Documentação Pedagógica
Documentação Pedagógica
Documentação Pedagógica
SÃO LEOPOLDO
2017
Capa criada por Daniel S. da Cunha a partir de imagem gratuita para uso comercial
(atribuição não requerida). Contato: [email protected].
Cláudia Inês Horn
São Leopoldo
2017
H813d Horn, Cláudia Inês.
Documentação pedagógica : a produção da criança
protagonista e do professor designer / Cláudia Inês Horn. –
2017.
263 f. : il. ; 30 cm.
Aprovada em 24/02/2017.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________________________
Professora Dra. Maria de Fátima Pereira – UPORTO
___________________________________________________________________________
Professor Dr. Walter Omar Kohan – UERJ
___________________________________________________________________________
Professora Dra. Maria Cláudia Dal’Igna – UNISINOS
___________________________________________________________________________
Professora Dra. Maura Corcini Lopes – UNISINOS
ORIENTADORA
__________________________________________________________________________________
Professora Dra. Elí Terezinha Henn Fabris – UNISINOS
Ao Afonso, meu querido filho, que chegará ao
mundo por volta de maio de 2017! O nascimento
de um novo ser traz em si a potência de criação e
renovação de um mundo cada vez melhor!
AGRADECIMENTOS
Há quem diga que passamos a viver melhor ao concluir o Doutorado, ou ainda, que há
mais vida fora do Doutorado ou depois dele. Creio que a experiência de doutoramento não
está fora – fora de mim – tampouco depois – depois de seu término. A escrita desta Tese,
hoje, faz parte do meu corpo. A experiência de estar no Doutorado em Educação está
atravessada pelos modos como eu vivo neste mundo! A passagem da vida durante o período
dos estudos, longe de ser apenas cronológica, sobretudo, foi intempestiva. E por permitir-me
transformar coisas e ser transformada com esse processo, muitas pessoas estiveram “ENTRE”
– entre mim e os livros, entre mim e a escrita, entre mim e os outros. Por isso há que se
agradecer – pelas oportunidades, pelos encontros, pelas amizades...
Agradeço à Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em especial, ao
Programa de Pós-Graduação em Educação, por receberem-me de modo respeitoso e
comprometido, valorizando e apoiando minha caminhada como estudante.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e
ao Programa de Excelência Acadêmica (PROEX), pela concessão da bolsa parcial de estudos,
o que possibilitou minha permanência no curso.
Sou muito grata à professora e orientadora Dra. Elí Terezinha Henn Fabris por
acolher-me como sua orientanda de forma tão carinhosa e comprometida no ano letivo de
2013. Inesquecíveis serão estes anos que juntas passamos. Suas orientações, sempre
inteligentes, rigorosas e atentas, constituíram-me acadêmica e pessoalmente. Tenho uma
grandiosa admiração pela “profe” Elí, em especial, pela sua recusa constante em imobilizar o
pensamento educacional.
Aos demais professores do curso de Doutorado em Educação – Dr. Danilo Streck, Dra.
Edla Egert, Dra. Gelsa Knijnik, Dra. Maria Cláudia Dal’Igna e Dra. Maura Corcini Lopes –,
com quem tive oportunidade de conviver e de viver a educação. Entre aulas, estudos,
trabalhos, intervalos, esses mestres fizeram movimentar pensamentos interessados na
estranheza daquilo que está posto.
Agradeço aos professores componentes da banca – Dra. Maria de Fátima Pereira
(UPORTO), Dr. Walter Omar Kohan (UERJ), Dra. Maria Cláudia Dal’Igna (Unisinos) e Dra.
Maura Corcini Lopes – pela leitura atenta e pelas contribuições de seus criteriosos pareceres,
desde a banca de qualificação, que mobilizaram meu pensamento.
Sou grata pelas amizades que construí com os colegas da Turma de 2013 do
Doutorado em Educação da Unisinos. Foi gratificante conhecer cada um, com suas vontades,
suas demandas de pesquisas, seus cansaços e emoções. Em especial, agradeço às amigas
Patrícia e Neila, sempre tão cuidadosas com os Estudos Foucaultianos, e também a Daniela,
Juliana, Viviane, Leandro, Éderson e Anibal, pelos encontros, cafés, risadas.
Ao “grupo de orientação da ‘profe’ Elí”, ao Team, sou imensamente grata. Aos
colegas Sandra de Oliveira, Cristiane Fensterseifer Brodbeck, Antônia Gomes Neves, Viviane
Weschenfelder, Sabrine Hetti Bahia, Joelma Fernandes, Carolina Siqueira, Daiane Scopel
Boff, Natacha Nerbas, Luís Pedro Willesheim e Claudia Cerutti, agradeço por compartilharem
a ajuda mútua na construção de nossas teses e dissertações. Ao colocarmos as escritas no
meio de nossas vidas, entre nós, compartilhamos e educamos a nós mesmos.
Aos professores e colegas do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências,
Pedagogias e Diferenças – GIPEDI/UNISINOS, com quem muito aprendi. As leituras, os
estudos e os debates fortaleceram a realização desta Tese.
Agradeço ao Centro Universitário Univates, meu local de trabalho ao longo dos quatro
anos de Doutorado, o qual me possibilitou condições para seguir os estudos, apoiando a busca
pela formação como Doutora em Educação. Nesse espaço, conheci colegas de trabalho
especiais, que de formas muito diferentes me incentivaram a seguir os estudos: Jacqueline
Silva da Silva, Morgana Domênica Hattge, Fabiane Olegário, Mariane Ohweiler, Danise
Vivian, Angélica Munhoz, Suzana Schwertner. Além dessas pessoas queridas, muitas
Daianes, Elisabetes, Elisetes, Grasielas, Lucianes e Silvanes foram presenças amigas e
carinhosas em meio aos estudos do Doutorado.
Agradeço às escolas de Educação Infantil do interior do Rio Grande do Sul que
cederam materiais empíricos que significaram potência para este estudo. Às direções e corpo
docente, muito obrigada.
Agradeço à minha família, em especial, a meus pais, Tânia Inês Mallmann Horn e José
Clóvis Horn, e ao meu irmão, Eduardo José Horn, por mostrar-me a cada dia que a vida vale a
pena ser vivida a cada momento. Não há palavras suficientemente belas para expressar o
quanto eles são importantes em minha vida. Desde pequena, foram eles que me ensinaram o
valor dos estudos. Ao meu esposo, Luis Gustavo Einloft, agradeço por apoiar meus estudos,
aceitar algumas ausências e ser parceiro em todos os momentos, inclusive para esquecer um
pouco as demandas do Doutorado. À família do Gustavo, especialmente à minha sogra,
Norma Lai von Muhlen Einloft, pelo apoio e generosidade.
Não! Não estou procurando uma alternativa; não se pode encontrar a
solução de um problema na solução de um outro problema levantado
num outro momento por outras pessoas. Veja bem, o que quero fazer
não é a história das soluções, e essa é a razão pelo qual não aceito a
palavra ‘alternativa’. Eu gostaria de fazer a genealogia dos problemas,
das problematizações. Minha opinião é que nem tudo é ruim, mas tudo
é perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo
é perigoso, então temos sempre algo a fazer. (FOUCAULT, 2010, p.
299).
RESUMO
A presente Tese tem por objetivo problematizar as práticas de registro docente sobre as
aprendizagens das crianças na Educação Infantil, mais especificamente, as práticas
denominadas de documentação pedagógica. Com sustentação nos aportes teórico-
metodológicos de Michel Foucault e seus comentadores, desenvolveu-se uma analítica das
tecnologias e estratégias de poder, tanto em relação à condução da conduta dos outros (o
governo dos outros), quanto em termos de condução da conduta de si mesmo. Ao
desenvolver tal analítica, a investigação procurou compreender como as práticas de registro
da documentação pedagógica operam enquanto tecnologia de governamento da infância,
produzindo modos muito particulares de ser sujeito infantil na escola contemporânea. Ao
analisarem-se tais práticas, percebeu-se a mobilização de outras formas de constituição
docente e a emergência de outros modos de ser professor nas escolas de Educação Infantil. A
pesquisa valeu-se de dois conjuntos de materialidade de análise – 17 obras denominadas neste
trabalho de referenciais italianos, publicadas no Brasil a partir do final da década de 1990;
exemplares de documentação pedagógica elaborados por professores de escolas de Educação
Infantil do interior do Rio Grande do Sul, Brasil. Os referenciais italianos foram selecionados
por conterem fundamentação teórico-metodológica de tais práticas, sendo utilizados pela
comunidade docente no Brasil por conta de sua tradução e ampla divulgação. A partir da
análise dos materiais – tendo como grade de inteligibilidade a noção foucaultiana de
governamentalidade –, perceberam-se deslocamentos nas práticas de registro docente, cada
vez mais sistemáticas, refinadas, pontilhistas e eficientes, capturando as minúcias das ações
infantis na escola. Tais deslocamentos estão relacionados com as transformações da infância
contemporânea, das pedagogias da infância, bem como da instituição escolar de Educação
Infantil, articuladas com as transformações de uma sociedade com ênfase nas disciplinas que
se desloca para uma sociedade com ênfase no controle. Ao analisarem-se os modos de
funcionamento dessas práticas de registro, foi possível defender a seguinte Tese: as práticas
da documentação pedagógica produzidas pela maquinaria escolar constituem a criança
protagonista e o professor designer. São acionadas por meio de estratégias do interesse
infantil e do aprender a aprender e mobilizadas por práticas docentes de gerenciamento de
oportunidades e de inovação docente. Pode-se concluir que as práticas de registro da
documentação pedagógica contribuem para certo tipo de estetização da infância e para a
fabricação de uma docência design, uma vez que fortalecem a centralidade dos processos
educacionais na criança protagonista e esmaecem a função docente em relação ao ensino,
redirecionando os modos de ser docente na Educação Infantil.
This Thesis aims to problematize practices of recording child learning by teachers in Child
Education, particularly the practices known as pedagogical documentation. Supported by
theoretical-methodological contributions by Michel Foucault’s and his commentators, I have
performed an analysis of power technologies and strategies by considering both the
conduction of the conduct of the others (the government of the others) and the conduction of
the conduct of oneself. By performing such analysis, the investigation has attempted to
understand the way in which the practices of pedagogical documentation have functioned as a
technology of government of childhood, thus producing very special ways of being a child
subject in the contemporary school. By analyzing such practices, we have noticed the
mobilization of other ways of teacher constitution and the emergence of other ways of being a
teacher in Child Education schools. The research has used two sets of materials for analysis –
17 works that have been named as Italian references in this Thesis, which have been
published in Brazil since the late 1990s; and samples of pedagogical documentation recorded
by teachers in Child Education schools situated in the countryside of Rio Grande do Sul,
Brazil. The Italian references were selected because they have provided the theoretical-
methodological foundation of such practices and have been used by the teacher community in
Brazil due to the availability of their translations and wide publicization. From the analysis of
the materials – considering the Foucauldian notion of governmentality as a grid of
intelligibility –, some displacements have been noticed in the teachers’ practices of recording,
which have become increasingly systematic, refined, pointillist and efficient, by capturing the
details of children’s actions at school. These displacements have been related to changes in
the contemporary childhood, in the childhood pedagogies, as well as in the Child Education
schools, together with societal changes from an emphasis on disciplines to an emphasis on
control. By analyzing the ways that these recording practices have functioned, it has been
possible to defend the following thesis: the pedagogical recording practices produced by the
school machine have constituted both the protagonist child and the designer teacher. They are
triggered by the strategies of child interest and learning to learn, and mobilized by teaching
practices of management of opportunities and teaching innovation. It is possible to conclude
that the recording practices of pedagogical documentation have contributed to a certain kind
of aestheticization of childhood and the production of design teaching, since they strengthen
the centrality of the educational processes on the protagonist child and weaken the teacher
function in teaching, thus redirecting the ways of being a teacher in Child Education.
APRESENTAÇÃO...............................................................................................................14
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 233
APÊNDICE A - MODELO DO QUADRO DE SISTEMATIZAÇÃO DAS 17
OBRAS ANALISADAS....................................................................................................... 255
APÊNDICE B - CARTA DE ANUÊNCIA À DIREÇÃO DA ESCOLA ....................... 259
APÊNDICE C - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO -
DIREÇÃO DA ESCOLA.................................................................................................... 260
APÊNDICE D - TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO - PROFESSOR
(A) DA ESCOLA.................................................................................................................. 262
14
APRESENTAÇÃO
Dou uma pequena pista para quem quer escutar: não se trata de ouvir uma
série de frases que enumeram algo; o que importa é acompanhar a marcha
de um mostrar. (HEIDEGGER, 1979, p. 257).
1 Utilizo o verbo problematizar inspirada nos escritos de Miller e Rose (2012), sublinhando que ele está mais
voltado ao processo do que à evidência de problemas. Problematizar é elaborar, tornar visível um campo de
problemas que não estão dados a priori, não estão à espera de serem revelados pelo pesquisador. “Questões e
preocupações precisam tornar-se aparentemente problemáticas”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 25).
2 Ao longo da Tese, faço uso da expressão deslocamentos para indicar a ideia de movimentos históricos, não
tomados como causa e consequência uns dos outros, tampouco compreendidos de forma linear, mas tal como
Castro assinala: “por deslocamentos não entendemos abandonos, mas sim extensões, ampliações do campo de
análise”. (CASTRO, 2009, p. 189).
15
3 Utilizo, neste trabalho, a palavra Contemporaneidade (escrita com inicial maiúscula) para significar o
momento histórico atual (um período que vai da segunda metade do século XX até os dias atuais), mas também
para significar um modo de vida, uma forma de vida. Importante esclarecer que esse período não sucede o
período da Modernidade de forma linear. Trata-se muito mais de crises que se estabelecem na própria
Modernidade e na maneira como nós pensamos a nós mesmos. Não há substituição linear, há mudanças de
ênfase. Há autores que utilizam expressões como hipermodernidade (LIPOVETSKY, 1989), modernidade tardia
(GIDDENS, 1991), pós-modernidade (LYOTARD, 1998), modernidade reflexiva (BECK, 1997), modernidade
líquida (BAUMAN, 2001) e segunda modernidade (SARMENTO, 2004), entre outras expressões.
4 No Projeto de Tese, a questão central estava nos processos de subjetivação da infância e da docência, expressa
mediante a seguinte questão: “como as práticas de registro docente sobre a aprendizagem dos sujeitos infantis
colocadas em funcionamento nos espaços escolares produzem efeitos nos processos de subjetivação da docência
e da infância contemporâneas?”. (p. 5-6). A partir das contribuições dos professores componentes da banca
examinadora, bem como de minhas leituras e debates desenvolvidos posteriormente no grupo de orientação,
penso ser mais produtivo mostrar como as práticas de registro, especialmente aquelas que envolvem a
documentação pedagógica, operam como tecnologia de governamento da infância contemporânea e produzem
efeitos nos modos de ser criança atualmente.
5 A expressão tecnologia de governamento da infância é utilizada numa perspectiva foucaultiana para traçar os
diferentes mecanismos e formas de governar a conduta individual e a conduta da população, sendo
compreendida como cambiante se considerarmos os diferentes espaços e tempos sociais (Foucault, por exemplo,
mostra-nos como as tecnologias pastoral, disciplinar e biopolíticas operam de diferentes formas nas sociedades).
Mais adiante, tal conceito será explorado de forma mais aprofundada.
16
documentação pedagógica se instala nas práticas docentes atuais de forma tão potente e
central no fazer diário dos professores? Que efeitos tais práticas produzem nos modos de ser
professor na Contemporaneidade? Portanto, este estudo também está interessado em mostrar
os modos de operar dessa tecnologia que atua na constituição de uma docência bastante
particular do nosso tempo, por meio de estratégias sutis, sistemáticas e refinadas, cuja forma
de expressão mobiliza o design de uma docência bastante particular do nosso tempo.
Considera-se que a estetização da infância e o design na docência são colocados em
funcionamento por meio das práticas de registro da documentação pedagógica. Interessante
marcar, logo no início deste trabalho, que as práticas de registro docente operam no
cruzamento com outras práticas escolares, ou seja, elas estão imersas com muitas outras
práticas da maquinaria escolar da Educação Infantil.
Ao trazer para o palco a expressão documentação pedagógica, coloco em cena um
conjunto de obras que denomino neste trabalho de referenciais italianos para a educação da
infância. Embora compreenda que nem todos os autores dessas obras sejam de origem
italiana, resolvi reuni-los numa única expressão, pois o que os conecta é o interesse em
conhecer e estudar mais sobre as diferentes propostas de Educação Infantil oferecidas em
inúmeras cidades italianas: Reggio Emilia, San Miniato, Parma, Firenze, Bolonha e Pistoia,
entre outras. Entretanto, devo reconhecer que as cidades de Reggio Emilia e San Miniato são
as mais conhecidas pelos educadores brasileiros em função de suas publicações, do alto
investimento nas traduções em língua portuguesa e da organização de grupos de estudos e
abertura a pesquisadores brasileiros (incluindo aqui outras nacionalidades). O termo
documentação pedagógica emerge especialmente a partir dos estudos e das publicações de
Loris Malaguzzi, que, por volta da década de 1960, num contexto de pós-guerra italiano,
busca romper com a lógica linear de ensino e com a visão tradicional e padronizada de criança
e infância que estava presente em grande parte das propostas para a Educação Infantil.
Os referenciais italianos aqui analisados são considerados importantes propagadores
das práticas de registro denominadas de documentação pedagógica nas pautas educacionais
brasileiras, especialmente por volta do final da década de 1990, embora reconheça que as
práticas de registro docente estão presentes muito antes disso, trazidas por pensadores de
diversos países. (DEWEY, 1959, 1976; MONTESSORI, 1965; FREINET, 1969, 1976;
WARSCHAUER, 1993; FREIRE, 1996; entre outros). Mesmo reconhecendo que há estudos
anteriores sobre a importância da observação e do registro docente, acredito que os
referenciais italianos abordam de forma pontual e sistemática as possibilidades de fazer a
documentação pedagógica como estratégia para tornar visível o processo de aprendizagem das
17
crianças na escola infantil. Esses referenciais têm impacto nas escolas brasileiras e fazem
movimentar outras possibilidades de registro docente, incluindo filmagens, fotografias,
transcrição de falas das crianças, entre outros recursos, primando pela rapidez na sua forma de
comunicação e possibilidade de registro de instantâneos da rotina cotidiana das crianças na
Educação Infantil. Tudo isso se conecta com outros modos de fazer a avaliação das crianças
desde tenra idade, vinculando-se com inovação na Educação Infantil, ou seja, a documentação
pedagógica vem sendo tomada como um modo inovador de avaliação, permeada por uma
imagem de criança e de professor bastante particular. Além dos referenciais italianos, a
seleção de um conjunto de exemplares de documentação pedagógica produzidos por
professores de algumas escolas de Educação Infantil do interior do Rio Grande do Sul
também compõe o material de análise6.
Dito isso, acredito ser fundamental mostrar, no decorrer da escrita desta Tese, as
lógicas de funcionamento das práticas da documentação pedagógica – fundamentos,
estratégias, recursos, bem como a imagem de criança e professor que circulam nessa
abordagem – a fim de perceber sua articulação com os movimentos da infância, da docência e
da escola na Contemporaneidade, analisando-as como um fenômeno conjunto, e não de forma
isolada. A partir da análise que desenvolvo neste trabalho, percebo que as práticas de
documentação pedagógica que emergem com os referenciais italianos podem ser
compreendidas como tecnologias que operam no governamento da infância e tendem a
produzir outros modos de viver a infância contemporânea na escola, assim também como
outros modos de viver a docência contemporânea na escola. Esses outros modos – outras
formas de praticar a vida na escola – podem ser visibilizados a partir de um conjunto de
estratégias que operam no governamento da infância. Neste momento, interessa dizer que os
deslocamentos nos modos de registrar, acentuados pelas práticas de documentação
pedagógica – com todo o seu aparato tecnológico –, produzem novas formas de ser aluno e ser
professor em tempos atuais.
Ao interessar-se pelo governamento da infância, esta Tese busca inspirações nas
produções do filósofo francês Michel Foucault, principalmente nos estudos e cursos
desenvolvidos por ele no Collége de France a partir da metade dos anos de 1970. Como uma
opção teórico-metodológica para entender a história do presente7, alguns conceitos
localiza as manifestações agudas de um ‘ritual meticuloso de poder’ particular ou de uma ‘tecnologia política do
corpo’ para ver onde surgiu, tomou forma, ganhou importância, etc.”. (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 132).
19
8 Sobre esses “três modos” de tornar-se sujeito, ver também Veiga-Neto (2011, p. 111).
9 Isso justifica as diferentes formas escritas neste trabalho, a saber: professor, docente ou sujeitodocente;
criança, aluno ou sujeito infantil. Ao escrever, por exemplo, sujeito infantil, quero referenciar o ser
humano/indivíduo/pessoa/criança que se torna sujeito a partir do governo dos outros e do governo de si mesmo,
que se torna sujeito a partir dos processos de objetivação e subjetivação (assim também ao utilizar a expressão
sujeito docente). Isso também explica as variações utilizadas na escrita, ora escrevendo professor, ora
escrevendo professora: optei por não fixar apenas uma flexão de gênero, mesmo reconhecendo que a maioria dos
docentes que atuam na Educação Infantil é do sexo feminino.
20
10 A palavra Modernidade vem carregada de várias definições e conceitos. Sua localização fixada em um
período histórico pode ser perigosa. Foucault, por exemplo, situou o fim do período moderno, inicialmente, no
século XVIII; posteriormente, definiu-o entre os séculos XIX e XX. Como aponta Ternes (2007, p. 53): “do
ponto de vista estritamente epistemológico, podemos dizer, sem dúvida, que a revolução da modernidade tem a
ver com a mudança de objeto. Entender nossa época significa perguntar-se acerca da natureza dos novos objetos
nascidos ou constituídos a partir dos começos do século XIX”. Para além de um marco temporal e cronológico,
outra definição de Modernidade tem relação com a atitude, ou seja, com as formas de vida marcadas pela razão,
pelo progresso e pelo modelo de homem inventado, especialmente com o Iluminismo.
21
PARTE I
CAPÍTULO 1
A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO INVESTIGATIVO
Como escrever senão sobre aquilo que não se sabe ou que se sabe mal? É
necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos
na extremidade do nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa
nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste
modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a
escrita para depois, ou melhor, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí,
entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a
relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o
silêncio. (DELEUZE, 2006, p. 18).
“Escrever sobre aquilo que não se sabe [...] na extremidade do nosso próprio saber”,
como nos aponta Gilles Deleuze (2006) na citação acima. Difícil encerrar a citação, pois cada
frase posta pelo filósofo me provoca a pensar na organização deste trabalho investigativo. A
construção desta Tese nasce a partir de minha trajetória como docente na Educação Básica e
Universitária, particularmente com as aproximações que tive na Educação Infantil (como
professora de crianças de três a cinco anos; como coordenadora pedagógica da Educação
Infantil, atendendo crianças de zero a cinco anos; como docente em cursos de formação de
professores – graduação, pós-graduação e extensão universitária). As práticas de registro
docente sobre as aprendizagens e o desenvolvimento das crianças na Educação Infantil
sempre foram foco de estudos, publicações e debates. Mas o que “se sabe mal” sobre esse
tema? O que me determina a escrever sobre esse assunto?
Uma necessidade de registro sobre o outro quase demasiada e naturalizada pelos
professores. Sem negar a importância ou a necessidade desses registros, quero entender seus
deslocamentos ao longo da história e a emergência, hoje, da documentação de muitas ações e
aprendizagens das crianças na escola. Dar visibilidade àquilo que aprendem, tornar público o
que se faz na escola, imprimir uma aceleração nos registros, permeados por fotografias,
filmagens, produções, avaliações. Entre a ignorância e o já sabido, o que ainda há para estudar
sobre essa temática? O que circula entre a extremidade de nosso próprio saber e o não saber?
A temática da documentação pedagógica emergiu como leitura teórica ainda no curso
de graduação em Pedagogia (concluído em 2004), seguindo ao meu lado nos cursos de pós-
graduação – Especialização em Educação Infantil (concluído em 2005) e Mestrado em
Educação (concluído em 2008). Em minha trajetória acadêmica, o assunto sempre foi motivo
de curiosidade, de encantamento, de celebração, de busca por mais materiais, leituras, cursos.
Chamavam-me atenção as novas estratégias e instrumentos para registrar e documentar as
26
Infantil, Ações Docentes nos Anos Iniciais e Processos Avaliativos na Educação Básica, entre
outras, e atuava na orientação de Estágios Supervisionados do mesmo curso.
Concomitantemente, iniciei o Doutorado em Educação na Unisinos. Novas leituras de
inspiração foucaultiana começaram a intensificar-se e a alargar minhas possibilidades de
pesquisa. Foi a partir dessa perspectiva que comecei a alimentar minha inquietação com a
temática aqui apresentada, num movimento de tornar frágil aquilo que parecia forte.
É até paradoxal escrever sobre isso – algo que eu celebrava e admirava na prática
docente passava agora a incomodar-me, a tornar-se problemático, de forma a não me permitir
falar sobre tal assunto como falava outrora. Hoje, incomodo-me com o culto docente à
documentação pedagógica e com a sua celebração no entorno educacional, em especial na
Educação Infantil. Um sintoma de mal-estar? Acontece que passei a questionar essa prática
como algo não naturalmente bom, ou como uma estratégia pedagógica que permite conhecer
verdadeiramente quem são os nossos alunos, ou ainda, como uma técnica que fielmente
tornará visível a aprendizagem das crianças. No entanto, reforço sua produtividade, sua
potência pedagógica, pois foi justamente por esse motivo que a tomei como foco desta
pesquisa.
O exercício que estou me propondo não é o de posicionar-me contra a documentação
pedagógica, pois essa posição não me deixaria vasculhar as “entranhas” dessa prática
pedagógica; quero seguir os passos de sua constituição como uma verdade naturalizada, como
“a melhor forma de acompanhar o desenvolvimento infantil”. Não pretendo desfazer toda essa
produção, tampouco colocá-la num pedestal (talvez como fazia anteriormente). Não se trata
de celebrar, nem de demonizar; nem de festejar, nem de menosprezar; antes, trata-se de
perceber como tais práticas conduzem as condutas individuais e coletivas dos sujeitos
escolares, produzindo efeitos nos modos de viver a vida escolar nesse período chamado de
infância, produzindo sujeitos infantis autorregulados, adaptados às demandas
contemporâneas.
11 Tal como destacam Foucault e Deleuze em uma entrevista, fazendo referência aos ditos de Proust: “tratem
meu livro como um par de óculos voltados para fora; pois bem, se eles não lhes caem bem, peguem outros,
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formas pelas quais contamos as histórias em nossos trabalhos de pesquisa estão ligadas às
maneiras de pensar, uma vez que destacamos acontecimentos, selecionamos eventos,
compomos redes e negligenciamos outras tantas. Nesse sentido, opto por teorizações pós-
estruturalistas em educação, que não buscam pela verdade única, pois entendem que as
verdades são fabricadas; não definem as relações de poder entre oprimidos e opressores,
colocando a escola como uma instituição que oferecerá a libertação, a emancipação e a
autonomia dos indivíduos pelo conhecimento, mas complexificam as relações de poder,
pondo-as numa trama de poder-saber, sem a necessidade de buscar a sua origem (um ponto de
origem único), mas a sua constituição, as condições de possibilidade para sua emergência. As
teorizações pós-estruturalistas tensionam o pensamento moderno, a crença nas metanarrativas,
na razão, na ciência, na neutralidade. Também problematizam a crença na liberdade, na
conscientização do sujeito, numa projeção sempre futura, no salvacionismo da escola ou da
pedagogia12.
Outro destaque importante neste trabalho de investigação são as formas de elaborar as
perguntas. Estou menos motivada a iniciar uma pergunta com “por que” ou “o que” e mais
interessada em questionar “como”, “diminuindo, dessa maneira, o peso da causalidade ou,
pelo menos, multiplicando-a, dando-nos condições de abster-nos dos problemas de ‘explicar’
fenômenos indigestos pelo Estado, classe, e assim por diante”. (MILLER; ROSE, 2012, p.
15). Perguntar “como”, nessa perspectiva, não busca traçar formas metodológicas de
desenvolver uma ação, não está centrado no “como fazer”, mas implica estudar as tramas, as
redes, as relações de poder e saber, os movimentos que compõem um cenário, menos de
forma linear e cronológica e mais no seu acontecimento, nos efeitos, na produção de verdades
e naquilo em que nos tornamos enquanto sujeitos de um determinado tempo e espaço.
Portanto, está atrelado a “como se constituem” os objetos. Inspirada nas problematizações de
Michel Foucault (2010, p. 283) quando afirma que “provisoriamente atribuo certo privilégio à
questão do ‘como’, não é que eu deseje eliminar a questão do quê e do porquê. É para colocá-
las de outro modo”. O filósofo, ao explicar sua preocupação em investigar sobre o poder e
como se exerce tal poder, conclui que “a pequena questão, direta e empírica: ‘Como isto
acontece?’, formulada como esclarecedora, não tem por função denunciar como fraude uma
‘metafísica’ ou uma ‘ontologia’ do poder, mas tentar uma investigação crítica sobre a
temática do poder”. (FOUCAULT, 2010, p. 284).
encontrem vocês mesmos seu aparelho que, forçosamente, é um aparelho de combate”. (FOUCAULT, 2006, p.
39).
12 Para retomar algumas discussões sobre os estudos foucaultianos e as crenças na metanarrativa, na ciência, na
razão, ver Silva (1994, 1995, 2000).
29
Foi percorrendo por essas vias que construí o problema de pesquisa que apresento
nesta Tese, numa investida de problematizar aquilo que parece evidente e natural, virando o
problema de cabeça para baixo. Com isso, não tive a pretensão de mostrar que as práticas de
registro da documentação pedagógica não são necessárias, nem que não deveriam existir nas
ações docentes, nem que a literatura italiana seria a grande vilã por apresentar a
documentação pedagógica às comunidades brasileiras e nem mesmo que sou contra o registro
docente. Aliás, essa é uma interpretação comum entre aqueles que costumam avaliar os
processos e as práticas por uma ordem binária13. Talvez tenha pretendido inverter modos de
pensar e tentado ver de outras formas, criticar as continuidades. Inspirada nas teorizações de
Foucault, assumi que é preciso “descobrir os limites de um processo, o ponto de inflexão de
uma curva, a inversão de um movimento regulador, os limites de uma oscilação, o limiar de
um funcionamento, o instante de funcionamento irregular de uma causalidade circular”.
(FOUCAULT, 2009, p. 8). O filósofo convida-nos: “é preciso também que nos inquietemos
diante de certos recortes ou agrupamentos que já nos são familiares”. (FOUCAULT, 2009, p.
24).
Como sabemos, muitas pesquisas sobre a infância e sobre a importância do registro
docente já foram desenvolvidas e muitas estão em processo de conclusão e/ou publicação.
Embora seja um campo bastante produtivo, considero que esta pesquisa trará contribuições
para pensar a educação das crianças nas escolas, sobretudo no contexto nacional em que
vivemos, no qual observamos a construção de inúmeras escolas de Educação Infantil
(especialmente com o Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos
para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil – Proinfância/Governo Federal); a
ampliação de vagas em escolas para crianças de zero a cinco anos; a publicação da Lei nº
12.796/2013, que torna obrigatória a oferta gratuita de Educação Básica a partir dos quatro
anos de idade, entre outros exemplos que mostram o enaltecimento e a necessidade de as
crianças, desde tenra idade, adquirirem o direito de frequentar as escolas.
Busco desenvolver a crítica da crítica – a hipercrítica –, tal como propõe Veiga-Neto
ao explicar a crítica foucaultiana, “de voltar-se contra si mesma para perguntar sobre as
condições de possibilidade de sua existência, sobre as condições de sua própria
racionalidade”. (VEIGA-NETO, 2011, p. 24). O autor diz ainda que a hipercrítica está sempre
em movimento, não para encontrar o ponto de fuga que seria o núcleo da verdade, mas para
deslocar-se sem descanso sobre ela mesma e sobre nós. Trata-se de levar ao estranhamento as
práticas de registro da documentação pedagógica que torna visível a aprendizagem das
crianças, num investimento teórico de perguntar-se sobre as condições de emergência dessa
documentação na escola, buscando entender como, neste momento histórico, ela se torna tão
necessária e abrangente. A fim de buscar hipóteses para as questões pontuadas, é
imprescindível pensar nos caminhos metodológicos desta pesquisa.
Creio que a metodologia, quando conectada às teorizações pós-estruturalistas, faz
produzir outros modos de pesquisar e de tornar-se pesquisador. Digo isso porque não escolhi,
a priori, uma metodologia de pesquisa, um método universalmente válido, tampouco seus
instrumentos para a coleta de dados numa determinada realidade a ser investigada, analisada e
interpretada. Essas bases mais fixas e sólidas, previsíveis e seguras, dadas de antemão, até
mesmo antes de iniciar o processo de pesquisa, são tensionadas e problematizadas pelas
teorizações selecionadas por mim. Assim, concordo com Meyer e Paraíso (2012) quando
afirmam que a metodologia pode ser entendida como um modo de perguntar, de formular
questões, de interrogar “e de construir problemas de pesquisa que é articulado a um conjunto
de procedimentos de coleta de informações – que, em congruência com a própria teorização,
preferimos chamar de ‘produção’ de informação – e de estratégias de descrição e análise”.
(MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 16). Metodologia aqui é tomada “de modo bem mais livre do
que o sentido moderno atribuído ao termo ‘método’” (MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 16), mas
nem por isso menos importante, menos interessado, menos comprometido e menos rigoroso.
Questões metodológicas interessadas e comprometidas porque precisamos fazer
escolhas e justificá-las, precisamos definir os caminhos metodológicos – dito de outra
maneira, precisamos de um método de pesquisa porque, “sem um método, não se chega a ter
uma percepção ou um entendimento sobre as coisas”. (VEIGA-NETO; LOPES, 2010, p. 2).
Entretanto, não no sentido moderno atribuído a método, mas um método compreendido como
“o caminho que podemos/devemos seguir se quisermos ir para algum lugar”. (VEIGA-NETO;
LOPES, 2010, p. 2). Método construído ao longo do percurso, a partir do percurso, ou seja, “o
método é o caminho a seguir para fazer uma abordagem, para chegar a algum entendimento
sobre aquilo que se quer descrever, discutir, argumentar etc.”. (VEIGA-NETO; LOPES, 2010,
p. 2). Como destaca Foucault ao ser questionado numa entrevista com Hasumi (1977) sobre a
não-fixação de um método nas suas pesquisas:
por mim, no exato momento em que faço minha pesquisa, mas sem
privilegiar de modo algum o problema do método. (FOUCAULT, 2006, p.
229).
Diálogos com Reggio Emilia: escutar, Carla Rinaldi 2012 Todos os capítulos
investigar, aprender que compõem a livro
Crianças, espaços, relações: como projetar Giulio Ceppi 2013 Todos os capítulos
ambientes para a educação infantil Michele Zini (orgs.) que compõem a livro
Tornando visível a aprendizagem da criança: Project Zero 2014 Todos os capítulos
crianças que aprendem individualmente e Reggio Children que compõem a livro
em grupo
A Abordagem de San Miniato para a Aldo Fortunati 2014 Todos os capítulos
educação das crianças: protagonismo das que compõem a livro
crianças, participação das famílias e
responsabilidade da comunidade por um
currículo do possível
34
Suponho que, além dessas 17 obras, existam outras, mas neste momento optei por
obras de maior circulação entre professores, presentes em programas de cursos de graduação,
pós-graduação e extensão e também como sugestão de leitura em reportagens de revistas,
especialmente a Revista Pátio – Educação Infantil14, traduzidas para a língua portuguesa, o
que, grosso modo, amplia as possibilidades de acesso à leitura e à análise. Optei, portanto, por
analisar 17 livros, publicados desde 1999 até 2016 (justifica-se o ano de 2016 por tratar-se do
período de conclusão da escrita desta Tese). Reitero que a opção por essas obras italianas se
justifica, em primeiro lugar, pela grande circulação que adquirem nas escolas de Educação
Infantil e nos cursos de formação de professores (tanto a formação inicial quanto a formação
em serviço); em segundo lugar, destaco a visibilidade que essas obras oferecem à temática
proposta para esta investigação; em terceiro lugar, e talvez a maior justificativa, é que essas
obras são tomadas aqui como práticas, pois são mobilizadoras de práticas pedagógicas e,
portanto, produzem efeitos nos modos de ser aluno e de ser professor na escola
contemporânea. Ao direcionarem-se para os professores da Educação Infantil, os referenciais
italianos produzem uma pauta educacional nacional (e internacional) para o governamento da
infância.
Como é possível perceber, os dois primeiros referenciais italianos foram traduzidos e
chegaram às livrarias brasileiras por volta de 1999, dado que apresenta um recorte temporal
para os materiais selecionados15. Posteriormente, as publicações foram ampliando-se,
adquirindo grande repercussão nacional na comunidade docente da Educação Infantil. Livros
atrativos, contendo fotografias do trabalho pedagógico realizado junto às crianças, bem como
exemplos de croquis e planta baixa de diferentes espaços físicos das escolas, são apresentados
como material pioneiro e inovador, levando muitos profissionais da educação a interessar-se
por eles. Também a possibilidade de conhecer in loco as propostas italianas, com a oferta dos
14 A Revista Pátio – Educação Infantil, organizada e publicada pelo Grupo A, com circulação nacional por meio
de assinaturas, desde 2003 e com tiragem trimestral nos meses de janeiro, abril, julho e outubro, vem divulgando
essas obras, inclusive, muitos dos artigos publicados por pesquisadores que escrevem nessa renomada revista
educacional apresentam sustentação teórica em tais obras. Assim, essa Revista também é um meio relevante para
compreendermos a circulação dos referenciais italianos no Brasil.
15 Aqui podemos estabelecer algumas relações com a trajetória histórica da Educação Infantil no Brasil: é na
década de 1990 que temos a publicação da LDB (Lei que toma a Educação Infantil como primeira etapa da
Educação Básica) e a publicação do primeiro Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998),
além de toda a movimentação de qualificação das estruturas físicas das escolas e de formação docente no cenário
brasileiro, entre outros fatores. Assim, a chegada das publicações italianas é celebrada no cenário nacional.
35
grupos de estudos para Reggio Emilia16e San Miniato, na Itália, por exemplo, ocasiona uma
grande repercussão nacional na Educação Infantil. Um fator que evidencia as afirmativas
acima é a publicação da obra As cem linguagens da criança no ano de 2016, em seus volumes
1 e 2, os quais apresentam uma reprodução da publicação datada de 1999, juntamente com
alguns novos capítulos e acréscimos de seções e excertos. Portanto, quase 20 anos depois, são
lançadas essas duas obras, com o objetivo de mostrar as modificações da abordagem de
Educação Infantil em relação às transformações demográficas e políticas e às novas gerações
de educadores e pais, como destacam os próprios organizadores: o diálogo tem se
desenvolvido há mais de 20 anos, desde os preparos para a primeira edição, e certamente
ilustra como a experiência de Reggio Emilia está sempre evoluindo. (EDWARDS;
GANDINI; FORMAN, 2016).
Inicialmente, a leitura e a análise dos referenciais italianos citados acima foram
realizadas de forma mais geral, com o objetivo de fazer uma sondagem da superfície analítica.
Feita essa análise inicial, passei a realizar novas leituras, de maneira bastante atenta,
organizando e sistematizando o material. Excertos foram destacados e copiados, e
digitalizações foram necessárias. Esse material foi sistematizado num quadro, compondo um
arquivo com aproximadamente 100 páginas de excertos destacados e digitalizações de
fragmentos importantes. Considerando o problema e os objetivos desta pesquisa, o quadro foi
organizado a partir das seguintes expressões: 1) abordagem da documentação pedagógica; 2)
imagem de criança; e 3) funções docentes (o APÊNDICE A apresenta o modelo do quadro
que utilizei para sistematizar as 17 obras). Em especial, sobre a primeira expressão, foram
garimpados os excertos que tratavam dos instrumentos e das estratégias para registro docente,
bem como das sugestões e orientações sobre como, por que e para que registrar a
aprendizagem das crianças.
A partir desse material, foi possível mapear algumas regularidades e recorrências,
tanto nas páginas digitalizadas quanto nos excertos selecionados. Emergiu dessa análise uma
imagem de criança protagonista, criativa, potente e autônoma, com interesses individuais,
interessada pela escola e capaz de fazer suas próprias escolhas, acompanhada por um
professor coprotagonista, que tem habilidades para escutar os interesses das crianças e levá-
los adiante, por meio da organização dos espaços físicos da escola. Emergiu também da
análise desses referenciais a necessidade de registro docente sistemático e permanente, cada
16 Reggio Emilia é uma cidade italiana da região de Emília Romana, ao norte da Itália. Em 1991, Reggio Emilia
recebeu o selo de “As Dez melhores escolas do mundo” pela revista Newsweek, fato que pode justificar a elevada
publicação e tradução de obras no Brasil e em outros países.
36
vez mais refinado e pontual, sobre a aprendizagem das crianças na escola. Os professores
precisam construir diferentes estratégias para mostrar as produções das crianças, em tempo
quase real, ou seja, de modo sistemático e eficaz. Procuro tratar dessas questões de forma
mais aprofundada na Parte II da Tese (contudo, a última seção da Parte I, intitulada “‘Como
um antídoto’: os registros da documentação pedagógica”, já sinaliza excertos da materialidade
de análise).
O segundo bloco que formou a materialidade analítica da Tese foi constituído pela
coletânea de exemplares de documentação pedagógica– uma seleção de alguns exemplares de
documentação pedagógica produzidos nos anos letivos de 2012 e 2015 por professores de
uma escola de Educação Infantil da rede particular de ensino e por professores de uma escola
de Educação Infantil da rede pública municipal de ensino; ambas as escolas atendem crianças
de zero a cinco anos de idade e estão localizadas em municípios do interior do Rio Grande do
Sul. Essa superfície analítica, fonte produtiva para compor o material empírico da pesquisa,
não foi produzida pelos professores especialmente para esta pesquisa. Eles compõem um
material produzido por conta da proposta pedagógica de cada escola, a qual prima pelo
registro docente e pela elaboração desses documentos como forma de expressar os resultados
da avaliação na Educação Infantil. Portanto, os exemplares utilizados aqui foram documentos
entregues para os pais/responsáveis pelas crianças dessas escolas de Educação Infantil,
fazendo parte de uma documentação pedagógica maior acionada na escola, ou seja, além
desses exemplares, há ensaios fotográficos, descrições acompanhadas em montagens de
vídeos enviados e exposições das produções das crianças nos corredores da escola, entre
outros.
A escolha das duas redes de ensino, ou seja, as redes municipal e particular, foi
intencional, uma vez que são as esferas que atendem o nível da Educação Infantil no Brasil
(conforme previsto legalmente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei
número 9.394/96). A escolha das duas escolas de Educação Infantil ocorreu por duas razões
centrais: a escola particular fez parte do cenário profissional onde atuei como docente, o que,
no meu ponto de vista, facilitou minha entrada e aceitação por parte da direção da escola e dos
professores. Já a direção da escola municipal, ao saber do desenvolvimento de minha
pesquisa, mostrou-se interessada em compartilhar os exemplares de documentação
pedagógica produzidos pelos professores, uma vez que adotou mudanças nas maneiras de
expressar as aprendizagens das crianças. As direções das escolas de Educação Infantil
assinaram a Carta de Anuência (APÊNDICE B), assim como o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (APÊNDICE C).
37
17 Considero importante dizer que não fiz alterações na escrita das professoras que produziram esses registros de
documentação pedagógica em termos de organização das frases, ortografia, etc.
18 Esclareço que o nome dos professores foi excluído do documento e que o nome das crianças foi alterado.
Esses exemplos foram elaborados por diferentes professores, de diferentes escolas de Educação Infantil (tanto
públicas quanto privadas) de município do interior do Rio Grande do Sul, Brasil. Não tenho o objetivo de
detalhar a formação desses professores nem a idade das crianças, nem mesmo busco comparar as práticas de uma
escola com a outra. Interessa-me olhar para esses materiais como um corpus empírico, uma materialidade para
esta investigação.
38
Ao longo do período de seleção dos exemplares, não foi a quantidade que mostrou a
relevância do material, já que minha atenção não foi dispensada na busca quantitativa desse
material entre o corpo docente nas inúmeras escolas do interior do Rio Grande do Sul.
Tampouco dediquei atenção para encontrar o que está por trás daquilo que é apresentado nos
exemplares cedidos pelos professores da Educação Infantil e descobrir quem elaborou aquele
registro (quem relatou, quem escreveu). Ao analisar tais exemplares, podemos pensar que eles
não têm origem nos professores que produziram o material, nos sujeitos falantes. Trata-se de
uma série de condições que acabam por determinar que tais discursos apareçam e outros não.
Dito de outra forma, a origem desses exemplares não está nos indivíduos que os elaboraram
(até porque se perguntar pela origem não seria produtivo nesta pesquisa e não me permitiria
cercar o problema de pesquisa), mas eles participam daquilo que Foucault chama de “teia
discursiva” ou formação discursiva19, inscrevendo-se numa rede complexa de poder e saber
que dispõe de regimes de verdades de determinadas épocas. Importa dizer também que minha
pretensão não foi esgotar a análise dos materiais de pesquisa, nem almejar a sua totalidade ou
compará-los entre si; antes, preferi pensar sobre suas condições múltiplas de produção, sobre
as recorrências, as conexões, os encontros, os bloqueios, as possibilidades de agrupamento
19 “O tipo de análise que pratico não trata do problema do sujeito falante, mas examina as diferentes maneiras
pelas quais o discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que o poder está
implicado, e para o qual o poder funciona. Portanto, o poder não é nem fonte nem origem do discurso. O poder é
alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo
estratégico de relações de poder”. (FOUCAULT, 2006, p. 253).
39
20 Tomar tal materialidade como acontecimento, uma vez que se trata “de considerar o discurso como uma série
de acontecimentos, de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos – que podemos chamar de
acontecimentos discursivos – mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema econômico, ou ao
campo político, ou às instituições. Considerando sob esse ângulo, o discurso não é nada além de um
acontecimento como os outros, mesmo se, é claro, os acontecimentos discursivos têm, em relação aos outros
acontecimentos, sua função específica”. (FOUCAULT, 2006, p. 255-256).
40
(2009), Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das
crianças (2009), Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009) e
Educação Infantil: Subsídios para construção de uma sistemática de avaliação (2012).
Todos esses documentos legais, obviamente, não contrariam aquilo que está previsto
no artigo 31 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei número 9.394/96), na
Seção II, Da Educação Infantil: “a avaliação far-se-á mediante acompanhamento e registro do
seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino
fundamental”. O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998),
organizado em três volumes (Introdução; Formação Pessoal e Social; Conhecimento de
Mundo), apresenta seis eixos de trabalho, equivalentes às áreas de conhecimento (Movimento,
Música, Artes Visuais, Linguagem Oral e Escrita, Natureza e Sociedade, Matemática), e, para
cada eixo, há uma seção intitulada “Observação, registro e avaliação formativa”. Em síntese,
essa seção corresponde a orientações gerais aos professores, reforçando a importância da
observação cuidadosa, da avaliação contínua, da reorganização e adequação do planejamento,
da reflexão, trazendo a expressão da documentação pedagógica para a prática docente. Já os
três documentos –Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a
seis anos à Educação (2006), Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil
(2006) e Parâmetros Básicos de Infraestrutura para instituições de Educação Infantil
(2006)– abordam fundamentos sobre a qualidade, além de apresentarem competências dos
sistemas de ensino (federal, estadual e municipal) e a caracterização das instituições de
Educação Infantil no Brasil, não especificando nenhum item sobre avaliação da aprendizagem
infantil.
O documento Indicadores da Qualidade na Educação Infantil (2009) aborda sete
dimensões com indicadores que ajudam a avaliar a qualidade no atendimento de crianças de
zero a cinco anos. Na dimensão “Planejamento Institucional”, há um indicador que avalia o
“registro da prática docente”, se o professor faz registros sobre as aprendizagens da criança e
do grupo e se o professor “possui documentação organizada sobre as crianças, como ficha de
matrícula, cópia da certidão de nascimento, cartão de vacinação e histórico de saúde”. (2009,
p. 36). Já na dimensão “Formação e condições de trabalho das Professoras e demais
Profissionais”, há um indicador que avalia se “os familiares recebem relatórios sobre as
aprendizagens, vivências e produções das crianças, pelo menos, duas vezes ao ano”. (2009, p.
56).
O documento intitulado Política de Educação Infantil no Brasil: Relatório de
Avaliação (2009) é composto de três partes, sendo a primeira a tradução, na íntegra, do
41
21 Destaco aqui algumas dissertações e teses sobre a temática: Mendonça (2009), Azevedo (2009), Marques
(2010), Silva (2011), Baracho (2011), Focchi (2013), Vieira (2013), Guimarães (2014), Cardoso (2014) e
Simiano (2015), entre outras.
22 Destaco aqui alguns artigos publicados em periódicos: Sá (2010), Gontijo (2011), Marques e Almeida (2011a,
2011b, 2012), Albarez e Gontijo (2012), Silva, Bertomeu e Bertomeu (2014), Mesquita (2014) e Marques
(2015), entre outros.
43
instrumento de reflexão, planejamento e compreensão das suas ações com os alunos. Alguns
estudos também marcam a autoria do professor no momento em que ele registra sua prática
docente e reflete sobre ela, assinalando uma prática reflexiva. Todavia, como neste trabalho
meu interesse está nas práticas de registro docente para documentação pedagógica – esse novo
formato, instrumento, possibilidade de registro docente –, detive-me nas produções que
também têm como foco essa problemática.
Ao longo dos últimos anos, especialmente na entrada do século XXI, é possível
perceber um crescimento nas pesquisas e publicações (artigos, dissertações e teses) sobre
como a documentação pedagógica, compreendida como subsídio para uma prática docente
reflexiva e mediadora, qualifica e aperfeiçoa o trabalho pedagógico, além de ser suporte para
a organização do planejamento, possibilitar conhecer mais as crianças e ampliar a participação
da família no processo escolar dos filhos. Na procura incessante que desenvolvi sobre a
temática, não li nenhum trabalho que pudesse desconfiar da documentação ou que a inserisse
numa lógica social maior, além da escola e seus muros, e mostrar como nos constituímos
enquanto professores e crianças por meio dessas práticas.
Na Tese de Doutorado de Marques (2010), por exemplo, há um estudo bastante
aprofundado sobre a documentação pedagógica (expressão cunhada na Itália por volta dos
anos 1960 e 1970, num contexto em que era preciso produzir novas formas de fazer escola,
contrariando os discursos dominantes existentes). A autora constata que, no Brasil, o termo
que mais se aproxima da documentação é registro, porém, ela diferencia os dois termos,
percebendo que o segundo está a serviço da documentação, “entendida como um processo
mais amplo de sistematização e construção de memória sobre o trabalho pedagógico, sobre o
processo de desenvolvimento da criança, sobre a trajetória de um grupo ou de uma escola”.
(MARQUES, 2010, p. 123).
Na Dissertação de Mestrado de Azevedo (2009), realizada na Universidade do Minho,
em Portugal, a pesquisadora aponta que a documentação pedagógica foi uma conquista do
século XX que possibilitou aos profissionais da infância descrever, compreender, interpretar e
atribuir significados ao cotidiano pedagógico e à aprendizagem infantil. Ao colocar em
diálogo duas culturas – a das crianças e a dos adultos –, a pesquisadora percebe que a
documentação é um excelente processo de autoavaliação das crianças, permitindo refletir
sobre conhecimentos, sentimentos, competências e ideias que estão construindo.
Como pudemos observar, há uma inclinação bastante pontual emergindo dos
referenciais italianos e das pesquisas, que, por ora, parecem festejar os benefícios da
documentação nas práticas escolares. Como apontei na parte inicial deste trabalho, no Brasil,
44
antes da entrada dos referenciais italianos, temos publicações que abordam a importância do
registro na prática docente, entretanto, a utilização de outras ferramentas, como fotografia,
filmagens e transcrições, é fortemente pontuada pela abordagem italiana. Assim, posso
concluir que, nos últimos anos, muitos estudos e pesquisas vêm abordando a criança como
indivíduo de direito e protagonista de sua vida; aos adultos, cabe desenvolver cada vez mais a
escuta atenta ao que dizem e manifestam as crianças, de modo a considerar suas perspectivas
sobre si, sobre os outros e sobre o mundo.
A documentação pedagógica, nas teses, dissertações e artigos analisados, é
compreendida como uma possibilidade de revelar o processo de aprendizagem das crianças,
buscar envolvimento da família, bem como qualificar a formação do professor, uma vez que
ele estará atento àquilo que as crianças produzem na escola (suas falas, seus movimentos, seus
modos de brincar, suas produções). Em síntese, a documentação pedagógica é compreendida,
de modo geral, como um processo que possibilita a avaliação do que vive cada criança no
espaço escolar infantil, sendo destacados os seus benefícios e contribuições para a Educação
Infantil, desde que seja desenvolvida adequadamente.
Mas como tais práticas operam enquanto tecnologia de governamento da infância,
produzindo modos muito particulares de ser sujeito infantil na escola contemporânea? Sobre
tal questão, percebo que há poucos estudos, pesquisas e produções acadêmicas. Por esse
motivo, passo a explicar os conceitos selecionados como centrais para responder a pergunta
acima e movimentar o empreendimento desta Tese: práticas, tecnologias e
governamentalidade, os quais foram colocados em funcionamento ao movimentar a
materialidade de análise. Contudo, considero importante tecer alguns breves comentários
sobre o tratamento ético conferido aos exemplares da documentação pedagógica produzidos
pelos professores de Escolas de Educação Infantil do interior do Rio Grande do Sul, Brasil.
Pretendo discorrer sobre três aspectos que considero importantes, voltados às questões
éticas desta pesquisa, a qual envolve imagens de crianças: 1) a ética na pesquisa com seres
humanos; 2) a entrada no campo e o consentimento para desenvolver a pesquisa; 3) o sigilo
nominal posto em tensionamento. Uma ressalva se faz necessária: esta pesquisa foi
encaminhada, analisada e aprovada pelo Comitê de Ética da Unisinos, mediante
encaminhamento via Plataforma Brasil (esta foi uma orientação da Banca Examinadora no
momento de qualificação do Projeto de Tese). O Comitê de Ética analisou o Projeto de Tese,
45
pesquisador. Entendo que é por meio da convivência ética que o pesquisador vai capturar
formas para consentir aquilo que é possível analisar e publicar, separando o que é
extremamente confidencial.
O terceiro aspecto diz respeito ao sigilo nominal dos participantes na pesquisa. Kramer
(2002) problematiza a manutenção ou não do sigilo nominal, especialmente nas pesquisas
com crianças, pois percebe que o anonimato tem seu lado positivo somente quando protege as
crianças em casos específicos (violência da família diante de seus relatos, relações
conflituosas entre professor e aluno, exposição negativa das instituições nas quais elas se
encontram). A autora sinaliza uma contradição em utilizar referencial teórico que ressalta as
crianças como protagonistas sociais, produtoras de cultura, mas mantendo-se sigilo e
anonimato de suas identidades, negando e encobertando suas autorias. Entretanto, nesta
pesquisa, opto por manter o sigilo nominal e a privacidade, tanto das escolas envolvidas,
quanto dos professores e das crianças. Também, reforço novamente, que, nas fotografias de
crianças da documentação pedagógica cedida pelos professores, os rostos das crianças serão
borrados e/ou tarjados, a fim de evitar o reconhecimento de suas identidades. O que importa
aqui não é a identidade de cada sujeito, mas as práticas que circulam em determinados
espaços e tempos, que produzem e constituem discursos verdadeiros.
23 A metáfora da “caixa de ferramentas” é discutida por Foucault e Deleuze em uma entrevista, na qual Deleuze
afirma que “uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada a ver com o significante... É preciso que isso
sirva, é preciso que isso funcione. E não para si mesma”. (FOUCAULT, 2006, p. 39).
47
24 Michel Foucault afirma: “Se eu estudei ‘práticas’ como as do sequestro de loucos, ou da medicina clínica, ou
da organização das ciências empíricas, ou da punição legal, foi para estudar este jogo entre um ‘código’ que
regula maneiras de fazer (que prescreve como selecionar as pessoas, como educar os indivíduos etc.) e uma
produção de discursos verdadeiros que servem de fundamento, de justificação, de razões de ser e de princípio de
transformações a essas mesmas maneiras de fazer”. (FOUCAULT, 2006, p. 342-343).
25 Michel Foucault explica a ideia de “acontecimentalizar”, em Ditos e Escritos IV. (2006, p. 339 – 341).
26 Numa entrevista com Dillon (1979), Foucault afirma que seu trabalho não teve como objetivo fazer a história
das instituições ou das ideias, mas sim, a história da racionalidade. Para o filósofo, racionalidade “é o que
programa e orienta o conjunto da conduta humana. Há uma lógica tanto nas instituições quanto na conduta dos
indivíduos e nas relações políticas. Há uma racionalidade mesmo nas formas violentas. O mais perigoso, na
violência, é sua racionalidade”. (FOUCAULT, 2006, p. 319). A racionalidade, explica Foucault, não é
simplesmente princípio de teoria e de técnicas científicas, tampouco não apenas produz formas de conhecimento
48
ou tipos de pensamento, “mas está ligada por laços complexos e circulares a formas de poder”. (FOUCAULT,
2006, p. 330). O autor, em seus estudos, pretendeu ver como as formas de racionalidades se inscrevem em
sistemas de práticas, pois “é verdade que não há práticas sem um certo regime de racionalidade”. (FOUCAULT,
2006, p. 342). Dean contribui para esclarecer o termo: “a racionalidade é simplesmente qualquer forma de pensar
que se empenha em ser relativamente claro, sistemático e explícito quanto a aspectos de existência ‘externa’ ou
‘interna’, quanto a como as coisas são ou como deveriam ser”. (DEAN, 1999, p. 10).
27 “Conduta” aqui se refere a nossos hábitos, nossas ações e mesmo ao nosso comportamento, isto é, o conjunto
articulado de nossas maneiras”. (DEAN, 1999, p. 10).
49
vestígios escritos e de vidas". (MILLER; ROSE, 2012, p. 19). Entende-se o poder não como
violento e negativo, que deve ser reduzido ou extinto das relações humanas (como, por
exemplo, no entendimento das teorizações marxistas, em que o poder é exercido pela classe
dominante sobre a classe operária, um domínio de poder que deveria ser quebrado pela
libertação e emancipação). A violência age sobre o corpo e sobre as coisas: “ele força, dobra,
quebra, destrói; ele fecha todas as possibilidades”. (FOUCAULT, 2010, p. 287). A violência
envolve passividade, resistência e redução de poder28. Porém, a relação de poder produz um
poder que traz liberdade, um poder que seduz, “ele opera sobre o campo de possibilidades em
que se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou
dificulta, amplia ou limita, torna mais ou menos provável”. (FOUCAULT, 2010, p. 288).
E é por meio das relações de poder que Foucault propõe uma analítica das tecnologias
e estratégias de poder, tanto em relação à condução da conduta dos outros (o governo dos
outros), quanto em termos de condução da conduta de si mesmo (governo de si)29. Dito de
outro modo, o filósofo preocupa-se em desenvolver uma genealogia das formas de governar o
indivíduo e, para tal exercício, analisa um conjunto de técnicas, tecnologias, estratégias e
táticas que são colocadas em ação em determinados contextos histórico-sociais, criando
modos de subjetivação bastante particulares de seu tempo. É na relação de poder consigo e
com os outros que Foucault vai nomear os termos tecnologias e estratégias, indicando formas
específicas nas quais o poder é exercido, em que o poder vai operar30. No entanto, é
importante dizer que o filósofo não liga a expressão tecnologia a uma máquina concreta ou a
um instrumento palpável que está nas mãos do detentor do poder, tampouco utiliza o termo
28 Veiga-Neto (2008) expõe a distinção entre poder e violência. A violência não tem justificativa para aquele
violentado, ela viola, quebra, dói, impõe, enquanto o poder seduz, negocia, constrói, autojustifica e conta com a
adesão daquele que é o seu objeto. O poder convence e solicita o reconhecimento do outro, ele é positivo, pois
produz. “Enquanto o poder dobra – porque se autojustifica e negocia e, com isso, se autolegitima, – a violência
quebra, porque se impõe por si mesma. Enquanto aquele se dá agonisticamente, esse se dá antagonicamente”.
(VEIGA-NETO, 2008, p. 29).
29 Mitchell Dean (1999, p.21), ao estudar a analítica de poder em Michel Foucault, afirma que “uma analítica de
um particular regime de práticas busca, no mínimo, identificar a emergência daquele regime, examinar as
múltiplas fontes de elementos que o constituem e seguir os diversos processos e relações pelas quais estes
elementos são reunidos em formas relativamente estáveis de organização e prática institucionais. Examina como
este regime dá origem e depende de formas particulares de conhecimento e como, em conseqüência disso, torna-
se alvo de vários programas de reforma e mudança. Considera a dimensão técnica ou tecnológica deste regime e
analisa suas técnicas, suas instrumentalidades e os mecanismos característicos através dos quais opera, tenta
realizar as suas metas e através dos quais tem também uma multiplicidade de efeitos”.
30 Rose (2001), com base no arsenal foucaultiano, afirma que tecnologia se refere “a qualquer agenciamento ou
a qualquer conjunto estruturado por uma racionalidade prática e governado por um objetivo mais ou menos
consciente”. (p. 38). Já Miller e Rose (2012, p. 46) utilizam o termo tecnologias para “insinuar uma abordagem
particular da análise da atividade de governar, um enfoque que presta grande atenção aos mecanismos através
dos quais autoridades de vários matizes têm buscado modelar, normalizar e instrumentalizar a conduta, o
pensamento, as decisões e as aspirações dos outros, a fim de alcançar os objetivos que eles consideram
desejáveis”.
50
para expressar uma entidade fechada; pelo contrário, ele o usa de forma mais ampla,
justamente pela sua compreensão de poder, relacionando a tecnologia com práticas mundanas
e dispersas, ligadas a múltiplos processos que a constituem em suas racionalidades.
Noguera-Ramírez (2013) afirma que o deslocamento da análise que Foucault
desenvolve nos seus estudos passa da arte de governar, centrada na governamentalização do
Estado Moderno (entre os séculos XVI e XIX), para a “análise do governo como problema
ético na constituição do sujeito através de práticas de si” (2013, p. 77), ou melhor, Foucault
passa a interessar-se nas tecnologias de dominação individual, nas tecnologias do eu, ou em
como o indivíduo age sobre si mesmo, a relação de si consigo mesmo. Tais tecnologias de si,
ou tecnologias do eu, compreendem formas pelas quais os indivíduos vivenciam,
compreendem, julgam e conduzem a si mesmos. Para Foucault, as tecnologias do eu ou
tecnologias de si são práticas que permitem aos indivíduos efetuar certo número de operações
sobre seu corpo e sua alma, sobre seus pensamentos e sua conduta, a fim de obter uma
transformação de si mesmos. (FOUCAULT, 2010).
Com isso, quero assinalar que a analítica foucaultiana do exercício do poder é sempre
sobre os outros (a política) e sobre si mesmo (a ética); ao preocupar-se com as questões de
poder, Foucault mostra os deslocamentos nas formas de governar os homens nas sociedades.
Para o autor, há mutações nos modos como as tecnologias operam em determinados contextos
históricos, entretanto, as tecnologias de poder e as tecnologias de si estão sempre imbricadas.
Como artes de governar os homens, Foucault destaca as tecnologias de poder pastoral, poder
disciplinar e o biopoder31.
Tecnologias do poder pastoral: o poder pastoral – originado na sociedade hebraica, no
Oriente, ampliando-se para as sociedades ocidentais por meio do cristianismo e da igreja
cristã e, posteriormente, transferindo-se para uma racionalidade política baseada numa noção
de Estado – marca um deslocamento histórico nas artes de governar, provocando “uma grande
crise da experiência ocidental da subjetividade”. (FOUCAULT, 2010, p. 279). Tal poder não
mais é exercido sobre a terra e o território (como na política dos gregos), mas sobre o
rebanho, reunindo, guiando e conduzindo os indivíduos até então dispersos, característica
bastante particular da tradição judaico-cristã, cujo Deus, e unicamente Ele, é o pastor de seu
povo. Nessa lógica, basta que o pastor desapareça para que o rebanho se disperse novamente;
o rebanho só existe pela presença imediata e ação direta do pastor, produzindo certa
dependência e obediência. (FOUCAULT, 2006, p. 359).
O filósofo francês mostra-nos como esse poder é exercido mediante uma
individualização detalhada e uma noção de coletivo – individual e total –, pois o pastor
precisa conhecer cada ovelha do seu rebanho, para assim guiar, conduzir e salvar cada uma e
o coletivo. O pastor presta atenção em todo o rebanho, mas sem perder de vista nenhuma de
suas ovelhas. Cabe ao pastor velar “cuidadosamente cada um de seus seguidores e o conjunto
deles, dedicando-se inteiramente a essa tarefa, inclusive, quando esta demandava seu próprio
sacrifício”. (GADELHA, 2013, p. 122). O pastor é aquele que cuida do alimento do seu
rebanho, fornece alimento, sacia a fome e a sede; ele vela para que todas as ovelhas sejam
salvas e preocupa-se em recuperar a ovelha perdida.
Com o cristianismo, o poder pastoral – esse poder individualizante, essa técnica de
individualização – incluirá a vigília, confissão, o exame, a direção da consciência, a
obediência, a verdade. O poder pastoral cristão foi pensado especialmente a partir do século
III e desenvolveu-se posteriormente, sendo que o próprio “Estado adapta a tecnologia pastoral
às suas necessidades. O faz por meio de toda uma série de práticas refletidas e conscientes de
sua singularidade”. (KOHAN, 2005, p. 86). Isso deve ser compreendido, como bem destaca
Foucault, pelas novas relações econômicas, sociais e estruturas políticas, deslocando o
governo dos homens de uma ênfase mais religiosa, para uma noção de Estado, e, nesse
sentido, o poder pastoral associa-se ao Estado.
Júlio Aquino (2013, p. 205) diz que “será por meio do acesso à intimidade das
pessoas, via exploração e controle de suas almas, que o jogo do pastor ocupar-se-á das
consciências dos indivíduos, incitando-os a aderirem aos regimes de verdade em voga”. Ele
aponta que o jogo do pastor irá transmutar-se no jogo do expert, “operando no encalço das
almas, regulando cada passo individual e perpetrando regimes do eu tão estereotipados quanto
idiossincráticos a sujeitos que se creem autônomos, ainda que (e porque) ininterruptamente
governados”. (AQUINO, 2013, p. 205).
Augusto (2013, p. 23), ao analisar a polícia e as ações preventivas do Estado
direcionadas às crianças e aos jovens envolvendo suas comunidades, constata que essas ações
são um desdobramento do poder pastoral, “uma ressonância das políticas sociais como prática
de polícia para promoção da saúde da população e prosperidade do Estado”. O interesse não
estava mais centrado na salvação do povo para o outro mundo (como o poder pastoral
cristão), mas em salvar o povo nas questões de saúde, bem-estar, segurança, padrão de vida,
52
32 Em Vigiar e Punir, Michel Foucault trata das questões que marcam as escolas, os hospitais, os presídios,
como espaços disciplinares para a formação de sujeitos dóceis e produtivos. Nessa obra, o autor também mostra
que o panóptico de Bentham é um esquema arquitetural que bem representa tal tecnologia específica de poder,
seguindo uma lógica disciplinar de vigilância generalizada.
33 “O ‘sujeito individual’ descrito pelas diferentes psicologias da educação ou da clínica, esse sujeito que
‘desenvolve de forma natural sua autoconsciência’ nas práticas pedagógicas, ou que ‘recupera sua verdadeira
consciência de si’ com a ajuda das práticas terapêuticas, não pode ser tomado como um ‘dado’ não-
problemático. Mais ainda, não é algo que possa analisar-se independentemente desses discursos e dessas
práticas, posto que é aí, na articulação complexa de discursos e práticas (pedagógicos e/ou terapêuticos, entre
outros), que ele se constitui no que é”. (LARROSA, 1994, p. 41).
54
gestão da circulação de coisas e pessoas, portanto, trata-se de um poder mais totalizante. É por
meio da invisibilidade que o poder disciplinar vai gradualmente operando de forma cada vez
mais sutil, mas capaz de atravessar os indivíduos de maneira contínua e permanente 34. E aqui,
o conceito de população - que surge na sociedade europeia por volta do século XVIII -, como
novo alvo de poder, torna-se imprescindível para pensar a biopolítica, uma política capaz de
gerir a vida de cada indivíduo e da população. Os dispositivos de segurança, ou seguridade, ao
agirem na população, também tocam a intimidade do indivíduo. As tecnologias postas em
ação não têm mais como foco a proibição ou a obediência, mas calcular minuciosamente em
que medida é preciso intervir na população. A estatística passa a ocupar um lugar central, a
fim de calcular os riscos da população e seu consequente controle (a educação precoce das
crianças, como aponta Bujes (2015, p. 268), é pensada em seus custos e também como
investimento preventivo, caracterizando seu objetivo biopolítico).
O biopoder irá constituir-se num poder sobre a vida da população, a fim de preservá-
la, ou seja, na biopolítica, o indivíduo não é mais um corpo individual, mas “uma cifra, um
número, um código, ou, no limite, um corpo abstraído em um núcleo populacional passivo de
gestão administrativa, visando qualquer instância de sua vida”. (CARVALHO, 2016, p. 4). A
vida das pessoas é regulada para promover mais vida e mais bem-estar social, ou seja, a
prosperidade da população, a sua saúde e longevidade são tomadas como centrais, mas tudo
isso mediante um governo mínimo, um governo que implica liberdade. Liberdade numa
gestão calculada da vida populacional. Miller e Rose afirmam que “as formas contemporâneas
de poder foram construídas sobre a premissa de liberdade”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 19). A
relação de poder envolve paulatinamente a liberdade: “a liberdade aparecerá como condição
de existência do poder” (FOUCAULT, 2010, p. 289), ou seja, o poder só se exerce sobre
sujeitos livres. O exercício do poder estatal sobre os fenômenos da população, por intermédio
do biopoder, age com princípios de laissez-faire.
Trazendo tal conceito para o âmbito escolar, Bujes (2002) constata que o arsenal
pedagógico é rico em instrumentos que têm por finalidade afinar as operações biopolíticas: “a
auto-observação, a auto-avaliação, as fichas de observação, os registros, os exames, as
produções escritas, os desenhos, as rodas de conversa... Por tais mecanismos pretende-se não
apenas que a criança se tome como objeto para si mesma, se autoconheça, mas, ao mesmo
34 Interessante pensar que os dispositivos disciplinares e os de segurança sempre existiram, “não são exclusivos
da Modernidade. Contudo, por razões políticas e econômicas, na Modernidade eles adquirem maior relevância,
ao estender-se por toda a sociedade”. (CASTRO, 2014, p. 110). Os dispositivos disciplinares e biopolíticos
convertem-se em novas formas de governar a população, porém, o dispositivo soberano não deixou de funcionar.
(CASTRO, 2014).
55
tempo ou alternativamente, que ela se exponha ao escrutínio alheio”. (BUJES, 2002, p. 25).
Ao mesmo tempo, acompanhamos a emergência de práticas, currículos, propostas
pedagógicas que buscam cada vez mais liberdade para os sujeitos escolares. Esse é ponto
central para compreender porque as práticas da documentação pedagógica se encaixam nas
racionalidades da governamentalidade neoliberal e da sociedade de controle.
Parece já ter ficado evidenciado que, nos estudos de Foucault, as tecnologias de poder
pastoral, de poder disciplinar e da biopolítica estão em arranjo, ou seja, s se articulam, uma
vez que não são entendidas como linearidades, tampouco causas e consequências. Essas
tecnologias articulam-se entre si, conduzindo a conduta dos outros e do indivíduo em si
mesmo, atualizando as formas de exercício do poder mediante novas tecnologias e estratégias.
Nesse contexto é que Foucault percebe que há uma passagem, uma transição, uma
sobreposição da sociedade disciplinar para a sociedade de controle ou sociedade de
seguridade, uma vez que o poder disciplinar não operava mais sobre corpos individualizados e
comportamentos individuais, um corpo-indivíduo, mas era um poder normalizador, cujo foco
era administrar a vida da população nas lógicas do mercado, ou seja, conduzir a própria
conduta da espécie, um corpo-espécie (observar, calcular e regrar taxas de natalidade, taxas de
mortalidade, fluxos de contaminação, condições sanitárias, entre outras condições de vida).
Esta Tese teve como desafio mostrar como as práticas de registro operam enquanto
tecnologia de governamento, permeadas por um conjunto de estratégias. Estratégia aqui é
compreendida como uma forma de “designar a escolha dos meios empregados para se chegar
a um fim; trata-se da racionalidade empregada para atingirmos um objetivo”. (FOUCAULT,
2010, p. 247). Compreendo que, ao conduzirem-se as condutas (tanto dos outros, quanto de si
mesmo), há estratégias empregadas para alcançar determinados fins, as quais estão ajustadas
às tecnologias de poder e às tecnologias de si. Podemos pensar que a tecnologia pastoral
aciona um conjunto de estratégias; a tecnologia disciplinar aciona um conjunto de estratégias;
a biopolítica aciona um conjunto de estratégias – todas compondo complexas tramas que
estruturam a racionalidade da governamentalidade neoliberal das práticas que nos fazem
alcançar determinados objetivos e fins específicos nas nossas vidas. Essas forças atuam
também nos espaços e tempos da infância, da Pedagogia e da instituição escolar.
Governamentalidade: O conceito de governamentalidade funcionou neste trabalho
investigativo como uma possibilidade para compreendera grade de inteligibilidade em que se
inscrevem as práticas de registro que operam como tecnologia no governamento da infância.
Ao afirmar isso, o conceito da governamentalidade neoliberal ajuda-me a compreender que as
práticas de registro da documentação pedagógica, tomadas como tecnologia, operam no
56
35 Segundo Gallo (2015), Foucault introduz o conceito de governamentalidade, que aparece pela primeira vez na
aula de 1º de fevereiro de 1978 – a quarta aula do curso Segurança, Território e População.
57
entre sujeitos (conduzir as condutas dos outros) e relação consigo mesmo (conduzir-se a si
mesmo).
O governo das crianças pelos adultos ou pela família – por exemplo – pode ser
entendido como a arte de conduzir as condutas. Em relação à infância, afirma Bujes (2015),
“governar supõe zelar, antes de mais nada, para a manutenção da vida das crianças, mas
também para possibilitar que ela se torne útil social e economicamente”. (BUJES, 2015, p.
265). Foucault (1990, p. 282) afirma que “estas coisas, de que o governo deve se encarregar,
são os homens, mas em suas relações com as coisas que são as riquezas, os recursos, os meios
de subsistência, o território em suas fronteiras”. Assim, a arte de governar compreende não só
a ação de conduzir a conduta do outro, mas também a ação de conduzir e governar a si
mesmo.
Interessante fazer uma ressalva aqui: Veiga-Neto (2005) esclarece alguns problemas
com o vocabulário técnico e propõe a ressurreição, na língua portuguesa, da palavra
governamento para entender que a ideia de governo, na perspectiva foucaultiana, não está
somente atrelada às instituições de Estado (como governo municipal, Governo da República,
ou seja, instâncias governamentais, administrativas, centrais), mas também a uma ação de
governar36. O autor coloca o termo governamento como a ação de conduzir as condutas de
uns sobre os outros ou sobre si mesmo, marcando os dois eixos de governamento: entre
sujeitos e consigo próprio. (VEIGA-NETO, 2015, p. 52). É por essa razão que utilizo, ao
longo desta escrita, a palavra governamento, sugerida por Veiga-Neto, no sentido de governo,
exposta por Foucault.
Para o filósofo, as artes de governar deslocam-se com o aparecimento do Estado
moderno, a expansão demográfica, a crise do feudalismo, o crescimento da produção agrícola,
as questões monetárias e econômicas, a legitimação da estatística enquanto ciência do Estado,
entre outros fatores sociais e políticos. Foucault (2008a) investe no estudo das artes de
governo, atentando para a emergência de uma racionalidade governamental que corresponde
ao aparecimento do Estado moderno e de uma economia estatística, voltada para os
fenômenos do corpo populacional. É possível perceber, no século XVIII, o desenvolvimento
de “uma preocupação com as populações, com as suas vidas, no sentido de preservá-las.
Inicia-se a era do biopoder, de uma biopolítica voltada para a população”. (BUJES, 2010b, p.
36 Em escrita anterior, Veiga-Neto (2002) já procura definir governo como “essa instituição do Estado que
centraliza ou toma para si a caução da ação de governar” (VEIGA-NETO, 2002, p. 19) e governamento como “a
questão da ação ou ato de governar” (VEIGA-NETO, 2002, p. 19) e “ações distribuídas microscopicamente pelo
tecido social”. (2002, p. 21). Em relação ao uso dos termos governo e governamento nesta Tese, esclareço que
farei uso da palavra governamento tal como propõe Veiga-Neto, no sentido de governo, referenciado por Michel
Foucault.
58
167). Diante desse contexto histórico, surge a necessidade de encontrar novas formas de
governar os outros e de governar a si mesmo, visto que um novo conceito nas artes de
governar começa a ser desbloqueado, deslocando-se da lógica disciplinar para a lógica da
governamentalidade.
A ampliação e as transformações nas formas de governar os sujeitos e a população
estabeleceram as condições de emergência para aquilo que muitos autores chamam de “a era
da governamentalidade”. Para Foucault (2008a), governamentalidade é:
encerrado em si mesmo, como procurou mostrar o referido filósofo ao longo dos seus estudos,
desde o aparecimento do conceito de governamentalidade. Com a governamentalidade, as
relações de poder adquirem outras significações (CANDIOTTO, 2010), sendo ela
compreendida como uma chave de inteligibilidade.
Ao definir a governamentalidade como grade de inteligibilidade para este trabalho,
interessado em mostrar como as práticas de registro da documentação pedagógica operam no
governamento da infância, acredito que esse conceito me ajuda a olhar para a atmosfera onde
as práticas de registro são movimentadas, permeadas por tecnologias de poder e tecnologias
de si, as quais produzem efeitos nos sujeitos infantis e também nos sujeitos docentes.
Concordo com Miller e Rose quando afirmam que governamentalidades são tanto
“mentalidades, quanto tecnologias, são tanto formas de pensar, quanto instrumentos de
intervenção”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 32).
Antes de seguir adiante, considero interessante mapear, mesmo que brevemente, os
tipos de racionalidades de governo (ou um quadro de racionalidades políticas, ou ainda, um
estilo de vida) apresentados por Michel Foucault: o liberalismo (inventado no século XVIII) e
o neoliberalismo. Faço isso porque, ao analisar-se a constituição da infância, da Pedagogia e
da instituição escolar na Modernidade (especialmente no Capítulo 2 da Parte I), é possível
compreendê-las em articulação com as razões políticas capazes de produzir modos de ser
sujeito de certos tipos, condizentes com a governamentalidade liberal e neoliberal. Assim, o
liberalismo e o neoliberalismo, antes de serem compreendidos como mera representação
social, são tomados como práticas que possibilitam determinadas formas de vida e como
racionalidades políticas.
O liberalismo é acionado após a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente
depois da crise do petróleo de 1973, e sua generalização, na década de 1990, dá-se com a
emergência dos Estados Democráticos de Direito (LEMOS, 2015). No liberalismo (enquanto
forma de pensar e exercer o governo), duas características são fundamentais: a intervenção
mínima do Estado na economia e a liberdade dada ao mercado para impulsionar o
desenvolvimento do Estado (LOPES, 2013). O livre mercado determinava, com naturalidade,
“a regulação interna do mercado e do próprio Estado”. (LOPES, 2013, p. 295). Na
mentalidade liberal, para melhor governar, foi necessário construir um indivíduo livre. Porém,
no século XX, o liberalismo entra em crise com a acusação de que deveria governar melhor, e
60
[...] essa forma de governo do Estado mover-se-ia premida pela ideia de que
governar-se-ia pouco, que muitas coisas escapavam à governamentalidade,
por cima e por baixo; daí o motivo desse investimento na maximização das
forças estatais – saúde, natalidade, higiene, segurança, previdência, etc. – a
um custo político e econômico mínimo. (GADELHA, 2013, p. 137).
37 Carvalho (2016, p. 5) explica que “a diferença entre o liberalismo e o neoliberalismo, contudo, situa-se na
mutação das intensidades dos focos criativos de novas estratégias desse controle que não é mais feito apenas por
uma polícia ou uma política especializada, mas por mecanismos de onicontroles”.
61
[...] o neoliberalismo não pode mais ser entendido apenas como uma teoria
econômica, mas como uma matriz de inteligibilidade que nos permite
compreender que as transformações nos modelos de sociedade, sugeridas por
diferentes analistas e brevemente aqui apresentadas, não se excluem, elas
coexistem, em suas múltiplas manifestações, pois é uma mesma
racionalidade que as sustenta e lhes dá sentido, aquela que tem na
competição o seu principal motor. (BUJES, 2010a, p. 14-15).
Essa nova mentalidade de governo buscou estabelecer uma parceria com o indivíduo,
no sentido de ele agir sobre ele mesmo, naquilo que ele considera importante para o seu estilo
de vida, e não mais depender de um Estado que promova o bem-estar nem ser “dependentes
de instruções por autoridades políticas para conduzir suas vidas e regular suas existências
diárias”. (ROSE, 2011, p. 231). Cada sujeito deve ocupar-se consigo mesmo, com o objetivo
de garantir para si as condições que antes eram garantidas pelas políticas sociais de Estado.
(LOPES, 2013).
Como apontam Miller e Rose (2012, p. 101), “o neoliberalismo recodifica o lugar do
Estado no discurso da política”. O Estado precisa defender os interesses da nação na esfera
internacional, porém, os indivíduos autônomos “devem cuidar livremente de seu negócio,
tomando suas próprias decisões e controlando seus próprios destinos”. (MILLER; ROSE,
2012, p. 101). Estes autores afirmam que um dos mecanismos do neoliberalismo é a
“proliferação de estratégias para criar e manter um ‘mercado’, para reformular as formas de
troca econômica com base em troca contratual”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 101-102). Essa
nova racionalidade de governo oferece segurança a partir de esquemas de assistência médica,
moradia mediante o setor privado, segurança e bem-estar, maximizando a qualidade de vida.
62
população pode gerar para a sociedade e, ao mesmo tempo, trazendo credibilidade para os
saberes e práticas produzidos sobre os indivíduos, apresentando intrínseca relação com as
artes de governar, tanto o indivíduo e este sobre ele mesmo, quanto a população. Tal como
destacam Bello e Traversini (2009) ao descreverem o saber estatístico como tecnologia de
governo:
CAPÍTULO 2
A EMERGÊNCIA DAS PRÁTICAS DE REGISTRO DOCENTE
‘Conhecer’ um objeto de tal maneira que ele possa ser governado é mais do
que uma atividade puramente especulativa: exige a invenção de
procedimento de notação, modo de coletar e de apresentar estatísticas, o
transporte destas para outros centros onde se possam fazer cálculos e
avaliações, e assim por diante. (MILLER; ROSE, 2012, p. 44).
Se existe um assunto sobre o qual grande parte dos pedagogos, psicólogos, terapeutas,
médicos, filósofos, sociólogos, entre outros profissionais advogam é o direito de falar,
escrever, estudar, classificar, comparar, registrar a infância e a criança. Ligadas a isso, a
infância e a criança transformam-se em material, ingrediente, substrato para as políticas
públicas, os programas governamentais, os discursos partidários e também para os sonhos, as
previsões de futuro, as utopias, a chave para um mundo melhor. Tal como destaca Larrosa
(1998, p. 229), há “bibliotecas inteiras que contêm tudo o que sabemos das crianças e legiões
de especialistas que nos dizem o que são, o que querem e do que necessitam em lugares como
a televisão, as revistas, os livros, as salas de conferência ou as salas de aula universitárias”.
Práticas discursivas e não-discursivas vão constituindo verdades sobre a infância e as
crianças. Com isso, quero dizer que os modos como nos relacionamos com a infância e com a
criança são fabricações de determinadas contingências históricas, culturais, econômicas,
sociais, e o sujeito é parte ativa desses processos.
Neste capítulo, pretendo colocar em evidência os modos pelos quais passamos a
pensar, narrar, escrever sobre a infância e as crianças. Parafraseando a epígrafe que abre este
capítulo, para conhecer a infância, é preciso a invenção de procedimentos para que ela possa
ser governada. Assim, questiono: como emergem e se deslocam as práticas de registro
docente sobre as crianças na escola? Como se dá a articulação entre infância, pedagogia e
escola, a fim de tornar necessárias e cada vez mais refinadas as práticas de registro docente
sobre o sujeito infantil? Quais as condições de possibilidade para a emergência das práticas de
registro da documentação pedagógica na Educação Infantil contemporânea? Que efeitos tais
práticas produzem nos modos de ser aluno e professor?
Para mobilizar os questionamentos acima, procuro discutir sobre a escola como
instituição específica e a Pedagogia como saber científico que tomam para si o direito e o
dever de dizer e escrever sobre os sujeitos infantis e suas formas de vida, produzindo práticas
discursivas e não-discursivas sobre comportamento, aprendizagem, amizade, postura, boas
66
maneiras, entre outros elementos da vida infantil. Faço isso estabelecendo um recorte
histórico para a análise: discorro sobre a instituição escolar e a Pedagogia, articuladas com as
tecnologias disciplinares instauradas na Modernidade, com seus desdobramentos em
tecnologias biopolíticas mobilizadas na Contemporaneidade. Tal análise permite-me
compreender a emergência das práticas de registro docente sobre as crianças nos contextos
escolares. Emergência é aqui tomada como “a entrada em cena das forças; é sua irrupção, o
salto pelo qual elas passam dos bastidores ao palco, cada uma com o vigor e a jovialidade que
lhe é própria”. (FOUCAULT, 2003, p. 269).
Ao buscar material histórico sobre a invenção, aparecimento, constituição,
individualização e consolidação da infância moderna, minha intenção é construir uma história
do presente que me ajuda a problematizar a temática em questão. Não se trata de descobrir a
origem, o ponto zero de onde tudo evoluiu, nem de escrever “A verdadeira história da
infância” para então dizer quem são as crianças. Segundo Foucault (1990, p. 17), “procurar
uma tal origem é tentar reencontrar ‘o que era imediatamente’, o ‘aquilo mesmo’ de uma
imagem exatamente adequada a si; [...] é querer tirar todas as máscaras para desvendar enfim
uma identidade primeira”. Meu objetivo é muito mais pesquisar sobre os modos como
chegamos a pensar na infância e nas crianças da forma como pensamos, como as crianças
tornaram-se produtos de saberes, sujeitos de conhecimento e como foram assujeitadas a esse
mesmo conhecimento que as produziu como sujeitos.
Minha intenção é colocar em evidência algumas certezas que temos sobre infância e
criança, mostrando como, ao longo da história, elas passaram a ser alvo de conhecimentos,
pesquisas, estatísticas, tornando-se objeto de estudo para muitas áreas de conhecimento – em
especial e talvez demasiadamente da Pedagogia. Como, ao longo da história – não de forma
linear nem consecutiva, não como simples causa e efeito –, inventamos um modo dominante e
absoluto de pensar a infância e o sujeito infantil. Vale recorrer novamente àquilo para que nos
chama atenção Foucault (2009) sobre nossas formas de pensar que nos levam à produção de
verdades cristalizadas:
Com isso, quero sugerir – e pretendo mostrar “como” – que as práticas de registro
docente sobre o sujeito infantil na escola se tornam cada vez mais refinadas e sutis,
demarcando as minúcias de um sujeito infantil autorregulado. Entendo que essa discussão é
importante para compreender o encaixe das práticas de registro da documentação pedagógica
na Educação Infantil atual, que, a meu ver, está conectada com os modos de compreender e
governar a infância e a criança contemporânea, bem como com as transformações neoliberais
da sociedade. Para alcançar o objetivo deste capítulo, organizei-o inicialmente, em cinco
distintas seções: as três primeiras seções abordam a infância, a Pedagogia e, por último, a
instituição escolar, especialmente a escola de Educação Infantil. Mesmo compreendendo que
a infância, a Pedagogia e a instituição escolar estão imbricadas umas nas outras por um
complexo processo de articulação, foi necessária a organização em três seções na escrita deste
capítulo. A escrita inicial ajuda a pensar sobre as duas seções finais: os deslocamentos nas
práticas de registro e a emergência da documentação pedagógica.
KOHAN, 2004, 2005, 2007; LARROSA, 1998). Como destacam Sarmento e Pinto (1997, p.
13), “crianças existiram desde sempre, desde o primeiro ser humano”, porém, a infância é
uma construção social “a propósito da qual se construiu um conjunto de representações
sociais e de crenças e para a qual se estruturam dispositivos de socialização e controle que se
instituíram como categoria social própria”. Todavia, é significativo lembrar que a criança não
é eterna, nem natural, mas sim, uma identidade social ligada às práticas familiares, de
educação e classe social. (VARELA; ALVAREZ-URÍA, 1992)38.
Em relação à concepção de infância construída na Modernidade, escolho abordar as
duas ênfases mapeadas por Dora Marín-Díaz (2010), fruto de sua pesquisa de Mestrado.
Segundo a pesquisadora colombiana, as noções de infância nesse período estão vinculadas à
“infância clássica” e à “infância moderna liberal”. A infância clássica mostra reflexos nos
pressupostos comenianos, apontando para a maleabilidade e a possibilidade de formação do
sujeito, marcados pela disciplinabilidade. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 200). “Formar o homem é
submetê-lo à disciplina, que se encarregará de aproveitar a atitude para a ciência, bem como a
honestidade e a piedade que nascem com a criança como semente, e que a levarão à própria
ciência, virtude e religião”. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 200). As crianças constituíram-se
infantis a partir do intenso disciplinamento da sociedade e, com ênfase nas práticas
disciplinares, passaram a viver nas escolas. Lá, por meio do ensino, deveriam alcançar a
humanidade.
A infância moderna liberal está ligada ao pensamento educativo do filósofo Jean-
Jacques Rousseau39(viveu em Genebra, entre 1712-1778), o qual apresenta outro modo de
38 A etimologia da palavra infância, como prefixo infans, leva-nos ao entendimento de noções de negatividade,
menoridade, ausência, falta. (BOTO, 2002; SARMENTO, 2004; KOHAN, 2007, 2008). Para Kohan (2008), a
infância nasce como uma palavra latina, há mais de vinte séculos. Infans: indivíduo de pouca idade; o termo
contém o prefixo in e fari – falar; Indivíduo que não fala, incapaz de falar; Infantia: incapacidade de falar;
Infante: criança.
39 Cabe dizer aqui que, por volta do século XV e XVI, o humanista cristão Erasmo de Rotterdam já demonstrava
claramente a defesa de uma educação liberal para as crianças e as críticas à educação escolástica, na passagem da
Idade Média para a Modernidade. A esse respeito, escreve especialmente dois tratados pedagógicos, um
dedicado à educação de crianças entre dois e três anos, intitulado É necessário dar ainda muito cedo às crianças
uma educação liberal, e o outro voltado a jovens entre 12 e 17 anos, intitulado O plano de estudos. Embora
tenha vivido em época diferente, Rousseau, mais tarde, confirmará a natureza humana racional e livre. O
professor Dr. Sidnei Francisco do Nascimento dedica seus estudos à análise da educação liberal em Erasmo e
Rousseau e mostra que “Erasmo se debatia com o modelo de educação desenvolvido pela escolástica ao final da
Idade Média. Recomendava uma educação liberal baseada nas obras dos autores antigos, principalmente os
escritos dos gregos e dos latinos. Seu plano de ensino caminhava em direção contrária ao que se ensinava dentro
das escolas medievais. Incompreendido pela ortodoxia e pelos reformados, o humanista cristão procurava
renovar a interpretação das Sagradas Escrituras, distante do rigor formal incentivado pela lógica de Aristóteles e,
ao mesmo tempo, contrária à exegese propagada por Lutero e os luteranos. A teologia, a educação e a filosofia
deveriam ser conjugadas com liberdade. Assim, a criança deveria ser educada com o respeito e o cuidado
conjugados às suas potencialidades. Rousseau, por sua vez, se opunha à educação que destilasse preconceitos.
Ao observar a vida nas cidades, criticava, ao mesmo tempo, uma educação cheia de etiquetas sociais. A
69
conceber a criança, em meados do século XVIII. “Trata-se do sujeito que, ao interagir com o
meio, com o mundo – especialmente com a Natureza – e com os homens, desenvolve o que
tem de inteligência, potencialidades e Natureza própria”. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 201). Um
sujeito mais livre, que busca em si e por si mesmo, sendo que o papel do adulto é proteger, e
não julgar. Vemos emergir uma educação mais centrada na criança e nas suas características
particulares40.
Buscando maior aprofundamento, referencio Mariano Narodowski (2006) ao analisar
o discurso pedagógico do pastor morávio Jan Comenius (1592 – 1670) para a Pedagogia,
utilizando especialmente a obra Didática Magna (escrita no século XVII). O autor mostra que
Comenius traça um esquema daquilo que posteriormente se chamou de infância moderna.
Para Comenius, o homem deveria ser educado nos primeiros anos de vida; seguindo uma
ordem de sequenciação e graduação na instrução, todos os homens poderiamtornar-se
educáveis. Portanto, a infância deve ser formada com métodos eficazes, racionais e precisos,
mediante um programa universal de ensino, tal como descreve na Didática Magna.
Narodowski (2006) percebe que Comenius trata a infância como ponto de partida,
como base que deve ser completada para alcançar a idade madura, como uma semente que
precisa ser cultivada, ou seja, “a infância não pode ser outra coisa senão onde se assenta,
portanto, a base a partir da qual se atingem as metas superiores”. (NARODOWSKI, 2006, p.
44). Entretanto, conforme demonstra Narodowski (2006, p. 46), o ideal comeniano “não se
aprofunda nas qualidades empíricas do ser infantil, nem teoriza” sobre o sujeito infantil, ou
seja, “a infância não é uma substância que necessita ser cristalizada”. (NARODOWSKI,
2006, p. 46). Mesmo não se aprofundando nas qualidades empíricas do sujeito infantil,
Comenius aponta fortemente que a infância deve ser educada em sua totalidade, fora do
educação deveria ser desenvolvida fora da sala de aula, numa atmosfera campestre. A criança campesina era
mais feliz do que a nascida e educada nas grandes cidades. Para Rousseau o amadurecimento passava
invariavelmente pela consideração do outro. Era nesse momento que o autor migrava das considerações morais
para a vida política. O indivíduo deixa de ser criança quando começa a sofrer pelo sofrimento do outro, quando
percebe que não está mais sozinho no mundo e que sua felicidade não reside mais na satisfação apenas de suas
próprias necessidades. A noção de cidadania se constrói pelo reconhecimento do outro e pela consciência de que
devemos ao mesmo tempo respeitar e conviver com as diferenças. Mesmo envolvidos e reagindo a contextos
diferentes, ambos concordavam em muitos aspectos, sobretudo naquele que nos sugere que a boa educação é
essencial para nos tornarmos homens melhores e livres, com dignidade e responsabilidade”. (NASCIMENTO,
2015, p. 95).
40
Claudio Dalbosco, ao abordar o caráter aporético da educação natural da primeira infância, no livro Émile de
Rousseau, marca uma tensão entre as necessidades da criança e os cuidados do adulto, e nos mostra outras
leituras possíveis do pensamento rousseauniano, especialmente no que diz respeito ao caminho natural da
educação da criança. O autor afirma que “a dimensão significativa do conteúdo da educação natural deriva-se da
exigência, posta ao adulto, de assumir responsabilidades na formação da vontade e do caráter da criança, não
podendo, com isso, simplesmente projetar sua vontade no mundo da criança, mas, ao mesmo tempo, não manter
intocável seus desejos e caprichos”. (DALBOSCO, 2009, p. 183).
70
âmbito familiar (pois os pais não têm tempo, nem conhecimentos suficientes para educar seus
filhos), destacando assim a importância dos processos de escolarização.
Posteriormente, percebemos em Jean-Jacques Rousseau, especialmente na obra Emílio
ou da Educação, que “a infância significa o homem em seu estado natural, antes de ser
degenerado pela cultura”. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 201). É a partir do interior, das
particularidades de cada indivíduo, que ocorre a educação. O sujeito seria “o fator especial do
trabalho instrutivo, um fator dotado com uma capacidade de autorregulação que deveria ser
integrada na estratégia de governamento”. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 202). Retomando as
leituras na referida obra, Rousseau (1979) salienta:
41
Interessante marcar, novamente, que outras leituras são possíveis em relação ao pensamento rousseauniano, tal
como abordam os reconhecidos estudos e pesquisas de Dalbosco. A partir dos estudos do livro Emílio, este autor
mostra que o adulto deve “auxiliar na supressão das necessidades físicas, no desenvolvimento das forças
72
infância dá-se mediante certa racionalização nas formas de agir sobre as ações dos outros para
alcançar determinados fins (ROSE, 2011), mas opera também nas formas de agir que afetam a
maneira como os próprios indivíduos conduzem a si mesmos. (BUJES, 2008). A infância
seria uma condição vital para governar os sujeitos infantis. Como condição para governar as
crianças, a infância moderna trata de fabricar um sujeito infantil governável, um indivíduo
capaz de governar a sua vida. Os saberes, as tecnologias, as práticas discursivas e não-
discursivas vão governando e produzindo esse sujeito infantil.
Importa refletir que essa compreensão iluminou os saberes ditos científicos do campo
pedagógico na Modernidade, “saberes, que, uma vez descritos e problematizados, poderão
revelar quem é esse sujeito, como ele chegou a ser o que dizemos que ele é e como se
engendrou historicamente tudo isso que dizemos dele”. (VEIGA-NETO, 2011, p. 113).
Também é relevante dizer que a Modernidade produziu a segregação da criança em relação à
sociedade, para restituí-la a essa mesma sociedade com um novo status. (NARODOWSKI,
2001). Sobre essas questões, abordarei maiores reflexões nas seções seguintes, apontando
como a Pedagogia se configura numa expertise do campo da infância e dos sujeitos infantis e
como a escola os captura para, então, escolarizá-los por um longo período de tempo. Por ora,
cabe esboçar alguns deslocamentos nas formas de compreender a infância na
Contemporaneidade.
A Contemporaneidade aponta para uma pluralização dos modos de ser criança e para a
necessidade de heterogeneização da infância enquanto categoria social geracional (discussão
bastante cara para a Sociologia da Infância), e alguns autores fazem referência à infância no
plural – infâncias – para indicar a multiplicidade das formas de vida infantil. Percebe-se que o
termo infância, no singular, se torna insuficiente para sinalizar os modos de ser criança na
Contemporaneidade, não sendo possível expressar de uma única forma a diversidade desse
grupo etário. Já outros autores – dentre eles, destaco Postman (1999) e Buckingham (2007)–,
preferem utilizar o termo morte da infância, para sinalizar o desaparecimento da concepção
de infância construída na Modernidade e a emergência de uma infância pós-moderna. Tal
como denominou Marín-Díaz (2010), há uma infância clássica e uma infância moderna
liberal, e a conhecida expressão “desaparecimento da infância” estaria vinculada ao
apagamento das características construídas na Modernidade, especialmente pelas novas
formas de vida das crianças, conectadas e expostas à televisão, à internet e ao consumo.
Não pretendo entrar na seara de definições, para então advogar uma posição ou outra
neste trabalho. Não objetivo defender nem a expressão infâncias, nem compactuar com a
morte da infância. Trazendo essa problemática, minha intenção é mostrar que os ideais
74
traçados na Modernidade sofrem mudanças, mas também procuram resistir a elas. Considerar
a infância enquanto invenção, enquanto construção histórica não-universal, nem natural,
implica considerar também que os modos de viver a vida das crianças são diferentes em
determinadas épocas e culturas.
Recentes pesquisas e publicações vêm mostrando que as transformações na sociedade,
a vida e os tempos líquidos42, o consumo e a mídia, a globalização e a competitividade, “têm
produzido tipos peculiares de sujeitos infantis”. (MOMO; COSTA, 2010). O neoliberalismo
provoca mudanças nas formas de ser criança, de viver a vida infantil e nos modos de os
adultos se relacionarem com as crianças. Atualmente, também é possível perceber um
enfraquecimento da figura paterna e materna, um borramento das relações existentes entre
adultos e crianças, pois, como nos alerta Narodowski (2013), vivemos num “mundo sem
adultos”. Se nas práticas modernas esses mundos foram perceptivelmente separados (tanto em
tempos, quanto em espaços), percebemos atualmente uma aproximação e um borramento
dessas fronteiras. Esse borramento é visível nas formas de vestir, nos ambientes frequentados
por crianças e adultos, nos assuntos debatidos, ou seja, pouco se percebe de diferenciação
entre o que é ser criança e o que é ser adulto hoje em dia 43. É possível identificar crianças
consumindo como e com os adultos, assistindo aos mesmos programas televisivos (novelas,
filmes), apresentando agendas e compromissos diários, envolvendo-se no trabalho, na
criminalidade, sendo alvos de erotização e abuso sexual44. Do mesmo modo, ouvimos pais
dizendo que não sabem mais como educar seus filhos, avós expressando que não sabem quase
nada das crianças e, por conseguinte, crianças determinando ações e atitudes aos adultos e
monitorando suas vidas.
Alguns autores interessaram-se em pesquisar os modos de subjetivação infantil a partir
das novas culturas da infância, focando suas pesquisas na relação das crianças com a mídia
42 Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, conceitua a Modernidade como tempo sólido e os acontecimentos
contemporâneos como Modernidade líquida; as mudanças sociais vão sendo “derretidas” para dar espaço à
leveza dos líquidos. As pessoas e as suas ações são caracterizadas pela instabilidade, incerteza e insegurança,
passando de produtoras para consumidoras. O consumo é o eixo organizador da nova sociedade, e nossos
padrões de conduta são guiados e moldados pelo mercado. (BAUMAN, 2001; 2007; 2008; 2009).
43 A título de curiosidade, alguns desenhos, como “The Simpsons” e a tão atual “Peppa Pig”, mostram esse
borramento de fronteiras entre adultos e crianças.
44 Interessante assistir ao documentário Crianças Invisíveis (2005), que retrata a realidade vivida por sete
crianças de diferentes países, sendo que cada episódio conta com um diretor: Mehdi Charef (África), Emir
Kusturica (Sérvia-Montenegro), Spike Lee (Estados Unidos), Kátia Lund (Brasil), Jordan Scott & Ridley Scott
(Reino Unido), Stefano Veneruso (Itália) e John Woo (China); sugiro também A Invenção da Infância (2000),
produzido no Brasil por Liliana Sulzbach, e o documentário Babies (2010), dirigido por Thomas Balmès, que
procura retratar o primeiro ano de vida de quatro bebês em lugares diferentes: Namíbia, Japão, EUA e Mongólia.
75
45 Kincheloe (2001); Steinberg (2001); Pereira (2002); Girardello (2005); Linn (2006); Buckingham (2007);
Fischer (2006, 2007, 2008); Costa (2009a, 2009b, 2009c); Coutinho (2009); Momo e Camozzato (2009);
Andrade e Costa (2010); Momo e Costa (2010); Schmidt (2010); Alcântara e Guedes (2014).
46 Fortuna (2004); Meira (2012).
47 Felipe e Guizzo (2003); Dal’Igna, 2007, Alvarenga; Dal’Igna, 2013.
76
Como as atividades escolares cotidianas da vida das crianças passaram a ser quase
universais e padronizadas? Como pensamos e agimos com e sobre as crianças da maneira
como pensamos e agimos hoje, especialmente nos contextos escolares? Que saberes fabricam
e conformam o sujeito infantil? Ser aluno, frequentar escola, cursar a mesma série, ser
alfabetizado na mesma idade, participar de inúmeras atividades extraclasses, ser avaliado,
entre outras atividades ordinárias. É na tentativa de pensar sobre tais questões que desenvolvo
esta seção, investindo esforços para discorrer sobre os saberes engendrados pela Pedagogia
em relação à infância. Mostro como a Pedagogia moderna constitui-se enquanto área de
conhecimento, atuando e produzindo o sujeito infantil escolarizado. Por sua vez, na
Contemporaneidade, vemos emergir várias pedagogias para a infância, extrapolando os muros
do sistema escolar. O objetivo desta seção é apresentar a necessidade que a Pedagogia
(principalmente com sua raiz psi) encontra para registrar dados, informações,
comportamentos, atitudes, aprendizagens do sujeito infantil, ou seja, a vontade de Pedagogia
mostra-se articulada com a pluralização das práticas de registro docente.
A invenção e consolidação da Pedagogia está atrelada à invenção e consolidação da
infância e da própria instituição escolar. Analisar essas questões, em especial no contexto
deste trabalho acadêmico, implica compreender como a infância e as crianças tornaram-se
sujeitos-objetos de conhecimento e alvos de intervenção, sobre quem é possível narrar,
descrever, registrar, classificar, intervir, medicar, julgar, encaminhar, entre tantos outros
verbos no infinitivo. Antes de seguir adiante, é importante esclarecer que não será foco de
minha escrita desenvolver uma análise sobre as transformações ocorridas nas definições do
conceito de Pedagogia, nem sobre os embates travados em torno de sua definição enquanto
campo de saber e área de conhecimento.
Interessa-me olhar para o exercício da Pedagogia na construção de uma expertise
sobre a criança e a infância. Ao utilizar a palavra expertise, busco inspiração nas escritas de
Nikolas Rose (2011), que, ao analisar o papel social da Psicologia, o seu modo particular de
dizer a verdade sobre os sujeitos humanos e o seu modo particular de agir sobre eles para
aperfeiçoá-los, caracteriza a Psicologia como uma expertise. Expertise seria “um tipo
particular de autoridade social, caracteristicamente desenvolvida em torno de problemas,
77
48 Tal como aponta a Dissertação de Mestrado de Denis Nicolay (2006), para Comenius, a infância torna-se alvo
de salvação. “A Didática Magna é o esforço de um pedagogo em conciliar ciência e fé; em aproximar teologia e
80
Pedagogia vai precisar de técnicas e práticas cada vez mais sofisticadas que atuam sobre os
sujeitos. Tal como aponta Gadelha (2013), “a pedagogia (e, portanto, as instituições
educativas) recebe ‘de fora’ as referências que lhe permitem produzir e representar seu objeto
– o sujeito da educação – individualizando-o, num sentido amplo, como ‘o aluno’, ‘o escolar’,
‘o aprendente’”. (GADELHA, 2013, p. 178). Parafraseando Miller e Rose (2012, p. 14, p. 23),
poderia dizer que a Pedagogia se torna administradora da alma humana infantil, ou ainda,
engenheira da alma humana infantil. A Pedagogia e, portanto, a educação e a escola, vão
operar nos
Como temos visto, a Pedagogia moderna vai fabricar práticas de registro sobre o
sujeito infantil capazes de classificá-lo, julgá-lo e fixá-lo em categorias, e faz isso quando se
liga a uma vertente psicologizante. A Pedagogia, portanto, apresenta uma raiz psi,
mobilizando práticas de registro com foco no diagnóstico de normalidades e anormalidades. A
Pedagogia moderna passou a diagnosticar, e “o exercício moral encontrava na autonomia e na
vontade livre do aluno as suas duas traves mestras”, enquanto que, ao adulto professor,
competia “mais que um papel de facilitador e de mediador terapêutico”. (Ó, 2013, p. 179). A
relação educativa moderna tem, portanto, uma raiz psi, “o que significa que passou a estar
dependente dos diagnósticos, orientações teóricas, divisões e formas de explicação que a
Psicologia concebeu para indexar e reelaborar os imperativos éticos”. (Ó, 2009, p. 25).
Podemos nos reportar aos estudos de Júlia Varela (2000), quando analisa os
movimentos da Pedagogia e da própria escola, propondo três modelos pedagógicos que
serviram como tendências pedagógicas, a saber: as pedagogias disciplinares (ampliam-se a
partir do século XVIII), as pedagogias corretivas (surgem no século XX, ligadas aos
movimentos da Escola Nova, Educação Nova ou Escola Ativa) e as pedagogias psicológicas
(em expansão atualmente). Passo, rapidamente, a definir as caracterizações de cada uma49.
49 Vale fazer referência também aos estudos desenvolvidos pelo professor Dr. Noguera-Ramírez (2009) sobre as
tradições pedagógicas modernas. O autor propõe, a partir das teorizações foucaultianas, três movimentos: virada
instrucional (a preocupação pedagógica desloca-se do estudo para a instrução, o ensino); virada pedagógica (a
preocupação pedagógica desloca-se da instrução para a formação, a educação); e virada psicopedagógica (a
preocupação pedagógica desloca-se da formação e da educação para a aprendizagem).
82
controlado”. (VARELA, 2000, p. 99). O respeito ao ritmo individual de cada aluno, com base
na sua “natureza natural”, constituiu uma tecnologia “que o tornou tanto mais dependente e
manipulável quanto mais liberado fosse”, ou seja,
Os alunos têm assim cada vez um menor controle sobre sua própria
aprendizagem, já que apenas os mestres, e sobretudo os especialistas, podem
conhecer os progressos ou retrocessos que realizam. [...] Sofrem, portanto,
um processo de expropriação cada vez mais intenso que constitui a outra
face da intensificação de um estatuto de minoria que, além dos cânticos à
criatividade, à liberação e à autonomia, supõe dependência e subordinação
cada vez maiores. (VARELA, 2000, p. 99).
Partindo de toda esta discussão, o que me interessa ressaltar é que o controle exercido
sobre os alunos se torna cada vez maior, porém menos visível, não apenas exigindo disciplina,
nem autodisciplina, mas um controle interior refinado. Há um deslocamento no discurso
pedagógico, que vai do coletivo para o indivíduo; dito de outro modo, o centro dos processos
pedagógicos não está mais no coletivo (tal como os ideais comenianos de ensinar tudo a
todos), mas sim no aluno, no conhecimento minucioso de sua individualidade.
Creio que aqui a emergência da Escola Nova, tomada como movimento de renovação
da educação, iniciado no final do século XIX50, mas ganhando força no século XX em
diversos países do mundo, contribuiu para que as tentativas pedagógicas se voltassem para a
centralidade no indivíduo. O grande inspirador das teorias pedagógicas do movimento da
Escola Nova foi Rousseau (MARTINEAU, 2010), que instituiu princípios básicos para uma
psicologia do desenvolvimento da criança, que será posteriormente estudado no século XX
por Jean Piaget.
Enquanto a escola tradicional pregava a direção, a uniformidade, o controle, a atenção
forçada, a memorização, a pressão externa e a disciplina imposta por meio do autoritarismo, a
Escola Nova defendia a liberdade, a autonomia, o interesse e a iniciativa pessoal do aluno, e
“as crianças começaram a ser igualmente um dos alvos privilegiados dos programas de
individualização levados a cabo pelos experts do particular, os psicólogos e os pedagogos”.
(Ó, 2013, p. 191). É nesse contexto que surgem a escola pública e os sistemas estatais de
ensino, os quais foram constituídos, segundo Jorge Ramos do Ó, a partir das regras da
governamentalidade, a saber, “treino moral da população jovem” para que o Estado
aumentasse a sua força e prosperasse, reivindicando “bem-estar de cada um dos cidadãos”.
50 Muitas escolas são criadas nesse período em diferentes países da Europa, tais como a Casa das Crianças em
Roma, fundada em 1900 por Maria Montessori, e a Escola de Hermitage, em Bruxelas, fundada em 1907 por
Decroly.
84
(Ó, 2013, p. 191). Ao mesmo tempo, “o educador que quisesse receber o epíteto de moderno,
deveria, inversamente, variar as suas metodologias de ensino de acordo com a estrutura de
cada inteligência e o temperamento individual”. (Ó, 2009, p. 18). Assim, com a centralidade
dos processos pedagógicos voltados à individualidade de cada aluno, há que se reestruturar
toda a organização escolar, inclusive as práticas de registro docente sobre os sujeitos infantis.
No Brasil, os manifestos da Escola Nova, por volta de década de 1930, defendiam a
laicidade, a gratuidade, a obrigatoriedade e a coeducação como princípios fundamentais para
reger o funcionamento das escolas, tendo como forte pioneiro o educador baiano Anísio
Teixeira, que defende uma escola única para o povo e para a elite, pois “a escola pública é o
instrumento da integração e da coesão da grande sociedade, e se deve fazer o meio de
transformação na grande comunidade”. (TEIXEIRA, 1967, p. 36, grifos do autor). A
divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, traz críticas à escola
tradicional e propõe a valorização do desenvolvimento integral do indivíduo, sendo que o
interesse passa a ser o foco do processo educativo. Tal como aponta Azevedo, “o que
distingue da escola tradicional a escola nova não é, de fato, a predominância dos trabalhos de
base manual e corporal, mas a presença, em todas as suas atividades, do fator psicobiológico
do interesse”. (AZEVEDO et al., 2010, p. 50). Para o autor, a Escola Nova vem defender a
“atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das necessidades do próprio
indivíduo”. (AZEVEDO et al., 2010, p. 49).
A Pedagogia deixa de enfatizar uma avaliação escolar fortemente estruturada nos
exames ou nos testes padronizados de inteligência para as crianças, especialmente voltados às
fases do desenvolvimento, tais como nas pedagogias disciplinares e corretivas, e passa a
priorizar o respeito ao ritmo individual de cada criança, sendo valorizada uma forma de
avaliação cada vez mais individual. Nesse cenário, vemos ganhar força as práticas de registro
denominadas de portfólios, cadernos do aluno, pareceres descritos, relatórios individuais e
tantas outras formas de registro docente que tornam capaz a centralidade no indivíduo e, ao
mesmo tempo, dão visibilidade para os seus interesses.
Para fins desta pesquisa, interessa-me olhar para os deslocamentos da própria
Pedagogia enquanto campo de saberes que se ocupa das crianças e da infância, em sua
articulação na produção de um terreno sólido onde será possível a emergência das práticas de
registro denominadas de documentação pedagógica. Estas, em minha análise, contemplam
instrumentos mais refinados e sutis de captura do sujeito infantil, operando como tecnologia
de governamento da infância contemporânea.
85
explica que a norma funciona diferentemente nos dispositivos disciplinares (modernos) e nos
dispositivos de seguridade (contemporâneos), porém, uns não excluem os outros, “eles
coexistem em um jogo permanente de forças”, capturando os indivíduos, de modo a
disciplinar, ordenar, descrever, diagnosticar, educar, mobilizar para práticas de vida
consideradas de menor risco, tanto social, quanto particular. Os primeiros emergem para
“descrever, posicionar e controlar os corpos”, e a norma opera na população para normação,
ou seja, “a norma é o que se estabelece primeiro; a partir dela, demarcam-se o normal e o
anormal, o incluído e o excluído”. (LOPES, 2013, p. 289). Assim, a normação seria uma ação
típica da sociedade disciplinar, por vezes mais polarizada. Já os últimos operam como
“estratégias para governar a população a partir do jogo entre liberdade e segurança”, agindo
por normalização. “É a partir do normal, determinado em cada grupo, que a norma é
constituída”, ou seja, o normal vem primeiro, depois vem a norma, sendo que a normalização
é típica da sociedade de seguridade. (LOPES, 2013, p. 289).
Esses conceitos interessam aqui, pois tratam das formas de operação da norma, uma
acionando dispositivos disciplinares (normação) e a outra acionando dispositivos de
seguridade (normalização), esta última construindo a norma a partir da média. Em relação à
pedagogia, acompanhamos a sua pluralização – pedagogias para a infância, as quais, antes de
prescrever postulados universais para corrigir e controlar os corpos de cada criança,
funcionam para mobilizar cada vez maior liberdade, em meio à segurança da população,
gerenciando os riscos e regulando condutas individuais mediante um autogerenciamento.
Na Contemporaneidade, vemos emergir muitas pedagogias, e suas ênfases assinalam
um sujeito autorregulado, capaz de fazer escolhas a partir dos seus próprios interesses e
necessidades. É a partir do final do século XX que vemos surgir uma multiplicidade de
pedagogias, que têm se pluralizado com os deslocamentos de uma sociedade centrada no
ensino para uma sociedade centrada na aprendizagem. “Tal movimentação tem feito a
pedagogia se atualizar constantemente para adentrar os múltiplos âmbitos de nossas
existências, justamente porque ela tem atuado como uma operadora dos discursos que
intentam nos constituir”. (CAMOZZATO; COSTA, 2013a, p. 23). Nesse contexto, também
acompanhamos entrar em cena, cada vez de forma mais potente, as pedagogias para infância –
para pequena infância, para primeira infância – devido à escolarização cada vez mais
antecipada das crianças em espaços coletivos de educação.
Se a pedagogia moderna busca disciplinar e normalizar tanto os saberes quanto os
sujeitos dos quais se ocupa, na Contemporaneidade, “a pedagogia se transforma e reinventa
para dizer as verdades desse tempo, também os espaços onde ela atua se multiplicam e
87
Como é possível perceber, a pedagogia moderna vai constituir-se num campo de saber
prescritivo, regulador e normativo, com característica doutrinária e, às vezes, atuando em cada
indivíduo de forma disciplinar. Ela vai encontrar na instituição escolar o seu habitat “natural”
e no ser aluno o seu alvo; as pedagogias contemporâneas, por vezes mais flexíveis e
emancipatórias, atuando em diferentes lugares sociais, além da escola, exercem seu poder no
sujeito e na população. Contudo, ela atua com uma expertise, tratando de “tornar o ser
humano inteligível e praticável através de uma certa descrição”. (ROSE, 2011, p. 12). A
construção de saberes verdadeiros da pedagogia produz certos tipos de sujeito, esculpindo
suas formas, tal como aponta Rose:
Procurei ressaltar, nas seções anteriores, como a infância e a criança tornaram-se alvos
de conhecimento, representação e intervenção – especialmente da Pedagogia –sobre os quais
se inventam modos de falar, pensar, descrever e registrar. Nesta seção do trabalho, mostro
89
Na instituição escolar, podemos perceber a ação do poder pastoral atuando: “uma das
figuras privilegiadas na adoção do poder pastoral pelo Estado Moderno, nas instituições
educacionais, é a figura do professor-pastor. Ele assume a responsabilidade pelas ações e o
destino de sua turma e de cada um dos seus integrantes”. (KOHAN, 2005, p. 87). Nesse caso,
“o professor necessita conhecer o máximo possível dos seus alunos; fará diagnósticos de suas
emoções, capacidades e inteligências; conversará com seus pais para saber detalhes
iluminadores de seu passado e de seu presente” (KOHAN, 2005, p. 88), devendo ganhar
confiança de cada aluno. No entanto, são as tecnologias disciplinares, com suas estratégias e
mecanismos, que garantem o funcionamento da escola moderna.
A maquinaria escolar moderna operou com um esquadrinhamento dos tempos e
espaços e uma padronização nas formas de ser aluno e professor, colocando em ação
cuidadosas e apuradas tecnologias disciplinares. Tal como destaca Corrêa (2000), foi
necessário:
A criança, ao ser capturada pela rede de normas e leis pedagógicas, tornou-se aluno e
objeto sobre o qual foi implementada a organização da vida escolar de forma individualizada.
A jornada escolar foi composta por repetições, que não estão ocultas, mas disfarçam-se dentro
do ambiente escolar (como, por exemplo, ao dividir-se o ano letivo em primeiro, segundo,
terceiro trimestre; os alunos aprovados, os alunos em recuperação e os reprovados).
(AQUINO; CORAZZA, 2009). Assim, nos projetos da Modernidade, competia às escolas
(como também aos asilos, hospitais, hospícios, presídios, igrejas) orientar os indivíduos que
nelas habitavam para a ordem e a docilidade, por meio de espaços e tempos muito bem
planejados e projetados. Veiga-Neto (2005, p. 84) contribui nessa reflexão quando afirma que
“a escola encarregou-se de operar as individualizações disciplinares, engendrando novas
subjetividades e, com isso, cumpriu um papel decisivo na constituição da sociedade
moderna”. A escola foi concebida como uma máquina capaz de transformar os corpos num
objeto de poder disciplinar e“torná-los dóceis; [...] a escola é, depois da família (mas, muitas
vezes, antes dessa), a instituição de sequestro pela qual todos passam (ou deveriam passar...) o
91
A criança passou a ser aluno, e sua vida começou a ser estruturada em rituais de
disposição em classes, em faixas de idades, em estágios de desenvolvimento, em graus de
aprendizado, em horas de atividades, de entrada, de saída e de intervalo, em castigos e
recompensas. Enquanto aluno, ela possui modos de ser, estar e agir no mundo: sempre
51 Varela (1994) apresenta, desde os jesuítas, os dispositivos que colocaram em ação toda a maquinaria escolar,
dotando as crianças de um estatuto de alunos. A autora afirma que a intenção dos mestres jesuítas era formar
bons cidadãos; para tanto, precisavam educar as crianças em espaços fechados – os colégios –, controlando
saberes, organizando-os de acordo “com as supostas capacidades infantis”. (VARELA, 1994, p. 88). Os saberes
da cultura clássica e cristã foram organizados em diferentes níveis e programas de dificuldades crescentes, bem
como foram objetos de censura caso não se adequassem ao padrão moral. A autora afirma que “os mestres
passaram a ser os únicos detentores do saber e os estudantes viram-se relegados a uma posição de subordinação,
converteram-se em sujeitos destinados a adquirir os ensinamentos dosificados transmitidos por seus professores
para convertê-los, também a eles próprios, em seres virtuosos”. (VARELA, 1994, p. 89). Posteriormente,
acompanhamos entrar em cena na educação, além das entidades religiosas, também o Estado, o qual teve
necessidade de governar sujeitos e populações; há, com toda essa movimentação, uma necessidade de
reestruturar o campo do saber através de uma série de novos dispositivos, um “disciplinamento interno dos
saberes”. (VARELA, 1994). O Estado apropriou-se dos saberes, disciplinando-os e colocando-os a seu serviço.
Iniciativas, práticas, instituições e agentes legítimos foram os responsáveis pela desaparição de certos saberes e
pela proliferação de novos. Assim, o controle dos conhecimentos tornou-se muito mais rigoroso e interno,
passando à coerção da ciência, e não mais da verdade católica.
92
Pelo fato de as crianças serem vistas como seres a caminho de conseguir a identidade
adulta, carentes de plenitude e capacidades, os adultos, considerados seres superiores, tinham
o direito de impor, ordenar, mandar, planejar, decidir por elas. Justifica-se assim o seu poder
sobre os infantes: “a diferença entre adultos e menores foi um motivo poderoso para
estabelecer uma hierarquia social dentro da qual aqueles exercem o poder sobre estes”.
(SACRISTÁN, 2005, p. 87). Como vimos na seção anterior, a conduta do aluno passou a
constituir-se como problema da Pedagogia, mas também da escola; ao tornarem-se
“crescentemente objeto do escrutínio de um conjunto de experts de diversos campos do saber
científico” (Ó, 2009, p. 12), as crianças, por intermédio de médicos, psicólogos, pedagogos,
militares, entre outros “experts do particular”, começaram a ser alvo de uma série de
programas. (Ó, 2009, p. 12).
Popkewitz (1994) reafirma a ideia de naturalização da criança como aluno e diz que as
categorias de estudante e aluno passaram a existir fortemente no século XIX; essa invenção
reconstruiu a criança como objeto de manipulação. Tal ideia tornou-se tão natural, que hoje é
difícil pensar nas crianças senão como aprendizes. Isso implicou transformações no
pensamento social: a criança passou a ser concebida como ser universal, independentemente
da relação concreta de tempo e espaço. O autor ressalta:
52 Ao dizer isso, não pretendo entrar na discussão, que é bastante cara para teóricos da Educação Infantil, sobre
os processos de escolarização nesse nível de ensino, nem sobre conteúdos, alunos, professores, sala de aula, entre
outras questões polêmicas que, por vezes, em minha opinião, fragilizam e binarizam a discussão na Educação
Infantil. No entanto, a posição que assumi como pesquisadora tem a ver com uma criança que pensa e é capaz de
aprendizagens muito mais complexas e múltiplas, não importando se é na escola ou fora dela. Por esse processo
educativo, a responsabilidade do adulto se faz necessária.
94
Recorro aos estudos de Lockmann e Mota (2013) quando mostram a emergência das
práticas de assistência à infância no Brasil e a proliferação dessas políticas na atualidade. As
autoras citam alguns projetos, tais como Brasil Carinhoso, Bolsa Gestante, Bolsa Nutriz e
Proinfância, como exemplos de programas de assistência à infância brasileira. Afirmam que a
infância é uma invenção da modernidade e que “a invenção da infância como uma etapa de
vida com especificidades próprias esteve implicada na constituição da própria Modernidade.
Isso quer dizer que, numa relação de imanência, uma foi condição de possibilidade para a
outra”. (LOCKMANN; MOTA, 2013, p. 85). Inicialmente, as práticas de assistência
apresentavam um caráter de filantropia caritativa e atos de benemerência ao próximo; até
meados do século XIX, no Brasil, “eram desenvolvidas por meio de ordens religiosas ligadas
às igrejas e conventos que ofereciam não só ajuda material, mas, também, moral e espiritual”.
(LOCKMANN; MOTA, 2013, p. 92). Fundamentadas em Foucault, as autoras percebem que
essas práticas são regulatórias, de condução e de controle pastoral, permeadas por verdades
divinas, religiosas e cristãs, as quais conduzem as condutas dos sujeitos na vida terrena,
acompanhadas da promessa da salvação eterna.
Isso implica relacionar a roda dos expostos53, inventada na Europa medieval, como
uma das primeiras formas de atendimento à infância no Brasil, sobretudo da infância pobre. A
roda dos expostos, fundada no Brasil Colônia, proliferou durante o período Imperial,
mantendo-se durante a República e vindo a extinguir-se por volta de 1950. Essa primeira
instituição de assistência caritativa à infância cumpriu importante papel no Brasil
(MARCÍLIO, 2003, p. 53), uma vez que, mesmo minoritária no “conjunto da infância
abandonada do país nos séculos XVIII, XIX e mesmo no XX, foi no entanto a melhor
documentada, mesmo considerando-se todos os demais segmentos da população infantil”.
(MARCÍLIO, 2003, p. 73). As Santas Casas de Misericórdia e as ordens religiosas femininas
assumiram as responsabilidades com os expostos, trazendo pesadas, custosas e difíceis tarefas
para essas instituições. No século XIX, com a influência das luzes e da medicina higienista,
perde-se o cunho caritativo e passa-se a conceber a roda dos expostos como algo imoral,
contra os interesses do Estado. Os médicos higienistas, preocupados com a alta mortalidade
dentro dessas instituições, onde “vidas úteis estavam sendo perdidas para o Estado”
(MARCÍLIO, 2003, p. 68), propuseram, em conjunto com juristas, novas leis de atendimento
à infância abandonada.
53 Sobre este assunto, é possível buscar maior aprofundamento também no livro de Sandra Mara Corazza
intitulado História da infância sem fim (2000).
95
[...] para a higiene, a medicina multiplicaria sua potência e seria ainda mais
eficaz quando pudesse evitar o aparecimento da doença – procedimento este
que supõe um alargamento do raio de ação da ciência médica, configurando
a higiene como ramo desse saber que se ocupa da prevenção. Dessa forma,
sob o arco dessa ciência que se pretendia ver expandido, procurou-se instalar
um conjunto de instituições e práticas como as desenvolvidas em igrejas,
quartéis, prisões, hospícios, bordéis, oficinas e escolas. (RIZZINI;
GONDRA, 2014, p. 564).
perceber, a infância pobre foi compreendida como um problema para o campo médico e
passou a ser vista como uma ameaça; por meio de ações policiais, era preciso fazer uma
“limpeza das ruas da cidade”. (RIZZINI; GONDRA, 2014, p. 571). Destinar as crianças ao
atendimento em internatos, asilos e abrigos foi uma forma de corrigir e educar essa infância,
vista como uma ameaça pelo campo médico. Por meio de programas com exercícios físicos,
intelectuais e morais, encontraram-se formas de instruir e profissionalizar a população infantil
pobre brasileira, combinando educação e assistência54. Assim, entendendo-se a população
infantil como um problema, a educação da infância passa a ser um antídoto contra a
criminalidade:
Com um corpo frágil e dependente, capaz de colocar a sociedade em risco por suas
doenças, preguiça, fracasso, abandono, as crianças passaram por processos disciplinares de
ensino, a fim de serem educadas para uma vida saudável. Paulatinamente, ao perceber o
sucesso do investimento no desenvolvimento infantil, a sociedade começa a reclamar por mais
instituições voltadas ao atendimento das crianças. Eis a necessidade das escolas, instituições
capazes de submeter a criança a um longo processo formativo. “Nesse projeto, saberes
forjados na medicina, higiene e pediatria parecem ter sido constituídos nas bases da pedagogia
da prevenção, uma espécie de racionalidade renovada para lidar e manter no horizonte um
velho problema e formas atualizadas de enfrentar”. (RIZZINI; GONDRA, 2014, p. 577).
Como podemos ver, até final do século XIX, a infância pobre brasileira era
encaminhada para instituições religiosas, como os orfanatos, onde predominava um regime
disciplinar cujo objetivo era tornar os indivíduos incapazes em sujeitos produtivos. A
educação em instituições específicas, com o posterior surgimento de escolas para as crianças
muito pequenas, especialmente aquelas “classificadas como vadias, vagabundas, culpadas,
54 Posteriormente, os internatos passaram a conter disciplinas que abordavam a formação intelectual, física e
moral, como podemos ver “em meados da década de 1910, a instituição também incorporou os preceitos
higienistas à formação escolar dos educandos. O diretor integrou ao currículo escolar a disciplina higiene,
ministrada pelo médico da escola, disposição confirmada pelo registro nas folhas de pagamento de pessoal de
1913, nas quais constam os salários pagos ao Dr. Álvaro Reis na condição de auxiliar de ensino”. (RIZZINI;
GONDRA, 2014, p. 574).
97
para as crianças de elite, sendo que “praticamente nada das práticas escolares escapou à
normalização médica [...]. Interferiram diretamente no processo de aprendizagem [...] ao
proporem regras didáticas para o ato de ensinar”. (LOBO, 2008, p. 313).
As regras de higiene prescreviam as condições de salubridade dos colégios, e os
saberes médico-higienistas foram considerados os primeiros saberes pedagógicos legitimados
como relevantes para a educação das crianças, tanto pobres quanto ricas. A prática da
educação física, para citar apenas um exemplo aqui, tem sua emergência com os médicos
higienistas, os quais defendiam a importância das atividades ao ar livre. Em relação à
organização familiar, Bujes (2015) lembra que, a partir do século XVIII, coexistiram dois
tipos de estratégias à população infantil: a família burguesa organiza-se em torno da sua prole,
centralizada no controle da sexualidade infantil, e o controle e moralização da família pobre.
Ao apresentar tais estudos, retomo o foco desta Tese, que trata das práticas de registro
docente e o governamento da infância. A partir da trajetória histórica da Educação Infantil
brasileira, podemos perceber que as práticas pedagógicas emergem de discursos advindos da
área médico-sanitarista e higienista, estando articuladas com as práticas de registro. Jorge
Ramos do Ó (2013, p. 175) aponta que, com as influências do higienismo escolar e do
movimento da Educação Nova, as autoridades escolares produziram registros “nos quais a
atenção ao aluno se refletia ora na mediação e análise das capacidades intelectuais e criativas,
ora na inventariação e descrição das formas de conduta ou das suas aspirações mais íntimas”.
(Ó, 2013, p. 175). Como podemos perceber, as influências dos movimentos médico-higienista
e da Escola Nova relacionam-se com as práticas de registro na Educação Infantil. Os
higienistas, como aponta Lobo (2008, p. 313), “assumiram o papel de verdadeiros pedagogos
de vanguarda”, normalizando as práticas escolares com conhecimentos médicos, sendo que as
práticas de registro também apresentavam um cunho médico.
Ó (2009), ao estudar a emergência e circulação do conhecimento psicopedagógico
moderno, tanto no Brasil quanto em Portugal, percebe que há intensas implicações da
institucionalização da saúde escolar e da normalização terapêutica nas instituições escolares e
mostra o quanto os registros detalhados sobre o aluno em cadernetas, boletins semestrais ou
anuais e relatórios feitos por médicos respingam dos ideais de uma educação moderna. A
tecnologia dos testes serviu para alcançar a “interioridade dos escolares”, ou seja, cada criança
“passaria a ser examinada já não apenas pela sua prestação, pelo que conseguia fazer na sala
de aula, mas por aquilo que efetivamente era”. (Ó, 2009, p. 48). Não bastaria apenas medir o
saber, seria preciso conhecer o ser em sua minúcia. Atrelados à avaliação das crianças
anormais e de todas as suas patologias, os testes “davam assim resposta à procura de eficácia
99
que marcava a modernidade” (Ó, 2009, p. 49), pois mediam os casos desviantes e permitiam
um investimento detalhado sobre cada criança, regulando a sua conduta55.
De acordo com Ó (2009, p. 51), ampliaram-se e ramificaram-se os registros sobre a
criança, de modo que ela pudesse ser “capturada e apresentada de forma estável, fixa. Dócil,
dir-se-ia”. A observação, mensuração, quantificação, com todo o aparato de imagens,
gráficos, quadros, diagramas e números vistos em boletins, dossiês, fichas, estudos de casos,
cadernetas, testes de inteligência, questionários (fazer-falar e narrar a si próprio, como a
confissão), serviam para acompanhar o desenvolvimento físico e mental da criança, num
registro detalhado e exclusivo. “Era, portanto, essencial que se desenvolvessem,
aperfeiçoassem e estabilizassem sistemas de descrição visual das características, em si
mesmas visíveis, tanto do corpo como da mente infantil”. (Ó, 2009, p. 52-53). Tudo isso
possibilitou uma série de inferências sobre o comportamento da população infantil, tornando-
o calculável e previsível. Os registros “nos quais a atenção ao educando se espraiava tanto na
medida e análise das capacidades intelectuais e criativas como na inventariação e descrição
das formas de conduta, não cessaram de crescer no espaço lusófono a partir do termo do
século XIX”. (Ó, 2009, p. 76).
Como nos aponta Ó (2009, p. 76), “na escola do século XX terá havido sempre espaço
livre para o aparecimento de novos parâmetros de registros da diferença”; nesse sentido, “o
arquivo relativo ao aluno cresceu exponencialmente através do contributo dos vários centros
médico-psico-pedagógicos, determinados antes do mais em transcrever e codificar todas as
variações particulares” (Ó, 2009, p. 76), mais focados na moral e na formação do caráter, “e
não tanto no saber curricular, cujo peso e importância seriam menosprezados”. (Ó, 2009, p.
126).
Em resumo, a população infantil, ao ocupar um lugar distinto do lugar dos adultos e ao
apresentar necessidades de intervenção pontuais, passa a ser educada; paulatinamente, a
sociedade começa a reclamar por mais instituições para a infância, ou seja, por mais escolas, e
a necessidade de escolarização das crianças, tanto pobres quanto ricas, passa a ser crescente
no Brasil. Por tudo isso, também acompanhamos algumas condições que possibilitaram a
emergência de práticas de registro cada vez mais eficientes e eficazes sobre a infância,
agregando elementos relacionados à vida do sujeito infantil e legitimando determinados
55 Neste trabalho, utilizarei a expressão conduta, inspirada em Foucault, quando afirma que “o termo ‘conduta’,
apesar de equivocado, talvez seja um dos que permitem melhor atingir aquilo que há de específico nas relações
de poder. A ‘conduta’ é, ao mesmo tempo, o ato de ‘conduzir’ os outros (segundo mecanismos de coerção mais
ou menos estritos) e a maneira de se comportar em um campo mais ou menos aberto de possibilidades. O
exercício de poder consiste em ‘conduzir condutas’ e em ordenar a probabilidade”. (FOUCAULT, 2010, p. 288).
100
“especialistas da infância” a elaborarem tais registros. Considero tais questões relevantes para
compreender os deslocamentos das práticas de registro docente no campo educacional e
pedagógico do presente.
Ainda atentando para a trajetória histórica do atendimento das crianças em escolas de
Educação Infantil no Brasil, é importante entender que, esboçadas na Europa no final do
século XVIII e expandindo-se no final do século XIX em diversos países do mundo, as
escolas de Educação Infantil ganham força, credibilidade e necessidade social. No Brasil, por
volta de 1875, foi fundado o primeiro Jardim de Infância, no Rio de Janeiro, e outro em 1896,
em São Paulo. No entanto, essas primeiras instituições tinham como foco atender as crianças
da elite brasileira. Já as creches, até por volta do início do século XX, apresentavam
propósitos médico-assistencialistas e filantrópicos, tendo sua origem no atendimento às
crianças pobres ou desvalidas, de mães solteiras e viúvas que não tinham condições para
educar seus filhos. (KUHLMANN JÚNIOR, 1998, 2001; KRAMER, 2001; DIDONET, 2001;
BUJES, 2002; OLIVEIRA, 2002).
Fatos significativos marcam a história das instituições voltadas ao atendimento da
infância no Brasil. No início da década de 1930, por exemplo, o poder público foi convocado
a regulamentar o atendimento à infância, criando o Ministério da Educação e Saúde. Embora
ainda vinculada a programas e instituições privadas, a responsabilidade com a infância
também passou às políticas públicas. Um acontecimento interessante com o governo de
Getúlio Vargas, por volta de 1940, marca a obrigação da empresa particular que possui mais
de 30 mulheres empregadas acima de 16 anos em manter creche para os filhos das
funcionárias, alterando a legislação da CLT. Em 1941, cria-se a Legião Brasileira de
Assistência (LBA), entidade cuja função seria coordenar os serviços sociais do governo,
formulando e executando políticas de assistência destinada à família e ao atendimento da
maternidade e da infância.
Diversos movimentos sociais ocorreram mais fortemente a partir de 1960, com o
objetivo de qualificar o atendimento das crianças nas creches (melhores espaços físicos,
recursos e formação de profissionais, salários mais dignos e jornada de trabalho reduzida).
Entretanto, é a partir de 1970 que, conforme destaca Rosemberg (2002), a Educação Infantil
entra em pauta fortemente pelo movimento denominado “luta por creches”, e três grandes
acontecimentos são acentuados pela autora: primeiro, a influência do UNICEF e da UNESCO
(fim de 1970 e início da década de 1980), rodeada pela defesa da educação pré-escolar
compensatória e pelos modelos de massa, especialmente para as populações mais pobres (dois
grandes programas foram criados em âmbito federal: o Programa Casulo, administrado pela
101
56
É possível retomar na seção 1.2 da parte inicial desta Tese os demais documentos publicados pelo Ministério
da Educação com a intenção de criar diretrizes e parâmetros nacionais para o atendimento de qualidade na
Educação Infantil.
102
57 Dentre os autores que abordam a questão do professor reflexivo no campo pedagógico atual, destaco: Nóvoa
(1992); Schön (1992); Zeichner (1993); Warschauer (1993); Zabalza (1994); Freire (1996); Hargreaves (1998);
Stenhouse (1998), Alarcão (2001, 2003); Shores e Grace (2001); Fullan e Hargreaves (2001); Perrenoud (2002);
Pimenta e Ghedin (2006); Hoffmann (2006), Pinazza (2007, 2013); Paige-Smith e Craft (2010).
104
professores a dar significado para suas ações pedagógicas, unindo teoria e prática. Para
Freinet, o registro deve ser um auxiliar do professor na socialização das atividades produzidas
pelas crianças, bem como na produção de memória daquilo que é feito na escola.
Posteriormente, uma série de estudos e publicações sobre a prática reflexiva veio à
tona, como podemos ver na nota de rodapé anterior. Muito influente na Educação Infantil, o
psicólogo e pedagogo espanhol Miguel Zabalza (1994) será um defensor das práticas
reflexivas, acreditando que os diários de aula são instrumentos “para ter acesso ao
pensamento e à ação dos seus autores” (1994, p. 10), ou seja, acesso ao “universo interno dos
professores” (1994, p. 35), e deve incluir “observação e gravação de aulas dos professores”
(1994, p. 12), pois o que interessa é entender “como é que encara e resolve na hora, no
momento, os acontecimentos que lhe aparecem”. (ZABALZA, 1994, p. 43). Os professores,
dessa forma, podem reconstruir as ações escolares, percebendo suas razões e sentido. “Os
professores convertem-se em investigadores de si próprios e do seu trabalho (primeiro como
narradores, observadores participantes, etc., e depois como analistas, ou, pelo menos, como
confirmadores ou não das análises)”. (ZABALZA, 1994, p. 28).
O referido autor acredita que “nos diários aparece uma visão mais vital, menos rígida
e/ou racional daquilo que acontece nas aulas” (ZABALZA, 1994, p. 50), além de “estabelecer
o vínculo existente entre pensamento e ação, descobrir as fontes de ‘sentido’ daquilo que os
professores fazem na sua aula e/ou aquilo que nos contam que fazem” (ZABALZA, 1994, p.
51), na perspectiva de tomarem consciência – autoconhecimento – do seu fazer prático, pois
implica “reconstituir verbalmente episódios densos de vida”. (ZABALZA, 1994, p. 92).
“Através dos diários, pode-se extrair a ‘alma’ do pensamento dos professores sobre as suas
aulas”. (ZABALZA, 1994, p. 194).
As contribuições da educadora brasileira Madalena Freire também têm grande impacto
nas pautas educacionais da Educação Infantil, por volta da década de 1990. A autora, ao
publicar as suas práticas como professora na obra A paixão de conhecer o mundo (1983)58, já
defendia a importância dos registros de suas reflexões e produções realizadas com as crianças.
Relatando sua prática pedagógica, a autora expressa fugir da rigidez no planejamento das
atividades, afirmando fazer e refazer na prática cotidiana. Assim, ela sugere o uso de um
58 Na mesma obra, Madalena Freire afirma que “é procurando compreender as atividades espontâneas das
crianças que vou, pouco a pouco, captando os seus interesses, os mais diversos. As propostas de trabalho que não
apenas faço às crianças, mas que também com elas discuto, expressam, e não poderia deixar de ser assim,
aqueles interesses”. (FREIRE, 1983, p. 21). Nessa citação, podemos evidenciar a relevância dos interesses
infantis, temática fundamental na Parte II desta Tese. “Por isso é que, em última análise, as propostas de trabalho
nascem delas e de mim como professora. Não é de estranhar, pois, que as crianças se encontram nas suas
atividades e as percebam como algo delas, ao mesmo tempo em que vão entendendo o meu papel de
organizadora e não de ‘dona’ de suas atividades”. (FREIRE, 1983, p. 21).
105
O que quero mostrar com tudo isso é que vimos emergir a necessidade de um registro
cada vez mais sistemático e refinado, tanto das ações dos professores, quanto das ações das
crianças nos contextos escolares. Acompanhamos a emergência das práticas de registro na
Educação Infantil e colocamos em marcha a celebração da documentação pedagógica,
expressão cunhada pelos referenciais italianos voltados à Educação Infantil, a qual enfatiza
muito mais as ações infantis do que as ações docentes.
Talvez seja interessante trazer à tona, aqui, o texto encomendado pela Anped à
pesquisadora Amanda Cristina Teagno Lopes Marques, professora do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), para a 37ª Reunião Nacional, em 2015.
Creio que esse artigo nos ajuda a pensar sobre a amplitude que a documentação pedagógica
tem sobre o registro docente, ou seja, ela amplia o registro que o professor faz pela
observação, incluindo outras possibilidades e ferramentas nessa prática.
No referido artigo, a autora elege o registro de práticas e a documentação pedagógica
como objetos de análise para a sua pesquisa e propõe um estudo de caso em quatro escolas de
Educação Infantil (três em São Paulo e uma em Bolonha, Itália), a fim de mostrar as
diferentes modalidades e finalidades da documentação pedagógica, de acordo com o projeto
político-pedagógico de cada instituição. Ela defende a necessidade da construção de uma
"cultura do registro" no contexto da Educação Infantil, conforme destaca: “partimos do
pressuposto de que o registro de práticas configura-se como elemento essencial ao trabalho
docente, e precisa ser incorporado à cultura pedagógica da Educação Infantil”. (MARQUES,
2015, p. 3). Entretanto, a autora esclarece e diferencia o uso das duas expressões - registro de
práticas e documentação pedagógica: o registro de práticas deriva das produções de
Madalena Freire (1996), que apresenta o registro como instrumento metodológico do trabalho
docente ao lado do planejamento, da observação e da reflexão. Assim, o termo registro “tem
como foco o professor como produtor de relatos reflexivos sobre sua prática e aproxima-se à
proposta dos diários de aula (ZABALZA, 1994); a centralidade recai sobre o professor que,
individualmente, produz narrativas”. (MARQUES, 2015, p. 3).
Já no conceito de documentação pedagógica, fundamentado na abordagem de Reggio
Emilia, “relatos de situações, fotografias, produções das crianças constituem material para a
documentação, que implica seleção, organização e elaboração de registros”. (MARQUES,
2015, p. 4). Marques (2015) afirma que há diferentes modalidades de documentação,
dependendo dos objetos, objetivos e destinatários: a documentação pode recair mais sobre a
criança em seu processo de pensamento, ou sobre o projeto pedagógico da escola; pode-se
documentar para e com as crianças, para os professores ou para as famílias. A autora acredita
107
que o registro do educador pode ser apenas um dos instrumentos da documentação, a qual é
compreendida de forma mais abrangente, “como um processo mais amplo de sistematização e
construção de memória sobre o trabalho pedagógico, sobre o processo de desenvolvimento da
criança, sobre a trajetória de um grupo ou de uma escola”. (MARQUES, 2015, p. 4).
Ela reafirma o tripé da documentação, o qual contempla o educador (na reflexão sobre
a prática, na avaliação do processo de aprendizagem das crianças, no planejamento,
contribuindo para seu próprio processo de formação e desenvolvimento profissional e
melhoria da ação), as crianças (quando elaboram seu portfólio de aprendizagem, selecionando
produções, imagens, textos que irão compor o documento, construindo, junto com o educador,
a memória de seu percurso de formação) e os pais/responsáveis (como instrumento de acesso
ao trabalho pedagógico desenvolvido pela escola e à trajetória da criança naquele grupo).
(MARQUES, 2015). A partir da metodologia de estudo de caso em quatro escolas, a autora
acredita que não é adequado institucionalizar as práticas de registro e impor modelos
preestabelecidos a serem seguidos pelas escolas, pois cada realidade apresenta demandas
peculiares, exigindo respostas também particulares. Homogeneizar as práticas seria
desastroso, tendo em vista as diferentes realidades, pois, mesmo que seja possível considerar a
existência de uma cultura organizacional que prioriza ou valoriza a documentação
pedagógica, os modos de apreensão e participação dos diferentes sujeitos não se dão de
maneira idêntica e homogênea. Nesse sentido, a autora defende a incorporação do registro ao
projeto político-pedagógico da Educação Infantil. (MARQUES, 2015).
Dito isso, creio que a autora nos mostra a amplitude da documentação pedagógica que,
muito além dos registros docentes, contempla outras tantas ferramentas e possibilidades de
tornar visível aquilo que é produzido na escola infantil. É nesse contexto que a documentação
pedagógica se encaixa no cenário nacional, envolvendo o registro que o professor faz a partir
das ações das crianças, incluindo observação, registro e interpretação da aprendizagem
infantil, mostrando para os interessados (professores, pais e direção, entre outros) o que as
crianças fazem na escola.
No Capítulo 1, em um breve apanhado histórico dos documentos legais publicados
pelo Ministério da Educação para a Educação Infantil, pude constatar a ênfase dada à
observação e ao registro docente sobre o crescimento e o desenvolvimento da criança. Por
volta de 2009, o MEC afirma que, além da escrita do professor, há que se utilizarem outros
registros, “tais como a escrita, a gravação de falas, diálogos, fotografias, vídeos, os trabalhos
das crianças etc.” (BRASIL/MEC, 2012, p. 14-15), inserindo, nos discursos governamentais e
108
59 Como atuei por alguns anos na Educação Infantil, tanto como professora, quanto coordenadora, posso atestar
que a avaliação, por conter muitos registros do professor e ser mais sistemática, torna-se um incômodo para
muitos professores. A própria literatura voltada à Educação Infantil aponta como forma de amenizar este
processo de registro, especialmente no período de emissão dos pareceres e os relatórios, a possibilidade de o
professor fazer escritas, tabelas, anedotários, fichas de cada aluno ao longo do processo letivo, não deixando para
o final do período escolar.
60 Se buscarmos estudos sobre avaliação na Educação Infantil, vamos encontrar Jussara Hoffmann (2006, p.9),
autora que nos chama a atenção para o fato de que a avaliação se insere na discussão histórica acerca de uma
concepção assistencialista ou educativa para o atendimento às crianças “e a exigência de um processo formal de
avaliação parece surgir, mais propriamente, como elemento de pressão das famílias de classe média por
propostas verdadeiramente pedagógicas, para além do modelo de guarda e proteção do modelo assistencialista”.
109
mais padronizados e uniformes das crianças, com termos mais vagos e imprecisos, sendo
considerados pelos professores como um trabalho burocrático. Assim, esses registros são
“sem qualquer significado ou importância pedagógica”. (CIASCA; MENDES, 2009, p. 303).
Utilizo-me das constatações do parágrafo acima, ainda que sucintas, para novamente
argumentar que as práticas de registro da documentação pedagógica são mais refinadas, sutis
e eficazes que outras práticas de registro, pois valorizam ações mais instantâneas,
transparentes, que não apenas mostrem números e dados escritos e padronizados, mas
utilizem imagens e narrativas em movimento. Ou seja, será necessária a construção de outras
formas de avaliação, não centradas no diagnóstico e na elaboração de pareceres e relatórios de
avaliação trimestrais ou semestrais; será preciso apresentar outra estética na produção do
material, utilizando-se diversos recursos, como fotos e filmagens, num tempo que prima pela
rapidez, permanência e aceleração do registro. Essa forma de registro mobiliza outras relações
espaço-temporais: na sala de aula, no pátio, entre colegas, entre professor e aluno. Se antes
importava um diagnóstico oferecido pelo professor, agora o próprio aluno mostra-se e é
incentivado a mostrar-se, e todos veem todos e cada um.
Como uma superfície de análise, gostaria de situar tal provocação que fiz sobre a
avaliação dentro de um esquema mais amplo, não restrito à consolidação da Educação
Infantil, mas como um movimento social, econômico e político, bem como pertencente a um
movimento de reconfiguração dos territórios de governo. Miller e Rose (2012), ao discutirem
sobre a administração da vida econômica e os deslocamentos do governo da economia,
expressam a necessidade da avaliação como um componente-chave para a
governamentalidade:
[...] esse imperativo de avaliar precisa ser visto, ele próprio, como um
componente-chave das formas de pensamento político em discussão: como
as autoridades e os administradores fazem julgamentos, as conclusões que
daí inferem, as retificações que propõem e o ímpeto que a ‘falha’ fornece
para a programação de novos programas de governo. A ‘avaliação’ da
política, em uma total variedade de formas, faz parte integral, portanto,
daquilo que denominamos de caráter programático da governamentalidade.
(MILLER; ROSE, 2012, p. 42).
52-53). Tudo isso seria sinônimo de atingir certa traduzibilidade daquilo que se pretende
instrumentalizar. Asseguram que é preciso
[...] fazer com que as pessoas registrem, e a natureza das coisas que as
pessoas são obrigadas a registrar é, em si, um jeito de governá-las, levando-
as a pensar e anotar determinados aspectos de suas atividades de acordo com
normas específicas. O poder flui para o centro ou para o agente que
determina as inscrições, que as acumula, contempla-as em sua forma
agregada e, portanto, pode compará-las e avaliar as atividades dos outros,
que são meramente dados em um gráfico. (MILLER; ROSE, 2012, p. 102-
103).
privilegiar a avaliação. O autor destaca que, ao tratar da avaliação, o currículo pode deixar
mais livre, mais preso ou até enforcar aqueles que a ele se submetem, e
[...] o fato é que, de uns anos para cá, estamos vivendo a exacerbação da
avaliação e de teorizações em torno dela. Ora se exalta a avaliação do ensino
e da aprendizagem, ora se inventam novos instrumentos para avaliar alunos e
professores, ora se criam novos mecanismos para avaliar os sistemas
educacionais, ora se desenvolvem algoritmos para ranquear as instituições às
quais se aplicam duvidosos critérios e instrumentos avaliativos. Por toda a
parte, parece que, por si só e num passe de mágica, do aperfeiçoamento da
avaliação resultará o aperfeiçoamento da educação para que, num outro
passe de mágica, se atinja o soi-disant “progresso social” [...]. O
salvacionismo pedagógico parece estar apostando, hoje e cada vez mais,
todas as fichas na capacidade da avaliação. (VEIGA-NETO, 2013, p. 9).
A avaliação, que se dava por meio de um exame, passará a ser, a partir dos
ideais modernizadores, muito mais preventiva através da observação
permanente e contínua do professor, que deverá não mais apenas almejar a
classificação do aluno, mas também intervir em seu processo de
aprendizagem, a fim de considerar as capacidades do estudante. (KLEIN,
2010, p. 72).
conhecê-lo e assim ser possível intervir para corrigi-lo e educá-lo” (KLEIN, 2010, p. 122),
exigindo-se do professor avaliações mais frequentes e com variados instrumentos e formas.
Meu foco de análise segue outra direção daquela escolhida por Klein (2010).
Entretanto, sua Tese oferece fundamentos para perceber o quanto as práticas de registro da
aprendizagem e do desenvolvimento dos alunos vão se tornando cada vez mais refinadas,
mais frequentes, exigindo do professor novas formas de registrar. Talvez essas condições é
que possibilitaram o festejo da documentação pedagógica e seus ajustes à sociedade
contemporânea. Tal debate contribui nesta investigação, interessada em acompanhar os
deslocamentos nas práticas de registro docente. Não se trata de culpabilizar a sociedade, suas
transformações, sua competitividade, conectando o excesso de avaliação a uma necessidade
social. Não se trata, tampouco, de compreender o fenômeno como simples causa ou
consequência das relações sociais, políticas, econômicas e culturais. Trata-se de entender que
o Estado passa a operar sobre a vida da população de outras formas quando compreendemos a
governamentalidade neoliberal, reconfigurando suas tecnologias e estratégias de condução da
conduta dos indivíduos, com uma ênfase menor nos dispositivos disciplinares e mais potente
nos dispositivos de seguridade.
As próprias práticas refinadas de registro fortificam, sustentam e estimulam práticas
neoliberais. Se formos fazer uma comparação com o crescimento da grama – que cresce pelo
meio, não sendo possível visualizar seu início, tampouco seu fim –, os professores assumem
as práticas de registro sobre o outro por uma exigência social, mas também porque dessa
forma garantem sua própria condição docente. Eles próprios convencem a si mesmos e agem
consigo mesmos. Ao mesmo tempo, esses professores, com esses registros, colocam em ação
uma determinada noção de infância (talvez aquela estudada nos cursos que frequentam, nos
livros que leem, nas práticas de senso comum e até mesmo inspirados na própria infância que
tiveram) e asseguram a sua continuidade, confinando a infância em torno dela mesma, fixando
modos de representação e intervenção dessa infância e colocando em ação, movimentando a
racionalidade neoliberal, que é a lógica que “dá as cartas” no contemporâneo.
Há uma necessidade de avaliação constante, vinculada à individualidade de cada aluno
e dos seus próprios interesses, num momento em que a pedagogia e a escola são convidadas a
transformar-se (e a inovar). Dito de outro modo, a Pedagogia e a escola, reduzindo (mas não
excluindo) sua capacidade prescritiva, normativa e disciplinar, e ampliando flexibilidade e
liberdade, precisa da avaliação enquanto tecnologia para melhor governar a conduta dos
sujeitos para que sejam educáveis, mesmo que essa avaliação também se torne mais flexível e
livre (muitas vezes, não mais reprovando, não se configurando em folhas infindáveis de
114
relatórios, não constituindo uma nota ou um número para o aluno), por meio de conceitos,
registros cotidianos, aprovação com acompanhamento posterior, etc. Há uma proliferação de
estratégias de avaliação para uma criança-aluno que tem gradativas liberdades na escola, a fim
de ampliar as formas de controle no sucesso da sua aprendizagem, olhando e fixando a sua
individualidade e a de cada um. Uma avaliação com esse escopo precisa ser flexível, rápida,
acelerada, instantânea, digital, pontilhista. Embora registre instantâneos, não há aqui
preocupação com a história produzida por uma memória linear, mas uma memória
presentificada em que assume importância sempre o fato mais novo, atual, presente.
Diante desse cenário, é preciso entender “o poder da documentação pedagógica”
postulado nos referenciais italianos. É o que procuro desenvolver na última seção da Parte I
desta Tese, intitulada “Como um antídoto” – os registros da documentação pedagógica.
Reafirmo que, ao abordar inúmeras questões sobre o fazer pedagógico nas escolas italianas,
especialmente em Reggio Emilia e San Miniato (cidades que atuam fortemente na divulgação
e publicação do seu trabalho para o mundo inteiro), tomo a expressão documentação
pedagógica para fazer menção aos referenciais italianos para educação da infância, uma vez
que é possível perceber que o termo está mais fortemente presente nas pautas educacionais
após a chegada desses referenciais para a Educação Infantil (por volta do final da década de
1990)61.
Antídoto extremamente forte contra outros modos de análise e avaliação. É com essas
palavras que Dahlberg caracteriza a documentação pedagógica em obra recentemente lançada,
61 Relembro o leitor de que, a partir da próxima seção, inicio a utilização das cinco variadas dinâmicas para
apresentar os materiais de pesquisa, ou seja, cinco diferentes estratégias e modos de escrita: 1) citação curta
constituída por excerto retirado do material de pesquisa, a qual aparece ao longo do trabalho escrita como as
demais citações, porém, destacada em itálico, para diferenciar-se das demais citações de fundamentação teórica;
2)citação longa constituída por excerto retirado do material de pesquisa, a qual aparece ao longo do trabalho
destacada em caixa de texto, a fim de também se diferenciar das demais citações longas advindas da
fundamentação teórica; 3)organização de um bloco de citações dentro de quadros numerados e nomeados; 4)
imagens que apresentam os exemplares produzidos pelos professores (como a imagem 1, já apresentada); 5)
epígrafes que se relacionam com o conteúdo de cada capítulo ou seção, destacadas em itálico, para diferenciar-se
das demais epígrafes advindas de fundamentação teórica.
115
[...] oferecer às crianças uma memória concreta e visível do que disseram e fizeram, a fim de servir
como um ponto de partida para os próximos passos na aprendizagem; oferecer aos educadores uma
ferramenta para as pesquisas e uma chave para melhoria e renovação contínuas; e oferecer aos pais
e ao público informações detalhadas sobre o que ocorre nas escolas, como um meio de obter suas
reações e apoio. (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 25).
Poderíamos dizer, grosso modo, que essas três funções são evidenciadas em quase
todos os referenciais italianos analisados neste trabalho. Assim, crianças, professores e pais
formam o tripé da documentação pedagógica, ou ainda, uma comunidade de aprendizagem 63.
Lóris Malaguzzi traz grandes influências ao debate sobre a documentação pedagógica quando
destaca a exigência de educadores infantis comprometidos, afirmando que eles “devem
descobrir modos de comunicar e documentar as experiências crescentes das crianças na
escola, devendo preparar o fluxo constante de informação de qualidade, voltado aos pais,
mas também apreciado pelas crianças e pelos professores”. (MALAGUZZI, 1999, p. 80). O
autor defende a ideia de que os adultos aprendem sobre as crianças quando convivem com as
próprias crianças. Procura construir outra imagem de criança, não-padronizada, não-universal,
que não seja definida por manuais, por meio da “pedagogia da escuta”. (RINALDI, 2012, p.
124). Ao ser entrevistada, a educadora reggiana Laura Rubizzi afirma que “Loris Malaguzzi
estava bastante ciente da necessidade de documentar desde o começo. Sua ideia era criar
uma escola transparente, visível e que dialogasse com a cultura contemporânea”.
(GANDINI, 2012, p. 78).
62 Curioso mencionar aqui que, quando adquiri esse livro, em um evento internacional voltado à Educação
Infantil no estado de Santa Catarina, a livraria não possuía exemplares suficientes, pois havia “fila de docentes”
para a compra da obra.
63 Neste trabalho, meu foco não estava direcionado, de forma intencional, para as narrativas sobre a família,
embora reconheça que esse é um tema recorrente no material. A disciplinarização e a pedagogização da família
são ingredientes importantes para as práticas de documentação. Em função das limitações desta pesquisa, esse
ponto será abordado superficialmente, ficando o desafio para pesquisadores interessados nessa temática.
116
64 Alfredo Hoyuelos, atelierista, nascido em Pamplona, Espanha, vem disseminando os ideais do projeto
educativo de Malaguzzi, defendendo as práticas de documentação e mostrando sua necessidade e benefício em
alguns congressos no Brasil.
65 Em 1995, Howard Gardner propôs a realização de uma pesquisa em conjunto com estudiosos e professores de
Reggio Emilia, e a temática para tal foram as relações entre documentação e avaliação, por acreditarem no “valor
da documentação como ferramenta para a avaliação/apreciação e para a autoavaliação/autoapreciação”.
(RINALDI, 2012, p. 119).
117
protagonista, os professores devem tornar público aquilo que elas produzem nas escolas, pela
via da organização e sistematização de observações, registros e interpretações: documentação
pedagógica.
Poderíamos, até aqui, nos questionar: como a documentação pedagógica emerge com
tal força? Por que tal prática é celebrada e se encaixa nos dias atuais? Inspirados em Reggio
Emilia, os autores Dahlberg, Moss e Pence (2003, p. 91) apresentam a “documentação
pedagógica como um instrumento vital para a criação de uma prática pedagógica reflexiva e
democrática”, pois ela tem um papel fundamental no discurso da construção de significado,
ou seja, “em vez de se basear em alguma medida padronizada de qualidade [...] a
documentação pedagógica nos permite assumir a responsabilidade pela construção dos
nossos significados e chegar à nossas próprias decisões sobre o que está acontecendo”.
(DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 191). Ao dar visibilidade para o trabalho
pedagógico, “a documentação pedagógica proporciona a possibilidade de as instituições
dedicadas à primeira infância conseguirem uma nova legitimação na sociedade”.
(DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 191).
Entretanto, os mesmos autores reforçam: a documentação não deve ser confundida
com uma mera “observação da criança” (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 191), pois
essa observação classifica e categoriza as crianças em relação a um “esquema geral de níveis
e estágios desenvolvimentais”. (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 192). A mera
observação é compreendida como resultado, e não como processo; em outras palavras, é
encarada como uma “tecnologia de normalização relacionada às construções da criança
como natureza e como reprodutora de conhecimento” (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003,
p. 192), sendo tomada como uma prática de perspectiva modernista. Já a documentação
pedagógica, na perspectiva dos autores, é tida como pós-moderna: “adotando uma
perspectiva pós-moderna, a documentação pedagógica não reivindica que aquilo que é
documentado seja uma representação direta do que as crianças dizem e fazem; não é um
relato verdadeiro do que aconteceu”. (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 192).
Os autores Dahlberg, Moss e Pence (2003, p. 190), em um de seus escritos, procuram
desenvolver o exercício de buscar inspiração em Michel Foucault para pensar a documentação
pedagógica e afirmam que ela seria um meio para que os professores pudessem resistir ao
“nexus saber-poder, aqueles regimes de verdades que tentam determinar para nós o que é
verdadeiro ou falso, certo ou errado, o que podemos ou não podemos pensar e fazer”. Nesse
sentido, a documentação poderia desmascarar “os discursos e os regimes dominantes que
exercem poder sobre nós e por meio de nós, pelos quais temos construído a criança e nós
118
mesmos como pedagogos”. (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 199). Como o ato de
documentar nunca é neutro e inocente, a documentação é tomada “como um instrumento para
abrir uma prática crítica e reflexiva que desafie os discursos dominantes e construa
contradiscursos, por meio dos quais podemos encontrar pedagogias alternativas”.
(DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 199). Compreendendo-se tais práticas como meio de
resistir ao nexus poder/saber, elas são um empreendimento perigoso:
Podem ser perigosos, como declarou Foucault (1970), pois carregam significado político e teórico.
Por isso, a produção de conhecimento está sempre relacionada à produção de poder [...]. Se suscita
outras construções e perspectivas, então a documentação tem o potencial de revelar o caráter
incorporado da construção de conhecimento e, como tal, funciona como uma prática
emancipatória. (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 203, grifos meus).
mensuração é compreendida pela autora americana Brenda Fyfe (2016) como uma ciência
exata que avalia quantidades mediante unidades padronizadas de medida, tendo caráter
somativo de atribuir notas e comparar alunos, classificando-os “em uma escala para
determinar o nível de competência ou desenvolvimento, classificá-los para serviços especiais
ou decidir em reprová-los ou passá-los à próxima série”. (FYFE, 2016, p. 279). Já a
documentação consiste em “traços de aprendizagem”, e “nenhum traço de aprendizagem é
limitado em sua interpretação a uma unidade de medida padronizada”. (FYFE, 2016, p.
274). Portanto, as avaliações formais não fazem parte do conceito de documentação de
Reggio Emilia, afirma a autora, uma vez que a documentação – que vem de orientação
filosófica construtivista – “é conduzida de modo a estimular o aprendiz a participar da
própria aprendizagem para construir ou reconstruir novas e mais profundas compreensões”.
(FYFE, 2016, p. 274).
Na mesma obra, Forman e Fyfe (2016) constatam que a avaliação envolve um estudo
contínuo das crianças, que não é feito para compará-las, determinar sua série, incluí-las em
determinados programas ou rotulá-las e atribuir notas. “Ele é feito para entender as crianças
– seus métodos, seus sentimentos, seus interesses, suas disposições e suas capacidades”. É
assim que os professores conseguem planejar experiências de aprendizagem significativas e
desafiadoras.
Avaliações dessa natureza não se concentram no que as crianças podem ou não fazer, mas no que
elas podem fazer, independentemente, com assistência e em tipos diferentes de contextos sociais.
Trata-se de um processo dinâmico e flexível, que não busca congelar a criança no tempo e
quantificar as suas realizações ou o seu desenvolvimento com uma pontuação, classificação ou
nota. Trata-se de um processo vivo e contextualizado que busca compreender as crianças dentro de
experiências e situações de vida em constante mutação. A documentação, como a descrevemos, está
no cerne desse tipo de avaliação. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 263, grifos meus).
Se a documentação for literalmente um exercício de pôr coisas no papel – um dever realizado para
se ter os registros exigidos quando for realizada alguma inspeção –, ela provavelmente terá pouco
valor. Se a observação for reduzida a assinalar itens em uma lista de verificação de objetivos de
aprendizagem pré-identificados, ela dará insights muito limitados sobre a riqueza da aprendizagem
infantil. (LUFF, 2010, p. 209).
Entendo que as práticas da documentação pedagógica emergem com força nas escolas
de Educação Infantil, marcando um tempo em que a primeira etapa da Educação Básica é
convidada a elaborar e demarcar especificidades na sua proposta pedagógica, legitimando seu
papel social. Há um encaixe dos fundamentos da documentação pedagógica com a infância, a
escola e a docência do nosso tempo. Para os referenciais italianos, além da superficialidade e
da publicização, o poder da documentação é muito maior do que apenas dar visibilidade para
um projeto, por exemplo, como podemos ler nesta citação: “avaliar a documentação somente
pela sua função de visibilidade final de um projeto é um erro conceitual, que atrapalha a
compreensão da abordagem geral e das relações que se criam entre a criança, as crianças,
os professores, as famílias e o assunto enfrentado”. (VECCHI, 2014, p. 162).
É partindo dessas crenças – de que a documentação pedagógica pode ser um meio
avaliativo que busca evitar as avaliações padronizadas, descontextualizadas e objetivas, as
quais valorizam mais os resultados, especialmente aqueles voltados aos estágios de
desenvolvimento psicológico; de que a documentação pode auxiliar a trazer uma nova
imagem de criança, muito mais competente e ativa, desafiando os discursos dominantes; de
que a documentação pedagógica contribui para a legitimação da Educação Infantil enquanto
lugar de trabalho pedagógico – que tais práticas vêm emergindo paulatinamente nas
comunidades escolares e ganhando força nas práticas de registro e avaliação. Tal como afirma
Carla Rinaldi (ex-diretora dos centros municipais de Reggio Emilia que trabalhou ao lado de
Loris Malaguzzi por 24 anos e é considerada a sua sucessora, hoje é uma das consultoras
pedagógicas das escolas de Reggio Emilia):
Sinto que reconhecer a documentação como ferramenta possível para a aferição e avaliação nos dá
um ‘anticorpo’ extremamente poderoso contra a proliferação de ferramentas de aferição e
avaliação cada vez mais anônimas, descontextualizadas e só aparentemente objetivas e
democráticas. [...] a documentação é uma parte substanciosa do objetivo que sempre caracterizou
nossa experiência: a busca do significado – encontrar o significado da escola, ou melhor, construir
a significação da escola como lugar que desempenha papel ativo na busca das crianças pelo
significado e na nossa própria busca por significado (e significado partilhado). (RINALDI, 2012,
p. 119 - 120).
121
Vemos cada vez mais o risco de se considerar os testes como uma ferramenta de avaliação. Na
realidade, os testes só avaliam o conhecimento das crianças acerca do conteúdo da prova, e não a
sua aprendizagem verdadeira. (RINALDI, 2016, p. 239).
A documentação cobre as paredes da escola como uma segunda pele. Convida a sentir-se ou
tornar-se parte, com os outros, de experiências, de histórias. Sugere a possibilidade de ver
valorizado o que vai ser vivido. Uma documentação que dá forma aos valores da memória e da
narração como direito e qualidade vital do espaço educativo. (STROZZI, 2014, p. 64).
66 A cidade de San Miniato, localizada na região da Toscana (norte da Itália), com aproximadamente 26 mil
habitantes, tem 35 anos de rede pública municipal de creches que atendem crianças de zero a três anos. Em 2006,
40% das crianças de zero a três anos frequentam escolas infantis.
122
67 “Nos processos em que a causalidade imanente está em jogo, não há uma causa inicial a produzir efeitos,
senão que algo que é visto como causa pode ser visto, ao mesmo tempo, como efeito”. (VEIGA-NETO, 2013, p.
9).
124
PARTE II
CAPÍTULO 3
A PRODUÇÃO DA CRIANÇA PROTAGONISTA
Interesse Infantil
Gerenciamento de
oportunidades
Design da Docência Professor Designer
Inovação Docente
Minha argumentação é no sentido de que há uma forma básica e algo em comum nas
práticas da documentação pedagógica; se deixarmos de lado o conteúdo concreto de seus
registros particulares e quase infinitos e detivermo-nos em sua tecnologia de governamento,
perceberemos uma racionalidade, uma lógica geral que as movimenta. Essa racionalidade é a
governamentalidade neoliberal, que, ao atuar sobre a infância e a docência, produz alguns
127
efeitos, que nesta Tese chamo de estetização da infância e design da docência. Junto a essa
grade de inteligibilidade, aproprio-me do entendimento de sociedade disciplinar e de
sociedade de controle ou seguridade e das novas funções do Estado, possibilitando uma
compreensão sobre as transformações nas formas de operar das tecnologias de poder, um
poder que age na vida das pessoas.
Foi justamente nesse movimento que, ao trazer as duas expressões – estetização da
infância e design da docência –, fiz um exercício analítico a partir da perspectiva teórica do
filósofo francês Gilles Lipovetsky e do crítico de arte francês Jean Serroy (professor da
Universidade de Grenoble), especialmente exposta na obra A Estetização do Mundo: viver na
era do capitalismo artista68. Esses autores, perguntando-se sobre as experiências estéticas e o
domínio estético, mostram que o capitalismo e a economia liberal (com seus produtos
descartáveis, proletarização dos modos de viver, empobrecimento das experiências, triunfo do
capital, poder das finanças, por exemplo) produzem efeitos nos modos de vida das pessoas,
gerando a estetização total da vida cotidiana. Como imperativo das marcas, a beleza, o estilo,
o design, a mobilização dos gostos e das sensibilidades impõem-se a cada dia, produzindo um
modo de produção estético que define o capitalismo de hiperconsumo.
Os autores acreditam que o design, a moda, a publicidade, o cinema, o show business,
entre outros, criam nas indústrias de consumo produtos carregados de sedução.
(LIPOVETSKY; SERROY, 2015). Na hipermodernidade, as esferas do econômico e estético,
da indústria e estilo, da moda e arte, do divertimento e cultura, do comercial e criatividade, da
cultura de massa e alta cultura, hibridizam-se, misturam-se, interpenetram-se, havendo um
incremento do hiperindividualismo contemporâneo. “Com a estetização da economia,
vivemos num mundo marcado pela abundância de estilos, de design, de imagens, de
narrativas, de paisagismo, de espetáculos, de música, de produtos cosméticos, de lugares
turísticos, de museus e de exposições”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 14).
E é nesse contexto hipermoderno que os autores defendem que há uma potencialização
do capitalismo do tipo artista – capitalismo artista –, aquele que “explora racionalmente e de
maneira generalizada as dimensões estético-imaginárias-emocionais tendo em vista o lucro e a
conquista dos mercados” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 14), ou ainda, aquele que
“criou um império transestético proliferante em que se misturam design e star-system, criação
68
Neste sentido, a palavra estetização é aqui utilizada, estando vinculada à ideia de estetização capital da vida,
inserida em lógicas muito mais consumistas e capitalistas, inclusive no que diz respeito à arte. Sabe-se que
muitos autores, fundamentados nas noções foucaultianas de estética da existência e nas noções envolvendo ética-
estética, vem nos provocando a pensar em possibilidades de vida, de docência, de arte, de filosofia, articuladas
com o cuidado de si e com uma estética da existência. Assim, quero deixar claro que, neste estudo, a palavra
estetização articula-se com o capitalismo artista, seguindo os estudos de Lipovetsky e Serroy (2015).
128
na escola. Parece-me que essa criança é incitada a consumir as ofertas que a escola lhe
oferece, e os registros docentes tratam de presentificar as escolhas momentâneas das crianças.
Conforme destacam Lipovetsky e Serroy (2015), o capitalismo artista é compreendido
como um vetor para a estetização do mundo e da existência humana. A arte aparece como
uma mercadoria semelhante a qualquer outra e como um investimento de alta rentabilidade
financeira, banalizando também a identidade e a profissão do artista. “Criou-se uma nova
civilização, que se empenha, com êxito desigual, em casar arte e indústria, sedução e
comércio, divertimento e negócio, estética e comunicação”. (LIPOVETSKY; SERROY,
2015, p. 134). Nesse contexto, os indivíduos precisam consumir estilos. Ao explorarem os
destinos turísticos, por exemplo, os autores defendem a ideia de que o olhar turístico vê as
paisagens para apenas fotografar e concluem: “um ideal estático de vida centrado na busca
das sensações imediatas, nos prazeres dos sentidos e nas novidades, no divertimento, na
qualidade de vida, na invenção e na realização de si”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.
32).
O capitalismo artista estaria ligado à geração de sonhos, prazeres, emoções,
caracterizado na produção do espetáculo, da sedução e do emocional: “note-se que em sua
versão artista ele não para de moldar produções destinadas a gerar prazer, sonhos e emoções
nos consumidores. [...] ele se afirma como um sistema conceptor, produtor e distribuidor de
prazeres, de sensações, de encantamento”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 43). No
capitalismo artista, há um conteúdo sedutor e criativo na música, no jogo, na imagem, no
cinema, para citar alguns rápidos exemplos, uma vez que precisamos vender e consumir mais
prazeres, divertimento e emoções do que simplesmente produtos utilitários. Renovação
perpétua nas formas dos produtos e embalagens, rapidez na publicidade e na decoração das
lojas, aceleração da obsolescência dos produtos, são outros exemplos citados pelos autores
para marcar a emergência do imperativo do novo e da sedução estética.
Conforme as discussões dos referidos autores, há quatro fases para a estetização do
mundo pela via do capitalismo artista – a artealização ritual, a estetização aristocrática, a
moderna estetização do mundo e a era transestética. Esta última é caracterizada pela
superabundância estética, hiperarte e generalização das estratégias estéticas com finalidade
mercantil, ou seja, “a arte se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e da
vida comum”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 27). Nas palavras dos autores,
primeiros estágios do ciclo do design), articulada também com as três fases do capitalismo
artista, e defendem a ideia de que vivemos num “mundo design”. (LIPOVETSKY; SERROY,
2015, p. 225).
Do ponto de vista dos autores, a terceira fase do capitalismo artista iniciaria nos anos
de 1980, especialmente com a difusão dos microcomputadores e a expansão do mercado
mundial. É nesse contexto que o design contribui na economia da variedade, bem como na
personificação, criação, proliferação e renovação hiperacelerada de oferta de produtos. Nas
palavras dos autores,
[...] isso traduz o advento de um design cada vez mais sob a influência do
mercado, o peso que a esfera comercial tem na criação industrial, um
capitalismo estético em que triunfa um mercado de demanda movimentado
pelo cliente, em lugar do mercado de oferta, que dominava anteriormente,
em que os produtores ofereciam seus produtos a consumidores que tinham
poucas opções. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 229).
Nessa perspectiva, o design deve contar uma história para seduzir o indivíduo, o
design deve fazer sonhar, deve proporcionar prazer e atuar no imaginário de cada um,
oferecendo bem-estar e suscitando experiências, emoções, prazeres imediatos. O design, nesse
sentido, estaria a serviço da estetização da vida humana, pois ele se espraia nas mais diversas
situações e contextos de vida:
Poderia dizer aqui que a leitura dessa obra, em especial ao problematizar o capitalismo
do tipo artista, mostra como estamos vivendo as nossas vidas numa lógica de estetização do
mundo e do cotidiano. Tais questões foram úteis para pensar sobre a estetização da infância,
posta em ação mediante variadas e refinadas práticas de documentação pedagógica; outras
práticas também visibilizam a estetização da infância, entretanto, esforço-me para fazer
referência aqui à documentação pedagógica, foco empírico selecionado para o
desenvolvimento desta Tese. Mesmo reconhecendo que Lipovetsky e Serroy (2015) não
tiveram a pretensão de levar as discussões resumidas acima para os espaços escolares,
132
69 Relembro que, na escrita desta Tese, as materialidades empíricas (17 obras denominadas, em seu conjunto, de
referenciais italianos e os exemplares de documentação pedagógica produzidos por professores da Educação
Infantil de escolas do interior do Rio Grande do Sul) foram organizadas a partir de diferentes estratégias de
escrita: excertos retirados do material de pesquisa, os quais aparecem ao longo do trabalho, escritos como as
demais citações; organização de um bloco de citações dentro de quadros; imagens que apresentam os exemplares
produzidos pelos professores; epígrafes que se relacionam com o conteúdo de cada capítulo ou seção. Tais
estratégias de escrita são mais evidentemente apresentadas a partir daqui.
133
Entendo que outros estudiosos, como por exemplo de George Yúdice (2004), já nos
apontavam para a conveniência da cultura e os usos da cultura na era global, o que pode nos
ajudar a entender o que estou argumentando com essa estetização da infância. Seria a captura
da infância para as conveniências de uma sociedade de consumo exacerbado em que, até
mesmo as mais elevadas e sensíveis dimensões da infância e da própria docência são
capturadas para o consumo e para uma forma estética que vende, que seduz e que coloca em
concorrência. Esse é o desafio e o tensionamento que apresento quanto aos efeitos que se
pode produzir ao colocar em funcionamento certas tecnologias e estratégias que colocam
ênfase neste tipo de estetização. Contudo, creio que é possível potencializar outras dimensões
ético e estéticas da infância e também da docência, articuladas com a experiência estética de
si mesmo, pelo cuidado de si e do outro de modo ético. Tal como aponta Dias (2012, p. 29)
“Ética por que se abre para a possibilidade de fazer escolhas” e “Estética como um dos
caminhos possíveis, entre outros, pelos quais adultos, jovens e crianças realizam estilo de vida
não conformados e não consensuais”. Ética e estética que lutam contra as formas de captura
através dos discursos que minimizam as possibilidades de afirmar a potência das práticas
cotidianas de vida.
Nossas crianças têm muitas escolhas: possuem locais onde podem estar a
sós, em pequeno grupo, em um grupo grande, com os professores ou sem
eles. (MALAGUZZI, 1999, p. 99).
Neste subcapítulo, apresento o interesse infantil como uma estratégia que opera nas
práticas da documentação pedagógica sendo visibilizada nos materiais analisados.
Inicialmente, apresento alguns recortes feitos do referencial italiano, a fim de evidenciar como
o interesse infantil é potencializado, para então tecer algumas considerações e concluir que o
interesse infantil não é um tema novo na educação das crianças pequenas; entretanto, com as
práticas de registro da documentação pedagógica, é possível perceber novas nuances do
interesse infantil, o que acaba produzindo outras ênfases para a criança do nosso tempo,
denominada atualmente como protagonista.
134
Nossas crianças têm muitas escolhas: possuem locais onde podem estar a sós, em pequeno grupo,
em um grupo grande, com os professores ou sem eles, no atelier, no mini-atelier, na grande piazza
ou, se o tempo está bom, no jardim fora da escola, que possui muitas estruturas, pequenas e
grandes, para brincadeiras. Contudo, a opção por trabalhar em pequenos grupos, nos quais
exploram, juntos, agrada tanto às crianças quanto a nós. Em vista disso, a sala de aula é
transformada em um grande espaço com pequenos agrupamentos, cada um com suas próprias
crianças e seus próprios projetos e atividades. (MALAGUZZI, 1999, p. 99, grifos meus).
Na maior parte dos livros revisados neste estudo, é possível destacar a importância e a
necessidade de o adulto possibilitar inúmeras oportunidades de escolha às crianças para que
elas próprias possam mostrar seus interesses. Não são os adultos que escolhem, eles apenas
oferecem inúmeras possibilidades para que cada criança possa fazer a sua própria escolha.
Eles gerenciam as oportunidades. Dito de outro modo, é preciso preparar os espaços e os
tempos da escola infantil para que despertem o interesse das crianças, uma vez que elas
devem ocupar-se de si mesmas com liberdade e autonomia, tal como destaca Katz (1999, p.
41): “Parece-me que as crianças de Reggio Emilia abordam a tarefa de desejar o que quer
que estejam estudando com disposição e assiduidade”. Ou como refere Malaguzzi (1999, p.
98-99): “As crianças sabem que quando vão em busca de suas metas podem fazer suas
próprias escolhas, e que isso é tão libertador quanto revitalizante”.
A criança deve estar “ativamente envolvida na tomada de decisões sobre em que
processos de aprendizagem vai se envolver” (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 27), uma vez
que são consultoras e participantes dentro do ambiente de aprendizagem. Liberdades,
oportunidades, interesses, escolhas, motivação, parecem ser palavras de ordem, como
reforçam as exaustivas citações abaixo, grifadas por mim para destacar tal evidência:
70 Este livro documenta o conjunto de escolas criadas nos últimos 30 anos em Reggio Emilia, norte da Itália.
Lóris Malaguzzi é considerado o “gênio condutor de Reggio” (GARDNER, 1999), pois teve interesse na
construção de uma nova escola após a Segunda Guerra Mundial. Foi Diretor do Sistema de Reggio Emilia de
Educação Municipal para a Primeira Infância, o qual recebeu o selo de “As Dez melhores escolas do mundo”
pela revista Newsweek, em 1991. Howard Gardner afirma que “a publicação deste livro aumentará o tráfego para
a exuberante e civilizada área de Emilia Romagna”. (1999, p. X).
135
[...] as crianças mostram-nos que sabem como caminhar rumo ao entendimento. Uma vez que as
crianças sejam auxiliadas a perceber a si mesmas como autoras ou inventoras, uma vez que sejam
ajudadas a descobrir o prazer da investigação, sua motivação e interesse explodem.
(MALAGUZZI, 1999, p. 76-77, grifos meus).
[...] quando as crianças são envolvidas na avaliação do seu próprio trabalho e participam
activamente no processo de construção do seu portfólio, começam a compreender as suas forças e a
refletir sobre as suas próprias necessidades e isso ajuda-as a sentirem-se responsáveis pela sua
própria aprendizagem, porque as crianças escolhem e tomam decisões, responsabilizam-se por
essas decisões e compreendem que essas decisões têm influência na sua vida. (AZEVEDO;
OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008, p. 130, grifos meus).
Isso significa reconhecer que uma ampla série de oportunidades e experiências devem estar
disponíveis para apoiar a participação das crianças e para auxiliar as maneiras como elas
aprendem e se envolvem umas com as outras e com os adultos. (KINNEY; WHARTON, 2009, p.
23, grifos meus).
[...] capazes de escolher entre várias oportunidades, especialmente quando o ambiente educacional
coloca à disposição um contexto de experiências adequado para a exploração e ainda, que o adulto
não interpreta seu próprio papel de maneira direcionadora, mas ao contrário, consegue sustentar as
ações entre os grupos e duplas. (FORTUNATI, 2014, p. 26, grifos meus).
A oferta de objetos e materiais disponíveis, muitos dos quais podem ser utilizados com autonomia,
com a seleção intencional de uma vasta gama de escolha de materiais reciclados e naturais, ou
então não-estruturados, permite às crianças reinventar significados e possibilidades de uso, padrões
e rituais de jogos originais e compartilhados com o pequeno grupo ou com toda a turma.
(FORTUNATI, 2014, p. 27, grifos meus).
Sabemos, porém, que não podemos ter muitas certezas, porque as crianças são imprevisíveis e nos
levam a desorientações com relação às quais é necessário ter muita flexibilidade e otimismo nas
suas e nas nossas capacidades. (VECCHI, 2014, p. 183, grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).
infantil como projeto da comunidade, Ana Lúcia Goulart de Faria destaca o depoimento de
uma maestra, a qual pontua uma das especificidades das creches de San Miniato: “no centro,
uma criança competente”. (FARIA, 2009, p. 12). É assim que a criança é compreendida nos
referenciais italianos: um ser competente, ativo, criativo, ator e protagonista de suas ações,
desafiador, curioso em descobrir o mundo, um sujeito com direitos e voz, repleto de
potenciais. Também Vea Vecchi, na obra intitulada Tornando visível a aprendizagem da
criança: crianças que aprendem individualmente e em grupo, traz uma breve e surpreendente
afirmativa ao evidenciar o avanço da criança e abordar os encontros entre crianças e adultos
na escola: “É bom que a criança saia vencedora desses encontros”. (VECCHI, 2014, p. 204,
grifo meu).
Há destaque para a capacidade de o sujeito infantil regular suas escolhas a partir dos
seus próprios interesses. Para tanto, uma imagem de criança competente precisa ser reiterada.
Essas narrativas novamente aparecem repetidas vezes nos excertos retirados dos referenciais
italianos, agrupados abaixo:
[...] portadora de história, capaz de múltiplas relações, construtora de culturas infantis, sujeito de
direitos. (FARIA, 2007, p. 280).
[...] a criança tem direito a participar na sua educação e, como tal, a ser escutada. Ser escutada é ter
direito a ter voz relativamente às questões que lhe dizem respeito. (AZEVEDO; OLIVEIRA-
FORMOSINHO, 2008, p. 119).
[...] uma criança é plenamente capaz de criar mapas pessoais para sua própria orientação social,
cognitiva, afetiva e simbólica. [...] Uma criança competente, ativa e crítica; por isso, uma criança
‘desafiadora’. [...] produtora de cultura, valores, direitos, competente na vida e na aprendizagem
[...]. Uma criança que, desde bem cedo, é capaz de atribuir sentidos a eventos e que tenta
compartilhar significados e histórias de significados. (RINALDI, 2013, p. 125).
Continua.
137
[...] crianças fortes, crianças as quais não é necessário proteger, que sabem se divertir com
curiosidade e com espírito de aventura com os espaços, com os materiais, com os encontros, com
os confrontos e com as redes de relações [...]. Crianças cuja atividade e criatividade estimula-se,
observa-se, documenta-se e compartilha-se, tudo transformando-se assim, em memória e cultura.
(MANTOVANI, 2009, p. 24).
[...] a imagem da criança como muito competente e pronta para usar o próprio potencial
intelectivo, social, moral e estético ao resolver problemas e explorar o mundo; o direito das
crianças a trabalhar com materiais excelentes. (SEIDEL, 2014, p. 313).
Fonte: Elaborado pela autora, a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano.
(2016).
De um indivíduo que destinava proteção total, dependente do adulto, tanto por parte da
família quanto dos setores sociais, políticos e econômicos; de um indivíduo imaturo, carente e
selvagem; de um indivíduo inocente, angelical e natural, concedemos outras concepções e
condições para as crianças hoje em dia, não apenas nos referenciais italianos analisados, mas
fortemente neles. Sujeito ativo, competente e construtivo. Um sujeito rico –“sujeito rico:
significa uma criança que é competente e curiosa, sociável e forte, e ativamente engajada na
criação de experiências e na construção de sua própria identidade e de seu próprio
conhecimento”. (FORTUNATI, 2014, p. 20). Cidadãos plenos em seus direitos, as crianças
apresentam um “organismo dotado de um dinamismo interativo imediato, portanto, capaz de
estabelecer relações com uma variedade de pessoas e contextos que fazem parte da sua
experiência”. (FORTUNATI, 2014, p. 91). Dahlberg e Moss (2012) também explicam o que
é uma criança rica:
[...] uma imagem baseada na compreensão de que todas as crianças são inteligentes, o que quer
dizer que todas as crianças atribuem significado ao mundo, num processo constante de construção
de conhecimento, identidade e valores. Seguindo essa construção social, luta-se para mostrar as
potencialidades de cada criança e para dar a cada uma delas o direito democrático de ser escutada e
de ser reconhecida como cidadã na comunidade. (DAHLBERG; MOSS, 2012, p. 39-40).
É nesse contexto que a imagem da criança é tomada como rica, forte, poderosa –
criança sujeito de direitos. Rinaldi (1999) afirma que as crianças “têm potencial, plasticidade,
desejo de crescer, curiosidade, capacidade de maravilharem-se e o desejo de relacionarem-se
com outras pessoas e de comunicarem-se”. (RINALDI, 1999, p. 114, grifo meu). Rabitti
corrobora essa ideia, afirmando que “as crianças são criativas, desejosas de fazer perguntas,
de projetar soluções, de construir, se elas forem encorajadas a desenvolver suas próprias
138
[...] como alguém que experimenta o mundo, que se sente uma parte do mundo desde o momento
do nascimento; uma criança que está cheia de curiosidade, cheia de desejo de viver; uma criança
que tem muito desejo e grande capacidade de se comunicar desde o início da sua vida; uma criança
que é capaz de criar mapas para sua própria orientação simbólica, afetiva, cognitiva, social e
pessoal. Por causa de tudo isso, uma criança pequena pode reagir com um competente sistema de
habilidades, estratégias de aprendizagem e formas de organizar seus relacionamentos. (RINALDI,
2002, p. 76-77).
1) faz distinções, decide acerca de limites e faz escolhas, os quais constituem pedras fundamentais
da construção do conhecimento; 2) é protagonista do ato de cognição, mas também do comentário,
posto que o aprendizado deve ser acompanhado de reflexão e revisitação. O que temos em mente,
então, é um meio ambiente que se torna uma espécie de superfície refletora na qual os
protagonistas da experiência de aprendizado podem ver os traços de sua ação e, com isso, têm a
oportunidade de falar sobre como estão aprendendo; 3) vivencia o aprendizado como prática, não
tanto para buscar um fim, mas para mudar a si mesmo [...]; 4) expressa a dimensão estética como
qualidade essencial do aprender, do conhecer e do relacionar. 5) O prazer, a estética e a brincadeira
são fundamentais em qualquer ato de aprendizado e de construção do conhecimento. O
aprendizado deve ser prazeroso, atraente e divertido. A dimensão estética, por conseguinte, se torna
uma qualidade pedagógica do espaço escolar e educativo. (RINALDI, 2012, p. 152-153).
Num contexto social mais amplo, as análises feitas por Gallo (2015) ajudam-nos a
pensar aqui. O autor percebe que as políticas educacionais contemporâneas exaltam a criança
139
enquanto cidadã repleta de direitos, denominando-a de “pequeno cidadão” e afirma que “está
em curso no Brasil, desde meados de 1980, a construção de uma ‘governamentalidade
democrática’, na qual o centro é o cidadão”. (GALLO, 2015, p. 332). Ele conclui que isso é
mais uma maneira de instrumentalizar a infância. (GALLO, 2015, p. 340).
Nos discursos dos referenciais italianos, é possível encontrar que a centralidade dos
processos educacionais deve estar na criança, tal como nos discursos pedagógicos oriundos da
Escola Nova: as crianças “deveriam estar no centro das decisões sobre sua aprendizagem e
seu desenvolvimento”. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 21). O centro deve estar na criança,
como fica evidente neste excerto: “É necessário passar da criança/estudante à criança
completa; de se centrar não no educador, com seu controle do tempo e dos conteúdos, mas na
criança, na descoberta, nos ritmos pessoais, na sociabilidade e na expressão por meio das
linguagens plurais”. (MANTOVANI, 2009, p. 25).
A autora Ana Lúcia Goulart de Faria, ao apresentar Malaguzzi como um grande e
influente pensador para a infância, no livro intitulado Pedagogia(s) da Infância: dialogando
com o passado: construindo o futuro, destaca que a herança deixada por Malaguzzi foi
“tornar essa criança o centro de sua pedagogia, que a reconhece como ativa, inventiva,
envolvida, capaz de explorar, curiosa, aceitando o desafio de exprimir-se nas mais diferentes
linguagens com as mais diferentes intensidades”. (FARIA, 2007, p. 281). Giordana Rabitti,
ao desenvolver sua pesquisa nas escolas de Reggio Emilia, diz: “Observando a exposição
desse material espalhado pela escola, impressionou-me também o fato de que a forma de
expor reflete a mudança pedagógica em ação na escola, em direção a uma abordagem muito
mais centrada na criança”. (RABITTI, 1999, p. 153). Kinney e Wharton corroboram tal
perspectiva e também enfatizam a centralidade nas crianças: “Colocar as crianças no centro
do processo garantindo que estejam totalmente envolvidas no planejamento e na revisão da
sua aprendizagem juntamente com os educadores”. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 23). As
práticas da documentação pedagógica precisam, desse modo, acionar essa nova visão de
criança – competente, autônoma, protagonista. Kinney e Wharton discorrem sobre a
articulação da documentação com a nova imagem de criança:
As crianças estão mais visíveis. Sua aprendizagem está se tornando mais visível por meio de
fotografias, do diálogo e das apresentações visuais do processo e dos resultados da documentação
da sua aprendizagem. Isso inclui imagens e transcrições de conversas de crianças e adultos como
colaboradores da aprendizagem disponibilizadas em paredes internas e externas da instituição, em
pastas e em laptops e apresentação de slides. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 87).
140
71 Recomendo a leitura do capítulo intitulado “Interesse Infantil e governamento educativo das crianças”
(MARÍN-DÍAZ, 2010), no qual a autora faz uma análise do pensamento do filósofo alemão Herbart e da noção
de interesse infantil vinculada à existência de certa natureza infantil.
142
Dewey, a fim de explicitar como o interesse infantil não é um tema novo na educação das
crianças pequenas.
Entretanto, a partir da análise dos referenciais italianos, percebo novas nuances do
próprio interesse infantil, o que acaba produzindo outras roupagens para as crianças do nosso
tempo, denominadas atualmente como protagonistas72. A criança protagonista precisa investir
no seu interesse, na sua liberdade de escolha, na sua autonomia e independência para
empreender sua própria aprendizagem na escola. Interessante notar que os referenciais
italianos – não só eles, mas especialmente eles – articulam interesse infantil com autonomia,
protagonismo, independência, competência, crescimento, desenvolvimento, aprendizagem.
Isso tudo faz parte do novo quadro no qual a criança do nosso tempo é emoldurada: criança
protagonista.
Vale retomar, então, algumas ideias de Rousseau, especialmente na obra A Educação
de Emílio, na qual já acompanhávamos uma educação centrada na liberdade e nos interesses
da criança. Os postulados de Rousseau para a educação das crianças, compreendidos como
educação liberal, mostravam que é possível educar o sujeito com liberdade. (MARÍN-DÍAZ,
2010; NOGUERA-RAMÍREZ, 2011). Para Rousseau, a infância era a condição primeira na
qual se desenvolviam e cresciam as crianças, “processos naturais que se devem respeitar,
processos que têm sua própria temporalidade e que dão sentido à existência da infância como
etapa inicial, na qual o homem se fortalece e aprende tudo o que precisa e que não foi dado
nos instintos pela natureza”. (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 160). É nesse contexto que
Rousseau pede que os adultos economizem suas ações em função da ação da criança e deem
tempo para que ela se desenvolva em liberdade.
Conforme destaca Noguera-Ramírez (2011), na educação liberal, a criança necessita
cada vez menos de uma ação direta do exterior, por intermédio do ensino exercido pelo
mestre, e ela deve aprender sem ser ensinada. Uma liberdade regulada: educar menos para que
o outro faça mais. “A educação liberal é uma economia da educação” (p. 163), afirma o autor,
porém, não é fraca; pelo contrário, “a educação liberal é uma educação intensiva, permanente,
72 Marín-Díaz (2012), ao propor uma leitura histórica da criação discursiva da noção de natureza infantil e, com
ela, algumas noções comuns, como interesse, experiência e aprendizagem, aponta que, nos discursos do século
XIX e XX, há duas ênfases que conformam a natureza infantil: uma ênfase filosófica (tradição pedagógica
germânica, presente em Herbart e Fröebel, seguindo o legado kantiano) e uma ênfase biológica (tradição
filosófica francófona, presente em Claparède, Decroly, Freinet e Ferrière, seguindo o legado de Rousseau). A
ênfase biológica, segundo a autora, também está presente nas tradições anglo-saxônicas, como Dewey (e não
deixa de estar presente na teorização germânica de Fröebel e, posteriormente, no movimento da Escola Nova).
Com esta escrita, quero deixar claro que não recorri a uma análise de muitos teóricos que abordam a noção de
interesse – como Herbart, Fröebel, Decroly, Freinet, entre outros. Selecionei especialmente três pensadores –
Rousseau, Claparède e Dewey – que me possibilitaram analisar a emergência da noção discursiva de interesse
nos processos educacionais envolvendo crianças.
143
constante, pois é uma educação da natureza, dos homens e das coisas” (p. 163). É uma
educação que renuncia à ação diretiva do professor, para governar por meio de uma educação
liberal, e os interesses infantis devem dar o tom para os processos pedagógicos (NOGUERA-
RAMÍREZ, 2011). De forma sintética, Marín-Díaz (2010) já destaca tal questão em um de
seus artigos73:
Antes de pensar que a infância moderna morreu ou que está emergindo outra
figura infantil, parece-me que as condições e práticas contemporâneas
possibilitaram a consolidação da concepção de infância liberal fundamentada
na ideia de autonomia, liberdade, interesse, desejo e direitos. Assim que,
aquela imagem da criança ativa, criativa, que pergunta, que exige respeito
aos seus direitos, que questiona os adultos, que escolhe, que toma decisões
sobre o que vestir, comer, beber, não é uma criação das mídias; é uma
produção do discurso psicopedagógico do fim do século XIX e dos
primórdios do século XX que, evidentemente, se promoveu e expandiu
graças às tecnologias da comunicação e da informação. (MARÍN-DÍAZ,
2010, p. 206).
73 Vale destacar aqui o artigo “Natureza infantil e Governamentalidade Liberal”, de Dora Marín-Díaz (2011),
em que destaca o lugar que o interesse infantil ocupa no processo educativo, nas suas variadas formas de
compreensão. Afirma que “vemos emergir, entre o século XIX e os primórdios do século XX, no saber
pedagógico, o conceito de interesse como elemento fundamental que orienta tanto as discussões quanto as
experiências educativas que alguns dos pedagogos realizaram”. (MARIN-DÍAZ, 2011, p. 117).
144
eles mesmos já exerceram sobre si tal verdade. O “eu” infantil é o ponto de partida e o ponto
de chegada nos processos pedagógicos na Educação Infantil da Contemporaneidade.
Edouard Claparède (1873-1940), médico, psicólogo e pedagogo de Genebra, Suíça,
reconhecido seguidor das ideias de Rousseau, renomado pensador da chamada Escola Nova,
ligado às correntes liberais e à Psicologia experimental (influenciando, posteriormente, Freud
– 1856/1939 e Piaget – 1896/1980), é considerado representante da “revolução copernicana”
que faz da criança ativa o centro em torno do qual se constrói o processo de ensinar e
aprender. (HAMELINE, 2010). Claparède, em 1919, afirmou que “a infância tem uma
significação biológica [...]. Há que se estudar, portanto, as manifestações naturais da criança e
ajustar a elas a ação educativa. Os métodos e os programas gravitando em torno da criança, e
não a criança que gira ao redor de um programa imposto, sem poder contar com ele, tal é a
revolução copernicana na qual o educador é convidado a adentrar”. (CLAPARÈDE apud
HAMELINE, 2010, p. 21).
O interesse também ocupa lugar central nas teorizações de Claparède74, que encontram
eco até hoje. Para ele, a criança em seu estado natural tem como interesse o brincar. “No
ecossistema de seu meio, o indivíduo, portador do dinamismo de seu próprio crescimento,
experimenta necessidades que o fazem voltar-se para o ambiente externo e se convertem em
interesse, transformado este, por sua vez, em interesses evolutivos que os intercâmbios com o
meio tornam cada vez mais complexos”. (HAMELINE, 2010, p. 23). Para o autor, se o
interesse é o motor biológico da educação, a escola deve ser laboratório, e não auditório,
portanto, deve haver uma educação atraente e uma escola sob medida (expressões trazidas por
Claparède à educação). O trabalho escolar não pode, em hipótese alguma, ser insuportável. A
escola constitui um meio social válido por si só e preparatório para as realidades da vida
adulta. Nela, o pedagogo é, acima de tudo, um “estimulador do interesse”. (HAMELINE,
2010).
Claparède formula a lei do interesse (psicologicamente, a lei da necessidade): “toda
conduta é ditada por um interesse. Isto é: Toda ação consiste em atingir o fim que nos importa
no momento considerado”. (CLAPARÈDE, 1959, p. 97). Assim, a palavra interesse comporta
uma ação entre indivíduo e objeto, ou seja, o interesse não está nas coisas, mas as coisas que
se tornam interessantes a partir da necessidade que se exprime no indivíduo. Claparède
considerava o professor como “um estimulador de interesses e pensava que os métodos
educativos e os programas deveriam estar a serviço e em torno do educando e não o
74 Para uma leitura detalhada sobre a natureza infantil e sua articulação com o interesse em Claparède, sugiro a
leitura do artigo de Marín-Díaz. (2012).
145
75 A imaturidade é vista por John Dewey como condição para crescimento e não é tomada como algo negativo
nem como carência, pelo contrário, o sufixo im- significa algo positivo; assim, a imaturidade é vista como
aptidão e força positiva, como aptidão para o desenvolvimento. (DEWEY, 1959).
146
76 Para uma leitura detalhada sobre a natureza infantil e sua articulação com o interesse em Dewey, também
sugiro a leitura do artigo de Marín-Díaz (2012).
148
ela se desloca, ocupando novos lugares nos propósitos educativos. O que chama minha
atenção é que a noção de interesse infantil permanece até hoje e talvez de forma mais pontual
e intensa nos discursos pedagógicos atuais, sendo concebida quase de forma naturalizada
pelos professores. Foi criada, discursivamente, a noção de interesse infantil para explicar
muitas questões e processos pedagógicos. Toda essa discussão sustenta minha argumentação
de que o interesse infantil é compreendido como uma estratégia de governamento da infância,
isto é, o interesse é uma das formas de governamento por meio da interioridade individual de
cada criança.
É do interior do indivíduo que se dá um governo muito mais efetivo e eficaz, capaz de
regular menos e de forma mais flexível, mais sutil, mais livre de coerções e restrições
diretivas, mas capaz de regular muito mais. Em uma de suas entrevistas, Foucault já destacava
que “o controle é menos severo e mais refinado, sem ser, contudo, menos aterrorizador”.
(FOUCAULT, 2006, p. 307). O governamento ocorre por meio da autorregulação do próprio
indivíduo, mediante a manifestação dos seus interesses nas escolhas que ele é incitado a fazer
a todo o momento e nas decisões tomadas para a sua vida. A educação das crianças dá-se pelo
autogoverno de seus próprios interesses; assim, parece que se governa menos, mas, pelo
contrário, governa-se mais. Racionalizamos e economizamos as formas de governar, a fim de
maximizar os resultados mediante um mínimo de investimento e intervenção.
Ao mesmo tempo em que a noção de interesse infantil é referência em postulados
educativos desde meados do século XVIII, a sua compreensão muda de lugar e passa a ocupar
outras formas e condições. As análises empreendidas neste estudo levam-me a perceber que
hoje não necessitamos da instrução, do ensino e de um foco na disciplina para estimular os
interesses, tampouco da ação mais diretiva do professor na organização curricular e no
planejamento, a fim de despertar e estimular interesses infantis. Parece-me que hoje as
crianças são paulatinamente concebidas como mais autônomas, mais criativas e intensamente
mais protagonistas de suas ações, sendo elas mesmas as condutoras de seus processos de
aprendizagem. Afirmando isso, não pretendo dizer que as crianças não são potencialmente
capazes de construir suas relações com o mundo, mas pretendo assinalar uma nova condição
para o sujeito infantil, especialmente na escola e na relação adulto-criança, e, ao mesmo
tempo, novas formas de governamento da infância contemporânea.
A imagem da criança contemporânea que nos esforçamos para consolidar não
abandona a ideia de superação da imaturidade por meio da educação (tal como expõe Dewey),
mas diminui o sentido da educação como transmissão, instrução ou como instrumentalização
por parte do indivíduo que já alcançou a maturidade. No tempo presente, a discursividade
149
Ana continuou motivada com as atividades propostas no Projeto “Pequenos Gestos”. Quando as
atividades envolviam tintas, Ana demonstrava preferência em utilizar os pincéis, quando a
proposta era a pintura com as mãos, ela as finalizava rapidamente, solicitando a higiene.
Reconhece algumas cores e vem percebendo suas tonalidades. Nestes últimos tempos, Ana tem se
mostrado mais espontânea. Vem compartilhando com a turma suas ideias e desejos, bem como
suas vivências: “Eu fiquei em casa com a minha mãe!”. “Eu também quero brincar com a
boneca!”.
No pátio, Ana gosta de interagir com os bebês, caminha com eles segurando-os pela mão, auxilia-
os na piscina de bolinhas e no escorregador. Também aprecia brincar de esconde-esconde através
da porta de vidro, que separa os dois pátios. Ana tem explorado em seu brincar o faz de conta. Na
casinha prepara comidinha, chimarrão e passeia com as bonecas. Também tem interagido mais
com os colegas, convidando-os para brincar.
Vem se alimentando sozinha, embora em vários momentos requeira auxílio. Dependendo do
cardápio, solicita repetição. Ana aceita bem os alimentos e come de tudo. Vem mostrando
independência no momento de derramar a água da garrafa, despejando-a com cuidado na bacia.
É importante que a família continue incentivando-a a se alimentar sozinha promovendo sua
autonomia.
Fonte: Documentação Pedagógica Professora C – Criança de 2 a 3 anos (2014, grifos meus).
151
77 Marín-Díaz (2012) mostra que o interesse infantil é uma noção que expressa o pensamento educativo
moderno, articulando discursos naturalistas, discursos liberais e as práticas disciplinares. Afirma que a noção de
interesse possibilitou práticas pedagógicas que operam como estratégias de governo numa racionalidade liberal.
152
Jamais ensine a uma criança algo que ela possa aprender sozinha.
(MALAGUZZI apud RINALDI, 2012, p. 229).
apresentar o quadro com o material empírico logo no início desta seção, a fim de salientar tais
recomendações.
É óbvio que entre a aprendizagem e o ensino, honramos a primeira. Não é o caso de desprezarmos
o ensino, mas declaramos: “Coloque-se de lado por um momento e deixe espaço para aprender,
observe cuidadosamente o que as crianças fazem e então, se você entendeu bem, talvez ensine de
um modo diferente de antes”. (MALAGUZZI, 1999, p. 93, grifos meus).
[...] uma imagem que não só impõe o dever de escutar quando se dispensam atenções e
ensinamentos, como também que leva a uma dimensão horizontal e cooperativa da relação.
(FORTUNATI, 2009, p. 76, grifos meus).
Uma das tarefas primordiais do educador e, portanto, da escola é ajudar o grupo de crianças e cada
uma delas individualmente a aprender a aprender, estimulando sua predisposição natural para os
relacionamentos e a consequente coconstrução do conhecimento. (RINALDI, 2012, p. 229, grifos
meus).
[...] mudar a ação da escola de ensinar para aprender [...] e favorecer a ação construtiva e
colaborativa das crianças e a presença do educador como ajudante que está sempre disponível para
elas, mas sem ser opressivo ou intrusivo. (RINALDI, 2012, p. 182, grifos meus).
A perspectiva que deriva de tudo isso é a de uma relação entre as diferentes situações em que a
criança constrói sua experiência, partindo da aceitação positiva do pressuposto de que não é o
adulto quem deve determinar diretamente as aprendizagens, mas que se trata, antes, de
solicitações que o adulto consegue colocar nos diversos contextos de experiência propostos às
crianças. (FORTUNATI, 2009, p. 73, grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).
Assim, o currículo para a infância nos referenciais analisados sugere que os planos de
ações sejam desenvolvidos no momento em que adultos e crianças se encontram na escola e
que as atividades possam emergir desse encontro. Mais surpreendente ainda é a seguinte
afirmativa:
155
A documentação tem sustentado a visibilidade das competências e dos processos através dos quais
as competências se expressam e evoluem e tem oferecido a possibilidade de uma reflexão
compartilhada sobre o quanto os vínculos e as possibilidades oferecidas podem condicionar a
expressão das potencialidades individuais. Entende-se que a habilidade de observação dos
educadores – que deve ser sustentada por uma formação adequada e complexa – é a ferramenta que
melhor permite reconhecer as potencialidades e inteligências, reconhecendo as múltiplas
linguagens utilizadas pelas crianças em sua exploração. (FORTUNATI, 2014, p. 32).
O currículo é originado nas escolhas que as crianças fazem, e é nesse contexto que
Malaguzzi afirma os projetos de trabalho. Mesmo que os referenciais italianos defendam o
coletivo ou grandes grupos, é sempre o interesse particular da criança que fala mais alto, e o
trabalho é proposto em pequenos grupos. O princípio do trabalho por projetos se fortalece,
uma vez que “os projetos não são apenas retirados do mundo das crianças, mas são
sugeridos por elas – as crianças agem como protagonistas”. (RABITTI, 1999, p. 152). Nessa
78 Rinaldi (1999, p. 113) define o currículo emergente como “um método de trabalho no qual os professores
apresentam objetivos educacionais gerais, mas não formulam objetivos específicos para cada atividade de
antemão. Em vez disso, formulam hipóteses do que poderia ocorrer, com base em seu conhecimento das crianças
e das experiências anteriores. Juntamente com estas hipóteses, formulam objetivos flexíveis e adaptados às
necessidades e interesses das crianças, os quais incluem aqueles expressados por elas a qualquer momento
durante o projeto, bem como aqueles que os professores inferem e trazem à baila à medida que o trabalho
avança”. Sobre currículo emergente, sugiro a leitura da Tese da professora Dra. Jacqueline Silva da Silva (2011),
intitulada O planejamento no enfoque emergente: uma experiência no 1º ano do Ensino Fundamental de 9 anos.
156
afirmativa de Rabitti, vemos que não basta compreender a criança como protagonista; é
preciso dar oportunidades escolares para ela exercer esse protagonismo, e o currículo
emergente e a metodologia de projetos seriam a melhor expressão disso.
As crianças pequenas dependem dos adultos em muitos aspectos de suas vidas e de suas
experiências de aprendizagem; entretanto, o trabalho em projetos é a parte do currículo na qual os
seus próprios interesses, ideias, preferências e escolhas podem ter rédeas relativamente soltas. [...]
As experiências precoces de domínio de conhecimento podem formar a base de uma disposição
permanente para buscar a compreensão em profundidade sobre tópicos que merecem atenção.
(KATZ, 1999, p. 41).
“Os seus próprios interesses, ideias, preferências e escolhas podem ter rédeas
relativamente soltas”: os projetos visam a ajudar a criança a extrair um sentido mais profundo
e completo de eventos e fenômenos de seu próprio ambiente e de experiências que mereçam
atenção. Os projetos oferecem a parte do currículo na qual as crianças são encorajadas a tomar
suas próprias decisões e a fazer suas próprias escolhas sobre o trabalho a ser realizado,
geralmente em cooperação com seus colegas. Esse tipo de trabalho aumenta a confiança das
crianças em seus próprios poderes intelectuais e reforça sua disposição de continuar
aprendendo.
Atividades do trabalho com projetos incluem observação direta, perguntas a pessoas e
especialistas relevantes, coleta de artefatos pertinentes, representação de observações, de
ideias, de memórias, de emoções, de imagens e de novos conhecimentos em várias maneiras,
incluindo encenação dramática. O trabalho em projetos faz com que as crianças contribuam
com seus próprios conhecimentos, sugerindo questões a serem indagadas e linhas de
investigação a seguir. Interessante ver que as crianças podem assumir a liderança no
planejamento, assumir responsabilidades por observações específicas, por informações e pelos
artefatos coletados e selecionados para os estudos.
No projeto educativo de Reggio Emilia, por exemplo, os projetos são a parte do
currículo na qual os interesses das crianças têm centralidade e, além disso, possibilitam
experiências de conhecer um tópico em profundidade. Assim, as crianças podem formar a
base de uma disposição permanente para buscar a compreensão profunda de tópicos que
mereçam atenção. Os professores prestam atenção, constantemente, às atividades das
crianças. Acreditam que, quando as crianças trabalham em um projeto de interesse para elas,
encontrarão naturalmente problemas e questões que desejarão investigar. A função dos
professores seria ajudá-las a descobrir seus próprios problemas e questões. Nesse ponto, não
157
Para o educador, a capacidade de refletir sobre a forma com que se dá o aprendizado significa que
ele pode basear seu ensino não naquilo que deseja ensinar, mas naquilo que a criança deseja
aprender. Desse modo, ele aprende a ensinar e, junto com as crianças, busca a melhor maneira de
proceder. (RINALDI, 2012, p. 185).
das ações infantis, próprio do protagonismo infantil, as próprias crianças são interpeladas a
produzirem suas aprendizagens a partir daquilo que lhes interessa conhecer, dos seus gostos,
das suas escolhas. Sob essa lógica, ao documentarem-se as vivências das crianças na escola,
há “o apelo para que cada criança se volte em direção àquilo que produziu, ao modo como se
sentiu, aos sucessos ou dificuldades na execução de um projeto”, e isso constitui uma
estratégia para tornar cada criança “consciente dos processos em que está envolvida, para dar-
se conta dessa possibilidade de refletir sobre si mesma, de poder pensar o seu pensamento”.
(BUJES, 2008, p. 115-116). Essa prática opera no sujeito, produzindo formas de ser e estar na
escola e outros modos de ser aluno, podendo ser compreendida como “técnicas ou
mecanismos de autovigilância, de autoavaliação, de autonarração (de confissão), que têm
como efeitos a construção e a transformação da consciência de si”. (BUJES, 2008, p. 116).
Um autocontrole sobre suas ações, aprendizagens, conquistas, constituiria a marca da
identidade de cada criança.
Vejamos um exemplar de documentação pedagógica produzido por professor que atua
em Escola de Educação Infantil do interior do Rio Grande do Sul. Ao apresentá-lo, chamo
atenção também para a apresentação estética do material.
Tiago teve uma grande conquista nestes últimos meses, não usa mais fraldas e vem tendo um
bom controle dos esfíncteres. Vem se alimentando sozinho e geralmente solicita repetição. Tiago
aceita bem os alimentos e come de tudo. Vem mostrando independência no momento de derramar
a água da garrafa, despejando-a com cuidado na bacia. Ele vem construindo uma grande amizade
com o colega Gustavo. Juntos superam os desafios motores do pátio, montam estradas, brincam
de pega-pega e dão belas gargalhadas!
Tiago se envolve com tudo o que acontece na Escola. Conversa com todos contando suas
aventuras e vivências. Está sempre disposto a auxiliar a turma, mostrando-se afetivo e solidário
com quem convive com ele. Continuou motivado com as atividades propostas no Projeto,
mostrando entusiasmo quando elas envolviam as tintas. Reconhece algumas cores e vem
percebendo suas tonalidades. “É o azul forte ou o fraco?”.
Fonte: Documentação Pedagógica Professora C – Criança de 2 a 3 anos (2014, grifos meus).
Nossa pequena Paula, com seu jeitinho cativante, conquistou seu espaço na turma do Maternal.
Está sempre atenta aos acontecimentos da nossa rotina. Na sua chegada, se despede da mãe e vai de
mansinho entrando nas brincadeiras que estão acontecendo na nossa sala. Demonstra
amadurecimento para se alimentar sozinha, bem como fazer uso do banheiro, precisando de pouco
auxílio.
Paula adora brincar com as sucatas da nossa sala. Usa a imaginação para criar seus personagens e
interagir com seus amigos. Nas brincadeiras de casinha, geralmente quer ser a mamãe, pega uma
bolsa e diz que vai trabalhar. Em outras ocasiões ela é a filha e a ouvimos se dirigindo ao colega
como “mamãe, eu quero brincar”. Na hora do soninho, há dias em que adormece facilmente, já há
outros em que precisa de um carinho da professora para nanar. Tem o sono leve e geralmente é
uma das primeiras a acordar. Chama da cama “Oi profe!” e após lhe darmos saudação ela pede
“Posso ir no banheiro?”.
É uma menina muito meiga e carinhosa. Nos chama a atenção o cuidado e a organização que tem
com tudo que faz e com suas coisas também. Se avista sua mochila aberta, ela vai lá e fecha, por
exemplo. Quando seu familiar chega para buscá-la, Paula tem autonomia para pegar sua mochila
do ganchinho, guarda seu copinho e está pronta para ir. Antes disso, todos recebem o seu tchau
com cheirinho de “até amanhã!”. É muito bom acompanhar o seu crescimento na escola.
uma estratégia de governamento da infância que, assim como o interesse infantil, enfatiza a
autorregulação da criança desde tenra idade, sendo esta a produtora de aprendizagens.
Compreendo que as questões pontuadas acima me ajudam a visibilizar que a estratégia do
aprender a aprender também faz movimentar um certo tipo de estetização da infância,
colocando a condição de aprendente como condição de individualização. Como podemos
significar aprender a aprender para uma criança de um ano de vida? De dois anos de idade?
Faço tais perguntas, pois os referenciais italianos são, basicamente, voltados para a Educação
Infantil, nível que atende crianças de zero a cinco anos de idade.
Antes de finalizar esta seção, é interessante discutir aqui como o aprender a aprender
está conectado com os modos como os indivíduos são produzidos a partir das práticas de
governamentalidade neoliberal. Ao abordarem a “sociedade de aprendizagem”79, Popkewitz,
Olsson e Petersson defendem a ideia de que os modos de vida do cidadão dessa sociedade
implicam estar constantemente se colocando num lugar de aprendente e num processo
permanente de inovação.
A configuração das ações escolares não tem outra função senão tornar aqueles que
habitam a escola sujeitos de aprendizagem permanente, e os discursos pedagógicos que se
conectam com a documentação pedagógica fortalecem essa marca, uma vez que destacam
como princípios “tornar mais visível o processo de aprendizagem das crianças e o que elas
aprendem”. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 22). Num tempo em que todos são convidados
a aprender por si mesmos, a tarefa que se impõe é aprender a aprender. Conforme destacam
Saraiva e Veiga-Neto,
79 Ao falar sobre a experiência escolar estendida e contínua, Augusto afirma que “estamos endereçados à escola
do nascimento à morte” (AUGUSTO, 2015, p. 11) e que a escola se tornou“um lugar familiar para toda a vida”.
(AUGUSTO, 2015, p. 12).
163
Aprender precisa fazer sentido para o indivíduo. A tarefa do professor, nesse contexto,
seria oferecer “experiências”. Somente uma experiência seria capaz de dar sentido ao
aprender. Na obra Experiência e educação, Dewey explica que “toda experiência modifica
quem a faz e por ela passa e a modificação afeta, quer o queiramos ou não, a qualidade das
experiências subsequentes, pois é outra, de algum modo, a pessoa que vai passar por essas
novas experiências”. (DEWEY, 1976, p. 25-26).
Para Dewey (1959, p. 153), o sujeito da experiência é aquele capaz de “aprender da
experiência”, ou seja, “fazer uma associação retrospectiva e prospectiva entre aquilo que
fazemos às coisas e àquilo que em consequência essas coisas nos fazem gozar ou sofrer”. É
pela experiência que somos capazes de aprender; “experimenta-se o mundo para se saber
como ele é; o que se sofrer em consequência torna-se instrução – isto é, a descoberta das
relações entre as coisas”. (DEWEY, 1959, p. 153). Se a experiência despertar curiosidade,
fortalecer a iniciativa e suscitar desejos e propósitos suficientemente intensos, ela será capaz
de “conduzir uma pessoa aonde for preciso no futuro, a continuidade funciona como um bem
diverso. Cada experiência é uma força em marcha. Seu valor não pode ser julgado se não na
base de, para que e para onde se move ela”. (DEWEY, 1976, p. 29).
O aprender a aprender é entendido, nesse autor, como uma forma de superar o ensino
tradicional, que, segundo ele, não considerava as capacidades e os propósitos dos estudantes e
priorizava atividades de memorização e automação. Aprender a aprender seria uma estratégia
para que o sujeito seja ativo no seu processo de aprendizagem dos conhecimentos científicos e
necessários para a nova geração. Nesse sentido, parece-me que a aprendizagem vem sendo um
elemento central para organizar os processos educativos com as crianças, e essa discussão não
é nova na educação. No entanto, poderia afirmar que o debate acerca do aprender a aprender
na Contemporaneidade intensifica a centralidade na criança e ameniza a atuação do professor.
Isso pode ocasionar um esvaziamento de conhecimentos escolares e a destituição da
tarefa docente, que é o ensino – “cabe à escola ensinar e reivindicamos um espaço de
profissionalização da docência, ou seja, do ensino dos conhecimentos escolares”. (FABRIS;
TRAVERSINI, 2013, p. 37). O aprender a aprender da atualidade pode ocasionar certa
“fragilização dos critérios de seleção dos conhecimentos escolares” (SILVA, 2015, p. 75) e,
ao mesmo tempo, a “desintelectualização dos currículos e a desprofissionalização dos
professores”. (GARCIA, 2015, p. 57)80. Em relação aos processos escolares voltados às
crianças muito pequenas da Educação Infantil, o aprender a aprender pode ser perigoso, pois o
governamento da infância se dá na individualização máxima de cada criança, capaz de ser
protagonista de seus próprios processos educativos.
Tendo tudo isso em conta, o aprender a aprender e interesse infantil são mobilizados
como estratégias que produzem a criança protagonista na Educação Infantil por meio das
práticas de registro da documentação pedagógica (não apenas delas, mas de todo um conjunto
de engrenagens que compõem a maquinaria escolar). É sobre isso que tratarei na próxima
seção, a fim de mostrar a produtividade do protagonismo infantil.
O chamado protagonismo infantil emerge por meio dos referenciais italianos e vem,
paulatinamente, integrando a gramática brasileira da Educação Infantil nos últimos anos. As
crianças, a partir dos referenciais italianos, passam a ser vistas como protagonistas, ou seja,
80 Mesmo compreendendo que os três estudos assinalados neste parágrafo se instalam em níveis e esferas
diferentes, cercados pelos seus objetivos de estudos e pesquisas – o primeiro analisa os efeitos da sociedade
disciplinar para a sociedade de controle em relação aos conhecimentos escolares, a partir de entrevistas com
professores dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental; o segundo analisa as políticas curriculares para o Ensino
Médio no Rio Grande do Sul; o terceiro analisa as reformas curriculares para a formação inicial de professores–,
creio que eles auxiliam na sustentação daquilo que minhas análises me possibilitaram inferir: há um
esvaziamento de conhecimentos escolares no aprender a aprender contemporâneo.
169
[...] são os ‘protagonistas de seu processo de crescimento’. Possuem ‘uma formidável aptidão
natural para ser os protagonistas de seu crescimento e desenvolvimento, uma aptidão que elas
traduzem em curiosidade em relação ao mundo das coisas e das relações e na extraordinária
habilidade de estarem presentes de maneira construtiva dentro dos contextos de experiência em que
se acham envolvidos. (MOSS, 2009, p. 21, grifos meus).
Os excertos que seguem, extraídos do material acima, procuram dar visibilidade para
algumas questões:
Magali adora música, seja para dançar ou cantar [...] cantamos e dramatizamos algumas músicas, e
Magali corre para fazer os gestos e já fala algumas palavras, como “joaninha, grilo, barata”, entre
outras. Na realidade a sua linguagem verbal vem se desenvolvendo muito, repetindo tudo o que
falamos.
Adora brincar na casinha, adora músicas e aprende muitas coisas no ambiente escolar. A
garantia da aprendizagem fica evidente, sendo visibilizada também na expressão “a sua
linguagem verbal vem se desenvolvendo muito”.
Ao visibilizarmos as aprendizagens das crianças, permeadas por muita alegria, prazer,
entusiasmo, motivação, envolvimento, acompanhamos uma criança que deseja aprender na
escola infantil, uma criança sempre ocupada, e as suas ações têm como objetivo fundamental
aprender. As conquistas individuais e constantes assinalam na criança a vontade de mostrar
afinidade com seu grupo de amigos e colegas aprendentes, mas não só isso, assinalam
também uma vontade de vencer a si mesma ou de ser melhor do que si mesma, a cada dia
letivo – um dever querer aprender permanentemente. Trata-se de uma condução orientada
para que cada criança se produza como um indivíduo aprendente e autônomo do adulto, que
vive a sua vida com alegria na escola, uma criança protagonista.
Parece-me que a individualidade da criança é marcada como “um tipo particular de
individualismo e um tipo particular de liberdade” (BALL, 2013, p. 149), destacando-se os
seus interesses num vasto universo de materiais e recursos pedagógicos que são
disponibilizados e organizados pelo professor, como “um eu que faz investimentos em
atividades de gosto legitimado e um eu tomado como investimento” (BALL, 2013, p. 148);
assim, vemos que a “aprendizagem ao longo da vida está começando cada vez mais cedo”.
(BALL, 2013, p. 148).
Vejamos outro exemplar de documentação pedagógica produzido por professora da
Educação Infantil (interessante chamar atenção também para as fotografias que acompanham
as escritas docentes).
173
Camila continua muito participativa em nossas propostas. Está brincando, se divertindo com seus
colegas, e aprendendo muito junto do grupo. Muitas vezes, ao observar um colega fazendo algo
que tenha achado legal, Camila costuma fazer o mesmo, dando boas gargalhadas e chamando a
professora ou auxiliar para observar-lhe.
Ao expressar-se oralmente em meio a nossas conversas de roda, buscamos fazer com que Camila
pronuncie as palavras em tom mais elevado para que seus colegas também a escutem. Em geral,
durante as brincadeiras mais espontâneas, Camila se manifesta e conversa mais com o grupo.
criança percebe que isso interessa ao adulto e pode significar uma aprendizagem relevante na
escola. A criança passa a esperar pela ação da professora, que funciona como um gatilho para
suas aprendizagens e para a formação de hábitos e atitudes corretivas.
Talvez a criança passe a agir sobre si mesma, buscando novamente ações
significativas para serem capturadas pelo adulto, como se pudesse ser capaz de empreender
suas próprias ações. A fotografia, nesse caso, captura a minúcia de um momento, torna
pública uma satisfação imediata e valoriza a velocidade do tempo. Possibilita um olhar
particularizado, quase microfísico, levando o professor a conseguir capturar as escolhas das
crianças protagonistas, como se fosse possível controlar sem controlar; governar sem
governar; controlar sem exercer controle aparente, pois “governar será sempre aqui entendido
como agir de acordo com uma certa descrição”. (Ó, 2009, p. 25). Pois essa descrição realizada
vai funcionar para a professora, os colegas e as famílias reforçarem, aprimorarem e
incentivarem o que deve e o que não deve ser realizado pela criança.
Outro aspecto para o qual quero chamar atenção está na escrita dos professores nos
exemplares de documentação pedagógica até aqui expostos neste trabalho: a escrita no
gerúndio (explorando, fazendo, preparando, brincando, divertindo, aprendendo, entre outras).
Vejamos:
Na língua portuguesa, o gerúndio é uma forma verbal que indica uma ação contínua,
um processo verbal não-finalizado, ou seja, uma ação que está, esteve ou estará em
andamento. Assim, o gerúndio indica uma ação em curso, ou ainda, uma ação simultânea a
outra. Em relação às escritas nos exemplares cedidos pelos professores para fins de pesquisa,
é recorrente a escrita no gerúndio, o que reforça as ações das crianças acontecendo de forma
contínua – como se as crianças estivessem sempre em ação na escola, sempre em movimento;
a fotografia captura a ação em movimento, servindo para a reflexão sobre essas ações, no
sentido de tomada de consciência.
175
81 O sujeito empreendedor busca “maximizar sua ‘qualidade de vida’ através da habilidosa montagem de um
‘estilo de vida’ criado mediante o mundo dos bens”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 66). Em recente entrevista
publicada na revista IHU On-Line, nº 472, de 14-09-2015, o italiano Sandro Chignola afirma que é necessário
criar subjetividades nas quais o indivíduo se perceba como um livre empreendedor de si, em constante
competição e concorrência com os outros, numa lógica de governamentalidade neoliberal de liberdade.
82 Toda vez que assisto a alguns programas de televisão, especialmente àqueles denominados reality shows, que
mostram acontecimentos da vida “real”, com histórias de vidas “reais”, não apresentando personagens e ficção,
faço relações com a ideia que aqui desenvolvo sobre liberdade e empreendedorismo. Nesses programas, mesmo
contemplando assuntos diversos (concurso de maquiadores, Big Brother, moda e como usar roupas adequadas,
concurso de cozinheiros, nutrição e como se alimentar melhor, entre outros), fica visível o quanto cada
indivíduo, além de competir com os outros, precisa competir consigo mesmo, superando suas próprias metas e
sendo melhor do que foi anteriormente. Suas escolhas, feitas de uma forma bastante livre, são reguladas pelas
suas próprias ações.
176
deve tornar-se, ou melhor, querer tornar-se empresária de si mesma, fazendo suas escolhas
autônomas, a serviço de uma qualidade de vida que ela mesma projetou, tornando sua
existência diária relevante, ou seja, com o planejamento calculado de sua vida, formando uma
aliança com o progresso social.
Trata-se de investir em indivíduos que autogovernam sua vida, que são responsáveis
pelo seu próprio sucesso, ou seja, empreendedores de si mesmos. O empreendedorismo “[...]
refere-se a uma série de regras para a conduta da existência diária de uma pessoa: energia,
iniciativa, ambição, cálculo e responsabilidade pessoal. O self empreendedor fará de sua vida
um empreendimento”. (ROSE, 2011, p. 215). Gadelha (2013) compara o empreendedor ao
homem-empresa, ou “indivíduomicroempresa” (GADELHA, 2009), aquele indivíduo
preocupado com o acúmulo de pontos, como num sistema de milhagem, sempre em prol da
produtividade e sempre preso a avaliações (aqui também podemos citar os extensos currículos
que somos motivados a produzir). Acrescentando a essa discussão, comparo o empreendedor
à criança protagonista, aquela preocupada com o seu processo de crescimento e
desenvolvimento, sempre em prol da sua curiosidade e interesse, como microempresária de
suas aprendizagens.
Também Lemos (2015), ao analisar as práticas que a UNESCO vem efetuando no
Brasil, inseridas no contexto de intervenções diplomáticas e militares, numa política da
segurança que articula os poderes da soberania, disciplina e biopolítica, destaca que as
crianças estão pautadas “em estilos de vida empreendedores, desde cedo”, pois “já devem
aprender na escola, nos primeiros anos de vida, a serem produtivas, dóceis, obedientes,
submissas, investidoras e microempresárias em tudo o que fazem e pensam, sentem e vivem”.
(LEMOS, 2015, p. 124).
Empreendedorismo e educação conectam-se com a emergência da Teoria do Capital
Humano83, compreendida como uma grade de inteligibilidade para a compreensão da vida
social contemporânea, como destaca Gadelha (2009, p. 180): os indivíduos são produzidos a
partir de práticas de governamentalidade neoliberal, reinando uma “normatividade
econômico-empresarial” que fabrica um “indivíduo microempresa”. Ainda nas palavras do
autor,
83 A Teoria do Capital Humano (desenvolvida mediante pesquisas e análises da Escola de Chicago) adota o
mercado como princípio de inteligibilidade, tomando o comportamento e a conduta dos indivíduos como objeto
de cálculos racionais da relação custo-benefício de investimentos feitos pelos próprios indivíduos. O conjunto de
habilidades, capacidades e destrezas passa a fazer parte desse cálculo e, por meio de educação, formação e
qualificação técnica e profissional, o indivíduo tem retornos posteriores, a partir de fluxos de renda.
(GADELHA, 2010).
177
[...] os indivíduos e as coletividades são cada vez mais investidos por novas
tecnologias e mecanismos de governo que fazem de sua formação e de sua
educação, num sentido amplo, uma espécie de competição desenfreada, cujo
progresso se mede pelo acúmulo de pontos, como num esquema de
milhagem, traduzidos por índices de produtividade. E são avaliados de
acordo com os investimentos que são permanentemente induzidos a fazer
para valorizarem-se como microempresas num mercado cada vez mais
competitivo. O novo empreendedor já não pode mais ser caracterizado como
um passivo na contabilidade das grandes empresas e corporações; na
verdade, há quem diga que ele já não é mais nem mesmo um ativo, senão um
investidor, uma espécie de sócio que investe na empresa em que trabalha o
seu capital humano. (GADELHA, 2009, p. 180-181).
84 Gadelha afirma que “Não tardaria, pois, que ela (a cultura do empreendedorismo) se voltasse para a
população infantil e, obviamente, para a educação das crianças. Entretanto, esse investimento mostra-se muito
mais complexo e ostensivo do que apenas fazer com que, como no passado, as crianças brinquem com o jogo
‘banco imobiliário”. (GADELHA, 2010, p. 133).
178
necessário no tempo atual, que ganha credibilidade social por conectar-se com as
transformações contemporâneas da governamentalidade.
Foi necessária toda uma nova produção estética para a criança: competência,
liberdade, protagonismo, autonomia são as palavras de ordem dessa estética. A estetização da
infância é possível na medida em que incluímos nessa categoria geracional outros modos de
ver e agir em relação às crianças, outros modos de a própria criança ver-se e agir sobre si
mesma. Acredito que reside no sujeito infantil do nosso tempo a lógica de pensar o mundo e
pensar a si mesmo a partir de racionalidades neoliberais, em que tecnologias de governamento
são mobilizadas de maneira a produzir um sujeito cada vez mais livre e interessado que
investe na sua qualificação e maximiza seu potencial produtivo, para que “talentos e
habilidades sejam encontrados e desenvolvidos ao máximo”. (BALL, 2013, p. 148). O que me
inquieta aqui é que estamos falando de crianças bastante pequenas.
Ao ser protagonista, a criança torna-se uma empresária de si mesma, e o “self deve
moldar sua vida através de atos de escolha”. (ROSE, 2011, p. 220). Dito de outra forma, a
criança da Educação Infantil deve reconhecer a si mesma como um tipo de indivíduo capaz de
derivar-se dos juízos normativos colocados em ação pelos educadores e toda uma rede de
atuação; a criança precisa estabelecer uma relação consigo mesma naquilo que ela é, pode ou
deseja ser; a criança regula a si mesma e é regulada pelo outro. Há uma responsabilização
incitada no sujeito infantil, uma vez que é ele quem precisa protagonizar seus processos de
aprendizagem, estabelecendo uma parceria com as lógicas de uma sociedade movida pela
lógica empresarial. Nesse contexto, as práticas de registro da documentação pedagógica
precisam garantir as liberdades de escolhas infantis para seguir operando enquanto tecnologia
de governamento dessa infância contemporânea.
Em relação ao professor, ao afastar-se de uma intervenção mais direta no ensino, ele
amplia sua atuação por meio do aprender a aprender e coloca todo o seu esforço na
organização do espaço escolar e no registro da documentação pedagógica. Pelo visto, as
formas de governamento são dissolvidas e espraiadas pela escola, uma vez que as práticas da
documentação pedagógica devem ser sistemáticas, com fluxo contínuo, entrando na rotina
cotidiana. Minimizamos as ações diretivas do ensino e maximizamos a liberdade individual
para que cada criança seja capaz de aprender a aprender por si mesma. Isso fica claro na
sugestão dada na epígrafe desta seção: “Jamais ensine a uma criança algo que ela possa
aprender sozinha”. (MALAGUZZI apud RINALDI, 2012, p. 229).
Das relações mais autoritárias e diretivas entre professor e aluno, da relação diretiva
entre ensino e aprendizagem, passamos para relações mais livres, plásticas, abertas,
179
[...] o self deve ser um ente subjetivo, ele deve aspirar à autonomia, lutar por
realização pessoal em sua vida terrena, interpretar sua realidade e destino
como uma questão de responsabilidade individual e encontrar significado na
existência moldando sua vida através de atos de escolha. (ROSE, 2011, p.
210).
85 Castelo Branco contribui nesse debate ao afirmar que “onde inexiste a prática de liberdade não há relações de
poder [...] a condição de exercício do poder é sempre e acima de tudo a liberdade. Sem liberdade [...] não há
possibilidade de relação ou exercício de poder”. (CASTELO BRANCO, 2013, p. 153). Onde não há liberdade,
segue descrevendo o autor, há relação autoritária e totalitária, pois “a liberdade é tanto condição para o exercício
do poder quanto da resistência a ele”. (CASTELO BRANCO, 2013, p. 154).
180
obrigados a serem livres, a entender e encenar suas vidas em termos de escolhas”. (ROSE,
2011, p. 32). Produzimos e regulamos indivíduos que são “livres para escolher”, dentro de
uma gama de possibilidades – portanto, nossas escolhas são “expressões de personalidade e
são refletidas de volta sobre o indivíduo que as fez. A prática da liberdade aparece somente
como a possibilidade de máxima autossatisfação do indivíduo ativo e autônomo” (ROSE,
2011, p. 32), uma vez que os “indivíduos ‘livres’ e espaços ‘privados’ podem ser
‘governados’ sem que se rompa sua autonomia formal”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 58)86.
A partir desse conjunto de recorrências no material de análise, evidencia-se que as
práticas da documentação pedagógica se encontram conectadas com as lógicas e
racionalidades neoliberais; nutrem-se delas, nelas buscam seu sustento e alimento. Os modos
de compreender a infância, a pedagogia e a escola vêm provocando transformações na
sociedade, a ponto de estarmos assistindo à estetização refinada e alargada da infância
contemporânea.
Para concluir minha argumentação, vale contemplar aqui a ampliação que Lipovetsky
e Serroy (2015) fizeram a partir da ideia de “sociedade do espetáculo”, exposta por Guy
Debord (publicado em 1967 na França), expondo a sociedade do hiperespetáculo, ao
defenderem a tese de que o capitalismo do tipo artista vem provocando a estetização do
mundo. Para os autores, há oito eixos fundamentais que constituem essa nova sociedade do
hiperespetáculo.
O primeiro deles é a generalização da televisão, que, com um número crescente de
redes, canais, plataformas, e mediante uma profusão de imagens, pode ser vista em qualquer
lugar e a qualquer momento. A televisão torna-se um “centro multimídia de lazer interativo
capaz de proporcionar uma multidão de serviços [...] que abre um mundo ilimitado de
imagens e de programas”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 265). O segundo eixo envolve
as profundas mudanças nos modos de consumo articuladas com a televisão, ou seja, a TV
“cedeu lugar a um consumo individualista, desunificado, self-service [...] o consumidor se
torna um programador autônomo e personalizado”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 266).
O terceiro eixo contempla a transversalidade e a hibridização entre os domínios econômicos e
culturais, entre comércio, moda, arte, divertimento e show business. O quarto eixo refere-se
ao público, que paulatinamente “se quer e se pensa ator, adota atitudes destinadas às mídias
86 “Mesmo em um momento em que se valoriza a liberdade e a criatividade dos pequenos entre os muros
escolares, não se abre mão do governo dos corpos e das mentes para dar a justa medida da liberdade desse
homem a ser transformado e formatado. Nesse jogo de liberdades medidas se produz algo diverso da liberdade,
que é do âmbito das desmedidas, se expande no mais ordinário dos atos o seu contrário, a busca paranoica por
segurança”. (AUGUSTO, 2015, p. 11).
181
que o filmam. Hoje, os indivíduos se pensam em termos de imagens, e eles próprios se põem
em cena nas redes sociais ou diante das câmeras”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 266).
Este eixo, bastante interessante para as discussões deste trabalho, mostra o exemplo dos
esportistas, que não são filmados apenas nos estádios, mas eles próprios “mudam sua maneira
de ser em função da câmera que os filma” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 266), ou o
exemplo dos reality shows. Ou seja, não há nada de passividade e manipulação na mídia, “os
indivíduos fabricam e difundem em massa imagens, pensam em função da imagem, se
expressam e dirigem um olhar reflexivo para o mundo das imagens, agem e se mostram em
função da imagem de si que querem ver projetada”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.
267). O quinto eixo envolve a lógica da realidade aumentada, ou seja, da ilusão e do engano
em representar algo que os homens não vivem em sua realidade, passamos a gerar
permanentemente vivências, tais como viagens, finais de semana insólitos, hotéis exclusivos,
entre outros exemplos citados pelos autores. Já o sexto eixo implica a tarefa de produzir uma
avalanche de imagens para provocar emoções e estímulos imediatos nos consumidores. Todos
os dias, é preciso “encontrar frases de efeito, construir acontecimentos capazes de mobilizar
as mídias e fazer imagem”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 268). O sétimo eixo seria a
estrelização generalizada, ou seja, das grandes estrelas míticas do cinema, passamos a
estrelizar ícones mais ou menos mundializados: políticos, esportistas, homens de negócio,
princesas, gente da moda. Por fim, o oitavo eixo envolve a espetacularização do divertimento,
do sonho, do prazer imediato dos consumidores, ou seja, a sociedade do hiperespetáculo “trata
todos os temas na forma de divertimento, que transforma todas as coisas – a cultura, a
informação, a política – em espetáculo de show business, visando a prazeres e emoções a
serem incessantemente renovados”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 270).
Alguns eixos expostos pelos autores interessam-me para concluir a argumentação em
torno da estetização da infância contemporânea. Ao espetacularizarmos a vida,
espetacularizamos a infância contemporânea: a criança protagonista torna-se uma
programadora autônoma de suas ações na escola, na lógica do aprender a aprender; ela age e
se mostra em função daquilo que sabe nas fotografias, nas filmagens, nos registros de si, que
quer ver projetados e publicizados na documentação pedagógica; a escola e os professores,
por sua vez, apresentam um cardápio self-service de opções para aprendizagem, com variados
recursos pedagógicos que captam o interesse infantil. Uma nova estética para a infância. Boa?
Ruim? Com Michel Foucault, aprendemos que as práticas não são boas ou ruins em si, mas
são perigosas.
182
CAPÍTULO 4
A PRODUÇÃO DO PROFESSOR DESIGNER
87 Mesmo recebendo indicações de alguns dos componentes da Banca Examinadora de Qualificação do Projeto
de Tese para investir na infância, deixando a questão da docência para ser investida em outros trabalhos teórico-
acadêmicos, foi possível analisar, em conjunto com a Professora Orientadora desta Tese, bem como com os
colegas do grupo de orientação, que a emergência das práticas de registro opera na constituição de outros modos
de ser docente nas escolas de Educação Infantil que, articulados com a estetização da infância, produzem o
design da docência contemporânea. A documentação pedagógica faz parte de uma maquinaria e aciona
diferentes sujeitos (crianças, professores, famílias), e por isso é que se torna necessária e produtiva tal análise.
183
processo para preparar e planejar suas aulas, devendo ser especialista em tecnologia
educacional, especialmente em situação educacional on-line e de educação a distância.
Retomando Lipovetsky e Serroy (2015), podemos perceber que o design está
articulado com a estetização da vida nas tramas do capitalismo artista. Nas palavras dos
próprios autores,
Lipovetsky e Serroy não teve como foco de análise a escola, os processos de escolarização ou
as práticas pedagógicas, mas as questões sociais mais amplas, especialmente aquelas voltadas
ao capitalismo e à economia. Entretanto, procuro fazer um exercício analítico trazendo tais
problematizações para tensionar a docência no âmbito da Educação Infantil no tempo
presente.
A partir deste exercício de pensamento, encontro frestas para olhar a docência na
lógica do design. Design como forma de oferecer situações às crianças visando à
aprendizagem; design como modo de dar visibilidade às aprendizagens infantis na escola;
design como propósito de atuação; enfim, design como modo de praticar a vida docente na
escola contemporânea. Passo a mostrar as recorrências que me permitem denominar o design
da docência enquanto efeito das práticas de registro da documentação pedagógica, na qual o
“gerenciamento de oportunidades” e a “inovação docente” são algumas das estratégias
mobilizadas no funcionamento dessa tecnologia, que produz o professor designer na
Educação Infantil.
Ser uma pessoa dotada, segundo alguns dicionários, significa ser alguém que recebeu
dote ou dotação; que possui alguns dotes; prendado; ornado. Um dote significa aquilo que a
mulher trazia ao matrimônio, bens próprios e exclusivos da mulher casada, ou os bens que a
freira levava ao convento; boas qualidades; méritos; dons naturais; merecimento. Uma
professora “bem dotada” – não estranhamos a vinculação da expressão com a figura da
mulher ou da freira numa discussão marcada pela Educação Infantil, em que a imagem
feminina e materna foi, historicamente, concebida como a ideal para educar as crianças
pequenas em instituições específicas, marcando a feminização do magistério88. A professora
bem dotada tem boas qualidades, méritos e dons quase naturais para trabalhar com crianças,
88 Vale recorrer à Tese de Doutorado em Educação da professora Dra. Elí Henn Fabris, intitulada Em cartaz: o
cinema brasileiro produzindo sentidos sobre a escola e o trabalho docente (2005), para acompanhar uma análise
da feminização do magistério na cultura brasileira.
186
desde que siga alguns preceitos, definidos como importantes no projeto educativo de grande
parte das escolas italianas que compõem o conjunto de obras aqui analisadas, especialmente
aquelas envolvendo o projeto de Reggio Emilia. Pode-se invocar Rinaldi (2002) para
corroborar a ideia destacada acima, dizendo que “uma imagem forte da criança também é
uma imagem forte do professor e da escola”. (RINALDI, 2002, p. 78).
Como campo discursivo, a feminização do magistério não se refere apenas a uma
maior quantidade de mulheres atuando como professoras, mas também ao longo processo pelo
qual a docência passou a ser uma profissão basicamente feminina. Mesmo quando realizada
por homens, a docência é uma profissão feminina. Os estudos de Fabris (2005), ao analisar a
feminização sob o olhar do cinema brasileiro, mostram como a representação de mulher
professora mantém ou desloca as representações hegemônicas do que se tem construído sobre
a mulher professora na cultura. A autora constata, nesse estudo, que há uma naturalização da
feminização do magistério quando a docência é desenvolvida com crianças. O discurso do
positivismo, aliado à religiosidade e ao discurso da Psicologia, que enfatizava o amor materno
na relação familiar, contribuiu “para que a mulher ocupasse o espaço na docência”. (FABRIS,
2005, p. 114).
A análise atenta aos referenciais italianos possibilitou-me encontrar vários outros
preceitos sobre o que é ser uma professora de crianças. Resolvi, assim, configurar alguns
desses preceitos a partir da leitura que fiz dos diferentes referenciais italianos, especialmente
quando estes tratavam das funções docentes em relação às práticas da documentação
pedagógica.
2. Prestar atenção constantemente à atividade das crianças, pois quando elas trabalham em um
projeto do seu interesse, “encontrarão naturalmente os problemas e questões que desejarão
investigar”. (EDWARDS, 1999, p. 164, grifos meus).
3. Estar presente sem ser uma intrusa, a fim de manter melhor a dinâmica cognitiva e social das
crianças. Deve envolver-se para reviver uma situação, “quando as crianças estão perdendo o
interesse, porque o mapa cognitivo que está sendo construído está além ou abaixo das capacidades
atuais delas”. (RINALDI, 1999, p. 117, grifos meus).
Continua.
187
4. Permanecer sempre uma observadora atenta e uma pesquisadora, levando as suas observações
e fitas transcritas aos colegas, para a reflexão em grupo. (RINALDI, 1999, p. 117, grifos meus).
5. Ter capacidade para entender as mensagens que as crianças transmitem, pois elas têm o direito
de serem ouvidas e têm coisas importantes para dizer. Assim, deve libertar-se das “práticas
anteriormente usadas em que apenas eles tomavam decisões sobre o que, onde e como as crianças
aprendiam”. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 27, grifos meus).
6. Ficar sentada e observar mais; não deve colocar muitas frustrações às crianças. Sua presença
é estruturante na oferta de espaços, ou seja, deve organizar as oportunidades de apoio às
experiências das crianças. Deve estar sempre presente, sendo uma observadora incansável e
coprotagonista (FORTUNATI, 2014). Evitar frustrações inúteis e intervir prestando ajuda quando
a criança dá mostras de não estar pronta para agir sozinha. (FORTUNATI, 2009, p. 69, grifos
meus).
7. Ser uma tutoring (apoiar a experiência da criança) e uma scaffolding (oferecer estrutura e apoio
como “esquemas de ação ou de interpretação para solicitar sua aprendizagem”) e utilizar a
estratégia de modeling (interpretar as intenções da criança e, a seguir, fazer uma demonstração de
como se pode realizar essas intenções). (FORTUNATI, 2009, p. 74-75, grifos meus).
8. Ser uma pessoa que “consegue conviver com a incerteza, assumindo que ela seja a
responsabilidade da escolha e condição indispensável para experimentar, discutir, refletir e mudar,
concentrando-se nos processos da experiência e não nos resultados, e mantendo no trabalho o
prazer de espanto e da maravilha”. (FORTUNATI, 2014, p. 23, grifos meus).
10. Ser uma designer para capturar a ação nos projetos e ajudar o novo leitor a discernir sobre as
ações implicadas no design (desenhos funcionam como design). (EDWARDS, GANDINI,
FORMAN, 2016, grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).
maquinaria escolar, operam como uma tecnologia capaz de movimentar esses novos arranjos
docentes.
A documentação pedagógica aparece relacionada com a possibilidade de o professor
desenvolver um bom trabalho, além de construir a memória da escola, como podemos
evidenciar no depoimento da educadora reggiana Laura Rubizzi, ao ser entrevistada por Lella
Gandini:
Em minha história pessoal, creio que a mudança ocorreu quando começamos a enfocar a evolução
do processo de aprendizagem das crianças, por meio da documentação. [...] Sempre que professores
se avaliam revisitando a documentação, eles aprendem algo mais do que haviam aprendido com as
crianças. Ademais, revisitar, com outros colegas, as análises da experiência e a troca de ideias pode
levar a uma avaliação valiosa. (GANDINI, 2012, p. 78).
[...] a documentação é para Malaguzzi, ao mesmo tempo, a estratégia ética para dar voz para as
crianças, para a infância e para devolver uma imagem pública para a cidade (HOYUELOS, 2006, p.
197). [...] Através da documentação se revela uma escola que quer argumentar seu trabalho além
das palavras, uma escola que pensa, que reflete, que aprende no caminhar; uma escola que sabe
colocar-se em discussão pública, capaz de escutar e de dialogar com democracia, construindo
processos de confiança recíproca e de legitimidade pública. (HOYUELOS, 2006, p. 208).
A documentação sistemática permite que cada professor se torne um produtor de pesquisas, isto é,
alguém que gera novas ideias sobre o currículo e sobre a aprendizagem, em vez de ser meramente
um ‘consumidor da certeza e da tradição’. (EDWARDS, 1999. p. 164, grifos meus).
[...] um processo cooperativo que ajuda os professores a escutar e observar as crianças com que
trabalham, possibilitando, assim, a construção de experiências significativas com elas. A
documentação, interpretada e reinterpretada junto com outros educadores e crianças, oferece a
opção de esboçar roteiros de ação que não são construídos arbitrariamente, mas que respeitam e
levam em consideração todas as pessoas envolvidas. O processo de documentar é capaz de ampliar
a compreensão dos conceitos e das teorias sobre as crianças com a convicção de que, tanto para as
crianças quanto os adultos, a documentação serve de apoio aos seus esforços para entender e para
se fazer entender. (GANDINI; GOLDHABER, 2002, p. 150).
Se não nos comunicássemos, se não documentássemos, seria como se as coisas que fazemos como
professores e as coisas que as crianças fazem não existissem, ou existiriam por um tempo breve e
apenas dentro do contexto cultural de sua escola. (GANDINI, 2012, p. 77, grifos meus).
Continua.
189
A tarefa do educador é criar um contexto em que a curiosidade, as teorias e a pesquisa das crianças
sejam legitimadas e ouvidas, um contexto em que as crianças se sintam confortáveis e confiantes,
motivadas e respeitadas em seus processos e percursos cognitivos e existenciais. Um contexto em
que o bem-estar seja a expressão dominante, um contexto de escuta em diversos níveis, cheio de
emoção e entusiasmo. O papel do educador (e da equipe de educadores) também inclui o constante
levantamento de hipóteses acerca dos desenvolvimentos possíveis para o projeto educativo, e isso
se vincula intimamente a outros aspectos que caracterizam o trabalho do educador: escuta,
observação, documentação einterpretação. (RINALDI, 2012, p. 228, grifos meus).
Por exemplo, quando os professores documentam o trabalho das crianças e revisam esses
documentos com elas, o resultado é uma mudança na imagem do seu papel como professor,
passando do ensino da matéria para o estudo e a aprendizagem com as crianças. (FORMAN;
FYFE, 2016, p. 250, grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).
Os preceitos listados acima, sugerindo modos de ser professor junto às crianças, bem
como o quadro apresentado, contemplando os benefícios de inserir a documentação
pedagógica na atuação docente, mostram a ênfase numa docência voltada para o
gerenciamento de oportunidades às crianças. O professor gerenciador de oportunidades não
exclui a sua ação e o seu protagonismo, uma vez que é ele quem constitui os espaços de
aprendizagem. Entretanto, é notório que há uma inclinação para a descentralização da ação
docente, passando de ações mais diretivas para a função de gerenciador de oportunidades, tal
como podemos observar nos materiais analisados nos quadros acima: provocar oportunidades
de descobertas para as crianças; prestar atenção constantemente à atividade das crianças; estar
presente sem ser um intruso; ter capacidade para entender as mensagens que as crianças
transmitem; ficar sentado e observar mais; não colocar frustrações às crianças; estruturar a
oferta de espaços, ou seja, organizar as oportunidades de apoio às experiências das crianças;
estar sempre presente, sendo um observador incansável e coprotagonista; ser tutoring (tutora),
scaffolding (andaime) e modeling (modelagem); conseguir conviver com a incerteza;
monitorar as crianças pela observação e documentação; enfim, ser um professor designer.
Há um redirecionamento nas funções docentes, articuladas com a produção da criança
protagonista. As práticas da documentação, entendidas como um trunfo para qualificação da
profissão docente, são capazes de “reinterpretar o papel do adulto e de restituí-lo a uma
dimensão mais indireta de protagonismo”. (FORTUNATI, 2009, p. 61, grifos meus).
Derivado do latim gerens (aquele que administra) e do verbo gerere (administrar,
cuidar de uma atividade), surge o verbo gerir, do qual deriva o verbo gerenciar. Gerenciar
190
O professor deve concentrar-se “mais na organização das oportunidades que na ânsia de perseguir
resultados e mantendo, em seu próprio trabalho, o prazer com o espanto e com a maravilha”.
(FORTUNATI, 2009, p. 43, grifos meus).
[...] menos que executor de esquemas operacionais predeterminados, o adulto tem que se destacar
por suas funções de mediação das relações construtivas entre os elementos da situação em que se
acha mergulhado junto com as crianças. (FORTUNATI, 2009, p. 80, grifos meus).
Continua.
191
As crianças não são obrigadas a fazer alguma coisa, são convidadas a fazer, se recusarem uma
atividade, outras lhes serão oferecidas. Porém, os professores têm o cuidado para que as crianças
não se fixem num único tipo de atividade para que não desenvolvam monomanias. (RABITTI,
1999, p. 154, grifos meus).
Isso significa reconhecer que uma ampla série de oportunidades e experiências devem estar
disponíveis para apoiar a participação das crianças [...]. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 23,
grifos meus).
A oferta de objetos e materiais disponíveis, muitos dos quais podem ser utilizados com autonomia,
com a seleção intencional de uma vasta gama de escolha de materiais [...]. (FORTUNATI, 2014,
p. 27, grifos meus).
Sabemos, porém, que não podemos ter muitas certezas, porque as crianças são imprevisíveis e nos
levam a desorientações com relação às quais é necessário ter muita flexibilidade e otimismo nas
suas e nas nossas capacidades. (VECCHI, 2014, p. 183, grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).
pedagógica, formada pela interação entre pessoas sobre conhecimentos específicos, a partir do
ensino e da aprendizagem.
Vejo que a docência na Educação Infantil, ao conceder centralidade às crianças no
processo pedagógico e deixá-las livres para escolher ações, tarefas, atividades, de acordo com
seus próprios interesses e dentre várias oportunidades ofertadas pelo professor, se reconfigura
nas funções de gerenciar tais oportunidades, mais do que mediar situações entre professor-
estudantes-conteúdos escolares. O professor irá criar condições no espaço físico para que as
crianças possam livremente fazer suas escolhas. Nessa seara é que o gerenciamento de
oportunidades na atividade docente é chamado a mostrar-se e a operar.
Estudos já desenvolvidos sobre os deslocamentos na docência contemporânea
oferecem possibilidades para mapear deslocamentos nos modos de ser professor no nosso
tempo presente. Silva (2015), ao estudar as políticas curriculares para o Ensino Médio no
Brasil no período de 1996 a 2012, já destaca a fabricação de uma docência inovadora, atrelada
à inovação, à competitividade e ao desenvolvimento econômico, em que os alunos são
incitados a customizar seu próprio currículo, na busca pela formação de jovens
empreendedores e protagonistas, fragilizando-se o ensino dos conhecimentos escolares em sua
dimensão objetiva. Grimberg (2015) assinala que a formação docente convida os professores
a serem coaches da aprendizagem de seus alunos, e as expressões gestão por resultados,
counselling, gestão da aula e da aprendizagem estão difundidas em jornais, folhetos, revistas
e programas televisivos. A autora aponta que os professores são convidados a trabalhar a
autoestima dos alunos, suas emoções, suas capacidades afetivas, sua interioridade. Não se
trata mais de esperar que os outros façam ou que o Estado se ocupe, pois “agora somos
chamados a produzir-nos, a ser protagonistas, a fazer o próprio destino”. (GRIMBERG, 2015,
p. 27, tradução minha). Em tempos de gerenciamento, destaca a autora, não há posições a
ocupar, nem certezas, mas posições sempre em dança, nas quais os próprios indivíduos são
responsabilizados pelos seus êxitos e fracassos. Ela relaciona a formação docente ao
procedimentalismo, no qual o professor é um distribuidor de tarefas a serem cumpridas pelos
alunos.
Também Garcia (2015), ao apontar estudos sobre as reformas curriculares dos cursos
de licenciaturas e a formação docente inicial no Brasil, desde 1990, destaca que há uma
racionalidade prática e instrumental na construção de uma docência flexível e atenta à
diversidade dos alunos, reduzindo o professor a “um especialista na gestão do processo de
ensino e do seu desenvolvimento profissional, apontando, paradoxalmente, a
desintelectualização dos currículos e para a desprofissionalização desses professores”. (p. 57).
193
89 Considero válido relatar rapidamente uma experiência que tive ao realizar um dos Estágios Supervisionados
na Educação Infantil do Curso de Pedagogia, num grupo de crianças entre um e três anos de idade, numa escola
de Educação de Infância na cidade de Leiria, em Portugal, por ocasião de intercâmbio no período da graduação.
Lá não eram permitidos os termos sala de aula e aluno, pois me explicaram que eram crianças e que, uma vez
não havendo alunos, os professores não davam aulas, nem ensinavam. Quando eu falava ou escrevia algo e
referia os termos alunos, professor, sala de aula, sempre havia um profissional da escola que chamava a minha
atenção.
90 Sinônimos para o termo educador também podem ser visualizados: ser tutoring, ou seja, aquele adulto que
apoia a experiência da criança; ser um scaffolding, aquele adulto que oferece estrutura e apoio como “esquemas
de ação ou de interpretação para solicitar sua aprendizagem” (FORTUNATI, 2009, p. 74); ser um modeling, isto
é, aquele adulto capaz de usar estratégias para interpretar as intenções da criança e, a seguir, fazer uma
demonstração de como se podem realizar essas intenções. (FORTUNATI, 2009, p. 74-75).
194
seja, menos que dirigir o coletivo de crianças, o adulto deve gerenciar as relações entre cada
uma das crianças e os elementos da situação. Os referenciais italianos sugerem que o adulto
seja um apoiador, que dê condições para as crianças fazerem suas escolhas: essa é uma das
novas configurações da docência na escola infantil do nosso tempo. Vejamos o quadro
abaixo:
Tratamos de mostrar que uma criança ativa e construtiva solicita que o adulto concentre sua
atenção mais sobre a organização da oportunidade que sobre a pré-definição dos objetivos: trata-
se de uma articulação crucial, que desloca completamente os termos do planejamento educacional.
Já não se trata de apenas organizar algumas oportunidades úteis para se consumar certos objetivos
identificados anteriormente, mas de pensar nas oportunidades organizadas e continuamente
presentes no contexto como abrangedor de possibilidades a alcançar por meio de múltiplas e
variadas experiências, sempre mantendo um desembaraço positivo – uma vantagem – entre o que
se pode fazer e o que efetivamente se faz. [...] serão oferecidos contextos continuamente
disponíveis para efetuar uma ampla variedade de experiências como oportunidade aberta às
crianças no curso do tempo. (FORTUNATI, 2009, p. 39, grifos meus).
Seu principal papel consiste em organizar os contextos – e o ambiente físico é visto como
elemento crucial na experiência das crianças, não como apenas uma tela de fundo – e as
oportunidades, sem conduzir as crianças a resultados predeterminados. O educador estabelece as
relações entre as pessoas, as ideias e as experiências. Desse modo, se ‘mantém longe da falácia
das certezas’ e, em compensação, tem que assumir ‘a responsabilidade de escolher, de
experimentar, de discutir, de refletir e de mudar, concentrando-se mais na organização das
oportunidades que nos resultados, mantendo no trabalho o prazer do espanto e da surpresa. Tem
que ser capaz de ‘se livrar de uma expectativa que logo se revela diferente do resultado a que as
crianças vão se aproximando enquanto constroem sua experiência’. É um educador que tem que
fazer escolhas contextualizadas, sem seguir os procedimentos pré-programados sobre resultados
específicos, e que deve ser capaz de conviver com o imprevisível e com o acaso. (MOSS, 2009, p.
21-22, grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).
transitar com maior liberdade. Muito mais do que produzir corpos dóceis, disciplinados e
educados, é preciso produzir corpos flexíveis, plásticos e empreendedores de si mesmos.
Enquanto a disciplina distribui os sujeitos no espaço, a cada um conferindo um lugar
específico e fixo e posicionando-o de forma hierárquica, as tecnologias de seguridade
conferem maior controle do todo e de cada um, fazendo com que cada sujeito regule a si
mesmo e que mecanismos reguladores sejam acionados para agir preventivamente no controle
de riscos.
Nesse sentido, a importância concedida à organização dos espaços escolares na
materialidade de análise está articulada à necessidade de uma transformação nas funções
docentes, tal como podemos perceber nos excertos destacados no quadro abaixo:
O professor é “um dos recursos que o contexto pode colocar à disposição, mais do que ser o
responsável pela sua adequação, e as modalidades comunicativas que se espera têm o objetivo de
oferecer espaço para o protagonismo dos meninos e das meninas”. (FORTUNATI, 2014, p. 30,
grifos meus).
[...] pensar o espaço da experiência das crianças ajuda o adulto a amadurecer as expectativas de
protagonismo nas ações que as crianças expressam em seu interior, utilizando as oportunidades
presentes, e também pode ajudar o adulto a suavizar a intromissão sobre a criança por parte das
instâncias educacional quando a ansiedade dos resultados prevalece sobre a sensibilidade da escuta.
(FORTUNATI, 2009, p. 61, grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).
198
fundamentos, sendo considerado um grande pedagogo para a Educação Infantil. Tal como
destaca Noguera-Ramírez (2011), a manipulação do meio em Emílio é uma forma de incitar a
ação das crianças e das coisas sobre elas – “a arte da educação liberal é a arte de acondicionar
o meio para conduzir a ação das crianças”. (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 163). As
situações criadas no contexto servem como meio educativo, assim, “manipular o meio,
acondicionar o meio, preparar o ambiente em função de suas possibilidades educativas”
(NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 165) são tarefas dos adultos que, não por uma ação
diretiva, devem intervir através do meio, pois o que melhor ensina é a própria natureza e as
coisas. (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011). A educação liberal, tal como são compreendidos os
postulados de Rousseau, pretende atuar na autorregulação da conduta de cada indivíduo,
operando mediante sua liberdade de ação num meio que estabelece limites e possibilidades.
(NOGUERA-RAMÍREZ, 2011). Vimos no capítulo anterior que a regulação se dá na
interioridade das crianças e que o governamento se dá pela autorregulação da criança
protagonista.
Também poderíamos novamente incluir Dewey neste debate. Ao compreender que o
indivíduo se torna quem ele é por meio da participação no meio social, as interações com o
ambiente são fundamentais. A educação escolar é necessária, pois é ela que oferecerá
oportunidades variadas, possibilitando direção interna por meio da identificação dos interesses
dos alunos. Pela plasticidade, as crianças reterão e extrairão experiências para aprendizagens
futuras. Nesse contexto, cabe ao adulto utilizar suas aptidões para “transformar o ambiente em
que vive, ocasionando com isso o aparecimento de novos estímulos que reorientam suas
energias e as mantêm em desenvolvimento”. (DEWEY, 1959, p. 53).
Dewey apresenta uma crítica a Rousseau ao mostrar seus equívocos e contrapor-se à
ideia de desenvolvimento independente, espontâneo, dos órgãos e faculdades inatas – “a
concepção de um espontâneo desenvolvimento é puro mito”. (DEWEY, 1959, p. 124). É o
meio social que orienta o desenvolvimento, ou seja, podemos até ter aptidões inatas, mas elas
são energias iniciais e limitadoras da educação. Assim, “aprender não consiste em uma
espontânea expansão das aptidões não exercidas”. (DEWEY, 1959, p. 124). O educador
precisa ter objetivos educacionais, mas não os seus próprios objetivos, uma vez que eles são
“indefinidamente variados, diferindo de acordo com as diferentes crianças, mudando à
proporção que as crianças crescem e à proporção que cresce a experiência da pessoa que
ensina”. (DEWEY, 1959, p. 116). Os objetivos educacionais devem estar alicerçados no
indivíduo que vai ser educado, pois, para Dewey, é inútil tentar estabelecer os objetivos gerais
e finais da educação. Devem-se observar as condições concretas, não impor exteriormente
200
nada às crianças, sugerir atividades mais livres e “deixar seu espírito comunicar-se de perto
com o espírito do aluno e com as matérias do estudo”. (DEWEY, 1959, p. 118).
Como podemos ver, Dewey, ao criticar Rousseau, acrescenta ao debate educacional do
século XX a importância de o adulto organizar espaços adequados nas escolas, com recursos
que possam estimular e despertar o interesse das crianças. Ele continua acreditando, junto
com Rousseau, que esse adulto não deve direcionar as atividades, mas acrescenta a
necessidade de intervir no meio, que não é naturalmente organizado e adequado para a criança
aprender. Dessa forma, penso que os fundamentos abordados nos referenciais italianos em
relação à organização do espaço físico não são tão novos quanto nos parece, não são
teorizações tão recentes quanto aparentemente as compreendemos. Entretanto, o que me
parece novo aqui é o design dos mobiliários, das salas de aula, dos materiais pedagógicos dos
ateliês de arte e demais espaços das escolas infantis, mas também o design de uma docência
que tem no gerenciamento de oportunidades a possibilidade de desenvolver pessoas 91. Isso é
novo e sedutor. E mais: ao gerenciar as oportunidades, a mediação dá-se entre os elementos
do espaço, em que as oportunidades são gerenciadas pelo professor.
Recordo novamente as visitas que fiz a algumas escolas de Reggio Emilia em 2008,
quando me deslumbrei com a estética das salas e materiais, com o design dos mobiliários
(suas cores, funcionalidades, adequações ao universo infantil). Também os aromas, as
sensações, as luzes, as sombras, os tamanhos, criam um universo infantil bastante particular e
atraente. Estético. Lembro-me de ver crianças e adultos, em geral em pequenos grupos,
transitando calmamente pelos espaços, onde eram contempladas muitas transparências,
utilizando-se basicamente vidros para delimitar os diferentes lugares.
Ao organizar o meio educacional, o professor minimiza suas ações perante as crianças,
que usufruem livremente desse meio para aprender a aprender. O interesse, ao passar do
mundo externo para a interioridade da criança, fortalece a necessidade de organizar o espaço
como uma condição para potencializar-se, passando a ser criado “na relação” com os outros e
com os objetos. Talvez por isso que vemos, em alguns excertos destacados dos referenciais
italianos, que o interesse das crianças é natural, é autônomo, é independente do adulto. O
adulto não deve conduzir diretamente as crianças, mas deve conduzi-las pela organização dos
contextos escolares, de modo a governar à distância. Não se trata mais de mobilizar
tecnologias disciplinares, prescrevendo o que cada sujeito deve fazer, mas mobilizar
91 Larrosa (1994) destaca que a pedagogia oculta a sua própria operação constitutiva, que é produzir pessoas,
ocultando também “a crença arraigada de que as práticas educativas são meras ‘mediadoras’, em que se dispõem
os ‘recursos’ para o ‘desenvolvimento dos indivíduos’”. (LARROSA, 1994, p. 38).
201
92 Michel Foucault apresenta os deslocamentos da sociedade disciplinar para uma sociedade de controle e
aponta que “[...] a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem proibir nem prescrever, mas dando-se
evidentemente alguns instrumentos de proibição e de prescrição, a segurança tem por função responder a uma
realidade de maneira que essa resposta anule a realidade a que ela responde – anule, ou limite, ou freie, ou
regule. Essa regulação no elemento da realidade é que é, creio eu, fundamental nos dispositivos de segurança”.
(FOUCAULT, 2008a, p. 61).
202
Vem se alimentando sozinho e geralmente solicita repetição. Tiago aceita bem os alimentos e
come de tudo. Vem mostrando independência no momento de derramar a água da garrafa
(Professora C).
Seria a alimentação uma temática de preocupação escolar? Por que registrar aspectos
voltados à alimentação da criança? Creio que, com o alargamento das funções da escola93, a
pluralização das pedagogias e a ampliação da jornada escolar, a alimentação passa a ser uma
preocupação das instituições escolares, mas não só isso. Alimentação saudável também é um
trunfo para alcançar a qualidade de vida do indivíduo numa sociedade de seguridade. O risco
precisa ser calculável e programável, de modo a intervir na vida dos indivíduos para que a
norma possa ser executada (a norma não é fixa, nem universal; ela é cambiante), e seus
desvios, programados. Na perspectiva da sociedade de seguridade, cada um é convidado a
agir sobre si mesmo, e os cuidados com a saúde, a alimentação saudável e o cuidado consigo
mesmo requerem investimento permanente de todos e de cada um.
A escola passa a ser uma instituição que, em parceria com outras esferas, incorpora
problemas que antes eram governados de outras formas. “A saúde configura-se como um
exemplar dessa transformação” (ROSE, 2011, p. 226), em que não é mais necessária uma
burocracia estatal para agir na construção de corpos saudáveis, casas higiênicas ou hábitos
saudáveis de alimentação, pois “os indivíduos vão querer ser saudáveis, especialistas os
instruirão sobre como o serem e empreendedores irão explorar e ampliar esse mercado da
saúde”. (ROSE, 2011, p. 226). A escola do nosso tempo ocupa-se, portanto, em fazer
intervenções nas vidas dos indivíduos, atingindo também o interior de cada família e de cada
indivíduo.
Silva e Fabris (2016), ao estudarem as políticas curriculares do Ensino Médio no
Brasil, destacam que a alimentação saudável e a obesidade infantil foram temas escolhidos e
estudados por estudantes desse nível de ensino, além de outras temáticas centradas nas
preferências dos alunos. Os autores desenvolvem uma analítica da escola contemporânea que
93 Sobre essa temática, recomendo a leitura da Tese de Doutorado de Rejane Klein (2010), especialmente no
Capítulo 5, onde desenvolve uma análise sobre a ampliação das funções da escola.
203
protege, que estaria mais interessada em promovera seguridade; nesse sentido, “o currículo
passa a ser adequado às múltiplas funções que essa escola assume para si, desde a prevenção
às doenças, seleção de uma alimentação equilibrada até a prevenção às drogas, violência e
saúde financeira”. (SILVA; FABRIS, 2016, p. 438).
Com essa análise, percebo que as recorrências de uma preocupação e intervenção na
alimentação das crianças, evidenciadas nos registros docentes, se relacionam com projetos de
uma vida saudável desde a infância e atingem também a esfera familiar. Isso faz parte de uma
sociedade de seguridade vinculada a uma razão de governo que visa a otimizar a vida da
população, agindo sobre a vida de cada um e de todos para torná-la mais produtiva e saudável.
O segundo aspecto que chama atenção, exposto nos exemplares de documentação
pedagógica cedidos pelos professores de escolas do interior do Rio Grande do Sul, é a
interlocução com a família, ou seja, a escola convoca a família para participar dos
movimentos escolares, tanto na forma escrita – “Esta também pode ser uma maneira de a
família trabalhar com Magali em casa, pois ela precisa se sentir protegida e aprender a lidar
com estes medos” (Documentação Pedagógica Professora A – Criança de 1 a 2 anos), quanto
na forma de caixas de textos, denominadas “Espaço para registro da família”. São espaços
“vazios” em que os pais podem escrever algum recado para os professores ou para a própria
criança. Estaria aqui expressa uma vontade de pedagogização da própria família? A família é
mais uma das esferas sociais a serem incitadas como educadoras na sociedade de
aprendizagem; é também chamada para potencializar a avaliação da criança, num contexto de
Estado avaliador. Dito de outro modo, o Estado, ao conduzir as condutas dos indivíduos para
atingir resultados, calcular riscos, produzir e monitorar estatísticas sobre a vida da população,
encontra na família um objeto de intervenção. Como aponta Narodowski (2001; 2006), a
família passa a ser pedagogizada, e consolida-se o dispositivo da aliança “família-escola”.
204
Fonte: Elaborado pela autora (2016) a partir dos exemplares produzidos pelos professores envolvidos
na pesquisa.
94 As seguintes pesquisas tomam a família e a escola como foco de seus estudos, problematizando suas relações:
Fonseca (2004), Roudinesco (2004), Nogueira (2006), Verdi (2006), Klaus (2011); Dal'Igna (2011), Junges
(2012) e Schwertner, Horn, Giongo (2013), entre outras.
205
profissional desenvolver uma escuta atenta e um olhar sensível, será capaz de oferecer
materiais, espaços e oportunidades de acordo com os interesses das crianças. Crianças
protagonistas demandam organização de espaços atrativos, esteticamente planejados, com
diferenciais na sua forma de apresentação, onde a sensação de liberdade seja garantida, quase
como um self-service de interesses infantis. Aprender a aprender é fazer acreditar que há
liberdade para escolher aquilo que pensamos desejar querer saber.
Parece-me que o aluno se vê cada vez mais livre, mas não pode permanecer na escola
sem fazer nada, pois ele mesmo sabe que precisa atuar sobre suas próprias habilidades e
competências. O professor, ao gerenciar o processo educativo, expande os controles pela
ampliação dos mecanismos de avaliação contínua e individualizada95. Vincula-se a esse
cenário a necessidade da avaliação constante, visto que, ao garantir liberdade, é preciso fazer
movimentar certo modo bastante particular de avaliar as crianças, o qual também prima pela
liberdade. É necessário fazer proliferar estratégias de avaliação para uma criança-aluno-
infantil que é livre na escola, que é capaz de fazer suas próprias escolhas, a fim de garantir a
aprendizagem infantil e dar-lhe visibilidade. Talvez isso justifique a “exacerbação da
avaliação” (VEIGA-NETO, 2013) nas instituições escolares, indicando algumas hipóteses
para a celebração e festejo da documentação pedagógica como uma forma de registro muito
potente entre a comunidade docente e também de seus ajustes à sociedade contemporânea, em
que vivemos outros tempos, não mais somente analógicos, mas intensamente digitais. Disso
tudo decorre a ênfase no professor designer.
95 Compactuo com as conclusões de Augusto (2015), ao pesquisar sobre o problema das drogas e da violência
entre jovens numa perspectiva foucaultiana, assinalando algumas mudanças na forma de ser docente hoje. O
autor destaca que “a professora austera cede lugar aos gentis professores que operam num regime de
amabilidades em que o exercício do castigo não se faz necessário no momento decisivo de sua aplicação, mas
num processo contínuo de avaliação que visa promover a adesão e a cumplicidade no exercício e produção das
regras [...]. A obtenção da obediência escolar se torna, assim, mais eficiente ao envolver os alunos com a
flexibilização da autoridade, ao mesmo tempo em que se expande a centralidade dos controles”. (AUGUSTO,
2015, p. 20).
207
A palavra inovação vem tomando fôlego nos debates educacionais desde a Educação
Infantil até a educação universitária, especialmente na última virada de século 96. No recorte
que faço neste trabalho, a inovação docente está atrelada a dois aspectos centrais: incentivo na
utilização de recursos tecnológicos e valorização da autoavaliação docente, ambos articulados
especialmente na concretização da documentação pedagógica. Com isso, procuro nesta seção
final mostrar como a estratégia da inovação docente opera nas práticas de registro da
documentação pedagógica, deslocando a ênfase para a produção de um professor designer na
Educação Infantil. Para tanto, apresento inicialmente os incentivos na utilização de recursos
tecnológicos ao fazer-se a documentação pedagógica. Ao final da seção, teço considerações
sobre a valorização da autoavaliação do professor, a partir da documentação pedagógica,
numa investida de inovar consequentemente e permanentemente sua atuação pedagógica.
Antes de apresentar os recursos tecnológicos sugeridos nos referenciais italianos para
as práticas de registro, há um assunto importante para destacar que tem articulação com o
ingresso desses novos recursos na inovação da docência: o ateliê de arte e a figura do
profissional denominado de atelierista na maioria dos projetos educativos italianos voltados à
primeira infância, especialmente nas escolas de Reggio Emilia, e suas implicações na atuação
dos demais docentes da escola.
Assim, abro um parêntese aqui. Por apresentar um olhar vinculado à arte, Malaguzzi
introduziu nas escolas um espaço central para o ateliê e/ou miniateliês, bem como para a
figura do atelierista (profissional com experiência em linguagens visuais). O atelierista, ao
trabalhar em conjunto com os professores, qualifica a prática da documentação pedagógica,
uma vez que o ateliê “foi introduzido para modificar a pedagogia, por meio de um novo
modo de enxergar e trabalhar”. (GANDINI, 2012, p.89)97. Segundo Malaguzzi (1999), o
ateliê auxilia na documentação e obriga os adultos a refinarem os “métodos de observação e
registro”. (MALAGUZZI, 1999, p. 85). “O ateliê e as salas de aula juntos tornam-se
laboratórios para a observação e a documentação”. (CEPPI; ZINI, 2013, p. 47).
Em entrevista com Lella Gandini, a professora reggiana Lucia Colla relata que “um
método único de observação para todos não seria adequado”; assim, os atelieristas ajudam
96 Para discussões mais detalhadas, sugiro a leitura das seguintes produções: Silva (2011), Fabris e Dal’igna
(2013), Dal’igna e Fabris (2013), Silva; Carvalho; Silva (2016).
97 Gandini (2012), no livro intitulado O papel do ateliê na educação infantil: a inspiração de Reggio Emilia,
apresenta capítulos escritos basicamente por pesquisadores americanos que estudaram a proposta de ateliês em
Reggio Emilia. Há fundamentação sobre a organização dos ambientes e materiais no ateliê, bem como sobre
alguns conceitos importantes voltados à Arte, sobre os quais não vou me deter neste trabalho. Meu interesse aqui
é perceber como o ateliê emerge no projeto educativo, a ponto de garantir, manter e qualificar a prática da
documentação pedagógica entre os professores, inserindo em suas ações o indispensável uso de variados
recursos tecnológicos.
208
Creio que o verdadeiro ateliê seja um estado de espírito, que entra lentamente em seu
entendimento como professora, em seu modo de organizar os espaços, de observar as crianças, de
fazer anotações cuidadosamente sobre os processos de aprendizagem, de trabalhar com a
documentação e de comunicar o que as crianças e os professores estão fazendo. (GANDINI, 2012,
p. 76).
podemos apreciar nestes dois excertos: “há oficinas dedicadas à aquisição de habilidades
técnicas, por exemplo, o desenho e preparação de cartazes para a documentação do trabalho
em projetos e informações sobre a escola para pais e visitantes”. (FILIPPINI, 1999, p. 125), e
“a outra função importante do atelier era a de oferecer uma oficina para documentação. A
documentação era vista então como uma possibilidade democrática de informar o público
sobre os conteúdos da escola”. (VECCHI, 1999, p. 131). A validade dessas formações é
confirmada nestes depoimentos: “com o ateliê, aprendi técnicas de comunicação que não
havia aprendido em minha formação como professora” (GANDINI, 2012, p. 75-76), e
“podemos usar a tecnologia digital para comunicar o crescimento das crianças”.
(GANDINI, 2012, p. 159). Fecho aqui o parêntese sobre o espaço do ateliê.
Com o breve esboço sobre o ingresso do ateliê em grande parte das escolas italianas
voltadas à primeira infância, saliento aqui o excessivo destaque e a valorização de outros
recursos tecnológicos que, além da mera escrita docente, contribuem para a prática da
documentação pedagógica. Fica visível um deslocamento nas formas de registro docente,
agora mais sistemáticas, instantâneas, transparentes e de fluxo contínuo, que não apenas
mostrem mensurações padronizadas e dados escritos, mas utilizem imagens e narrativas em
movimento. Será necessária, então, a construção de outras formas de registro e avaliação, não
centradas no diagnóstico e na elaboração de pareceres e relatórios de avaliação trimestrais ou
semestrais; será preciso apresentar outra estética na produção do material, utilizando-se
diversos recursos, como fotos e filmagens, num tempo que prima pela rapidez, permanência e
aceleração do registro. Diante dessa argumentação, procuro, nos excertos abaixo, mostrar
como isso aparece nos referenciais italianos analisados neste trabalho. O quadro apresenta um
agrupamento de citações que tratam sobre tal temática:
Continua.
210
Tal material pode ser produzido de muitas maneiras e assumir muitas formas – por exemplo,
observações manuscritas do que é dito e feito, registros em áudio e vídeo, fotografias, gráficos de
computador, o próprio trabalho das crianças, incluindo, por exemplo, arte realizada no atelier
com o atelierista. Este material torna o trabalho pedagógico concreto e visível (ou audível) e, como
tal, é um ingrediente importante para o processo da documentação pedagógica. (DALHBERG;
MOSS; PENCE, 2003, p. 194, grifos meus).
[...] começamos a documentar, a registrar sistematicamente, com uma série de recursos dos meios
de comunicação, incluindo fotografias, vídeos e gravações em áudio, o que as crianças nos
contavam. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 22, grifos meus).
Anotações apresentadas em diferentes tipos de tabelas observacionais, assim como câmeras
digitais, computadores e scanners, modificaram nossa abordagem de documentação e pesquisa. Os
instrumentos e as estratégias para documentar estão em constante evolução, mudando em relação
aos diferentes contextos em que trabalhamos com as crianças. (Entrevista com Laura Rubizzi.
GANDINI, 2012, p. 77, grifos meus).
O percurso educativo torna-se concretamente visível por meio de uma documentação atenta aos
dados relativos às atividades, para os quais se pode valer tanto de instrumentos de tipo verbal,
gráfico e documentativo quanto de tecnologias audiovisuais mais difundidas nas escolas.
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(RINALDI, 2014, p. 80, grifos meus).
(2016).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial
italiano (2016).
cumpridas nas escolas para documentar o trabalho junto às crianças). Adiante, outros excertos
sugerem a importância do uso de tecnologias para rapidez e sistematização na comunicação:
Sobre o que documentar – fotograficamente – Malaguzzi nos dá algumas pistas: o grande valor da
experiência, de atuar, de pensar, da investigação e de aprender das crianças. Como se apropriam
do novo, do cognitivo, como organizam a sua curiosidade, como constroem sentimentos, seus
pontos de vista, como colocam à prova as suas energias, sua vitalidade, como satisfazem os seus
desejos, necessidades, como estabelecem relações e intercâmbios, como chegam a interpretar o
mundo dos coetâneos, dos adultos e das coisas. A documentação fotográfica pode revelar todas
essas questões através dos rostos, dos olhos, da boca, dos gestos, das posturas, dos pequenos sinais
que são as espirais dos sentimentos, das tensões, dos esforços, do prazer, dos desejos, das
expectativas. (HOYUELOS, 2006, p. 200).
A tecnologia tem uma presença significativa no ateliê: um computador, com software gráfico e de
criação de páginas, um scanner e uma impressora se tornaram ferramentas essenciais para o
nosso estilo de trabalho. Os professores usam a tecnologia diariamente para processar vários
documentos, como as conversas das crianças, cartas aos pais, fotografias tiradas com câmeras
digitais e documentação que será colocada na parede da sala de aula. O computador do ateliê
funciona como um servidor e pode ser acessado de outros computadores nas salas de aula. Isso
aumentou a eficiência do nosso trabalho, pois os professores têm tempo durante o dia para
trabalhar na documentação e podem acessar todos os seus arquivos de qualquer computador. O
ateliê é um espaço que pode ajudar na produção da documentação, assim como nos levar para
novas formas, como vídeo, tipos variados de livros e outros meios digitais. (SCHWALL, 2012, p.
42, grifos meus).
Para tornar o aprendizado das crianças visível, marcamos horários regulares para equipes de
professores e grupos de equipes de professores trabalharem juntos no planejamento, refletirem
sobre a experiência e produzirem a documentação. [...] Para promover parcerias com os pais,
estabelecemos meios para a comunicação com os pais, incluindo jornais diários na porta de cada
sala de aula e um boletim semanal a ser enviado para casa (hoje, são postados regularmente em
nossa página na internet). Os jornais e o boletim melhoraram substancialmente com o passar dos
anos, à medida que nos tornamos mais sofisticados com nossas câmeras digitais e programas de
artes gráficas para Macintosh. (CADWELL, 2012, p. 207-208. Grifos meus).
São utilizadas várias formas de linguagem para dar visibilidade à investigação: transcrições de
conversas das crianças, slides, fotografias e painéis na parede da seção e em toda a escola,
testemunhando o trabalho realizado pelas crianças nas várias fases do projeto, além de
apresentações formais e informais voltadas a grupos de professores e pais. (CHILDREN; ZERO;
UNIVERSITY, 2014, p. 157. Grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial
italiano (2016).
212
Durante o percurso do projeto, há intuições das crianças que nos escapam no encontro ‘direto’ do
trabalho, e as reencontramos somente na leitura e nas interpretações feitas posteriormente. Não
podemos fugir de uma autoavaliação sobre o quanto a nossa falta de escuta dos pensamentos
expressos pelas crianças pode, às vezes, desorientá-las, distanciando-as do problema. (RUBIZZI,
2014, p. 115).
Além de evitar que coisas escapem, os recursos tecnológicos são aliados dos registros
docentes, primando pela instantaneidade e rapidez na comunicação. Embora eu perceba uma
extrema valorização desses recursos, é importante dizer que a escrita docente permanece e
acompanha a documentação pedagógica (especialmente por considerar que nem sempre temos
presentes câmeras digitais, por exemplo).
Nem sempre a máquina fotográfica ou a filmadora estão presentes; é necessário, por isso, registrar,
além das falas dos protagonistas, algumas notas de atmosfera, desenhos e esboços rápidos (por
exemplo, a direção do olhar de uma criança, os estados de ânimo etc.): todos os elementos que
ajudam a contextualizar as intervenções verbais e as ações das crianças. (RUBIZZI, 2014, p. 106).
Tudo isso pretende marcar a confirmação de um ideal para a qualificação das escolas
(que muitos estudiosos, especialmente economistas e administradores, acreditam ser a
98 “As fotografias devem ser tratadas como uma porta de entrada para um mundo de eventos possíveis, e não
como uma janela que enxerga apenas um tempo e lugar. (FORMAN, 1995). O vídeo deve ser tratado como uma
oportunidade para as crianças abstraírem teorias, suposições, crenças ou expectativas que tornem uma estratégia
razoável para elas usando aquela estratégia específica, possivelmente criando dissonância o suficiente para
motivar uma reconstrução dessas teorias, suposições, crenças e expectativas”. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 258).
213
salvação da crise educacional): o uso dos recursos tecnológicos e digitais. Destaco o quanto o
imperativo da inovação na docência contemporânea, configurado na inovação tecnológica,
entra no meio educacional com a garantia de rapidez, flexibilização, produção,
espetacularização da vida, publicização de resultados, definindo as competências do que é ser
um bom professor hoje em dia. A escola precisa ser vista como dinamizadora de inovações,
especialmente as tecnológicas. Assim, as práticas de registro deslocam-se do exame, das
fichas, dos pareceres descritivos e relatórios trimestrais ou semestrais, para a documentação
pedagógica, detalhando a biografia da criança em sua minúcia, indo além dos conteúdos e
considerando também seu comportamento, seus gostos, suas afinidades, suas amizades, suas
vontades.
A discussão bastante significativa e cara para a área das ciências sociais é sobre a
publicidade e os usos da tecnologia e da informação; sem entrar nessa seara, importa dizer
que Lipovetsky e Serroy (2015, p. 300) expressam que a publicidade contemporânea “adotou
um funcionamento do tipo propriamente estético”, ou seja, além de o visual ser objeto de
trabalho estético, o que vale é dirigir a publicidade às emoções e afetos, importa criar simpatia
e atenção do ser humano. Conforme destacam os autores, vivemos hoje na busca incessante
de divertimento e emoções estéticas, e o que interessa é interpelar o público criando “uma
proximidade emocional ou um laço de cumplicidade. Hoje a publicidade joga consigo mesma
como joga com a marca e com um consumidor que conhece os códigos da publicidade, da
moda e das mídias”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 300). Dessa forma, aquela
publicidade diretiva está perdendo fôlego, pois o objetivo não é “dirigir mensagens
unidirecionais a um consumidor assimilado a um objeto passivo”. (LIPOVETSKY; SERROY,
2015, p. 300). Na publicidade contemporânea, os modos narrativos são diversos e há um
sofisticado culto à forma (complexos procedimentos técnicos, e as imagens criam um
universo virtual).
Esses argumentos permitem-me analisar como as práticas da documentação
pedagógica também sugerem ao professor uma avaliação não-diretiva, não centralizada num
programa coletivo para todos os alunos, e registros não-unidirecionais; porém, com a ajuda de
tecnologias da comunicação, o professor é capaz de criar uma proximidade com cada criança,
um laço de cumplicidade que consiga mostrar suas ações e aprendizagens na escola. Há uma
sedução estética na produção da documentação pedagógica, um empenho docente em
valorizar a felicidade e a alegria, além de mostrar o quanto a escola infantil pode proporcionar
prazeres e experiências agradáveis às crianças protagonistas.
214
99 Relato aqui algumas impressões que tive quando visitei escolas infantis de Reggio Emilia, em 2008, ao
observar os espaços e também ao conversar com algumas professoras. Pude perceber o grande investimento em
equipamentos tecnológicos em salas de aula e ateliês: máquinas fotográficas, filmadoras, gravadores de áudio,
impressoras, entre outros recursos, todos disponíveis aos professores de forma bastante acessível e rápida. Os
adultos comentaram que, nas suas horas-atividade, o principal foco é deter-se na documentação, que deve ser
diária e sistemática. Assim, os pais, ao buscarem seus filhos no final do turno, já poderiam observar registros,
fotografias, narrações, produções daquele dia na escola. Importante dizer também que em Reggio Emilia há um
Centro de Documentação e Investigação Educativa, o qual funciona desde 1986, reunindo e sistematizando a
documentação pedagógica produzida em cada escola, objetivando troca e compartilhamento desses materiais.
Além disso, é um espaço de exposições, intercâmbios culturais, formação de professores, encontros e seminários
da Reggio Children.
215
100 De um modo mais geral na sociedade, “comemos cada vez mais depressa pratos padronizados, regredimos
nos modos à mesa, visitamos com pressa museus, não nos damos tempo para mais nada e passamos mais horas
diante das telas do que em encontros reais com os outros”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 333).
101 Disponível em: http://porvir.org/porfazer/professor-futuro-sera-um-designer-de-curriculo/20130419. Acesso
em: 30 mar. 2015.
102 Disponível em: http://blog.abmes.org.br/?p=8721. Acesso em: 6 abr. 2015.
216
conseguissem remodelar seus planos de aula, além de criar programas e disciplinas mais
dinâmicas, tornando-os também mais empoderados”103. Também aqui é possível afirmar que a
busca pela inovação educacional mediante tecnologias digitais na Educação Infantil pode ser
um aguilhão que torna potente a documentação pedagógica como outra forma de registro
docente sobre a aprendizagem das crianças e torna o professor um inovador do seu tempo.
Tal debate sobre a articulação entre inovação e docência não é novo. Desde o
movimento da Escola Nova, por exemplo, podemos acompanhar as críticas aos processos
tradicionais e a busca por metodologias ativas. O que me parece pertinente mostrar aqui é que,
neste momento, o ingresso de recursos tecnológicos nas ações docentes no âmbito da
Educação Infantil possibilita reconfigurar um perfil bastante específico de ser professor junto
às crianças. As práticas de documentação pedagógica (não apenas estas, mas também outras
práticas) operam como tecnologia capaz de colocar em funcionamento a estratégia da
inovação docente.
Outro aspecto presente na inovação docente é a intensificação e a valorização da
autoavaliação do professor em relação à sua atuação junto às crianças. A autoavaliação
coloca-se como prática pedagógica inovadora por estar em relação com a utilização de
recursos tecnológicos, os quais possibilitam revisitar os registros a fim de adquirir hábitos
reflexivos. Nesse sentido, podemos ver movimentarem-se certos modos de fazer a
autoavaliação nas práticas de documentação pedagógica postuladas nos referenciais italianos:
Toda a equipe, incluindo os membros que não ensinam, encontra-se semanalmente para discutir e
planejar, garantindo que o conhecimento detalhado de cada criança seja observado e compartilhado.
(KATZ, 1999, p. 53, grifos meus).
[...] a documentação pedagógica não é considerada aqui como uma mera coleta de dados realizada
de maneira distante, objetiva e descompromissada. Pelo contrário, ela é vista como uma observação
aguçada e uma escuta atenta, registrada através de uma variedade de formas pelos educadores que
estão contribuindo conscientemente com sua perspectiva pessoal. (GANDINI; GOLDHABER, 2002,
p. 151, grifos meus).
Os professores, seja durante o dia escolar ou ao final do dia, fazem anotações sobre os
acontecimentos diários em cada sala de aula; com frequência, fazem desenhos ou acrescentam
cópias de desenhos das crianças e os pontos altos das conversas. Essas anotações são coladas na
entrada de cada sala, para convidar os pais a verificar o que aconteceu naquele dia. (Entrevista com
Mara Davoli, GANDINI, 2012, p. 113-114, grifos meus).
Continua.
Para tornar o aprendizado das crianças visível, marcamos horários regulares para equipes de
professores e grupos de equipes de professores trabalharem juntos no planejamento, refletirem
sobre a experiência e produzirem a documentação. O processo de documentação constante do
nosso trabalho com as crianças e da sua aprendizagem foi crucial para avaliar nosso progresso e
para demonstrar a efetividade do nosso programa para os pais. (CADWELL, 2012, p. 207-208,
grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).
Para fazer a autoavaliação, cabe ao professor desenvolver uma escuta atenta àquilo
que dizem as crianças, bem como às suas formas de aprender, conviver e brincar com os
outros amigos na escola. Para Rinaldi, “os educadores que sabem como observar,
documentar e interpretar os processos que as crianças experimentam autonomamente
perceberão, nesse contexto, seus maiores potenciais para aprender como ensinar”.
(RINALDI, 2012, p. 129). Assim, a documentação pedagógica é desenvolvida mediante
escuta sensível e “construção de traços (por meio de notas, slides, vídeos e assim por diante)
que, além de testemunhar os processos e trajetórias de aprendizado das crianças, também os
tornam possíveis para serem visíveis”. (RINALDI, 2012, p. 129).
Vale repetir que a documentação envolve observação, registro e interpretação, visto
que “nenhuma dessas ações pode realmente ser separada ou isolada das outras” (RINALDI,
2012, p. 131), extrapolando, avançando e articulando as noções anteriores de mera
observação, mero registro ou mera interpretação docente (essa questão é reforçada nos
referenciais italianos). Pela documentação, o pensamento do professor “se torna material, isto
é, tangível e capaz de ser interpretado” (RINALDI, 2012, p. 131), ou seja, se torna objetivo.
Cabe ainda salientar que, ao apropriar-se de instrumentos flexíveis e abertos, a documentação
pedagógica serve para “construir memória de um passado no qual se possa encontrar e
reconhecer as orientações e as reflexões para constituir e alimentar o futuro”.
(FORTUNATI, 2014, p. 103).
Ao analisar os referenciais italianos, tendo como lente de aumento as narrativas sobre
documentação pedagógica, foi possível sistematizar algumas palavras de ordem, tais como:
reler, revisitar, reconstruir, reevocar, ressignificar. As práticas de documentação permitem
que professores e crianças revisitem, reevoquem, relembrem e retomem os acontecimentos
escolares. Tal como destaca Rinaldi, “os materiais são colhidos durante a experiência, mas a
leitura e a interpretação acontecem no final do percurso. A releitura e a reevocação da
memória são, portanto, posteriores”. (RINALDI, 2014, p. 80). Para isso, alguns instrumentos
são necessários, pois permitem capturar o que aprendemos para podermos voltar quando
julgarmos necessário, como se fosse possível recuperar os saberes que já possuímos mediante
a observação externa de nós mesmos e da autoavaliação permanente. Vejamos o quadro
abaixo:
219
Os documentos (gravações em áudio e vídeo, notas escritas) são coletados, algumas vezes
catalogados, e trazidos de volta para releitura, revisitação e reconstrução da experiência.
(RINALDI, 2012, p. 120-121. Grifos meus).
Garantir e escutar aos outros e a si próprio é uma das tarefas primárias da documentação: isto é,
produzir traços/documentos capazes de testemunhar e de tornar visíveis as modalidades de
aprendizagem individual e de grupo, capazes de garantir ao grupo e a cada criança individualmente
a possibilidade de observar-se de um ponto de vista externo enquanto aprende (tanto durante
quanto após os processos). (RINALDI, 2014, p. 85 - 80-90. Grifos meus).
A documentação pedagógica pode contribuir como uma estratégia para, além de buscar o
envolvimento com as famílias, também preservar as memórias no tempo e no espaço em que
aconteceram, dando visibilidade às experiências vivenciadas pelas crianças e possibilitando ao
professor e às próprias crianças revisitar, reconstruir, ressignificar esses momentos vivenciados no
contexto escolar. (KINNEY; WHARTON, 2009. Grifos meus).
O conceito de documentação, como é usado nas pré-escolas e nas creches em Reggio Emilia, é um
procedimento usado para tornar a aprendizagem visível para que ela possa ser relembrada,
revisitada, reconstruída e reinterpretada como base para a tomada de decisões [...] o mais
importante, do ponto de vista de Reggio, é que a documentação aprofundada pode revelar os
caminhos que os alunos estão percorrendo para aprender e os processos que estão desenvolvendo
em busca do significado. (FYFE, 2016, p. 273, grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).
[...] eles [os professores] devem traduzir os seus estudos das crianças em
um design para a educação. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 260).
professores, pessoas que venham do mundo do design ou das artes gráficas ou alguém que
possa lhe dar uma chave contemporânea para ler o mundo em que nós, os pais e as crianças
vivemos”. (GANDINI, 2012, p. 121). O foco desse debate parece-me que estava centrado na
formação do profissional que atua nos ateliês – o atelierista –, que poderia qualificar seu
trabalho e o dos demais adultos com as contribuições do design.
Posteriormente, Branzi (2013), ao trabalhar no projeto de pesquisa sobre ambientes
para as crianças pequenas e contribuir na construção de um espaço relacional com
flexibilidade de uso, aborda a relação entre design e didática, destacando que ambos “tentam
alcançar transformações materiais e cíveis de grande escala, começando não pelos
macrossistemas urbano e cultural, mas sim pela realidade dos microssistemas, no nosso caso,
pelas crianças e objetos do dia a dia”. (BRANZI, 2013, p. 129). Assim, educadores e
designers (didática e design) unem-se para enfrentar as questões atuais, uma vez que há uma
marca didática secreta nos projetos de design, uma vez que “sempre houve esforço para
definir um novo modelo de ser humano; isto é, uma definição (também formal) da nova
humanidade que a Modernidade estava no processo de construção”. (BRANZI, 2013, p.
130).
A autora acredita que o design italiano está mais aberto ao redescobrimento e, antes de
racional, contempla conhecimento simples, novo e democrático por não envolver um código
estilístico preestabelecido. “Dentro do modelo italiano de modernidade, a pesquisa didática e
o design desempenham um papel importante, e eu diria que o interesse internacional nas
creches e pré-escolas de Reggio Emilia é uma demonstração clara desse fato”. (BRANZI,
2013, p. 131). Ela acredita que a infância esteve presente no design italiano do pós-guerra e
que isso pode mostrar o quanto o design entra em oposição ao racionalismo, baseando-se na
espontaneidade, simplicidade e democracia, pois a criança é vista como oposição,
reformismo, antiautoritarismo. (BRANZI, 2013). Por vivermos num período de transição
permanente e de crise interminável, que, portanto, não é transitório, pois a única certeza é a
incerteza, a autora acredita, fazendo referência a Carla Rinaldi, que estamos numa “estação
de design”. Vivenciamos o fim dos movimentos históricos de vanguarda e o nascimento da
“vanguarda permanente”. Ao ensinar para aprender, é preciso “colocar o designer, e não o
design, no centro da didática. Isso quer dizer não contar com métodos infalíveis, mas tentar
desenvolver em cada indivíduo as habilidades analíticas necessárias para compreender o
mundo e as habilidades de criação para mudá-lo”. (BRANZI, 2013, p. 133).
Parece-me que nessa obra o design e o designer entram em ação para pensar os
espaços das escolas, de modo a auxiliar na conexão com a nova visão de infância e criança
223
Discurso: Conota um desejo profundo de compreender as palavras uns dos outros. Discurso é mais
do que falar. Discurso conota um estudo mais reflexivo do que está sendo dito, uma luta para
compreender, em que falantes se confrontem construtivamente, experimentem o conflito e
busquem o lugar comum em meio a uma constante mudança de perspectivas. Com efeito, o
discurso é a análise da comunicação, um processo metalinguístico em que o significado é
questionado em nome do crescimento e da compreensão. (GEE, 1990; STUBBS, 1983, grifos
meus). O discurso é a voz que usamos para a escolarização e a aprendizagem (GOODMAN,
1992). O design e a documentação servem para focar, manter e aprimorar os discursos durante o
processo negociado da aprendizagem. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 251, grifos meus).
Continua.
224
visibilidade total”. (AUGUSTO, 2015, p. 21). Vale recorrer às ideias de Saraiva e Veiga-Neto
(2009, p. 192) quando nos mostram a passagem do capitalismo industrial para o capitalismo
cognitivo e o deslocamento de ênfase da fábrica, “uma instituição de (re) produção de
mercadorias”, para a empresa, “uma instituição de inovação”, onde “o longo prazo já não
parece fazer sentido. Vive-se no curto prazo, numa cultura do instantâneo”. (SARAIVA;
VEIGA-NETO, 2009, p. 193). O que importa agora “é a satisfação imediata dos desejos, que,
tão logo satisfeitos se transformam em outros novos desejos a satisfazer”. (SARAIVA;
VEIGA-NETO, 2009, p. 193).
Na medida em que se acredita que a documentação pedagógica é uma possibilidade
mais justa e sem julgamentos de avaliação por contemplar ferramentas tecnológicas de
registro centradas naquilo que as crianças produzem na escola a partir de seus próprios
interesses, estamos colocando em ação estratégias mais refinadas e alargadas de registro que
capturam particularidades individuais e espetacularizam a infância. Na medida em que se
acredita que a documentação pedagógica é uma possibilidade de dar visibilidade às
aprendizagens infantis, estamos mobilizando estratégias mais refinadas e sutis que produzem
uma docência do tipo designer.
Por tudo isso, penso ter ficado claro que a docência contemporânea na Educação
Infantil não abandona, tampouco rejeita ou nega o ensino, mas coloca o professor numa nova
posição de sujeito. Uma posição designer, interessada em cultivar nas crianças o aprender a
aprender por si mesmas, motivadas pelos próprios interesses infantis. Trata-se de uma posição
designer investida numa docência inovadora e gerenciadora de oportunidades. Isso não
significa que o ensino não esteja em ação. Reafirmo aqui a mudança de ênfase que hoje recai
mais sobre o designer como modos atuantes de ser professor e de praticar o ensino. Biesta
defende a ideia de que a linguagem da aprendizagem opera como uma ideologia e faz com
que os professores se tornem uma “espécie de administradores de processos de aprendizagem
vazios e sem direção”. (BIESTA, 2016, p. 122)104.
CAPÍTULO 5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi este exercício que procurei desenvolver até o momento: olhar ao meu redor e
buscar ajuda para compreender os movimentos escolares em relação às práticas de registro
docente e analisar que tipo de governamento da infância está posto em jogo na Educação
Infantil contemporânea. Com o objetivo do finalizar este trabalho investigativo e, ao mesmo
tempo, abrir possibilidades para novas pesquisas nessa área, há que relembrar os caminhos
percorridos, a fim de mostrar a tese defendida, tal como foi minha intenção, já nas escritas
iniciais, ao apresentar a citação do filósofo: “o que importa é acompanhar a marcha de um
mostrar”. (HEIDEGGER, 1979, p. 257).
Esta Tese buscou investigar como as práticas de registro docente denominadas de
documentação pedagógica operam como tecnologia de governamento da infância
contemporânea. Postas em funcionamento juntamente com outros elementos que compõem a
maquinaria escolar, as práticas de registro docente produzem modos muito particulares de ser
criança e de ser professor na escola de Educação Infantil do nosso tempo. Mostrar tal
funcionamento como tecnologia de governamento da infância, operando por meio de
estratégias bastante sutis, porém permanentes, eficientes e cada vez mais refinadas e
inovadoras, foi um dos principais investimentos da Tese. Outro desafio foi problematizar essa
forma de registro docente das aprendizagens sem deixar de ressaltar os aspectos que podem
criar formas de insurgências e de colocar em ação a potência da criança, até mesmo,
exercitando tanto uma ética quanto uma estética na infância e na docência. O maior desafio
foi tensionar as verdades que se naturalizam sobre as práticas de registro docente sobre as
aprendizagens da criança articuladas com uma infância e uma docência escolarizadas.
Reforço que os pesquisadores e estudiosos que defendem o uso da documentação pedagógica
o fazem baseados em um referencial que os permite dizer tais verdades. O que busquei fazer,
foi olhar com outras lentes teóricas para este referencial e mostrar aquilo que, talvez, não
tenha tenta visibilidade no momento social em que estamos vivendo, uma vez que outras
ordens de discursos são privilegiadas e permitidas.
Foi por isso que, na primeira parte da Tese, além de apresentar os conceitos que
sustentaram metodológica e analiticamente este estudo, minha intenção foi analisar as
condições de emergência das práticas de registro docente sobre os sujeitos infantis, mostrando
228
em outras áreas do conhecimento, creio que ficou claro, no decorrer da escrita, que a
estetização e o design são aqui tomados como conceitos emergentes dos estudos do filósofo
francês Gilles Lipovetsky e do crítico de arte francês Jean Serroy, especialmente na obra A
Estetização do Mundo: viver na era do capitalismo artista. Eles afirmam que o capitalismo e
a economia liberal produzem efeitos nos modos de vida das pessoas, gerando a estetização
total da vida cotidiana, e que o design, acompanhado da moda, da publicidade, do cinema, do
show business, cria produtos carregados de sedução. A partir disso, tentei deixar claro como
as práticas de registro esteticizam a infância e oferecem uma docência design, ambas como
novas formas de vida na educação contemporânea.
Ao analisar a estetização de infância como efeito das práticas de registro da
documentação pedagógica, sinalizei duas estratégias em operação – o interesse infantil e o
aprender a aprender – que produzem a criança protagonista. Ao mesmo tempo, analisando o
design da docência como efeito das práticas de registro da documentação pedagógica, apontei
duas estratégias em operação – o gerenciamento de oportunidades e a inovação docente – que
produzem o professor do tipo designer. Postas em ação no campo educacional com outros
elementos da maquinaria escolar (currículo, planejamento, organização da rotina, entre outras
engrenagens), entendo que as práticas da documentação pedagógica fortalecem a centralidade
do processo educacional na escolha de oportunidades de aprendizagem feita pela criança,
desde tenra idade, e acabam por promover um individualismo – ou seja, a lógica é
individualista –, numa investida da produção da criança protagonista. Tais práticas favorecem
o desenvolvimento de novas regulações de subjetividades infantis e docentes.
E foi diante deste cenário que desenvolvi a seguinte tese: As práticas da documentação
pedagógica produzidas pela maquinaria escolar constituem a criança protagonista e o
professor designer. São acionadas por meio de estratégias do interesse infantil e do aprender a
aprender e mobilizadas por práticas docentes de gerenciamento de oportunidades e de
inovação docente.
Com tudo isso, quero dizer que entendo, a partir deste estudo, que o governamento da
infância não é, por si só, nem bom nem ruim; governamos as crianças, seja para o bem, seja
para o mal, ou porque queremos educa-las. Também quero dizer que as práticas de registro
docente da documentação pedagógica não são, em si, ruins ou negativas. Quando Michel
Foucault diz que “nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não significa exatamente o
mesmo que ruim” (FOUCAULT, 2010, p. 299), penso que governar a infância e as crianças é
perigoso, e nesse perigo há positividades e negatividades, em diferentes gradientes, fugindo
231
de uma visão binária. Precisamos pensar como e por que estamos governando a infância e as
crianças. Educamos a infância, entretanto, trata-se de problematizar como queremos educá-la.
Na Educação Infantil do nosso tempo, entende-se que é quase natural que a criança
seja o centro do processo educativo; entende-se também que é quase natural que o professor
seja gerenciador de oportunidades de aprendizagem; e entende-se que é natural que tudo seja
registrado e tornado público à sociedade. Minha intenção com este estudo foi deslocar tais
questões do plano natural, para então começar a analisar as práticas de registro a partir das
racionalidades política e pedagógica. Também foi dizer que a Educação Infantil não está fora
da governamentalidade neoliberal e, com isso, mostrar que, ao colocarmos os interesses
infantis em primeiro plano, ao promovermos o aprender a aprender, e ao celebrarmos o
protagonismo da criança, cada vez mais jogamos a educação para o plano do indivíduo. A
infância contemporânea vem sendo educada para a estetização da vida infantil. Tal como
afirma Carvalho (2016), “se a educação também é uma arte de governar, a crítica, nesse caso,
é uma capacidade de impor limites aos excessos de governo”. (CARVALHO, 2016, p. 15). É
essa crítica, ou a crítica radical, a hipercrítica (VEIGA-NETO, 2011), que procurei
movimentar neste empreendimento investigativo.
A escola de Educação Infantil engendra uma maquinaria que opera sobre o indivíduo –
cada indivíduo passa a ser único. E aqui, a posição do professor desloca-se. Se cada vez mais
a criança está no centro dos processos educacionais e é tratada no âmbito da individualização,
o que resta ao professor? Ser um designer e tratar cada criança na sua individualidade, como
um sujeito autocentrado. Se individualizarmos a infância, o que restará para a docência, senão
ser design?
Não posso dar as costas para toda essa produção e não provocar reações, mesmo
sabendo que eu mesma, como professora e formadora de futuros professores, estou imersa
neste tempo e nas mesmas práticas. Entretanto, esta não é a única forma e modo de registrar
as aprendizagens das crianças na escola. Sem a pretensão de fechar as questões, espero pelo
menos oferecer algumas pistas para pensar, uma vez que minha intenção não foi concluir e
sugerir às escolas e professores que deixem de fazer registros e que se posicionem contrários à
documentação. Na verdade, o que fiz, e pretendo seguir fazendo, é mostrar possibilidades de
leitura do real, de tal forma, que essa leitura possa significar um instrumento de lutas
possíveis no que diz respeito ao governamento da infância contemporânea. Produzir linhas de
forças, pontos de resistências, dar vida à cultura do estranhamento sobre aquilo que falamos e
fizemos com as crianças nas escolas e, sobretudo, meu desejo é instaurar a dúvida, suspender
certezas, resistir aos clichês e as representações sobre as quais repousamos o nosso
232
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Recebeu selo de “As Dez melhores escolas do mundo” pela revista Newsweek,
em 1991.
“As crianças pequenas dependem dos adultos em muitos aspectos de suas vidas e
de suas experiências de aprendizagem; entretanto, o trabalho em projetos é a parte
do currículo na qual os seus próprios interesses, ideias, preferências e escolhas
podem ter rédeas relativamente soltas. [...] As experiências precoces de domínio
de conhecimento podem formar a base de uma disposição permanente para buscar
a compreensão em profundidade sobre tópicos que merecem atenção”. (KATZ,
1999, p. 41).
“As crianças sabem que quando vão em busca de suas metas podem fazer suas
próprias escolhas, e que isso é tão libertador quanto revitalizante”.
256
“Nossas crianças têm muitas escolhas: possuem locais onde podem estar a sós, em
pequeno grupo, em um grupo grande, com os professores ou sem eles, no atiler,
no mini-atelier, na grande piazza ou, se o tempo está bom, no jardim fora da
escola, que possui muitas estruturas, pequenas e grandes, para brincadeiras.
Contudo, a opção por trabalhar em pequenos grupos, nos quais exploram, juntos,
agrada tanto às crianças quanto a nós. Em vista disso, a sala de aula é
transformada em um grande espaço com pequenos agrupamentos, cada um com
suas próprias crianças e seus próprios projetos e atividades”. (MALAGUZZI,
1999, p.99).
“[...] imagem das crianças como ricas, fortes e poderosas. A ênfase é colocada em
vê-las como sujeitos únicos com direitos, em vez de simplesmente com
necessidades. Elas têm potencial, plasticidade, desejo de crescer, curiosidade,
capacidade de maravilharem-se e o desejo de relacionarem-se com outras pessoas
e de comunicarem-se”. (RINALDI, 1999, p. 114).
Funções “Os professores sabem como escutar as crianças, como permitir que tomem a
Docentes iniciativa e, também, guiá-las de formas produtivas”. (Gardner, p. XI).
“As salas de aula são organizadas para apoiar a aprendizagem por meio de um
enfoque altamente cooperativo de solução de problemas. Outras características
importantes são o uso de pequenos grupos na aprendizagem de projetos, a
continuidade de professores/alunos (2 professores trabalham juntos com a mesma
classe por 3 anos) e o método de gerenciamento baseado na comunidade”.
(EDWARSDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 23).
“O desafio para o adulto é estar presente sem ser um intruso, a fim de manter
257
CARTA DE ANUÊNCIA
Ciente dos objetivos, métodos e técnicas que serão usados nesta pesquisa, concordo em
fornecer alguns exemplares de registro da “documentação pedagógica” produzidos por alguns
professores desta Escola, desde que seja assegurado o que segue abaixo:
3) Que não haverá nenhuma despesa para esta instituição que seja decorrente da participação nessa
pesquisa;
4) No caso do não cumprimento dos itens acima, a liberdade de retirar minha anuência a qualquer
momento da pesquisa sem penalização alguma.
(assinatura/carimbo)
Direção da Escola
260
DIREÇÃO DA ESCOLA
1. De que sua identidade, assim como as identidades de todas (os) as(os) participantes serão mantidas
em sigilo; de que nenhuma pessoa será identificada e que se manterá o anonimato, das(os)
participantes, em quaisquer momentos que impliquem a divulgação dessa pesquisa.
2. De que as informações reunidas serão usadas, única e exclusivamente, para fins desta pesquisa e dos
trabalhos científicos que dela poderão se desdobrar.
3. De que os resultados lhe serão apresentados, pois esse retorno permitirá que você tome ciência das
informações produzidas durante a pesquisa, assim como assegurará que tais informações não serão
utilizadas em prejuízo ou para a estigmatização das pessoas envolvidas.
4. Do caráter voluntário de seu consentimento. Caso você tenha interesse em desistir da participação
na pesquisa, isso poderá ser feito em qualquer fase do grupo focal, sem penalização alguma.
5. Da garantia de que você pode receber respostas a qualquer momento sobre os procedimentos e
outros assuntos relacionados com a pesquisa, por meio de e-mail: [email protected] ou pelo
telefone (51) 96914972.
6. De que você não terá nenhum tipo de despesa para participar desta pesquisa, bem como nada será
pago por sua participação.
261
7. Este Termo será assinado em duas vias, ficando uma em seu poder e a outra coma pesquisadora
responsável.
_________________________________________________ de 2015.
Assinatura do Participante:_____________________________________________
Assinatura da Pesquisadora:____________________________________________
262
1. De que sua identidade, assim como as identidades de todas (os) as(os) participantes serão mantidas
em sigilo; de que nenhuma pessoa será identificada e que se manterá o anonimato, das(os)
participantes, em quaisquer momentos que impliquem a divulgação dessa pesquisa.
2. De que as informações reunidas serão usadas, única e exclusivamente, para fins desta pesquisa e dos
trabalhos científicos que dela poderão se desdobrar.
3. De que os resultados lhe serão apresentados, pois esse retorno permitirá que você tome ciência das
informações produzidas durante a pesquisa, assim como assegurará que tais informações não serão
utilizadas em prejuízo ou para a estigmatização das pessoas envolvidas.
4. Do caráter voluntário de seu consentimento. Caso você tenha interesse em desistir da participação
na pesquisa, isso poderá ser feito em qualquer fase do grupo focal, sem penalização alguma.
5. Da garantia de que você pode receber respostas a qualquer momento sobre os procedimentos e
outros assuntos relacionados com a pesquisa, por meio de e-mail: [email protected] ou pelo
telefone (51) 96914972.
6. De que você não terá nenhum tipo de despesa para participar desta pesquisa, bem como nada será
pago por sua participação.
263
7. Este Termo será assinado em duas vias, ficando uma em seu poder e a outra coma pesquisadora
responsável.
__________________________________________________________ de 2015.
Assinatura do Participante:____________________________________________________
Assinatura da Pesquisadora:___________________________________________________