prítanes receberiam


cada um três óbulos por dia.

s 1810, LXII, 2. Em Atenas havia muitos cargos públicos relacionados por Aristó-
teles, como tesoureiros de Atenas, reparadores de templos, poletai (que controla-
vam os arrendamentos), astinomoi, entre outros; mas Aristóteles não faz referênci-
as se ganhavam subvenções (é coerente supor que sim).

9 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, I1I, 83.

10 1810, 11, 17 e 52.

11 FINLEY, M. Os Gregos Antigos, p. 118/119.

12 MOSSÉ, C. As Instituições Gregas, p. 44.

13 Ver, por exemplo, em Lisístrata o Semicoro de Mulheres: " ... os pobres, pois, que

o desejem, venham a mim com seus sacos e seus alforjes para colher o pão ..
(ARISTÓFANES, Lisistrata, 1208 a 1210).

14 DEMÓSTENES, XVIII,45. É a chamada "Oração da Coroa". Este orador viveu


entre 384 a.c. e 322 a.c.

15 MOSSÉ, C. Atenas: A História de uma Democracia, p. 90.


16 1810, p.88/89.

17 HATZFELD, Jean. História da Grécia Antiga, p.228.

IX Ver especialmente o discurso atribuído a Péricles por Tucídides. In: História da


Guerra do Peloponeso, lI, 40, em contraste com Demóstenes, I1I, 26 (o chamado
"Olintíaco Terceiro").Sobre a concentração de riqueza fundiária e mobiliária, ver
MOSSÉ, c. In: La Fin de Ia Démocrátie Athenienne, p. 146.

340
Bibliografia

1- Textos Antigos:

ARISTÓFANES. Lisistrata. Traduction, introduction, notices e( notes par


Marc-Jean Alfonsi. Paris. Flammarion, 1996.
ARISTOTELES. Política. Edicion bilingue y traducción por Julian Marias
y Maria Araujo. Madrid: Instituto de Studios Politicos, 1951.
___ Éthique de Nicomaque.
o Traduction par Jean Voilquim. Paris:
Flammarion 1965.
__ oA Constituição de Atenas. Tradução e comentários de Francisco
Murari Pires. São Paulo: Editora Hucitec, 1995.
DEMÓSTENES. "Otintíaco Tercero (III)". In Discursos Políticos I. Introduc-
ción, traducción y notas de A. López Eire. Madrid: Editorial Gredos,
1980.
__ o"Sobre Ia Corona (XVIII)." In Discursos Políticos I. Introducción,
traducción y notas de A. López Eire. Madrid: Editorial Gredos, 1980.
HERÓDOTO. História. Tradução, introdução e notas de Mário da Gama
Kury. 2a ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988.
PLATÓN. República. Traducción por Conrado Eggers Lan. Madrid: Edi-
torial Gredos,1988.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Tradução, introdução e
notas de Mário da Gama Kury. 3a.ed., Brasília: Editora Universida-
de de Brasília, 1987.

2- Obras Gerais:

FINLEY, Moses. Os Gregos Antigos. Lisboa: 70, 1984.


HATZFELD, Jean. História da Grécia Antiga. Mira-Sintra:Ed. Europa-
América, 1977.
MOSSÉ, Claude. La Fin de Ia Démocratie Athenienne. Paris: PUF,1962.
__ Atenas: História de uma Democracia. 2" ed., Brasília: Editora Uni-
o

versidade de Brasília, 1982.


__ o As Instituições Gregas. Lisboa: Edições 70, 1985.

341
Transformações no Paganismo Romano *

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto

Abstract:

ln this text we explore the transformations ocurred in the context of


roman paganism, linking the religious process with the social changings
in Rome from the Republic to the Christian Empire. Roman paganism was
invaded by greek religious forms with the military leaders and after, or the
emperors, that became the caracteristic ofthe "religious renew" of Augustus.
The Pax Romana brought an unprecedent moving ofpopulations beliefs and
the spreading among the romans ofcults from places like Egypt, Minor Asia
and Persia. With the Christian Empire, the prohibition of the public cults
and the violence against the pagans and their's temples, destroied the
mecaninsms of renewing of paganism as a sistem of beliefs, leading to its
declive and desintegration.

1- Introdução:

Tratar do paganismo romano não é uma tarefa fácil, pois, ao mencioná-


10, vem, de imediato, à mente do leitor a imagem do sistema sincrético vi-
gente a partir do século Il a.c., com o seu arcabouço mitológico empresta-
do à Grécia. Não pretendemos afirmar com isto que acreditamos ter existi-
do uma forma "pura" do paganismo romano, livre de empréstimos ou
sincretismos, já que tais procedimentos aparecem, primeiro em relação à
Etrúria, depois à Grécia, tão longe quanto pode recuar o nosso conhecimento
dos documentos. O que postulamos aqui é a especificidade do paganismo
romano, não apenas na morfologia de seu panteão, mas também na sua sis-
tematização funcional e na sua organização ritual e sacerdotal. ~

'Este artigo é a versão ligeiramente modi ficada e ampl iada de uma conferência proferida a
28 de Setembro de 1994 no "Curso de Religião, Sociedade e História" patrocinado pelo
Laboratório de História Antiga (LH IA) do Departamento de História da Universidade Fede,
ral do Rio de Janeiro (UFRJ).

Pholnix, Rio de Janeiro, 3: 343-369. 1997. 343


Porém, é essencial perceber o paganismo romano em uma dimensão
diacrônica, com suas permanências e transformações, de modo a compreen-
der como o quadro helenizante evocado no início deste texto, seguramente
falso no século VI a.C; pôde se tornar real no século II a.c. Um fato logo
nos chama a atenção: a ausência de uma mitologia própria, fora aquela
posteriormente importada da Grécia. Os deuses romanos parecem espec-
tros de burocratas cumpridores de suas funções, sendo desprovidos daque-
le modus operandi tão humano que fez a fama de seus colegas gregos. Ora,
resta saber se Roma nunca conheceu nenhuma reflexão mitológica sobre
seus deuses, ou se, possuindo-a, já a havia perdido na época dos testemu-
nhos literários.
Quando surgem os primeiros textos escritos, a vida religiosa romana
apresentava diversos ritos, como as Matralia, e figuras divinas, como
Quirino, incompreendidos pelos contemporâneos, os quais já não conheci-
am os seus fundamentos mitológicos ou o seu papel no panteão. Tal incom-
preensão era compensada por racionalizações a posteriori que procuravam
dar um sentido aceitável a tais fatos religiosos, como podemos ver na iden-
tificação de Quirino, O deus da fertilidade e da riqueza, com Rômulo, o fun-
dador mítico de Roma.
Porém, através da comparação dos ritos romanos com outros existen-
tes no mundo indo-europeu, principalmente com os da Índia védica, se ve-
rificou que eles seguem uma ordem, cuja lógica só é possível de compreen-
são dentro da seqüência narrativa de uma mitologia (DUMÉZIL, 1966, p.
67). Desse modo, podemos afirmar que o paganismo romano possuía um
sistema mitológico próprio, revelador dos esquemas de classificação e or-
denação das suas figuras divinas e de seus ritos. No entanto, por ser domí-
nio de sacerdotes e não de poetas, ao contrário do que ocorreu na Grécia ou
na Índia, esta mitologia "não era literária, exposta às tentações da literatu-
ra, mas se limitava à sua utilidade e 'se colava ao ritual'" (DUMÉZIL, 1966,
p.69).
A data precisa do desaparecimento da reflexão mitológica romana é
impossível de se determinar, entretanto, ela não parece ser muito antiga,
sendo provável que o processo tenha se dado com a crescente helenização
da cultura romana, que ocorreu nos séculos IV e Ill a. C. Apesar disto, a
mitologia romana não desapareceu sem deixar vestígios, pelo menos a par-
te concernente ao domínio de Júpiter, Marte e Quirino foi transposta para o
plano humano estruturando todos os relatos "históricos" sobre os primei-
ros tempos da realeza romana (DUMÉZIL, 1966, p. 72-88).

344
1/- Os deuses romanos:

Os deuses romanos podem ser divididos em três grupos tipológicos:


em primeiro lugar alguns deuses bastante bem definidos, presentes na vida
e no calendário religioso; depois, forças divinas cujo agente era desconhe-
cido, mas sempre presente aos olhos dos romanos, favorecendo ou impe-
dindo as ações humanas; e, finalmente, uma enorme quantidade de grupa-
mentos de deuses que não passam do nome de um agente que encerra em si
um ato ou uma fração de ato.
Estes últimos deuses parecem não existir fora das Iistas dos antiquá-
rios latinos que, como Varrão, as retiraram dos livros dos pontífices. As-
sim sendo, constituem assunto de especialistas do culto, não tomando par-
. te da religião tal como ela era vivida pelos seus adeptos. Como exemplo,
temos a lista dos deuses que atuam no matrimônio, transmitida por Santo
Agostinho com o intuito de ironizar os deuses pagãos:

° ajuntamento carnal entre homem e mulher é presenciado pelo deus


Jugatino ... Para a recém casada ser conduzi da ao novo domicílio, cha-
ma-se, porém o deus Domiduco. Para instalá-Ia em casa emprega-se o
deus Domício. E para mantê-Ia junto ao marido vem a deusa Manturna ...
Presenciam o ato a deusa Virginense, o deus pai Subigo, a deusa mãe
Prema, a deusa Pertunda, Vênus e Príapo ... Na realidade, se se encontra
presente a deusa Virginense, para desatar a faixa da virgem, se se encon-
tra o deus Subigo, para que se sujeite ao homem, se se encontra a deusa
Prema, para que, submetida, a estreite e não a deixe mover-se, que papel
desempenha no caso a deusa Pertunda? Erubesça de vergonha e saia. Que
o marido, pelo menos, faça alguma coisa .... Mas, para que o digo, que
está presente Príapo, másculo a conta toda, sobre cujo bestialíssimo e
monstruoso falo as matronas mandavam sentar-se a recém casada, segun-
do usança muito religiosa e honesta entre elas? (AGOSTINHO, A Cida-
de de Deus, 6, IX, 3).

A chave para a compreensão destes deuses "especialistas" está na


própria estrutura social de Roma. As grandes gentes (famílias) romanas
possuíam multidões de escravos, agrupados sob o nome defamilia (propri-
edade) urbana ou rural. Sob o domínio do pater [amilias cada escravo exercia
uma função especializada, voltada para o engrandecimento das ações do
senhor. Na vida pública os magistrados possuíam cs apparitores, os lictores,
o praeco, o scriba e o pullarius para acompanhá-lo. A lista de deuses aci-
ma citada estava, com certeza, sob o domínio de Juno, a responsável pela
ordem matrimonial, pois:

345
em uma sociedade como esta, amiga de listas e precisões, do método e
do trabalho bem dividido, era natural que os verdadeiros deuses, gran-
des e pequenos, tivessem também no interior de sua prouincia, auxilia-
res nomeados a partir do único ato que deviam realizar sob a responsabi-
lidade, se ousarmos dizer, e em prol de um deus (DUMÉZIL, 1966, p.51).

Quanto aos sinais que revelavam a presença de seres superiores nos


fenômenos da vida quotidiana (vozes, raios, terremotos, etc.), sem, no en-
tanto, revelar a sua identidade, os romanos adotavam uma atitude de pru-
dência e reverência. Logo era instaurado um culto à divindade que presi-
diu o fenômeno, mas, como a sua identidade verdadeira era desconhecida,
tomavam-se as precauções necessárias para não excluí-Ia involuntariamente
da homenagem. Desse modo, as fórmulas litúrgicas diziam siue deus siue
dea (seja um deus, seja uma deusa) (DUMÉZIL, 1966, p. 52) para impedir
que o verdadeiro autor do prodígio se sentisse ofendido por uma identifi-
cação incorreta. Esta prudência formalista era uma característica do pensa-
mento religioso romano, regido por rígidos códigos de conduta, sendo per-
ceptível na própria estrutura do pensamento latino (ECO, 1989).
Entre os deuses principais, temos em primeiro lugar Jano, o deus
bifronte, que reina sobre todas as passagens, presidindo o início e o fim de
tudo (do ano, das guerras, do mundo) e tendo como espaço a soleira das
casas. O paganismo romano possuía três grandes tríades cultuais: a tríade
arcaica ou pré-capitolina, que reunia Júpiter, Marte e Quirino; a tríade
capitolina, que reunia Júpiter, Juno e Minerva; e a tríade plebéia, que reu-
nia Céres, Líber e Líbera.
A tríade arcaica, embora tenha a sua existência assegurada nos docu-
mentos, já tinha seu significado esquecido na época histórica. O seu culto
era assegurado pelos flâmines maiores (Dialis, Martialis, Quirinalisv. A
estrutura da tríade foi calcada na ideologia trifuncional comum aos povos
indo-europeus, com o domínio da soberania, da religião e do direito confi-
ado a Júpiter; o da atividade guerreira a Marte e o da fecundidade e da ri-
queza a Quirino.
Júpiter representava um rex garantidor da existência de Roma, diri-
gindo a vida política, jurídica e religiosa. Ele possuía divindades menores
associadas à sua figura. O juramento era presidido por Júpiter, mas tam-
bém O era por Dius Fides', logo eclipsado por Fides, uma abstração divini-
zada. Estes "assistentes" representavam os aspectos mais terrenos da sobe-
rania, assegurando os contratos entre os homens. Além deles, outros dois
deuses, Terminus e Juuentas, possuíam capelas no próprio templo de Júpiter
no Capitólio. Terminus era o deus do limite entre as propriedades e. logo.
da paz que decorria do seu respeito. Juuentas protegia os jovens enquanto

346
classe de idade, garantidora do futuro de Roma pela permanente renova-
ção de seus cidadãos. Fica assim claro como Júpiter e seus deuses associa-
dos representavam a garantia da ordem e do futuro de Roma.
Marte era claramente o deus da guerra, a qual era sempre percebida
pelos romanos como sendo em defesa do território de Roma e de seus alia-
dos, não possuindo nenhuma divindade associada a ele. Possuía uma rela-
ção com os ritos de Quirino, uma vez que a defesa do território é funda-
mental para a sua prosperidade.
Já, no que diz respeito a Quirino, a sua figura desconcertava os ro-
manos do final da República, os quais desconheciam completamente a sua
teologia. A solução encontrada foi a sua identificação com Rôrnulo, herói
fundador da urbs, após a sua divinização. No entanto, a análise comparati-
va de seus ritos, realizada por Georges Dumézil, restituiu o seu caráter de
deus da terceira função, ou seja, da fecundidade e da riqueza. A ele tam-
bém eram associadas divindades menores, como Ops e Flora.
Na época histórica, se a tríade arcaica já caíra em esquecimento par-
cial, os romanos tinham outro grupamento divino bastante vivo no seu pan-
teão: a tríade capitolina, que reunia Júpiter, Juno e Minerva. A sua origem
é, sem dúvida, etrusca e, indiretamente, grega. Uma prova disto é o fato que,
se tomarmos estes deuses tais como eram concebidos em Roma: Júpiter,
guardião da soberania, da religião e do direito, Juno, protetora do matri-
mônio e dos nascimentos, e Minerva, a deusa dos ofícios e dos artesãos; a
sua reunião não faz nenhum sentido, não formando uma unidade concei-
tua!.
Isto fica claro se lembrarmos que, para os romanos, o domínio públi-
co, onde se desenrolam a política, o direito e a religião, não se interpenetrava
com o privado, espaço do casamento e da famf'[ia, consistindo em dois uni-
versos separados; e que as artes manuais não eram consideradas dignas da
elite senatorial, a qual dominava as atividades tuteladas por Júpiter. Tal
inconsistência aparecia nas práticas cultuais, uma vez que somente a Júpiter,
o dono do templo no Capitólio, eram feitas oferendas. Assim, a helenização
da religião etrusca, que já reunia Júpiter e Juno (Tinia e Uni), fez com que,
provavelmente através da difusão da lenda de Hércules, onde os três deu-
ses aparecem estruturando a ação, se somasse a estas di vindades uma
Minerva com atributos guerreiros, criando a tríade herdada por Roma
(DUMÉZIL, 1966, p. 306).
A tríade plebéia encontra a sua explicação na evolução social de
Roma, sendo sua criação decorrente das lutas dos plebeus com os patrícios
pela igualdade de direitos políticos c religiosos na urhs. Ela difere das an-
teriores por opor uma deusa, e não um deus, a dois outros deuses. Céres é a
deusa da fecundidade e do crescimento vegetal, animal e humano, sua fu-

347
tura assimilação à Deméter grega a reduzirá a uma deusa da colheita. Líber
e Líbera são, respectivamente, os deuses da fecundidade masculina c femi-
nina, sendo que Líber foi helenizado como Dionísio. Este grupamento di-
vino possui apenas deuses ligados ao aspecto da fecundidade existente na
terceira função indo-européia, o que permite se afirmar que:

o estabelecimento da 'tríade da fecundidade' alguns anos depois da con-


sagração do templo de três cellae do Capitólio, manifesta Lima intenção
de réplica, de contrapeso (DUMÉZIL, 1966, p. 372).

Destacamos ainda, uma figura divina extremamente importante e sin-


gular: Vesta. Representada por um fogo eterno, Vesta era a deificação da
própria Roma enquanto local de assentamento da comunidade. O seu tem-
plo era o único a ter a forma redonda, pois no pensamento romano (assim
como no indiano) a forma redonda representava este mundo e a quadrada o
mundo dos deuses. Enquanto nos templos quadrados as fogueiras sacrificiais
eram acesas de acordo com as oferendas, no de Vesta elas nunca se apaga-
vam, mostrando a perenidade do laço entre os romanos e seu território
(DUMÉZIL, 1966, p. 311).
Por fim, gostaríamos de mencionar as abstrações divinizadas, como
a deusa Mens, a inteligência elevada ao panteão; a própria Vênus, personi-
ficação da persuasão e da sedução, ou ainda a deusa Fortuna, que pela cau-
tela dos romanos em termos de religião também era conhecida sob a forma
de Fortuna Viril.

ll/- A cidade e o sagrado:

Os deuses romanos eram considerados cidadãos de Roma, sendo os


seus templos a sua moradia terrena, o que implicava a sua submissão às
normas cívicas de sociabilidade. Desse modo, para que seus atos tivessem
algum valor religioso era necessário que fossem considerados como tais
pelos sacerdotes, da mesma forma que um ato humano só tinha valor polí-
tico se assim fosse considerado por um magistrado.
Como toda religião das cidades-Estado da Antiguidade o paganismo
romano era limitado à sua comunidade, constituindo um dos aspectos da
vida cívica. A própria cidade de Roma era considerada, dentro dos limites
originais do Pomoerium, um enorme templo. Desse modo, o paganismo
romano só dizia respeito àqueles que pertenciam plenamente à comunida-
de política. Como afirma John Scheid "não há conversão à religião roma-
na, não se faz ato de fé, nasce-se 'fiel' ou se o torna recebendo a cidadania"
(1985, p. 18).

348
Por ser parte da vida comunitária, a religião romana, do mesmo modo
que a política, encontrava o seu sentido no domínio público. Apenas o cul-
to público, com seu aspecto rigidamente ritual, possuía importância, sendo
as crenças e os cultos privados relegados a segundo plano. O culto privado
era dirigido pelopater famílias, havendo intervenção da comunidade no seu
desenrolar apenas quando se considerasse a existência de algum perigo para
a ordem pública. A religião romana exclui as inquietudes puramente pes-
soais, pOIS:

ela é praticada pelo homem enquanto membro de uma comunidade e não


como indivíduo subjetivo... O lugar onde se exerce a vida religiosa do
homem romano é a família, a associação profissional ou cultual e, antes
de tudo, a comunidade política (SCHEID, 1985, p. 12).

O culto público era presidido pelos sacerdotes, os quais representa-


vam o conjunto de cidadãos no comércio com os deuses. Estes participa-
vam como platéia dos sacrifícios e compradores da carne das vítimas, que
era vendida nos açougues. Os sacerdócios, assim como as magistraturas,
eram reservados às famílias que ocupavam posições superiores na hierar-
quia social. Os magistrados e os sacerdotes possuíam íntimas e complexas
relações. Embora ambos fossem soberanos nos seus domínios, os magis-
trados eram submetidos aos sacerdotes nas relações com o sagrado, se in-
vertendo a situação quando um sinal divino pretendia ter algum efeito po-
lítico (SCHEID, 1985, p.47-51).

IV- Os mestres do sagrado:

Os sacerdotes se agrupavam em colégios, cujos mais importantes eram


os quatro colégios maiores: pontifical; augural, que interpretava os augúri-
os divinos; quindecenviral, encarregado de consultar e interpretar os Livros
Sibilinos; e o dos septenviros dos banquetes sagrados. O domínio do sa-
grado por colégios sacerdotais e a rígida codificação de seus ritos garantiu
à religião romana o seu conservadorismo Iitúrgico.
Os pontífices eram liderados pelo pontifex maximus, herdeiro do po-
der religioso do rei, cujo domínio se estendia por todo o campo religioso.
O além de garantir a ordem religiosa, cabia ao pontifex maximus entronizar
outros sacerdotes, como os flâmines e as vestais.
Os flâmines se dividiam nos três flâmines maiores (Dialis, Martialis
e Quirinalis), os quais não constituíam um colégio e representavam, atra-
vés de suas roupas e de seu comportamento, a presença viva dos deuses da
tríade pré-capitolina, e nos doze tlâmines menores, a respeito dos quais nada
sabemos.

349
As vestais eram as guardiãs do fogo eterno de Vesta, o seu principal
atributo era a virgindade, que tinha de ser preservada por toda a vida. A
virgindade das vestais representava para os romanos, da mesma forma que
em outras sociedades tradicionais, um estágio intermediário entre o mas-
culino e o feminino. Como estavam afastadas da procriação, principal atri-
buição feminina na sociedade romana, as virgens vestais não eram consi-
deradas plenamente mulheres, estando fora dos domínios definidos pelas
identidades sexuais. Por não se inserirem completamente no universo fe-
minino, as vestais compartilhavam de diversos atributos masculinos. Isto
era expresso juridicamente no fato delas dispensarem a tutela e poderem
prestar testemunho, herdar e dispor de seus bens em testamento, coisas re-
servadas apenas aos homens (DUMÉZIL, 1966, p. 560).
Ao lado dos colégios existiam várias associações sacerdotais, como
a dos F etiales, que asseguravam a Roma a proteção de seus deuses nas re-
lações com os deuses estrangeiros. As cerimônias ligadas à guerra, à paz e
aos tratados eram realizadas por eles. Existiam também associações liga-
das a deuses específicos, como os A rvales a Quirino e os Salii a Marte, com
suas danças para as estações guerreiras e de cultivo.
A associação mais curiosa era a dos Luperci, cujo nome evocava os
lobos, que celebravam em 15 de fevereiro as Lupercalia. Durante esta fes-
ta eles sacrificavam bodes, cortavam a testa com facas, ato no qual os mais
jovens deveriam obrigatoriamente rir, e limpavam o sangue dos ferimentos
com pedaços de lã embebidos em leite. Depois, eram feitos chicotes com o
couro dos animais imolados e os celebrantes, nus, iam chicoteando as mu-
lheres, também despidas, para lhe garantir a fertilidade. Este rito represen-
tava, sem dúvida, as forças selvagens irrompendo na civilização para renová-
Ia. No entanto, ele permanece obscuro vários em pontos importantes
(DUMÉZIL, 1966, p.564-565).

v- Os vivos e os mortos:

Na mentalidade dos romanos tudo possuía o seu duplo divino: o


mundo doméstico os deuses Lares; O mundo selvagem Silvanus; e cada
homem o seu Genius. No entanto, quando dizia respeito a questões do in-
divíduo, este sistema se mostrava contraditório e falho. As representações
do além não comportavam uma teoria sobre a alma, já que o destino indivi-
dual era assegurado pelo coletivo.
Após a morte os romanos se transformavam nos deuses Manes (não
existindo uma ligação original entre o Genius e os Manesi, que eram cul-
tuados pela família do falecido. As relações entre vivos e mortos eram sem
intimidade e sem confiança, sendo as festas das Parentalia, de 13 a 21 de

350
fevereiro, e das Lemuria, em 9.11 e 13 de maio, as únicas épocas do ano
em que elas ocorriam oficialmente.
Durante as Parenta/ia as atividades cívicas e religiosas eram suspen-
sas, sendo levadas aos túrnulos oferendas e coroas de flores, para um pe-
queno festim. Nestes dias, acreditava-se, os mortos voltavam ao túmulo para
aproveitar os presentes dos vivos. Já, durante as Lemuria, apesar das ofe-
r rendas feitas nos túmulos, os mortos, denominados lemures, voltavam para
r visitar a casa onde viveram e, caso não lhe fossem oferecidas favas negras,
I levar para a morte algum dos habitantes. Os lemures não se confundiam com
outro tipo de mortos, as larvae, que, em qualquer época do ano, vinham
atormentar o vivos com pesadelos e acessos de loucura (DUMÉZIL, 1966,
p. 359-361).

VI- Da helenização às guerras civis:

A helenização da religião romana, como já vimos, tem início bastan-


te cedo, ainda sob a influência e domínio dos etruscos. No século V a.c.
ApoIo já era cultuado em Roma pelos seus atributos de cura, mas é a partir
do século IV a.C; com a penetração romana na Magna Grécia, ou seja; o
sul da Itália, que os deuses gregos invadiram o panteão romano. No século
III a.c. outro deus da cura, Asclépio (romanizado como Esculápio), chega
a Roma, desta vez, diretamente da Grécia, Neste século o processo de
helenização se completa com a incorporação de outros deuses, como Plutão
e Prosérpina, e a identificação dos já existentes com os seus pares gregos.
A incorporação de novos deuses era prevista no paganismo romano,
que possuía um ritual, a euocatio, o qual consistia em convidar os deuses
inimigos a se mudarem para Roma, onde receberiam um culto em troca da
sua proteção. Porém, este processo não incluiu apenas deuses gregos, mas
também aqueles que, vindos de outras culturas, já haviam atingido a Grécia.
Durante a segunda guerra púnica, em 204 a. C., frente às devastações
causadas por Haníbal na Itália, o Senado romano achou por bem introduzir
o culto de Cibele em Roma. Assim, a pedra negra que simbolizava a deusa
foi trazida da Ásia Menor, garantindo aos romanos a proteção de forças antes
desconhecidas. No entanto, apesar da aprovação inicial, o novo culto, que
incluía danças frenéticas lideradas pelos sacerdotes, os galli, onde os fiéis,
no auge do êxtase se castravam em sacrifício à deusa; foi proibido aos ci-
dadãos romanos, sendo limitado ao templo da deusa. Com as transforma-
ções que o paganismo romano teve nos séculos seguintes, o culto de Cibele,
,-~ e de Átis, ultrapassou estas limitações e ganhou inúmeros seguidores entre
os cidadãos romanos.

35\
Outro culto que atingiu a península itálica ainda no período republi-
cano foram as bacanais. O culto de Baco se disseminou a partir do sul da
Itália, onde a influência grega era muito presente, estando já bastante di-
fundido por toda a península no século II a. c.. Os rituais de mistérios eram
celebrados em casas e vilas particulares, geralmente no campo. Logo o ca-
ráter secreto dos ritos e o juramento de fidelidade exigido aos fiéis, cada
vez mais numerosos, despertaram a desconfiança do Senado romano.
Como já vimos, para os romanos a religião era um assunto de ordem
pública, sendo as crenças privadas deixadas a critério de cada indivíduo.
Desse modo, um culto suscitava medidas repressoras, não por um suposto
caráter herético, que afastasse as pessoas de uma verdade reconhecida, mas
sim pelo seu potencial de subversão da ordem pública. Um culto secreto,
como as bacanais, era visto como um local privilegiado para conspirações,
e o engajamento exclusivo que ele exigia dos fiéis, que também foi a causa
das perseguições ao judaísmo e ao cristianismo, só confirmava estas sus-
peitas.
Em 186 a.c., nos conta Tito Lívio, a partir de denúncias, que afirma-
vam ocorrerem coisas terríveis durante as bacanais, e, o que era mais grave
ainda aos olhos dos romanos, que os seus membros teriam "formado um
outro povo dentro do povo", foi desencadeada uma terrível perseguição por
parte de Senado, com a prisão dos que tinham prestado o juramento e exe-
cução dos supostos líderes e daqueles que tinham praticado os horrores
denunciados. As testemunhas repetiam acusações de praxe contra qualquer
conspiração, semelhantes às que Cícero lançou contra Catilina e seus se-
guidores, que consistiam em sacrifícios de crianças, desregramentos sexu-
ais, assassinatos, estupros e torturas; lugares-comuns que permaneceram
ligados às bacanais até os dias de hoje. Depois da repressão o Senado esta-
beleceu um rígido controle sobre as celebrações das bacanais, acabando com
a possibilidade delas se tornarem focos de insurreição (DUMÉZIL, 1966,
p. 500). Deve ser destacado que o objetivo da perseguição não era a proibi-
ção do culto em questão, mas o seu total controle pelo Senado.
A helenização provocou grandes mudanças no paganismo romano,
com a introdução de novos deuses, como ApoIo; de novas formas de repre-
sentação dos deuses, como as estátuas; de novas formas de relação com os
deuses, como a literatura, o teatro e a especulação filosófica. No século II
a.c. a sociedade romana, que agora é responsável por um vasto império, se
vê invadida pelo pensamento grego, o qual muitas vezes é contraditório com
as suas concepções sobre as divindades. Assim, ao mesmo tempo que Júpiter
era venerado como o soberano do Capitólio, nos teatros ele era representa-
do nas burlescas aventuras amorosas de Zeus e tinha a sua forma, a sua
natureza. ou, mesmo. a sua existência questionada pelos filósofos.

352
Tal conflito levou à elaboração de uma tipologia teológica por parte
de um poniifex maximus, Q. Mucio Scaevola, o qual, segundo a passagem
que nos foi transmitida por Santo Agostinho, via a necessidade de se dis-
tinguirem três gêneros de deuses:

um, dos poetas; outro, dos filósofos; o terceiro, dos príncipes da cidade.
O primeiro gênero (Scaevola) diz que é frívolo, porque nele se fingem
muitas coisas indignas dos deuses; o segundo, que não convém às cida-
des por conter algumas superfluidades e coisas cujo conhecimento pre-
judicaria os povos (cit. in. SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus,
4, XXVII).

Esta classificação divina foi posteriormente aperfeiçoada por Varrão,


que afirmou existirem três gêneros de teologia: o mítico, o físico e o civil.
Segundo a sua explicação:

1-... Chamam-no mítico porque usado principalmente pelos poetas, físi-


co, porque o manuseiam os filósofos, e civil porque o empregam os po-
vos. No primeiro que mencionei, há muitas ficções contra a dignidade e
natureza imortal. Nele se fala de haver este deus procedido da cabeça,
outro de gotas de sangue. Nele se lê que os deuses roubaram, cometeram
adultério e serviram o homem. Finalmente nele se atribuem aos deuses
todas as desordens em que pode cair não somente o homem, mas o ho-
mem mais desprezível.
2- ... O segundo gênero é o que demonstrei; sobre ele os filósofos lega-
ram-nos muitos livros. Neles se fala sobre a essência, lugar, espécie e
qualidade dos deuses, sobre se são eternos, se constam de fogo, como
acreditou Heráclito, se de números como Pitágoras, ou de átomos, como
diz Epicuro. E assim outras coisas que os ouvidos podem suportar me-
lhor entre paredes, na escola, que fora, no foro.
3- ... O terceiro gênero, é o que os cidadãos e de modo especial os sacer-
dotes devem conhecer e pôr em prática nas urbes. Nele se acha a que
deuses se há de render culto público e a que ritos e sacrifícios está cada
qual obrigado. A primeira teologia é principalmente própria ao teatro, a
segunda ao mundo, a terceira às cidades. (cit. in. SANTO AGOSTINHO,
A Cidade de Deus, 6,V, 1-3).

Vemos nestes dois autores a tentativa de conservar as tradições lati-


nas, que seriam as únicas adequadas a Roma. Isto se dá pela condenação
da mitologia e da filosofia grega, como faz Scaevola; ou pela segregação
das diversas concepções divinas em esferas de ação distintas, como faz
Varrão. As diferenças entre Scaevola e Varrão mostram a evolução do pen-
samento romano durante o século I a.C., enquanto o primeiro tenta expur-

353
r

gar as influências gregas, o segundo, da mesma forma que também fez


Cícero, utilizou categorias filosóficas para reativar a religião pública.
À primeira vista pode parecer que Varrão reserva à teologia física um
papel superior ao da teologia civil, uma vez que lhe designa o mundo; mas
tal equívoco se desfaz se lembrarmos que. para o paganismo romano, o único
espaço que importava era o limitado à cidade, não fazendo nenhum senti-
do, neste sistema de crenças, o universalismo atribuído à filosofia.
Porém, outro fator contribuir para alterar ainda mais a religião roma-
na: as guerras civis que devastaram a península itálica no século I a.c.. As
contradições acumuladas por Roma durante a sua expansão nos séculos II
e III a.c., cujos frutos beneficiaram apenas um pequeno número de famí-
lias, tanto patrícias quanto plebéias, e levou à ruína os pequenos proprietá-
rios, abrindo caminho para a proliferação dos latifúndios, vieram à tona nas
crises do último século da República.
A oposição no seio da cidade não era mais entre patrícios e plebeus,
mas entre ricos e pobres, a carência de homens aptos para as legiões levou
à incorporação destes despossuídos no exército. Os soldados depositavam
total confiança em seus líderes, dos quais dependiam para obter favores e
riquezas, pondo-os à frente do próprio Estado romano, de quem não espe-
ravam nada. Desta forma, os chefes militares se viram imbuídos de um
enorme poder de fato perante a sociedade romana e não tardaram em usá-
10 para tentar dominá-Ia.
Se conflitos contra inimigos externos, como a Guerra Social, que as
cidades italianas travaram contra Roma para obter o direito à cidadania ro-
mana, ou as revoltas escravas, como a de Espartacus, não tiveram efeitos
significativos na religião romana; as guerras civis, que destruíram a unida-
de de Roma, dividindo-a em várias "cidades" distintas, seguidoras dos di-
versos líderes, e a devastaram de forma sem precedentes, alteraram profun-
damente o quadro.
A religiosidade durante as guerras civis se apresenta bastante fluida
e contraditória, sendo moldada de acordo com o direcionamento que os
sucessivos líderes lhe impunham. Algumas crenças, como os oráculos e os
sinais divinos, tinham a simpatia de todos eles. No entanto a grande novi-
dade religiosa que surgiu das guerras civis foi a idéia de que existiria uma
ligação especial entre alguns deuses e os chefes militares. Um sacerdote de
Cibele garantiu a Mário a proteção da deusa na sua luta contra os germanos;
Sila proclamava ter os favores de Vênus, deusa ligada à lenda das origens
de Roma; mas foi Júlio César que levou tal tendência ao seu extremo.
César não se contentou em se colocar sob os favores de Vênus, mas
reivindicou para si a descendência da deusa, erigindo no Capitólio um tem-
plo a Vênus Genitrix. As suas vitórias e seu crescente poder permitiram

354
inovações mais ousadas: foi elevado um templo à sua clemência, Clementia
Caesaris, e, no triunfo em 46 a. c., após as suas vitórias na África, a divini-
zação momentânea do general vitorioso foi levada além, sendo ele decla-
rado semideus.
Ele recebeu templos, altares, estátuas, um flâmine, luperci e um mês
do calendário (Julho); e, finalmente, em 44 a. c., o Senado lhe eleva à con-
dição de diuus /ulius (deus Júlio). Após a sua morte ele abriu na religião
uma nova via, de deus humano ele se tornou deus celeste. A crítica que a
filosofia estóica fazia à religião, afirmando que os deuses eram homens que
tinham se destacado no passado, passou a ser uma realidade teológica.
Assim, no final do período republicano, o paganismo romano sofreu
uma enorme mutação e da sua desagregação surgiram formas religiosas que
tiveram um longo futuro sob o Império. Georges Dumézil traça um impres-
sionante quadro geral:

Sob esses mestres que, com mais ou menos de audácia e de "planejamen-


to", orientavam deuses e cultos para os seus fins pessoais, o que se tor-
nava a religião no povo e nas classes cultivadas, na vida pública e na vida
privada? As poucas sondagens que permitem a documentação literária
ou epigráfica a mostram muito decaída: um sacerdócio antes tão possan-
temente carregado de valores místicos como oflamonium de Júpiter con-
tinua vago durante longos anos e as festas ainda celebradas são princi-
palmente divertimentos. Romana, etrusca, grega, oriental, a superstição
garante mediocremente a substituição de grandes esperanças e técnicas
testadas. Indiferença, ceticismo preservam a juventude dos escrúpulos e
dos problemas. Os intelectuais são lúcidos. Uns, sem responsabilidade
no Estado nem na sociedade, fazem tabula rasa, pregam o ateísmo e a
livre escolha: Lucrécio é a voz pela qual o pensamento romano se situa
antes de todos os materialistas do futuro (DUMÉZIL, 1966, p. 526).

VII- A restauração imperial:

o regime imperial se apresentava como uma nova era de tranquilidade


após os desastres das guerras civis. Um dos pontos fundamentais para se
consolidar esta representação era a retomada da religiosidade tradicional
de Roma, objetivo no qual Augusto se empenhou pessoalmente.
A inscrição cornernorati va dos feitos de seu governo, conhecida como
Res Gestae Diui Augusti (Feitos do Divino augusto), relata que os sacerdó-
cios foram regularizados, 82 templos destruídos ou abandonados nos anos
de conflito foram restaurados e novos templos, como o de Apoio ou o do
diui luli (divino Júlio), foram construídos (Res Gestae Divi Augusti,
Appendix, 2-3).

355
No entanto, algumas mudanças se fizeram sentir. Ao tomar para si o
título de Augustus, o príncipe garantiu para si o monopólio da tomada dos
auspícios, se tornando o único líder possível em Roma. A chefia dos sacer-
dócios foi sendo concentrada nas mãos do imperador, com o próprio Au-
gusto relatando que foi "Pontifex maximus, augur, quindecimvirum, sacris
[aciundis, septemvirum epulonum, frater arvalis, sodalis Titius, fetialis"
(Res Gestae Divi Augusti, 7, 3). Desse modo, o imperador retomou a pleni-
tude dos poderes reais, que no período republicano tinham sido divididos
entre os magistrados e os sacerdotes, se tornando O único mestre do sagra-
do e do profano.
Uma das características do novo regime é o seu aspecto vitorioso e
isto se reflete na religião, com a valorização dos rituais do triunfo. O triun-
fo era um antigo ritual romano destinado a celebrar as vitórias de Roma sobre
os seus inimigos, durante o qual o general vitorioso tinha a honra de ser
momentaneamente divinizado, sendo identificado com Júpiter, Durante o
Império os ritos triunfais, de guerra, como a consagração dos troféus, dos
despojos, de arcos-do-triunfo, de altares e templos; ou de paz, como o fe-
chamento das portas do templo de Jan02 ou a construção daAra Pacis (al-
tar da paz) foram enriquecidos com o aparato oriundo das cortes helenísticas,
servindo para cultuar a boa ventura e a grandeza de Roma na figura do im-
perador. Como afirma John Scheid:

Não é mais arespublica enquanto tal que aparece em toda a sua legitimi-
dade através dos auspícios magnificamente confirmados pela vitória de
se,umagistrado: é um único homem que progressivamente se substitui à
república (SCHEID, 1985, p. 120).

A religião tradicional incorporou um novo culto: o culto imperial. À


semelhança do que ocorrera com Júlio César os imperadores romanos eram
divinizados após a sua morte. O ritual de divinização tinha dois referenciais:
os funerais dos nobres romanos e o culto dos deuses (PRICE, 1987, p.58).
No paganismo romano tradicional os cidadãos, após a sua morte, se trans-
formavam nos deuses Manes, que eram cultuados pelas suas famílias. No
entanto, os Manes eram completamente distintos dos deuses celestes, sen-
do-lhes reservado apenas o culto privado.
Com as suas conquistas, os romanos entraram em contato com dinas-
tias helenísticas, como os Selêucidas, da Síria, ou os Lágidas, do Egito, onde
os soberanos eram considerados seres di vinos. Estas idéias foram incorpo-
radas pelo cerimonial nos funerais dos imperadores romanos, com os já
mencionados precedentes do final do período republicano. Os imperado-
res não recebiam honras divinas durante a sua vida, havendo apenas um culto
à sua pessoa nas províncias helenizadas, onde subsistia uma tradição de

356
soberanos divinos, e mesmo assim, eles eram venerados como figuras am-
bíguas entre os deuses e os homens (SCHEID, 1985, p.125). Todas as ten-
tativas de introduzir um culto do imperador vivo em Roma durante o Alto
Império fracassaram. Porém, após a sua morte era aceito, seguindo o mo-
delo mítico de Rômulo e de Hércules, e o exemplo de César, que ele se trans-
formasse em um deus. Com o tempo, os seus familiares também passaram
a ser divinizados.
A cerimônia da apotheosis (transformação em deus) se iniciava com
o funeral do imperador, o qual seguia o padrão dos funerais da nobreza
romana, continuando com a declaração por parte de uma testemunha da sua
ascensão aos céus perante o Senado, o qual proclamava a sua divindade.
Tal procedimento estava de acordo com a tradição do paganismo romano,
na qual o Senado tinha o poder de incorporar novos deuses e cultos à cida-
de. O processo de divinização incluía o debate do mérito do imperador em
questão, pois a divinização deveria ter em conta as virtudes do pretenden-
te, ou melhor, o que o Senado concebia como tal, sob o risco de desmere-
cer os deuses, igualando-os a pessoas indignas. É isto que se pode depreender
da única obra que retrata esses debates, embora disfarçando-os como um
debate entre os deuses, a Apocoloquintose' do Divino Cláudio de Sêneca,
que ridiculariza a figura do imperador Cláudio, mostrando-o indigno da
apotheosis.
A incorporação dos imperadores entre os deuses não se dava sem
problemas. Do ponto de vista estritamente religioso, os novos diui eram
tratados exatamente como os outros deuses, os imperadores possuíam sa-
/ cerdotes encarregados de seu culto, como o flamen Augustalis, os seus ri-
I tos e sacrifícios seguiam as mesmas regras dos demais. Porém, eles não
I podiam ser tratados como ancestrais da mesma fOIT11aque os mortais e os
deuses.

Assim, por um decreto senatorial a imagem de Júlio César não poderia


ser mais carregada em funerais, e de fato ela estava ausente do próprio
funeral de Augusto. A situação de César, e dos diui posteriores, era am-
bígua demais para ser exposta em uma posição tão vulnerável. Ao con-
trário, a ascensão de Enéas e Rôrnulo era sem problemas e suas imagens
foram carregadas na procissão fúnebre de Augusto. Deuses, mas nãodiui.
podiam ser ancestrais (PRICE, 1987. p. 79).

Além disso, as ofensas contra os diui eram punidas pela lei, enquan-
to que as feitas aos outros deuses tinham a punição deixada ao encargo deles
próprios, e as heranças deixadas aos ditá iam para o imperador reinante, já
os outros deuses herdavam eles próprios através de seus templos. Assim,
vemos que os imperadores divinizados tinham uma posição contraditória
no panteão, eles ao mesmo tempo eram e não eram deuses.

357
Com o crescente poder do imperador perante a sociedade romana, o
papel do Senado foi se torna do cada vez mais secundário e, a partir do sé-
culo II a.d., a divinização do imperador passou a ser feita na própria pira
funerária, da qual se soltava uma águia, animal de Júpiter, simbolizando a
ascensão do imperador, ou um pavão, animal de Juno, no caso da impera-
triz. Desse modo, a pira deixou de ser um mero rito funerário para se tornar
o momento dramático da apotheosis, transformando toda assistência em
testemunha dela. O próprio imperador vivo foi se cercando de um aparato
cerimonial que o separava da elite romana e o aproximava dos deuses. Este
processo chega ao ápice com Dioc1eciano, que se intitulaDeus et Dominus
(deus e senhor).
Vemos então, como a restauração imperial procurou retomar a reli-
gião romana, que entrou em crise uma vez que o universo da cidade-Esta-
do se dissolveu em um império universal, centrando-a na figura do impe-
rador e fazendo-a celebrar a tranquilidade conquistada. Nisto residia a sua
força e a sua fraqueza, pois:

Um culto público baseado antes de tudo no sucesso imanente da cidade


romana e, depois do advento do Império, sobre a felicidade augusta, não
pode deixar de ser abalado nas suas fundações pelo insucesso, pela der-
rota e pela desordem (SCHEID, 1985, p.126).

Para além disto, a "sociedade aberta" (DODDS, 1988, p. 254) que


surgiu da desagregação dos laços que envolviam o indivíduo na cidade-
Estado antiga apresentou demandas que não foram supridas pela religião
imperial, mas por novas influências vindas das províncias e de fora do
mundo romano.

VIII- O novo paganismo:

Como vimos, o paganismo romano sempre incorporou cultos e di-


vindades estrangeiras reinterpretando-as de forma a enriquecer o seu pan-
teão sem perder as suas características. No entanto, com o processo de ex-
pansão e de construção do império, a própria identidade romana é posta em
questão. Com a progressiva ampliação dos direitos de cidadania aos súdi-
tos de Roma, a comunidade que encerrava as possibilidades e a razão da
existência de seus membros deixa de ter uma existência cotidiana e passa a
ser uma entidade abstrata e incerta. O indivíduo foi, assim,

liberado, mas deixado a si próprio e, logo, desamparado. Neste mundo


confuso e móvel circula-se. expatria-se e emigra-se... A urbanização do
mundo romano contribuía para cortar o indivíduo das suas raízes e para
desmoralizá-lo (TURCAN. 1989. p. 22-23 e 24).

358
Desse modo, a segurança conferida pela comunidade de pertencimen-
to se diluiu nas incertezas e nos perigos oferecidos por um mundo em cons-
tante movimento e transformação. Uma vez que o destino pessoal não es-
tava mais assegurado pelo coletivo, novas inquietudes foram colocadas para
o sistema religioso tradicional, o qual não foi capaz de dar respostas dentro
de seus quadros. Estas demandas foram atendidas por cultos que tinham se
estruturado em sistemas passíveis de adaptação fora de sua comunidade de
origem, fosse ela local ou nacional. Ao contrário do que acontecia tradi-
cionalmente, estes cultos, com a exceção do de Cibele, não sofreram uma
interpretatio Romana completa, se sobrepondo e modificando o paganis-
mo romano.
Eles costumam ser vistos pela historiografia através de alguns este-
reótipos". O primeiro deles é que eles seriam cultos "orientais", embora pro-
venham de regiões e civilizações independentes e bastante distintas entre
si, como o Egito, a Anatólia, a Pérsia e a Síria. Esta categoria, cujo conteú-
do ideológico, de opor um suposto "Oriente", homogêneo e possuidor de
características como "irracionalidade", "sensualidade", "misticismo" ou
"despotismo", à ci vilização ocidental, que seria a detentora da razão, da
moral idade, da ciência e da liberdade, já foi bem analisada (SAID, 1990).
O outro é que todos estes cultos seriam "espirituais", mostrando-os como
uma ante-sala do cristianismo na Antiguidade Tardia. Tais concepções só
servem para transformar os diversos cultos em um bloco homogêneo, ocul-
tando a renovação que eles trouxeram para o paganismo romano.
O seu elemento comum era a helenização que eles sofreram antes de
atingir Roma, a sua iconografia derivava da arte helênica, o grego era a sua
língua litúrgica e muitos deles incorporaram cerimônias de iniciação inspi-
radas nos Mistérios de Elêusis. Os seus ritos fugiam do estrito formalismo
do paganismo romano, convidando os fiéis a um envolvimento emocional,
e a sua teologia trazia respostas para a ordem cósmica. Eles não se consti-
tuíam como religiões excludentes, pois os seus sistemas de crenças funci-
onavam em associação com o paganismo greco-romano tradicional ou en-
tre si.
Os novos cultos não atingiram a cultura latina nem ao mesmo tempo,
nem da mesma forma, sendo alguns protegidos e outros brutalmente repri-
midos pelas autoridades romanas antes de sua aceitação. E mesmo após
instalados eles despertavam a ira de tradicionalistas como Sêneca, o qual
considerava a relação entre os fiéis destes cultos e seus deuses excessiva-
mente próxima e submissa, sendo indigna dos romanos. Pelo seu grande
número, nos deteremos apenas naqueles que atingiram maior influência
durante os séculos I e II a.d., período no qual eles dominaram a cena religi-
osa romana, ou seja, no de Cibele e Átis, Mitra, Ísis e Dionísio.

359
o culto de Cibele teve origem na Ásia Menor, de onde atingiu pri-
meiro a Grécia e, depois, Roma. O mito relatava, em uma de suas várias
versões, a paixão da deusa por um pastor, Átis, o qual atraiu também o de-
sejo de uma divindade hermafrodita, Agdistis, e as desgraças decorrentes
do casamento deste com a filha do rei de Pessinonte. Cibele, que não que-
ria o casamento, abre as muralhas da cidade, o que permite que Agdistis
irrompa na festa e transmita aos convivas um delírio coletivo; a noiva corta
os seus seios e seu pai se castra, Átis, enlouquecido, foge para a floresta e,
sob um pinheiro, se castra e morre, do seu sangue nascem as violetas. A
noiva se mata sobre o cadáver e seu sangue deu a cor às violetas. Agdistis
conseguiu que o corpo de Átis não sofresse a putrefação, continuando os
seus cabelos a crescer e seu dedo mínimo a se mover.
Os rituais eram celebrados por sacerdotes de longos cabelos, túnicas
amarelas e castrados à imagem de Átis, os galli; com ampla participação
dos fiéis. A principal celebração ocorria na segunda quinzena de Março com
rituais que dramatizavam o mito, os quais eram precedidos de um período
de abstinência de determinados alimentos. Nos dois primeiros dias se cor-
tava um pinheiro, que simbolizava Átis, e decorava-o com violetas e dedi-
cava-se a lamentações fúnebres. O terceiro dia era o mais dramático, sendo
chamado o "dia do sangue" (dies sanguinis), no qual os galli e os fiéis dan-
çavam, se auto-flagelavam e, mesmo, se cortavam com facas em torno do
pinheiro sagrado. No auge da excitação, muitos praticavam a auto-castra-
ção, após o que recebiam as tatuagens rituais. No dia seguinte se celebrava
com grande alegria a salvação do deus (TURCAN, 1989, p.50-52).
Como já vimos, o culto de Cibele foi introduzido em Roma durante a
segunda Guerra Púnica, em 204 a.C; por ordem do Senado, que instaurou
em sua homenagem os Jogos Megalenses, mas tão logo se instalou na ci-
dade foi confinado ao seu santuário, sendo os cidadãos romanos proibidos
de penetrarem nele ou de participarem de seus ritos. No entanto, o novo
culto, com suas cerimônias distintas das existentes no paganismo romano,
não deixou de atrair cada vez mais simpatizantes até, no século I a.d., ter
seus ritos oficialmente reconhecidos pelo imperador Cláudio. Os cidadãos
romanos puderam, então, participar do culto e muitos praticavam a auto-
castração apesar das proibições.
O envolvimento dos cidadãos foi tão grande que, no século II a.d., se
criou o cargo de archigallo, que deveria ser ocupado por um romano, para
controlar o clero de Cibele, o qual era todo recrutado na Ásia Menor. A
criação deste cargo trouxe um problema: os sacerdotes tinham de ser cas-
trados e os cidadãos romanos eram proibidos de se mutilar. A solução foi o
rito do tauróbolo, no qual se colocava o candidato em um fosso coberto por
uma grade, em cima da qual era castrado e sacrificado um touro. A vítima
substituía o homem banhado pelo seu sangue.

360
Outro culto que penetrou em Roma durante a República foi o de Dio-
nísio, identificado com o deus trácio Sabázios, cujo culto consistia em ini-
ciações mistéricas e banquetes rituais, sobre o qualjá nos detivemos ao tra-
tarmos da repressão às bacanais. Apesar da perseguição inicial o dionisismo
teve ampla difusão em Roma durante o período imperial, como atestam os
afrescos da Vila dos Mistérios em Pompéia e a inúmeras inscrições funerá-
rias. Ao mesmo tempo que tinha características como a alegria ligada à
embriaguez do vinho, Dionísio era um deus funerário, protetor dos mortos.
O culto de Ísis encontra a sua origem na religião do Egito faraônico,
cujo mito, da deusa, que chora o seu amante Osíris, morto e esquartejado
pelo seu irmão Seth, e não descansa até recompor o corpo e gerar um filho,
Hórus, para vingá-Io; foi retido por ele. Porém o que atinge Roma no sécu-
lo Ia.d., através de comerciantes e escravos egípcios, é a releitura helenís-
tica do politeísmo egípcio, que dá a Ísis o comando do universo, associan-
do-a tanto a Osíris quanto a Serápis, deus greco-egípcio que provém da fusão
de Zeus com Osíris. De início, o culto de Ísis atinge grande difusão entre as
mulheres e nos meios populares, servindo inclusive como elemento de agi-
tação nas lutas do fim da República (TURCAN, 1989, p. 88-89).
Os ritos eram presididos por sacerdotes e sacerdotisas vestidos de li-
nho branco e com a cabeça raspada. Eles eram organizados em colégios
locais chefiados por um sumo-sacerdote, existindo um em Roma desde a
época de Sila (APULEIO, O Asno de Ouro, XI, 30). No entanto, este culto,
que reunia escravos, libertos e mulheres, em iniciações mistéricas e ceri-
mônias estrangeiras, logo atraiu a repressão das autoridades romanas. Em
58 a.C. as capelas de Ísis que tinham sido construídas no Capitólio são de-
molidas, em 53 a. C. é a vez das capelas privadas, em 50 a. C. nova destrui-
ção de templos e, após a derrota de Marco Antônio e de Cleópatra, os cul-
tos egípcios são proibidos em 28 a. C. Esta proibição não parece ter detido
a sua expansão e o imperador Tibério os proíbe novamente, juntamente com
o judaísmo, e deporta 4.000 libertos simpatizantes. Somente sob o reino de
Calígula o culto de Ísis foi oficialmente reconhecido.
Duas eram as datas marcantes no calendário Iitúrgico isíaco: a
Nauigium lsididis e a lnuentio Osiridis. A primeira destas festas ocorria na
primavera e marcava o início do período de navegação no Mediterrâneo,
lembrando que Ísis era a deusa do Farol de Alexandria e protetora dos ma-
rinheiros. Primeiro acontecia uma procissão do templo de Ísis até o porto,
na qual participavam os iniciados nos mistérios da deusa e os sacerdotes,
caminhando na ordem inversa da sua importância na hierarquia do culto e
-------- . carregando altares e objetos sagrados. Na frente da procissão iam pessoas
fantasiadas, satirizando a sociedade humana e divina, como nos relata
Apuleio;

361
Um, com uma bainha na cintura, imitava um soldado; ... um outro, calça-
do de sandálias douradas, vestido com uma túnica de seda e com jóias
preciosas, com uma peruca na sua cabeça e o andar ondulante, se fazia
de mulher.. .. Eu vi um urso preso que tinha sido vestido como uma se-
nhora e era transportado em uma liteira; um macaco com um boné de pano
e vestido com uma longa túnica amarela imitava o pastor Ganimédes com
uma taça de ouro na mão; e um asno ao qual tinham sido coladas asas
andava ao lado de um velho decrépito, embora um tivesse um ar de
Belerofonte e o outro de Pégaso, os dois eram caricaturas (APULElO, O
Asno de Ouro, XI, 8).

No porto, se purificava com orações um barco decorado de motivos


egípcios, enchendo-o de oferendas e, depois, lançando-o ao mar. A procis-
são voltava ao templo, onde um sacerdote lia nos livros sagrados votos em
prol do imperador, do Senado, da ordem eqüestre, do povo romano e dos
navios e marinheiros submetidos às !eis do império, depois do que ele pro-
clamava, em grego, a abertura da navegação (APULEIO, O Asno de Ouro.,
XI, 17) ..
A lnuentio Osiridis ocorria no outono e consistia em uma dramatiza-
ção da morte de Osíris e do seu reencontro por Ísis. Os fiéis e os sacerdotes
se juntavam ao luto de Ísis por Osíris usando roupas negras, entoando
lamentações fúnebres e se mortificando com golpes de pinha (o pinheiro
era associado a Osíris) no peito. Estátuas com partes desmembráveis eram
utilizadas para simbolizar a destruição do corpo de Osíris por Seth. No úl-
timo dia da festa um cortejo saia do templo proclamando o reencontro do
deus e a tristeza fúnebre era substituída por uma alegria incontrolável com
cantos e danças dos fiéis.
O caráter popular da devoção isíaca foi logo superado com a adesão
de pessoas de todas as camadas sociais, como, por exemplo, Apuleio autor
de obras de filosofia e de retórica, a quem devemos o único relato pessoal
de um culto de mistérios, o seu livro Asinus Aureus(O Asno de Ouro), tam-
bém conhecido como Metamorphoseon (Metamorfoses), que nos dá um
relato do culto de Ísis e de sua iniciação nos mistérios da deusa. Esta pene-
tração social, que Cibele e Dionísio também tiveram, contrasta com o uni-
verso restrito do culto de Mitra, que tinha quase que exclusivamente solda-
dos, comerciantes e funcionários imperiais como seus adeptos (TURCAN,
1993, p.37-41). Isto se deve tanto ao caráter excludente do culto mitraico,
que não admitia mulheres, quanto ao seu caráter anti-gnóstico (BURKERT,

.-
1990, p.39), ignorando as inquietudes sobre o além que povoavam as men-
tes da época.
O caso de Mitra é bastante distinto dos demais. Ao incorporá-Io, já
no final do século I a.d. (TURCAN, 1993, p.33), os romanos reencontra-

362
vam um deus do antigo panteão indo-europeu, embora as reformas religio-
sas na Pérsia e as influências helenísticas o tivessem modificado bastante,
acrescentando ao seu caráter soberano atributos guerreiros. O mito de Mitra
não chegou até nós, mas pelo que se pode decifrar da iconografia, se trata-
va de uma teo-cosmogonia que contava a história do mundo, a sua ameaça
de destruição e a sua salvação por Mitra, que nasce de uma rocha e captura
e sacrifica o touro cósmico, assegurando a fertilidade da terra e suplantan-
do o Sol como senhor do universo. Mitra possuía uma doutrina fundamen-
tada em um otimismo triunfante, como mostra o seu epíteto de Sol inuictus
(sol invicto), pois, ao contrário de Átis, Dionísio ou Osíris, ele não conhe-
ceu o sofrimento ou a morte, sendo o garantidor da ordem natural e cósmi-
ca. O mitraísrno desconhecia o dualismo entre o mundo físico e a alma:

o problema da salvação individual e extra-terrena não se coloca. Se tra-


tava de uma salvação bio-cósmica (TURCAN, 1993, p.IIO).

O mitraísmo não possuía uma oposição entre sacerdotes e fiéis, to-


dos participando do culto de acordo com uma hierarquia de iniciação nos
mistérios. Os graus hierárquico eram sucessivamente o de Corvo, Noivo,
Soldado, Leão, Persa, Mensageiro do Sol (Heliodromus) e Pai. Esta escala
lembra a própria estrutura do exército, com seus sucessivos cargos, onde o
mitraísmo conquistava a maior parte de seus fiéis. O culto, da mesma for-
ma que as bacanais e contrariamente ao paganismo romano tradicional, só
possuía cerimônias privadas, nas quais se realizavam comentários sobre o
mito e banquetes sagrados, os quais não parecem incluir sacrifícios de ani-
mais. Assim:

Esta transferência do culto do exterior para o interior constituía uma ino-


vação radical. Com efeito, o Mithraeum não é, como o templo greco-ro-
mano, a casa do deus, mas um lugar de comunhão entre os homens e os
deuses (TURCAN, 1993, p. \03).

Todos os cultos acima incluíam em seus rituais iniciações mistéricas,


através das quais os fiéis eram testados e apresentados às coisas divinas.
Estas iniciações eram antecedidas de um período preparatório na doutrina
e outro de jejuns e abstinência. As iniciações propriamente ditas parecem
incluir um questionamento do neófito sobre a doutrina, assim como prova-
ções físicas com fogo, água, instrumentos e, talvez, violências sexuais.
Depois, ao menos em alguns casos, era dramatizada a morte do neófito, uma
viagem pelo além e a apresentação dos mistérios. Apuleio nos relata:

Eu fui até as fronteiras da morte, eu pisei na soleira de Prosérpina, eu


passei por todos os elementos, em plena noite eu vi o sol bri lhar com uma

363
luz branca, eu me aproximei diante dos deuses de baixo e dos deuses ce-
lestes, eu os adorei de perto (APULEIO, O Asno de Ouro, XI, 23).

A iniciação mistérica segue o modelo dos ritos de passagem (V AN


GENNEP, 1978), com a separação do neófito da sua antiga vida e sua in-
corporação em uma nova. Ela era baseada na experiência que o fiel vivia
durante a cerimônia, durante a qual ele era totalmente envolvido, através
de sua mente, de seus sentidos e de seu corpo. Deste modo a mensagem apre-
sentada, que geralmente era a vitória do deus sobre a morte, assegurando
um além sem sofrimentos, tomava uma dimensão existencial e reconfortante.
Assim, os novos cultos que penetraram no mundo romano puderam
dominar a cena religiosa dos séculos II e III a.d. por garantirem aos seus
fiéis uma identidade coletiva passível de ser recriada onde quer que sc fos-
se, assim como por darem respostas às inquietações sobre a ordem natural
e cósmica e sobre o além, pois seus deuses, ao contrário dos deuses roma-
nos tradicionais, tinham poderes sobre todo o universo. A grande transfor-
mação que eles provocaram na mentalidade religiosa romana foi a passa-
gem de uma religião cívica para uma religião onde o culto praticado passa
por uma escolha pessoal. Além disso, se o politeísmo continuou, esses deuses
de poderes ilimitados tendiam para um henoteísmo, ou seja:

aproximartodas as divindadesdo mesmosexo de diversas religiões,como


se o divino, sob as suas diferentes formas e seus diferentes nomes, fosse
Fundamentalmenteo mesmo (LÉVÊQUE, 1973, p.186l.

No entanto, estes cultos nunca criaram um sistema de crenças fecha-


do, estando sempre ligados ao panteão greco-rornano (Mitra em maior e Ísis
em menor grau), e a identidade coletiva que eles proporcionavam estava
longe de ser universal ou livre das barreiras locais, como se pode ver na
nova iniciação que Lucius tem que passar para ser admitido na comunida-
de isíaca de Roma (APULEIO, O Asno de Ouro, XI, 29-30). A ordem uni-
versal que eles asseguravam foi destruída pela crise do século III a.d., quan-
do, em meio a guerras civis e invasões "bárbaras", a autoridade imperial
ruiu. A vida religiosa romana foi profundamente abalada por estes aconte-
cimentos e alguns cultos, como o de Mirra, entraram em profundo declínio.

IX- O fim do paganismo:

A crise do século lII, com a desorganização estatal dela decorrente,


permitiu a estruturação e o crescimento das igrejas cristãs que, neste perío-
do, escaparam ao restritivo controle imperial. A expansão cristã se dá es-
pecialmente na parte helênica do império. a qual era o sustentáculo econô-

364
mico do mesmo, fazendo com que o cristianismo se tornasse um importan-
te elemento no jogo de forças do poder imperial. A união entre o Império e
o cristianismo se dá com a conversão de Constantino e a proclamação do
Edito de Milão, em 3 J 3 a.d., que desobrigava os cristãos do culto imperial.
Quanto aos cultos pagãos, Constantino se limitou a proibir os sacri-
fícios ligados às práticas divinatórias. Apesar da crise, o paganismo conti-
nuava vivo em muitas regiões do Império e os sacrifícios continuaram per-
mitidos em Roma e Alexandria até 391 a.d. As primeiras medidas severas
contra os cultos pagãos foram tomadas pelo imperador Constâncio, logo
após uma tentativa de usurpação apoiada pelos pagãos. Em 354 a.d.' os sa-
crifícios são proibidos e os templos fechados; em 356 a.d. esta lei é reedita-
da e aumentada da proibição da adoração das estátuas e em 357 a.d. o altar
da deusa Vitória é retirado do Senado em Roma.
Além das medidas legais, os pagãos tinham de enfrentar a crescente
violência dos cristãos contra os seus templos e suas pessoas. Contando com
a cumplicidade do Estado imperial, bispos e monges incitavam os seus fi-
éis a atacarem e destruírem os templos e as estátuas dos deuses, vistos como
manifestações demoníacas. Os pagãos revidavam os ataques, criando um
clima de guerra civil por todo o Império. Na oração que Libanius escreveu
em prol dos templos, por volta de 390 a.d., ele relata que os cristãos:

... se apressam em atacar os templos com cajados e pedras e barras de


ferro e, em alguns casos, deixando estes de lado, com as mãos e os pés.
Então se segue a desolação total, com o destelhamento do telhado, a de-
molição das paredes, a destruição das estátuas e a derrubada dos altares;
e os sacerdotes devem se calar ou morrer (LlBANIUS, Oração XXX, 8).

A destruição atinge a todos os cultos, mas o mitraísmo parece ter atra-


ído um ódio especialmente meticuloso e fanático, os Mithraea são incen-
diados, suas pinturas raspadas à faca e suas estátuas e relevos esculpidos
são desfigurados e estilhaçados a marteladas (TURCAN, 1989, p.240).
Após a frustrada restauração pagã levada a cabo pelo imperador Ju-
liano (361-363 a.d.), que reparou os templos, suspendeu as proibições ao
culto e tentou unificar e hierarquizar os sacerdotes pagãos à imagem do clero
cristão; houve um período de relativa calma até os novos confrontos. Em
382 a.d. o imperador Graciano corta as pensões ao sacerdotes pagãos e se
recusa a preencher os postos vacantes nos colégios sacerdotais; questiona-
do pelo Senado, que o lembra do seu posto de chefe dos cultos estatais, ele
abandona o título de Pontifex Maximus, marcando a separação entre o pa-
ganismo e o Estado.

365
A situação dos pagãos se deteriora, com o recrudescimento da vio-
lência cristã, levando ao desespero que aparece nas queixas de Libanius, o
qual, ao lembrar que os ataques não são permitidos por lei, pergunta:

Então, por que essas pessoas nos perseguem? Com que direito eles des-
ferem seus ataques? (LIBANIUS, Oração XXX, 54).

Após uma tentativa de usurpação pagã, o imperador Teodósio decre-


tou em 392 a.d. a lei final, proibindo os cultos públicos e privados. Progres-
sivamente os pagãos vão sofrendo uma exclusão social, uma lei de 416 a.d.,
que teve várias reedições, os afastava do exército, da administração e da
justiça.
Como sistema de crenças, o paganismo, mesmo com as modificações
que sofrera, não poderia resistir sem o seu elemento estruturador: os cultos
públicos. Mesmo as elaborações eruditas que tomavam o paganismo como
base para a especulação filosófica não sobreviveram ao naufrágio cultural
do Ocidente latino e às medidas tomadas por Justiniano, como o fechamento
da Escola de Atenas em 529 a.d .. No século VI a.d. o que se vê são práticas
e crenças isoladas, destinadas a fins mágicos ou divinatórios, ou reinterpre-
tadas por outros sistemas de crenças no que será futuramente chamado de
"folclore" ou "religiosidade popular". Como afirma Pierre Chuvin:

Os nomes sobrevivem, mas a tradição é definitivamente rompida


(CHUVIN, 1990, p. 133).

Assim, o paganismo romano, com todas as suas transformações, sem-


pre esteve intimamente ligado com a ordem social e cultural, ou seja, com
a civilização da Antiguidade e desapareceu juntamente com a concepção
do universo como uma comunidade com regras de convívio que deviam ser
obedecidas pelos seus integrantes humanos e divinos.

366
Bibliografia:

Fontes primárias

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HORÁCIO. Sátiras. trad. A. Velloso. Belo Horizonte: Queiroz Breiner, 1944.
JUVENAL. Oeuvres completes. texto latino e trad. de J. Pierrot, Paris:
Garnier,/s.d.l
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Obras específicas:

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TURCAN, R. Les cultes orientaux dans le monde romain. Paris: Belles
Lettres, 1989.
____ o Mithra et le mithriacisme. Paris: Belles Lettres, 1993.
VAN GENNEP, A. Os ritos de Passagem. Petrópolis: Vozes, 1978, (Cole-
ção Antropologia n° 11).

Notas:

I Os deuses romanos serão sempre designados pelo seu nome em português, a não
ser quando este não existir ou não for de uso corrente.

2 Este ato simbolizava o início de uma era de tranquilidade, pois durante as guerras
~s portas do templo de Jano permaneciam abertas.

JEsta palavra significa, em grego, transformação em abóbora, fazendo um trocadi-


lho com apotheosis (transformação em deus) para ressaltar o caráter desprezível de
Cláudio.

4 Uma boa crítica a estas deformações conceituais por ser vista em Walter Burkert,
Antigos Cultos de Mistério, p.14-16, e em Robert Turcan,Les Cultes Orientaux dans
le Monde Romain, p.13-16, que, apesar de criticar o conceito de "oriental", conti-
nua a empregá-Ia de forma diversa. Note-se que a crítica é sobre o emprego do "ori-
ente" como categoria cultural e não como categoria geográfica, cujo uso é cientifi-
camente legítimo.

5A cronologia da legislação anti-pagã dos imperadores cristãos se encontra no li-;


vro de Pierre Chuvin, Chronique des Derniers Paiens.

369
A Política Agrária dos Gracos
e o Discurso Histórico

Pedro Paulo A. Funari

Resumé:

Étude sur la Historiographie des Craques et les rapports des


historiens du passé et du présent.

Introdução

A. N. Sherwin- White (1982:29) lembrava, em seu artigo sobre as


idéias políticas de Caio Graco, que "os estudiosos queixam-se que a evi-
dência histórica sobre Caio Graco, tal como a temos, é principalmente de
terceira ou quarta mão, escrita duzentos anos após a sua morte". A exigüi-
dade de documentos referentes aos Gracos torna, talvez, a discussão do
papel, por parte do historiador da Antigüidade, do estudo de um determi-
nado tema, neste caso a política agrária, particularmente instigante. Georges
Duby (1980:38) escrevia, há já algum tempo, uma frase de conseqüências
epistemológicas graves:

Quant à moi.]e suis tout p'rêt à dire que ce que j'écris c'est uvnvhistoire:'

Quanto a mim, estou pronto a reconhecer que, o que escrevi, é minha


história.
\
A aceitação da subjetividade inevitável do discurso do historiador,
implícita na histoire à moi de Duby, tem caracterizado, de uma forma ou
de outra, a historiografia contemporânea. Segundo Ellen Somekawa e
Elizabeth A. Smith (1988: 151-2) "a suposição básica dos historiadores de
que suas narrativas fundam-se em fatos pode ser, na verdade, foi desman-
telada, pois a interpretação não começa depois de que os fatos foram
coletados, mas a interpretação cria a evidência e os fatos". O caso da re-
constituição da política agrária dos Gracos permite avaliar em que medida
.. \ . . . ..
a narrativa, antiga e moderna, dependem da subjetividade do historiador,
da sua inserção social. Ao estudar a historiografia européia e suas tendên-

Phoinix, Rio de Janeiro, 3: 371-380, 1997. 371


cia, Georg G. Iggers (1984: 204) terminava seu livro com a seguinte pro-
posição:

History cannot be separated from its basis in the social and intellectual
realities and conflicts of its time, and the discipline of history itself must
be viewed criticallv within the broader context of lhe history of lhe
modern world.

A História não pode ser separada de sua base nas realiaddes sociais e
intelectuais e nos conflitos de seu tempo, e a disciplina da História deve
ser, ela mesma, vista de maneira crítica, dentro de um contexto mais amplo
da História do mundo moderno.

A política agrária dos Gracos, em especial, apresenta a característi-


ca, pouco usual, de ser duplamente contextualizada no presente, pois não
apenas a historiografia moderna interpretou os Gracos a partir de seus pró-
prios parâmetros como as próprias fontes primárias são, elas também, re-
criações posteriores, inseri das em seus momentos. Nesta ocasião, tratarei
da política agrária dos Gracos nesses dois sentidos: como discursos de an-
tigos não contemporâneos aos acontecimentos e como discursos modernos
sobre os acontecimentos antigos.

QUELLENFORSCHUNG

A política agrária dos Gracos não pode ser estudada, diretamente, por
fontes ou testemunhos diretos literários latinos. Já isto representa uma par-
ticularidade a ser ressaltada, pois o historiador da antigüidade romana, quase
que por definição, define-se como latinista. De fato, por longa tradição, na
origem da própria disciplina, no século passado, a Altertumwissenschaft
(Estudo da Antigüidade) principia com o estudo da língua e apenas a partir
dela pode chegar-se à História. O romanista, em particular o historiador do
mundo romano, é aquele que lida, em primeiríssimo lugar, com a documen-
tação latina. No entanto, este episódio da Roma republicana, capital para o
desenvolvimento posterior das estruturas sociais, econômicas, políticas e
militares, aparece, em latim, apenas nos resumos de Tito Lívio, de forma
sumária. Este resumo, muito posterior aos acontecimentos narrados, apre-
senta diversos problemas, como, por exemplo, logo ao início da narração:

Tib. Sempronius Gracchus tribunus plebis cuni legem agrariam ferrei


aduersus uoluntatem senatus et equestris ordinis, ne quis ex publico agro
plus quam mille iugera possideret, in eum furorem exarsit, ut M. Octauio
collegae causam diuersae partis defendenti post estatem lege laia
abrogaret seque et C. Gracchum fratrem et Appium Claudium socerum
triumueros ad diuidendum agrum crearel(LVIlI, A.U.C. 621 = 113 a.Ci ).

372
Tibério Semprônio Graco, tribuno da plebe, levou adiante uma lei agrá-
ria contra a vontade do Senado e a ordem dos eqüestres, a fim de que
ninguém ocupasse mais de mil iugera de terra pública; Graco exaltou-se
a ponto de depor seu colega Marco Otávio, denfensor da parte oposta;
Graco conseguiu que ele mesmo, seu irmão e o sogro Ápio Cláudio fos-
sem eleitos triúnviros para a distribuição da terra.

o limite de mil iugera é considerado, normalmente, como um erro


de Lívio, que o teria duplicado. De qualquer forma, esta fonte latina é pou-
co detalhada, em comparação com os autores gregos, em especial Plutarco
(c.47-l26 d.C.) e Apiano (século II d.C.); outras fontes latinas são dema-
siadamente sucintas, como Cícero (Brutus, De Diuinatione, de Oratore, de
Lege Agraria) e Aulo Gélio, ou são compiladores de segunda mão, como
Veleio Patérculo, Orósio, Floro, Valério Máximo. Eduard Mayer (1893)
propôs o seguinte diagrama de organização das fontes sobre a política agrária
dos Gracos:

Posidônio Cícero ? ? ?

C. Nepos

Fânio

Cartas
Discursos dos Gracos

Plutarco

(pró-Gracos)

Tito Lívio

Orósio

Velio Patérculo

Apiano
Diodoro
(pró-Senatorial)

373
A partir desse quadro, pode perceber-se que Plutarco é o mais erudi-
to, aquele que recolhe mais dados. Apenas a título de exemplo, basta com-
parar os relatos desses diferentes autores, a respeito de episódios específi-
cos:

Morte de C. Graco

Diodoro Plutarco Apiano Diverso autores latinos


Provoca não provoca provoca provoca

Primeiras leis
menciona mencrona não menciona não mencionam

Estradas
não menciona menciona menciona não mencionam

Na verdade, portanto, nossa melhor fonte a respeito da política agrá-


ria dos Gracos é a biografia composta por Plutarco. Este aristocrata local
da Queronéia estudou em Atenas, influenciado pelo platonismo anti-estói-
co e epicúreo, viajou muito, embora seu conhecimento de latim pareça que
fosse limitado. Compôs tratados (Moralia) e as Vidas Paralelas. Segundo o
próprio Plutarco, suas biografias não eram obras de História, visando co-
nhecer as qualidades e os defeitos dos homens (e.g. prólogos às vidas de
Paulo Emílio e Alexandre). As vidas dos Gracos articulam-se, assim, em
torno de suas virtudes e defeitos, assim explicitados:

Virtudes:

1. Excelência (arete) CG n, I ;
2. Boa disposição (eunoia) CG lI,l;
3. Respeito (time) CG lI, l;
4. Moderação (sophrosyne), CG II, 1;
5. Justo (dikaíos) CG lI,l; TG III,7;
6. Bravura (andragathía) TG III,7;

Os defeitos, menos claramente explicitados, parecem referir-se à ru-


deza (TG IV,3-4) e à impetuosidade (passim). Plutarco, filósofo pouco in-

374
teressado à História no sentido moderno do terrno, muito posterior aos acon-
tecimentos, parece construir os Gracos muito contemporâneos ao próprio
Plutarco e às suas preocupações. De forma clara, o mesmo se passa com
Apiano. Duas citações bastam para tanto:

o que Graco tinha em mente, ao propor a medida, não era dinheiro, mas
homens. (Guerras Civis, I, 11).
Assim, o povo perdeu tudo e diminuiu ainda mais o número de cidadãos
e de soldados e a renda e a distribuição da terra. Após cerca de quinze
anos após a lei de Graco, por meio de ações judiciais, tornaram-se ocio-
sos. (Guerras Civis, I, IV).

Não está claro se foi o povo que ficou sem trabalho ou se foram os
encarregados de distribuir terras; de qualquer forma, quem há de duvidar
que Apiano pensava em sua própria época ao compor estas frases? Além
disso, há a questão, não menos complexa, relativa ao uso de vocabulário
grego tardio para referir-se à Roma do segundo século a.c. Aaron r. Gourévitch
(1994: 83) recorda que:
La premiére tãche de l'historien est de s' efforcer de comprendre Ia langue
de I'époque etudiée au sens sémiotique du teime pour tente r de décrouvrir
son sens spécifique.

A primeira tarefa do historiador é esforçar-se para compreender a língua


da época estudada, no sentido semiótico do termo, para tentar descobrir
sua especificidade

Não parece difícil notar que pouco se pode dizer sobre a expressão
pénetes, em Apiano (e.g. Guerras Civis, I, I I), sobre qual seria sua corres-
pondência, seja em latim, seja, o que é ainda mais complicado, qual seu
significado efetivo no contexto social romano. Logo se nos recordamos de
Wolfgang J. Mommsen (1984:64)

Die Übersetzung der 'Sprache der Quellen ' in die 'Sp rache des
Historikers 'aber ist ein t.enirales Problem für jede historische
M ethodenlehre.

A tradução da 'língua da fontes' para a 'língua do historiador', contu-


do, é um problema central de toda metodologia histórica.

Questões semelhantes, como se verá, podem ser aplicadas, igualmen-


te, à historiografia moderna.

375
A historiografia moderna e a política agrária dos gracos

Os historiadores modernos, sem exceção, reconstruíram os aconteci-


mentos e seu sentido mais profundo a partir das fontes brevemente discuti-
das há pouco. Alguns preferiam seguir os passos de Plutarco e enfatizaram
o ethos por detrás das ações dos Gracos, como é o caso de Pierre Grimal
(1973 :95-1 08). Na tradição francesa, tão bem represeritada por Jerôme
Carcopino (1928), Grimal segue muito de perto os relatos antigos, adicio-
nando, de forma sutil, seus próprios juízos de valor:

o ardor que impulsiona a Tibério, e que acabará causando sua perda,


parece não ter sido, no início, mais do que a ambição comum de um ro-
mano desejoso de servir à sua pátria e de conquistar para si o prestígio e
a honra que recompensam o estadista na cidade.

Grimal aproxima-se, portanto, de maneira muito significativa da tra-


dição, tão sólida nos estudos de História antiga na França, desenvolvida por
Carcopino e que já tive oportunidade de estudar em outra ocasião (Funari
1992). Em outra linha, Claude Nicolet (1977: 117-134; 1980) apresenta uma
reconstituição totalmente diversa dos acontecimentos. Segundo Nicolet, a
crise agrária não se confunde com crise na agricultura, embora a erudição
atual tenda a minimizar os problemas agrários na crise de 133 a.c.; o pro-
blema teria existido, sendo recente e posterior a Aníbal. Teria havido um
duplo movimento: camponeses sem terra e terra sem camponeses. A crise
girava em torno do ager publicus, patrimônio comum do povo romano sem
apropriação privada. A venda das parcelas era possível, segundo Tito Lívio
(28,46,4), ainda que mal vista. A parte vendida tornava-se optimo iure, sendo
chamada de ager questorius. Podia ser alienado para credores do Estado,
contra prestações de serviço, como no caso dos uiari uicani, que recebiam
as terras para conservar as vias (Catão 2, 2). O mais importante era o ager
datus adsignatus, para colonos ou indivíduos (uiritim). A colonização ti-
nha, portanto, fins estratégicos, não visava resolver o problema agrário. O
Estado podia, ainda, explorar terrenos não distribuidos. Sem documenta-
ção, ocorrem usurpações e conflitos, embora o Estado controle periodica-
mente (Tito Lívio 42,1,6). Os ocupantes eram denominados possessores,
em oposição z domini. O esquema interpretativo de Nicolet, portanto, adapta
o uso de fontes latinas referentes a outras épocas para o procurar entender
os testemunhos tardios, escritos em grego. Seria este procedimento, ainda
que menos subserviente à fonte antiga, mais seguro?
A historiografia de língua alemã, por sua parte, seguiria caminhos
diversos. Géza Alfõldy (1984) talvez possa servir como exemplo de uma
abordagem que privilegia a lógica da narrativa, claramente mais desenvol-
vida em Apiano. Assim, Alfõldy prefere aceitar não o relato factual dos

376
acontecimentos, tal como proposto por Apiano, mas sua essência, a lógica
da evolução social romana. Sendo muito posterior, sabendo o que viria a
acontecer, Apiano podia entrever, nos Gracos, uma etapa na transforma-
ção social romana em direção ao Estado imperial. Como afirma Alfõldy,
"Apiano descreveu a História desses conflitos com mais detalhes e, melhor
do qualquer outro historiador antigo, soube captar as interrelações sociais".
F.R. Ankermit (1986:7), em um artigo sobre a Filosofia da História dos
anglo-saxões, opõe a busca por novos documentos, por parte dos anglófo-
nos, à hermeneutica alemã que "tende a ver o passado (ou seja, o texto) como
algo dado e busca dar um passo atrás, como se fosse, tendo em vista desco-
brir seu significado". Nada melhor parece descrever o uso de Apiano por
Alfõldy.
Os ingleses, por outro lado, e seguindo o que propõe Ankersmit, bus-
cam novos documentos. É o que faz Sherwin- White (1982) ao propugnar
que uma tableta de bronze, outrora em poder do Cardeal Bembo, fosse a
lex repetundarum de Caio Graco; sua convicção é tanta que prefere chamá-
Ia de Lex Sempronia (contra Stockton 1979). Como quer que seja, aceite-
mos ou não o novo documento, merecem atenção as palavras que definem
as intenções de Caio Graco:

The political methods ofthat intelligent and liberal statesman <reveals>


a man ofthe most alert and realistic political mentality, with a penetrating
understanding of how political machinery works, quick to perceive the
possibilities for abuse and ingenious in devising counterchecks (p. 18 e 28).

Os métodos políticos deste estadista inteligente e liberal revelam um ho-


mem da mentalidade mais alerta e realista, com uma compreensão profun-
da de como a política funciona, rápido em perceber as possibilidades de
abuso e engenhoso ao propor o seu controle.

A caracterização de Caio Graco não segue as fontes antigas, como


propõem outros autores modernos, mas parece condizer com uma transfor-
mação de Caio em um moderno M. P. (parlamentar, MemberofParliament)!
Talvez já bastem os casos citados para alertar-nos sobre a discursivi-
dade das fontes e dos historiadores modernos. No entanto, "as atividades
sociais não se esgotam na 'discursividade.' (Cardoso 1988: I 11). O cami-
nho para o estudo da agricultura, nesse período como em outros, quer me
parecer que se encontre no estudo exaustivo não somente dos documentos
da tradição textual, objeto central até aqui, como de outros tipos de evidên-
cia, bem como na utilização de interpretações inspiradas em diferentes áreas,
como a Antropologia ou a Ciência Política. Sem entrar em detalhes que em
muito ultrapassariam os limites de um estudo como este, lembraria que a
cultura material tem fornecidos muitos elementos para se repensar as rela-

377
ções sócio-econômicas na Itália dessa época. Lin Foxhall (1990) propôs,
por exemplo, um estudo do campo romano em comparação com o campo
do moderno terceiro-mundo' Em sentido completamente diverso, L.
Capogrossi Colognesi (1990) tem estudado a economia antiga, e sua rela-
ção com o capitalismo moderno, a partir daquilo que chama de sfida di Max
Weber (desafio de Max Weber). Alfons Bürge (J 990) publicou um grande
e muito bem documentado estudo da categoria ambígua do mercennarius,
concluindo que:

Sie müssen sich aber stets dagegen wehren, nicht wie Sklaven behandlet
zu werden, da eben die Arbei t des mercennarius typische Sklavenarbeit ist.

Devem, contudo, sempre defender-se disso, não serem tratados como es-
cravos, pois, justamente, o trabalho do mercennarius é um típico trabalho
de escravos.

Também, entre nós, brasileiros, há quem pesquise esse tema a partir


dos vestígios das uillae rusticae italianas, com resultados concretos profícuos
(Guarinello 1993: 138- I58). Seria, pois, indispensável diminuir as distân-
cias entre historiadores e arqueólogos, e entre todos os que trabalham com
as humanidades, já que suas diferenças metodológicas direcionam-nas an-
tes para o diálogo que para a surdez:

La dicotomia que en el estudio de Ia antigüedad existe entre "Historia-


dores" y "Arqueólogos" ha aumentado Ias defectos de cada uno de estas
puntos de vista. Afortunadamente, existe en nuestros días un afân por
romper esta dicotomia en ias estudios sobre ia economia antigua (Remesal
1986: 11).

A dicotomia que, no estudo da antigüidade, existe entre 'historiadores' e


'arqueólogos' aumentou os defeitos de cada um dos dois pontos de vista.
Felizmente, existe, em nossos dias, um desejo de romper esta dicotomia,
nos estudos sobre a economia antiga.

Conclusões:

Pierre Vidal-Naquet (1991 :10) afirmava que

L'historien est homme libre par excellence, il ne peut que demeurer


historien, c' est à dire 1</1 traitre face à tous les dogmes.

O historiador é um homem livre por excelência, não pode senão conti-


nuar como historiador, ou seja, um traidorface a todos os dogmas.

378
o tema da política agrária dos Gracos, aparentemente tão específico,
conhecido, tão tradicional, surge com outra aparência quando refletimos
sobre sua própria historicidade. Já não é possível estudar os Gracos sem
estudarmos a nós mesmos.

Agradecimentos:

Este artigo resulta de uma aula ministrada no dia 10 de abril de 1996


para o concurso de Livre-Decência em História Antiga, no IFCH da
UNICAMP, em cuja banca estavam os Professores João Quartim de Moraes,
José Remesal, Ciro Flamarion Santana Cardoso, Antônio Silveira Mendonça
e Alceu Dias Lima. Sua publicação representa uma homenagem aos exa-
minadores. Agradeço aos seguintes colegas que me ajudaram de diversas
maneiras, em especial permitindo-me o acesso a suas obras: Ciro F1amarion
Santana Cardoso, Lix Foxhall, Norberto Guarinello e José Remesal. A res-
ponsabilidade pelas idéias, contudo, recai somente no autor.

Autores antigos:

Appian's Roman History, Londres, Harvard University Press, 1958 (Loeb).


Livy's Summaries, Londres, Harvard University Press, 1987 (Loeb).
Plutarch's Lives, Londres, Harvard University Press, 1959 (Loeb).

Obras citadas:

ALFÓLDY, G. 1984 Rõmische Sozialgeschichte. Wiesbaden, Franz Steiner.


ANKERSMIT, F.R. 1986 The dilemma of contemporary Anglo-Saxon
philosophy of History, History and Theory, 25,4, 1-27.
BÜRGE, A. 1990 Der mercennarius und die Lohnarbeit, Zeitschrift der
Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte, 107, 80-136.
CAPOGROSSI COLOGNESI, L. 1990 Economie antiche e capitalismo mo-
derno. La sfida di Max Weber. Roma Laterza.
CARCOPINO,1. 1928 Autour des Gracques. Paris, Garnier.
CARDOSO, C. F. S. 1988 Ensaios Racionalistas. Rio de Janeiro, Campus.

379
DUBY, G. 1980 Un nominaliste bien tempéré, Dialogues, Paris,
Flammarion, 37-66.
FOXHALL, L. 1990 The dependent tenant: land leasing and labour in Italy
and Greece, Journal of Roman Studies, 80,97-114.
FUNARI, P. P. A. 1992 Doxa e episteme: a construção discursiva na narra-
tiva histórica, LPH: Revista de História, UFOP, 3, 1,22-35.
GOURÉVITCH, A. L La double responsabilité de I'historien, Diogêne, 168,
67-86.
GRIMAL, P. 1973 Laformación dei imperio romano. Bilbao, Siglo XXI.
GUARINELLO, N. 1993 Ruínas de uma paisagem. Arqueologia das ca-
sas defazenda da Itália antiga. São Paulo, Universidade de São Paulo,
tese de doutoramento inédita.
IGGERS, G.G. 1984New Directions in European Historiography. Revised
Edition, Middleton, Wesleyan University Press.
MEYER, E. 1893 Geschichte der Altertums. Stuttgart, Teubner.
MOMMSEN, W. J. 1984 Die Sprache des Historikers, Historische Zeits-
chrift, 238, I, 57-81.
NICOLET, CI. 1977 Rome et Ia conquête du monde mediterranean. Paris,
PUF.
N1COLET, CI. 1989 Les Gracques ou Crise agraire et revolution à Rome.
Paris, Gallimard.
REMESAL, J. 1986 La annona militaris y Ia exportación de aceite bético
a Germania. Madrid, Universidad Complutense.
SHERW1N-WHITE, A. N. 1982 The Lex Repetundarum and the political
ideas of Gaius Gracchus, Journal of Roman Studies, 72, 18-31.
SOMEKA WA, E. & SMITH, E. A. 1988 Theorizing the writing of history,
or "I cari't think why it should be so dull, for a great deal of it must
be invention", Journal of Social History, 22, I, 149-161.
STOCKTON, 0.1979 The Gracchi. Londres, Duckworth.
VIDAL-NAQUET, P. 1991 Lesjuifs, Ia mémoire et le présent. Paris, Maspero.

380
De Architectura de Vitrúvio e Thamugadi:
Teoria e Prática"

Regina Maria da Cunha Bustamante

Résumé:

Dans plusieurs situations, théorie et pratique se trouvent dissociées.


Vitruvius, dans son oeuvre De Architectura, a exposé les principes des anciens
romains dans cet art. Mais est-ce que ce serait que ces principes architec-
toniques ont été mis réellement en pratique pendant l'Empire Romain?
Qu 'est-ce qu 'ils représentaient pour celle société-là ? Pour répondre ces
questions, on a développé, dans cet article, Ia confrontation du traité de
Vitruvius ave c Ia plan de Ia ville nord-africaine, Thamugadi, actuelle
Timgad en Algérie. Le climat sec et lafaible occupation urbaine dans cette
région ont permis que celle ville-là préserve vestiges architectoniques
significatifs et, pour ça, elle a été surnommée de "Pompéi algérienne".

1. A teoria: De Architectura de Vitrúvio

o único tratado de arquitetura da antigüidade romana que sobrevi-


veu foi o de Vitrúvio. De Architectura foi escrito no final do século I a. c.,
quando Roma estava em pleno processo de expansão no Mediterrâneo,
durante o governo de Augusto. Consagrada como cidade hegemônica, centro
do mundo mediterrâneo, capital geográfica de um grande Império, símbo-
lo de uma civilização orgulhosa, Roma procurava em termos arquitetônicos
representar tal posição. De Architectura, dedicada a Augusto (Vitruvius. De
Architectura. Dedicatoria), tem como objetivo explícito orientá-Ia na re-
forma de Roma. Mais que embelezar a cidade, Vitrúvio (Ibidem) estava
cônscio de que as obras públicas empreendidas por Augusto tinham a in-
tenção de registrar para a posteridade tanto a grandeza de Roma como a de
seu então governante:

. Este artigo foi apresentado na IX Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Estudos Clás-
sicos, entre 2 e 6 de outubro de 1995 no Rio de Janeiro. e está baseado em estudos realizados
para a tese de doutorado do Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
do Rio de Janeiro sob orientação do Prof. DI'. Ciro Flarnarion Cardoso e com apoio financei-
ro da CAPES.

Phoinix, Rio de Janeiro, 3: 381-401,1997. 381


(...) pensavas [Augusto] (...) também na conveniência de dotar a cidade
de edifícios públicos, para que não somente se visse cnriquecida com
novas províncias, mas que, pelo ornato de suas magníficas construções,
correspondesse à majestade do Império (...)
(...) posso apreciar os muitos edifícios que construíste e os que segues
construindo e os muitos que, tanto públicos como particulares, tens in-
tenção de erguer, em relação com a grandeza de tuas façanhas, a fim de
que permaneçam na memória da posteridade.

Vitrúvio (I, 3) dividiu a construção de acordo com O seu uso: a edifi-


cação de muralhas e prédios públicos e a edificação de casas particulares.
O assunto foi abordado sob o ponto de vista prático e estético. Nos dois ti-
pos de construção, três princípios básicos deviam ser obedecidos: a soli-
dez, a utilidade e a beleza. O primeiro princípio seria alcançado através da
firmeza do cimento, assentado sobre terreno firme, sem regatear avaramente
os melhores materiais que se possa escolher. A utilidade seria o fruto da
exata distribuição de modo que cada coisa fosse disposta em seu devido lugar
e tivesse tudo o que lhe fosse próprio e necessário. Finalmente, a beleza
dependeria do aspecto agradável e do bom gosto da construção, resultantes
da devida proporção (euritmia, simetria e decoro) de todas as suas partes.

2. A prática: Thamugadi

Thamugadi foi a mais recente das colônias não honorárias na África


Romana. O sentido de colônia não implicava necessariamente na criação
de uma cidade. O mais relevante era a noção jurídica, pois, dependendo do
tipo de colônia, envolvia direitos plenos de cidadania aos colonos. Assim,
se havia colônias construídas como focos de rornanização, por outro lado,
Roma incentivava também a lealdade das comunidades locais através da
concessão do título honorífico de colônia como recompensa por sua fideli-
dade, quando sua evolução interna tornasse possível, desejável ou neces-
sária esta transformação, tanto para seus habitantes como para a adminis-
tração imperial. Na África, mais de 50 antigas cidades indígenas recebe-
ram o título de colônia honorária (Lavedan e Hugueney: 1966, p. 340).
Distintamente deste tipo de colônia, Thamugadi foi uma colônia construí-
da. Devido ao seu nome, há uma controvérsia quanto à sua origem, surgin-
do então diversas hipóteses: a cidade foi um antigo assentamento berbere
(Manton: 1988, p. 99); a cidade foi criada ex nihilo e o seu nome seria ape-
nas a manutenção da denominação pré-romana para o local, na medida em
que não se encontrou nenhum vestígio de habita! anterior à construção da , .-
colônia (Lepelley: 1981, p. 444); a cidade teria sido precedida por um pos-
to militar da Legio 111 Augusta, antes de sua instalação em Lambaesis

382
(Saumagne: 1962, pp. 506-8; Lavedan e Hugueney: 1966, p. 434; Leschi:
1952, p. 107), hipótese descartada por Gascou (1972, pp. 98-9).
Marciana Traiana Thamugadi, este é o nome oficial da colônia ro-
mana de acordo com a inscrição encontrada noatrium do fórum de Thamugadi
(C. l. L. VIII, 2355). Marciana lembrava a irmã do imperador Trajano:
Traiana por ter sido fundada no governo deste imperador que foi homena-
geado com um grandioso arco no início da estrada para Lambaesis, sede da
Legio III Augusta; e Thamugadi, talvez denominação pré-romana para o
local. Criada por volta do ano 100', nas proximidades da região montanho-
sa dó Aures, no interior da Numídia, Thamugadi foi erguida pelos vetera-
nos, que lutaram na Guerra Parta naLegio Ulpa Victrix, integrante daLegio
III Augusta, e sob a direção do legado imperial, Munatius Gallus. Os vete-
ranos receberam terras nos arredores para se assentarem com suas famílias.
Diferentemente da preocupação manifestada por Vitrúvio (I, 4) com os "ares
saníssimos" na escolha do local de uma cidade, havia um objetivo clara-
mente paramilitar que norteava a construção de colônias por veteranos. Um
soldado que serviu 20 anos era um homem experiente e ainda apto a pôr
em prática esta experiência, caso fosse necessário, mesmo estando no mo-
mento dedicado à vida familiar e ao seu trabalho na terra, Apesar de tecni-
camente a defesa da fronteira ser responsabilidade das legiões, as colônias
de veteranos tiveram seu papel na manutenção da Pax Romana. A colônia
de Thamugadi, um posto avançado do Império, situava-se numa vasta pla-
nície próxima ao Aures, na fronteira sul. Atendia aos interesses do Império
Romano de se resguardar dos possíveis ataques de comunidades tribais
númidas vindas da região montanhosa do Aures (ver MAPA 1).

Mar Mediterrâneo

1 ~ S~I~ (Rllba:) 11 -Ammlledara(Haldra)


~ • Volubilis. 12. Theveste(Tebessa)
3· Tingis!Tênger: 13, Su1elula(Sbeill']
, _Cesaréllil{CIII.r.:hei) 14. C.rt,go (C.rtll~O)
5 -Sil'iti, (Selif) 15- Hi!::Irumelum(Susa)
e -Cuk:ul (Djem'lai 16 -Thysdw! (EI Dje",,) i. ,-limites '~fo.oCim.dosdilSprovinci.,
7 _Cina(Con,l.nlma) " • Ta::apae (G~be$)
8.''llmugadl[T,mgaO'I \e· Sabralha(S.broa) f _200km
9 _Lamb3CllIls(lrozoull) 1&- oea (Trlpoli)
10_HippoRegius(Annaba) 20 -Leptb Magna (lllt.da)

MAPA J: As províncias romanas da África do Norte no final do século JJ


(Mahjoubi: 1983, p. 474)

383
Além de cumprir um objetivo paramilitar, Thamugadi desenvolveu
seu papel como centro de romanidade numa região ainda bárbara. Neste
aspecto, as colônias foram imagens, projeções, da Urbs fora de seu territó-
rio. Grimal (1971, pp. 6-7) ressalta não apenas a sedução do luxo, o desejo
de melhoria e a ociosidade à sombra dos vencedores, mas, extrapolando as
comodidades materiais, destaca sobretudo a cidade romana como símbolo
onipresente de um sistema religioso, político e social, um elemento chave
para a romanização. A razão de ser da cidade era o desenvolvimento de uma
vida coletiva entre seus habitantes; daí, a importância dos lugares de reu-
niões, dos edifícios públicos das mais diversas naturezas. Os seus habitan-
tes participavam das magistraturas municipais de acordo com suas condi-
ções sócio-econômicas. A cidade possuía um caráter religioso e político-
administrativo peculiar que lhe dava primazia sobre o campo ao redor, pois
dela emanava a autoridade legal. No tocante à relação entre os habitantes
da cidade e os do campo, Grimal (1971, p. 9) faz um interessante paralelo
com a relação envolvendo os cidadãos romanos e os provinciais.
Houve ainda um outro aspecto presente na construção de Thamugadi:
o econômico. A colônia foi um foco de desenvolvimento da exploração
agrícola, que abasteceu inicialmente ° exército na região e, posteriormen-
te, atendeu ao mercado externo com produtos como o azeite e a lã ou as
vestes de lã. A concessão de terras aos veteranos foi um estímulo a estas
atividades econômicas (Greene: 1986, p.134). Vitrúvio (1, 5) apontou ini-
cialmente, de forma sucinta, a necessidade de campos circundantes sufici-
entemente férteis para alimentar a população e reforçou esta posição com a
narração da história entre o arquiteto Dinócrates e Alexandre Magno, em
que este ressaltou a importância para uma cidade de um campo que lhe for-
necesse produtos para que pudesse crescer, manter seus habitantes com
abundância de víveres e assim tornar-se populosa (Il, Introducción), A re-
gião conheceu, a partir do século Il, uma grande prosperidade agrícola,
principalmente da oleicultura, comprovada pelos vestígios de antigas pren-
sas (MORIZOT: 1993, pp. 177-240), A riqueza, advinda desta atividade,
fez com que Thamugadi ultrapassasse os primitivos contornos amuralhados
e se tornasse um importante centro urbano de médio porte na África Ro-
mana. Tal como ocorreu em outras cidades norte-africanas, Thamugadi
viveu na época severiana seu esplendor, expresso na construção de inúme-
ras obras: o arco de Trajano, a expansão das termas sul, o mercado deSertius,
o capitólio e o templo de Aqua Septimiana Felix', Lepelley (1981, p. 445)
destaca que a cidade no Baixo Império caracterizou-se igualmente pela res-
tauração de casas particulares e edifícios públicos, pela presença de um sig-
nificativo acervo de mosaicos e pelos novos quarteirões, principalmente a
oeste, em direção à catedral donatista. Neste sentido, encontrava-se uma das
principais estradas de Thamugadi que ligava a cidade à Lambaesis.

384
A relevância das estradas, dos rios e dos portos para uma cidade foi
um outro ponto apresentado por Vitrúvio (I, 5). Por ser uma região interio-
rana, a produção de Thamugadi era escoada através de uma malha viária.
O principal portão da cidade, situado a oeste, o denominado Arco de Trajano,
era o início de uma estrada bem pavimentada para Lambaesis, daí o arco
também ser conhecido como Portão Lambaesis. Esta estrada era a continu-
ação de uma outra construída no período republicano entre Cartago e
Theveste. Inicialmente, de caráter militar, porque acompanhava a progres-
são dos exércitos, ela atendeu igualmente aos interesses administrativos ao
unir a residência do procônsul da África Proconsular em Cartago com o
quartel-general do comandante da Legio Ill Augusta em Lambaesis. Mas,
a extensão da malha viária também foi a par com a expansão da vida muni-
cipal, na medida em que era necessária para o transporte de materiais de
construção. Com o tempo, a estes papéis militar e político-administrativo
das estradas somou-se o interesse comercial em manter o eixo norte-sul li-
gando o interior ao litoral. O sentido da produção era a exportação e o Me-
diterrâneo fazia O papel de liame no Império Romano.

3. A teoria na prática: o plano urbanístico de thamugadi

Através de Tito Lívio (De Urbe Condita Libri I, 7), tem-se a infor-
mação de que a construção de uma cidade, tomando-se como paradigma a
fundação de Roma, era precedida de rituais religiosos como o exame dos
auspícios visando assegurar, por signos visíveis, a aprovação dos deuses
na escolha do local da cidade. Depois, fazia-se, em volta da futura cidade,
com exceção dos lugares destinados aos portões, um sulco, uma espécie de
linha de proteção mágica - o pomerium - com uma charrua com relha
de bronze atrelada a uma bezerra e a um touro brancos, onde se construíam
as muralhas. Acreditava-se que, da terra rasgada pelo sulco, surgiriam di-
vindades infernais que tornariam a cidade religiosamente inviolável. Para
os mesmos deuses, cavava-se uma fossa circular no ponto central da cida-
de, denominada de mundus, onde se depositavam oferendas. Três vezes ao
ano, abria-se a laje, que tampava a fossa, quando então era possível a co-
municação com os espíritos subterrâneos (Grimal: 1971, pp. 20-2).
Para a construção da cidade, Vitrúvio (1, 3) estabeleceu três objeti-
vos: defesa, religião e comodidade de seus habitantes. As torres, os portões
e as muralhas, necessários à defesa e à segurança da cidade, deveriam ser
pensados visando resistir aos assaltos dos inimigos. A preocupação do au-
tor (I, 5) revelou indiretamente o caráter beligerante daquela época de con-
quista, havendo a possibilidade de resistência ou oposição à presença ro-
mana. O arquiteto propôs o formato circular ou poligonal porque o inimi-

385
go poderia ser avistado facilmente e não hav Ia o inconveniente de ângu-
los agudos do formato ortogonal, que eram diíu.eis de defender. Thamugadi
não seguiu este preceito de Vitrúvio: a cidade foi construída como um ta-
buleiro de xadrez de aproximadamente 353 m X 322 m dividido em quar-
teirões de insulae, formadas pelas interseções das ruas (ver PLANTA 1). Tal
configuração estava condizente com o plano urbanístico grego de Hipoda-
mos. A localização de Thamugadi em uma planície facilitou este traçado.
Contudo, após um século da fundação da colônia, com a prosperidade eco-
nômica e a Pax Romana, extrapolou-se o contorno amuralhado. Esta con-
cepção ortogonal de cidade foi imposta pelos romanos às regiões despovo-
adas de planície. As muralhas, segundo Lavedan e Hugueney (1966, p. 452),
além de seu papel defensivo, eram o símbolo da cidade, já que delimita-
vam o espaço da civilização em contraposição à barbárie circundante.

PLANTA I: Thamugadi na Numidia.


P: Porta; Te: Termas; B: Basilica; T: Pequeno templo do [árum, com tribuna
para as arengas na suafachada. (Auboyer e Aymard: 1976, {J. 226, figo /1)

386
De acordo com Vitrúvio (1, 6), o traçado das ruas deveria estar orien-
tado em sentido oposto à direção dos ventos para que quebrassem nos ân-
gulos formados pelas quinas das casas e, rebatidos, se dispersassem. As ruas
de Thamugadi estavam condizentes com a tradição etrusca' dos dois eixos
perpendiculares: o cardo maximus (direção norte-sul) e o decumanus
maximus (direção leste-oeste). Este último era obtido a partir do nascer do
sol do dia da fundação da cidade com a groma ou gruma, pequeno instru-
mento de agrimensura; depois, traçava-se perpendicularmente o cardo. A
partir desta interseção, estabeleciam-se distâncias iguais, no fim das quais
haveria os portões principais da cidade. Thamugadi teve seu cardo inter-
rompido com a construção do fórum e do teatro e, por isso, seus portões
não coincidem com os pontos cardeais (ver PLANTA I). Assim sendo, de-
vido à área na zona sul reservada aos edifícios públicos, houve a ruptura na
justaposição de quadrados iguais da cidade.
O segundo item relevante para Vitrúvio na construção de uma cida-
de era a religião. O autor eIII e IV) preocupou-se muito com a edificação
de templos. O aspecto religioso entretanto não deixava de ter um caráter
defensivo: enquanto as muralhas eram uma proteção contra os perigos vi-
síveis, os templos forneciam uma proteção de natureza diversa mas igual-
mente importante. A proteção dos deuses superiores, em especial da tríade
Júpiter - Juno - Minerva, era invocada através do capitólio, que devia
ser erguido num local elevado no centro da cidade para que as divindades
pudessem olhar por toda a cidade (Vitruvius I, 7). Neste aspecto, Thamugadi
construiu seu capitólio numa colina, mas fora de suas muralhas (ver PLANTA
1). Reconhece-se o capitólio pela tripla celta (capela) no interior de uma
única colunata e pela escada monumental ao pé da qual havia um altar des-
tinado aos sacrifícios solenes. Grimal (1971, p. 65) levanta, como hipótese
explicativa para a localização do capitólio além das muralhas, a existência
de um culto númida anterior situado na mesma colina do capitólio. Era
comum que os templos de divindades indígenas, geralmente de tamanho
menor que os dos romanos, fossem erguidos em lugares elevados e na pe-
riferia da cidade. Além disso, freqüentemente, houve a associação entre as
divindades greco-romanas com as locais, tais como: Saturno a Baal-Hamon
e Juno Celeste a Tanit (Mahjoubi: 1983, pp. 504-9). O capitólio encarnava
a majestade e o poder do povo romano e inseria-se na religião oficial, que
unificava o Império Romano. A fidelidade a Roma exprimia-se pela obser-
vância das práticas religiosas, elemento significativo da civilização roma-
na. Os membros do ordo decurionum, que alcançavam o apogeu em sua
carreira municipal, desejavam ser investidos da dignidade de flâmines per-
pétuos, sacerdotes responsáveis, frente à cidade, pelo culto ao casal impe-
rial deificado. Mesmo no Baixo Império, quando a cristianização se expan-

r 387
dia, este desejo ainda se fazia presente, como comprovam as inscrições
epigráficas (C. I. L. VIII 2387; VIII, 2388; VIII, 2403. A. É.: 1895,108;
1913,25; 1949, 134. B. A. C. T. H. 5.: 1907, p. 262), indicando o esvazia-
mento do conteúdo religioso do título mas a manutenção da sua importân-
cia política. Além disso, a assembléia provincial, composta por todos os
representantes das assembléias municipais (cúrias), reuniam-se anualmen-
te em Cartago para escolher o flâmine provincial, o grande sacerdote res-
ponsável pela celebração do culto oficial em toda a província 4.
Dos templos identificáveis em Thamugadi, além do capitólio, havia
o de Mercúrio, que se encontrava perto do fórum, onde se realizavam as
atividades políticas e comerciais. Vitrúvio (I, 7) que determinava uma maior
proximidade ainda entre este templo e o fórum. O templo de Ceres, que
deveria, segundo o arquiteto romano (I, 7), se situar fora da cidade, devido
à preocupação em resguardá-Io das impurezas que contaminassem a sua
santidade, fora construído dentro das muralhas. Os templos e as imagens
dos deuses deveriam estar voltados para o poente, ou seja, o oeste (Vitruvius
IV, 5). O capitólio thamugadense seguiu este preceito mas, quanto aos ou-
tros templos é difícil determinar. Entretanto, Vitrúvio (IV, 8) estava ciente
de que não se podia fazer da mesma maneira templos para todos os deuses
porque eram diversos os cultos e as cerimônias. Na África Romana, em
especial a arquitetura relacionada às práticas religiosas e funerárias conser-
vou alguns traços locais númida-púnicos. Naturalmente, a romanização
transformou até certo ponto a religião tradicional: a presença de figuras no
estilo greco-romano nas estelas (ver p. ex. Khader e Soren: 1987, pp. 20,
44,179-180,219) substituindo em parte os símbolos abstratos (ver p. ex.
ibidem, pp. 150-1, 180), a língua púnica desapareceu dos ex-votos, além
da citada assimilação das divindades greco-romanas às locais. Contudo, mes-
mo quando os textos das dedicações eram escritos em latim, manteve-se com
notável constância a lembrança de fórmulas tradicionais (Mahjoubi: 1983,
p. 506). A dominação romana não chegava a impedir os autóctones de
manifestarem uma devoção fiel a suas divindades tradicionais, contanto que
esta não atrapalhasse o culto oficial romano.
Por fim, a comodidade dos habitantes, o terceiro aspecto ressaltado
por Vitrúvio na construção de uma cidade. Este aspecto compreende todos
os lugares de uso público, tais como o porto, as praças, os pórticos, as ter-
mas, o teatro, o fórum, os mercados e as calçadas. Cumpridas as cerimô-
nias religiosas da fundação da cidade, demarcados o cardo maximus, o
decumanus maximus e as muralhas, era feita a distribuição das ruas. Os
cardines e decumani secundários seriam traçados de acordo com os dois
eixos principais. A via pública serviu para especializar o tráfego ao separar
os pedestres dos veículos. As calçadas eram uma herança etrusca (Lavedan

388
e Hugueney: 1966, p. 460) e Thamugadi as têm perfeitamente conserva-
das. Os pórticos faziam parte da calçada e tinham as funções de decoração
urbana e de aumentar a segurança e o conforto do pedestre ao protegê-Io
do sol e da chuva.
Depois disto, cabia eleger as áreas apropriadas à convivência e ao uso
comum da população. Vitrúvio (1, 7) aconselhou as cidades litorâneas a
terem seu mercado perto do porto, enquanto que, para as interioranas, o
melhor seria o centro das cidades. Thamugadi seguiu este preceito
vitruviano. Sendo interiorana, inicialmente, a colônia construiu seu merca-
do no centro (vide PLANTA 1). Porém, com o progresso econômico duran-
te o período severiano, um rico cidadão, Sertius, ofereceu à cidade um ou-
tro mercado, de maiores proporções, na parte oeste do exterior das mura-
lhas, perto do capitólio (ver PLANTA 1). Edificou, mesmo, sua própria
domus, próxima ao local, aproveitando-se do espaço das muralhas desmo-
ronadas. A escolha do setor oeste para a edificação do novo mercado se-
guiu critérios bem pragmáticos: a contigüidade à principal estrada da cida-
de e a proximidade do quarteirão industrial, organizado extra-muros, na área
sul, em forma triangular, quando da prosperidade econômica da região. Os
mercados serviam para abastecer a população urbana com a produção lo-
calou externa, que chegava através do sistema viário. A manutenção da
atividade comercial da cidade no Baixo Império pode ser comprovada atra-
vés de duas inscrições epigráficas (A. É.: 1906, 26; 1954, 155) informando
sobre a instalação de tábuas de medidas com os recipientes de bronze para
o trigo e vinho, cuja utilidade fiscal foi estabeleci da pelo C. Th. XII, 6, 21.
Geralmente, em cidades de plano regular, como em Thamugadi, o
fórum se localizava na interseção do cardo maximus com o decumanus
maximus (ver PLANTA 1). Em volta do fórum, foi que a cidade que a pró-
pria cidade de Roma se desenvolveu. Segundo Vitrúvio (V, 1), primitiva-
mente, no fórum romano, ocorriam os jogos de gladiadores, o que exigia,
para a comodidade da platéia, um espaço maior entre as colunas do que
aquele existente entre as colunas do ágora grego. O tamanho do fórum era
condizente com a densidade populacional e seu formato retangular atendia
às exigências de maior visibilidade dos espetáculos. Esta função primitiva
foi substituída por outras. O fórum tornou-se o centro da vida pública e
comercial porque ali aconteciam as assembléias municipais e as transações
entre as associações de grupos de comerciantes. No contorno do fórum,
estabeleceram-se lojas de comerciantes em seu contorno, que se abriam para
o seu lado exterior, composto pela colunata (ver PLANTA 2), no caso de
Thamugadi, em estilo corÍntio. Havia ainda andares superiores com balcões
(maeniana) para atender a este mesmo tipo de atividade. Por ser um espa-
ço público muito freqüentado, as necessidades fisiológicas dos habitantes

389
da colônia também foram previstas na sua construção: em um ângulo do
fórum, havia 26 latrinas públicas, que eram vasos de 60 em, separados uns
dos outros por uma laje em pé e suspensos sobre o vazio, em cima de um
canal. Um canalete de água e um sistema aperfeiçoado de esgoto permiti-
am manter limpos esses lugares, comumente utilizados pela maior parte da
população, já que inexistiam acomodações desta natureza nas casas popu-
lares. No subsolo das grandes vias da cidade, havia uma rede de esgoto cuja
largura era invariavelmente de 0,40 m, a altura variava entre 1,00 m e 1,80
m (Lavedan e Hugueney: 1966, p. 458).

PLANTA 2: Fôrum e teatro de Thamugadi (Féurier: 1990,fig. 33. p. 23)

390
o interior do fórum era repleto de estátuas: de imperadores, de lega-
dos propretores, deevergetas e do sátiro Marsias", símbolo das imunidades
municipais (Clavel-Lévêque e Lévêque: 1984, p. 153). Anexos ao fórurn,
encontravam-se ainda um templo, a basílica e a cúria (ver PLANTAS / e 2).
Este templo, em Thamugadi, era dedicado à Fortuna já que o capitólio fora
construído além das muralhas. Clavel-Lévêque e Lévêque (1984, p. 153)
sugerem que no templo da Fortuna poderia ocorrer o culto imperial, condi-
zente com a função político-administrativa do complexo do fórum. Na
basílica, os cidadãos tinham uma espécie de sala de justiça para os litigan-
tes recorrerem aos magistrados sobre suas pendências particulares e para
discutir sobre atividades oficiais. Havia naves laterais, separadas por colu-
natas, para impedir que conversas incomodassem as funções jurídicas, que
ocorriam na parte da frente do semicírculo, onde se edificava um estrado
para que os magistrados exercessem suas funções (Vitruvius V, I; PLAN-
TAS 1 e 2). Gradativamente, a basílica foi se tornando o lugar por excelên-
cia da aplicação da justiça.
Próxima à tribuna para os discursos, localizava-se a cúria (ver PLAN-
TAS I e 2). Esta última era uma sala para as reuniões do Senado local, com-
posto, nas províncias, pelos membros do ordo decurionum. A altura da cúria
era superior à da basílica, porque se procurava fornecer uma boa audição
para as discussões e uma impressão de majestade digna da importância
destas assembléias (Vitruvius V, 2). A cúria simbolizava o espírito oligár-
quico da cidade romana, ao reunir a elite local para administrar a vida mu-
nicipal. Para exercer uma magistratura municipal, era necessário possuir
recursos, já que não se recebiam honorários e ainda se pagavam ao tesouro
somas proporcionais ao tamanho da cidade e ao cargo pretendido. O Impé-
rio Romano conseguiu assim a adesão da oligarquia municipal ao "modo
de vida romano". Os decuriões ofereciam banquetes e espetáculos e esfor-
çavam-se em embe\ezar sua cidade, reformando e construindo edifícios
públicos, visando aproximá-Ia do modelo ideal, Roma. Para os decuriões,
era uma forma de agradecer ao povo as honras que lhes concedia. Esta ati-
vidade de construção, quase obrigatória caso desejassem obter um cargo,
foi responsável pela magnificência das cidades norte-africanas durante os
séculos 11e 111.Além do mercado de Sertius, citado anteriormente, em
Thamugadi as inscrições epigráficas fornecem outros casos, tais como: a
construção da biblioteca pública graças aos 400.000 sestércios legados por
M. Julius Quintianus Flavius Rogatianus (I. L. S. 9362); a restauração dos
quatro lados do grande pórtico do capitólio (Ibidem 5554 = C. I. L. VIII, 2388)
e dos pórticos do templo de Mercúrio (B. A. C. T. H. S.: 1907, p. 274) por
magistrados municipais; a inauguração de umaplatea (avenida ou praça com
pórticos) restaurada e uma ponte ornada com decoração esculpida cujos

391
trabalhos foram pagos pela munificência de C Statulenus Yitalis Aquilinus
(Kolbe: 1967, p. 4); e a oferta de uma estátua do Gênio da cidade por um
evergeta anônimo (B. A. C. T. H. S.: 1893, p. 162). As inscrições epigráficas
demonstram a participação ativa dos cidadãos abastados nas magistraturas
municipais e a importância concedida às obras de prestígio como arcos,
estátuas e colunas com inscrições honoríficas aos imperadores(C/. L. VIII,
2346; VIII, 2347; VIII, 17882; VIII, 17883; VIII, 17884; VIII, 17886; VIII,
17887 ; ao ordo decurionum (Ibidem VIII, 2342) e aos patronos da cidade
(A. É.:..1913, 25). Entretanto, o C Th. VI, 22, 2 apresenta uma visão bem
diferente daquela delineada pela documentação epigráfica. Uma constitui-
ção imperial do final do século IV responde a reclamação do ordo
decurionum thamugadense que se sentia prejudicado com a recusa de al-
guns decunões completarem as munerae e as honores municipais sob o
v.pretextó que se tornaram honorati e, portanto, estarem isentos, o que fazia
recair as obrigações em cima dos outros decuriões. Era um caso de deser-
ção de decuriões, que foi decidido favoravelmente ao ordo de Thamugadi
ao estabelecer que os decuriões, que obtiveram ilegalmente a dignidade,
pagassem a multa de 30 libras de prata, além de uma quantia em ouro, e
assumissem seus encargos municipais. Constituições imperiais, com este
mesmo tipo de conteúdo, foram enviadas para outras cidades norte-africa-
nas (Cartago: C Th. XII, I, 27 e XII, 1,41; Cirta Constantina: Ibidem XII,
1, 29). A contradição entre as informações da documentação epigráfica e
as da jurídica pode ser parcialmente explicada pela própria natureza de cada
documentação: a primeira de caráter propagandista (Février: 1989, p. 79) e a
outra de caráter prescritivo (Lepelley: 1979, p. 25).
I
O teatro teve um papel destacado na socialização da população da-
quela época. Vitrúvio (V, 3-10) dedicou-lhe um espaço relevante em seu I
estudo, onde abordou a escolha do local (considerando-se os ventos saudá-
veis e a propagação do som), a harmonia da doutrina musical, os vasos de

bronze para repercutir a voz de forma eficiente, a forma do teatro, a dispo-
sição dos lugares e do pórtico ao teto, as três classes de cenas romanas e as
gregas, a eleição de lugares harmônicos, os pórticos atrás do cenário e em
frente, na calçada. Em termos arquitetônicos, eram prédios imponentes e
que melhor se conservaram nas cidades antigas. Toda cidade possuía ao
menos um teatro e as cidades mais importantes possuíam também um anfi-
teatro. Thamugadi enquadrava-se no primeiro caso. Havia uma distinção
entre os espetáculos apresentados no teatro e os no anfiteatro. Ao primeiro,
eram reservadas as comédias, as tragédias e as mímicas, enquanto que ao
outro, as exibições de caráter violento, como os combates de gladiadores
(anteriormente realizados no fórum) e as caças de animais (venationes). O
teatro seguiu a tradição helênica e o anfiteatro foi uma criação especifica-

392
mente romana (Grimal: 1971, p. 76-8). Apesar da origem do teatro ser gre-
ga, os romanos fizeram algumas modificações em sua estrutura
arquitetônica. O teatro de Thamugadi serve como um bom exemplo da nova
concepção romana (ver PLANTA 2). Tal como no mundo grego, o teatro
foi construído no flanco de uma colina, mas seguia os ditames romanos.
Os assentos estavam dispostos numa platéia funda, semicircular, a cavea,
que, como no anfiteatro, estava apoiada numa rede de corredores de galeri-
as com abóbadas. Diante da cavea, erguia-se um grande palco construído
de tábuas. O antigo pulpitum, onde ocorria o espetáculo, foi abaixado. Dos
dois lados do palco, havia vestiários e depósitos de acessórios. Quando se
trocava o cenário, erguia-se uma cortina escondida no piso do palco. A pa-
rede do fundo do palco, afrons scaenae, apresentava colunas de mármore
e um cenário arquitetônico decorado com andares, portas e janelas. Esta
parede erguia-se até o mesmo nível da colunata construída no último de-
grau da cavea. Os atores, às vezes, representavam na orchestra, platafor-
ma semicircular num nível abaixo do palco. As orchestrae gregas eram cir-
culares. Porém, como no teatro romano não havia coro, a orchestra foi re-
duzida, cedendo seu espaço para o público. As pessoas importantes tinham
lugares confortáveis ao redor da orchestra ou nos camarotes situados nas
entradas laterais. O teatro podia ser coberto por um velarium em caso de
sol forte ou de chuva; os espectadores também tinham o recurso de se abri-
garem nas galerias. Havia também um pórtico quadrangular atrás dafrons
scaenae que servia para passear.

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PLANTA 3: Termas do Norte em Thamugadi (Grimal: 1971,fig. 22, p. 92)

393
Thamugadi oferecia aos seus cidadãos uma das regalias mais apreci-
adas naquela época, como se deduz por uma inscrição encontrada no pavi-
mento da entrada do fórum thamugadense: "Venari lavari / ludere ridere /
hoc est vita" ("Caçar, banhar-se e rir, eis o queé a vida") (Lavedan e Hugueney:
1966, p. 475). Havia na colônia 13 termas ou banhos públicos que, além de
servirem para a higiene, já que as moradias populares não tinham banhei-
ros privativos, eram também um local onde as pessoas podiam se encon-
trar, conversar, negociar, fazer ginástica", jogar dados e até ler. Das 13 ter-
mas espalhadas pela cidade, a maior era a do norte (ver PLANTA 3). Elas
atendiam uma população calculada, em seu apogeu, em 15.000 (Lavedan e
Hugueney: 1966, p. 434). A edificação das termas demandou a construção
de um eficiente sistema de abastecimento hidráulico subterrâneo (Manton:
1988, p. 100). Ao final da tarde, quando a jornada de trabalho encerrara-se
e antes do jantar, os cidadãos costumavam freqüentar as termas. O banho
compreendia tradicionalmente três fases. Após os cidadãos se despirem no
apodyterium,seguiam para a sala fria, ofrigidarium; a seguir, uma tépida,
o tepidarium; e, por fim, a quente, o caldarium, onde a alta temperatura
provocava uma sudorese abundante (ver PLANTA 3). Depois, podiam ir ao
sudarium, uma espécie de sauna para transpirar. No caso das Termas Nor-
te, encontra-se uma outra sala, o laconicum, cuja temperatura deveria ser
mais alta que o caldarium. O piso de mosaico das salas mais quentes era
suspenso e sustentado por pilares de tijolos criando um espaço chamado
hipocaustum, onde os gases quentes de uma grande fornalha de bronze cir-
culavam para aquecer as salas (Macaulay: 1989, p. 88). Em todas as salas,
havia piscinas e locais para unção com óleos perfumados, massagens e de-
pilação. Elas eram decoradas com mosaicos; dos 235 mosaicos encontra-
dos em Thamugadi, 85 provêm de termas ou de seus anexos. Relaxados, os
cidadãos podiam se entregar à conversação ou à leitura. "Bene lava" (Warot:
1968, p. 169 apud Hamman: 1989, p. 27), isto é, "Bom banho !": é a inscri-
ção encontrada entre o frigidarium e o caldarium de uma das termas de
Thamugadi.
A população morava nas insulae. Era uma forma de alojá-Ia de ma-
neira econômica. O termo significa ilha pois era um edifício rodeado de ruas.
Recebia sua luz de aberturas que davam para a via pública. As ·insulae tor-
navam possível instalar várias famílias numa mesma casa em diferentes
apartamentos. A sua principal característica era a de apresentar andares, aos
quais se tinha acesso por escadas que davam diretamente para a rua, forne-
cendo assim independência aos andares superiores e economizando espa-
ço ao dispensar o vestibulum comum. Estes andares geralmente eram
construídos com material de pouca resistência, o que causava o perigo de
desabamentos e incêndios.

394
As insulae contrastavam em diversos aspectos com as domus da eli-
te, construídas com material nobre e ocupando um espaço bem maior. As
domus, no seu afã de se expandirem, invadiram até mesmo a via pública.
Durante o Baixo Império, este processo de apropriação e de desenvolvimen-
to de uma vida privada luxuosa se manifestou com maior intensidade na
África Romana. Obalneum (sala de banho), citado rapidamente por Vitrúvio
(VI, 8) como um cômodo reservado da domus, passou a ser no Baixo Im-
pério mais comum e luxuoso, demonstrando o crescimento do sentido do
conforto privado em detrimento do coletivo. Desta forma, aumentava-se a
autarquia da domus e manifestava-se uma hierarquização cada vez mais
codificada e o desenvolvimento de um novo pudor em relação ao corpo e
aos seus odores (Thébert: 1988, p. 371 e 384). Pode-se também interpretar
o aumento do balneum nas domus como uma conseqüência da degradação
dos serviços públicos no Baixo Império. As domus se tornavam cada vez
mais opulentas. Em Thamugadi, por exemplo, encontramos uma inscrição
(B. A. C. T. H. S.: 1907, p. 262) comemorando a restauração de umadomus,
cujo proprietário se gabava de ter obtido maiores honras e riquezas do que
seus antepassados.
A organização e a decoração do espaço doméstico atendiam, além das
necessidades privadas de seus moradores, a um estilo de vida romano. A
existência de uma comunidade cultural mediterrânea, incentivada pela ci-
vilização romana e apoiada no intenso intercâmbio econômico, político e
intelectual, ocasionou o desenvolvimento de uma arquitetura e uma deco-
ração privadas características das elites em todo o Império. Como benefi-
ciárias da ordem romana, estas adotaram um marco arquitetônico e deco-
rativo que lhes servia como elemento de identificação e de integração ao
permitir-lhes viver em todas as partes à maneira romana. Refletiam assim a
sua participação na gestão do Império Romano e afirmavam sua posição
privilegiada frente à sociedade local. A homogeneidade social e a cumpli-
cidade política dessas elites foram fatores fundamentais para a perceptível
uniformidade das suas arquitetura e decoração domésticas. Vitrúvio (VII,
5) apresenta, para cada cômodo da domus, uma decoração própria condi-
zente com o seu uso. Para os corredores, o arquiteto recomendou paisagens
inspiradas nas condições naturais do lugar; às vezes, imagens de deuses ou
cenas lendárias podiam ser representadas. Porém, Vitrúvio criticou temas
com seres monstruosos ou qualquer outro que fira a lógica e a verdade, como
estava então em voga, devido à influência helenística. Para a exedra (sala
de recepção), a decoração devia reproduzir cenas trágicas, cômicas ou sa-
tíricas.
Não se deve erroneamente pensar, porém, numa reprodução mecâni-
ca da arquitetura e da decoração por parte da elite norte-africana, que adaptou

395
o programa arquitetõnico romano aos seus interesses, necessidades e con-
dições financeiras. Vitrúvio (VI, 8) já atentara para o vínculo existente en-
tre a planta das casas e o status social de seu proprietário". Um exemplo da
peculiaridade norte-africana é a importância do peristylium (galeria de co-
lunas em volta de um pátio) nas suas domus, devido à especificidade do
clima quente da região, enquanto que, nas romanas, o atrium (sala de estar
e de recepções) era o centro da casa. Os mosaicos foram uma outra carac-
terística da África Romana, trazendo leveza e decorando o ambiente como
se fossem afrescos e tapetes. Estavam no chão, nas paredes e no teto com
temas florais e figurativos (cenas de caça, de mitos greco-rornanos e da vida
aristocrática de seus proprietários) particularmente caros à elite. Foram
encontrados 33 mosaicos nas domus thamugadenses. As mais ricamente
decoradas estavam situadas entre as duas principais vias (o cardo maximus
e o decumanus maximus) enquanto que a maior parte das insulae eram des-
providas de mosaicos. Um importante aspecto da história do mosaico em
Thamugadi foi o desenvolvimento de uma oficina, que renovou inteiramente
as combinações do estilo florido da época de Adriano e Antonino graças
aos florões de acanto, planta espinhosa, cuja abundância invadia todo o cam-
po, dando uma impressão de suntuosidade luxuriante (Picard: 1971, p. 371).

Conclusão

O Império Romano conseguiu durante aproximadamente cinco sécu-


los integrar o mundo mediterrâneo. Para o desenvolvimento do sentido de
comunidade entre áreas tão díspares e múltiplas foi necessário estabelecer
valores comuns que tiveram maior efetividade política quando foram in-
corporados às instituições e ao comportamento político-social dos membros
da comunidade (Deutsch et alii: 1966) e tomaram corpo em obras visíveis.
Mais que a coerção militar, o Império teve que desenvolver estratégias que
mantivessem Unidas estas regiões. A construção de cidades foi uma delas,
principalmente nas províncias ocidentais, onde a tradição urbana não era
tão desenvolvida como no Oriente. As cidades atraíam as populações nati-
vas tanto pelas comodidades urbanas como pelos privilégios políticos e
econômicos que podiam oferecer aos seus habitantes. Os centros urbanos
não trouxeram apenas modificações no habiiat, mas, principalmente, no-
vas concepções de modo de vida e de organização política e social para as
populações locais. A cidade foi a célula-base do sistema imperial romano
tanto no plano político como no econômico, social e cultural, constituindo-
se portanto no centro de radiação de romanidade. Sendo a civilização ro-
mana em grande parte urbana, o grau de romanização de uma província podia
ser medido pela sua concentração de cidades. Foi através de uma malha ur-

396
bana que Roma assegurou em parte a integração da região mediterrânea.
Aproveitando-se das cidades já existentes e criando novas, Roma procurou
difundir seus valores e estilo de vida nos territórios conquistados. O Impé-
rio Romano, produto de um único centro urbano, foi em si mesmo uma vasta
empresa construtora de cidades, Daí, a preocupação de se elaborar princí-
pios arquitetônicos gerais, que fornecessem a priori soluções fáceis e uni-
formes aplicáveis à construção de cidades nas mais diversas regiões, tal como
ocorreu com a colônia de Thamugadi. A Urbs, a cidade por excelência, ser-
viu como paradigma para as cidades já existentes e, principalmente, para
aquelas que foram criadas, as colônias fundadas por cidadãos romanos.
As colônias eram uma imagem de Roma, reproduzindo as instituições,
os cultos e os monumentos da cidade-mãe. Ao expor os principais precei-
tos arquitetônicos, que deviam ser seguidos em Roma, Vitrúvio elaborou
um padrão para a construção ideal de cidades e edifícios, fossem eles pri-
vados ou públicos. Entretanto, havia espaço para o elemento local que era
incorporado ao modelo romano, fazendo-se adaptações ao programa arqui-
tetônico dominante. Thamugadi foi o lugar de encontro e de contato tanto
entre gente da montanha e a da planície como entre Roma e os berberes.
Deste duplo papel, a cidade tirou sua fisionomia: da colônia romana, ela
possuía o equipamento tradicional (fórum, basílica, cúria, templos oficiais,
pórticos, arcos e portas monumentais) inserido num espaço um pouco rígi-
do que perdeu seu caráter geométrico com o passar dos séculos; de seu papel
de ponto de encontro, tinha seus mercados, suas praças e seus locais de pra-
zer, como o teatro e as termas.

Notas

1 Há uma controvérsia quanto a época certa da fundação. Para Lepelley (1981, p.

444) e Lavedan & Hugueney (1966, p. 431) o ano seria 100, para Manton (1988, p.
99) seria 101. Neste aspecto, sigo a posição Raven (1984, p. 79) que apenas indica
a época aproximada.

2 A captação da nascente da água era vital para o homem (Vilruvius VIII, 4). Por
isso, neste lugar, em Thamugadi, se edificou um santuário: o templo de Aqua
Septimiana Felix. Na cidade, a água era armazenada nos castelos de água (castellum),
reservatórios sobre os quais Vitrúvio (VIIl, 7) deixou prescrições. Três tipos de
canalização partiam deste castelo: uma para as fontes públicas, a segunda para as
termas e última para as casas particulares, que pagavam por este privilégio. Em caso
de racionamento, devia se dar prioridade para o bem da maioria: cortar a água pri-
meiro das casas particulares, depois das termas e, por último, das fontes.

397
) Existem diversas hipóteses sobre a origem do cardo e do decumanus entre os ro-
manos: produtos do desenvolvimento da urbanística vilanoviana (autoctonismo) ou
da urbanística etrusco-grego ou, principalmente, da etrusca (Lavedan e Hugueney:
1966. pp. 340- I).

4 Este cargo também é mencionado na inscrição epigráfica do C. I. L. VIII, 17896,


que é um edito emitido pelo cônsul da Numídia durante o governo de Juliano, Ulpius
Mariscianus, cuja primeira parte trata do ardo salutationis (a ordem da presença)
que devia ser observada nas audiências solenes em que se saudava o governador. O
flâmine provincial vinha após os titulares de dignidade imperial e os chefes da ad-
ministração provincial.

5 Na mitologia grega, um sátiro que se apoderou da flauta inventada por Atena e


tornou-se um flautista de tal maneira exímio que desafiou ApoIo para uma compe-
tição, ficando acertado que o vencedor trataria o vencido como lhe aprouvesse. As
Musas deram a vitória a ApoIo que amarrou Marsias numa árvore e esfolou-o ou
mandou esfolá-Io em vida (Harvey: 1987, p. 328).

6 Grimal (J 971, p. 89) considera as termas uma invenção romana derivada do giná-
sio helênico,

7 Vitrúvio (VI, 8) distingue o vestibulum de um proprietário remediado daquele que

possuía fortuna, pois este, devido aos seus compromissos sociais, devia estar pre-
parado com um vestibulum espaçoso para receber os seus clientes que iriam lhe
prestar homenagens. Na mesma passagem, o arquiteto aponta a basilica como um
componente das domus de nobres e magistrados, necessária para audiências que estes
concediam aos cidadãos.

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401
AUTORES

ALEXANDRE CARNEIRO CERQUEIRA LIMA


Mestrando-se em História Antiga pelo PPGHIS-IFCS-UFRJ
Orientadora: Professora Doutora Neyde Theml
Pesquisador do Laboratório de História Antiga (LHIA-IFCS-UFRJ)
Pesquisa: A carnavalização e práticas sociais em Atenas V séc. a. C.:
O simpósio privado

ANAFUNDPATRÓNDESMITH
Profesora Asociada de História de Ia Facultad de Filosofia y Ia Universidad
de Buenos Aires (UBA)
Licenciada (M.A.) e Doutora (Ph.D.) em História (Orientacion en Historia
Antigua Oriental) de Ia Universidad de Buenos Aires (UBA)
Co-diretora do Programa Internacional UBNUNR/UFRGS (Argentina!
Brasil): "Etnicidad, Procesos de Urbanizacion y Formaciones Estatales en
el Cercano Oriente Antiguo y el Mediterraneo."
Pesquisa: Las relaciones entre Israel, Egipto y Ia Mesopotamia Antiguos.

ANATERESAMARQUESGONÇALVES
Professora Assistente Mestre do Departamento de História da UFG
Doutorando-se pelo Departamento de História da USP
Orientador: Professor Doutor Norberto Guarinelo
Pesquisa: A oposição aos Imperadores durante o período dos Severos:
Segundo os textos de Herodiano, Dion Cassio, os brevários e as
Vidas da História Augusta

ANDRÉLEONARDO CHEVITARESE
Professor Assistente Mestre do Departamento de História do IFCS-UFRJ
Doutorando-se pelo Departamento de Antropologia Social da USP
Orientadora: Professora Doutora Haiganuch Sarian
Pesquisador do laboratório de História Antiga (LHIA-IFCS-UFRJ)
Pesquisa: Arqueologia, Antropologia e História Rural da Ática no
Período Clássico.

CIROFLAMARION DESANTANA CARDOSO


)- .. Professor Doutor Titular de História Antiga do Departamento de
História da UFF
Pesquisa: Literatura comparada: História Antiga

403
EDGARDLEITE
Professor Adjunto Doutor do Departamento de História da UERJ
Pesquisa: Sociedade e Religião na Índia Antiga

FÁBIO DESOUZALESSA
Professor Mestre em História Antiga pelo PPGHIS-IFCS-UFRJ
Pesquisador do Laboratório de História Antiga (LHIA-IFCS-UFRJ)
Pesquisa: História do Gênero: A mulher na Antiguidade Grega

FÁBIOVERGARACERQUEIRA
Professor Assistente Mestre da Universidade Federal de Pelotas - RS
Doutorando-se pelo Departamento de Antropologia Social da USP
Orientadora: Professora Doutora Haiganuch Sarian
Pesquisa: O lugar Social do músico em Atenas Clássica

FRANCISCOJOSÉ DASILVAGOMES
Professor Doutor do Departamento de Teologia da PUC do Rio de Janeiro
Pesquisa: Sociedade e religião: Cristianismo e o Império Romano.

GILVANVENTURADASILVA
Professor Assistente Mestre do Departamneto de História da UFES
Doutorando-se pelo Departamento de História da USP
Orientador: Professor Doutor Noverto Guarinelo
Pesquisa: Magia no Império Romano.

JOSÉ FRANCISCODEMOURA
Mestrando-se em História Antiga pelo PPGHIS-IFCS-UFRJ
Orientadores: Professora Doutora Neyde Theml e professor Mestre André
Leonardo Chevitarese
Pesquisador do Laboratório de História Antiga (LHIA- IFCS-UFRJ)
Pesquisa: A construção de uma utopia: A constituição dos Lacedemônios
- Xenofonte.·

JOSÉ MURILLODECARVALHO
Professor Doutor Titular de História do Brasil do
Departamento de História do IFCS-UFRJ
Pesquisa: A Construção Teórica da Ordem Conservadora.

404
HENRIQUE FORTUNA CAlRUS
Professor Assistente Mestre do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ
Doutorando-se pelo Departamento de Letras Clássicas da UFRJ
Orientadora: Professora Doutora Nely Pessanha
Apoio Técnico em língua Grega para o Laboratório de
História Antiga (LHIA- IFCS-UFRJ)
Pesquisa: Os deuses e a doença na Grécia Clássica.

KATZUSO KOIKE
Mestrando-se em História Antiga pelo PPGHIS-IFCS-UFRJ
Orientadora: Professora Doutora Neyde Theml
Pesquisador do laboratório de História Antiga (LHIA- IFCS-UFRJ)
Pesquisa: O lugar social dos saberes: Os "físicos" nos textos
da Grécia Arcaica.

MARGARETH MARCHIORI BAKOS


Professora Doutora do Departamento de História da PUC
do Rio Grande do Sul
Pesquisa: Sociedade e Cultura no Egito Antigo.

MARGARIDA MARIADECARVALHO
Professora Assistente Mestre do Departamento de História da UNESP-
Franca
Doutorando-se pelo Departamento de História da USP
Orientador: Professor Doutor Norberto Guarinelo
Pesquisa: Sociedade e Política: Heroificação de Juliano.

MARIACHRISTINA DECALDASFRElREROCHA
Professora Doutora aposentada do Departamento de História do IFCS-UFRJ
Pesquisadora do Laboratório de História Antiga (LHIA- IFCS-UFRJ)
Pesquisa: Sociedade e Cultura: o teatro grego.

MARIAREGINACÂNDIDO ,
Professora Mestre em História Antiga pelo PPGHIS-IFCS-UFRJ
Pesquisadora do Laboratório de História Antiga (LHIA-IFCS-UFRJ)
Pesquisa: Sociedade e Cultura: A magia na Grécia Clássica.

405
MARTAMEGADEANDRADE
Professora Assistente Mestre do Departamento
de História Antiga do IFCS-UFRJ
Doutorando-se pelo Departamento de História da USP
Orientador: Professor Doutor Ulpiano Bezerra de Menezes
Pesquisadora do Laboratório de História antiga (LHIA-IFCS-UFRJ)
Pesquisa: Construção de espaços sociais em Atenas Clássica

NEYDETHEML
Professora Adjunta Doutora do Departamento de História do IFCS-UFRJ
Pesquisadora do Laboratório de História Antiga (LHIA-IFCS-UFRJ)
Pesquisa: Formação de grupos informais em Atenas Clássica (apoio CNPq)

NORMAMusco MENDES
Professora Adjunta Doutora do Departamento de História do IFCS-UFRJ
Pesquisadora do Laboratório de História Antiga (LHIA-IFCS-UFRJ)
Pesquisa: Relações Sociais Informais e o Sistema de Domínio
Imperial Romano na Lusitânia.

PAULOFERNANDES LOURO
Professor Mestre em História Antiga pelo PPGHIS-IFCS-UFRJ
Pesquisador do Laboratório de História Antiga (LHIA-IFCS-UFRJ)
Pesquisa: Urbanismo em Atenas Clássica.

PAULOGABRIELHILUDAROCHAPINTO
Professor Mestre em Antropologia pelo PPAGACP do ICFH-UFF
Pesquisa: Sociedade e Religião no Império Romano

PEDRaPAULODEABREUFUNARI
Professor Adjunto Doutor do Departamento de História da UNICAMP
Pesquisa: História e Arqueologia de Roma Antiga.

REGIANAMARIADACUNHABUSTAMANTE
Professora Assistente Mestre do Departamento
de História Antiga do IFCS-UFRJ
Doutorando-se pelo Departamento de História da USP
Orientador: Professor Doutor Ciro Flamarion de Santana Cardoso
Pesquisadora do Laboratório de História Antiga (LHIA-IFCS-UFRJ)
Pesquisa: Processos de Integração e Desintegração: África Romana.

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