Cactácea v02 n05 - A Ferida Colonial Não Vai Cicatrizar 4-15

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Resenha do ensaio de Walter Mignolo: “Desobediência epistêmica.

Retórica da modernidade, lógica da colonialidade e gramática da


descolonialidade”.

Sandro A. Baraldi

Este ensaio (p.43) de Walter Mignolo foi concebido em uma reunião do grupo M/C
em 2004 e editado em 2010 pela Ediciones del Signo, Argentina, Colección Razón
Política.

As perguntas norteadoras foram:

1. De que maneira a Teoria Crítica de Horkheimer poderia ajudar a pensar o atual


estado político da América Latina? O pressuposto que rege esta pergunta é o conflito
que as práticas das ideologias ocidentais impõem às culturas desvalorizadas dos
povos colonizados.

2. Como poderia ajudar uma Teoria Crítica que surgiu na história interna européia
quando os judeus foram tratados como colonizados internos desde 1492?

3. Que transformações são necessárias na Teoria Crítica de maneira que incorporem


questões como gênero, raça, natureza, hoje plenamente incorporadas politicamente?

4. Como utilizar esta teoria no projeto modernidade/colonialidade e descolonização?


Ou é melhor abandoná-la?

A intenção deste debate não é formular um manifesto de consenso “que mata as


perguntas em vez de estimular a reflexão” (p.8).

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Revista Cactácea – V.02 – N.05 – ISSN: 2764-0647– Julho de 2022 – IFSP: Câmpus Registro

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Capítulo I – Desprendimento epistemológico

A modernidade e a modernização são promovidas pelo neoliberalismo por meio das


promessas de felicidade total a todos os que curvarem às suas crenças. Porém a
modernidade oculta um lado sombrio: a reprodução constante da “colonialidade” – a
imposição forçada de um pensamento único, a monocultura da mente (p.24). Esta
lógica perversa exige, como reação, a descolonização da mente e do imaginário, ou
seja, dos conhecimentos (o saber) e do ser (a subjetividade) (p.9). Isto porque o
conhecimento é um instrumento imperial de colonização (p.11). O conhecimento
encontra-se nos domínios da linguagem, da memória e do espaço (p.10). Está
implícito, portanto, que precisamos primeiramente descolonizar o conhecimento
antes de pensar em descolonização em vez de tomar o poder do Estado (nota p.10).

A estrutura que sustenta a colonialidade é uma rede de crenças onde se atua e se


racionaliza a ação e foi denominada Matriz Colonial do Poder. Ela controla: 1. a
economia; 2. a autoridade; 3. a natureza e seus recursos; 4. o gênero e a sexualidade;
5. a subjetividade e o conhecimento.

Cada um desses guarda-chuvas epistemológicos se subdivide de várias maneiras


criando campos de atuação. Por exemplo a colonialidade do sentir controla o que
ouvimos, o que vemos; a colonialidade da compreensão controla a hermenêutica; por
sua vez a colonialidade do ver controla a beleza; etc.

O alicerce utilizado pela Matriz Colonial do Poder é o conceito excludente de


totalidade que nega o diferente gerando o efeito de monocultura indiscutível: a
pretensiosa específica cosmovisão de uma etnia particular imposta como
racionalidade universal (p.17).

Criticar a totalidade excludente sob a perspectiva da colonialidade é uma das


alternativas para a descolonização do pensamento. Outra alternativa que produz
fraturas no monólito totalitário é a ideia de desprendimento epistêmico ou delinking,
sempre sob a ótica dos povos colonizados e não sob a ótica da pós-modernidade, que
é um movimento europeu, cuja colonialidade do poder permanece incorporada. “Em
outras palavras, o giro des-colonial é um projeto de desprendimento epistêmico na
esfera social (no âmbito acadêmico também pois é uma dimensão do social),

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enquanto que a crítica pós-colonial e a teoria crítica são projetos de transformação ue
operam e operaram basicamente na academia européia e estadounidense” (p.15).

A simples negação de todas as categorias européias não é a solução porque persiste


de modo imanente a perspectiva européia, então mudar o conteúdo de nada adianta.
Segundo Quijano para desvincular-se dessa racionalidade utiliza-se o
desprendimento epistêmico como ponto de partida do pensamento descolonial (p.46):
coexistir na fronteira epistêmica dos mundos de existências de maneira conflituosa,
para criticar e rechaçar a Matriz Colonial do Poder (p.48).

Capítulo II – A retórica da modernidade e a lógica da colonialidade

Segundo Dussel a modernidade contempla o conceito racional de emancipação e o


mito irracional de centralidade que justifica a violência genocida (p.18).

A emancipação foi o conceito moderno usado para afirmar a liberdade da burguesia.


Para exportar esse conceito ao resto do mundo a burguesia passou a ser “a
humanidade” (p.22) e a sua racionalidade o pensamento único, a monocultura da
mente. A partir daí tanto colonizador quanto colonizado, como disse Fanon, ficaram
sujeitos à Matriz Colonial de Poder (p.23). E as tentativas de se libertar da tirania da
Matriz Colonial do Poder, todas as revoluções do final do século XVIII até meados
do XX (p.25), não excluíam a emancipação de seu ideário, ao contrário, era desejada.
Nenhuma revolução, portanto, jamais atacou a episteme fundacional da Matriz
Colonial do Poder (p.26) originária da modernidade/colonialidade. A modernidade
mundialmente propagada tornou-se, desse modo, um processo mundial não-
exclusivo da Europa que dividiu o mundo em dois: europeus e não-europeus. Quando
a racionalidade moderna se impõe como projeto emancipatório nas colônias a Matriz
Colonial do Poder será seu modus operandi. “Tudo será ditado por e desde o ponto
de origem espaço-temporal de onde se concentra o poder” (p.29). “Dito de outra
maneira, é a matriz colonial, sua construção e transformação, o que torna possível
uma organização sócio-histórica identificada por um mundo moderno/colonial”
(p.76). E a violência genocida é a maneira de impor essa necessidade centralizadora e
totalitária.

A Descolonialidade, por outro lado, que surge das ruínas dos povos colonizados,
ataca frontalmente a Matriz e o pensamento único (p.27) criando um ambiente
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interativo de coexistência de diversas culturas, mundos, linguagens, etc., em
constante construção crítica. Como “Nada possui a razão e a verdade absoluta”
(p.30), dependendo da circunstância não há mal algum em utilizar ou não conceitos
originários da Europa, não é uma proibição, só depende das ações entre as diversas
coexistências. Europa que significa “o legado Greco Romano – Itália, Espanha,
Portugal, França, Inglaterra e Alemanha” (nota p.30).

Os diversos universais abstratos, cristianismo, liberalismo, marxismo, islamismo,


saíram e saem de moda, mas não a lógica colonial que permanece estruturada pela
Matriz. “Como Fanon já havia colocado, a decolonização é uma operação dupla que
inclui os colonizados e os colonizadores” (p.31). Por isso a descolonialidade deve se
centrar na figura política e filosófica do damné (condenado). O colonizador ou o
guardião da Matriz, o representante colonial, que esteja incluído no projeto
descolonial, para ser agente da descolonização precisa ser guiado pela mão do
damné, que deve liderar a mudança. Os articuladores da mudança devem ser aqueles
que sofreram e sofrem as agruras impostas pela Matriz Colonial simplesmente
porque não possuem a perspectiva do subalterno. O potencial descolonial advém das
populações subalternizadas, portanto, é enorme pois nativos, imigrantes e
descendentes, afro-americanos, afro-asiáticos, latinos, etc., sofreram demais sob as
mãos do império

A de-colonialidade é um projeto (p.19) que visa superar a cosmovisão eurocêntrica


“mudando os termos [baliza, marco, parâmetro significado] e não só o conteúdo da
conversação” (p.33) pelo desprendimento (como já foi visto o desprendimento
epistêmico consiste em coexistir na fronteira epistêmica dos mundos de existências
de maneira conflituosa, para criticar e rechaçar a matriz colonial). Ou seja, romper
com a forma com que assumimos as “palavras e as coisas” como já foi sugerido por
Foucault (nota p.36).

O desprendimento requer o conhecimento dos conceitos europeus da Bíblia, de


Adam Smith, de Kant, de Marx, etc., para que sejam utilizados pois são referências
da retórica da modernidade, pois já estão entranhadas no nosso modo de pensar,
insuficientes, porém, como projeto decolonial (p.33). Isso nos faz adentrar o
incontrolável terreno da desnaturalização terminológica: desnaturalizar conceitos e
campos conceituais que totalizam uma realidade única (p.35). “Portanto o
desprendimento não significa negar e ignorar o que não se pode negar, mas saber
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como utilizar técnicas ou estratégias imperiais com propósitos descoloniais” (p.39).
“Em outras palavras, o desprendimento seria difícil de pensar desde uma perspectiva
marxista, porque o Marxismo oferece um conteúdo diferente mas não uma lógica
diferente” (p.41).

Capítulo III – A colonialidade: o lado mais escuro da modernidade

1. A retórica da modernidade e a lógica da colonialidade são duas faces da mesma


moeda (p.46). A modernidade se refere ao modo de organização da vida social da
Europa do século XVII. Tabaco, açúcar, café, cacau e especiarias passaram a fazer
parte dos hábitos dos europeus e junto com esse novo comércio a necessidade de
colônias e mão de obra escrava para dar conta da demanda desses produtos exóticos
(p.46). Logo, modernidade não existe sem colônias e estas não existem sem a
colonialidade (p.50) e sua estrutura: a Matriz Colonial do Poder, sua lógica. Assim
foi a expansão da cosmovisão eurocêntrica: o que é relevante para os brancos
europeus deve ser relevante para todo o mundo; o que não é relevante para eles não é
relevante para ninguém (p.52).

Mesmo os intelectuais progressistas europeus, originários do colonialismo interno na


Europa, não se deram conta dos horrores da colonialidade visto que suas teorias
filosóficas foram produzidas sob a visão cosmológica européia e, especialmente, a
emancipação justificava tudo pois levaria aos não civilizados e subdesenvolvidos a
benesse da civilização (p.56). Em tempo: “O colonialismo interno nas colônias foi
paralelo ao colonialismo interno na Europa, onde os judeus ocuparam na Europa
lugares equivalentes aos negros e indígenas nas Américas” (p.60).

2. O fortalecimento da subjetividade européia começa com o renascimento europeu


(p.61). No século XVI Bartolomé Las Casas identifica 4 tipos de bárbaros: os que
careciam de governo, de conhecimento do latim, de escrita alfabética e os que viviam
em estado de natureza (p.62). Claramente esta visão não é derivada dos povos não
europeus ou “sem história” (p.63). A política identitária hegeliana (século XVIII)
também consolida essa cosmovisão européia e justifica amplamente a colonização.
Sumariamente, ela diz que os europeus precisam se afirmar enquanto povo e foi isso
que fizeram durante as colonizações (p.61).

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No século XX, após a Segunda Guerra Mundial, a retórica moderna permaneceu
mudando seu conteúdo para países desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas não sua
lógica. Assim reorganizou-se a diferença colonial mudando os termos, mas dizendo a
mesma coisa. O mundo subdesenvolvido ou “atrasado” (p.66) não produz ciência ou
filosofia; só produz cultura (p.67).

A lógica da modernidade ainda nos persegue, não é uma cosmovisão datada e


extinta. Mesmo a Revolução Russa de 1917 “não foi mais que uma escaramuça
familiar, uma luta no interior da modernidade: liberais contra socialistas, privilégio
do estatismo sobre a mão invisível” (p.68).

3. Categorias foram criadas para tratar os “outros”, os não europeus: a diferença


imperial e a diferença colonial. O que as distingue: a diferença colonial é a
referência, pode-se fazer o que quiser com o povo mais fraco e inferior. A diferença
imperial sustenta a inferioridade, mas limita suas ações porque o povo não europeu
em questão é poderoso demais para ser subjugado. E aí se aplicam várias desculpas
para dominá-lo como os 4 tipos de bárbaros (p.70), mas não a emancipação pois este
povo já tem tecnologia e poder suficiente para se defender.

Las Casas sabia que o sultanato Otomano (no século XVI) tinha o mesmo poder que
os europeus, talvez até mais poderoso, por isso para eles a diferença era imperial. Já
para os Astecas e Incas, embora civilizados tal qual os europeus, eram vistos como
crianças com necessidade de orientação. Para estes a diferença era colonial. Só no
século XIX, quando o mundo árabe e islâmico perdeu “poder imperial” por conta da
expansão colonial da Inglaterra e França, foram tratados como colônia, ou seja,
“recuou” seu status para “diferença colonial” (p.68 a 69). Eu penso, a partir do
preposto, que a única emancipação prescrita para os não europeus é ser sempre
colônia pois não se estimulará em nenhuma circunstância uma civilização que possa
enfrentar os europeus. Como vimos, até mesmo uma civilização que competia com a
Europa foi destruída e “alçada” – melhor dizendo “reduzida” – à colônia.

Enquanto [neo]liberalismo e comunismo são herdeiros da ilustração européia (p.73)


a invasão do Iraque foi literalmente outra coisa. Os primeiros só estão disputando o
segundo lugar, enquanto que os últimos são presas de ambos.

4. Sobre os termos linguísticos: “Como em qualquer assunto da linguagem, as


respostas implicam universos de sentido mais do que a determinação do objeto de
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referência. Para evitar a ‘expectativa moderna’ e sua ênfase na de-notação, digamos
que as palavras não nos conduzem ao verdadeiro significado da coisa, mas a formas
de consciência e a universos de sentido nos quais a palavra adquire significado. O
significado não é uma questão de objetividade referencial mas uma reflexão
cognitiva (epistêmica e hermenêutica) forjada e incorporada em desenhos
geopolíticos particulares” (p.75). Por exemplo, para a modernidade os termos “novo”
e “novidade” nos fazem alcançar o “progresso” e a “emancipação” sem mencionar as
consequências dessas mudanças (p.76). O que se omite é a falta de alternativas, o
caminho já está prescrito e não há espaço para outros formatos.

O “Capitalismo” é apenas uma das esferas da Matriz Colonial, o controle imperial da


economia. Tal qual as outras esferas da Matriz, está inter-relacionado com o
significado que foi enunciado pela lógica colonial moderna que reproduz, via
conhecimento, a justificação racional da ordem do mundo: “o racismo e o patriarcado
que subjaz a classe-étnica europeus brancos e cristãos” (p.80) e de suas preferências
particulares. “Cada um deles [os cinco níveis da Matriz Colonial] está entrelaçado
com os outros e não pode ser entendido isoladamente sem compreender os outros. O
que é que os entrelaça? A enunciação [declaração]: a classificação racial e a ordem
normativa patriarcal. É assim que, em última instância, a enunciação e o controle do
conhecimento que a matriz colonial entrelaça, se mantém e se transforma” (p.80). O
patriarcalismo está visível na falta de consideração para as mulheres no século XVI e
a classificação racial evidente para os mestiços e não europeus. O racismo surge da
diferença dos marcadores morfológicos e fisiológicos que não se ajustavam ao
modelo normalizado estabelecido por homens brancos cristãos. O racismo foi uma
operação espistémica que institucionalizou a inferioridade racial e justificou a
violência genocida. Então, o racismo e a colonialidade do ser são a mesma operação
cognitiva (p.84).

O Capitalismo é a filosofia econômica que foi aplicada nas Américas por meio do
racismo e do patriarcado; distinto do capital que são os recursos. Não podemos tratar
este dois termos como se um fosse a mesma coisa que o outro. “O Capital” de Marx
trata do capitalismo mais do que do capital (p.86). Distinguir estes dois termos é
fundamental para compreender que o capital são os recursos usados pelos povos e
eles diferem dos recursos usados por outros povos. O Capitalismo é uma maneira
particular de uso de recursos dos europeus homens brancos cristãos que se

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consolidou a partir do século XVI com a colonização das Américas. Ele não é
absolutamente a única solução econômica para o mundo (p.88). Logo, a imposição
do Capitalismo não faz eco com as necessidades de outros povos não europeus. A
problemática dos povos subalternos depende muito mais das suas condições geo e
corpopolíticas (ver capítulo IV item 1). “O pensar descolonial exige um giro
epistémico em que a afirmação de ‘ser de onde se pensa’ substitua a de ‘saber que se
existe porque se pensa’” (p.93). Ou seja, substituir a egopolítica eurocentrada pela
corpopolítica localizada.

Capítulo IV – Prolegômeno (noções preliminares) a uma gramática (prescrições,


normas) da descolonialidade

1. A construção das noções para descolonizar estão em processo no planeta. Por isso,
Mignolo sugere conceitos diferentes para se pensar a descolonialidade: a geopolítica
e a corpopolítica sobre a hegemonia da teopolítica e da egopolítica, os dois pilares da
colonização das almas e das mentes.

A teopolítica do conhecimento, que pertence à dimensão abstrata, se refere à situação


do corpo e da alma do sujeito, como dispor desse corpo em relação à sua alma (p.95).
A egopolítica do conhecimento, que pertence também à dimensão abstrata, se refere
à racionalidade do sujeito, a relação corpo-mente, a racionalização, à comparação, o
ego (p.95), quem é superior, quem é inferior, quem deve mandar ou obedecer.

A geopolítica do conhecimento, a fronteira como perspectiva epistémica subalterna


(p.105), onde se desenvolve a vida, o entorno, o formato sócio-político que nos
envolve diretamente, não como império, mas como habitação regional (ver p. 120),
que pertence à dimensão física, se refere ao lugar em que está inscrito o sujeito, um
europeu vai pensar como europeus, um brasileiro, como brasileiros por conta da sua
vida social inscrita em determinado local (p.94), coordenado com a corpopolítica do
conhecimento (a chicana, a lésbica) (p.105), que também pertence à dimensão física,
se refere a como este sujeito é visto na sociedade a que pertence, seu corpo como um
marcador social (p.94), se é branco ou negro e suas relações raciais e sociais que
determinam suas oportunidades. Geopolítica e corpopolítica são intrínsecos um ao
outro. A descolonização do pensamento pode começar por se pensar a partir destas

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duas últimas categorias filosóficas “que são mecanismos para aprofundar e ampliar o
giro descolonial” (p.105).

Chegou, portanto, a hora de reescrever a história mundial desde a corpopolítica e a


geopolítica do conhecimento. Desprender-se criticamente das marcas arbitrárias
coloniais para construir uma história própria baseada nesses dois conceitos
principais. A Teoria Crítica de Horkheimer sem reformas internas de nada ajuda pois
mantém o viés egopolítico do conhecimento, ou seja, preserva a racionalidade
eurocêntrica. Por isso, é necessário torná-la uma crítica descolonial que questione a
razão e sua característica mono-tópica (p. 98) eurocêntrica.

Para descolonizar epistemicamente o paradigma hegemônico eurocentrado existem


dois procedimentos de desprendimento (p. 97):

a. descobrir a parcialidade e as limitações da teopolítica e da egopolítica do


conhecimento (adquirir informações) e compreensão (interiorizar o conhecimento);

b. expandir a geopolítica e a corpopolítica fazendo-as crescer por meio das


perguntas: conhecer o quê (adquirir informações)? Compreender o quê (interiorizar o
conhecimento)? E para quê (o uso desse conhecimento/compreensão)?

Não basta a denúncia do que foi invisibilizado pela colonialidade; é necessária uma
ação epistêmica como sugerido pelos documentos da Universidad Intercultural de los
Pueblos Indígenas del Ecuador: “aprender a desaprender, para poder assim re-
aprender” (p.98).

Vamos ver como funciona uma crítica descolonial em Marx.

Marx investigou o Capitalismo – a filosofia do capital eurocêntrica – sob a ótica da


força de trabalho que é o proletariado, concebendo a sua emancipação por meio do
seu texto sobre a lógica do capital (p.100), mas sem jamais negar seus princípios.
Talvez tenha sido a ferida colonial interior européia, o tratamento a que eram
destinados os judeus como Marx, Freud e Spinosa, que gerou a raiva necessária para
revelar o que a burguesia cristã estava encobrindo. “Em seu pensamento crítico,
todos eles estavam arraigados na construção de memórias e subjetividades européias
e não estavam em condições de ver o paralelismo entre a sua situação e a ferida
colonial do exterior (por exemplo, os indígenas, africanos, árabes, muçulmanos,
etc.)” (p.100). Atualmente, embora diversa, a estrutura do Capitalismo segue a lógica

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imposta pela Matriz Colonial, portanto algo mudou no seu conteúdo porém sem
mudar em nada a sua lógica. A “classe”, a “raça” e o “gênero” são termos diferentes,
que dizem coisas diferentes, mas cujo propósito é o mesmo da lógica da
modernidade: a subjugação das pessoas para fins eurocêntricos sob a estrutura da
Matriz. Os projetos de liberação e descolonização do planeta tem por inimigo a
Matriz Colonial mais do que o Capitalismo (p.102).

Sacralizar um autor, um sistema, uma ideia, segue o sentido oposto da


descolonização porque a geopolítica e a corpopolítica de um sujeito ou de uma
sociedade não coincide necessariamente com a cosmovisão que se quer hegemônica.

2. Outro exemplo que orienta o giro descolonial é o argumento de Gloria Evangelina


Anzaldúa que subverte o argumento do filósofo mexicano pro-nazi José
Vasconcelos. Enquanto este propôs a formação de uma quinta raça masculina
heterossexual, a raça cósmica, fusão das raças branco, africano, asiático, indígena,
ela torce o argumento propondo “a consciência da mestiça”, feminina e homossexual.
“Anzaldúa dá uma volta no prato [não vira o prato de cabeça para baixo, só gira
longitudinalmente], propõe um giro epistémico. ‘A consciência da mestiça’ muda
radicalmente a direção da análise e introduz uma fratura na egopolítica do
conhecimento que sustenta o saber disciplinário” (p.108). O conceito de fronteira é
dela também.

Anzaldúa também propõe que os brancos, principalmente eles, se unam às lideranças


dos povos colonizados – sempre de maneira crítica e não fanática – porque estes
povos são responsáveis pela riqueza nababesca dos colonizadores europeus.

3. A gramática da descolonialidade começa com a conscientização dos atores que


tiveram sua humanidade negada. Não serão políticas públicas ou “generosidade” que
resolverão esta negação pois estão presas à teo e egopolíticas eurocêntricas.
“Necessita-se do giro descolonial e a partir dos horizontes de vidas pluriversais mais
que universais. Isto é, horizontes de vida baseados na pluriversalidade como projeto
universal” (p.113). Os mecanismos de geo e corpopolíticas do conhecimento são
fundamentais para implementar este projeto cujo sentido é de baixo para cima.

4. Analisar a retórica da modernidade e a lógica da colonialidade é o processo de


desprendimento inaugural da descolonização do saber e do ser segundo Quijano
(p.114).
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Desprender-se da modernidade/colonialidade e do eurocentrismo já é uma parte do
controle do conhecimento. Porém, como povos subalternos ainda estamos sob a
hegemonia européia que planeja a teo e egopolítica e ela é imposta na geo e
corpopolítica que nos faz sofrer “na pele” os idealismos eurocêntricos. Então, habitar
a fronteira imperial/colonial permitirá uma racionalidade-outra baseada nas
experiências e expectativas geo e corpopolíticas. Trazer as experiências dos povos
negros, indígenas, homossexuais, queer, etc., para reconstruir uma sociedade
pluriversal é a prioridade. Mas “Universalizar [por exemplo] a experiência do negro
ou da chicana lésbica seria voltar a cair na mesma lógica na qual foi capturado todo
fundamentalismo (seja ele europeu, indígena, africano ou latino-americano” (p. 120).
“Cada história local […] habita sua própria fronteira, sua própria linguagem, sua
própria memória, sua própria ética, sua própria política e política econômica”
(p.121). O que temos em comum com essas histórias locais é a inevitável presença
do mundo moderno/colonial e esta experiência comum a principal conexão entre os
povos subalternos. “O pensamento crítico fronteiriço é então o método que conecta a
pluri-versalidade (diferentes histórias coloniais capturadas pela modernidade
imperial) com o projeto uni-versal de desprendimento do horizonte imperial, da
retórica da modernidade junto com a lógica da colonialidade, e de construção de
outros mundos possíveis onde não exista um líder mundial, de direita, de esquerda ou
de centro” (p. 122). Esgotaram-se as soluções originárias do ocidente derivadas de
Platão, Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Locke, Marx, Gramsci, Carl Schmitt e Leo
Strauss (p. 124). A comunicação precisa ser intercultural para intercambiar
experiências e significados inter-epistémicos e dialógicos rumo ao projeto da pluri-
versalidade. Consumir para viver, não viver para consumir; trabalhar para viver, não
viver para trabalhar. Vida livre em vez de mercado livre; viver bem em vez de viver
melhor que o outro, uma construção comunal que dispense um plano mestre. Ou, se
tiver um plano mestre, que seja construído por meio de um processo comunal e não
por uma elite que sabe o que é melhor para todas e todos.

Bibliografia

Mignolo, Walter. Desobediencia Epistémica. Retórica de la modernidad, lógica de


la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Ediciones del Signo, Colección
Razón Política. Buenos Aires, Argentina. 2010.

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Sandro Adrián Baraldi
Doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo, é editor da
Revista Cactácea e pesquisador do Grupo de Pesquisa Mandacaru: educação e
filosofia <http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/4273081596423963> e do
GRUPEFE. ORCID: <https://orcid.org/0000-0001-5055-2071>. Plataforma Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/6246489151782898>.

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