Folclore Brasileiro de A A Z

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RIF Resenhas & Críticas

Folclore Brasileiro de A a Z
Andriolli de Brites da Costa 1

Com os olhos da sugestão Januária Cristina Alves encontrava a carapuça do saci nas
flores vermelhas de uma árvore de Flamboyant, enquanto deitava ao lado da mãe, espichada
num carro de boi. Era ali que reconhecia, tal como Luís da Câmara Cascudo, o lugar do folclore
enquanto o primeiro leite materno de sua literatura (1984, p. 16). Não é sem propósito que a
autora escolhe esta narrativa para abrir a introdução de seu novo livro, o Abecedário de
Personagens do Folclore Brasileiro (SESC, FTD, 2017, 416 p). A dimensão da afetividade na
relação entre pesquisador e folclore - e, mais especificamente, com esse braço da oralidade
representado pelos mitos e lendas – é algo que não pode ser ignorado nos estudos da
tradição.
Tratar o objeto folclórico com o “devido carinho”, nos termos de Osvaldo Orico (1975,
p. 48) e Manuel Ambrósio Junior (1987, p. 16), reflete na própria lida com o imaginário
retratado. É possível produzir e compilar relatos sobre seres fantásticos carregados de

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Doutorando em Comunicação e Informação pela UFGRGS. Mestre em Jornalismo pela UFSC. Bolsista Capes.
Contato: [email protected]
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preconceitos2 e mesmo negligência, menosprezando as crenças populares, ignorando sua
potência simbólica O afeto é o que permite esta outra relação possível com a pesquisa, que
vem da comunhão – e não da rejeição.
Com essa base estabelecida, a autora aceitou a árdua tarefa de inventariar
personagens fantásticos do folclore brasileiro. Não na forma de um dicionário - como já fez o
supracitado Cascudo - mas na de um abecedário. Um conjunto de narrativas, organizadas em
ordem alfabética, tendo como foco o registro e a preservação. Acompanha cada uma das
criaturas uma ilustração do designer gráfico Berje, que investe numa estética urbana e que
lembra em parte o grafite e em parte as xilogravuras da literatura de cordel.
Diante deste desafio, Januária, que é mestre em Comunicação pela USP, estabeleceu
uma metodologia que faz questão de salientar: não trabalharia com relatos orais, apenas com
fontes escritas. No caso de disparidade muito grande entre os registros, algo comum no
universo da poética popular, teria privilégio a narrativa canônica, facilitando o
reconhecimento por parte do público.
E que público é esse? Mais uma vez a introdução da autora deixa claro. O objetivo é
por um lado voltado à formação sociocultural das crianças e jovens e de pesquisadores da
cultura brasileira. Por outro, também busca favorecer “a formação de leitores competentes e
apaixonados por suas raízes” (ALVES, 2017, p. 13). O cerne, a meu ver, está neste segundo
ponto. Como alerta Monteiro Lobato, em sua convocatória ao Inquérito sobre os sacis,
estudando os mitos que habitam o inconsciente podemos conhecer o povo. Conhecimento
traz compreensão e com ela, o amor. (LOBATO, 2008, p. 38).
Com o entendimento de que o Abecedário é uma obra introdutória e de divulgação,
há, entretanto, duas críticas possíveis e necessárias ao trabalho apresentado no que diz
respeito ao compromisso metodológico estabelecido. Primeiro deles diz respeito à
presentificação de relatos históricos, o segundo, a uma classificação questionável quanto a
origem dos mitos.
A vasta pesquisa bibliográfica apresentada pela autora é um dos pontos fortes do livro,
que as referencia muitas vezes localizando no tempo e no espaço o registro de uma criatura.

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Haja vista o que faz Antônio Maria do Amaral Ribeiro, o primeiro a registrar a lenda do Negrinho do
Pastoreio e a descrevendo como “uma superstição que tem tanto de absurda quanto de ridícula e exótica”
(RIBEIRO, 1858, p. 207).

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Sabemos, pela fonte indicada, que aquela descrição diz respeito ao passado. Por vezes, no
entanto, o livro peca neste movimento, e traz relatos de cronistas do Brasil colonial para
apontar uma suposta crença ainda presente.
Isso fica claro quando vemos, por exemplo, o verbete dedicado ao boto. “No
Amazonas, acredita-se que o boto pode assumir a forma de uma mulher, que tem cabelos até
os joelhos e que faz com que os homens a sigam até o rio, quando então os pega pela cintura
e os mergulha nas águas profundas” (ALVES, 2017, p, 58). Essa descrição vem diretamente do
texto do naturalista britânico Henry Walter Bates, que passou 11 anos de sua vida
pesquisando a região. Bates foi o primeiro a registrar narrativas de um boto antropomórfico,
em 1864, quando o golfinho dos rios ainda aparecia na forma de uma mulher. Depois disso,
pontua Cascudo, o mito do boto permanece “hermafrodita” até se fixar na forma masculina
antes do fim do século XIX (CASCUDO, 2012, p. 129).
A falta da consciência desta temporalidade faz parecer que ainda existem pessoas que
acreditam num boto que se transforme em mulher na Amazônia. Será que existem? Tendo
acompanhado o estado da arte das pesquisas etnográficas sobre boto na Amazônia, diria que
não. No entanto, considerando a falseabilidade necessária a qualquer trabalho de pesquisa
com algum rigor, posso apenas por indução afirmar que esta crença não existe. O método
escolhido por Januária, o recolhimento bibliográfico de textos clássicos, não permite dizer
sobre a crença patente contemporânea de qualquer um dos mitos.
Entra então mais um questionamento pertinente à área. Levando em conta a dinâmica
do folclore, existe a compreensão de que só pertence a essa dimensão do popular a cultura
que é viva, pertencente ao cotidiano, às práticas, aos modos de sentir, pensar e agir. Rossini
Tavares propõe, nos fundamentos da ciência do folclore, que ainda que toda expressão
folclórica que, em sua dinâmica própria, perde sua função, abandona o campo dos saberes
agentes para ingressar o da história do folclore (TAVARES, 2003, p. 3). Ora, se folclore é
identidade, de que maneira é possível falar que uma criatura registrada pela última vez há
quase cem anos é representativo do folclore de um povo? Certas criaturas presentes no livro
valem pelo registro da curiosidade, mas não possuem mais pregnância simbólica. Não se pode
dizer que são folclore, mas sim que foram.
Por fim, a última crítica a ser pontuada está na discussão da origem. Em cada verbete
do Abecedário, a autora finaliza com uma espécie de ficha catalográfica, que inclui: a) outros

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nomes conhecidos, b) região do país em que aparecem, c) personagens relacionados e d)
origem, sendo esta elegível entre brasileira, indígena, europeia, africana, oriental e universal.
É neste processo de catalogação que o trabalho de curadoria e pesquisa se fragiliza a partir de
algumas decisões. No texto dedicado ao bacurau, por exemplo, conhecemos sua narrativa
enquanto pássaro encantado de olhos de fogo cujas penas teriam propriedades mágicas
(ALVES, 2017, p. 398). O texto o relaciona com a coruja grega, que, segundo Aristóteles, era
capaz de ordenhar ovelhas. Termina, portanto, definindo a origem do mito como Europeia. Os
nexos que ligam o bacurau à Europa, no entanto, ficam meramente subentendidos.
Ao pensar em uma classificação por origem, podemos pensar em mitos autóctones e
outros coloniais - isto é, que surgiram graças ao estabelecimento das trocas culturais e suas
relações de poder e dominação. No entanto, a existência de um relato anterior de pássaro
fantástico serve como origem para todos os demais? É necessário haver um lastro que rastreie
uma possível diáspora de um mito da Europa até o Brasil? A mera experiência humana é mais
que suficiente para produzir encantados. Buscar uma origem incerta foi um risco
desnecessário que a obra não precisava ter se proposto.

Ficha Técnica:
Título: Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro.
Autora: Januária Cristina Alves
Ilustrações: Cezar Berje
Editora: Edições Sesc São Paulo e FTD Educação
Ano: 2017
Número de páginas: 416 p.
Tamanho: 15 x 22 cm. 589g
ISBN 978-85-9493-050-7

Referências

ALVES, Januária Cristina. Abecedário de personagens do folclore brasileiro. São Paulo:


SESC/FTP, 2017.

AMBRÓSIO JUNIOR, Manoel. No meu rio tem mãe d’água. Folclore do Vale São Francisco.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1987.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global, 2012.
______. Literatura Oral no Brasil. São Paulo: EdUSP, 1984.

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LOBATO, Monteiro. Saci Pererê: Resultado de um inquérito. São Paulo: Globo, 2008

ORICO, Osvaldo. Mitos ameríndios e crendices amazônicas. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1975.

RIBEIRO, Antonio Maria do Amaral. Uma lenda do Rio Grande. In: Almanach de Lembranças
Luso-brasileiro. Lisboa: Imp. Imprensa Nacional, 1857.

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