Documentação Pedagógica

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
NÍVEL DOUTORADO

CLÁUDIA INÊS HORN

DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA: A PRODUÇÃO DA CRIANÇA PROTAGONISTA


E DO PROFESSOR DESIGNER

SÃO LEOPOLDO
2017
Capa criada por Daniel S. da Cunha a partir de imagem gratuita para uso comercial
(atribuição não requerida). Contato: [email protected].
Cláudia Inês Horn

DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA: A PRODUÇÃO DA CRIANÇA PROTAGONISTA


E DO PROFESSOR DESIGNER

Tese apresentada como requisito final para a


obtenção do título de Doutora, pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Linha de pesquisa: Formação de Professores,


Currículo e Práticas Pedagógicas

Orientadora: Prof.ª Dra. Elí Terezinha Henn


Fabris

São Leopoldo
2017
H813d Horn, Cláudia Inês.
Documentação pedagógica : a produção da criança
protagonista e do professor designer / Cláudia Inês Horn. –
2017.
263 f. : il. ; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade do Vale do Rio dos


Sinos, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2017.
"Orientadora: Prof.ª Dra. Elí Terezinha Henn Fabris.”

1. Educação infantil. 2. Aprendizagem. 3. Professores


de educação infantil. I. Título.
CDU 37

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Bibliotecário: Flávio Nunes – CRB 10/1298)
Cláudia Inês Horn

DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA: A PRODUÇÃO DA CRIANÇA PROTAGONISTA


E DO PROFESSOR DESIGNER

Tese apresentada como requisito final para a


obtenção do título de Doutora, pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Aprovada em 24/02/2017.

BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________________________
Professora Dra. Maria de Fátima Pereira – UPORTO
___________________________________________________________________________
Professor Dr. Walter Omar Kohan – UERJ
___________________________________________________________________________
Professora Dra. Maria Cláudia Dal’Igna – UNISINOS
___________________________________________________________________________
Professora Dra. Maura Corcini Lopes – UNISINOS

ORIENTADORA
__________________________________________________________________________________
Professora Dra. Elí Terezinha Henn Fabris – UNISINOS
Ao Afonso, meu querido filho, que chegará ao
mundo por volta de maio de 2017! O nascimento
de um novo ser traz em si a potência de criação e
renovação de um mundo cada vez melhor!
AGRADECIMENTOS

Há quem diga que passamos a viver melhor ao concluir o Doutorado, ou ainda, que há
mais vida fora do Doutorado ou depois dele. Creio que a experiência de doutoramento não
está fora – fora de mim – tampouco depois – depois de seu término. A escrita desta Tese,
hoje, faz parte do meu corpo. A experiência de estar no Doutorado em Educação está
atravessada pelos modos como eu vivo neste mundo! A passagem da vida durante o período
dos estudos, longe de ser apenas cronológica, sobretudo, foi intempestiva. E por permitir-me
transformar coisas e ser transformada com esse processo, muitas pessoas estiveram “ENTRE”
– entre mim e os livros, entre mim e a escrita, entre mim e os outros. Por isso há que se
agradecer – pelas oportunidades, pelos encontros, pelas amizades...
Agradeço à Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em especial, ao
Programa de Pós-Graduação em Educação, por receberem-me de modo respeitoso e
comprometido, valorizando e apoiando minha caminhada como estudante.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e
ao Programa de Excelência Acadêmica (PROEX), pela concessão da bolsa parcial de estudos,
o que possibilitou minha permanência no curso.
Sou muito grata à professora e orientadora Dra. Elí Terezinha Henn Fabris por
acolher-me como sua orientanda de forma tão carinhosa e comprometida no ano letivo de
2013. Inesquecíveis serão estes anos que juntas passamos. Suas orientações, sempre
inteligentes, rigorosas e atentas, constituíram-me acadêmica e pessoalmente. Tenho uma
grandiosa admiração pela “profe” Elí, em especial, pela sua recusa constante em imobilizar o
pensamento educacional.
Aos demais professores do curso de Doutorado em Educação – Dr. Danilo Streck, Dra.
Edla Egert, Dra. Gelsa Knijnik, Dra. Maria Cláudia Dal’Igna e Dra. Maura Corcini Lopes –,
com quem tive oportunidade de conviver e de viver a educação. Entre aulas, estudos,
trabalhos, intervalos, esses mestres fizeram movimentar pensamentos interessados na
estranheza daquilo que está posto.
Agradeço aos professores componentes da banca – Dra. Maria de Fátima Pereira
(UPORTO), Dr. Walter Omar Kohan (UERJ), Dra. Maria Cláudia Dal’Igna (Unisinos) e Dra.
Maura Corcini Lopes – pela leitura atenta e pelas contribuições de seus criteriosos pareceres,
desde a banca de qualificação, que mobilizaram meu pensamento.
Sou grata pelas amizades que construí com os colegas da Turma de 2013 do
Doutorado em Educação da Unisinos. Foi gratificante conhecer cada um, com suas vontades,
suas demandas de pesquisas, seus cansaços e emoções. Em especial, agradeço às amigas
Patrícia e Neila, sempre tão cuidadosas com os Estudos Foucaultianos, e também a Daniela,
Juliana, Viviane, Leandro, Éderson e Anibal, pelos encontros, cafés, risadas.
Ao “grupo de orientação da ‘profe’ Elí”, ao Team, sou imensamente grata. Aos
colegas Sandra de Oliveira, Cristiane Fensterseifer Brodbeck, Antônia Gomes Neves, Viviane
Weschenfelder, Sabrine Hetti Bahia, Joelma Fernandes, Carolina Siqueira, Daiane Scopel
Boff, Natacha Nerbas, Luís Pedro Willesheim e Claudia Cerutti, agradeço por compartilharem
a ajuda mútua na construção de nossas teses e dissertações. Ao colocarmos as escritas no
meio de nossas vidas, entre nós, compartilhamos e educamos a nós mesmos.
Aos professores e colegas do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências,
Pedagogias e Diferenças – GIPEDI/UNISINOS, com quem muito aprendi. As leituras, os
estudos e os debates fortaleceram a realização desta Tese.
Agradeço ao Centro Universitário Univates, meu local de trabalho ao longo dos quatro
anos de Doutorado, o qual me possibilitou condições para seguir os estudos, apoiando a busca
pela formação como Doutora em Educação. Nesse espaço, conheci colegas de trabalho
especiais, que de formas muito diferentes me incentivaram a seguir os estudos: Jacqueline
Silva da Silva, Morgana Domênica Hattge, Fabiane Olegário, Mariane Ohweiler, Danise
Vivian, Angélica Munhoz, Suzana Schwertner. Além dessas pessoas queridas, muitas
Daianes, Elisabetes, Elisetes, Grasielas, Lucianes e Silvanes foram presenças amigas e
carinhosas em meio aos estudos do Doutorado.
Agradeço às escolas de Educação Infantil do interior do Rio Grande do Sul que
cederam materiais empíricos que significaram potência para este estudo. Às direções e corpo
docente, muito obrigada.
Agradeço à minha família, em especial, a meus pais, Tânia Inês Mallmann Horn e José
Clóvis Horn, e ao meu irmão, Eduardo José Horn, por mostrar-me a cada dia que a vida vale a
pena ser vivida a cada momento. Não há palavras suficientemente belas para expressar o
quanto eles são importantes em minha vida. Desde pequena, foram eles que me ensinaram o
valor dos estudos. Ao meu esposo, Luis Gustavo Einloft, agradeço por apoiar meus estudos,
aceitar algumas ausências e ser parceiro em todos os momentos, inclusive para esquecer um
pouco as demandas do Doutorado. À família do Gustavo, especialmente à minha sogra,
Norma Lai von Muhlen Einloft, pelo apoio e generosidade.
Não! Não estou procurando uma alternativa; não se pode encontrar a
solução de um problema na solução de um outro problema levantado
num outro momento por outras pessoas. Veja bem, o que quero fazer
não é a história das soluções, e essa é a razão pelo qual não aceito a
palavra ‘alternativa’. Eu gostaria de fazer a genealogia dos problemas,
das problematizações. Minha opinião é que nem tudo é ruim, mas tudo
é perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo
é perigoso, então temos sempre algo a fazer. (FOUCAULT, 2010, p.
299).
RESUMO

A presente Tese tem por objetivo problematizar as práticas de registro docente sobre as
aprendizagens das crianças na Educação Infantil, mais especificamente, as práticas
denominadas de documentação pedagógica. Com sustentação nos aportes teórico-
metodológicos de Michel Foucault e seus comentadores, desenvolveu-se uma analítica das
tecnologias e estratégias de poder, tanto em relação à condução da conduta dos outros (o
governo dos outros), quanto em termos de condução da conduta de si mesmo. Ao
desenvolver tal analítica, a investigação procurou compreender como as práticas de registro
da documentação pedagógica operam enquanto tecnologia de governamento da infância,
produzindo modos muito particulares de ser sujeito infantil na escola contemporânea. Ao
analisarem-se tais práticas, percebeu-se a mobilização de outras formas de constituição
docente e a emergência de outros modos de ser professor nas escolas de Educação Infantil. A
pesquisa valeu-se de dois conjuntos de materialidade de análise – 17 obras denominadas neste
trabalho de referenciais italianos, publicadas no Brasil a partir do final da década de 1990;
exemplares de documentação pedagógica elaborados por professores de escolas de Educação
Infantil do interior do Rio Grande do Sul, Brasil. Os referenciais italianos foram selecionados
por conterem fundamentação teórico-metodológica de tais práticas, sendo utilizados pela
comunidade docente no Brasil por conta de sua tradução e ampla divulgação. A partir da
análise dos materiais – tendo como grade de inteligibilidade a noção foucaultiana de
governamentalidade –, perceberam-se deslocamentos nas práticas de registro docente, cada
vez mais sistemáticas, refinadas, pontilhistas e eficientes, capturando as minúcias das ações
infantis na escola. Tais deslocamentos estão relacionados com as transformações da infância
contemporânea, das pedagogias da infância, bem como da instituição escolar de Educação
Infantil, articuladas com as transformações de uma sociedade com ênfase nas disciplinas que
se desloca para uma sociedade com ênfase no controle. Ao analisarem-se os modos de
funcionamento dessas práticas de registro, foi possível defender a seguinte Tese: as práticas
da documentação pedagógica produzidas pela maquinaria escolar constituem a criança
protagonista e o professor designer. São acionadas por meio de estratégias do interesse
infantil e do aprender a aprender e mobilizadas por práticas docentes de gerenciamento de
oportunidades e de inovação docente. Pode-se concluir que as práticas de registro da
documentação pedagógica contribuem para certo tipo de estetização da infância e para a
fabricação de uma docência design, uma vez que fortalecem a centralidade dos processos
educacionais na criança protagonista e esmaecem a função docente em relação ao ensino,
redirecionando os modos de ser docente na Educação Infantil.

Palavras-chave: Infância. Educação Infantil. Documentação Pedagógica.


Governamentalidade. Docência Contemporânea.
ABSTRACT

This Thesis aims to problematize practices of recording child learning by teachers in Child
Education, particularly the practices known as pedagogical documentation. Supported by
theoretical-methodological contributions by Michel Foucault’s and his commentators, I have
performed an analysis of power technologies and strategies by considering both the
conduction of the conduct of the others (the government of the others) and the conduction of
the conduct of oneself. By performing such analysis, the investigation has attempted to
understand the way in which the practices of pedagogical documentation have functioned as a
technology of government of childhood, thus producing very special ways of being a child
subject in the contemporary school. By analyzing such practices, we have noticed the
mobilization of other ways of teacher constitution and the emergence of other ways of being a
teacher in Child Education schools. The research has used two sets of materials for analysis –
17 works that have been named as Italian references in this Thesis, which have been
published in Brazil since the late 1990s; and samples of pedagogical documentation recorded
by teachers in Child Education schools situated in the countryside of Rio Grande do Sul,
Brazil. The Italian references were selected because they have provided the theoretical-
methodological foundation of such practices and have been used by the teacher community in
Brazil due to the availability of their translations and wide publicization. From the analysis of
the materials – considering the Foucauldian notion of governmentality as a grid of
intelligibility –, some displacements have been noticed in the teachers’ practices of recording,
which have become increasingly systematic, refined, pointillist and efficient, by capturing the
details of children’s actions at school. These displacements have been related to changes in
the contemporary childhood, in the childhood pedagogies, as well as in the Child Education
schools, together with societal changes from an emphasis on disciplines to an emphasis on
control. By analyzing the ways that these recording practices have functioned, it has been
possible to defend the following thesis: the pedagogical recording practices produced by the
school machine have constituted both the protagonist child and the designer teacher. They are
triggered by the strategies of child interest and learning to learn, and mobilized by teaching
practices of management of opportunities and teaching innovation. It is possible to conclude
that the recording practices of pedagogical documentation have contributed to a certain kind
of aestheticization of childhood and the production of design teaching, since they strengthen
the centrality of the educational processes on the protagonist child and weaken the teacher
function in teaching, thus redirecting the ways of being a teacher in Child Education.

Keywords: Childhood. Child Education. Pedagogical Documentation. Governmentality.


Contemporary teachers.
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Conjunto de obras denominadas ‘Referenciais Italianos’................................... 33


Quadro 2 - A tecnologia da documentação pedagógica em operação................................... 126
Quadro 3 - A imagem da criança ativa e protagonista.......................................................... 135
Quadro 4 - A imagem da criança competente ...................................................................... 136
Quadro 5 - Exemplar de documentação pedagógica ............................................................ 150
Quadro 6 - Do ensinar para o aprender a aprender ............................................................... 153
Quadro 7 - Exemplar de documentação pedagógica ............................................................ 159
Quadro 8 - Exemplar de documentação pedagógica ............................................................ 160
Quadro 9 - Exemplar de documentação pedagógica ............................................................ 171
Quadro 10 - Exemplar de documentação pedagógica .......................................................... 173
Quadro 11 - Exemplar de documentação pedagógica .......................................................... 174
Quadro 12 - Preceitos para ser uma professora bem dotada.................................................. 186
Quadro 13 - Benefícios da documentação pedagógica para o professor............................... 188
Quadro 14 - Professor como gerenciador de oportunidades.................................................. 190
Quadro 15 - O gerenciamento de oportunidades e o espaço escolar I................................... 195
Quadro 16 - O gerenciamento de oportunidades e o espaço escolar II................................. 197
Quadro 17 - Exemplar de documentação pedagógica........................................................... 202
Quadro 18 - A documentação pedagógica em funcionamento ............................................. 204
Quadro 19 - Os recursos tecnológicos nas práticas da documentação pedagógica .............. 209
Quadro 20 - Recursos tecnológicos, rapidez e sistematização na comunicação .................. 211
Quadro 21 - Autoavaliação docente nas práticas da documentação pedagógica.................. 216
Quadro 22 - Reler, revisitar, reconstruir, reevocar, ressignificar como forma de
autoavaliação......................................................................................................................... 219
Quadro 23 - Design, discurso e documentação..................................................................... 223
LISTA DE FIGURAS

Imagem 1 – Exemplar de documentação pedagógica ........................................................ 38


Imagem 2 – Exemplar de documentação pedagógica ........................................................ 128
Imagem 3 – Exemplar de documentação pedagógica ........................................................ 150
Imagem 4 – Exemplar de documentação pedagógica ........................................................ 158
Imagem 5 – Exemplar de documentação pedagógica ........................................................ 160
Imagem 6 – Exemplar de documentação pedagógica ........................................................ 171
Imagem 7 – Exemplar de documentação pedagógica ........................................................ 173
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ANA – Avaliação Nacional da Alfabetização


ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
CNE - Conselho Nacional de Educação
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNS – Conselho Nacional de Saúde
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
GIPEDI – Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências, Pedagogias e Diferenças
IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
LBA – Legião Brasileira de Assistência
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEC – Ministério da Educação
PARFOR – Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica
PIBID – Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
PNE – Plano Nacional de Educação
PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
PROINFÂNCIA – Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a
Rede Escolar Pública de Educação Infantil
TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos
UPORTO – Universidade do Porto/Portugal
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...............................................................................................................14

PARTE I - PRÁTICAS DE REGISTRO DOCENTE NA EDUCAÇÃO


INFANTIL............................................................................................................................ 24

1 A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO INVESTIGATIVO.................................................25


1.1 Relações entre a pesquisa e o referencial teórico-metodológico................................ 27
1.2 Materialidade de análise: referenciais italianos e exemplares de documentação
pedagógica ............................................................................................................................32
1.2.1 Questões éticas na pesquisa ......................................................................................... 44
1.3 Sobre os conceitos em funcionamento: uma analítica das práticas de registro....... 46

2 A EMERGÊNCIA DAS PRÁTICAS DE REGISTRO DOCENTE............................. 65


2.1 A constituição do campo discursivo da infância ........................................................ 67
2.2 Da pedagogia às pedagogias da infância ..................................................................... 76
2.3 A instituição escolar de Educação Infantil ................................................................. 88
2.4 Os deslocamentos nas práticas de registro na Educação Infantil .............................103
2.5 “Como um antídoto”: os registros da documentação pedagógica ............................ 114

PARTE II – A PRODUÇÃO DA CRIANÇA PROTAGONISTA E DO


PROFESSOR DESIGNER NAS PRÁTICAS DA DOCUMENTAÇÃO
PEDAGÓGICA ................................................................................................................... 125

3 A PRODUÇÃO DA CRIANÇA PROTAGONISTA ..................................................... 126


3.1 “Nossas crianças têm muitas escolhas”: o interesse infantil...................................... 133
3.2 Aprender a aprender: a centralidade na aprendizagem da criança......................... 152
3.3 Protagonismo infantil e governamento da infância contemporânea......................... 168

4 A PRODUÇÃO DO PROFESSOR DESIGNER ........................................................... 182


4.1 “Criança protagonista exige professora bem dotada”: o gerenciamento de
oportunidades....................................................................................................................... 185
4.1.1 A organização do espaço como tarefa docente ............................................................ 194
4.2 Inovação docente: os recursos tecnológicos e a autoavaliação .................................. 206
4.3 O professor designer na Educação Infantil.................................................................. 221

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................... 227

REFERÊNCIAS................................................................................................................... 233
APÊNDICE A - MODELO DO QUADRO DE SISTEMATIZAÇÃO DAS 17
OBRAS ANALISADAS....................................................................................................... 255
APÊNDICE B - CARTA DE ANUÊNCIA À DIREÇÃO DA ESCOLA ....................... 259
APÊNDICE C - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO -
DIREÇÃO DA ESCOLA.................................................................................................... 260
APÊNDICE D - TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO - PROFESSOR
(A) DA ESCOLA.................................................................................................................. 262
14

APRESENTAÇÃO

Dou uma pequena pista para quem quer escutar: não se trata de ouvir uma
série de frases que enumeram algo; o que importa é acompanhar a marcha
de um mostrar. (HEIDEGGER, 1979, p. 257).

Decido iniciar a escrita utilizando as palavras do filósofo alemão Martin Heidegger


(1979), especialmente quando diz que “o que importa é acompanhar a marcha de um
mostrar”. A presente Tese trata disso: mostrar os percursos; mostrar os ritmos; acompanhar as
trilhas percorridas para a constituição desta pesquisa e também do sujeito pesquisador. Para o
leitor que deseja escutar algo sobre este trabalho de investigação, minha intenção é fazê-lo
acompanhar a marcha que trilhei. Mostrar pistas para pensar como apreciável e relevante a
temática que por ora apresento. Jamais definir respostas ou enumerar uma série de frases
soltas para compor este trabalho.
Trata-se de acompanhar a marcha de um mostrar, porque creio que é o movimento da
pesquisa e o percurso trilhado pelo pesquisador que interessam ao leitor. Delineados pelas
opções na escrita e pelos modos de mostrar cercados por escolhas teóricas, os movimentos e
percursos inventam e constituem a Tese que apresento. Invenção que não se apresentou
repentinamente, tampouco foi jogada em cena desde os primeiros estudos no curso de
Doutorado em Educação. Invenção que, muito antes disso tudo, foi sendo tecida por tramas
que se construíram a partir de práticas, teorizações, questões mobilizadoras, inquietudes, as
quais afetam meu próprio pensamento como pesquisadora e professora. Tudo isso foi
desenvolvido com uma intenção maior: sair transformada a partir da pesquisa que fiz.
O trabalho investigativo que apresento busca problematizar1 as práticas de registro
docente sobre os sujeitos infantis na instituição escolar contemporânea como um
compromisso assumido e naturalizado pelos professores que atuam com crianças, assunto que
vem ocupando grande parte do fôlego pedagógico, principalmente entre professores de
Educação Infantil. Ao perceber deslocamentos2 nas práticas de registro que os professores
desenvolvem sobre as crianças na escola de Educação Infantil, interessa-me compreender
como as práticas de “documentação pedagógica”, ao serem celebradas nas comunidades

1 Utilizo o verbo problematizar inspirada nos escritos de Miller e Rose (2012), sublinhando que ele está mais
voltado ao processo do que à evidência de problemas. Problematizar é elaborar, tornar visível um campo de
problemas que não estão dados a priori, não estão à espera de serem revelados pelo pesquisador. “Questões e
preocupações precisam tornar-se aparentemente problemáticas”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 25).
2 Ao longo da Tese, faço uso da expressão deslocamentos para indicar a ideia de movimentos históricos, não
tomados como causa e consequência uns dos outros, tampouco compreendidos de forma linear, mas tal como
Castro assinala: “por deslocamentos não entendemos abandonos, mas sim extensões, ampliações do campo de
análise”. (CASTRO, 2009, p. 189).
15

docentes como inovadoras, operam como uma tecnologia do governamento da infância,


produzindo um modo muito particular de ser sujeito na Contemporaneidade3.
Meu interesse acende cada vez que me provoco a pensar na seguinte questão, a ponto
de defini-la como o problema central desta pesquisa4: como as práticas de registro docente
denominadas de documentação pedagógica operam enquanto tecnologia de governamento da
infância5, produzindo modos de ser sujeito na Educação Infantil contemporânea? Assim, este
estudo está interessado em mostrar os modos de operar dessa tecnologia que atua no
governamento da infância por meio de estratégias sutis, porém sistemáticas, eficientes e
refinadas, mobilizando uma estetização da infância do nosso tempo, regulando a vida da
população – nesse caso, a população infantil – e também regulando cada sujeito infantil –
nesse caso, a criança. A partir da questão central, é possível desdobrar outras: quais as
condições de emergência das práticas de registro da documentação pedagógica na escola de
Educação Infantil na Contemporaneidade? Que efeitos tais práticas produzem nos modos de
ser criança hoje?
Esta Tese, ao analisar o governamento da infância contemporânea, também não se
afastou da discussão da docência contemporânea. Dito em outras palavras: ao analisar as
práticas de registro docente como tecnologia de governamento da infância contemporânea,
percebo a mobilização de outras formas de constituição docente e a emergência de outros
modos de ser professor nas escolas de Educação Infantil. Percebendo-se a constituição de
outros modos de ser aluno na escola, também é possível perceber outros modos de constituir-
se docente. Nesse sentido, a presente Tese também investiga as seguintes questões: como a

3 Utilizo, neste trabalho, a palavra Contemporaneidade (escrita com inicial maiúscula) para significar o
momento histórico atual (um período que vai da segunda metade do século XX até os dias atuais), mas também
para significar um modo de vida, uma forma de vida. Importante esclarecer que esse período não sucede o
período da Modernidade de forma linear. Trata-se muito mais de crises que se estabelecem na própria
Modernidade e na maneira como nós pensamos a nós mesmos. Não há substituição linear, há mudanças de
ênfase. Há autores que utilizam expressões como hipermodernidade (LIPOVETSKY, 1989), modernidade tardia
(GIDDENS, 1991), pós-modernidade (LYOTARD, 1998), modernidade reflexiva (BECK, 1997), modernidade
líquida (BAUMAN, 2001) e segunda modernidade (SARMENTO, 2004), entre outras expressões.
4 No Projeto de Tese, a questão central estava nos processos de subjetivação da infância e da docência, expressa
mediante a seguinte questão: “como as práticas de registro docente sobre a aprendizagem dos sujeitos infantis
colocadas em funcionamento nos espaços escolares produzem efeitos nos processos de subjetivação da docência
e da infância contemporâneas?”. (p. 5-6). A partir das contribuições dos professores componentes da banca
examinadora, bem como de minhas leituras e debates desenvolvidos posteriormente no grupo de orientação,
penso ser mais produtivo mostrar como as práticas de registro, especialmente aquelas que envolvem a
documentação pedagógica, operam como tecnologia de governamento da infância contemporânea e produzem
efeitos nos modos de ser criança atualmente.
5 A expressão tecnologia de governamento da infância é utilizada numa perspectiva foucaultiana para traçar os
diferentes mecanismos e formas de governar a conduta individual e a conduta da população, sendo
compreendida como cambiante se considerarmos os diferentes espaços e tempos sociais (Foucault, por exemplo,
mostra-nos como as tecnologias pastoral, disciplinar e biopolíticas operam de diferentes formas nas sociedades).
Mais adiante, tal conceito será explorado de forma mais aprofundada.
16

documentação pedagógica se instala nas práticas docentes atuais de forma tão potente e
central no fazer diário dos professores? Que efeitos tais práticas produzem nos modos de ser
professor na Contemporaneidade? Portanto, este estudo também está interessado em mostrar
os modos de operar dessa tecnologia que atua na constituição de uma docência bastante
particular do nosso tempo, por meio de estratégias sutis, sistemáticas e refinadas, cuja forma
de expressão mobiliza o design de uma docência bastante particular do nosso tempo.
Considera-se que a estetização da infância e o design na docência são colocados em
funcionamento por meio das práticas de registro da documentação pedagógica. Interessante
marcar, logo no início deste trabalho, que as práticas de registro docente operam no
cruzamento com outras práticas escolares, ou seja, elas estão imersas com muitas outras
práticas da maquinaria escolar da Educação Infantil.
Ao trazer para o palco a expressão documentação pedagógica, coloco em cena um
conjunto de obras que denomino neste trabalho de referenciais italianos para a educação da
infância. Embora compreenda que nem todos os autores dessas obras sejam de origem
italiana, resolvi reuni-los numa única expressão, pois o que os conecta é o interesse em
conhecer e estudar mais sobre as diferentes propostas de Educação Infantil oferecidas em
inúmeras cidades italianas: Reggio Emilia, San Miniato, Parma, Firenze, Bolonha e Pistoia,
entre outras. Entretanto, devo reconhecer que as cidades de Reggio Emilia e San Miniato são
as mais conhecidas pelos educadores brasileiros em função de suas publicações, do alto
investimento nas traduções em língua portuguesa e da organização de grupos de estudos e
abertura a pesquisadores brasileiros (incluindo aqui outras nacionalidades). O termo
documentação pedagógica emerge especialmente a partir dos estudos e das publicações de
Loris Malaguzzi, que, por volta da década de 1960, num contexto de pós-guerra italiano,
busca romper com a lógica linear de ensino e com a visão tradicional e padronizada de criança
e infância que estava presente em grande parte das propostas para a Educação Infantil.
Os referenciais italianos aqui analisados são considerados importantes propagadores
das práticas de registro denominadas de documentação pedagógica nas pautas educacionais
brasileiras, especialmente por volta do final da década de 1990, embora reconheça que as
práticas de registro docente estão presentes muito antes disso, trazidas por pensadores de
diversos países. (DEWEY, 1959, 1976; MONTESSORI, 1965; FREINET, 1969, 1976;
WARSCHAUER, 1993; FREIRE, 1996; entre outros). Mesmo reconhecendo que há estudos
anteriores sobre a importância da observação e do registro docente, acredito que os
referenciais italianos abordam de forma pontual e sistemática as possibilidades de fazer a
documentação pedagógica como estratégia para tornar visível o processo de aprendizagem das
17

crianças na escola infantil. Esses referenciais têm impacto nas escolas brasileiras e fazem
movimentar outras possibilidades de registro docente, incluindo filmagens, fotografias,
transcrição de falas das crianças, entre outros recursos, primando pela rapidez na sua forma de
comunicação e possibilidade de registro de instantâneos da rotina cotidiana das crianças na
Educação Infantil. Tudo isso se conecta com outros modos de fazer a avaliação das crianças
desde tenra idade, vinculando-se com inovação na Educação Infantil, ou seja, a documentação
pedagógica vem sendo tomada como um modo inovador de avaliação, permeada por uma
imagem de criança e de professor bastante particular. Além dos referenciais italianos, a
seleção de um conjunto de exemplares de documentação pedagógica produzidos por
professores de algumas escolas de Educação Infantil do interior do Rio Grande do Sul
também compõe o material de análise6.
Dito isso, acredito ser fundamental mostrar, no decorrer da escrita desta Tese, as
lógicas de funcionamento das práticas da documentação pedagógica – fundamentos,
estratégias, recursos, bem como a imagem de criança e professor que circulam nessa
abordagem – a fim de perceber sua articulação com os movimentos da infância, da docência e
da escola na Contemporaneidade, analisando-as como um fenômeno conjunto, e não de forma
isolada. A partir da análise que desenvolvo neste trabalho, percebo que as práticas de
documentação pedagógica que emergem com os referenciais italianos podem ser
compreendidas como tecnologias que operam no governamento da infância e tendem a
produzir outros modos de viver a infância contemporânea na escola, assim também como
outros modos de viver a docência contemporânea na escola. Esses outros modos – outras
formas de praticar a vida na escola – podem ser visibilizados a partir de um conjunto de
estratégias que operam no governamento da infância. Neste momento, interessa dizer que os
deslocamentos nos modos de registrar, acentuados pelas práticas de documentação
pedagógica – com todo o seu aparato tecnológico –, produzem novas formas de ser aluno e ser
professor em tempos atuais.
Ao interessar-se pelo governamento da infância, esta Tese busca inspirações nas
produções do filósofo francês Michel Foucault, principalmente nos estudos e cursos
desenvolvidos por ele no Collége de France a partir da metade dos anos de 1970. Como uma
opção teórico-metodológica para entender a história do presente7, alguns conceitos

6 Na seção intitulada “Materialidade de análise: referenciais italianos e exemplares de documentação


pedagógica”, apresento as 17 obras que compõem os referenciais italianos (títulos, autores, ano de publicação no
Brasil), bem como a forma de acesso aos exemplares de documentação pedagógica.
7 “Escrever a história do presente é outra coisa. Essa abordagem começa de forma explícita e reflexiva com um
diagnóstico da situação atual. Há uma orientação contemporânea inequívoca e imperturbável. O historiador
18

foucaultianos aqui estudados, tais como práticas, governamentalidade e tecnologias, são


tomados como conceitos-chave para compreender os acontecimentos do presente. Entretanto,
tudo isso só tem um sentido maior se questionarmos, como cita Veiga-Neto (2011, p. 12),
referenciando Nietzsche: “que estão os outros fazendo de nós?” e “que estamos nós fazendo
de nós mesmos?”. Em outras palavras, trata-se de perguntar como estamos governando a
infância contemporânea, como a infância é governada e que efeitos produzimos no sujeito
infantil.
Acompanhados pelas teorizações de Michel Foucault – filósofo que colocou o sujeito
como tema central de suas pesquisas –, podemos problematizar os modos pelos quais nos
constituímos sujeitos no tempo atual. O sujeito, para Foucault, não é compreendido como uma
entidade fixa, com racionalidade transcendente e soberana, preexistente ao mundo social,
naturalmente educável e manipulável, nem como uma entidade da própria condição humana,
existindo antes mesmo do mundo social, político, econômico e cultural. O sujeito não está
dado de antemão – o eu não nos é dado, como compreende Foucault, que se dedicou “ao
longo de sua obra a averiguar não apenas como se constitui essa noção de sujeito que é
própria da Modernidade, como, também, de que maneira nós mesmos nos constituímos como
sujeitos modernos”. (VEIGA-NETO, 2011, p. 107). O filósofo mostra-nos que o indivíduo se
torna sujeito no entrelaçamento com os saberes, com as relações de poder e ética, ou seja, o
indivíduo constitui-se como sujeito na sua relação consigo mesmo e na sua relação com os
outros, atravessado por verdades que o produzem em determinado contexto histórico.
A partir dessa perspectiva, proponho o desenvolvimento de tal empreendimento de
pesquisa, com a intenção de tecer algumas reflexões, ao discutir sobre infância e docência,
sobre o que somos hoje, o que nos tornamos hoje, o que os outros estão fazendo de nós e o
que nós estamos fazendo de nós mesmos. A partir das teorizações foucaultianas, podemos
compreender como os seres humanos tornam-se sujeitos, indo além dos dispositivos e
mecanismos disciplinares acionados por instituições como a escola, as prisões e os hospitais
(operando sobre a moral e sobre os corpos dos indivíduos, prescrevendo modos de ser, de
estar e de comportar-se no mundo), mas também além das técnicas de si, como
procedimentos, “pressupostos e prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la
ou transformá-la em função de determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si e
sobre si ou de conhecimento de si por si”. (FOUCAULT, 1997, p. 109). O filósofo
compreende que existem dois significados para o sujeito, os quais sujeitam os seres humanos:

localiza as manifestações agudas de um ‘ritual meticuloso de poder’ particular ou de uma ‘tecnologia política do
corpo’ para ver onde surgiu, tomou forma, ganhou importância, etc.”. (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 132).
19

“sujeito ao outro através do controle e da dependência, e ligado à sua própria identidade


através de uma consciência ou do autoconhecimento”. (FOUCAULT, 2010, p. 278).
Ao questionar-se “como ‘se governar’, exercendo ações onde se é o objeto dessas
ações, o domínio em que elas se aplicam, o instrumento ao qual podem recorrer e o sujeito
que age?” (FOUCAULT, 1997, p. 110), Michel Foucault toma o conceito de subjetivação e
apresenta “três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos”.
Primeiro, a objetivação no campo dos saberes (como nos constituímos em sujeitos de saber);
segundo, a objetivação nas práticas de poder (como nos constituímos em sujeitos de ação
sobre os outros); terceiro, “o modo pelo qual um ser humano torna-se ele próprio um sujeito”
(FOUCAULT, 2010, p. 274), ou seja, a subjetivação mediante o cuidado de si 8 (como nos
constituímos em sujeitos éticos). Portanto, a objetivação e a subjetivação, para Foucault,
constituem as formas pelas quais os seres humanos se tornam sujeitos.
A objetivação envolve o sujeito em um campo de conhecimento e práticas de poder –
poder-saber; a subjetivação envolve as relações do sujeito com a verdade. O filósofo passa a
estudar, então, como era possível alcançar um sujeito verdadeiro, capaz de dizer a verdade
sobre si, não apenas por intermédio da sujeição, mas também pela subjetivação. Seja pela
objetivação, acompanhada pelos discursos da ciência, pelas práticas institucionais e pelas
racionalidades do Estado; seja pela subjetivação, acompanhada pelas relações do sujeito
consigo mesmo, Foucault convida-nos a pensar nas tecnologias de governo que operam na
transformação de um indivíduo em sujeito.
Quando penso nas práticas de registro docente, em especial naquelas denominadas de
documentação pedagógica, como tecnologia de governamento da infância, o desafio deste
trabalho investigativo está em mostrar como tais práticas operam na constituição de sujeitos
contemporâneos bastante particulares9. Para tanto, foi necessário propor alguns recuos
históricos, a fim de mostrar a emergência das práticas de registro docente sobre as crianças no
contexto escolar contemporâneo. Tal emergência, conforme pontua Foucault, compreende “a
entrada em cena das forças; é sua irrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores ao
palco, cada uma com o vigor e a jovialidade que lhe é própria”. (FOUCAULT, 2003, p. 269).
Perguntar-se pela emergência de tais práticas na Contemporaneidade implica também analisar

8 Sobre esses “três modos” de tornar-se sujeito, ver também Veiga-Neto (2011, p. 111).
9 Isso justifica as diferentes formas escritas neste trabalho, a saber: professor, docente ou sujeitodocente;
criança, aluno ou sujeito infantil. Ao escrever, por exemplo, sujeito infantil, quero referenciar o ser
humano/indivíduo/pessoa/criança que se torna sujeito a partir do governo dos outros e do governo de si mesmo,
que se torna sujeito a partir dos processos de objetivação e subjetivação (assim também ao utilizar a expressão
sujeito docente). Isso também explica as variações utilizadas na escrita, ora escrevendo professor, ora
escrevendo professora: optei por não fixar apenas uma flexão de gênero, mesmo reconhecendo que a maioria dos
docentes que atuam na Educação Infantil é do sexo feminino.
20

a profundidade dos acontecimentos históricos, de modo a compor os cenários onde tais


práticas foram possíveis e se tornaram verdades de um determinado tempo.
Assim, recuo historicamente para analisar a infância, a Pedagogia e a instituição
escolar na Modernidade10 e na Contemporaneidade: a invenção da infância na Modernidade, a
regulação da vida dos sujeitos infantis, a produção de saberes sobre a população infantil, a
consolidação das escolas – instituições específicas que tomam para si o direito e o dever de
educar a infância. E é justamente nessa atitude em relação às crianças que as práticas de
registro docente sobre seu comportamento, atitudes, ações, aprendizagens, se instala como
uma prática naturalizada e necessária entre os professores nas escolas infantis. Importa
explicar que esses recuos não são lineares e não traçam uma causa e consequência nos
acontecimentos históricos. Pelo contrário, ao fazer uma pesquisa do presente, recorrer aos
fatos históricos faz-se necessário para entender a constituição de uma época e as verdades que
são produzidas e fazem sentido em determinados períodos. Como tais práticas constituem-se
em verdades? Como foram inventadas e fazem sentido em determinado momento histórico?
Tais recuos buscam demonstrar que as práticas de registro docente sobre as
aprendizagens da criança na escola infantil, estando integradas com toda uma maquinaria
escolar, apresentam deslocamentos na Modernidade e na Contemporaneidade. Os modos de
ser aluno e docente, ou seja, os modos de viver na escola deslocam-se de uma sociedade
disciplinar, com ênfase nas disciplinas, para uma sociedade de controle ou seguridade, com
ênfase no biopoder e na biopolítica. Por essa razão, compreender as tecnologias de poder
pastoral, disciplinar e biopolíticas foi central desde o início do trabalho, além de entender a
governamentalidade como grade de inteligibilidade para analisar os deslocamentos nas
práticas de registro docente. Entendo que toda essa discussão é importante para compreender
como a documentação pedagógica instala-se nas práticas de registro de forma tão produtiva,
natural e potente no cenário atual da Educação Infantil.
A Tese está organizada em duas partes:
Parte I – Práticas de Registro Docente na Educação Infantil
Trata da constituição da pesquisa e mostra a emergência das práticas de registro
docente sobre as crianças nas instituições escolares, articulada com a invenção da infância na

10 A palavra Modernidade vem carregada de várias definições e conceitos. Sua localização fixada em um
período histórico pode ser perigosa. Foucault, por exemplo, situou o fim do período moderno, inicialmente, no
século XVIII; posteriormente, definiu-o entre os séculos XIX e XX. Como aponta Ternes (2007, p. 53): “do
ponto de vista estritamente epistemológico, podemos dizer, sem dúvida, que a revolução da modernidade tem a
ver com a mudança de objeto. Entender nossa época significa perguntar-se acerca da natureza dos novos objetos
nascidos ou constituídos a partir dos começos do século XIX”. Para além de um marco temporal e cronológico,
outra definição de Modernidade tem relação com a atitude, ou seja, com as formas de vida marcadas pela razão,
pelo progresso e pelo modelo de homem inventado, especialmente com o Iluminismo.
21

Modernidade, momento no qual se organizaram “formas de governo vinculadas à ideia de


liberdade”. (MARÍN-DÍAZ, 2012, p. 37).
No primeiro capítulo – A constituição do campo investigativo –, justifico minhas
escolhas teórico-metodológicas e relato acontecimentos de minha prática pessoal e
profissional que fizeram sentido, inclusive, para a escolha da problemática estudada aqui.
Adiante, apresento a materialidade de análise – os referenciais italianos e os exemplares de
documentação pedagógica – e desenvolvo algumas provocações para pensar as questões éticas
na pesquisa com crianças. Ao finalizar o capítulo, apresento os conceitos postos em
funcionamento no desdobramento da Tese – práticas, tecnologias, governamentalidade.
No segundo capítulo – A emergência das práticas de registro docente–, interessa-me
pensar como a infância torna-se um campo discursivo e como a Pedagogia, um campo
científico especializado na infância e na regulação dos sujeitos infantis, desenvolve uma
expertise capaz de traçar, definir e julgar como as crianças devem viver as suas vidas,
especialmente nas instituições escolares de Educação Infantil. Também mostro como a escola
aciona tecnologias e estratégias que produzem efeitos em quem passa por esse lugar,
sobretudo mediante as práticas de registro. Portanto, a primeira seção trata da infância, a
segunda seção aborda a Pedagogia, e a terceira, a instituição escolar de Educação Infantil,
numa tentativa de buscar compreender os deslocamentos da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle. Já na quarta seção desse capítulo, evidencio os deslocamentos nas
práticas de registro docente na Educação Infantil, impulsionados pela necessidade de
avaliação constante, entreposta numa lógica neoliberal de vida e no Estado avaliador; com
isso, encerro a última seção do capítulo, intitulada “Como um antídoto” – os registros da
documentação pedagógica, apontando os fundamentos, as estratégias e as técnicas das
práticas de registro denominadas de documentação pedagógica, a partir da análise de 17
obras, denominadas neste trabalho de referenciais italianos.
Parte II – A produção da criança protagonista e do professor designer nas práticas da
documentação pedagógica
Na segunda parte desta Tese, interessa-me mostrar como as práticas de registro da
documentação pedagógica atuam como tecnologia de governamento da infância
contemporânea. Numa perspectiva foucaultiana, as tecnologias de poder e as tecnologias de si
articulam-se num conjunto de estratégias para governar cada sujeito e a população.
É nessa parte da Tese que apresento as análises do material empírico: 17 obras dos
referenciais italianos e os exemplares de documentação pedagógica produzidos por
professores da Educação Infantil no interior do Rio Grande do Sul. A partir desse
22

empreendimento, noto que a estetização da infância e o design da docência são


compreendidos como efeitos das práticas de registro da documentação pedagógica, as quais
colocam em ação uma série de estratégias bastante sutis e refinadas, ligadas às tramas da
governamentalidade neoliberal e de uma sociedade de controle.
No terceiro capítulo, intitulado A produção da criança protagonista, apresento duas
estratégias bastante pontuais e sutis, ligadas a uma racionalidade neoliberal, que não agem de
forma isolada, mas em conjunto e de maneira concomitante nas práticas da documentação
pedagógica: interesse infantil e aprender a aprender, produzindo a criança protagonista
mediante práticas pedagógicas centradas na individualização do sujeito infantil. No quarto
capítulo – A produção do professor designer –, a docência contemporânea é posta em tensão,
com vistas a mostrar deslocamentos nos modos de ser professor hoje. Apresento as estratégias
de gerenciamento de oportunidades e inovação docente, as quais produzem o professor
designer, tudo isso para evidenciar e defender a ideia de que estamos nos tornando designers
docentes, ou seja, o design operacionaliza outros modos de ser professor na Educação Infantil.
Ao analisar as práticas de registro utilizadas pelos professores para tornar visível a
aprendizagem das crianças na escola atual, foi possível entender que a criança ocupa, de
maneira cada vez mais intensa, a centralidade nos processos educacionais ao precisar
demonstrar seus interesses e ser empreendedora da sua própria aprendizagem, isto é, precisa
tomar para si a tarefa de querer e desejar aprender a aprender permanentemente. O professor,
ao gerenciar as oportunidades de aprendizagem, centra as suas funções na organização de um
espaço escolar potencializador para que a criança protagonista possa entrar em ação.
Desse modo, defende-se a seguinte tese:
As práticas da documentação pedagógica produzidas pela maquinaria escolar
constituem a criança protagonista e o professor designer. São acionadas por meio de
estratégias do interesse infantil e do aprender a aprender e mobilizadas por práticas docentes
de gerenciamento de oportunidades e de inovação docente.
Nas Considerações Finais, retomo o problema de pesquisa e as questões centrais da
investigação com o intuito de reafirmar o argumento central que procurei defender ao longo
da Tese, e a tese da Tese é retomada. Outras possibilidades de estudo são sinalizadas, por
compreender que este estudo, ao fazer escolhas, deixa várias outras possibilidades para trás.
Deixar para trás não significa que são menos importantes, mas sim que este estudo precisa dar
conta do foco que ele se propôs num tempo e num espaço de quatro anos de Doutorado em
Educação. E a vida segue em frente!
23

As questões pontuadas acima foram cuidadosa e criteriosamente estudadas, analisadas


e problematizadas no texto que segue, até porque “nosso olhar, inclusive naquilo que é
evidente, é muito menos livre do que pensamos”. (LARROSA, 1994, p.83). Convido-os,
então, para “acompanhar a marcha de um mostrar” (HEIDEGGER, 1979, p. 257), pois
gostaria que este trabalho simbolizasse um pensamento sempre em movimento!
24

PARTE I

PRÁTICAS DE REGISTRO DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Escolhas teórico-metodológicas e materialidade da pesquisa. Invenção da infância na


Modernidade. Pedagogia como campo científico especializado na infância. Escola como
instituição específica para a infância. Deslocamentos nas práticas de registro docente na
Educação Infantil. A documentação pedagógica a partir das 17 obras dos referenciais
italianos.

Questões norteadoras: quais as condições de emergência das práticas de registro da


documentação pedagógica na escola de Educação Infantil na Contemporaneidade? Como se
dá a articulação entre infância, pedagogia e escola para tornar necessárias e cada vez mais
refinadas as práticas de registro docente sobre o sujeito infantil na escola? Como emergem e
se deslocam as práticas de registro docente sobre as crianças na Escola? Que efeitos tais
práticas produzem nos modos de ser aluno e professor?

Questão central: como as práticas de registro docente denominadas de documentação


pedagógica operam como tecnologia de governamento da infância, produzindo modos de ser
sujeito na Educação Infantil contemporânea?
25

CAPÍTULO 1
A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO INVESTIGATIVO

Como escrever senão sobre aquilo que não se sabe ou que se sabe mal? É
necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos
na extremidade do nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa
nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste
modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a
escrita para depois, ou melhor, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí,
entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a
relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o
silêncio. (DELEUZE, 2006, p. 18).

“Escrever sobre aquilo que não se sabe [...] na extremidade do nosso próprio saber”,
como nos aponta Gilles Deleuze (2006) na citação acima. Difícil encerrar a citação, pois cada
frase posta pelo filósofo me provoca a pensar na organização deste trabalho investigativo. A
construção desta Tese nasce a partir de minha trajetória como docente na Educação Básica e
Universitária, particularmente com as aproximações que tive na Educação Infantil (como
professora de crianças de três a cinco anos; como coordenadora pedagógica da Educação
Infantil, atendendo crianças de zero a cinco anos; como docente em cursos de formação de
professores – graduação, pós-graduação e extensão universitária). As práticas de registro
docente sobre as aprendizagens e o desenvolvimento das crianças na Educação Infantil
sempre foram foco de estudos, publicações e debates. Mas o que “se sabe mal” sobre esse
tema? O que me determina a escrever sobre esse assunto?
Uma necessidade de registro sobre o outro quase demasiada e naturalizada pelos
professores. Sem negar a importância ou a necessidade desses registros, quero entender seus
deslocamentos ao longo da história e a emergência, hoje, da documentação de muitas ações e
aprendizagens das crianças na escola. Dar visibilidade àquilo que aprendem, tornar público o
que se faz na escola, imprimir uma aceleração nos registros, permeados por fotografias,
filmagens, produções, avaliações. Entre a ignorância e o já sabido, o que ainda há para estudar
sobre essa temática? O que circula entre a extremidade de nosso próprio saber e o não saber?
A temática da documentação pedagógica emergiu como leitura teórica ainda no curso
de graduação em Pedagogia (concluído em 2004), seguindo ao meu lado nos cursos de pós-
graduação – Especialização em Educação Infantil (concluído em 2005) e Mestrado em
Educação (concluído em 2008). Em minha trajetória acadêmica, o assunto sempre foi motivo
de curiosidade, de encantamento, de celebração, de busca por mais materiais, leituras, cursos.
Chamavam-me atenção as novas estratégias e instrumentos para registrar e documentar as
26

aprendizagens das crianças na escola infantil – além da escrita, incluíam-se filmagens,


fotografias, gravações de áudio, produções, entre outras – e o contato mais próximo com a
família, uma vez que esses registros eram enviados quase cotidianamente aos pais.
No sentido profissional, atuei como professora, tanto na Educação Infantil quanto nos
Anos Iniciais do Ensino Fundamental, ou em cargos de coordenação pedagógica, envolvendo
esses mesmos níveis de ensino. Porém, de modo mais pontual, foi ao trabalhar como
coordenadora pedagógica na Educação Infantil de uma escola particular no interior do Rio
Grande do Sul, que recebe crianças desde o berçário que o assunto “passou pelo meu corpo”.
Organizei reuniões de estudos com o corpo docente da Educação Infantil, quando lemos,
debatemos e estudamos diversos artigos e livros que abordavam a temática da documentação
pedagógica. Nesse período, avaliávamos as contribuições e os benefícios da documentação,
iniciando algumas tentativas de implantar essa prática na escola. Deixamos os relatórios de
aprendizagem de lado e iniciamos a construção da documentação pedagógica.
Alguns desses artigos e livros anteriormente estudados são novamente trazidos aqui,
lidos e relidos por diversas vezes. Compete dizer também que, no período em que houve essa
movimentação na escola onde eu atuava, inúmeros cursos, seminários e eventos floresceram e
se espalharam nos ambientes escolares e acadêmicos, tanto no Brasil quanto
internacionalmente, abordando justamente a temática em questão. Assim, essa temática
caminhou ao meu lado em cursos de formação (seja como ouvinte, seja como professora
ministrante de alguma oficina, assessoria, curso, entre outras modalidades). Em minha fala,
estava presente a frase “acredito que todos os professores de Educação Infantil devem ler os
livros publicados em Reggio Emilia e San Miniato, Itália”. Então, em fevereiro de 2008, tive a
oportunidade de participar de grupo de estudos nas escolas de Reggio Emilia e observei que,
de fato, as crianças são o foco do trabalho educativo: os espaços e tempos são organizados de
modo que elas tenham inúmeras possibilidades de exploração, visando a enriquecer suas
potencialidades. Os professores muito mais escutam e observam suas produções e interações
do que dão aulas e organizam atividades dirigidas.
Até aí, tudo bem! Encaixes, novidades, inovações. Mas um desvio de percurso
movimentava-se. Ao aproximar-me de alguns autores da perspectiva pós-estruturalista e, ao
mesmo tempo, buscar mais leituras sobre a invenção da infância moderna e a infância
contemporânea, a temática da documentação começava a tornar-se problemática para mim.
Por esse período, estava ministrando algumas disciplinas no curso de graduação em
Pedagogia em uma Instituição de Ensino Superior no interior do Rio Grande do Sul
denominadas na grade curricular de Estudos de Infância, Ações Docentes na Educação
27

Infantil, Ações Docentes nos Anos Iniciais e Processos Avaliativos na Educação Básica, entre
outras, e atuava na orientação de Estágios Supervisionados do mesmo curso.
Concomitantemente, iniciei o Doutorado em Educação na Unisinos. Novas leituras de
inspiração foucaultiana começaram a intensificar-se e a alargar minhas possibilidades de
pesquisa. Foi a partir dessa perspectiva que comecei a alimentar minha inquietação com a
temática aqui apresentada, num movimento de tornar frágil aquilo que parecia forte.
É até paradoxal escrever sobre isso – algo que eu celebrava e admirava na prática
docente passava agora a incomodar-me, a tornar-se problemático, de forma a não me permitir
falar sobre tal assunto como falava outrora. Hoje, incomodo-me com o culto docente à
documentação pedagógica e com a sua celebração no entorno educacional, em especial na
Educação Infantil. Um sintoma de mal-estar? Acontece que passei a questionar essa prática
como algo não naturalmente bom, ou como uma estratégia pedagógica que permite conhecer
verdadeiramente quem são os nossos alunos, ou ainda, como uma técnica que fielmente
tornará visível a aprendizagem das crianças. No entanto, reforço sua produtividade, sua
potência pedagógica, pois foi justamente por esse motivo que a tomei como foco desta
pesquisa.
O exercício que estou me propondo não é o de posicionar-me contra a documentação
pedagógica, pois essa posição não me deixaria vasculhar as “entranhas” dessa prática
pedagógica; quero seguir os passos de sua constituição como uma verdade naturalizada, como
“a melhor forma de acompanhar o desenvolvimento infantil”. Não pretendo desfazer toda essa
produção, tampouco colocá-la num pedestal (talvez como fazia anteriormente). Não se trata
de celebrar, nem de demonizar; nem de festejar, nem de menosprezar; antes, trata-se de
perceber como tais práticas conduzem as condutas individuais e coletivas dos sujeitos
escolares, produzindo efeitos nos modos de viver a vida escolar nesse período chamado de
infância, produzindo sujeitos infantis autorregulados, adaptados às demandas
contemporâneas.

1.1 Relações entre pesquisa e referencial teórico-metodológico

O movimento da pesquisa que desenvolvi implicou escolhas, triagens, inclinações


constantes, que se deram por contágio. Acredito que podemos ver, sentir, pensar sobre uma
mesma materialidade de diferentes formas, dependendo “do par de óculos” que usamos 11. As

11 Tal como destacam Foucault e Deleuze em uma entrevista, fazendo referência aos ditos de Proust: “tratem
meu livro como um par de óculos voltados para fora; pois bem, se eles não lhes caem bem, peguem outros,
28

formas pelas quais contamos as histórias em nossos trabalhos de pesquisa estão ligadas às
maneiras de pensar, uma vez que destacamos acontecimentos, selecionamos eventos,
compomos redes e negligenciamos outras tantas. Nesse sentido, opto por teorizações pós-
estruturalistas em educação, que não buscam pela verdade única, pois entendem que as
verdades são fabricadas; não definem as relações de poder entre oprimidos e opressores,
colocando a escola como uma instituição que oferecerá a libertação, a emancipação e a
autonomia dos indivíduos pelo conhecimento, mas complexificam as relações de poder,
pondo-as numa trama de poder-saber, sem a necessidade de buscar a sua origem (um ponto de
origem único), mas a sua constituição, as condições de possibilidade para sua emergência. As
teorizações pós-estruturalistas tensionam o pensamento moderno, a crença nas metanarrativas,
na razão, na ciência, na neutralidade. Também problematizam a crença na liberdade, na
conscientização do sujeito, numa projeção sempre futura, no salvacionismo da escola ou da
pedagogia12.
Outro destaque importante neste trabalho de investigação são as formas de elaborar as
perguntas. Estou menos motivada a iniciar uma pergunta com “por que” ou “o que” e mais
interessada em questionar “como”, “diminuindo, dessa maneira, o peso da causalidade ou,
pelo menos, multiplicando-a, dando-nos condições de abster-nos dos problemas de ‘explicar’
fenômenos indigestos pelo Estado, classe, e assim por diante”. (MILLER; ROSE, 2012, p.
15). Perguntar “como”, nessa perspectiva, não busca traçar formas metodológicas de
desenvolver uma ação, não está centrado no “como fazer”, mas implica estudar as tramas, as
redes, as relações de poder e saber, os movimentos que compõem um cenário, menos de
forma linear e cronológica e mais no seu acontecimento, nos efeitos, na produção de verdades
e naquilo em que nos tornamos enquanto sujeitos de um determinado tempo e espaço.
Portanto, está atrelado a “como se constituem” os objetos. Inspirada nas problematizações de
Michel Foucault (2010, p. 283) quando afirma que “provisoriamente atribuo certo privilégio à
questão do ‘como’, não é que eu deseje eliminar a questão do quê e do porquê. É para colocá-
las de outro modo”. O filósofo, ao explicar sua preocupação em investigar sobre o poder e
como se exerce tal poder, conclui que “a pequena questão, direta e empírica: ‘Como isto
acontece?’, formulada como esclarecedora, não tem por função denunciar como fraude uma
‘metafísica’ ou uma ‘ontologia’ do poder, mas tentar uma investigação crítica sobre a
temática do poder”. (FOUCAULT, 2010, p. 284).

encontrem vocês mesmos seu aparelho que, forçosamente, é um aparelho de combate”. (FOUCAULT, 2006, p.
39).
12 Para retomar algumas discussões sobre os estudos foucaultianos e as crenças na metanarrativa, na ciência, na
razão, ver Silva (1994, 1995, 2000).
29

Foi percorrendo por essas vias que construí o problema de pesquisa que apresento
nesta Tese, numa investida de problematizar aquilo que parece evidente e natural, virando o
problema de cabeça para baixo. Com isso, não tive a pretensão de mostrar que as práticas de
registro da documentação pedagógica não são necessárias, nem que não deveriam existir nas
ações docentes, nem que a literatura italiana seria a grande vilã por apresentar a
documentação pedagógica às comunidades brasileiras e nem mesmo que sou contra o registro
docente. Aliás, essa é uma interpretação comum entre aqueles que costumam avaliar os
processos e as práticas por uma ordem binária13. Talvez tenha pretendido inverter modos de
pensar e tentado ver de outras formas, criticar as continuidades. Inspirada nas teorizações de
Foucault, assumi que é preciso “descobrir os limites de um processo, o ponto de inflexão de
uma curva, a inversão de um movimento regulador, os limites de uma oscilação, o limiar de
um funcionamento, o instante de funcionamento irregular de uma causalidade circular”.
(FOUCAULT, 2009, p. 8). O filósofo convida-nos: “é preciso também que nos inquietemos
diante de certos recortes ou agrupamentos que já nos são familiares”. (FOUCAULT, 2009, p.
24).
Como sabemos, muitas pesquisas sobre a infância e sobre a importância do registro
docente já foram desenvolvidas e muitas estão em processo de conclusão e/ou publicação.
Embora seja um campo bastante produtivo, considero que esta pesquisa trará contribuições
para pensar a educação das crianças nas escolas, sobretudo no contexto nacional em que
vivemos, no qual observamos a construção de inúmeras escolas de Educação Infantil
(especialmente com o Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos
para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil – Proinfância/Governo Federal); a
ampliação de vagas em escolas para crianças de zero a cinco anos; a publicação da Lei nº
12.796/2013, que torna obrigatória a oferta gratuita de Educação Básica a partir dos quatro
anos de idade, entre outros exemplos que mostram o enaltecimento e a necessidade de as
crianças, desde tenra idade, adquirirem o direito de frequentar as escolas.
Busco desenvolver a crítica da crítica – a hipercrítica –, tal como propõe Veiga-Neto
ao explicar a crítica foucaultiana, “de voltar-se contra si mesma para perguntar sobre as
condições de possibilidade de sua existência, sobre as condições de sua própria
racionalidade”. (VEIGA-NETO, 2011, p. 24). O autor diz ainda que a hipercrítica está sempre
em movimento, não para encontrar o ponto de fuga que seria o núcleo da verdade, mas para

13 Ao apresentar preliminarmente esta investigação em eventos acadêmicos, muitos professores ou alunos de


graduação e pós-graduação questionavam-me: “mas, afinal, você é contra ou a favor da documentação
pedagógica na escola?”. Não pretendo entrar na seara da definição de prós e contras, tampouco cair em estruturas
de análises binárias. Desejo que isso permaneça de forma clara ao longo de todo este trabalho de pesquisa.
30

deslocar-se sem descanso sobre ela mesma e sobre nós. Trata-se de levar ao estranhamento as
práticas de registro da documentação pedagógica que torna visível a aprendizagem das
crianças, num investimento teórico de perguntar-se sobre as condições de emergência dessa
documentação na escola, buscando entender como, neste momento histórico, ela se torna tão
necessária e abrangente. A fim de buscar hipóteses para as questões pontuadas, é
imprescindível pensar nos caminhos metodológicos desta pesquisa.
Creio que a metodologia, quando conectada às teorizações pós-estruturalistas, faz
produzir outros modos de pesquisar e de tornar-se pesquisador. Digo isso porque não escolhi,
a priori, uma metodologia de pesquisa, um método universalmente válido, tampouco seus
instrumentos para a coleta de dados numa determinada realidade a ser investigada, analisada e
interpretada. Essas bases mais fixas e sólidas, previsíveis e seguras, dadas de antemão, até
mesmo antes de iniciar o processo de pesquisa, são tensionadas e problematizadas pelas
teorizações selecionadas por mim. Assim, concordo com Meyer e Paraíso (2012) quando
afirmam que a metodologia pode ser entendida como um modo de perguntar, de formular
questões, de interrogar “e de construir problemas de pesquisa que é articulado a um conjunto
de procedimentos de coleta de informações – que, em congruência com a própria teorização,
preferimos chamar de ‘produção’ de informação – e de estratégias de descrição e análise”.
(MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 16). Metodologia aqui é tomada “de modo bem mais livre do
que o sentido moderno atribuído ao termo ‘método’” (MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 16), mas
nem por isso menos importante, menos interessado, menos comprometido e menos rigoroso.
Questões metodológicas interessadas e comprometidas porque precisamos fazer
escolhas e justificá-las, precisamos definir os caminhos metodológicos – dito de outra
maneira, precisamos de um método de pesquisa porque, “sem um método, não se chega a ter
uma percepção ou um entendimento sobre as coisas”. (VEIGA-NETO; LOPES, 2010, p. 2).
Entretanto, não no sentido moderno atribuído a método, mas um método compreendido como
“o caminho que podemos/devemos seguir se quisermos ir para algum lugar”. (VEIGA-NETO;
LOPES, 2010, p. 2). Método construído ao longo do percurso, a partir do percurso, ou seja, “o
método é o caminho a seguir para fazer uma abordagem, para chegar a algum entendimento
sobre aquilo que se quer descrever, discutir, argumentar etc.”. (VEIGA-NETO; LOPES, 2010,
p. 2). Como destaca Foucault ao ser questionado numa entrevista com Hasumi (1977) sobre a
não-fixação de um método nas suas pesquisas:

Não tenho um método que aplicaria, do mesmo modo, a domínios diferentes.


Ao contrário, diria que é um mesmo campo de objetos, um domínio de
objetos que procuro isolar, utilizando instrumentos encontrados ou forjados
31

por mim, no exato momento em que faço minha pesquisa, mas sem
privilegiar de modo algum o problema do método. (FOUCAULT, 2006, p.
229).

Assim, o caminho metodológico foi percorrido ao longo da gestação desta Tese, e, a


cada nova problematização, novos materiais de pesquisa entravam em cena para compor a
produção. Esses materiais não estavam à minha espera no campo empírico, marcando tempo
para a sua coleta; tampouco deixavam transparecer o que o pesquisador deve olhar, o que
deve dizer sobre eles e como deve categorizá-los. Os caminhos metodológicos foram se
constituindo no decorrer da investigação, cercando o problema de pesquisa e tornando-o cada
vez mais presente no trabalho. Cabe também problematizar aqui a ideia de “coleta de dados”.
Coletar dados significa colher, arrecadar, como se algo estivesse no campo, a priori, pronto e
acabado, e a tarefa do pesquisador fosse apenas encontrá-lo e recolhê-lo para posterior
análise.
O pesquisador, na perspectiva escolhida nesta investigação, não coleta dados no
trabalho de campo, mas os constrói a partir de sua interação com os sujeitos e os contextos
envolvidos. Como afirma Geertz (1978, p. 19), “nossos dados são realmente nossa própria
construção das construções de outras pessoas”. Graue e Walsh (2003) contribuem para essa
reflexão quando afirmam que os dados não andam por aí à espera de serem recolhidos, mas
provêm das interações do investigador num contexto local, mediante as relações estabelecidas
com os participantes e as interpretações do que é importante para as questões de interesse. A
subjetividade e a capacidade de análise dos dados permitem o encontro do pesquisador com o
objeto de estudo, pois “a interpretação depende do ponto de vista do observador e é regulada
por tradições disciplinares e perspectivas sobre o que realmente significa compreender a
realidade”. (GRAUE; WALSH, 2003, p. 192). Com essa posição, apresento os caminhos
metodológicos que trilhei, apresentando os materiais de pesquisa. Acredito que outros
pesquisadores produziriam outras pesquisas a partir das materialidades empíricas selecionadas
para esta Tese.
Para a realização da pesquisa, as materialidades de análise foram organizadas em dois
blocos, a saber: a) referenciais italianos; b) exemplares de documentação pedagógica
produzidos por professores da Educação Infantil. Na seção seguinte, explico os critérios de
seleção para cada bloco e a forma de apresentá-los na Tese, fruto de muitas leituras, seleções
de excertos, separação das recorrências, sínteses, retomada dos apontamentos, entre outros
movimentos de análise. Tendo constituído o corpus empírico desta pesquisa em articulação
com o referencial teórico de perspectiva pós-estruturalista, busquei pelas recorrências,
32

deslocamentos e silenciamentos presentes na materialidade. Analisar as recorrências e as


ressonâncias – aquilo que de alguma forma salta sempre de novo na inscrição da
materialidade – vai compor as multiplicidades e as complexidades nada óbvias, tal como
sugere Fischer:

[...] fazer aparecer justamente a multiplicidade e a complexidade dos fatos e


das coisas ditas, que são, por isso mesmo, raros, no sentido de que não são
óbvios, não são naturais, não estão imunes a imprevisibilidades. Expor essas
multiplicidades nos permitirá descrever um pouco dos regimes de verdade de
uma certa formação histórica e de determinados campos de saber.
(FISCHER, 2012, p. 103).

Realizada a apresentação da pesquisa e suas relações com o referencial teórico-


metodológico, passo a explicar de forma mais detalhada a escolha, seleção e tratamento ético
da materialidade de análise.

1.2 Materialidade de análise: referenciais italianos e exemplares de documentação


pedagógica

Forjar instrumentos de análise – essa a minha necessidade de pesquisa. A primeira


superfície analítica em que realizei a investigação envolve uma seleção de obras
contemporâneas voltadas à comunidade docente da Educação Infantil que resolvi denominar
de referenciais italianos. Compreendo que algumas dessas obras não são publicações
originalmente italianas, pois são publicadas por pesquisadores de outros países. Entretanto, o
que me possibilita fazer essa junção numa única expressão é que os autores dessas obras
realizaram suas pesquisas in loco em escolas de Educação Infantil nas mais variadas cidades
italianas (Reggio Emilia, San Miniato, Parma, Firenze, Bolonha e Pistoia, entre outras),
retornando aos seus países de origem, para posterior publicação. Para esta investigação, foram
selecionadas 17 obras que compõem os referenciais italianos, corpus de análise da Tese. Opto
por apresentá-las de forma cronológica, conforme o ano de sua publicação/tradução no Brasil,
no quadro abaixo.
33

Quadro 1 - Conjunto de obras denominadas ‘Referenciais Italianos’


TÍTULO DA OBRA AUTOR (A/ES) ANO DE PARTE DA OBRA
ORGANIZADOR PUBLICA ANALISADA
(A/ES) ÇÃO NO
BRASIL
As cem linguagens da criança: a abordagem Carolyn Edwards 1999 Todos os capítulos
de Reggio Emilia na Educação da primeira Lella Gandini que compõem a livro
infância George Forman
À procura da dimensão perdida: uma Escola Giordana Rabitti 1999 Todos os capítulos
de Infância de Reggio Emilia que compõem a livro
Bambini: a abordagem italiana à educação Lella Gandini 2002 Capítulo: Duas
infantil Carolyn Edwards (orgs.) reflexões sobre a
documentação
Qualidade na educação da primeira infância: Gunilla Dahlberg 2003 Capítulo:
perspectivas pós-modernas Peter Moss Documentação
Alan Pence pedagógica: uma
prática para a
reflexão e para a
democracia
O poder dos projetos: novas estratégias e Judy Harris Helm, Sallee 2005 Capítulo: A
soluções para a educação infantil Beneke e colaboradores importância da
documentação
A estética no pensamento e obra de Loris Alfredo Hoyuelos 2006 Todos os capítulos
Malaguzzi que compõem a livro
Pedagogia (s) da Infância: dialogando com o Júlia Oliveira- 2007 Capítulo: Lóris
passado: construindo o futuro Formosinho Malaguzzi e os
Tizuco Kishimoto direitos das crianças
Ana Pinazza (orgs.) pequenas, em 2007
A Escola vista pelas Crianças Ana Azevedo e Júlia 2008 Capítulo: A
Oliveira-Formosinho documentação da
aprendizagem da
criança: a voz das
crianças
Tornando visível a aprendizagem das Linda Kinney 2009 Todos os capítulos
crianças Pat Wharton que compõem a livro
A educação infantil como projeto da Aldo Fortunati 2009 Todos os capítulos
comunidade que compõem a livro
Fundamentos da Educação Infantil: Janete Moyles 2010 Capítulo:
enfrentando o desafio Observações escritas
ou caminhadas pelo
parque?
Documentando as
experiências das
crianças
O papel do ateliê na educação infantil: a Lella Gandini (org.) 2012 Todos os capítulos
inspiração de Reggio Emilia que compõem a livro

Diálogos com Reggio Emilia: escutar, Carla Rinaldi 2012 Todos os capítulos
investigar, aprender que compõem a livro
Crianças, espaços, relações: como projetar Giulio Ceppi 2013 Todos os capítulos
ambientes para a educação infantil Michele Zini (orgs.) que compõem a livro
Tornando visível a aprendizagem da criança: Project Zero 2014 Todos os capítulos
crianças que aprendem individualmente e Reggio Children que compõem a livro
em grupo
A Abordagem de San Miniato para a Aldo Fortunati 2014 Todos os capítulos
educação das crianças: protagonismo das que compõem a livro
crianças, participação das famílias e
responsabilidade da comunidade por um
currículo do possível
34

As cem linguagens da criança: a experiência Carolyn Edwards 2016 Todos os capítulos


de Reggio Emilia em transformação Lella Gandini que compõem a livro
George Forman (orgs.)
Fonte: Elaborado pela autora (2016).

Suponho que, além dessas 17 obras, existam outras, mas neste momento optei por
obras de maior circulação entre professores, presentes em programas de cursos de graduação,
pós-graduação e extensão e também como sugestão de leitura em reportagens de revistas,
especialmente a Revista Pátio – Educação Infantil14, traduzidas para a língua portuguesa, o
que, grosso modo, amplia as possibilidades de acesso à leitura e à análise. Optei, portanto, por
analisar 17 livros, publicados desde 1999 até 2016 (justifica-se o ano de 2016 por tratar-se do
período de conclusão da escrita desta Tese). Reitero que a opção por essas obras italianas se
justifica, em primeiro lugar, pela grande circulação que adquirem nas escolas de Educação
Infantil e nos cursos de formação de professores (tanto a formação inicial quanto a formação
em serviço); em segundo lugar, destaco a visibilidade que essas obras oferecem à temática
proposta para esta investigação; em terceiro lugar, e talvez a maior justificativa, é que essas
obras são tomadas aqui como práticas, pois são mobilizadoras de práticas pedagógicas e,
portanto, produzem efeitos nos modos de ser aluno e de ser professor na escola
contemporânea. Ao direcionarem-se para os professores da Educação Infantil, os referenciais
italianos produzem uma pauta educacional nacional (e internacional) para o governamento da
infância.
Como é possível perceber, os dois primeiros referenciais italianos foram traduzidos e
chegaram às livrarias brasileiras por volta de 1999, dado que apresenta um recorte temporal
para os materiais selecionados15. Posteriormente, as publicações foram ampliando-se,
adquirindo grande repercussão nacional na comunidade docente da Educação Infantil. Livros
atrativos, contendo fotografias do trabalho pedagógico realizado junto às crianças, bem como
exemplos de croquis e planta baixa de diferentes espaços físicos das escolas, são apresentados
como material pioneiro e inovador, levando muitos profissionais da educação a interessar-se
por eles. Também a possibilidade de conhecer in loco as propostas italianas, com a oferta dos

14 A Revista Pátio – Educação Infantil, organizada e publicada pelo Grupo A, com circulação nacional por meio
de assinaturas, desde 2003 e com tiragem trimestral nos meses de janeiro, abril, julho e outubro, vem divulgando
essas obras, inclusive, muitos dos artigos publicados por pesquisadores que escrevem nessa renomada revista
educacional apresentam sustentação teórica em tais obras. Assim, essa Revista também é um meio relevante para
compreendermos a circulação dos referenciais italianos no Brasil.
15 Aqui podemos estabelecer algumas relações com a trajetória histórica da Educação Infantil no Brasil: é na
década de 1990 que temos a publicação da LDB (Lei que toma a Educação Infantil como primeira etapa da
Educação Básica) e a publicação do primeiro Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998),
além de toda a movimentação de qualificação das estruturas físicas das escolas e de formação docente no cenário
brasileiro, entre outros fatores. Assim, a chegada das publicações italianas é celebrada no cenário nacional.
35

grupos de estudos para Reggio Emilia16e San Miniato, na Itália, por exemplo, ocasiona uma
grande repercussão nacional na Educação Infantil. Um fator que evidencia as afirmativas
acima é a publicação da obra As cem linguagens da criança no ano de 2016, em seus volumes
1 e 2, os quais apresentam uma reprodução da publicação datada de 1999, juntamente com
alguns novos capítulos e acréscimos de seções e excertos. Portanto, quase 20 anos depois, são
lançadas essas duas obras, com o objetivo de mostrar as modificações da abordagem de
Educação Infantil em relação às transformações demográficas e políticas e às novas gerações
de educadores e pais, como destacam os próprios organizadores: o diálogo tem se
desenvolvido há mais de 20 anos, desde os preparos para a primeira edição, e certamente
ilustra como a experiência de Reggio Emilia está sempre evoluindo. (EDWARDS;
GANDINI; FORMAN, 2016).
Inicialmente, a leitura e a análise dos referenciais italianos citados acima foram
realizadas de forma mais geral, com o objetivo de fazer uma sondagem da superfície analítica.
Feita essa análise inicial, passei a realizar novas leituras, de maneira bastante atenta,
organizando e sistematizando o material. Excertos foram destacados e copiados, e
digitalizações foram necessárias. Esse material foi sistematizado num quadro, compondo um
arquivo com aproximadamente 100 páginas de excertos destacados e digitalizações de
fragmentos importantes. Considerando o problema e os objetivos desta pesquisa, o quadro foi
organizado a partir das seguintes expressões: 1) abordagem da documentação pedagógica; 2)
imagem de criança; e 3) funções docentes (o APÊNDICE A apresenta o modelo do quadro
que utilizei para sistematizar as 17 obras). Em especial, sobre a primeira expressão, foram
garimpados os excertos que tratavam dos instrumentos e das estratégias para registro docente,
bem como das sugestões e orientações sobre como, por que e para que registrar a
aprendizagem das crianças.
A partir desse material, foi possível mapear algumas regularidades e recorrências,
tanto nas páginas digitalizadas quanto nos excertos selecionados. Emergiu dessa análise uma
imagem de criança protagonista, criativa, potente e autônoma, com interesses individuais,
interessada pela escola e capaz de fazer suas próprias escolhas, acompanhada por um
professor coprotagonista, que tem habilidades para escutar os interesses das crianças e levá-
los adiante, por meio da organização dos espaços físicos da escola. Emergiu também da
análise desses referenciais a necessidade de registro docente sistemático e permanente, cada

16 Reggio Emilia é uma cidade italiana da região de Emília Romana, ao norte da Itália. Em 1991, Reggio Emilia
recebeu o selo de “As Dez melhores escolas do mundo” pela revista Newsweek, fato que pode justificar a elevada
publicação e tradução de obras no Brasil e em outros países.
36

vez mais refinado e pontual, sobre a aprendizagem das crianças na escola. Os professores
precisam construir diferentes estratégias para mostrar as produções das crianças, em tempo
quase real, ou seja, de modo sistemático e eficaz. Procuro tratar dessas questões de forma
mais aprofundada na Parte II da Tese (contudo, a última seção da Parte I, intitulada “‘Como
um antídoto’: os registros da documentação pedagógica”, já sinaliza excertos da materialidade
de análise).
O segundo bloco que formou a materialidade analítica da Tese foi constituído pela
coletânea de exemplares de documentação pedagógica– uma seleção de alguns exemplares de
documentação pedagógica produzidos nos anos letivos de 2012 e 2015 por professores de
uma escola de Educação Infantil da rede particular de ensino e por professores de uma escola
de Educação Infantil da rede pública municipal de ensino; ambas as escolas atendem crianças
de zero a cinco anos de idade e estão localizadas em municípios do interior do Rio Grande do
Sul. Essa superfície analítica, fonte produtiva para compor o material empírico da pesquisa,
não foi produzida pelos professores especialmente para esta pesquisa. Eles compõem um
material produzido por conta da proposta pedagógica de cada escola, a qual prima pelo
registro docente e pela elaboração desses documentos como forma de expressar os resultados
da avaliação na Educação Infantil. Portanto, os exemplares utilizados aqui foram documentos
entregues para os pais/responsáveis pelas crianças dessas escolas de Educação Infantil,
fazendo parte de uma documentação pedagógica maior acionada na escola, ou seja, além
desses exemplares, há ensaios fotográficos, descrições acompanhadas em montagens de
vídeos enviados e exposições das produções das crianças nos corredores da escola, entre
outros.
A escolha das duas redes de ensino, ou seja, as redes municipal e particular, foi
intencional, uma vez que são as esferas que atendem o nível da Educação Infantil no Brasil
(conforme previsto legalmente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei
número 9.394/96). A escolha das duas escolas de Educação Infantil ocorreu por duas razões
centrais: a escola particular fez parte do cenário profissional onde atuei como docente, o que,
no meu ponto de vista, facilitou minha entrada e aceitação por parte da direção da escola e dos
professores. Já a direção da escola municipal, ao saber do desenvolvimento de minha
pesquisa, mostrou-se interessada em compartilhar os exemplares de documentação
pedagógica produzidos pelos professores, uma vez que adotou mudanças nas maneiras de
expressar as aprendizagens das crianças. As direções das escolas de Educação Infantil
assinaram a Carta de Anuência (APÊNDICE B), assim como o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (APÊNDICE C).
37

O envolvimento dos professores dessas duas escolas de Educação Infantil deu-se de


forma voluntária mediante envio de suas produções para a pesquisadora tão logo a direção
autorizou a realização desta pesquisa. Por questões éticas, os professores envolvidos também
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (APÊNDICE D), documento que,
além de formalizar a pesquisa, garantiu o sigilo nominal, tanto das escolas quanto dos
professores. Esta pesquisa foi analisada pelo Comitê de Ética da Unisinos por
encaminhamento via Plataforma Brasil, recebendo aprovação no mês de setembro de 2015,
seguindo as orientações da Banca examinadora no momento de qualificação do Projeto de
Tese.
Os exemplares de documentação pedagógica foram repassados a mim na forma digital,
o que possibilitou alterações no que diz respeito ao sigilo nominal da escola, dos professores e
das crianças. Nesse sentido, as crianças que aparecem nas fotografias e nas escritas podem ser
consideradas participantes indiretas nesta pesquisa. Explico: os professores repassaram os
seus registros, referentes a aprendizagens, conquistas e desenvolvimento das crianças em
relação ao processo escolar. Essas produções docentes contêm fotografias das crianças, as
quais passaram por um tratamento digital em que foram borradas e/ou tarjadas, evitando a
exposição das crianças e o reconhecimento de suas identidades. Como as crianças não foram
participantes diretas, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido aos seus
pais/responsáveis não se fez necessário.
A seguir, apresento um dos exemplares de práticas de registro docente denominadas
de documentação pedagógica17 desenvolvido por uma professora que atua numa escola de
Educação Infantil do interior do Rio Grande do Sul, Brasil18:

17 Considero importante dizer que não fiz alterações na escrita das professoras que produziram esses registros de
documentação pedagógica em termos de organização das frases, ortografia, etc.
18 Esclareço que o nome dos professores foi excluído do documento e que o nome das crianças foi alterado.
Esses exemplos foram elaborados por diferentes professores, de diferentes escolas de Educação Infantil (tanto
públicas quanto privadas) de município do interior do Rio Grande do Sul, Brasil. Não tenho o objetivo de
detalhar a formação desses professores nem a idade das crianças, nem mesmo busco comparar as práticas de uma
escola com a outra. Interessa-me olhar para esses materiais como um corpus empírico, uma materialidade para
esta investigação.
38

Imagem 1 – Exemplar de documentação pedagógica

Fonte: Escola Municipal do interior do Rio Grande do Sul/RS, 2014.

Ao longo do período de seleção dos exemplares, não foi a quantidade que mostrou a
relevância do material, já que minha atenção não foi dispensada na busca quantitativa desse
material entre o corpo docente nas inúmeras escolas do interior do Rio Grande do Sul.
Tampouco dediquei atenção para encontrar o que está por trás daquilo que é apresentado nos
exemplares cedidos pelos professores da Educação Infantil e descobrir quem elaborou aquele
registro (quem relatou, quem escreveu). Ao analisar tais exemplares, podemos pensar que eles
não têm origem nos professores que produziram o material, nos sujeitos falantes. Trata-se de
uma série de condições que acabam por determinar que tais discursos apareçam e outros não.
Dito de outra forma, a origem desses exemplares não está nos indivíduos que os elaboraram
(até porque se perguntar pela origem não seria produtivo nesta pesquisa e não me permitiria
cercar o problema de pesquisa), mas eles participam daquilo que Foucault chama de “teia
discursiva” ou formação discursiva19, inscrevendo-se numa rede complexa de poder e saber
que dispõe de regimes de verdades de determinadas épocas. Importa dizer também que minha
pretensão não foi esgotar a análise dos materiais de pesquisa, nem almejar a sua totalidade ou
compará-los entre si; antes, preferi pensar sobre suas condições múltiplas de produção, sobre
as recorrências, as conexões, os encontros, os bloqueios, as possibilidades de agrupamento

19 “O tipo de análise que pratico não trata do problema do sujeito falante, mas examina as diferentes maneiras
pelas quais o discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que o poder está
implicado, e para o qual o poder funciona. Portanto, o poder não é nem fonte nem origem do discurso. O poder é
alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo
estratégico de relações de poder”. (FOUCAULT, 2006, p. 253).
39

que os constituem e o conjunto de acontecimentos que os põem em relação no tempo


presente20.
Na construção da Tese, foram seguidas cinco dinâmicas diferentes para apresentar os
materiais de pesquisa, ou seja, cinco diferentes estratégias e modos de escrita:
- citação curta constituída por excerto retirado do material de pesquisa aparecendo ao
longo do trabalho escrita como as demais citações, porém, destacada em itálico, para
diferenciar-se das citações de fundamentação teórica;
- citação longa constituída por excerto retirado do material de pesquisa destacada em
caixa de texto, a fim de diferenciar-se das citações longas da fundamentação teórica;
- organização de um bloco de citações dentro de quadros numerados e nomeados;
- imagens que apresentam os exemplares produzidos pelos professores (como a
imagem 1, já apresentada);
- epígrafes que se relacionam com o conteúdo de cada capítulo ou seção, destacadas
em itálico para diferenciar-se das demais epígrafes advindas de fundamentação teórica.
Tais estratégias de escrita são mais evidentemente apresentadas na última seção da
Parte I e em toda a Parte II da Tese. Antes de encerrar esta seção, ressalto que, na análise dos
referenciais italianos e dos exemplares de documentação pedagógica, desenvolvi dois
movimentos articulados de leitura e análise: primeiro, estudo de alguns documentos legais do
Ministério da Educação do Brasil, ou seja, aquelas publicações mais influentes voltadas à
Educação Infantil; segundo, reunião e leitura de artigos, dissertações e teses, a fim de dialogar
com as pesquisas já desenvolvidas sobre a temática da Tese.
Em relação aos documentos legais do Ministério da Educação, meu objetivo foi
perceber os ditos sobre as práticas de registro e se a expressão documentação pedagógica
fazia parte dos discursos compreendidos como oficiais em nível nacional. A análise dos
documentos foi feita de forma cronológica. As publicações analisadas foram: Referencial
Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998), Política Nacional de Educação
Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à Educação (2006), Parâmetros
Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (2006), Parâmetros Básicos de
Infraestrutura para instituições de Educação Infantil (2006), Indicadores da Qualidade na
Educação Infantil (2009), Política de Educação Infantil no Brasil: Relatório de Avaliação

20 Tomar tal materialidade como acontecimento, uma vez que se trata “de considerar o discurso como uma série
de acontecimentos, de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos – que podemos chamar de
acontecimentos discursivos – mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema econômico, ou ao
campo político, ou às instituições. Considerando sob esse ângulo, o discurso não é nada além de um
acontecimento como os outros, mesmo se, é claro, os acontecimentos discursivos têm, em relação aos outros
acontecimentos, sua função específica”. (FOUCAULT, 2006, p. 255-256).
40

(2009), Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das
crianças (2009), Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009) e
Educação Infantil: Subsídios para construção de uma sistemática de avaliação (2012).
Todos esses documentos legais, obviamente, não contrariam aquilo que está previsto
no artigo 31 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei número 9.394/96), na
Seção II, Da Educação Infantil: “a avaliação far-se-á mediante acompanhamento e registro do
seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino
fundamental”. O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998),
organizado em três volumes (Introdução; Formação Pessoal e Social; Conhecimento de
Mundo), apresenta seis eixos de trabalho, equivalentes às áreas de conhecimento (Movimento,
Música, Artes Visuais, Linguagem Oral e Escrita, Natureza e Sociedade, Matemática), e, para
cada eixo, há uma seção intitulada “Observação, registro e avaliação formativa”. Em síntese,
essa seção corresponde a orientações gerais aos professores, reforçando a importância da
observação cuidadosa, da avaliação contínua, da reorganização e adequação do planejamento,
da reflexão, trazendo a expressão da documentação pedagógica para a prática docente. Já os
três documentos –Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a
seis anos à Educação (2006), Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil
(2006) e Parâmetros Básicos de Infraestrutura para instituições de Educação Infantil
(2006)– abordam fundamentos sobre a qualidade, além de apresentarem competências dos
sistemas de ensino (federal, estadual e municipal) e a caracterização das instituições de
Educação Infantil no Brasil, não especificando nenhum item sobre avaliação da aprendizagem
infantil.
O documento Indicadores da Qualidade na Educação Infantil (2009) aborda sete
dimensões com indicadores que ajudam a avaliar a qualidade no atendimento de crianças de
zero a cinco anos. Na dimensão “Planejamento Institucional”, há um indicador que avalia o
“registro da prática docente”, se o professor faz registros sobre as aprendizagens da criança e
do grupo e se o professor “possui documentação organizada sobre as crianças, como ficha de
matrícula, cópia da certidão de nascimento, cartão de vacinação e histórico de saúde”. (2009,
p. 36). Já na dimensão “Formação e condições de trabalho das Professoras e demais
Profissionais”, há um indicador que avalia se “os familiares recebem relatórios sobre as
aprendizagens, vivências e produções das crianças, pelo menos, duas vezes ao ano”. (2009, p.
56).
O documento intitulado Política de Educação Infantil no Brasil: Relatório de
Avaliação (2009) é composto de três partes, sendo a primeira a tradução, na íntegra, do
41

Relatório de Avaliação da Política de Cuidado e Educação da Primeira Infância no Brasil; a


segunda apresenta alguns textos que subsidiaram o estudo, elaborados por especialistas
brasileiros contratados pelo projeto; a terceira traz um capítulo de atualização de informações,
incluindo aspectos das políticas públicas e dados sobre a oferta de serviços na Educação
Infantil. Chama-me atenção que tal publicação, em relação à documentação ou à importância
do registro na prática docente, não apresenta nenhuma referência. Especialmente no artigo
intitulado Qualidade na Educação Infantil: alguns resultados de pesquisa, em que os autores
fazem uma revisão bibliográfica sobre a qualidade na Educação Infantil, analisando diversas
questões, como os profissionais e sua formação, condições de funcionamento e práticas
cotidianas, as propostas pedagógicas e os currículos e as relações com famílias, não há
nenhuma referência sobre a temática. Já o documento Critérios para um atendimento em
creches que respeite os direitos fundamentais das crianças (2009) evidencia uma criança
repleta de direitos, cabendo aos profissionais acompanhar seu crescimento e desenvolvimento
e manter as famílias informadas, não fazendo constar nenhuma escrita mais detalhada sobre as
práticas de registro.
A publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009),
nas intenções do MEC, busca contribuir para a disseminação das Diretrizes Curriculares para
a Educação Infantil, entendendo o atendimento em creches e pré-escolas como direito social
das crianças e como dever do Estado com a Educação. O campo da Educação Infantil vive um
intenso processo de revisão de concepções sobre educação de crianças em espaços coletivos e
de seleção e fortalecimento de práticas pedagógicas mediadoras de aprendizagens e do
desenvolvimento das crianças, garantindo a continuidade no processo sem antecipação de
conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental. As práticas pedagógicas da
Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira, e,
especialmente no item da avaliação (2009, p. 29), o documento pede que as instituições criem
procedimentos para acompanhar o trabalho pedagógico e para avaliar o desenvolvimento das
crianças, garantindo: a observação crítica e criativa das atividades, das brincadeiras e
interações das crianças no cotidiano; a utilização de múltiplos registros realizados por adultos
e crianças (relatórios, fotografias, desenhos, álbuns etc.); a documentação específica que
permita às famílias conhecer o trabalho da instituição junto às crianças e os processos de
desenvolvimento e aprendizagem da criança.
O documento Educação Infantil: Subsídios para construção de uma sistemática de
avaliação (2012) sintetiza a produção do Grupo de Trabalho (GT) de Avaliação da Educação
Infantil, instituído pela Portaria Ministerial nº 1.147/2011. Além de versar sobre a avaliação
42

institucional das escolas e das políticas e programas educacionais (avaliação da Educação


Infantil), o documento apresenta orientações sobre a avaliação na Educação Infantil. De
acordo com esse documento, os registros devem ser variados, “tais como a escrita, a gravação
de falas, diálogos, fotografias, vídeos, os trabalhos das crianças etc.” (BRASIL/MEC, 2012, p.
14), e as professoras devem anotar o que observam, descrever o envolvimento das crianças
nas atividades, as iniciativas, as interações entre as crianças. O objetivo desse modo de
avaliação é “melhorar a forma de mediação do professor para que o processo de
aprendizagem alcance níveis sempre mais elevados. A avaliação será sempre da criança em
relação a si mesma e não comparativamente com as outras crianças”. (BRASIL/MEC, 2012,
p. 14-15). Os potenciais, interesses e necessidades das crianças são tomados como elementos
organizadores do planejamento da professora; nesse contexto, “a avaliação ocorre
permanentemente e nunca como ato formal de teste, comprovação, atribuição de notas e
atitudes que sinalizem punição”. (BRASIL/MEC, 2012, p. 15).
Pretendi mostrar aqui, neste breve apanhado histórico, que, de modo geral, os
documentos legais publicados em nível nacional sempre enfatizaram a importância da
observação e do registro docente no crescimento e desenvolvimento da criança. Porém, a
forma de realizar esses registros apenas é descrita e detalhada, no âmbito do Governo Federal,
nos últimos dois documentos elaborados, a partir de 2009. Poderia assinalar uma aproximação
com as técnicas mais refinadas de registro expostas no referencial de Reggio Emilia, ou seja,
além da escrita do professor, há que se utilizarem outros registros, “tais como a escrita, a
gravação de falas, diálogos, fotografias, vídeos, os trabalhos das crianças etc.”.
(BRASIL/MEC, 2012, p. 14-15). Vimos certa inserção também nos discursos governamentais
e nas orientações da esfera pública.
Em relação ao levantamento de artigos, teses e dissertações em língua portuguesa
divulgadas em bancos específicos de universidades ou em bancos da Capes e CNPq sobre a
temática da documentação pedagógica a partir do ano de 1999, data de publicação da primeira
obra sobre a abordagem italiana no Brasil, percebo que a temática vem ocupando espaço
crescente, em especial, na última década21. Também busquei selecionar artigos publicados em
revistas eletrônicas de educação que tratam sobre a temática22. Encontrei muitos estudos que
analisam a relevância dos registros dos professores sobre suas próprias práticas como

21 Destaco aqui algumas dissertações e teses sobre a temática: Mendonça (2009), Azevedo (2009), Marques
(2010), Silva (2011), Baracho (2011), Focchi (2013), Vieira (2013), Guimarães (2014), Cardoso (2014) e
Simiano (2015), entre outras.
22 Destaco aqui alguns artigos publicados em periódicos: Sá (2010), Gontijo (2011), Marques e Almeida (2011a,
2011b, 2012), Albarez e Gontijo (2012), Silva, Bertomeu e Bertomeu (2014), Mesquita (2014) e Marques
(2015), entre outros.
43

instrumento de reflexão, planejamento e compreensão das suas ações com os alunos. Alguns
estudos também marcam a autoria do professor no momento em que ele registra sua prática
docente e reflete sobre ela, assinalando uma prática reflexiva. Todavia, como neste trabalho
meu interesse está nas práticas de registro docente para documentação pedagógica – esse novo
formato, instrumento, possibilidade de registro docente –, detive-me nas produções que
também têm como foco essa problemática.
Ao longo dos últimos anos, especialmente na entrada do século XXI, é possível
perceber um crescimento nas pesquisas e publicações (artigos, dissertações e teses) sobre
como a documentação pedagógica, compreendida como subsídio para uma prática docente
reflexiva e mediadora, qualifica e aperfeiçoa o trabalho pedagógico, além de ser suporte para
a organização do planejamento, possibilitar conhecer mais as crianças e ampliar a participação
da família no processo escolar dos filhos. Na procura incessante que desenvolvi sobre a
temática, não li nenhum trabalho que pudesse desconfiar da documentação ou que a inserisse
numa lógica social maior, além da escola e seus muros, e mostrar como nos constituímos
enquanto professores e crianças por meio dessas práticas.
Na Tese de Doutorado de Marques (2010), por exemplo, há um estudo bastante
aprofundado sobre a documentação pedagógica (expressão cunhada na Itália por volta dos
anos 1960 e 1970, num contexto em que era preciso produzir novas formas de fazer escola,
contrariando os discursos dominantes existentes). A autora constata que, no Brasil, o termo
que mais se aproxima da documentação é registro, porém, ela diferencia os dois termos,
percebendo que o segundo está a serviço da documentação, “entendida como um processo
mais amplo de sistematização e construção de memória sobre o trabalho pedagógico, sobre o
processo de desenvolvimento da criança, sobre a trajetória de um grupo ou de uma escola”.
(MARQUES, 2010, p. 123).
Na Dissertação de Mestrado de Azevedo (2009), realizada na Universidade do Minho,
em Portugal, a pesquisadora aponta que a documentação pedagógica foi uma conquista do
século XX que possibilitou aos profissionais da infância descrever, compreender, interpretar e
atribuir significados ao cotidiano pedagógico e à aprendizagem infantil. Ao colocar em
diálogo duas culturas – a das crianças e a dos adultos –, a pesquisadora percebe que a
documentação é um excelente processo de autoavaliação das crianças, permitindo refletir
sobre conhecimentos, sentimentos, competências e ideias que estão construindo.
Como pudemos observar, há uma inclinação bastante pontual emergindo dos
referenciais italianos e das pesquisas, que, por ora, parecem festejar os benefícios da
documentação nas práticas escolares. Como apontei na parte inicial deste trabalho, no Brasil,
44

antes da entrada dos referenciais italianos, temos publicações que abordam a importância do
registro na prática docente, entretanto, a utilização de outras ferramentas, como fotografia,
filmagens e transcrições, é fortemente pontuada pela abordagem italiana. Assim, posso
concluir que, nos últimos anos, muitos estudos e pesquisas vêm abordando a criança como
indivíduo de direito e protagonista de sua vida; aos adultos, cabe desenvolver cada vez mais a
escuta atenta ao que dizem e manifestam as crianças, de modo a considerar suas perspectivas
sobre si, sobre os outros e sobre o mundo.
A documentação pedagógica, nas teses, dissertações e artigos analisados, é
compreendida como uma possibilidade de revelar o processo de aprendizagem das crianças,
buscar envolvimento da família, bem como qualificar a formação do professor, uma vez que
ele estará atento àquilo que as crianças produzem na escola (suas falas, seus movimentos, seus
modos de brincar, suas produções). Em síntese, a documentação pedagógica é compreendida,
de modo geral, como um processo que possibilita a avaliação do que vive cada criança no
espaço escolar infantil, sendo destacados os seus benefícios e contribuições para a Educação
Infantil, desde que seja desenvolvida adequadamente.
Mas como tais práticas operam enquanto tecnologia de governamento da infância,
produzindo modos muito particulares de ser sujeito infantil na escola contemporânea? Sobre
tal questão, percebo que há poucos estudos, pesquisas e produções acadêmicas. Por esse
motivo, passo a explicar os conceitos selecionados como centrais para responder a pergunta
acima e movimentar o empreendimento desta Tese: práticas, tecnologias e
governamentalidade, os quais foram colocados em funcionamento ao movimentar a
materialidade de análise. Contudo, considero importante tecer alguns breves comentários
sobre o tratamento ético conferido aos exemplares da documentação pedagógica produzidos
pelos professores de Escolas de Educação Infantil do interior do Rio Grande do Sul, Brasil.

1.2.1 Questões éticas na pesquisa

Pretendo discorrer sobre três aspectos que considero importantes, voltados às questões
éticas desta pesquisa, a qual envolve imagens de crianças: 1) a ética na pesquisa com seres
humanos; 2) a entrada no campo e o consentimento para desenvolver a pesquisa; 3) o sigilo
nominal posto em tensionamento. Uma ressalva se faz necessária: esta pesquisa foi
encaminhada, analisada e aprovada pelo Comitê de Ética da Unisinos, mediante
encaminhamento via Plataforma Brasil (esta foi uma orientação da Banca Examinadora no
momento de qualificação do Projeto de Tese). O Comitê de Ética analisou o Projeto de Tese,
45

bem como todos os documentos formais: Carta de Anuência e Termos de Consentimento


Livre e Esclarecido. Após alguns ajustes nesses documentos, a pesquisa foi aprovada pelo
Comitê de Ética. Contudo, considero que o compromisso ético do pesquisador vai muito além
de uma aprovação via Plataforma Brasil, uma vez que analisamos produções feitas por
professores a partir de sua docência junto a crianças muito pequenas da Educação Infantil.
Nesse sentido, o primeiro aspecto sobre o qual discorro envolve a questão ética na
pesquisa com seres humanos, que não compreende apenas a “ética prescritiva” – dos códigos,
dos consentimentos, das autorizações, das permissões para estar ali –, mas também a “ética
dialógica”, caracterizada pela capacidade interacional do pesquisador com os pesquisados.
(SPINK, 2000). A permissão dos sujeitos envolvidos na pesquisa vai além da assinatura do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e a ética do pesquisador em relação aos
participantes não está condicionada apenas ao momento da pesquisa de campo. A ética
perpassa todos os momentos da pesquisa, desde o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido até o momento de interpretação, análise e publicação dos resultados da pesquisa.
Spink (2000) ressalta que é preciso estabelecer uma relação de confiança em que seja
assegurado aos participantes o direito de não-revelação ou de revelação velada. Ter
sensibilidade em relação aos limites da revelação de informações confidenciais, bem como
respeitar as estratégias de enfrentamento presentes na interlocução, são aspectos importantes
para o pesquisador. Graue e Walsh (2003, p. 98) afirmam que “o investigador não é a única
pessoa a tomar decisões sobre posições e papéis. Os participantes também tomam e retomam
decisões à medida que vão conhecendo melhor a situação e se apercebem de vantagens e
dificuldades”.
O segundo aspecto trata sobre a entrada no campo e o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido (TCLE). Ao conversar com o gestor e com os professores das escolas
selecionadas sobre os objetivos, metodologia e trato com o material empírico da pesquisa, os
adultos receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Compreendo que o TCLE
formaliza um acordo inicial que sela a colaboração e a abertura do espaço para realização da
pesquisa, assegurando que o anonimato das pessoas será preservado, que as informações serão
utilizadas para fins acadêmicos, que o participante pode escolher participar ou não da
pesquisa e que poderá sair dela quando desejar, conforme regras constantes na Resolução
196/96 do Conselho Nacional de Saúde. (BRASIL, 1996). Entretanto, o TCLE, por si só, não
garante a aceitação do pesquisador por parte das pessoas envolvidas, ou seja, a aprovação não
se caracteriza apenas por uma assinatura no papel. É preciso estabelecer uma relação que
envolve respeito, confiança, acolhimento das manifestações e cumplicidade entre sujeitos e
46

pesquisador. Entendo que é por meio da convivência ética que o pesquisador vai capturar
formas para consentir aquilo que é possível analisar e publicar, separando o que é
extremamente confidencial.
O terceiro aspecto diz respeito ao sigilo nominal dos participantes na pesquisa. Kramer
(2002) problematiza a manutenção ou não do sigilo nominal, especialmente nas pesquisas
com crianças, pois percebe que o anonimato tem seu lado positivo somente quando protege as
crianças em casos específicos (violência da família diante de seus relatos, relações
conflituosas entre professor e aluno, exposição negativa das instituições nas quais elas se
encontram). A autora sinaliza uma contradição em utilizar referencial teórico que ressalta as
crianças como protagonistas sociais, produtoras de cultura, mas mantendo-se sigilo e
anonimato de suas identidades, negando e encobertando suas autorias. Entretanto, nesta
pesquisa, opto por manter o sigilo nominal e a privacidade, tanto das escolas envolvidas,
quanto dos professores e das crianças. Também, reforço novamente, que, nas fotografias de
crianças da documentação pedagógica cedida pelos professores, os rostos das crianças serão
borrados e/ou tarjados, a fim de evitar o reconhecimento de suas identidades. O que importa
aqui não é a identidade de cada sujeito, mas as práticas que circulam em determinados
espaços e tempos, que produzem e constituem discursos verdadeiros.

1.3 Sobre os conceitos em funcionamento: uma analítica das práticas de registro

Inicio esta seção discutindo os conceitos centrais selecionados para sustentar a


presente Tese: práticas, tecnologias, governamentalidade. Tais conceitos são aqui tomados
como conceitos-ferramentas23 que me permitiram olhar para o problema de pesquisa de certos
modos, colocando-os em funcionamento para escrutinar a materialidade de análise. Por isso,
sem a pretensão de esgotar tais conceitos, creio que seja importante explicar como os
compreendo e os modos de operar e colocá-los em funcionamento neste estudo. Michel
Foucault, em suas diferentes produções, mostra-nos a produtividade dos seus conceitos em
operação com a história do presente, ou seja, o filósofo evidencia que não há conceito em si
ou definido a priori, mas um conjunto de conceitos postos em funcionamento na sua
operacionalidade prática.

23 A metáfora da “caixa de ferramentas” é discutida por Foucault e Deleuze em uma entrevista, na qual Deleuze
afirma que “uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada a ver com o significante... É preciso que isso
sirva, é preciso que isso funcione. E não para si mesma”. (FOUCAULT, 2006, p. 39).
47

Práticas: As práticas (mesmo que não determinadas conceitualmente), numa


perspectiva foucaultiana, são geralmente configuradas como foco de análise24. Como destaca
Castro-Gómez (2010), para Foucault, prática é “aquilo que realmente os homens fazem
quando falam ou quando agem. Ou seja, as práticas não são expressão de algo que esteja
‘atrás’ do que se faz (o pensamento, o inconsciente, a ideologia ou a mentalidade), senão que
são sempre manifestas”. (CASTRO-GÓMEZ, 2010, p. 28). Nesse sentido, analisar as práticas,
ou o regime de práticas, nunca implica analisar algo que está fora delas, pois o seu sentido é
imanente. “As práticas, em suma, sempre estão ‘em ato’ e nunca são enganosas” (CASTRO-
GÓMEZ, 2010, p. 28), tanto é que Foucault afirma que gostaria de “acontecimentalizar”25 um
conjunto de práticas “para fazê-las aparecer como regimes diferentes de jurisdição e de
veredicto”. (FOUCAULT, 2006, p. 343).
Veiga-Neto (2015a) contribui para pensar o conceito de práticas ao tratar sobre as
relações entre teoria e prática. O autor afirma que práticas são ações, em geral, ensinadas e
aprendidas, realizadas habitualmente, sem que estivesse implícita qualquer dependência entre
tais ações e aquilo que se podia pensar e dizer sobre elas. Assim, tais ações não estariam
determinadas por considerações estratégicas e táticas que viriam de fora delas. Podemos
pensar a prática como o domínio daquilo a ser descrito, analisado e problematizado e, ao
mesmo tempo, como o domínio das próprias descrições, análises e problematizações que são
colocadas em movimento. (VEIGA-NETO, 2015a).
Conforme Castro (2009), “Foucault entende por práticas a racionalidade ou a
regularidade que organiza o que os homens fazem (Sistema de ação na medida em que estão
habitados pelo pensamento), que têm um caráter sistemático (saber, poder, ética) e geral
(recorrente) e, por isso, constituem uma experiência ou um pensamento”. (2009, p. 338).
Assim, as práticas definem-se pela regularidade e pela racionalidade dos modos de fazer.
(CASTRO, 2009, p. 412). Partindo dessa perspectiva, a materialidade de análise desta Tese é
tomada como prática. Práticas que mostram o que fazer, os modos de fazer, a racionalidade 26

24 Michel Foucault afirma: “Se eu estudei ‘práticas’ como as do sequestro de loucos, ou da medicina clínica, ou
da organização das ciências empíricas, ou da punição legal, foi para estudar este jogo entre um ‘código’ que
regula maneiras de fazer (que prescreve como selecionar as pessoas, como educar os indivíduos etc.) e uma
produção de discursos verdadeiros que servem de fundamento, de justificação, de razões de ser e de princípio de
transformações a essas mesmas maneiras de fazer”. (FOUCAULT, 2006, p. 342-343).
25 Michel Foucault explica a ideia de “acontecimentalizar”, em Ditos e Escritos IV. (2006, p. 339 – 341).
26 Numa entrevista com Dillon (1979), Foucault afirma que seu trabalho não teve como objetivo fazer a história
das instituições ou das ideias, mas sim, a história da racionalidade. Para o filósofo, racionalidade “é o que
programa e orienta o conjunto da conduta humana. Há uma lógica tanto nas instituições quanto na conduta dos
indivíduos e nas relações políticas. Há uma racionalidade mesmo nas formas violentas. O mais perigoso, na
violência, é sua racionalidade”. (FOUCAULT, 2006, p. 319). A racionalidade, explica Foucault, não é
simplesmente princípio de teoria e de técnicas científicas, tampouco não apenas produz formas de conhecimento
48

nas maneiras de fazer, as recorrências e as regularidades. São práticas constituídas por


tecnologias de si e tecnologias de poder que, imbricadas entre si, operam nos modos de
subjetivação dos sujeitos. Práticas como ações que regulam, controlam, governam a condução
das condutas27 dos outros e de si mesmo e onde operam, portanto, tecnologias de governo de
si e da população. Práticas como produtoras de pessoas. Práticas discursivas e não-discursivas
que estão na “ordem do discurso”. Dessa forma, interessar-se pela racionalidade das práticas
de registro docente implica analisá-las como superfícies de análise por onde as tecnologias se
tornam possíveis, acionadas por meio de rituais nos modos de fazer os registros em
determinados tempos e lugares.
Tecnologias: Esta Tese compreende as práticas de registro docente como uma
tecnologia de governamento da infância. A tecnologia, numa perspectiva foucaultiana, está
imbricada nas relações de saber, poder e ética. A noção de poder não emerge de uma fonte
única ou de uma instância original (como o Estado, por exemplo), mas é entendida como uma
ação sobre a ação dos outros, “é um modo de ação de uns sobre os outros” (FOUCAULT,
2010, p. 287), uma ação que tenta governar, não de forma violenta, mas natural, necessária e
produtiva. “No interior das relações de poder, todos participam, todos são ativos” (VEIGA-
NETO, 2011, p. 119), entretanto, “o poder não é da ordem do consentimento”. (FOUCAULT,
2010, p. 287). Assim, nas teorizações foucaultianas, saber e poder engendram-se e articulam-
se, sendo que os “saberes se constituem com base numa vontade de poder e acabam
funcionando como correias transmissoras do próprio poder a que servem”. (VEIGA-NETO,
2011, p. 117). O poder, para Foucault, materializa-se no conjunto de práticas discursivas e
não-discursivas dos diferentes tecidos societários e não pode ser compreendido como
atomizado no sujeito, como se este possuísse o poder. O sujeito é um efeito de relações de
poder, e este, por sua vez, “opera como se fosse um campo elétrico em que diferentes
circuitos ou forças provocam efeitos específicos”. (CANDIOTTO, 2013, p. 81-82). O saber
entra como um guia do poder, e “todos os domínios de saber, assim, têm sua gênese em
mecanismos de poder”. (GADELHA, 2013, p. 140).
A noção de poder seria “um poder sem centro, ou antes, com múltiplos centros, poder
que era produtor de significados, de intervenções, de entidades, de processos, de objetos, de

ou tipos de pensamento, “mas está ligada por laços complexos e circulares a formas de poder”. (FOUCAULT,
2006, p. 330). O autor, em seus estudos, pretendeu ver como as formas de racionalidades se inscrevem em
sistemas de práticas, pois “é verdade que não há práticas sem um certo regime de racionalidade”. (FOUCAULT,
2006, p. 342). Dean contribui para esclarecer o termo: “a racionalidade é simplesmente qualquer forma de pensar
que se empenha em ser relativamente claro, sistemático e explícito quanto a aspectos de existência ‘externa’ ou
‘interna’, quanto a como as coisas são ou como deveriam ser”. (DEAN, 1999, p. 10).
27 “Conduta” aqui se refere a nossos hábitos, nossas ações e mesmo ao nosso comportamento, isto é, o conjunto
articulado de nossas maneiras”. (DEAN, 1999, p. 10).
49

vestígios escritos e de vidas". (MILLER; ROSE, 2012, p. 19). Entende-se o poder não como
violento e negativo, que deve ser reduzido ou extinto das relações humanas (como, por
exemplo, no entendimento das teorizações marxistas, em que o poder é exercido pela classe
dominante sobre a classe operária, um domínio de poder que deveria ser quebrado pela
libertação e emancipação). A violência age sobre o corpo e sobre as coisas: “ele força, dobra,
quebra, destrói; ele fecha todas as possibilidades”. (FOUCAULT, 2010, p. 287). A violência
envolve passividade, resistência e redução de poder28. Porém, a relação de poder produz um
poder que traz liberdade, um poder que seduz, “ele opera sobre o campo de possibilidades em
que se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou
dificulta, amplia ou limita, torna mais ou menos provável”. (FOUCAULT, 2010, p. 288).
E é por meio das relações de poder que Foucault propõe uma analítica das tecnologias
e estratégias de poder, tanto em relação à condução da conduta dos outros (o governo dos
outros), quanto em termos de condução da conduta de si mesmo (governo de si)29. Dito de
outro modo, o filósofo preocupa-se em desenvolver uma genealogia das formas de governar o
indivíduo e, para tal exercício, analisa um conjunto de técnicas, tecnologias, estratégias e
táticas que são colocadas em ação em determinados contextos histórico-sociais, criando
modos de subjetivação bastante particulares de seu tempo. É na relação de poder consigo e
com os outros que Foucault vai nomear os termos tecnologias e estratégias, indicando formas
específicas nas quais o poder é exercido, em que o poder vai operar30. No entanto, é
importante dizer que o filósofo não liga a expressão tecnologia a uma máquina concreta ou a
um instrumento palpável que está nas mãos do detentor do poder, tampouco utiliza o termo

28 Veiga-Neto (2008) expõe a distinção entre poder e violência. A violência não tem justificativa para aquele
violentado, ela viola, quebra, dói, impõe, enquanto o poder seduz, negocia, constrói, autojustifica e conta com a
adesão daquele que é o seu objeto. O poder convence e solicita o reconhecimento do outro, ele é positivo, pois
produz. “Enquanto o poder dobra – porque se autojustifica e negocia e, com isso, se autolegitima, – a violência
quebra, porque se impõe por si mesma. Enquanto aquele se dá agonisticamente, esse se dá antagonicamente”.
(VEIGA-NETO, 2008, p. 29).
29 Mitchell Dean (1999, p.21), ao estudar a analítica de poder em Michel Foucault, afirma que “uma analítica de
um particular regime de práticas busca, no mínimo, identificar a emergência daquele regime, examinar as
múltiplas fontes de elementos que o constituem e seguir os diversos processos e relações pelas quais estes
elementos são reunidos em formas relativamente estáveis de organização e prática institucionais. Examina como
este regime dá origem e depende de formas particulares de conhecimento e como, em conseqüência disso, torna-
se alvo de vários programas de reforma e mudança. Considera a dimensão técnica ou tecnológica deste regime e
analisa suas técnicas, suas instrumentalidades e os mecanismos característicos através dos quais opera, tenta
realizar as suas metas e através dos quais tem também uma multiplicidade de efeitos”.
30 Rose (2001), com base no arsenal foucaultiano, afirma que tecnologia se refere “a qualquer agenciamento ou
a qualquer conjunto estruturado por uma racionalidade prática e governado por um objetivo mais ou menos
consciente”. (p. 38). Já Miller e Rose (2012, p. 46) utilizam o termo tecnologias para “insinuar uma abordagem
particular da análise da atividade de governar, um enfoque que presta grande atenção aos mecanismos através
dos quais autoridades de vários matizes têm buscado modelar, normalizar e instrumentalizar a conduta, o
pensamento, as decisões e as aspirações dos outros, a fim de alcançar os objetivos que eles consideram
desejáveis”.
50

para expressar uma entidade fechada; pelo contrário, ele o usa de forma mais ampla,
justamente pela sua compreensão de poder, relacionando a tecnologia com práticas mundanas
e dispersas, ligadas a múltiplos processos que a constituem em suas racionalidades.
Noguera-Ramírez (2013) afirma que o deslocamento da análise que Foucault
desenvolve nos seus estudos passa da arte de governar, centrada na governamentalização do
Estado Moderno (entre os séculos XVI e XIX), para a “análise do governo como problema
ético na constituição do sujeito através de práticas de si” (2013, p. 77), ou melhor, Foucault
passa a interessar-se nas tecnologias de dominação individual, nas tecnologias do eu, ou em
como o indivíduo age sobre si mesmo, a relação de si consigo mesmo. Tais tecnologias de si,
ou tecnologias do eu, compreendem formas pelas quais os indivíduos vivenciam,
compreendem, julgam e conduzem a si mesmos. Para Foucault, as tecnologias do eu ou
tecnologias de si são práticas que permitem aos indivíduos efetuar certo número de operações
sobre seu corpo e sua alma, sobre seus pensamentos e sua conduta, a fim de obter uma
transformação de si mesmos. (FOUCAULT, 2010).
Com isso, quero assinalar que a analítica foucaultiana do exercício do poder é sempre
sobre os outros (a política) e sobre si mesmo (a ética); ao preocupar-se com as questões de
poder, Foucault mostra os deslocamentos nas formas de governar os homens nas sociedades.
Para o autor, há mutações nos modos como as tecnologias operam em determinados contextos
históricos, entretanto, as tecnologias de poder e as tecnologias de si estão sempre imbricadas.
Como artes de governar os homens, Foucault destaca as tecnologias de poder pastoral, poder
disciplinar e o biopoder31.
Tecnologias do poder pastoral: o poder pastoral – originado na sociedade hebraica, no
Oriente, ampliando-se para as sociedades ocidentais por meio do cristianismo e da igreja
cristã e, posteriormente, transferindo-se para uma racionalidade política baseada numa noção
de Estado – marca um deslocamento histórico nas artes de governar, provocando “uma grande
crise da experiência ocidental da subjetividade”. (FOUCAULT, 2010, p. 279). Tal poder não
mais é exercido sobre a terra e o território (como na política dos gregos), mas sobre o
rebanho, reunindo, guiando e conduzindo os indivíduos até então dispersos, característica
bastante particular da tradição judaico-cristã, cujo Deus, e unicamente Ele, é o pastor de seu
povo. Nessa lógica, basta que o pastor desapareça para que o rebanho se disperse novamente;

31 O artigo intitulado “A Emergência de um saber psicológico e as políticas de individualização”, escrito por


Nardi e Silva (2004), apresenta os três modelos de sociedade analisados por Foucault, os quais produzem
diferentes processos de subjetivação: as sociedades de soberania, as sociedades disciplinares e as sociedades de
controle. Os autores destacam que “cada uma delas expressa diferentes formas de atualização das estratégias de
exercício do poder e das técnicas de subjetivação”. (NARDI; SILVA, 2004, p. 188).
51

o rebanho só existe pela presença imediata e ação direta do pastor, produzindo certa
dependência e obediência. (FOUCAULT, 2006, p. 359).
O filósofo francês mostra-nos como esse poder é exercido mediante uma
individualização detalhada e uma noção de coletivo – individual e total –, pois o pastor
precisa conhecer cada ovelha do seu rebanho, para assim guiar, conduzir e salvar cada uma e
o coletivo. O pastor presta atenção em todo o rebanho, mas sem perder de vista nenhuma de
suas ovelhas. Cabe ao pastor velar “cuidadosamente cada um de seus seguidores e o conjunto
deles, dedicando-se inteiramente a essa tarefa, inclusive, quando esta demandava seu próprio
sacrifício”. (GADELHA, 2013, p. 122). O pastor é aquele que cuida do alimento do seu
rebanho, fornece alimento, sacia a fome e a sede; ele vela para que todas as ovelhas sejam
salvas e preocupa-se em recuperar a ovelha perdida.
Com o cristianismo, o poder pastoral – esse poder individualizante, essa técnica de
individualização – incluirá a vigília, confissão, o exame, a direção da consciência, a
obediência, a verdade. O poder pastoral cristão foi pensado especialmente a partir do século
III e desenvolveu-se posteriormente, sendo que o próprio “Estado adapta a tecnologia pastoral
às suas necessidades. O faz por meio de toda uma série de práticas refletidas e conscientes de
sua singularidade”. (KOHAN, 2005, p. 86). Isso deve ser compreendido, como bem destaca
Foucault, pelas novas relações econômicas, sociais e estruturas políticas, deslocando o
governo dos homens de uma ênfase mais religiosa, para uma noção de Estado, e, nesse
sentido, o poder pastoral associa-se ao Estado.
Júlio Aquino (2013, p. 205) diz que “será por meio do acesso à intimidade das
pessoas, via exploração e controle de suas almas, que o jogo do pastor ocupar-se-á das
consciências dos indivíduos, incitando-os a aderirem aos regimes de verdade em voga”. Ele
aponta que o jogo do pastor irá transmutar-se no jogo do expert, “operando no encalço das
almas, regulando cada passo individual e perpetrando regimes do eu tão estereotipados quanto
idiossincráticos a sujeitos que se creem autônomos, ainda que (e porque) ininterruptamente
governados”. (AQUINO, 2013, p. 205).
Augusto (2013, p. 23), ao analisar a polícia e as ações preventivas do Estado
direcionadas às crianças e aos jovens envolvendo suas comunidades, constata que essas ações
são um desdobramento do poder pastoral, “uma ressonância das políticas sociais como prática
de polícia para promoção da saúde da população e prosperidade do Estado”. O interesse não
estava mais centrado na salvação do povo para o outro mundo (como o poder pastoral
cristão), mas em salvar o povo nas questões de saúde, bem-estar, segurança, padrão de vida,
52

proteção contra acidentes, acionando a família, a medicina, a psiquiatria e a educação,


ampliando, assim, o poder pastoral por todo o corpo social. (FOUCAULT, 2010).
Com seus deslocamentos, o poder pastoral configura-se num poder individualizante,
voltado aos indivíduos e destinado a dirigi-los permanentemente. O pastorado desenvolve
uma tecnologia de poder – tecnologia pastoral – capaz de tratar os “homens como rebanho
com um pulso de pastor” (FOUCAULT, 2006, p. 361), configurando relações complexas
entre os sujeitos no curso da história. Tal como afirma Rose (2001), a tecnologia pastoral é
permeada pela relação de aconselhamento entre uma figura de autoridade e cada membro de
seu rebanho, “corporificando técnicas tais como a confissão e a exposição do eu, a
exemplaridade e o discipulado, incorporado à pessoa por meio de uma variedade de esquemas
de auto-inspeção, auto-suspeição, exposição do eu, autodeciframento e auto formação”.
(ROSE, 2001, p. 38). Essa relação de aconselhamento pode ser evidenciada na relação entre o
pároco e o fiel, entre o terapeuta e o paciente, entre o assistente social e o cliente, entre o
sujeito educado e o seu eu. (ROSE, 2001).
As tecnologias de poder pastoral são apontadas como condição de possibilidade para a
emergência da governamentalidade ocidental.
Tecnologias do poder disciplinar: Em relação ao poder disciplinar, ao traçar sua
genealogia, inicialmente Foucault mostra como as técnicas e estratégias de poder agem sobre
o corpo de cada indivíduo “de modo a ordená-lo em termos de divisão, distribuição,
alinhamento, séries (no espaço) e movimento de sequenciação (no tempo), tudo isso
submetido a uma vigilância constante”. (VEIGA-NETO, 2011, p. 65). O poder disciplinar
promove a individualização e singularização do próprio indivíduo, uma vez que “segmenta
uma massa humana, até então uniforme, em unidades individuais, alcançáveis, descritíveis e
controláveis”. (VEIGA-NETO, 2011, p. 67). Para o pensamento moderno, a estratégia de
governo atua na população, mas a sua mira era o indivíduo, para torná-lo dócil e disciplinado,
ou seja, as técnicas de poder tomam o corpo de cada indivíduo. Compreendida como uma
forma de exercício de poder, a disciplina “é uma arte de distribuição dos indivíduos no
espaço” (CASTRO, 2009, p. 331) que implica vigilância constante e registro permanente de
cada indivíduo.
O poder disciplinar atua a partir de instituições específicas, como a escola, o presídio,
o orfanato, o hospital, e tem como foco a vigilância e o esquadrinhamento do corpo e da alma
dos indivíduos. Essas instituições apoderam-se de discursos para produzir verdades sobre os
sujeitos. Ao transformar o corpo em objeto de intervenção dos dispositivos de governamento,
o poder disciplinar molda, ordena, regula, controla, adestra o indivíduo mediante um conjunto
53

de tecnologias disciplinares e individualizantes que produzem a anormalidade e a


normalidade. Assim, a norma é um princípio no poder disciplinar, em que cada indivíduo é
avaliado, enquadrado, classificado. Castigos físicos, palmatória, separação entre bons e maus
alunos, humilhações, recompensas pela obediência, estruturação das classes para alunos e
professores, arquitetura das escolas, rotina, currículo, exame, uniforme, tudo isso faz parte de
um arsenal de estratégias disciplinares32. A escola moderna é um lugar de excelência para a
disciplina, mas uma disciplina produtiva que, ao mesmo tempo em que aperfeiçoa os corpos,
também controla.
As pedagogias disciplinares, tal como aponta Júlia Varela (2000), a partir do século
XVIII, tiveram como foco o controle do aprendizado de cada aluno, intervindo no sujeito pela
correção e normalização. O exame, um dos instrumentos mais eficazes do poder disciplinar
escolar, atua no controle e na produção de sujeitos, produzindo saberes sobre os indivíduos
escolares. O exame produz um saber capaz de classificar e ordenar os alunos, atuando na
“fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória”. (FOUCAULT,
2005, p. 160).
Interessa pensar que tanto o poder pastoral cristão quanto o poder disciplinar (cada um
ao seu modo) possibilitaram a produção de um sujeito capaz de autogovernar-se e ofereceram
condições para governar os homens de forma individual33. Tal deslocamento ajuda-nos a
pensar nas práticas de registro docente centradas no indivíduo: é o sujeito infantil que é
observado, descrito e registrado em sua minúcia. Seus gestos, seus comportamentos, suas
atitudes passam a ser paulatinamente interessantes para os registros docentes.
Como vimos, o poder disciplinar atua no corpo do indivíduo, portanto, trata-se de um
poder mais individualizante. A biopolítica emerge “com a consolidação do poder disciplinar”
(GALLO, 2015, p. 333), como vemos a seguir.
Tecnologias biopolíticas: Foucault, ao longo da década de 1970, expande suas análises
em relação ao poder soberano e disciplinar e inclui o biopoder como foco de suas análises. O
biopoder, um poder mais normalizador, envolve a minimização do risco e maximização da

32 Em Vigiar e Punir, Michel Foucault trata das questões que marcam as escolas, os hospitais, os presídios,
como espaços disciplinares para a formação de sujeitos dóceis e produtivos. Nessa obra, o autor também mostra
que o panóptico de Bentham é um esquema arquitetural que bem representa tal tecnologia específica de poder,
seguindo uma lógica disciplinar de vigilância generalizada.
33 “O ‘sujeito individual’ descrito pelas diferentes psicologias da educação ou da clínica, esse sujeito que
‘desenvolve de forma natural sua autoconsciência’ nas práticas pedagógicas, ou que ‘recupera sua verdadeira
consciência de si’ com a ajuda das práticas terapêuticas, não pode ser tomado como um ‘dado’ não-
problemático. Mais ainda, não é algo que possa analisar-se independentemente desses discursos e dessas
práticas, posto que é aí, na articulação complexa de discursos e práticas (pedagógicos e/ou terapêuticos, entre
outros), que ele se constitui no que é”. (LARROSA, 1994, p. 41).
54

gestão da circulação de coisas e pessoas, portanto, trata-se de um poder mais totalizante. É por
meio da invisibilidade que o poder disciplinar vai gradualmente operando de forma cada vez
mais sutil, mas capaz de atravessar os indivíduos de maneira contínua e permanente 34. E aqui,
o conceito de população - que surge na sociedade europeia por volta do século XVIII -, como
novo alvo de poder, torna-se imprescindível para pensar a biopolítica, uma política capaz de
gerir a vida de cada indivíduo e da população. Os dispositivos de segurança, ou seguridade, ao
agirem na população, também tocam a intimidade do indivíduo. As tecnologias postas em
ação não têm mais como foco a proibição ou a obediência, mas calcular minuciosamente em
que medida é preciso intervir na população. A estatística passa a ocupar um lugar central, a
fim de calcular os riscos da população e seu consequente controle (a educação precoce das
crianças, como aponta Bujes (2015, p. 268), é pensada em seus custos e também como
investimento preventivo, caracterizando seu objetivo biopolítico).
O biopoder irá constituir-se num poder sobre a vida da população, a fim de preservá-
la, ou seja, na biopolítica, o indivíduo não é mais um corpo individual, mas “uma cifra, um
número, um código, ou, no limite, um corpo abstraído em um núcleo populacional passivo de
gestão administrativa, visando qualquer instância de sua vida”. (CARVALHO, 2016, p. 4). A
vida das pessoas é regulada para promover mais vida e mais bem-estar social, ou seja, a
prosperidade da população, a sua saúde e longevidade são tomadas como centrais, mas tudo
isso mediante um governo mínimo, um governo que implica liberdade. Liberdade numa
gestão calculada da vida populacional. Miller e Rose afirmam que “as formas contemporâneas
de poder foram construídas sobre a premissa de liberdade”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 19). A
relação de poder envolve paulatinamente a liberdade: “a liberdade aparecerá como condição
de existência do poder” (FOUCAULT, 2010, p. 289), ou seja, o poder só se exerce sobre
sujeitos livres. O exercício do poder estatal sobre os fenômenos da população, por intermédio
do biopoder, age com princípios de laissez-faire.
Trazendo tal conceito para o âmbito escolar, Bujes (2002) constata que o arsenal
pedagógico é rico em instrumentos que têm por finalidade afinar as operações biopolíticas: “a
auto-observação, a auto-avaliação, as fichas de observação, os registros, os exames, as
produções escritas, os desenhos, as rodas de conversa... Por tais mecanismos pretende-se não
apenas que a criança se tome como objeto para si mesma, se autoconheça, mas, ao mesmo

34 Interessante pensar que os dispositivos disciplinares e os de segurança sempre existiram, “não são exclusivos
da Modernidade. Contudo, por razões políticas e econômicas, na Modernidade eles adquirem maior relevância,
ao estender-se por toda a sociedade”. (CASTRO, 2014, p. 110). Os dispositivos disciplinares e biopolíticos
convertem-se em novas formas de governar a população, porém, o dispositivo soberano não deixou de funcionar.
(CASTRO, 2014).
55

tempo ou alternativamente, que ela se exponha ao escrutínio alheio”. (BUJES, 2002, p. 25).
Ao mesmo tempo, acompanhamos a emergência de práticas, currículos, propostas
pedagógicas que buscam cada vez mais liberdade para os sujeitos escolares. Esse é ponto
central para compreender porque as práticas da documentação pedagógica se encaixam nas
racionalidades da governamentalidade neoliberal e da sociedade de controle.
Parece já ter ficado evidenciado que, nos estudos de Foucault, as tecnologias de poder
pastoral, de poder disciplinar e da biopolítica estão em arranjo, ou seja, s se articulam, uma
vez que não são entendidas como linearidades, tampouco causas e consequências. Essas
tecnologias articulam-se entre si, conduzindo a conduta dos outros e do indivíduo em si
mesmo, atualizando as formas de exercício do poder mediante novas tecnologias e estratégias.
Nesse contexto é que Foucault percebe que há uma passagem, uma transição, uma
sobreposição da sociedade disciplinar para a sociedade de controle ou sociedade de
seguridade, uma vez que o poder disciplinar não operava mais sobre corpos individualizados e
comportamentos individuais, um corpo-indivíduo, mas era um poder normalizador, cujo foco
era administrar a vida da população nas lógicas do mercado, ou seja, conduzir a própria
conduta da espécie, um corpo-espécie (observar, calcular e regrar taxas de natalidade, taxas de
mortalidade, fluxos de contaminação, condições sanitárias, entre outras condições de vida).
Esta Tese teve como desafio mostrar como as práticas de registro operam enquanto
tecnologia de governamento, permeadas por um conjunto de estratégias. Estratégia aqui é
compreendida como uma forma de “designar a escolha dos meios empregados para se chegar
a um fim; trata-se da racionalidade empregada para atingirmos um objetivo”. (FOUCAULT,
2010, p. 247). Compreendo que, ao conduzirem-se as condutas (tanto dos outros, quanto de si
mesmo), há estratégias empregadas para alcançar determinados fins, as quais estão ajustadas
às tecnologias de poder e às tecnologias de si. Podemos pensar que a tecnologia pastoral
aciona um conjunto de estratégias; a tecnologia disciplinar aciona um conjunto de estratégias;
a biopolítica aciona um conjunto de estratégias – todas compondo complexas tramas que
estruturam a racionalidade da governamentalidade neoliberal das práticas que nos fazem
alcançar determinados objetivos e fins específicos nas nossas vidas. Essas forças atuam
também nos espaços e tempos da infância, da Pedagogia e da instituição escolar.
Governamentalidade: O conceito de governamentalidade funcionou neste trabalho
investigativo como uma possibilidade para compreendera grade de inteligibilidade em que se
inscrevem as práticas de registro que operam como tecnologia no governamento da infância.
Ao afirmar isso, o conceito da governamentalidade neoliberal ajuda-me a compreender que as
práticas de registro da documentação pedagógica, tomadas como tecnologia, operam no
56

governamento da infância contemporânea. Governamentalidade neoliberal é tomada com


novas intensidades e com estratégias próprias de governamento em determinado momento de
vida. Por tudo isso, faz-se importante retomar aqui, mesmo que brevemente, as noções de
governo e governamentalidade, uma vez que tais noções estão no centro das obras de
Foucault, especialmente nos cursos ministrados na segunda metade de 1970; tal como destaca
Castro, “foram as práticas de governamentalidade que constituíram a subjetividade ocidental”.
(CASTRO, 2009, p. 190).
Especialmente nos cursos Segurança, Território e População (1977-1978) e
Nascimento da biopolítica (1978-1979), no Collège de France, Foucault abordou a noção de
população e suas formas de regulação, mostrando como a governamentalidade tem como
objeto e alvo a população, um corpo-espécie35, ou seja, ao esboçar a forma de governo
baseada na razão de Estado, Foucault apresenta o conceito de governamentalidade. Com a
ajuda de alguns estudiosos, como Nikolas Rose, Peter Miller, Alfredo Veiga-Neto, Sylvio
Gadelha, Walter Kohan, Carlos Noguera-Ramírez e Maria Isabel Bujes, procuro operar com o
conceito de governamentalidade enquanto uma grade de inteligibilidade que me permite
entender as racionalidades nas práticas de registro da documentação pedagógica, tanto
racionalidades políticas quanto pedagógicas.
Primeiramente, é importante ressaltar que a noção de governo, numa perspectiva
foucaultiana, não é o poder do príncipe para o seu principado, tampouco do poder estatal, do
governo formal, como municipal, estadual ou federal, nem das estruturas políticas, tal como
utilizamos a palavra de forma convencional. Governar “é estruturar o eventual campo de ação
dos outros”. (FOUCAULT, 2010, p. 288). Governo seria “um modo de conceitualizar todos
aqueles programas, estratégias e táticas para a condução da conduta, mais ou menos
racionalizados, para agir sobre as ações dos outros de maneira a alcançar certos fins”. (ROSE,
2011, p. 25). Como governo, podemos entender os “tipos de racionalidades que envolvem
conjuntos de procedimentos, mecanismos, táticas, saberes, técnicas e instrumentos destinados
a dirigir a conduta dos homens”. (GADELHA, 2013, p. 120). Ou ainda, “governar é agir sobre
o campo da conduta alheia (ou da própria conduta) e as ações de governamento não se
constituem como um modo próprio de ação das estruturas políticas ou de gestão do Estado,
unicamente” (BUJES, 2008, p. 106), mas “aquelas formas de agir que afetam a maneira como
os indivíduos conduzem a si mesmos”. (BUJES, 2008, p. 106, grifo da autora). Desse modo,
ficam evidentes os dois eixos analisados por Foucault no que se refere ao governo: relação

35 Segundo Gallo (2015), Foucault introduz o conceito de governamentalidade, que aparece pela primeira vez na
aula de 1º de fevereiro de 1978 – a quarta aula do curso Segurança, Território e População.
57

entre sujeitos (conduzir as condutas dos outros) e relação consigo mesmo (conduzir-se a si
mesmo).
O governo das crianças pelos adultos ou pela família – por exemplo – pode ser
entendido como a arte de conduzir as condutas. Em relação à infância, afirma Bujes (2015),
“governar supõe zelar, antes de mais nada, para a manutenção da vida das crianças, mas
também para possibilitar que ela se torne útil social e economicamente”. (BUJES, 2015, p.
265). Foucault (1990, p. 282) afirma que “estas coisas, de que o governo deve se encarregar,
são os homens, mas em suas relações com as coisas que são as riquezas, os recursos, os meios
de subsistência, o território em suas fronteiras”. Assim, a arte de governar compreende não só
a ação de conduzir a conduta do outro, mas também a ação de conduzir e governar a si
mesmo.
Interessante fazer uma ressalva aqui: Veiga-Neto (2005) esclarece alguns problemas
com o vocabulário técnico e propõe a ressurreição, na língua portuguesa, da palavra
governamento para entender que a ideia de governo, na perspectiva foucaultiana, não está
somente atrelada às instituições de Estado (como governo municipal, Governo da República,
ou seja, instâncias governamentais, administrativas, centrais), mas também a uma ação de
governar36. O autor coloca o termo governamento como a ação de conduzir as condutas de
uns sobre os outros ou sobre si mesmo, marcando os dois eixos de governamento: entre
sujeitos e consigo próprio. (VEIGA-NETO, 2015, p. 52). É por essa razão que utilizo, ao
longo desta escrita, a palavra governamento, sugerida por Veiga-Neto, no sentido de governo,
exposta por Foucault.
Para o filósofo, as artes de governar deslocam-se com o aparecimento do Estado
moderno, a expansão demográfica, a crise do feudalismo, o crescimento da produção agrícola,
as questões monetárias e econômicas, a legitimação da estatística enquanto ciência do Estado,
entre outros fatores sociais e políticos. Foucault (2008a) investe no estudo das artes de
governo, atentando para a emergência de uma racionalidade governamental que corresponde
ao aparecimento do Estado moderno e de uma economia estatística, voltada para os
fenômenos do corpo populacional. É possível perceber, no século XVIII, o desenvolvimento
de “uma preocupação com as populações, com as suas vidas, no sentido de preservá-las.
Inicia-se a era do biopoder, de uma biopolítica voltada para a população”. (BUJES, 2010b, p.

36 Em escrita anterior, Veiga-Neto (2002) já procura definir governo como “essa instituição do Estado que
centraliza ou toma para si a caução da ação de governar” (VEIGA-NETO, 2002, p. 19) e governamento como “a
questão da ação ou ato de governar” (VEIGA-NETO, 2002, p. 19) e “ações distribuídas microscopicamente pelo
tecido social”. (2002, p. 21). Em relação ao uso dos termos governo e governamento nesta Tese, esclareço que
farei uso da palavra governamento tal como propõe Veiga-Neto, no sentido de governo, referenciado por Michel
Foucault.
58

167). Diante desse contexto histórico, surge a necessidade de encontrar novas formas de
governar os outros e de governar a si mesmo, visto que um novo conceito nas artes de
governar começa a ser desbloqueado, deslocando-se da lógica disciplinar para a lógica da
governamentalidade.
A ampliação e as transformações nas formas de governar os sujeitos e a população
estabeleceram as condições de emergência para aquilo que muitos autores chamam de “a era
da governamentalidade”. Para Foucault (2008a), governamentalidade é:

[...] o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e


reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem
específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a
população, por principal forma de saber a economia política e por
instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo
lugar, por ‘governamentalidade’ entendo a tendência, a linha de força que,
em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a
preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre
todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o
desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e
por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por
‘governamentalidade’, creio que deveria entender o processo, ou antes, o
resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos
séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco
‘governamentalizado’. (FOUCAULT, 2008a, p. 143-144).

Podemos compreender como governamentalidade a emergência de “racionalidades


políticas, ou mentalidades de governo, em que o governo passa a ser uma questão de
administração calculada das questões de cada um e de todos de maneira a alcançar certos
objetivos desejáveis”. (ROSE, 2011, p. 49). Um complexo de cálculos, estratégias e táticas
que agem sobre a vida de cada indivíduo e de todos, a fim de “evitar os males e atingir
estados desejáveis como saúde, felicidade, riqueza e tranquilidade. (ROSE, 2011, p. 212).
Conforme destaca Dean (1999), a emergência da governamentalidade é identificada
por determinado regime de governo que adota como seu objeto “a população” e coincide com
a emergência da economia política, sendo a noção de população crucial aqui. Assim, emerge
um governo que precisará “ser um governo de ‘tudo e todos’, evidenciando uma preocupação
com cada indivíduo e a população como um todo”. (DEAN, 1990, p. 20). Esse governo
precisa tornar-se um governo econômico, isto é, o governo em si precisa ser econômico, tanto
em termos fiscais quanto no uso do poder.
Os estudos sobre governamentalidade levaram Foucault a analisar o deslocamento da
arte de governar por meio de tecnologias de poder disciplinar para as tecnologias de
seguridade. Pode-se entender que o conceito de governamentalidade não é fechado nem
59

encerrado em si mesmo, como procurou mostrar o referido filósofo ao longo dos seus estudos,
desde o aparecimento do conceito de governamentalidade. Com a governamentalidade, as
relações de poder adquirem outras significações (CANDIOTTO, 2010), sendo ela
compreendida como uma chave de inteligibilidade.
Ao definir a governamentalidade como grade de inteligibilidade para este trabalho,
interessado em mostrar como as práticas de registro da documentação pedagógica operam no
governamento da infância, acredito que esse conceito me ajuda a olhar para a atmosfera onde
as práticas de registro são movimentadas, permeadas por tecnologias de poder e tecnologias
de si, as quais produzem efeitos nos sujeitos infantis e também nos sujeitos docentes.
Concordo com Miller e Rose quando afirmam que governamentalidades são tanto
“mentalidades, quanto tecnologias, são tanto formas de pensar, quanto instrumentos de
intervenção”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 32).
Antes de seguir adiante, considero interessante mapear, mesmo que brevemente, os
tipos de racionalidades de governo (ou um quadro de racionalidades políticas, ou ainda, um
estilo de vida) apresentados por Michel Foucault: o liberalismo (inventado no século XVIII) e
o neoliberalismo. Faço isso porque, ao analisar-se a constituição da infância, da Pedagogia e
da instituição escolar na Modernidade (especialmente no Capítulo 2 da Parte I), é possível
compreendê-las em articulação com as razões políticas capazes de produzir modos de ser
sujeito de certos tipos, condizentes com a governamentalidade liberal e neoliberal. Assim, o
liberalismo e o neoliberalismo, antes de serem compreendidos como mera representação
social, são tomados como práticas que possibilitam determinadas formas de vida e como
racionalidades políticas.
O liberalismo é acionado após a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente
depois da crise do petróleo de 1973, e sua generalização, na década de 1990, dá-se com a
emergência dos Estados Democráticos de Direito (LEMOS, 2015). No liberalismo (enquanto
forma de pensar e exercer o governo), duas características são fundamentais: a intervenção
mínima do Estado na economia e a liberdade dada ao mercado para impulsionar o
desenvolvimento do Estado (LOPES, 2013). O livre mercado determinava, com naturalidade,
“a regulação interna do mercado e do próprio Estado”. (LOPES, 2013, p. 295). Na
mentalidade liberal, para melhor governar, foi necessário construir um indivíduo livre. Porém,
no século XX, o liberalismo entra em crise com a acusação de que deveria governar melhor, e
60

Foucault prossegue sua análise para a emergência do neoliberalismo37(estudando e expondo


os modelos alemão, francês e norte-americano), caracterizado pela “necessidade de formar
sujeitos para serem livres dentro de uma lógica de mercado que se impunha como condição de
vida”. (LOPES, 2013, p. 295). A racionalidade neoliberal inaugura (por volta dos anos 1980)
a maximização das forças produtivas da sociedade, criando todo um aparato tecnológico para
produção de saberes sobre a população, com vistas à economia do risco. Aqui, o Estado passa
a agir em rede, governando à distância, mediante o cálculo sobre a população. A liberdade
deve ser continuamente produzida e consumida por meio da competição, a ponto de
compreender a própria liberdade como consumo. (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009).
O Estado deve ser mínimo em relação aos processos econômicos e financeiros,
incentivar a concorrência no livre mercado, educar a população para desenvolver
empreendimentos de caráter social e solidário, ou seja, é preciso “ser educado para entrar no
jogo; permanecer no jogo; desejar permanecer no jogo”. (LOPES, 2013, p. 295-296). Gadelha
contribui na compreensão da emergência de liberalismo e sua flexão para o neoliberalismo ao
dizer que:

[...] essa forma de governo do Estado mover-se-ia premida pela ideia de que
governar-se-ia pouco, que muitas coisas escapavam à governamentalidade,
por cima e por baixo; daí o motivo desse investimento na maximização das
forças estatais – saúde, natalidade, higiene, segurança, previdência, etc. – a
um custo político e econômico mínimo. (GADELHA, 2013, p. 137).

Ao traçar as características da Escola de Chicago, Foucault aponta para uma mutação


epistemológica que busca reintroduzir a análise econômica, e os conceitos de capital humano,
sociedade empresarial e mercado competitivo passam a gerir os comportamentos da
população. A economia, de acordo com o autor, analisa uma atividade, e não mais a análise
dos processos, “portanto, a análise da lógica histórica de processo é a análise da racionalidade
interna, da programação estratégica da atividade dos indivíduos”. (FOUCAULT, 2008b, p.
307). O indivíduo passou a ser compreendido como um agente econômico, e suas condutas
são praticadas na lógica de economia do mercado, uma vez que “[...] a economia política
passa a ter como objeto o comportamento humano, ou melhor, a racionalidade interna que o
anima”. (GADELHA, 2013, p. 149).
É importante esclarecer que não se trata de influências externas apenas, ou de um
indivíduo manipulável; o sujeito, ele mesmo, está “preso à sua própria identidade por uma

37 Carvalho (2016, p. 5) explica que “a diferença entre o liberalismo e o neoliberalismo, contudo, situa-se na
mutação das intensidades dos focos criativos de novas estratégias desse controle que não é mais feito apenas por
uma polícia ou uma política especializada, mas por mecanismos de onicontroles”.
61

consciência ou autoconhecimento”. (VEIGA-NETO, 2011, p. 111). Portanto, na


governamentalidade neoliberal, o indivíduo “se vê induzido, sob essa lógica, a tomar a si
mesmo como um capital, a entreter consigo (e com os outros) uma relação na qual ele se
reconhece (e aos outros) como uma microempresa”. (GADELHA, 2013, p. 149). Vemo-nos
como indivíduos que, permanentemente, precisamos fazer investimentos em nós mesmos,
precisamos desejar consumir, precisamos almejar a produtividade em nós mesmos. Essa
governamentalidade contemporânea age com uma “ação a distância”, por meio de
“mecanismos que prometem modelar a conduta de diversos atores sem danificar seu caráter
formalmente autônomo”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 54). Assim, o neoliberalismo não se
articula fora do Estado, nem como uma teoria política ou ideologia, “mas como uma nova arte
de governar que conduz o próprio Estado”. (LOPES, 2013, p. 294). Tal como explica Bujes
(2010a):

[...] o neoliberalismo não pode mais ser entendido apenas como uma teoria
econômica, mas como uma matriz de inteligibilidade que nos permite
compreender que as transformações nos modelos de sociedade, sugeridas por
diferentes analistas e brevemente aqui apresentadas, não se excluem, elas
coexistem, em suas múltiplas manifestações, pois é uma mesma
racionalidade que as sustenta e lhes dá sentido, aquela que tem na
competição o seu principal motor. (BUJES, 2010a, p. 14-15).

Essa nova mentalidade de governo buscou estabelecer uma parceria com o indivíduo,
no sentido de ele agir sobre ele mesmo, naquilo que ele considera importante para o seu estilo
de vida, e não mais depender de um Estado que promova o bem-estar nem ser “dependentes
de instruções por autoridades políticas para conduzir suas vidas e regular suas existências
diárias”. (ROSE, 2011, p. 231). Cada sujeito deve ocupar-se consigo mesmo, com o objetivo
de garantir para si as condições que antes eram garantidas pelas políticas sociais de Estado.
(LOPES, 2013).
Como apontam Miller e Rose (2012, p. 101), “o neoliberalismo recodifica o lugar do
Estado no discurso da política”. O Estado precisa defender os interesses da nação na esfera
internacional, porém, os indivíduos autônomos “devem cuidar livremente de seu negócio,
tomando suas próprias decisões e controlando seus próprios destinos”. (MILLER; ROSE,
2012, p. 101). Estes autores afirmam que um dos mecanismos do neoliberalismo é a
“proliferação de estratégias para criar e manter um ‘mercado’, para reformular as formas de
troca econômica com base em troca contratual”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 101-102). Essa
nova racionalidade de governo oferece segurança a partir de esquemas de assistência médica,
moradia mediante o setor privado, segurança e bem-estar, maximizando a qualidade de vida.
62

No contexto neoliberal de individualização e competição, alguns instrumentos e


técnicas são valiosos. Saliento aqui a crescente relevância da estatística, tal como já o fizeram
Popkewitz e Lindblad (2001), Nóvoa (2004), Bello e Traversini (2009), Bujes (2010b), Rose
(2011), Miller e Rose (2012). Rose (2011) demonstra com muita propriedade as alianças que
a Psicologia desenvolveu com a Estatística e com o experimento como técnicas de verdade
sobre os sujeitos e afirma que a “estatística, naturalmente, emergiu originalmente como
ciência do Estado, na tentativa de coletar informação numérica sobre eventos e
acontecimentos em uma região com o objetivo de conhecê-los e governá-los”. (ROSE, 2011,
p. 87).
Comumente, acredita-se que a Estatística carrega certa neutralidade para demonstrar a
verdade dos fatos e acontecimentos da vida alheia, uma vez que a crença nos números
fundamenta a sua própria verdade e cientificidade. As Ciências Sociais e Humanas, por sua
vez, utilizarão a Estatística para “forçá-las em um cânone de verdades, para convencer de sua
veracidade [...] para armar aqueles que professam tais ciências”. (ROSE, 2011, p. 88). Ao
introduzir certa lógica e regularidade na população, esta pode ser calculada, medida, anotada,
controlada, e seus problemas tornam-se acessíveis ao Estado. “Se o surgimento da população
como objeto de governo possibilita a governamentalização do Estado, será a capacidade do
Estado em produzir um saber sobre essa população, por meio de cálculos e medições
estatísticas, que permitirá sua atuação sobre ela”. (AUGUSTO, 2013, p. 21).
Na era da governamentalidade neoliberal, tornamo-nos indivíduos calculáveis, “cuja
individualidade não é mais inefável, única e fora do alcance do conhecimento, mas pode ser
conhecida, mapeada, calibrada, avaliada, quantificada, prevista e gerenciada”. (ROSE, 2011,
p. 126). Essa calculabilidade permite tornar possível e justificável toda uma gama de
conhecimentos sobre o sujeito, possibilitando tratamentos dos mais diversos. As crianças não
escapam disso: calculamos quantas crianças frequentam a Educação Infantil de zero a três
anos ou de quatro a cinco anos, quantas frequentam escola na zona rural em comparação com
a zona urbana, quantas crianças vivem em lares com pais separados; comparamos quantos
alunos evadiram das escolas e quantos são infrequentes; contamos quais os estados que
matriculam mais/menos crianças na Educação Infantil; medimos também os índices de
repetência, de atendimentos especializados e terceirizados, de crianças analfabetas ou com
dificuldades de aprendizagem; computamos as crianças por sexo, idade, localidades, raça,
religião, renda de seus pais, tudo isso para melhor governar a infância calculada.
Vimos que o saber estatístico tem relações com a governamentalidade neoliberal
contemporânea, atuando como uma tecnologia de governo capaz de gerenciar os riscos que a
63

população pode gerar para a sociedade e, ao mesmo tempo, trazendo credibilidade para os
saberes e práticas produzidos sobre os indivíduos, apresentando intrínseca relação com as
artes de governar, tanto o indivíduo e este sobre ele mesmo, quanto a população. Tal como
destacam Bello e Traversini (2009) ao descreverem o saber estatístico como tecnologia de
governo:

Como tecnologia de governo o saber estatístico tem criado, inventado,


fabricado regularidades, as quais têm sido postas nas populações, tornando-
se necessárias e pertinentes à sua gestão. Essas regularidades estão na ordem
do saber estatístico e não respondem, necessariamente, a grandes modelos –
explicativo-comportamentais próprios das ciências empíricas sobre os modos
de ser ou agir das populações. Diferente disso, a ideia que parece ser
fabricada é que as regularidades são necessárias à prática social da gestão
das populações e, portanto, deverão ser produzidas na ordem do saber,
atreladas a condições políticas, sociais e econômicas do seu tempo. As
regularidades assim fabricadas e dispostas são centrais para a tomada de
decisão em torno das populações. (BELLO; TRAVERSINI, 2009, p. 149).

Procurei destacar a mudança de ênfase do liberalismo para o neoliberalismo, a fim de


compreender como a governamentalidade atua como grade de inteligibilidade
buscandotecnologias e estratégias para programar as atividades e comportamentos dos
indivíduos nas suas formas de agir e pensar. Saraiva e Veiga-Neto (2009, p. 189), ao
descreverem a passagem do liberalismo para o neoliberalismo, mostram que no sistema
neoliberal a liberdade é continuamente produzida e exercitada na forma de competição. “O
princípio de inteligibilidade do neoliberalismo passa a ser a competição: a
governamentalidade neoliberal intervirá para maximizar a competição, para produzir
liberdade para que todos possam estar no jogo econômico”. (SARAIVA; VEIGA-NETO,
2009, p. 189).
Alguns estudos tomam essa questão – o detalhamento das racionalidades políticas do
liberalismo e neoliberalismo – como foco de suas investigações e descrevem esses
deslocamentos com muita propriedade. Por isso, minha intenção aqui não foi detalhar tais
racionalidades políticas; antes, meu maior objetivo é analisar essas formas de
governamentalidades no seu entrecruzamento com a infância, a Pedagogia e a instituição
escolar, entrelaçadas com as práticas de registro docente, especialmente as voltadas ao sujeito
que frequenta a Educação Infantil. Dessa maneira, o desafio posto neste trabalho é o de operar
com o conceito de governamentalidade enquanto grade de inteligibilidade. Compreender as
noções de governamentalidade implica perceber que as transformações nas relações de
governo envolvem outras formas de relação com o poder. Em outras palavras, a
64

governamentalidade torna-se um conceito importante nesta Tese, pois as práticas de registro


docente vão se constituindo a partir das formas de governamento de si e da população.
Como grade de inteligibilidade, a governamentalidade foi-me útil para entender a
lógica que opera e transforma as práticas de registro da documentação pedagógica numa
produtiva tecnologia que, em ação na maquinaria escolar, produz tanto outras formas de ser
criança na Educação Infantil, quanto docências de seus professores. Os deslocamentos nas
formas de praticar a vida da sociedade disciplinar para a sociedade de seguridade colocam em
circulação outras tecnologias de poder, que são fundamentais para se compreenderem as
transformações nos modos de se relacionar com a criança na escola e entender as novas
ênfases nas práticas de registro docente. Ao apresentar os conceitos chave que me
possibilitaram sustentar esta Tese, penso ter ficado claro que na sociedade disciplinar as
tecnologias de poder agem no corpo-indivíduo, esquadrinhando espaços e tempos, de maneira
a operar no corpo de cada indivíduo. Há uma divisão entre proibido e permitido, incidindo
mais nas proibições. Na sociedade de seguridade, as tecnologias de poder agem no plano da
natureza e, “a partir dessa realidade, procurando apoiar-se nela e fazê-la atuar, fazer seus
elementos atuar uns em relação aos outros, [é] que o mecanismo de segurança vai funcionar”.
(FOUCAULT, 2008, p. 61). É nos sujeitos livres, “na liberdade dos homens, no que eles
querem fazer, no que têm interesse de fazer, no que eles costumam fazer”, que a ênfase no
controle vai encontrar frestas para atuar. (FOUCAULT, 2008, p. 64). A regulação estará na
liberdade de cada um, efetuando uma autorregulação e uma autoprodução. Eis um elemento
chave para compreender a emergência das práticas de registro docente na Educação Infantil.
65

CAPÍTULO 2
A EMERGÊNCIA DAS PRÁTICAS DE REGISTRO DOCENTE

‘Conhecer’ um objeto de tal maneira que ele possa ser governado é mais do
que uma atividade puramente especulativa: exige a invenção de
procedimento de notação, modo de coletar e de apresentar estatísticas, o
transporte destas para outros centros onde se possam fazer cálculos e
avaliações, e assim por diante. (MILLER; ROSE, 2012, p. 44).

Se existe um assunto sobre o qual grande parte dos pedagogos, psicólogos, terapeutas,
médicos, filósofos, sociólogos, entre outros profissionais advogam é o direito de falar,
escrever, estudar, classificar, comparar, registrar a infância e a criança. Ligadas a isso, a
infância e a criança transformam-se em material, ingrediente, substrato para as políticas
públicas, os programas governamentais, os discursos partidários e também para os sonhos, as
previsões de futuro, as utopias, a chave para um mundo melhor. Tal como destaca Larrosa
(1998, p. 229), há “bibliotecas inteiras que contêm tudo o que sabemos das crianças e legiões
de especialistas que nos dizem o que são, o que querem e do que necessitam em lugares como
a televisão, as revistas, os livros, as salas de conferência ou as salas de aula universitárias”.
Práticas discursivas e não-discursivas vão constituindo verdades sobre a infância e as
crianças. Com isso, quero dizer que os modos como nos relacionamos com a infância e com a
criança são fabricações de determinadas contingências históricas, culturais, econômicas,
sociais, e o sujeito é parte ativa desses processos.
Neste capítulo, pretendo colocar em evidência os modos pelos quais passamos a
pensar, narrar, escrever sobre a infância e as crianças. Parafraseando a epígrafe que abre este
capítulo, para conhecer a infância, é preciso a invenção de procedimentos para que ela possa
ser governada. Assim, questiono: como emergem e se deslocam as práticas de registro
docente sobre as crianças na escola? Como se dá a articulação entre infância, pedagogia e
escola, a fim de tornar necessárias e cada vez mais refinadas as práticas de registro docente
sobre o sujeito infantil? Quais as condições de possibilidade para a emergência das práticas de
registro da documentação pedagógica na Educação Infantil contemporânea? Que efeitos tais
práticas produzem nos modos de ser aluno e professor?
Para mobilizar os questionamentos acima, procuro discutir sobre a escola como
instituição específica e a Pedagogia como saber científico que tomam para si o direito e o
dever de dizer e escrever sobre os sujeitos infantis e suas formas de vida, produzindo práticas
discursivas e não-discursivas sobre comportamento, aprendizagem, amizade, postura, boas
66

maneiras, entre outros elementos da vida infantil. Faço isso estabelecendo um recorte
histórico para a análise: discorro sobre a instituição escolar e a Pedagogia, articuladas com as
tecnologias disciplinares instauradas na Modernidade, com seus desdobramentos em
tecnologias biopolíticas mobilizadas na Contemporaneidade. Tal análise permite-me
compreender a emergência das práticas de registro docente sobre as crianças nos contextos
escolares. Emergência é aqui tomada como “a entrada em cena das forças; é sua irrupção, o
salto pelo qual elas passam dos bastidores ao palco, cada uma com o vigor e a jovialidade que
lhe é própria”. (FOUCAULT, 2003, p. 269).
Ao buscar material histórico sobre a invenção, aparecimento, constituição,
individualização e consolidação da infância moderna, minha intenção é construir uma história
do presente que me ajuda a problematizar a temática em questão. Não se trata de descobrir a
origem, o ponto zero de onde tudo evoluiu, nem de escrever “A verdadeira história da
infância” para então dizer quem são as crianças. Segundo Foucault (1990, p. 17), “procurar
uma tal origem é tentar reencontrar ‘o que era imediatamente’, o ‘aquilo mesmo’ de uma
imagem exatamente adequada a si; [...] é querer tirar todas as máscaras para desvendar enfim
uma identidade primeira”. Meu objetivo é muito mais pesquisar sobre os modos como
chegamos a pensar na infância e nas crianças da forma como pensamos, como as crianças
tornaram-se produtos de saberes, sujeitos de conhecimento e como foram assujeitadas a esse
mesmo conhecimento que as produziu como sujeitos.
Minha intenção é colocar em evidência algumas certezas que temos sobre infância e
criança, mostrando como, ao longo da história, elas passaram a ser alvo de conhecimentos,
pesquisas, estatísticas, tornando-se objeto de estudo para muitas áreas de conhecimento – em
especial e talvez demasiadamente da Pedagogia. Como, ao longo da história – não de forma
linear nem consecutiva, não como simples causa e efeito –, inventamos um modo dominante e
absoluto de pensar a infância e o sujeito infantil. Vale recorrer novamente àquilo para que nos
chama atenção Foucault (2009) sobre nossas formas de pensar que nos levam à produção de
verdades cristalizadas:

É preciso pôr em questão, novamente, essas sínteses acabadas, esses


agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceitos antes de qualquer
exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início; é preciso
desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito de
interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-las da sombra onde
reinam. (FOUCAULT, 2009, p. 24).
67

Com isso, quero sugerir – e pretendo mostrar “como” – que as práticas de registro
docente sobre o sujeito infantil na escola se tornam cada vez mais refinadas e sutis,
demarcando as minúcias de um sujeito infantil autorregulado. Entendo que essa discussão é
importante para compreender o encaixe das práticas de registro da documentação pedagógica
na Educação Infantil atual, que, a meu ver, está conectada com os modos de compreender e
governar a infância e a criança contemporânea, bem como com as transformações neoliberais
da sociedade. Para alcançar o objetivo deste capítulo, organizei-o inicialmente, em cinco
distintas seções: as três primeiras seções abordam a infância, a Pedagogia e, por último, a
instituição escolar, especialmente a escola de Educação Infantil. Mesmo compreendendo que
a infância, a Pedagogia e a instituição escolar estão imbricadas umas nas outras por um
complexo processo de articulação, foi necessária a organização em três seções na escrita deste
capítulo. A escrita inicial ajuda a pensar sobre as duas seções finais: os deslocamentos nas
práticas de registro e a emergência da documentação pedagógica.

2.1. A constituição do campo discursivo da infância

A ideia que hoje temos de infância surgiu especialmente na Modernidade, período em


que houve a preocupação de criar uma série de prescrições e determinações do que é ser
criança. Os estudos de Ariès (1981) e de alguns de seus seguidores apontam que, até o século
XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. Foi a partir do século
XIII que se iniciou a “descoberta da infância”, e sua evolução pode ser acompanhada na
história da arte e na iconografia entre os séculos XV e XVII. Sabemos que alguns autores,
dentre eles Heywood (2004), contrariam a ideia de Ariès, afirmando que “a infância (assim
como a adolescência) durante a Idade Média não passou tão ignorada, mas foi antes definida
de forma imprecisa e, por vezes, desdenhada”. (2004, p. 29). Kohan (2005) também aponta
que, entre os gregos, já havia uma preocupação com as crianças e um sentimento de infância:
Sócrates sinalizava a infância como um momento importante da vida, em que as crianças
precisavam ser cuidadas; Platão indicava: “[...] nos ocupemos das crianças e de sua educação,
não tanto pelo que os pequenos são, mas pelo que deles devirá [...]”, ou seja, com a educação
da infância, a pólis poderia tornar-se mais justa e melhor no futuro. (KOHAN, 2005, p. 39).
Embora reconheçamos a disparidade em alguns autores sobre o surgimento do
sentimento de infância, é visível que foi na Modernidade que sua construção histórica foi
datada, pensada, administrada, regulada e, como diversos autores afirmam, foi “inventada”.
(VARELA; ALVAREZ-URÍA,1992; NARODOWSKI, 2001; BUJES, 2002; COSTA, 2009c;
68

KOHAN, 2004, 2005, 2007; LARROSA, 1998). Como destacam Sarmento e Pinto (1997, p.
13), “crianças existiram desde sempre, desde o primeiro ser humano”, porém, a infância é
uma construção social “a propósito da qual se construiu um conjunto de representações
sociais e de crenças e para a qual se estruturam dispositivos de socialização e controle que se
instituíram como categoria social própria”. Todavia, é significativo lembrar que a criança não
é eterna, nem natural, mas sim, uma identidade social ligada às práticas familiares, de
educação e classe social. (VARELA; ALVAREZ-URÍA, 1992)38.
Em relação à concepção de infância construída na Modernidade, escolho abordar as
duas ênfases mapeadas por Dora Marín-Díaz (2010), fruto de sua pesquisa de Mestrado.
Segundo a pesquisadora colombiana, as noções de infância nesse período estão vinculadas à
“infância clássica” e à “infância moderna liberal”. A infância clássica mostra reflexos nos
pressupostos comenianos, apontando para a maleabilidade e a possibilidade de formação do
sujeito, marcados pela disciplinabilidade. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 200). “Formar o homem é
submetê-lo à disciplina, que se encarregará de aproveitar a atitude para a ciência, bem como a
honestidade e a piedade que nascem com a criança como semente, e que a levarão à própria
ciência, virtude e religião”. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 200). As crianças constituíram-se
infantis a partir do intenso disciplinamento da sociedade e, com ênfase nas práticas
disciplinares, passaram a viver nas escolas. Lá, por meio do ensino, deveriam alcançar a
humanidade.
A infância moderna liberal está ligada ao pensamento educativo do filósofo Jean-
Jacques Rousseau39(viveu em Genebra, entre 1712-1778), o qual apresenta outro modo de

38 A etimologia da palavra infância, como prefixo infans, leva-nos ao entendimento de noções de negatividade,
menoridade, ausência, falta. (BOTO, 2002; SARMENTO, 2004; KOHAN, 2007, 2008). Para Kohan (2008), a
infância nasce como uma palavra latina, há mais de vinte séculos. Infans: indivíduo de pouca idade; o termo
contém o prefixo in e fari – falar; Indivíduo que não fala, incapaz de falar; Infantia: incapacidade de falar;
Infante: criança.
39 Cabe dizer aqui que, por volta do século XV e XVI, o humanista cristão Erasmo de Rotterdam já demonstrava
claramente a defesa de uma educação liberal para as crianças e as críticas à educação escolástica, na passagem da
Idade Média para a Modernidade. A esse respeito, escreve especialmente dois tratados pedagógicos, um
dedicado à educação de crianças entre dois e três anos, intitulado É necessário dar ainda muito cedo às crianças
uma educação liberal, e o outro voltado a jovens entre 12 e 17 anos, intitulado O plano de estudos. Embora
tenha vivido em época diferente, Rousseau, mais tarde, confirmará a natureza humana racional e livre. O
professor Dr. Sidnei Francisco do Nascimento dedica seus estudos à análise da educação liberal em Erasmo e
Rousseau e mostra que “Erasmo se debatia com o modelo de educação desenvolvido pela escolástica ao final da
Idade Média. Recomendava uma educação liberal baseada nas obras dos autores antigos, principalmente os
escritos dos gregos e dos latinos. Seu plano de ensino caminhava em direção contrária ao que se ensinava dentro
das escolas medievais. Incompreendido pela ortodoxia e pelos reformados, o humanista cristão procurava
renovar a interpretação das Sagradas Escrituras, distante do rigor formal incentivado pela lógica de Aristóteles e,
ao mesmo tempo, contrária à exegese propagada por Lutero e os luteranos. A teologia, a educação e a filosofia
deveriam ser conjugadas com liberdade. Assim, a criança deveria ser educada com o respeito e o cuidado
conjugados às suas potencialidades. Rousseau, por sua vez, se opunha à educação que destilasse preconceitos.
Ao observar a vida nas cidades, criticava, ao mesmo tempo, uma educação cheia de etiquetas sociais. A
69

conceber a criança, em meados do século XVIII. “Trata-se do sujeito que, ao interagir com o
meio, com o mundo – especialmente com a Natureza – e com os homens, desenvolve o que
tem de inteligência, potencialidades e Natureza própria”. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 201). Um
sujeito mais livre, que busca em si e por si mesmo, sendo que o papel do adulto é proteger, e
não julgar. Vemos emergir uma educação mais centrada na criança e nas suas características
particulares40.
Buscando maior aprofundamento, referencio Mariano Narodowski (2006) ao analisar
o discurso pedagógico do pastor morávio Jan Comenius (1592 – 1670) para a Pedagogia,
utilizando especialmente a obra Didática Magna (escrita no século XVII). O autor mostra que
Comenius traça um esquema daquilo que posteriormente se chamou de infância moderna.
Para Comenius, o homem deveria ser educado nos primeiros anos de vida; seguindo uma
ordem de sequenciação e graduação na instrução, todos os homens poderiamtornar-se
educáveis. Portanto, a infância deve ser formada com métodos eficazes, racionais e precisos,
mediante um programa universal de ensino, tal como descreve na Didática Magna.
Narodowski (2006) percebe que Comenius trata a infância como ponto de partida,
como base que deve ser completada para alcançar a idade madura, como uma semente que
precisa ser cultivada, ou seja, “a infância não pode ser outra coisa senão onde se assenta,
portanto, a base a partir da qual se atingem as metas superiores”. (NARODOWSKI, 2006, p.
44). Entretanto, conforme demonstra Narodowski (2006, p. 46), o ideal comeniano “não se
aprofunda nas qualidades empíricas do ser infantil, nem teoriza” sobre o sujeito infantil, ou
seja, “a infância não é uma substância que necessita ser cristalizada”. (NARODOWSKI,
2006, p. 46). Mesmo não se aprofundando nas qualidades empíricas do sujeito infantil,
Comenius aponta fortemente que a infância deve ser educada em sua totalidade, fora do

educação deveria ser desenvolvida fora da sala de aula, numa atmosfera campestre. A criança campesina era
mais feliz do que a nascida e educada nas grandes cidades. Para Rousseau o amadurecimento passava
invariavelmente pela consideração do outro. Era nesse momento que o autor migrava das considerações morais
para a vida política. O indivíduo deixa de ser criança quando começa a sofrer pelo sofrimento do outro, quando
percebe que não está mais sozinho no mundo e que sua felicidade não reside mais na satisfação apenas de suas
próprias necessidades. A noção de cidadania se constrói pelo reconhecimento do outro e pela consciência de que
devemos ao mesmo tempo respeitar e conviver com as diferenças. Mesmo envolvidos e reagindo a contextos
diferentes, ambos concordavam em muitos aspectos, sobretudo naquele que nos sugere que a boa educação é
essencial para nos tornarmos homens melhores e livres, com dignidade e responsabilidade”. (NASCIMENTO,
2015, p. 95).
40
Claudio Dalbosco, ao abordar o caráter aporético da educação natural da primeira infância, no livro Émile de
Rousseau, marca uma tensão entre as necessidades da criança e os cuidados do adulto, e nos mostra outras
leituras possíveis do pensamento rousseauniano, especialmente no que diz respeito ao caminho natural da
educação da criança. O autor afirma que “a dimensão significativa do conteúdo da educação natural deriva-se da
exigência, posta ao adulto, de assumir responsabilidades na formação da vontade e do caráter da criança, não
podendo, com isso, simplesmente projetar sua vontade no mundo da criança, mas, ao mesmo tempo, não manter
intocável seus desejos e caprichos”. (DALBOSCO, 2009, p. 183).
70

âmbito familiar (pois os pais não têm tempo, nem conhecimentos suficientes para educar seus
filhos), destacando assim a importância dos processos de escolarização.
Posteriormente, percebemos em Jean-Jacques Rousseau, especialmente na obra Emílio
ou da Educação, que “a infância significa o homem em seu estado natural, antes de ser
degenerado pela cultura”. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 201). É a partir do interior, das
particularidades de cada indivíduo, que ocorre a educação. O sujeito seria “o fator especial do
trabalho instrutivo, um fator dotado com uma capacidade de autorregulação que deveria ser
integrada na estratégia de governamento”. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 202). Retomando as
leituras na referida obra, Rousseau (1979) salienta:

Não deis a vosso aluno nenhuma espécie de lição verbal; só da experiência


ele as deve receber; não lhe inflijais nenhuma espécie de castigo, pois ele
não sabe o que seja cometer uma falta; não lhe façais nunca pedir perdão,
porquanto não pode ofender-vos. Desprovido de qualquer moralidade em
suas ações, nada pode ele fazer que seja moralmente mal e que mereça
castigo ou admoestação. (ROUSSEAU, 1979, p. 78).

Podemos perceber, na citação acima, a defesa de um progresso natural infantil e, ao


mesmo tempo, a necessidade de salvaguardar a inocência colada à criança. Quanto aos
adultos, é imprescindível organizar o espaço, prevenir ações indesejadas, cuidar e monitorar a
criança, para que nada de mal lhe aconteça, ou seja, “deixando as crianças em plena liberdade
de exercer sua travessura, convém afastar delas tudo o que possa torná-la dispendiosa e não
deixar ao seu alcance nada frágil ou preciso”. (ROUSSEAU, 1979, p. 79). Afirma Rousseau
(1979, p. 82) que é preciso educar Emílio no campo, “longe dos maus costumes da cidade,
que o verniz com que se cobrem torna sedutores e contagiosos para as crianças”. Pois é
preciso que Emílio “trabalhe como um camponês e pense como um filósofo, para não ser tão
vagabundo como um selvagem. O grande segredo da educação é fazer com que os exercícios
do corpo e os do espírito sirvam sempre de descanso uns para os outros”. (ROUSSEAU,
1979, p. 261).
Rousseau crê numa educação natural e isolada, fazendo alusão à infância da seguinte
maneira: “o mais perigoso intervalo da vida humana é o que vai do nascimento à idade de
doze anos. É o momento em que germinam os erros e os vícios”. (ROUSSEAU, 1979, p. 79).
O autor afirma que é preciso deixar a criança vir ao adulto, pois ela não deixará de fazer
questionamentos. Da educação de Emílio, podemos ver a centralidade que Rousseau concede
à criança, em detrimento do adulto, aquele que deve mais acompanhá-la do que instruí-la.
Noguera-Ramírez (2011) considera Emílio um esboço de um novo regime de veridição no
71

campo do saber pedagógico, que será atualizado e desenvolvido um século depois,


especialmente pela Psicopedagogia. Emílio, nas palavras do referido autor, é a primeira
superfície de emergência de novos enunciados e funcionará, até primórdios do século XX,
como regras de verdade para o discurso pedagógico moderno liberal. “O Emílio é um livro de
observação, o primeiro livro de observação da criança” (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p.
156), e, “com Emílio, o saber pedagógico moderno transpassa seu limiar político,
permanecendo como um saber especializado no governamento de si e dos outros”.
(NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 157).
De acordo com Maria Isabel Bujes (2004), as ideias rousseaunianas inspiraram todo o
pensamento pedagógico no século XIX, e Froebel, grande pedagogo da infância, foi o
primeiro exemplo a concretizar os seus pressupostos. Para a autora, tais pressupostos não se
inseriram de imediato no campo da prática: “será necessária toda a ‘revolução romântica’,
toda a imposição de uma visão positiva da ciência e mais um século de intervalo para que elas
revivam num núcleo ‘renovador’ da Pedagogia, no alvorecer do século XX”. (BUJES, 2004,
p. 49).
Chama-me atenção, ao voltar minhas leituras para Rousseau, incluindo as pesquisas já
feitas por Marín-Díaz (2010), Bujes (2004) e Noguera-Ramírez (2011), entre outros
pesquisadores, o quanto as sugestões na educação de Emílio estão presentes nos princípios
propagados em muitos dos referenciais italianos estudados neste trabalho (claro que refinadas
e rebuscadas em seu tempo, como veremos na Parte II da Tese). Rousseau destacava um
desenvolvimento mais natural, como se a criança, por ela mesma, provocasse interesse natural
sobre o mundo; os referenciais italianos defendem, cada um ao seu modo, o quanto o adulto
deve provocar e potencializar os interesses das crianças por uma série de recursos
pedagógicos na organização do espaço escolar. Certamente, a noção de interesse posta por
Rousseau e o interesse valorizado atualmente pelos referenciais italianos e pelas práticas
pedagógicas da Educação Infantil do nosso tempo não são idênticos, mas refinados e com
outras ênfases presentes nos discursos pedagógicos. Nesse sentido, Noguera-Ramírez já
destacava a nova linguagem presente nos discursos pedagógicos modernos, os quais trazem os
conceitos de liberdade e natureza que, ligados ao “interesse, crescimento, desenvolvimento,
maturação e meio”, estão no âmago dos discursos pedagógicos atuais. (NOGUERA-
RAMÍREZ, 2011, p. 153)41.

41
Interessante marcar, novamente, que outras leituras são possíveis em relação ao pensamento rousseauniano, tal
como abordam os reconhecidos estudos e pesquisas de Dalbosco. A partir dos estudos do livro Emílio, este autor
mostra que o adulto deve “auxiliar na supressão das necessidades físicas, no desenvolvimento das forças
72

Considerando essas e outras leituras possíveis dos estudos rousseaunianos, pretendo


marcar a postura de problematização que desejei exercer em toda a elaboração desta pesquisa.
Não é possível saber exatamente todas as possibilidades de endereçamento da proposta de
registro da documentação pedagógica, ora em análise nesta tese, mas é possível mostrar que
no recorte selecionado para análise, a ênfase se dá nestas dimensões que o exercício analítico
me possibilita afirmar.
Em relação aos estudos já destacados neste capítulo, podemos perceber que a
Modernidade idealiza um processo de visibilidade da infância, diferenciando o mundo adulto
do mundo infantil. Para a consolidação desse regime de visibilidade da infância, observamos
que o sentimento dos adultos em relação às crianças precisa ser, paulatinamente, transformado
e aprimorado: as formas de proteção e cuidado, as expressões de carinho e amor maternal, a
organização familiar e escolar, as vestimentas e brinquedos demarcam o surgimento de uma
relação, de uma atitude diferente para com as crianças – grupo geracional que passa a
representar a população infantil. Esse sentimento vai sendo alterado de acordo com o tempo e
o espaço sócio-histórico-cultural, ou seja, há uma produção discursiva e não-discursiva que
opera sobre a infância, a qual passa a ser descrita, calculada, avaliada, “tornando as crianças e
a infância alvos de determinadas instituições e foco de tecnologias de poder”. (BUJES, 2002,
p. 21).
A construção histórica da infância moderna fabricou e consolidou uma infância
cronológica, rodeada de linearidades e sucessões, com data de início e término, marcada pelas
fases e etapas de desenvolvimento e pela diferenciação entre tipos de crianças (sadias,
educadas, medicalizadas, doentes, delinquentes, indisciplinadas, deficientes, superdotadas,
hiperativas, etc.) para efeitos classificatórios, sempre idealizando o futuro com a promessa de
intervir na infância para a construção de um mundo melhor e renovado. De acordo com
Resende (2015, p. 8), há uma máquina que governa a infância em nossa sociedade, que
“regula, dirige, controla, ensina, normaliza, disciplina, pune, castiga, cura, educa. Essa
máquina que faz viver e que deixa morrer”.
A partir de uma perspectiva foucaultiana, venho compreendendo que a infância é
governada por meio da invenção de uma série de saberes, programas, tecnologias e estratégias
que conduzem a vida das crianças e também a vida dos adultos em relação às crianças, tudo
atravessado por múltiplas, diferenciadas e intensas relações de poder. O governamento da

naturais, no disciplinamento da fantasia e do desejo da criança” (DALBOSCO, 2009, p. 187), introduzindo na


criança o conceito de liberdade bem regrada (compreendido como ideal normativo regulador do modo como os
adultos devem cuidar da criança). Para maior aprofundamento, sugiro as seguintes leituras: Dalbosco (2007;
2007a; 2009; 2009a; 2011; 2011a); Wendt; Dalbosco (2012).
73

infância dá-se mediante certa racionalização nas formas de agir sobre as ações dos outros para
alcançar determinados fins (ROSE, 2011), mas opera também nas formas de agir que afetam a
maneira como os próprios indivíduos conduzem a si mesmos. (BUJES, 2008). A infância
seria uma condição vital para governar os sujeitos infantis. Como condição para governar as
crianças, a infância moderna trata de fabricar um sujeito infantil governável, um indivíduo
capaz de governar a sua vida. Os saberes, as tecnologias, as práticas discursivas e não-
discursivas vão governando e produzindo esse sujeito infantil.
Importa refletir que essa compreensão iluminou os saberes ditos científicos do campo
pedagógico na Modernidade, “saberes, que, uma vez descritos e problematizados, poderão
revelar quem é esse sujeito, como ele chegou a ser o que dizemos que ele é e como se
engendrou historicamente tudo isso que dizemos dele”. (VEIGA-NETO, 2011, p. 113).
Também é relevante dizer que a Modernidade produziu a segregação da criança em relação à
sociedade, para restituí-la a essa mesma sociedade com um novo status. (NARODOWSKI,
2001). Sobre essas questões, abordarei maiores reflexões nas seções seguintes, apontando
como a Pedagogia se configura numa expertise do campo da infância e dos sujeitos infantis e
como a escola os captura para, então, escolarizá-los por um longo período de tempo. Por ora,
cabe esboçar alguns deslocamentos nas formas de compreender a infância na
Contemporaneidade.
A Contemporaneidade aponta para uma pluralização dos modos de ser criança e para a
necessidade de heterogeneização da infância enquanto categoria social geracional (discussão
bastante cara para a Sociologia da Infância), e alguns autores fazem referência à infância no
plural – infâncias – para indicar a multiplicidade das formas de vida infantil. Percebe-se que o
termo infância, no singular, se torna insuficiente para sinalizar os modos de ser criança na
Contemporaneidade, não sendo possível expressar de uma única forma a diversidade desse
grupo etário. Já outros autores – dentre eles, destaco Postman (1999) e Buckingham (2007)–,
preferem utilizar o termo morte da infância, para sinalizar o desaparecimento da concepção
de infância construída na Modernidade e a emergência de uma infância pós-moderna. Tal
como denominou Marín-Díaz (2010), há uma infância clássica e uma infância moderna
liberal, e a conhecida expressão “desaparecimento da infância” estaria vinculada ao
apagamento das características construídas na Modernidade, especialmente pelas novas
formas de vida das crianças, conectadas e expostas à televisão, à internet e ao consumo.
Não pretendo entrar na seara de definições, para então advogar uma posição ou outra
neste trabalho. Não objetivo defender nem a expressão infâncias, nem compactuar com a
morte da infância. Trazendo essa problemática, minha intenção é mostrar que os ideais
74

traçados na Modernidade sofrem mudanças, mas também procuram resistir a elas. Considerar
a infância enquanto invenção, enquanto construção histórica não-universal, nem natural,
implica considerar também que os modos de viver a vida das crianças são diferentes em
determinadas épocas e culturas.
Recentes pesquisas e publicações vêm mostrando que as transformações na sociedade,
a vida e os tempos líquidos42, o consumo e a mídia, a globalização e a competitividade, “têm
produzido tipos peculiares de sujeitos infantis”. (MOMO; COSTA, 2010). O neoliberalismo
provoca mudanças nas formas de ser criança, de viver a vida infantil e nos modos de os
adultos se relacionarem com as crianças. Atualmente, também é possível perceber um
enfraquecimento da figura paterna e materna, um borramento das relações existentes entre
adultos e crianças, pois, como nos alerta Narodowski (2013), vivemos num “mundo sem
adultos”. Se nas práticas modernas esses mundos foram perceptivelmente separados (tanto em
tempos, quanto em espaços), percebemos atualmente uma aproximação e um borramento
dessas fronteiras. Esse borramento é visível nas formas de vestir, nos ambientes frequentados
por crianças e adultos, nos assuntos debatidos, ou seja, pouco se percebe de diferenciação
entre o que é ser criança e o que é ser adulto hoje em dia 43. É possível identificar crianças
consumindo como e com os adultos, assistindo aos mesmos programas televisivos (novelas,
filmes), apresentando agendas e compromissos diários, envolvendo-se no trabalho, na
criminalidade, sendo alvos de erotização e abuso sexual44. Do mesmo modo, ouvimos pais
dizendo que não sabem mais como educar seus filhos, avós expressando que não sabem quase
nada das crianças e, por conseguinte, crianças determinando ações e atitudes aos adultos e
monitorando suas vidas.
Alguns autores interessaram-se em pesquisar os modos de subjetivação infantil a partir
das novas culturas da infância, focando suas pesquisas na relação das crianças com a mídia

42 Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, conceitua a Modernidade como tempo sólido e os acontecimentos
contemporâneos como Modernidade líquida; as mudanças sociais vão sendo “derretidas” para dar espaço à
leveza dos líquidos. As pessoas e as suas ações são caracterizadas pela instabilidade, incerteza e insegurança,
passando de produtoras para consumidoras. O consumo é o eixo organizador da nova sociedade, e nossos
padrões de conduta são guiados e moldados pelo mercado. (BAUMAN, 2001; 2007; 2008; 2009).
43 A título de curiosidade, alguns desenhos, como “The Simpsons” e a tão atual “Peppa Pig”, mostram esse
borramento de fronteiras entre adultos e crianças.
44 Interessante assistir ao documentário Crianças Invisíveis (2005), que retrata a realidade vivida por sete
crianças de diferentes países, sendo que cada episódio conta com um diretor: Mehdi Charef (África), Emir
Kusturica (Sérvia-Montenegro), Spike Lee (Estados Unidos), Kátia Lund (Brasil), Jordan Scott & Ridley Scott
(Reino Unido), Stefano Veneruso (Itália) e John Woo (China); sugiro também A Invenção da Infância (2000),
produzido no Brasil por Liliana Sulzbach, e o documentário Babies (2010), dirigido por Thomas Balmès, que
procura retratar o primeiro ano de vida de quatro bebês em lugares diferentes: Namíbia, Japão, EUA e Mongólia.
75

televisiva, produção cinematográfica, propagandas, videogame e internet45. Há pesquisas


sobre as mudanças nas formas de brincar e na própria composição e exploração dos
brinquedos46. A erotização dos corpos infantis também se torna foco de investigação, além
dos crescentes estudos sobre gênero e sexualidade47. O que pretendo apontar aqui são as
mudanças nas formas de compreender a infância e a criança, gerando transformações nas
práticas escolares. Assistimos ao desenvolvimento de uma criança que não se encaixa nas
práticas escolares modernas ou nas formas de ensinar traçadas pela pedagogia moderna, que
não aceita facilmente atividades coletivas; acompanhamos a produção de um campo
discursivo de uma infância que não se encaixa prontamente nos tempos e nos espaços
escolares. Para seguir pensando sobre tal problemática, procuro mostrar, na seção seguinte,
como a Pedagogia moderna tornou-se uma expertise da infância, produzindo uma série de
conhecimentos legítimos que regulam os sujeitos infantis, e como a instituição escolar
moderna tornou-se uma instituição autorizada a capturar a infância, criando estratégias e
dispositivos que produzem efeitos nos sujeitos infantis.
Nos deslocamentos vivenciados, vemos emergir pedagogias contemporâneas que
extrapolam os saberes específicos da infância, passando a pedagogizar muitos outros espaços
e modos de vida. Vemos emergir também uma escola contemporânea que desenvolve práticas
pedagógicas nas quais o aluno tem cada vez mais liberdade para tomar decisões sobre as
questões que dizem respeito à sua aprendizagem, isto é, centralizam-se as práticas no aluno e
no aprender, em detrimento do professor e do ensino. Contudo, não devemos compreender
essas questões como simples substituição ou troca de um modelo por outro (simples e
excludente passagem do moderno para o contemporâneo); antes, cabe compreendê-las quase
como uma coexistência, um rizoma, com novas ênfases, com luzes ora ligadas para uns e
desligadas para outros. Dito de outro modo, tudo é deste mundo, mas em alguns momentos
históricos praticamos as nossas vidas de determinadas formas e interditamos outras. Tais
ênfases marcam os deslocamentos para uma sociedade de seguridade, na qual a aprendizagem
acontece sem a ação do ensino, ou seja, os indivíduos aprendem em variados tempos e
espaços, sem necessariamente depender dos processos de ensino.

45 Kincheloe (2001); Steinberg (2001); Pereira (2002); Girardello (2005); Linn (2006); Buckingham (2007);
Fischer (2006, 2007, 2008); Costa (2009a, 2009b, 2009c); Coutinho (2009); Momo e Camozzato (2009);
Andrade e Costa (2010); Momo e Costa (2010); Schmidt (2010); Alcântara e Guedes (2014).
46 Fortuna (2004); Meira (2012).
47 Felipe e Guizzo (2003); Dal’Igna, 2007, Alvarenga; Dal’Igna, 2013.
76

2.2. Da pedagogia às pedagogias da infância

A Pedagogia moderna não foi uma descoberta de homens inteligentes e


criativos; e também não foi uma invenção calcada na criatividade e na
racionalidade desses homens. (VEIGA-NETO, 2004, p. 81).

Como as atividades escolares cotidianas da vida das crianças passaram a ser quase
universais e padronizadas? Como pensamos e agimos com e sobre as crianças da maneira
como pensamos e agimos hoje, especialmente nos contextos escolares? Que saberes fabricam
e conformam o sujeito infantil? Ser aluno, frequentar escola, cursar a mesma série, ser
alfabetizado na mesma idade, participar de inúmeras atividades extraclasses, ser avaliado,
entre outras atividades ordinárias. É na tentativa de pensar sobre tais questões que desenvolvo
esta seção, investindo esforços para discorrer sobre os saberes engendrados pela Pedagogia
em relação à infância. Mostro como a Pedagogia moderna constitui-se enquanto área de
conhecimento, atuando e produzindo o sujeito infantil escolarizado. Por sua vez, na
Contemporaneidade, vemos emergir várias pedagogias para a infância, extrapolando os muros
do sistema escolar. O objetivo desta seção é apresentar a necessidade que a Pedagogia
(principalmente com sua raiz psi) encontra para registrar dados, informações,
comportamentos, atitudes, aprendizagens do sujeito infantil, ou seja, a vontade de Pedagogia
mostra-se articulada com a pluralização das práticas de registro docente.
A invenção e consolidação da Pedagogia está atrelada à invenção e consolidação da
infância e da própria instituição escolar. Analisar essas questões, em especial no contexto
deste trabalho acadêmico, implica compreender como a infância e as crianças tornaram-se
sujeitos-objetos de conhecimento e alvos de intervenção, sobre quem é possível narrar,
descrever, registrar, classificar, intervir, medicar, julgar, encaminhar, entre tantos outros
verbos no infinitivo. Antes de seguir adiante, é importante esclarecer que não será foco de
minha escrita desenvolver uma análise sobre as transformações ocorridas nas definições do
conceito de Pedagogia, nem sobre os embates travados em torno de sua definição enquanto
campo de saber e área de conhecimento.
Interessa-me olhar para o exercício da Pedagogia na construção de uma expertise
sobre a criança e a infância. Ao utilizar a palavra expertise, busco inspiração nas escritas de
Nikolas Rose (2011), que, ao analisar o papel social da Psicologia, o seu modo particular de
dizer a verdade sobre os sujeitos humanos e o seu modo particular de agir sobre eles para
aperfeiçoá-los, caracteriza a Psicologia como uma expertise. Expertise seria “um tipo
particular de autoridade social, caracteristicamente desenvolvida em torno de problemas,
77

exercendo um certo olhar diagnóstico, fundada sobre uma reivindicação de verdade,


afirmando eficácia técnica e reconhecendo virtudes éticas humanas”. (ROSE, 2011, p. 123,
grifos do autor). Seria uma espécie de captura, de uma autoridade pautada na reivindicação de
conhecimentos verdadeiros, objetivos e científicos, com técnicas eficazes. Isso se formaliza
em cursos, artigos, livros, programas, propostas, regras, recomendações e prescrições. “A
expertise opera através da sua relação particular com as capacidades de autorregulação dos
sujeitos”. (ROSE, 2011, p. 218).
A expertise atua na alma do indivíduo, sendo que ele mesmo deverá querer e desejar
conduzir sua vida para a normalidade, contentamento, sucesso e qualidade de vida. Nesse
sentido, penso que a Pedagogia faz essa captura da infância e da criança, transformando-as em
objetos de conhecimentos científicos e verdadeiros, ou seja, os discursos pedagógicos tornam-
se expertise da infância e das crianças. Em uma de suas entrevistas, Foucault já destacava que
o “controle contínuo dos indivíduos conduz a uma ampliação do saber sobre eles, que produz
hábitos de vida refinados e superiores”. (FOUCAULT, 2006, p. 307).
Como sabemos, a Pedagogia – hoje entendida como a ciência da educação,
compreendida no campo das Ciências Humanas – emerge no século XVI, na Europa; a partir
disso, saberes sobre o ensino e a aprendizagem foram se consolidando e ampliando.
Entretanto, conforme destaca Veiga-Neto (2004, p. 65), aquilo a que se assistia, naquele
período, não era um aperfeiçoamento ou uma evolução dos saberes e das práticas
educacionais, mas “é mais correto dizer que houve, aí, uma ruptura, uma verdadeira revolução
nas maneiras de entender a Educação [...]. E, talvez mais importante do que tudo isso: tratou-
se de uma revolução que não se restringiu ao campo da Educação”.
Como bem assinala Veiga-Neto (2004), a Pedagogia e, consequentemente, as práticas
educacionais, não são naturais e não foram descobertas pela razão humana; o seu conjunto de
saberes tem uma história recente, e sua “construção não parte simplesmente de uma suposta
capacidade humana de criar racionalmente os saberes”, mas está voltada a “uma vontade de
poder que se situa na esfera da vida social e que só a partir daí é que se criam e se combinam
discursivamente os diferentes saberes”. (VEIGA-NETO, 2004, p. 67). Assim, podemos
compreender os saberes pedagógicos modernos e as práticas pedagógicas modernas como
construções históricas, invenções que fizeram e fazem sentido em determinados tempos e
espaços e que passam por transformações e reconfigurações, permeadas por relações de poder
e saber, produzindo efeitos nos sujeitos escolares e nos modos como eles praticam suas vidas.
As mudanças na educação, por volta do século XVI, estavam articuladas com
mudanças anteriores, ocorridas em torno do século XIV, abrangendo transformações sociais,
78

econômicas, religiosas, políticas e culturais, fazendo emergir a pedagogia moderna. (VEIGA-


NETO, 2004). Fatores como o enfraquecimento da igreja católica e as disputas religiosas, o
processo de laicização, a crise no modelo do feudalismo, a crescente urbanização, as guerras,
as epidemias, o surgimento da classe burguesa, entre outros, foram marcantes. “O que estava
acontecendo era uma profunda transformação que deixava para trás muitos valores, esquemas
cognitivos, crenças, certezas e práticas que haviam predominado nos mais de mil anos
anteriores”. (VEIGA-NETO, 2004, p. 71).
A experiência humana, as explicações sobre o homem, o mundo e a natureza, ao que a
igreja e a espiritualidade sempre deram respostas tidas como convincentes e válidas, no final
do século XV, passam a entrar em descrédito. “Enquanto que a ordem medieval era pensada
como aberta e infinita e, portanto, incerta ou aproximada, a ordem moderna passa a ser
pensada como fechada e finita e, portanto, certa e exata”. (VEIGA-NETO, 2004, p. 72). É
nesse contexto que a Ciência Moderna, com suas disciplinas, ganharia espaço e força e que o
conhecimento científico tomaria por problemas de investigação certos aspectos da vida
cotidiana, reelaborando-os a partir de uma lógica própria. “Foi assim que a reunião e
ordenação dos saberes educacionais, num corpo mais ou menos homogêneo e bem delimitado
em relação aos outros saberes, deu origem a essa disciplina que conhecemos como
Pedagogia”. (VEIGA-NETO, 2004, p. 72).
Ao lado da invenção de um sentimento de infância, com as crianças ocupando outros
espaços na vida social, temos saberes pedagógicos que vão se complexificando. As atividades
da Pedagogia estão articuladas com os novos discursos sobre infância e criança, e “a
emergência de um espaço específico para educação das crianças, o aparecimento de um corpo
de especialistas da infância dotados de teorias e tecnologias específicas e a imposição da
obrigatoriedade escolar” também andam lado a lado. (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992, p.
69). A racionalização da Filosofia, Medicina, Psicologia, Política, Direito, Exército, agrupa-se
em um dispositivo discursivo que, como argumenta Ó (2009, p. 11), “veio a conformar e a
enraizar as Ciências da Educação”.
É importante manifestar aqui que alguns elementos surgidos na Antiguidade greco-
romana, especialmente com os filósofos Aristóteles e Platão, também tiveram influências no
pensamento europeu, percebendo-se na criança e no jovem possibilidades e necessidades de
educação, o que fez renascer alguns valores e padrões da Grécia e Roma antigas, além de
marcar um caráter salvacionista na pedagogia moderna. A criança só poderá transformar-se
em homem a partir da educação, devendo ser conduzida à maioridade racional, ou,
79

[...] pode-se dizer que, para Platão há a combinação de dois elementos


simultâneos: por um lado, educa-se para desenvolver certas disposições que
se encontram em estado bruto, em potência, no sujeito a educar; por outro
lado, educa-se para conformar, para dar forma, nesse sujeito, a um modelo
prescritivo, que pode ser estabelecido previamente. A educação é entendida
como uma tarefa moral, normativa, como o ajustar o que é a um dever ser.
Com tudo isso, Platão eleva o cultivo, pela via educacional da criança e do
jovem, a um imperativo de ordem política. E ainda que ele considere que
todos —mesmo os adultos— estejam continuamente se educando, é a
educação da criança que mais importará para uma sociedade melhor.
(VEIGA-NETO, 2004, p. 77).

Começa, então, a emergir uma Pedagogia interessada na infância, um saber


pedagógico que captura a infância, que privilegia “estudar e conhecer as crianças, seu corpo,
seus desejos, seus brinquedos, seu pensamento, suas capacidades intelectuais”; os saberes e
poderes passam a “produzir um tipo específico de criança, uma forma particular de
subjetividade infantil”. (KOHAN, 2005, p. 94). Narodowski (2001) contribui nesse debate ao
perceber que a infância é o ponto de chegada e o ponto de partida da Pedagogia moderna.
Para o autor, essa Pedagogia, enquanto produção discursiva designada a regrar e explicar a
produção de conhecimentos no âmbito da educação e da escola, vai dedicar esforços a fazer
das crianças “futuros homens de proveito”, ou “adaptados à sociedade de maneira criativa”,
ou “sujeitos críticos e transformadores”. (NARODOWSKI, 2001, p. 21).
Podemos citar aqui dois grandes manuais pedagógicos que influenciaram a
organização dos sistemas escolares: o Ratio Studiorum – grande manual pedagógico do ensino
jesuíta, publicado em 1599; e a Didática Magna, de Jan Amos Comenius, datada de 1649,
considerada obra que fundou a Pedagogia Moderna. De acordo com Bujes (2010a), Comenius
lançou bases de uma pedagogia que existe até hoje, como, por exemplo, a sua universalidade,
seu acesso como pública, a sua especialização e ordenação, além da responsabilidade
compartilhada com a família. Alguns traços de sua organização, considerando a
simultaneidade, a graduação dos tempos, conteúdos, níveis e dificuldades, ainda são
característicos da maioria das escolas na atualidade. O ideal comeniano – ensinar tudo a todos
– busca projetos escolares que coloquem ordem no tempo, nos espaços, nos recursos, nos
saberes, de modo que todos possam adquirir os saberes necessários para se tornarem homens
educados. Para ele, é preciso pensar num programa universal, que será desenvolvido do mais
simples para o mais complexo, intercalando trabalho e repouso, garantindo assim um controle
sobre os processos de ensino e aprendizagem48.

48 Tal como aponta a Dissertação de Mestrado de Denis Nicolay (2006), para Comenius, a infância torna-se alvo
de salvação. “A Didática Magna é o esforço de um pedagogo em conciliar ciência e fé; em aproximar teologia e
80

A Pedagogia constituída na Modernidade é resultado de uma disciplinarização e


normalização dos saberes e dos sujeitos, buscando fundamentação e sustentação nas ciências
humanas – Psicologia, Sociologia, História, Antropologia, entre outras –, mas especialmente
nas disciplinas clínicas – Psiquiatria, Psicanálise, Pediatria. Todos esses saberes fizeram
surgir as chamadas ciências do homem e o homem como objeto da ciência. (FOUCAULT,
2009). Pretende-se sublinhar aqui o tom prescritivo e normalizador da Pedagogia Moderna,
marcada pela “arte que inventa e modela o ‘sujeito moderno’, regulando seus tempos e
espaços, dando ordem à sua vida, dirigindo e orientando a sua conduta”. (CAMOZZATO;
COSTA, 2013b, p. 163).
A Pedagogia é colocada no seguinte quadro/moldura por Ó (2013): a população veio a
ser objeto de conhecimento, pedindo a presença de novos especialistas, e o Estado passou a
produzir legislação e estatística para explicar e conformar o funcionamento da economia e da
sociedade. Seria um regime de enunciação que, “em nome de um conhecimento racional,
permitiu a diferentes autoridades, públicas e privadas, reclamar a possibilidade do seu
governo dos homens e das coisas”. (Ó, 2013, p. 178). Vimos emergir uma pedagogia moderna
envolvida com a constituição de um sujeito dócil e disciplinado, capaz de ser produtivo para
uma sociedade. “A pedagogia vai corresponder ao conjunto de saberes e práticas postas em
funcionamento para produzir determinadas formas de ser sujeito”, relacionando-se com os
modos de condução dos sujeitos, operando sobre eles, visando a obter determinadas ações,
incitando a um governo de si e dos outros. (CAMOZZATO; COSTA, 2013a, p. 26).
As instituições escolares, por sua vez, estabeleceram uma aliança com os tratados
pedagógicos, e o movimento de escolarização instala-se na Modernidade. “No espectro da
governamentalidade, a escola despontará, então, como um dos espaços privilegiados de
criação, de aplicação e de difusão de técnicas pessoais sustentadas por jargões pedagogizantes
específicos”. (AQUINO, 2013, p. 204). A Pedagogia, como aponta Ó (2009, p. 39), aspirando
ser uma Psicologia aplicada, “tomara-se da ambição de agir e governar sobre o espírito e o
corpo das crianças e dos jovens, transformando a subjetividade infantil numa forma calculável
e, por isso, governável. A interioridade tornou-se desde então visível a partir de uma lógica de
inscrição da individualidade”. (Ó, 2009, p. 42).
O sujeito da educação – seu corpo, alma, comportamento, aprendizagem, relações –
vai tornar-se objeto dessa Pedagogia, e sobre ele haverá uma normalização disciplinar. A

empirismo; em artificializar o mundo natural e desartificializar o mundo científico; em povoar a literatura


infantil pedagógica de imagens da natureza com mensagens bíblicas; em prometer a salvação humana através do
conhecimento, ou melhor, em tornar o homem uma humanidade possível dentro das humanidades, pela
descoberta de um Eu interior”. (NICOLAY, 2006, p. 33).
81

Pedagogia vai precisar de técnicas e práticas cada vez mais sofisticadas que atuam sobre os
sujeitos. Tal como aponta Gadelha (2013), “a pedagogia (e, portanto, as instituições
educativas) recebe ‘de fora’ as referências que lhe permitem produzir e representar seu objeto
– o sujeito da educação – individualizando-o, num sentido amplo, como ‘o aluno’, ‘o escolar’,
‘o aprendente’”. (GADELHA, 2013, p. 178). Parafraseando Miller e Rose (2012, p. 14, p. 23),
poderia dizer que a Pedagogia se torna administradora da alma humana infantil, ou ainda,
engenheira da alma humana infantil. A Pedagogia e, portanto, a educação e a escola, vão
operar nos

[...] processos de conformação que especificam esse sujeito, classificando-o


e fixando-o arbitrariamente em categorias que oscilam entre a normalidade e
a anormalidade (como “ajustado” ou “desajustado, “infradotado” ou
“superdotado”, “motivado” ou “desmotivado”, e assim por diante – com
todas as classificações psicopedagógicas, médico-psiquiátricas,
psicanalíticas e higienizantes aí implicadas), elas exerceriam uma
normalização. (GADELHA, 2013, p. 178).

Como temos visto, a Pedagogia moderna vai fabricar práticas de registro sobre o
sujeito infantil capazes de classificá-lo, julgá-lo e fixá-lo em categorias, e faz isso quando se
liga a uma vertente psicologizante. A Pedagogia, portanto, apresenta uma raiz psi,
mobilizando práticas de registro com foco no diagnóstico de normalidades e anormalidades. A
Pedagogia moderna passou a diagnosticar, e “o exercício moral encontrava na autonomia e na
vontade livre do aluno as suas duas traves mestras”, enquanto que, ao adulto professor,
competia “mais que um papel de facilitador e de mediador terapêutico”. (Ó, 2013, p. 179). A
relação educativa moderna tem, portanto, uma raiz psi, “o que significa que passou a estar
dependente dos diagnósticos, orientações teóricas, divisões e formas de explicação que a
Psicologia concebeu para indexar e reelaborar os imperativos éticos”. (Ó, 2009, p. 25).
Podemos nos reportar aos estudos de Júlia Varela (2000), quando analisa os
movimentos da Pedagogia e da própria escola, propondo três modelos pedagógicos que
serviram como tendências pedagógicas, a saber: as pedagogias disciplinares (ampliam-se a
partir do século XVIII), as pedagogias corretivas (surgem no século XX, ligadas aos
movimentos da Escola Nova, Educação Nova ou Escola Ativa) e as pedagogias psicológicas
(em expansão atualmente). Passo, rapidamente, a definir as caracterizações de cada uma49.

49 Vale fazer referência também aos estudos desenvolvidos pelo professor Dr. Noguera-Ramírez (2009) sobre as
tradições pedagógicas modernas. O autor propõe, a partir das teorizações foucaultianas, três movimentos: virada
instrucional (a preocupação pedagógica desloca-se do estudo para a instrução, o ensino); virada pedagógica (a
preocupação pedagógica desloca-se da instrução para a formação, a educação); e virada psicopedagógica (a
preocupação pedagógica desloca-se da formação e da educação para a aprendizagem).
82

Nas pedagogias disciplinares, configuradas na segunda metade do século XVIII, havia


a preocupação com a civilização da infância. Assim, os programas de ensino preocuparam-se
com o uso dos espaços (localização precisa) e tempos (organizando as atividades a partir de
esquemas progressivos e de complexidade crescente), os quais foram interiorizados pelos
alunos, produzindo um indivíduo disciplinado, ou seja, “o espaço escolar funciona como uma
máquina de aprender [eu diria, de ensinar] e ao mesmo tempo possibilita a intervenção do
mestre em qualquer momento para premiar ou castigar e, sobretudo, para corrigir e
normalizar”. (VARELA, 2000, p. 84-85). Dessa forma, “o sistema de ensino no qual cada
aluno trabalhava com o mestre durante alguns minutos, para permanecer em seguida ocioso e
sem vigilância, misturado com o resto de seus companheiros” (VARELA, 2000, p. 83),
passou a vigorar, e os exames, baseados em provas, não apenas avaliam as aprendizagens e a
formação dos escolares, mas “também conferem a cada estudante uma natureza específica:
convertem-no em um sujeito individual”. (VARELA, 2000, p. 86).
Nas pedagogias corretivas, vemos surgir um foco na infância desajustada, ou seja,
aparece “um novo campo institucional de intervenção e extração de saberes destinados à
ressocialização da infância anormal e delinquente”. (VARELA, 2000, p. 89). Decroly e
Montessori são pensadores influentes nesse momento; resgatando as crenças de Rousseau
para a educação e incluindo as pesquisas na área da Psicologia, acreditam que a escola deveria
adaptar-se aos interesses naturais das crianças e que o professor deveria “dar forma e sentido a
essas atividades”. (VARELA, 2000, p. 91). O processo escolar deveria ser “menos visível,
menos opressivo e mais operativo” (VARELA, 2000, p. 93), posto que as crianças
desenvolveriam suas necessidades naturais. O ensino “se desloca agora, tornando-se indireto,
para a organização do meio. E o objetivo ao qual se volta já não é mais a disciplina exterior
produto de um tempo e de um espaço disciplinares, mas a disciplina interior, a autodisciplina,
a ‘ordem interior’”. (VARELA, 2000, p. 93). Civilizar e domesticar as crianças constitui “o
objetivo dessa escola pública obrigatória na qual seguirão reinando as pedagogias
disciplinares”. (VARELA, 2000, p. 88).
As pedagogias psicológicas, configuradas a partir das pedagogias corretivas,
fortaleceram ainda mais o controle interior de cada indivíduo, tendo como inspiradores,
especialmente, Piaget e Freud. Essas pedagogias produziram “personalidades flexíveis,
sensíveis, polivalentes e ‘automonitoradas’ – capazes de autocorrigir-se e autoavaliar-se”.
(VARELA, 2000, p. 102). Aqui, a criança é vigiada e controlada “muito mais do que nas
‘velhas pedagogias’, porque não apenas se requeriam dela as respostas corretas, mas também
agora era necessário que mesmo seu verdadeiro mecanismo do desenvolvimento fosse
83

controlado”. (VARELA, 2000, p. 99). O respeito ao ritmo individual de cada aluno, com base
na sua “natureza natural”, constituiu uma tecnologia “que o tornou tanto mais dependente e
manipulável quanto mais liberado fosse”, ou seja,

Os alunos têm assim cada vez um menor controle sobre sua própria
aprendizagem, já que apenas os mestres, e sobretudo os especialistas, podem
conhecer os progressos ou retrocessos que realizam. [...] Sofrem, portanto,
um processo de expropriação cada vez mais intenso que constitui a outra
face da intensificação de um estatuto de minoria que, além dos cânticos à
criatividade, à liberação e à autonomia, supõe dependência e subordinação
cada vez maiores. (VARELA, 2000, p. 99).

Partindo de toda esta discussão, o que me interessa ressaltar é que o controle exercido
sobre os alunos se torna cada vez maior, porém menos visível, não apenas exigindo disciplina,
nem autodisciplina, mas um controle interior refinado. Há um deslocamento no discurso
pedagógico, que vai do coletivo para o indivíduo; dito de outro modo, o centro dos processos
pedagógicos não está mais no coletivo (tal como os ideais comenianos de ensinar tudo a
todos), mas sim no aluno, no conhecimento minucioso de sua individualidade.
Creio que aqui a emergência da Escola Nova, tomada como movimento de renovação
da educação, iniciado no final do século XIX50, mas ganhando força no século XX em
diversos países do mundo, contribuiu para que as tentativas pedagógicas se voltassem para a
centralidade no indivíduo. O grande inspirador das teorias pedagógicas do movimento da
Escola Nova foi Rousseau (MARTINEAU, 2010), que instituiu princípios básicos para uma
psicologia do desenvolvimento da criança, que será posteriormente estudado no século XX
por Jean Piaget.
Enquanto a escola tradicional pregava a direção, a uniformidade, o controle, a atenção
forçada, a memorização, a pressão externa e a disciplina imposta por meio do autoritarismo, a
Escola Nova defendia a liberdade, a autonomia, o interesse e a iniciativa pessoal do aluno, e
“as crianças começaram a ser igualmente um dos alvos privilegiados dos programas de
individualização levados a cabo pelos experts do particular, os psicólogos e os pedagogos”.
(Ó, 2013, p. 191). É nesse contexto que surgem a escola pública e os sistemas estatais de
ensino, os quais foram constituídos, segundo Jorge Ramos do Ó, a partir das regras da
governamentalidade, a saber, “treino moral da população jovem” para que o Estado
aumentasse a sua força e prosperasse, reivindicando “bem-estar de cada um dos cidadãos”.

50 Muitas escolas são criadas nesse período em diferentes países da Europa, tais como a Casa das Crianças em
Roma, fundada em 1900 por Maria Montessori, e a Escola de Hermitage, em Bruxelas, fundada em 1907 por
Decroly.
84

(Ó, 2013, p. 191). Ao mesmo tempo, “o educador que quisesse receber o epíteto de moderno,
deveria, inversamente, variar as suas metodologias de ensino de acordo com a estrutura de
cada inteligência e o temperamento individual”. (Ó, 2009, p. 18). Assim, com a centralidade
dos processos pedagógicos voltados à individualidade de cada aluno, há que se reestruturar
toda a organização escolar, inclusive as práticas de registro docente sobre os sujeitos infantis.
No Brasil, os manifestos da Escola Nova, por volta de década de 1930, defendiam a
laicidade, a gratuidade, a obrigatoriedade e a coeducação como princípios fundamentais para
reger o funcionamento das escolas, tendo como forte pioneiro o educador baiano Anísio
Teixeira, que defende uma escola única para o povo e para a elite, pois “a escola pública é o
instrumento da integração e da coesão da grande sociedade, e se deve fazer o meio de
transformação na grande comunidade”. (TEIXEIRA, 1967, p. 36, grifos do autor). A
divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, traz críticas à escola
tradicional e propõe a valorização do desenvolvimento integral do indivíduo, sendo que o
interesse passa a ser o foco do processo educativo. Tal como aponta Azevedo, “o que
distingue da escola tradicional a escola nova não é, de fato, a predominância dos trabalhos de
base manual e corporal, mas a presença, em todas as suas atividades, do fator psicobiológico
do interesse”. (AZEVEDO et al., 2010, p. 50). Para o autor, a Escola Nova vem defender a
“atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das necessidades do próprio
indivíduo”. (AZEVEDO et al., 2010, p. 49).
A Pedagogia deixa de enfatizar uma avaliação escolar fortemente estruturada nos
exames ou nos testes padronizados de inteligência para as crianças, especialmente voltados às
fases do desenvolvimento, tais como nas pedagogias disciplinares e corretivas, e passa a
priorizar o respeito ao ritmo individual de cada criança, sendo valorizada uma forma de
avaliação cada vez mais individual. Nesse cenário, vemos ganhar força as práticas de registro
denominadas de portfólios, cadernos do aluno, pareceres descritos, relatórios individuais e
tantas outras formas de registro docente que tornam capaz a centralidade no indivíduo e, ao
mesmo tempo, dão visibilidade para os seus interesses.
Para fins desta pesquisa, interessa-me olhar para os deslocamentos da própria
Pedagogia enquanto campo de saberes que se ocupa das crianças e da infância, em sua
articulação na produção de um terreno sólido onde será possível a emergência das práticas de
registro denominadas de documentação pedagógica. Estas, em minha análise, contemplam
instrumentos mais refinados e sutis de captura do sujeito infantil, operando como tecnologia
de governamento da infância contemporânea.
85

Compreender a constituição desse campo de saber como normação e normalização é


fundamental para entender suas articulações com a infância e com a escola. Neste trabalho,
compreender como a pedagogia movimenta a produção de saberes verdadeiros sobre os
sujeitos escolares, desde sua aprendizagem e comportamento até a forma como os adultos
devem comportar-se em relação aos alunos, torna-se central para que se entenda a emergência
do registro escolar. Podemos perceber que, com os deslocamentos da própria pedagogia,
mediante sua pedagogia mais psicológica (VARELA, 2000) ou a virada psicopedagógica
(NOGUERA-RAMIREZ, 2009), a avaliação e todas as suas estratégias de captura do outro se
tornam cada vez mais potentes (e não o contrário, como escutamos alguns professores, por
vezes, verbalizarem: hoje não avaliamos mais os alunos, pois não fazemos provas, não
julgamos, não preenchemos as antigas fichas). Percebo que a avaliação entra cada vez mais
forte nos ambientes escolares, acompanhada de formas potentes de observação, registro e
interpretação do outro (indivíduo) e de todos que frequentam a escola.
Os saberes pedagógicos dão condições para a emergência de uma refinada avaliação;
uma vez que as crianças se tornam calculáveis, passíveis de descrição, seus modos de vida
passam a ser normalizados, portanto, descritos e controlados. Poderíamos estar nos
questionando aqui: se há um respeito maior à individualidade de cada aluno e este, por sua
vez, permanece envolvido com os seus próprios interesses escolares, por que e como a
avaliação se torna mais potente e necessária? Para pensar sobre essa questão, passamos a fazer
algumas incursões nos saberes de um dos campos das Ciências Naturais que trataram de
melhor conhecer os sujeitos infantis para neles intervir e transformá-los: a Pedagogia.
Antes, porém, considero importante resgatar duas citações: uma de Gadelha (2013, p.
179, grifo do autor), que afirma que a Pedagogia, a educação e a escola “são responsáveis
pelos processos que fazem operar propriamente a normalização disciplinar dos alunos, dos
professores, assim como das relações entre ambos e destes com os familiares”; a segunda é de
Castelo Branco (2013), que afirma que a normalização tem como foco a vida subjetiva dos
indivíduos; ela cuida da alma por meio do conhecimento da subjetividade humana e assim a
domina. Como excelentes agentes das técnicas de normalização, estariam a escola e a família.
A normalização busca a produção de subjetividades assujeitadas, e, nesse contexto, as
Ciências Humanas têm seu maior interesse em conhecer o que se passa na cabeça dos
indivíduos para melhor dominá-los. (CASTELO BRANCO, 2013).
Normação e normalização são noções expostas por Foucault na aula do dia 25 de
janeiro de 1978, no curso Segurança, Território e População. Para compreensão de tais
noções, utilizo um precioso trecho do artigo da pesquisadora Maura Corcini Lopes (2013). Ela
86

explica que a norma funciona diferentemente nos dispositivos disciplinares (modernos) e nos
dispositivos de seguridade (contemporâneos), porém, uns não excluem os outros, “eles
coexistem em um jogo permanente de forças”, capturando os indivíduos, de modo a
disciplinar, ordenar, descrever, diagnosticar, educar, mobilizar para práticas de vida
consideradas de menor risco, tanto social, quanto particular. Os primeiros emergem para
“descrever, posicionar e controlar os corpos”, e a norma opera na população para normação,
ou seja, “a norma é o que se estabelece primeiro; a partir dela, demarcam-se o normal e o
anormal, o incluído e o excluído”. (LOPES, 2013, p. 289). Assim, a normação seria uma ação
típica da sociedade disciplinar, por vezes mais polarizada. Já os últimos operam como
“estratégias para governar a população a partir do jogo entre liberdade e segurança”, agindo
por normalização. “É a partir do normal, determinado em cada grupo, que a norma é
constituída”, ou seja, o normal vem primeiro, depois vem a norma, sendo que a normalização
é típica da sociedade de seguridade. (LOPES, 2013, p. 289).
Esses conceitos interessam aqui, pois tratam das formas de operação da norma, uma
acionando dispositivos disciplinares (normação) e a outra acionando dispositivos de
seguridade (normalização), esta última construindo a norma a partir da média. Em relação à
pedagogia, acompanhamos a sua pluralização – pedagogias para a infância, as quais, antes de
prescrever postulados universais para corrigir e controlar os corpos de cada criança,
funcionam para mobilizar cada vez maior liberdade, em meio à segurança da população,
gerenciando os riscos e regulando condutas individuais mediante um autogerenciamento.
Na Contemporaneidade, vemos emergir muitas pedagogias, e suas ênfases assinalam
um sujeito autorregulado, capaz de fazer escolhas a partir dos seus próprios interesses e
necessidades. É a partir do final do século XX que vemos surgir uma multiplicidade de
pedagogias, que têm se pluralizado com os deslocamentos de uma sociedade centrada no
ensino para uma sociedade centrada na aprendizagem. “Tal movimentação tem feito a
pedagogia se atualizar constantemente para adentrar os múltiplos âmbitos de nossas
existências, justamente porque ela tem atuado como uma operadora dos discursos que
intentam nos constituir”. (CAMOZZATO; COSTA, 2013a, p. 23). Nesse contexto, também
acompanhamos entrar em cena, cada vez de forma mais potente, as pedagogias para infância –
para pequena infância, para primeira infância – devido à escolarização cada vez mais
antecipada das crianças em espaços coletivos de educação.
Se a pedagogia moderna busca disciplinar e normalizar tanto os saberes quanto os
sujeitos dos quais se ocupa, na Contemporaneidade, “a pedagogia se transforma e reinventa
para dizer as verdades desse tempo, também os espaços onde ela atua se multiplicam e
87

pluralizam”. (CAMOZZATO; COSTA, 2013a, p. 24). Mais pedagogias emergem e


proliferam para aumentar as “chances de sucesso e as possibilidades de tornar os sujeitos
educados e governáveis”. (CAMOZZATO; COSTA, 2013a, p. 30). Também é importante
salientar que, na Contemporaneidade, as práticas educacionais vêm alargando-se além dos
contextos escolares, ocupando-se também com os processos de “pedagogização dos mínimos
gestos pessoais” da vida humana. (AQUINO, 2013, p. 205).
Numa sociedade contemporânea, em que todos são convidados a aprender a aprender
incansavelmente e em muitos lugares, não sendo mais a escola e a sala de aula os únicos
espaços onde as pessoas são convocadas a aprender, proliferam pedagogias que precisam dar
conta dessas atuais transformações, ligadas à sociedade de controle ou de seguridade. O
alargamento da ação educativa confere às pedagogias uma posição de destaque, e, por sua
vez, os profissionais que as sustentam nunca foram tão convidados a se especializarem e a
refletirem sobre suas práticas como nos últimos anos (inclusive, programas e investimentos de
governos e empresas surgem a cada dia na famosa expressão formação continuada dos
docentes). (AQUINO, 2013).
Aquino (2013), ao mapear uma progressiva pedagogização dos gestos pessoais, mostra
que o jogo do pastor – tática originada com o Cristianismo – será modificado agora no jogo
do expert– retomarei essa questão na seção posterior. Por ora, satisfaz perceber, com as
contribuições de Aquino (2013), que o jogo do expert se dá, incansavelmente, por meio de um
trabalho de inculcação de ideais que, repetidos até a exaustão, se reduzirão a alguns slogans,
tais como: o dever/direito de desenvolver-se; a construção de uma vida melhor; o aprender a
aprender, entre outros. “Slogans de vocação empreendedorística que a todos abarcariam,
remetendo as existências escolares a um (auto)patrulhamento eterno e, por extensão, a um
endividamento mais que voluntário: autoimpingido, autogerido e retroalimentador”.
(AQUINO, 2013, p. 205).
Assim configuradas, as novas pedagogias atravessam as relações sociais,
pedagogizando seus próprios processos pedagógicos e os modos de vida, e

[...] se é certo que a governamentalidade contemporânea terá os processos de


pedagogização como seu braço forte (em última instância, um de seus modi
faciendi), restar-nos-á admitir que o âmbito propriamente pedagógico será
alvo privilegiado do jogo do expert, sendo os protagonistas escolares – em
particular, o professorado – um segmento populacional amplamente visado
no que tange à exaltação e à incorporação contínua de missões de cunho
governamentalizador. (AQUINO, 2013, p. 206).
88

Como é possível perceber, a pedagogia moderna vai constituir-se num campo de saber
prescritivo, regulador e normativo, com característica doutrinária e, às vezes, atuando em cada
indivíduo de forma disciplinar. Ela vai encontrar na instituição escolar o seu habitat “natural”
e no ser aluno o seu alvo; as pedagogias contemporâneas, por vezes mais flexíveis e
emancipatórias, atuando em diferentes lugares sociais, além da escola, exercem seu poder no
sujeito e na população. Contudo, ela atua com uma expertise, tratando de “tornar o ser
humano inteligível e praticável através de uma certa descrição”. (ROSE, 2011, p. 12). A
construção de saberes verdadeiros da pedagogia produz certos tipos de sujeito, esculpindo
suas formas, tal como aponta Rose:

[...] o papel do conhecimento na condução da conduta contemporânea – em


que qualquer tentativa legítima de agir sobre a conduta deve incluir alguma
forma de entender, classificar, calcular e, então, ser articulada em termos de
algum sistema mais ou menos explícito de pensamento e julgamento.
(ROSE, 2011, p. 26).

Procurei, até aqui, visibilizar as concepções da infância e da Pedagogia, discutindo


seus deslocamentos na Modernidade e na Contemporaneidade, a fim de problematizar como
as práticas de registro docente se enraízam no campo discursivo da infância e da Pedagogia.
Faço isso com o objetivo de operar com a governamentalidade enquanto grade de
inteligibilidade que me permite acompanhar a trama em que se constitui a infância, produzida
por diferentes práticas vividas a partir dos saberes da Pedagogia e no espaço e tempo da
instituição escolar, produzindo sujeitos de determinados tipos. Vemos que os indivíduos
contemporâneos são governados mediante sua liberdade, suas escolhas como sujeitos
autônomos. O governamento da infância dá-se por meio de uma investida gradual de
fabricação de uma criança ativa, autônoma, cheia de escolhas, empreendedora de si mesma,
obrigada a ser livre para viver a sua vida na escola. Passemos à instituição escolar de
Educação Infantil.

2.3 A instituição escolar de Educação Infantil

Depois da família, com seus castigos e zelos, a escola é o lugar privilegiado


do governo das crianças e dos jovens. (AUGUSTO, 2015, p. 11).

Procurei ressaltar, nas seções anteriores, como a infância e a criança tornaram-se alvos
de conhecimento, representação e intervenção – especialmente da Pedagogia –sobre os quais
se inventam modos de falar, pensar, descrever e registrar. Nesta seção do trabalho, mostro
89

como se dá o governamento da infância por meio da consolidação da instituição escolar,


especialmente no âmbito da Educação Infantil. Para tanto, inicialmente, teço reflexões gerais
sobre a instituição escolar e, posteriormente, discuto o atendimento da Educação Infantil no
Brasil. Considerando o contexto brasileiro, pretendo mostrar que o movimento da infância
pobre produziu saberes científicos sobre a infância, possibilitando condições para que fosse
registrada para melhor intervir e calcular seus riscos e suas necessárias intervenções.
Sem a pretensão de apresentar a trajetória histórica da Educação Infantil brasileira de
forma cronológica (muitos autores já desenvolveram tal empreendimento), meu interesse
nesta seção é mostrar alguns acontecimentos importantes que possibilitaram a emergência das
práticas de registro docente na primeira etapa da educação básica. Trata-se muito mais de
compreender o presente, buscando algumas recorrências na história, pois, como afirma
Foucault, “necessitamos de uma consciência histórica da situação presente”. (FOUCAULT,
2002, p. 232).
Ao mesmo tempo, busco mostrar que, mesmo tentando um distanciamento dos
processos de escolarização do Ensino Fundamental (etapa de ensino que se consolida no
sistema educacional antes da Educação Infantil), na escola de Educação Infantil, constroem-se
processos de escolarização muito próprios para crianças entre zero e cinco anos de idade,
marcando noções de currículo, planejamento, organização do tempo e espaço, avaliação,
formação docente, bastante específicos e centralizados na criança, os quais passam a operar
no governamento da infância.
Criada, legitimada e fortalecida na Modernidade, a escola vai constituir-se na mais
potente instituição de captura das crianças, encarregando-se de criar sujeitos infantis de
determinado tipo. Como denominou Foucault (2012), a escola moderna constitui-se numa
instituição de sequestro, capaz de operar com tecnologias disciplinares que objetivam o
sujeito, especialmente ao controlar os tempos, os espaços e os corpos. “A escola não exclui os
indivíduos; mesmo fechando-os; ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber”.
(FOUCAULT, 2012, p. 114). Com isso, tal instituição de sequestro (assim como os hospitais,
a prisão, o hospício) opera com um controle da existência dos indivíduos que nela se
encontram. Estudos mostram que a escola foi a instituição, por excelência, mais poderosa em
articular poder-saber, conduzindo as condutas dos sujeitos. (VARELA; ALVAREZ-URIA,
1992; CORAZZA, 2000; NARODOWSKI, 2001; BUJES, 2002). A escola, acompanhada de
saberes científicos oriundos da Pedagogia (com suas interfaces na Psicologia e Medicina,
entre outras, como vimos na seção anterior), passa a ser considerada uma instituição de
sequestro capaz de governar as crianças.
90

Na instituição escolar, podemos perceber a ação do poder pastoral atuando: “uma das
figuras privilegiadas na adoção do poder pastoral pelo Estado Moderno, nas instituições
educacionais, é a figura do professor-pastor. Ele assume a responsabilidade pelas ações e o
destino de sua turma e de cada um dos seus integrantes”. (KOHAN, 2005, p. 87). Nesse caso,
“o professor necessita conhecer o máximo possível dos seus alunos; fará diagnósticos de suas
emoções, capacidades e inteligências; conversará com seus pais para saber detalhes
iluminadores de seu passado e de seu presente” (KOHAN, 2005, p. 88), devendo ganhar
confiança de cada aluno. No entanto, são as tecnologias disciplinares, com suas estratégias e
mecanismos, que garantem o funcionamento da escola moderna.
A maquinaria escolar moderna operou com um esquadrinhamento dos tempos e
espaços e uma padronização nas formas de ser aluno e professor, colocando em ação
cuidadosas e apuradas tecnologias disciplinares. Tal como destaca Corrêa (2000), foi
necessário:

[...] inventar espaços próprios para a educação, controlar o tempo em que se


desenvolvem as atividades, selecionar saberes aos quais se confere caráter de
universalidade, inventar uma relação saber-capacidade, obrigar à frequência,
desqualificar outras práticas em educação, seriar, avaliar e certificar
garantias vitais do processo de escolarização. O rompimento de qualquer
uma dessas garantias põe em risco, a ponto de impedi-lo, o funcionamento
da maquinaria escolar. (CORRÊA, 2000, p. 54).

A criança, ao ser capturada pela rede de normas e leis pedagógicas, tornou-se aluno e
objeto sobre o qual foi implementada a organização da vida escolar de forma individualizada.
A jornada escolar foi composta por repetições, que não estão ocultas, mas disfarçam-se dentro
do ambiente escolar (como, por exemplo, ao dividir-se o ano letivo em primeiro, segundo,
terceiro trimestre; os alunos aprovados, os alunos em recuperação e os reprovados).
(AQUINO; CORAZZA, 2009). Assim, nos projetos da Modernidade, competia às escolas
(como também aos asilos, hospitais, hospícios, presídios, igrejas) orientar os indivíduos que
nelas habitavam para a ordem e a docilidade, por meio de espaços e tempos muito bem
planejados e projetados. Veiga-Neto (2005, p. 84) contribui nessa reflexão quando afirma que
“a escola encarregou-se de operar as individualizações disciplinares, engendrando novas
subjetividades e, com isso, cumpriu um papel decisivo na constituição da sociedade
moderna”. A escola foi concebida como uma máquina capaz de transformar os corpos num
objeto de poder disciplinar e“torná-los dóceis; [...] a escola é, depois da família (mas, muitas
vezes, antes dessa), a instituição de sequestro pela qual todos passam (ou deveriam passar...) o
91

maior tempo de suas vidas, no período da infância e da juventude”. (VEIGA-NETO, 2005, p.


84-85).
A categoria aluno foi inventada para a criança51. Conforme destaca Sacristán (2005),
uma das características das sociedades modernas foi considerar o ser escolarizado como
forma natural de conceber aqueles que têm a condição de infantil. “Acreditamos que o modo
de ser aluno é a maneira natural de ser criança; representamos os dois conceitos como se
fossem, de alguma forma, equivalentes”. (SACRISTÁN, 2005, p. 15). A categoria aluno,
portanto, passou a ser a forma social, natural e dominante de ser criança e de viver a infância.
Em consequência disso, a escolarização produziu, nos adultos, formas de ver, de pensar e de
comportar-se frente às crianças. O autor registra que a consolidação da ideia de aluno como
imagem socialmente compartilhada ocorreu simultaneamente à expansão e à universalização
dos sistemas educacionais em sociedades urbanizadas. Carlota Boto também evidencia a
transformação e naturalização da criança em ser-aluno, afirmando que

[...] a Modernidade, pela apropriação que fará da categoria infância,


transforma crianças em alunos, gerando, sob tal perspectiva, uma diferente
compreensão do próprio campo de estudo educacional. [...] Seja como for, os
colégios serão a moderna expressão de como tratar as crianças mediante
códigos das boas maneiras requeridos pela cultura moderna. [...] o papel
conferido à escolarização, mediante a organização dos modelos dos colégios,
corresponderia à progressiva eliminação de quaisquer traços da
espontaneidade infantil. (BOTO, 2002, p. 23-24).

A criança passou a ser aluno, e sua vida começou a ser estruturada em rituais de
disposição em classes, em faixas de idades, em estágios de desenvolvimento, em graus de
aprendizado, em horas de atividades, de entrada, de saída e de intervalo, em castigos e
recompensas. Enquanto aluno, ela possui modos de ser, estar e agir no mundo: sempre

51 Varela (1994) apresenta, desde os jesuítas, os dispositivos que colocaram em ação toda a maquinaria escolar,
dotando as crianças de um estatuto de alunos. A autora afirma que a intenção dos mestres jesuítas era formar
bons cidadãos; para tanto, precisavam educar as crianças em espaços fechados – os colégios –, controlando
saberes, organizando-os de acordo “com as supostas capacidades infantis”. (VARELA, 1994, p. 88). Os saberes
da cultura clássica e cristã foram organizados em diferentes níveis e programas de dificuldades crescentes, bem
como foram objetos de censura caso não se adequassem ao padrão moral. A autora afirma que “os mestres
passaram a ser os únicos detentores do saber e os estudantes viram-se relegados a uma posição de subordinação,
converteram-se em sujeitos destinados a adquirir os ensinamentos dosificados transmitidos por seus professores
para convertê-los, também a eles próprios, em seres virtuosos”. (VARELA, 1994, p. 89). Posteriormente,
acompanhamos entrar em cena na educação, além das entidades religiosas, também o Estado, o qual teve
necessidade de governar sujeitos e populações; há, com toda essa movimentação, uma necessidade de
reestruturar o campo do saber através de uma série de novos dispositivos, um “disciplinamento interno dos
saberes”. (VARELA, 1994). O Estado apropriou-se dos saberes, disciplinando-os e colocando-os a seu serviço.
Iniciativas, práticas, instituições e agentes legítimos foram os responsáveis pela desaparição de certos saberes e
pela proliferação de novos. Assim, o controle dos conhecimentos tornou-se muito mais rigoroso e interno,
passando à coerção da ciência, e não mais da verdade católica.
92

vigiada, ameaçada, atarefada, ocupada, sempre em desenvolvimento, em crescimento. Marín-


Díaz (2011) corrobora esse argumento ao dizer que:

“Desenvolvimento” e “crescimento” aparecem com frequência para


descrever tanto os propósitos e fins educativos com crianças quanto os
resultados e avaliações dos próprios processos escolares. Essas noções não
só marcam e reforçam a condição de minoria e de “estado” em potência de
certas “faculdades” e “disposições” nas crianças, como também desenham e
evidenciam a compreensão de uma vida fragmentada em fases, evolutiva e
linear. Desse modo, o reconhecimento de uma forma de “imaturidade”
mental e física na infância é o assinalamento de um “estado” de
subdesenvolvimento e a fixação de uma forma de distribuição e organização
etária da vida. (MARÍN-DÍAZ, 2011, p. 107).

Pelo fato de as crianças serem vistas como seres a caminho de conseguir a identidade
adulta, carentes de plenitude e capacidades, os adultos, considerados seres superiores, tinham
o direito de impor, ordenar, mandar, planejar, decidir por elas. Justifica-se assim o seu poder
sobre os infantes: “a diferença entre adultos e menores foi um motivo poderoso para
estabelecer uma hierarquia social dentro da qual aqueles exercem o poder sobre estes”.
(SACRISTÁN, 2005, p. 87). Como vimos na seção anterior, a conduta do aluno passou a
constituir-se como problema da Pedagogia, mas também da escola; ao tornarem-se
“crescentemente objeto do escrutínio de um conjunto de experts de diversos campos do saber
científico” (Ó, 2009, p. 12), as crianças, por intermédio de médicos, psicólogos, pedagogos,
militares, entre outros “experts do particular”, começaram a ser alvo de uma série de
programas. (Ó, 2009, p. 12).
Popkewitz (1994) reafirma a ideia de naturalização da criança como aluno e diz que as
categorias de estudante e aluno passaram a existir fortemente no século XIX; essa invenção
reconstruiu a criança como objeto de manipulação. Tal ideia tornou-se tão natural, que hoje é
difícil pensar nas crianças senão como aprendizes. Isso implicou transformações no
pensamento social: a criança passou a ser concebida como ser universal, independentemente
da relação concreta de tempo e espaço. O autor ressalta:

[...] a moderna criança escolar é a pessoa que aprende a ser um “cidadão”,


que tem responsabilidades abstratas relacionadas ao governo do Estado, que
tem ‘potencial’ como trabalhador, que aprende habilidades e sensibilidades
culturais para ‘uso’ futuro e que é automonitorada em seu desenvolvimento
afetivo e cognitivo. (POPKEWITZ, 1994, p. 179).

Como podemos perceber, toda a engrenagem escolar posta em funcionamento por


práticas disciplinares produz um sujeito que internaliza a própria disciplina, não sendo mais
93

necessárias as punições corporais, por exemplo, uma vez que a vigilância, o


esquadrinhamento do tempo e espaço, os programas escolares, fazem com que o próprio
indivíduo passe a ser assujeitado a si mesmo. Esse sujeito passa a regular as suas ações na
escola. O exame, por exemplo, visibiliza cada indivíduo em sua minúcia, com o arquivamento
detalhado do seu comportamento e da sua conduta, permitindo correções em cada sujeito e no
coletivo.
Ao olharmos para a cronologia da história da educação, sabemos que as escolas
surgiram antes para os indivíduos de maior idade, e somente depois é que surgiram as
primeiras escolas voltadas às crianças menores. De acordo com Kuhlmann Jr (2001), as
instituições escolares começam a ser esboçadas na Europa no final do século XVIII,
apresentando propostas educacionais voltadas à civilização e ao progresso, tanto para as
crianças ricas, quanto para as crianças pobres. Com a crescente expansão das relações
internacionais, o final do século XIX é marcado pela proliferação das instituições de
Educação Infantil para vários países. Já no Brasil, é no final do século XIX que foram
fundados os primeiros Jardins de Infância, sendo legitimados apenas no século XX.
Interessante analisar alguns registros históricos e perceber o quanto as instituições de
Educação Infantil procuraram diferenciar-se dos processos de escolarização do Ensino
Fundamental, mesmo adotando algumas práticas semelhantes52.
Antes de seguir adiante, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre as
relações entre as instituições de atendimento e a infância no Brasil, a fim de compreender
como, nos diferentes momentos históricos, a Educação Infantil e a concepção de infância
estão permeadas por um regime de verdade específico de determinada época. A trajetória
histórica da Educação Infantil no Brasil carrega traços de assistencialismo e custódia, com
caráter médico-higienista e sanitarista. (KUHLMANN JÚNIOR, 1998, 2001; KRAMER,
2001; BUJES, 2002; OLIVEIRA, 2002). Assim, um ponto especial que se abre no debate
acerca da construção histórica da infância e da criança, especialmente no Brasil é relativo aos
mecanismos de intervenção na infância pobre. De um risco para a população, tem-se um
campo de produção de saberes e de fabricação de instituições e programas, especialmente de
políticas públicas, específicos para fiscalizar e intervir na infância pobre brasileira. É preciso
minimizar os riscos e maximizar a eficácia da intervenção.

52 Ao dizer isso, não pretendo entrar na discussão, que é bastante cara para teóricos da Educação Infantil, sobre
os processos de escolarização nesse nível de ensino, nem sobre conteúdos, alunos, professores, sala de aula, entre
outras questões polêmicas que, por vezes, em minha opinião, fragilizam e binarizam a discussão na Educação
Infantil. No entanto, a posição que assumi como pesquisadora tem a ver com uma criança que pensa e é capaz de
aprendizagens muito mais complexas e múltiplas, não importando se é na escola ou fora dela. Por esse processo
educativo, a responsabilidade do adulto se faz necessária.
94

Recorro aos estudos de Lockmann e Mota (2013) quando mostram a emergência das
práticas de assistência à infância no Brasil e a proliferação dessas políticas na atualidade. As
autoras citam alguns projetos, tais como Brasil Carinhoso, Bolsa Gestante, Bolsa Nutriz e
Proinfância, como exemplos de programas de assistência à infância brasileira. Afirmam que a
infância é uma invenção da modernidade e que “a invenção da infância como uma etapa de
vida com especificidades próprias esteve implicada na constituição da própria Modernidade.
Isso quer dizer que, numa relação de imanência, uma foi condição de possibilidade para a
outra”. (LOCKMANN; MOTA, 2013, p. 85). Inicialmente, as práticas de assistência
apresentavam um caráter de filantropia caritativa e atos de benemerência ao próximo; até
meados do século XIX, no Brasil, “eram desenvolvidas por meio de ordens religiosas ligadas
às igrejas e conventos que ofereciam não só ajuda material, mas, também, moral e espiritual”.
(LOCKMANN; MOTA, 2013, p. 92). Fundamentadas em Foucault, as autoras percebem que
essas práticas são regulatórias, de condução e de controle pastoral, permeadas por verdades
divinas, religiosas e cristãs, as quais conduzem as condutas dos sujeitos na vida terrena,
acompanhadas da promessa da salvação eterna.
Isso implica relacionar a roda dos expostos53, inventada na Europa medieval, como
uma das primeiras formas de atendimento à infância no Brasil, sobretudo da infância pobre. A
roda dos expostos, fundada no Brasil Colônia, proliferou durante o período Imperial,
mantendo-se durante a República e vindo a extinguir-se por volta de 1950. Essa primeira
instituição de assistência caritativa à infância cumpriu importante papel no Brasil
(MARCÍLIO, 2003, p. 53), uma vez que, mesmo minoritária no “conjunto da infância
abandonada do país nos séculos XVIII, XIX e mesmo no XX, foi no entanto a melhor
documentada, mesmo considerando-se todos os demais segmentos da população infantil”.
(MARCÍLIO, 2003, p. 73). As Santas Casas de Misericórdia e as ordens religiosas femininas
assumiram as responsabilidades com os expostos, trazendo pesadas, custosas e difíceis tarefas
para essas instituições. No século XIX, com a influência das luzes e da medicina higienista,
perde-se o cunho caritativo e passa-se a conceber a roda dos expostos como algo imoral,
contra os interesses do Estado. Os médicos higienistas, preocupados com a alta mortalidade
dentro dessas instituições, onde “vidas úteis estavam sendo perdidas para o Estado”
(MARCÍLIO, 2003, p. 68), propuseram, em conjunto com juristas, novas leis de atendimento
à infância abandonada.

53 Sobre este assunto, é possível buscar maior aprofundamento também no livro de Sandra Mara Corazza
intitulado História da infância sem fim (2000).
95

Gradativamente, a caridade deu lugar à filantropia, fundamentada na ciência e


interessada na educação, instrução e moralização das crianças. Associações filantrópicas
públicas e particulares foram criadas a partir dos anos de 1930 no país: Liga das Senhoras
Católicas, Rothary Club, Associação Pérola Bygthon. (MARCÍLIO, 2003, p. 78). Com “a fase
do Estado do Bem-Estar”, a partir de 1960, surgem outros modelos de atendimento à infância
abandonada, em que “o Estado assume enfim a sua responsabilidade sobre a assistência à
infância e à adolescência desvalidas, e estas tornam-se sujeitos de Direito”. (MARCÍLIO,
2003, p. 79).
Lockmann e Mota (2013, p. 99) mostram que, entre as últimas décadas do século XIX
e o início do século XX, há a passagem “de uma filantropia caritativa, na qual a preocupação
com a salvação das almas era prioritária, para uma filantropia higiênica, para a qual a
preocupação central se direciona à vida biológica e aos efeitos que ela pode causar à
sociedade”. Novas táticas de governo foram necessárias: um controle político-biológico da
população, mediante o discurso médico-higienista, capaz de prevenir ameaças, doenças e a
morte a partir de um controle minucioso no sujeito, seus hábitos, suas formas de vida. Ao
analisarem a emergência da infância como problema social por meio do discurso médico-
higienista, Rizzini e Gondra (2014) procuram dar visibilidade ao modo como o saber médico
fundou regras para lidar com a infância, especialmente na intervenção da infância pobre. É no
corpo que se inscrevem as maiores preocupações, e, em nome da felicidade da sociedade, a
medicina procura evitar o aparecimento da doença por intermédio da higienização das pessoas
e instituições:

[...] para a higiene, a medicina multiplicaria sua potência e seria ainda mais
eficaz quando pudesse evitar o aparecimento da doença – procedimento este
que supõe um alargamento do raio de ação da ciência médica, configurando
a higiene como ramo desse saber que se ocupa da prevenção. Dessa forma,
sob o arco dessa ciência que se pretendia ver expandido, procurou-se instalar
um conjunto de instituições e práticas como as desenvolvidas em igrejas,
quartéis, prisões, hospícios, bordéis, oficinas e escolas. (RIZZINI;
GONDRA, 2014, p. 564).

A ação educativa estava pautada na racionalidade médica. Articulava-se à ciência dos


corpos e das almas para funcionar como um guia na produção do sujeito educado. Pautadas
nos procedimentos preventivos da higiene, as práticas escolares, tais como a educação física e
a educação integral, eram orientadas pela racionalidade médico-higiênica. “Sonos, banhos,
vestimentas, alimentos, excreções, iluminação, entre outros, nada parecia (ou deveria) escapar
ao crivo do saber-poder médico”. (RIZZINI; GONDRA, 2014, p. 564). Como podemos
96

perceber, a infância pobre foi compreendida como um problema para o campo médico e
passou a ser vista como uma ameaça; por meio de ações policiais, era preciso fazer uma
“limpeza das ruas da cidade”. (RIZZINI; GONDRA, 2014, p. 571). Destinar as crianças ao
atendimento em internatos, asilos e abrigos foi uma forma de corrigir e educar essa infância,
vista como uma ameaça pelo campo médico. Por meio de programas com exercícios físicos,
intelectuais e morais, encontraram-se formas de instruir e profissionalizar a população infantil
pobre brasileira, combinando educação e assistência54. Assim, entendendo-se a população
infantil como um problema, a educação da infância passa a ser um antídoto contra a
criminalidade:

Se no século XIX os asilos circunscreveram os critérios de matrícula às


características do educando, tais como ter boa saúde, ser vacinado, pobre e
livre, no início do regime republicano acrescentou-se à avaliação médica do
“menor” a investigação da hereditariedade. Tendo em vista o combate a um
possível processo degenerativo do interno, especialmente para os casos de
instituições que recebiam crianças recolhidas nas ruas pela polícia, o médico
era o responsável pelo preenchimento da “ficha sanitária” dos recém-
chegados. (RIZZINI; GONDRA, 2014, p. 576).

Com um corpo frágil e dependente, capaz de colocar a sociedade em risco por suas
doenças, preguiça, fracasso, abandono, as crianças passaram por processos disciplinares de
ensino, a fim de serem educadas para uma vida saudável. Paulatinamente, ao perceber o
sucesso do investimento no desenvolvimento infantil, a sociedade começa a reclamar por mais
instituições voltadas ao atendimento das crianças. Eis a necessidade das escolas, instituições
capazes de submeter a criança a um longo processo formativo. “Nesse projeto, saberes
forjados na medicina, higiene e pediatria parecem ter sido constituídos nas bases da pedagogia
da prevenção, uma espécie de racionalidade renovada para lidar e manter no horizonte um
velho problema e formas atualizadas de enfrentar”. (RIZZINI; GONDRA, 2014, p. 577).
Como podemos ver, até final do século XIX, a infância pobre brasileira era
encaminhada para instituições religiosas, como os orfanatos, onde predominava um regime
disciplinar cujo objetivo era tornar os indivíduos incapazes em sujeitos produtivos. A
educação em instituições específicas, com o posterior surgimento de escolas para as crianças
muito pequenas, especialmente aquelas “classificadas como vadias, vagabundas, culpadas,

54 Posteriormente, os internatos passaram a conter disciplinas que abordavam a formação intelectual, física e
moral, como podemos ver “em meados da década de 1910, a instituição também incorporou os preceitos
higienistas à formação escolar dos educandos. O diretor integrou ao currículo escolar a disciplina higiene,
ministrada pelo médico da escola, disposição confirmada pelo registro nas folhas de pagamento de pessoal de
1913, nas quais constam os salários pagos ao Dr. Álvaro Reis na condição de auxiliar de ensino”. (RIZZINI;
GONDRA, 2014, p. 574).
97

viciosas, delinquentes/criminosas, órfãs, abandonadas e desvalidas” (RIZZINI; GONDRA,


2014, p. 578) foi considerada a melhor maneira de governar essa população.
Diego Silveira (2015), ao estudar o governo da infância no Brasil e mostrar o
deslocamento da ideia de menoridade para o Estatuto da Criança e do Adolescente, constatou
que, a partir das mudanças no regime de governo brasileiro, a infância pobre passa para os
mecanismos de intervenção do Estado, o qual constrói o termo menoridade e, nas primeiras
décadas do século XX, institui um Juizado de Menores, aprova um Código de Menores (1927)
e instaura o Serviço de Assistência ao Menor (1940). Houve aqui a construção de um modelo
de inquérito médico-psicológico e social do menor, bem como um modelo de fichário
institucional produzido pelas instituições assistenciais para gerar estatísticas, estudos e
campanhas de intervenção, sendo necessária a promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente, em 1990. (SILVEIRA, 2015). Um arsenal de controle médico foi sendo
construído por fichas e prontuários, onde se registravam detalhes sobre a criança.
Os estudos de Lilia Ferreira Lobo (2008) parecem trazer um contraponto ao exposto
até agora, afirmando que “os higienistas do século XIX [...] nem de longe preconizaram uma
disciplina preventiva para os pobres, muito menos para as crianças defeituosas. Tal como os
escravos, elas só habitaram os discursos médicos como elemento regulador dos casamentos e
das condutas morais, frente à disseminação das degenerescências”. (LOBO, 2008, p. 316). A
autora defende a ideia de que a criança anormal surgiu para o saber médico-pedagógico
somente no início do século XX e que a criança pobre não foi objeto privilegiado de práticas
especializadas no século XIX. Para ela, é a partir do final do século XX que inicia uma
assistência à infância pobre.
Enfim, parece que acrescentamos um detalhe interessante nesse debate: não foram
somente as crianças pobres que vivenciaram períodos de internação em instituições
específicas. Também as crianças oriundas das classes mais ricas foram inseridas em espaços
específicos, porém, não em orfanatos com o propósito religioso, caritativo e filantrópico, mas
em colégios com programas educacionais, todavia, ambos com interferência dos saberes
médico-higienistas. Interessante pensar que o discurso médico-higienista e sanitarista é
inserido nos currículos para as crianças pequenas, produzindo essa criança como “aluno”.
Conforme destaca Lobo (2008), no século XIX, as crianças de classes concebidas como ricas
foram internadas em colégios e, “graças à intervenção dos médicos nas práticas pedagógicas,
tornou-se inquestionável a necessidade de reclusão das crianças, em face das más influências
do mundo externo e da permissividade da educação familiar”. (LOBO, 2008, p. 312). Assim,
percebemos o quanto os higienistas desempenharam intensos papéis pedagógicos também
98

para as crianças de elite, sendo que “praticamente nada das práticas escolares escapou à
normalização médica [...]. Interferiram diretamente no processo de aprendizagem [...] ao
proporem regras didáticas para o ato de ensinar”. (LOBO, 2008, p. 313).
As regras de higiene prescreviam as condições de salubridade dos colégios, e os
saberes médico-higienistas foram considerados os primeiros saberes pedagógicos legitimados
como relevantes para a educação das crianças, tanto pobres quanto ricas. A prática da
educação física, para citar apenas um exemplo aqui, tem sua emergência com os médicos
higienistas, os quais defendiam a importância das atividades ao ar livre. Em relação à
organização familiar, Bujes (2015) lembra que, a partir do século XVIII, coexistiram dois
tipos de estratégias à população infantil: a família burguesa organiza-se em torno da sua prole,
centralizada no controle da sexualidade infantil, e o controle e moralização da família pobre.
Ao apresentar tais estudos, retomo o foco desta Tese, que trata das práticas de registro
docente e o governamento da infância. A partir da trajetória histórica da Educação Infantil
brasileira, podemos perceber que as práticas pedagógicas emergem de discursos advindos da
área médico-sanitarista e higienista, estando articuladas com as práticas de registro. Jorge
Ramos do Ó (2013, p. 175) aponta que, com as influências do higienismo escolar e do
movimento da Educação Nova, as autoridades escolares produziram registros “nos quais a
atenção ao aluno se refletia ora na mediação e análise das capacidades intelectuais e criativas,
ora na inventariação e descrição das formas de conduta ou das suas aspirações mais íntimas”.
(Ó, 2013, p. 175). Como podemos perceber, as influências dos movimentos médico-higienista
e da Escola Nova relacionam-se com as práticas de registro na Educação Infantil. Os
higienistas, como aponta Lobo (2008, p. 313), “assumiram o papel de verdadeiros pedagogos
de vanguarda”, normalizando as práticas escolares com conhecimentos médicos, sendo que as
práticas de registro também apresentavam um cunho médico.
Ó (2009), ao estudar a emergência e circulação do conhecimento psicopedagógico
moderno, tanto no Brasil quanto em Portugal, percebe que há intensas implicações da
institucionalização da saúde escolar e da normalização terapêutica nas instituições escolares e
mostra o quanto os registros detalhados sobre o aluno em cadernetas, boletins semestrais ou
anuais e relatórios feitos por médicos respingam dos ideais de uma educação moderna. A
tecnologia dos testes serviu para alcançar a “interioridade dos escolares”, ou seja, cada criança
“passaria a ser examinada já não apenas pela sua prestação, pelo que conseguia fazer na sala
de aula, mas por aquilo que efetivamente era”. (Ó, 2009, p. 48). Não bastaria apenas medir o
saber, seria preciso conhecer o ser em sua minúcia. Atrelados à avaliação das crianças
anormais e de todas as suas patologias, os testes “davam assim resposta à procura de eficácia
99

que marcava a modernidade” (Ó, 2009, p. 49), pois mediam os casos desviantes e permitiam
um investimento detalhado sobre cada criança, regulando a sua conduta55.
De acordo com Ó (2009, p. 51), ampliaram-se e ramificaram-se os registros sobre a
criança, de modo que ela pudesse ser “capturada e apresentada de forma estável, fixa. Dócil,
dir-se-ia”. A observação, mensuração, quantificação, com todo o aparato de imagens,
gráficos, quadros, diagramas e números vistos em boletins, dossiês, fichas, estudos de casos,
cadernetas, testes de inteligência, questionários (fazer-falar e narrar a si próprio, como a
confissão), serviam para acompanhar o desenvolvimento físico e mental da criança, num
registro detalhado e exclusivo. “Era, portanto, essencial que se desenvolvessem,
aperfeiçoassem e estabilizassem sistemas de descrição visual das características, em si
mesmas visíveis, tanto do corpo como da mente infantil”. (Ó, 2009, p. 52-53). Tudo isso
possibilitou uma série de inferências sobre o comportamento da população infantil, tornando-
o calculável e previsível. Os registros “nos quais a atenção ao educando se espraiava tanto na
medida e análise das capacidades intelectuais e criativas como na inventariação e descrição
das formas de conduta, não cessaram de crescer no espaço lusófono a partir do termo do
século XIX”. (Ó, 2009, p. 76).
Como nos aponta Ó (2009, p. 76), “na escola do século XX terá havido sempre espaço
livre para o aparecimento de novos parâmetros de registros da diferença”; nesse sentido, “o
arquivo relativo ao aluno cresceu exponencialmente através do contributo dos vários centros
médico-psico-pedagógicos, determinados antes do mais em transcrever e codificar todas as
variações particulares” (Ó, 2009, p. 76), mais focados na moral e na formação do caráter, “e
não tanto no saber curricular, cujo peso e importância seriam menosprezados”. (Ó, 2009, p.
126).
Em resumo, a população infantil, ao ocupar um lugar distinto do lugar dos adultos e ao
apresentar necessidades de intervenção pontuais, passa a ser educada; paulatinamente, a
sociedade começa a reclamar por mais instituições para a infância, ou seja, por mais escolas, e
a necessidade de escolarização das crianças, tanto pobres quanto ricas, passa a ser crescente
no Brasil. Por tudo isso, também acompanhamos algumas condições que possibilitaram a
emergência de práticas de registro cada vez mais eficientes e eficazes sobre a infância,
agregando elementos relacionados à vida do sujeito infantil e legitimando determinados

55 Neste trabalho, utilizarei a expressão conduta, inspirada em Foucault, quando afirma que “o termo ‘conduta’,
apesar de equivocado, talvez seja um dos que permitem melhor atingir aquilo que há de específico nas relações
de poder. A ‘conduta’ é, ao mesmo tempo, o ato de ‘conduzir’ os outros (segundo mecanismos de coerção mais
ou menos estritos) e a maneira de se comportar em um campo mais ou menos aberto de possibilidades. O
exercício de poder consiste em ‘conduzir condutas’ e em ordenar a probabilidade”. (FOUCAULT, 2010, p. 288).
100

“especialistas da infância” a elaborarem tais registros. Considero tais questões relevantes para
compreender os deslocamentos das práticas de registro docente no campo educacional e
pedagógico do presente.
Ainda atentando para a trajetória histórica do atendimento das crianças em escolas de
Educação Infantil no Brasil, é importante entender que, esboçadas na Europa no final do
século XVIII e expandindo-se no final do século XIX em diversos países do mundo, as
escolas de Educação Infantil ganham força, credibilidade e necessidade social. No Brasil, por
volta de 1875, foi fundado o primeiro Jardim de Infância, no Rio de Janeiro, e outro em 1896,
em São Paulo. No entanto, essas primeiras instituições tinham como foco atender as crianças
da elite brasileira. Já as creches, até por volta do início do século XX, apresentavam
propósitos médico-assistencialistas e filantrópicos, tendo sua origem no atendimento às
crianças pobres ou desvalidas, de mães solteiras e viúvas que não tinham condições para
educar seus filhos. (KUHLMANN JÚNIOR, 1998, 2001; KRAMER, 2001; DIDONET, 2001;
BUJES, 2002; OLIVEIRA, 2002).
Fatos significativos marcam a história das instituições voltadas ao atendimento da
infância no Brasil. No início da década de 1930, por exemplo, o poder público foi convocado
a regulamentar o atendimento à infância, criando o Ministério da Educação e Saúde. Embora
ainda vinculada a programas e instituições privadas, a responsabilidade com a infância
também passou às políticas públicas. Um acontecimento interessante com o governo de
Getúlio Vargas, por volta de 1940, marca a obrigação da empresa particular que possui mais
de 30 mulheres empregadas acima de 16 anos em manter creche para os filhos das
funcionárias, alterando a legislação da CLT. Em 1941, cria-se a Legião Brasileira de
Assistência (LBA), entidade cuja função seria coordenar os serviços sociais do governo,
formulando e executando políticas de assistência destinada à família e ao atendimento da
maternidade e da infância.
Diversos movimentos sociais ocorreram mais fortemente a partir de 1960, com o
objetivo de qualificar o atendimento das crianças nas creches (melhores espaços físicos,
recursos e formação de profissionais, salários mais dignos e jornada de trabalho reduzida).
Entretanto, é a partir de 1970 que, conforme destaca Rosemberg (2002), a Educação Infantil
entra em pauta fortemente pelo movimento denominado “luta por creches”, e três grandes
acontecimentos são acentuados pela autora: primeiro, a influência do UNICEF e da UNESCO
(fim de 1970 e início da década de 1980), rodeada pela defesa da educação pré-escolar
compensatória e pelos modelos de massa, especialmente para as populações mais pobres (dois
grandes programas foram criados em âmbito federal: o Programa Casulo, administrado pela
101

LBA, e o Programa Nacional de Educação Pré-Escolar, implantado pelo Ministério da


Educação); segundo, a influência dos movimentos sociais pelos direitos das crianças e
adolescentes, por volta da década de 1980, levando ao MEC a concepção de educar e cuidar
para a Educação Infantil, tomada como direito da criança e dever do Estado, em 1988, com a
promulgação da Constituição Brasileira (artigo 208); terceiro, as influências dos impactos da
globalização e das políticas neoliberais, culminando com a publicação da LDB, lei nacional
que propõe a Educação Infantil como primeira etapa da educação básica. Com a LDB, a
Educação Infantil tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até cinco anos
de idade, complementando a ação da família e da sociedade.
É assim que o cenário brasileiro vai apresentar uma série de legislações relativas ao
atendimento da infância, aos direitos das crianças e à consolidação da educação infantil de
qualidade: a Constituição Federal (1988), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
(1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)(1996) e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (1998/2009), entre outras 56.Recentemente,
acompanhamos o movimento de algumas políticas públicas que atingem a Educação Infantil,
a saber: investimentos na formação continuada dos docentes, especialmente para aqueles
profissionais em serviço que ainda não haviam cursado a graduação, tal como aponta o Plano
Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR); investimentos na
formação inicial, como o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID);
os debates acerca da Base Nacional Comum, incluindo Eixos para a Educação Infantil; a
ampliação das vagas para as crianças de zero a cinco anos por meio do Programa Nacional de
Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação
Infantil (Proinfância), que visa à construção de novas escolas e à qualificação de algumas
escolas já existentes. Também o atual Plano Nacional de Educação (PNE/2014-2024, Lei
13.005/2014) determina diretrizes, metas e estratégias para a educação infantil; a meta
número 1 define a ampliação da oferta de vagas em creches, atendendo, no mínimo, 50% das
crianças de até três anos de idade até o final da vigência do PNE, além de, até 2016, atender à
matrícula de todas as crianças de quatro e cinco anos de idade na pré-escola.
Como pudemos acompanhar, paulatinamente, a Educação Infantil, enquanto primeira
etapa da Educação Básica, vem ganhando fôlego nos debates políticos e institucionais,
trazendo consigo as concepções de infância e criança do seu tempo. As transformações nos

56
É possível retomar na seção 1.2 da parte inicial desta Tese os demais documentos publicados pelo Ministério
da Educação com a intenção de criar diretrizes e parâmetros nacionais para o atendimento de qualidade na
Educação Infantil.
102

modelos de atendimento, bem como as propostas pedagógicas para a infância, estão


conectadas com as transformações na configuração da família, da sociedade, da religião, da
cultura. Assim, longe de determinar o seu fim, pelo contrário, a escola torna-se uma complexa
máquina que conduz as condutas das crianças, capturando-as de forma precoce e por uma
quantidade de horas bastante considerável. Tanto é que hoje assistimos a um movimento de
ampliação da Educação Infantil, tornando-a obrigatória para as crianças a partir de quatro
anos de idade (Lei nº 12.796/2013), e a intensos debates em torno da educação integral,
organizando as escolas para atendimento também no turno oposto.
Acompanhamos, gradativamente, a ampliação da cultura do capital humano e do
empreendedorismo nas escolas mediante inúmeros projetos e programas de governo, tais
como as avaliações em larga escala (Prova Brasil, Provinha Brasil, Avaliação Nacional da
Alfabetização - ANA, entre outras), os altos investimentos para atingir as metas do Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), o Pacto Nacional de Alfabetização na Idade
Certa (PNAIC), a obrigatoriedade de frequentar a escola aos quatro anos de idade, a
ampliação da jornada escolar para turno integral nas escolas pelo “Mais Educação”, sem citar
os programas de bolsas, os quais têm impacto na escola. Também podemos fazer referência
aqui aos programas e projetos criados no interior de cada escola, tais como projetos de
alimentação, nutrição, higiene, cuidados com o corpo, competições esportivas, assistência
social e saúde (dentista, psicólogo, nutricionista, artesão, pedreiro, entre outros, todos na
escola, todos são “Amigos da Escola”), projetos de educação sexual, prevenção às drogas,
campanha de vacinação, educação para o trânsito, educação para o meio ambiente, educação
financeira.
O desafio até aqui foi mostrar os entrecruzamentos entre infância, Pedagogia e escola
de Educação Infantil, os quais põem em marcha discursos que dizem a verdade sobre o sujeito
infantil, publicizando seus modos de viver mediante as práticas de registro. Ao mostrar como
a infância e a criança tornaram-se sujeitos-objetos de conhecimento e alvos de representação e
intervenção, percebo uma maximização das práticas de registro docente nas instituições
escolares, as quais se constituem como discursos de verdade. Ao compreender a escola como
uma maquinaria, percebo que as práticas de registro se instalam como fulcrais na visibilização
de certos tipos de infância. Assim, encerro a primeira parte deste trabalho mostrando a seguir
os deslocamentos nas práticas de registro na Educação Infantil e a emergência da
documentação pedagógica.
103

2.4 Os deslocamentos nas práticas de registro na Educação Infantil

De forma esquemática, especialmente acompanhando as discussões anteriores, torna-


se possível afirmar que a infância é capturada como objeto de observação e de registro por
meio de uma rede complexa de poder-saber. Ligada a protocolos avaliativos, a infância supõe
valoração e inquérito sobre o sujeito infantil. As práticas de registro sobre as crianças não são
novas, posso dizer, grosso modo, que se iniciam com a Modernidade, quando se inventa esse
sentimento tão específico que é a infância e se começa a olhar para a criança de outra forma.
Mas como, neste tempo atual, emerge uma forma tão especial de registro, denominada pelos
referenciais italianos de documentação pedagógica?
Observar e registrar os acontecimentos na escola vem sendo uma atitude, um
instrumento, uma possibilidade, uma técnica utilizada de forma cada vez mais eficaz e
refinada pelos professores, particularmente aqueles que atuam com crianças pequenas.
Percebo que os modos de praticar tais registros vão se deslocando no campo pedagógico. Por
volta da década de 1990, acompanhamos no Brasil a celebração das práticas de registro nas
quais o professor descrevia a sua própria prática, ou seja, trata-se daquilo que muitos
pesquisadores e autores costumam chamar de reflexão sobre a prática ou professor reflexivo57,
em que o professor investiga sua própria prática, buscando desenvolvimento profissional e
qualificando sua própria formação docente. Alguns estudos apontam para a necessidade de o
professor, apoiado nesses registros, teorizar sobre a sua atuação na escola, de modo a não
dicotomizar teoria e prática. Nesse sentido, surgem os diários de aula, os portfólios reflexivos,
os dossiês de registros, entre outros.
O filósofo e pedagogo norte-americano John Dewey (1859-1952), considerado um dos
precursores do conceito de profissional reflexivo, diferencia o ato reflexivo do ato rotineiro,
afirmando que a reflexão envolve persistência, cuidado e esforço pessoal. Para o autor, um
professor reflexivo é aquele capaz de organizar seu planejamento de forma flexível e
convertê-lo em uma ação inteligente. (DEWEY, 1959). Também o pedagogo francês Célestin
Freinet (1896-1966), por exemplo, foi um professor que enfatizou as técnicas e os
instrumentos de registros e documentação como meios de renovar o ensino popular. Os
jornais, o Livro da Vida, a agenda diária, os planos de aula, a caderneta escolar, caderno de
observações, entre outros recursos, seriam importantes instrumentos que auxiliariam os

57 Dentre os autores que abordam a questão do professor reflexivo no campo pedagógico atual, destaco: Nóvoa
(1992); Schön (1992); Zeichner (1993); Warschauer (1993); Zabalza (1994); Freire (1996); Hargreaves (1998);
Stenhouse (1998), Alarcão (2001, 2003); Shores e Grace (2001); Fullan e Hargreaves (2001); Perrenoud (2002);
Pimenta e Ghedin (2006); Hoffmann (2006), Pinazza (2007, 2013); Paige-Smith e Craft (2010).
104

professores a dar significado para suas ações pedagógicas, unindo teoria e prática. Para
Freinet, o registro deve ser um auxiliar do professor na socialização das atividades produzidas
pelas crianças, bem como na produção de memória daquilo que é feito na escola.
Posteriormente, uma série de estudos e publicações sobre a prática reflexiva veio à
tona, como podemos ver na nota de rodapé anterior. Muito influente na Educação Infantil, o
psicólogo e pedagogo espanhol Miguel Zabalza (1994) será um defensor das práticas
reflexivas, acreditando que os diários de aula são instrumentos “para ter acesso ao
pensamento e à ação dos seus autores” (1994, p. 10), ou seja, acesso ao “universo interno dos
professores” (1994, p. 35), e deve incluir “observação e gravação de aulas dos professores”
(1994, p. 12), pois o que interessa é entender “como é que encara e resolve na hora, no
momento, os acontecimentos que lhe aparecem”. (ZABALZA, 1994, p. 43). Os professores,
dessa forma, podem reconstruir as ações escolares, percebendo suas razões e sentido. “Os
professores convertem-se em investigadores de si próprios e do seu trabalho (primeiro como
narradores, observadores participantes, etc., e depois como analistas, ou, pelo menos, como
confirmadores ou não das análises)”. (ZABALZA, 1994, p. 28).
O referido autor acredita que “nos diários aparece uma visão mais vital, menos rígida
e/ou racional daquilo que acontece nas aulas” (ZABALZA, 1994, p. 50), além de “estabelecer
o vínculo existente entre pensamento e ação, descobrir as fontes de ‘sentido’ daquilo que os
professores fazem na sua aula e/ou aquilo que nos contam que fazem” (ZABALZA, 1994, p.
51), na perspectiva de tomarem consciência – autoconhecimento – do seu fazer prático, pois
implica “reconstituir verbalmente episódios densos de vida”. (ZABALZA, 1994, p. 92).
“Através dos diários, pode-se extrair a ‘alma’ do pensamento dos professores sobre as suas
aulas”. (ZABALZA, 1994, p. 194).
As contribuições da educadora brasileira Madalena Freire também têm grande impacto
nas pautas educacionais da Educação Infantil, por volta da década de 1990. A autora, ao
publicar as suas práticas como professora na obra A paixão de conhecer o mundo (1983)58, já
defendia a importância dos registros de suas reflexões e produções realizadas com as crianças.
Relatando sua prática pedagógica, a autora expressa fugir da rigidez no planejamento das
atividades, afirmando fazer e refazer na prática cotidiana. Assim, ela sugere o uso de um

58 Na mesma obra, Madalena Freire afirma que “é procurando compreender as atividades espontâneas das
crianças que vou, pouco a pouco, captando os seus interesses, os mais diversos. As propostas de trabalho que não
apenas faço às crianças, mas que também com elas discuto, expressam, e não poderia deixar de ser assim,
aqueles interesses”. (FREIRE, 1983, p. 21). Nessa citação, podemos evidenciar a relevância dos interesses
infantis, temática fundamental na Parte II desta Tese. “Por isso é que, em última análise, as propostas de trabalho
nascem delas e de mim como professora. Não é de estranhar, pois, que as crianças se encontram nas suas
atividades e as percebam como algo delas, ao mesmo tempo em que vão entendendo o meu papel de
organizadora e não de ‘dona’ de suas atividades”. (FREIRE, 1983, p. 21).
105

“caderno de lições”, no qual constam atividades oriundas de vivências com as crianças. Ao


final da referida obra, Freire (1983) apresenta esse caderno de lições, onde as próprias
crianças, além da professora, têm a oportunidade de elaborar as atividades. O caderno de
lições seria semelhante a um diário, como ela mesma define:

A lição é o ‘diário’ do que as crianças vivem em classe, todos os dias. Assim


como eu, todos os dias, paro e escrevo o meu diário, o que fiz, reflito sobre o
que vivemos e, assim, apropriando-me do meu FAZER cotidiano, a lição
para as crianças é o registro do que VIVERAM OU ESTÃO VIVENDO, é o
apropriar-me da sua prática diária. E por isso a lição “não cai do céu”, não é
pura repetição de exercícios mecânicos – alienados da vida das crianças.
(FREIRE, 1983, p. 68).

Também a pedagoga brasileira Cecília Warschauer publica, na década de 1990, A


Roda e o Registro, obra de grande impacto para os professores, especialmente para os da
Educação Infantil. A autora defende a ideia do uso de um diário e mostra como utiliza esse
instrumento ao longo do livro. Ela afirma que “o Diário também ajuda a observar o
desempenho individual das crianças, pois fazia ali alguns comentários delas. Estas anotações
ajudavam a redigir os relatórios individuais, também feitos bimestralmente”.
(WARSCHAUER, 1993, p. 69). “Os cadernos ou fichas, outras formas de registrar e construir
os conhecimentos, também eram avaliados. Mesmo sem atribuir notas, fazia comentários e
anotações, apontando em que deveriam ser corrigidos”. (WARSCHAUER, 1993, p. 69).
A autora acredita que o registro permite historicizar o processo de construção dos
conhecimentos do aluno, uma vez que “oferece segurança porque relembra as dificuldades
anteriores e a sua superação, dando coragem para enfrentar novos desafios e dificuldades,
que, como as anteriores, poderão ser superadas”. (WARSCHAUER, 1993, p. 63). E diz ainda:
“acredito que a escrita possibilite o acesso a camadas mais profundas de nós mesmos que,
sem esse registro, poderiam não chegar ao nosso conhecimento. Porém, possibilita também o
conhecimento de aspectos muitas vezes indesejados e sombrios”. (WARSCHAUER, 1993, p.
65). Os registros permitem ao professor conhecer mais sobre cada criança, possibilitam anotar
detalhes do seu rendimento, de seus afazeres na escola, e também propiciam a intervenção e
correção mais pontual. Ao mesmo tempo, servem de base para teorizar sobre a prática
docente, redefinindo suas ações. Creio que essa obra teve um satisfatório impacto nos debates
educacionais, uma vez que nesse período, principalmente na década de 1990, a Educação
Infantil era considerada como uma etapa muito enfraquecida no Brasil, sem reconhecimento
educacional perante a sociedade.
106

O que quero mostrar com tudo isso é que vimos emergir a necessidade de um registro
cada vez mais sistemático e refinado, tanto das ações dos professores, quanto das ações das
crianças nos contextos escolares. Acompanhamos a emergência das práticas de registro na
Educação Infantil e colocamos em marcha a celebração da documentação pedagógica,
expressão cunhada pelos referenciais italianos voltados à Educação Infantil, a qual enfatiza
muito mais as ações infantis do que as ações docentes.
Talvez seja interessante trazer à tona, aqui, o texto encomendado pela Anped à
pesquisadora Amanda Cristina Teagno Lopes Marques, professora do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), para a 37ª Reunião Nacional, em 2015.
Creio que esse artigo nos ajuda a pensar sobre a amplitude que a documentação pedagógica
tem sobre o registro docente, ou seja, ela amplia o registro que o professor faz pela
observação, incluindo outras possibilidades e ferramentas nessa prática.
No referido artigo, a autora elege o registro de práticas e a documentação pedagógica
como objetos de análise para a sua pesquisa e propõe um estudo de caso em quatro escolas de
Educação Infantil (três em São Paulo e uma em Bolonha, Itália), a fim de mostrar as
diferentes modalidades e finalidades da documentação pedagógica, de acordo com o projeto
político-pedagógico de cada instituição. Ela defende a necessidade da construção de uma
"cultura do registro" no contexto da Educação Infantil, conforme destaca: “partimos do
pressuposto de que o registro de práticas configura-se como elemento essencial ao trabalho
docente, e precisa ser incorporado à cultura pedagógica da Educação Infantil”. (MARQUES,
2015, p. 3). Entretanto, a autora esclarece e diferencia o uso das duas expressões - registro de
práticas e documentação pedagógica: o registro de práticas deriva das produções de
Madalena Freire (1996), que apresenta o registro como instrumento metodológico do trabalho
docente ao lado do planejamento, da observação e da reflexão. Assim, o termo registro “tem
como foco o professor como produtor de relatos reflexivos sobre sua prática e aproxima-se à
proposta dos diários de aula (ZABALZA, 1994); a centralidade recai sobre o professor que,
individualmente, produz narrativas”. (MARQUES, 2015, p. 3).
Já no conceito de documentação pedagógica, fundamentado na abordagem de Reggio
Emilia, “relatos de situações, fotografias, produções das crianças constituem material para a
documentação, que implica seleção, organização e elaboração de registros”. (MARQUES,
2015, p. 4). Marques (2015) afirma que há diferentes modalidades de documentação,
dependendo dos objetos, objetivos e destinatários: a documentação pode recair mais sobre a
criança em seu processo de pensamento, ou sobre o projeto pedagógico da escola; pode-se
documentar para e com as crianças, para os professores ou para as famílias. A autora acredita
107

que o registro do educador pode ser apenas um dos instrumentos da documentação, a qual é
compreendida de forma mais abrangente, “como um processo mais amplo de sistematização e
construção de memória sobre o trabalho pedagógico, sobre o processo de desenvolvimento da
criança, sobre a trajetória de um grupo ou de uma escola”. (MARQUES, 2015, p. 4).
Ela reafirma o tripé da documentação, o qual contempla o educador (na reflexão sobre
a prática, na avaliação do processo de aprendizagem das crianças, no planejamento,
contribuindo para seu próprio processo de formação e desenvolvimento profissional e
melhoria da ação), as crianças (quando elaboram seu portfólio de aprendizagem, selecionando
produções, imagens, textos que irão compor o documento, construindo, junto com o educador,
a memória de seu percurso de formação) e os pais/responsáveis (como instrumento de acesso
ao trabalho pedagógico desenvolvido pela escola e à trajetória da criança naquele grupo).
(MARQUES, 2015). A partir da metodologia de estudo de caso em quatro escolas, a autora
acredita que não é adequado institucionalizar as práticas de registro e impor modelos
preestabelecidos a serem seguidos pelas escolas, pois cada realidade apresenta demandas
peculiares, exigindo respostas também particulares. Homogeneizar as práticas seria
desastroso, tendo em vista as diferentes realidades, pois, mesmo que seja possível considerar a
existência de uma cultura organizacional que prioriza ou valoriza a documentação
pedagógica, os modos de apreensão e participação dos diferentes sujeitos não se dão de
maneira idêntica e homogênea. Nesse sentido, a autora defende a incorporação do registro ao
projeto político-pedagógico da Educação Infantil. (MARQUES, 2015).
Dito isso, creio que a autora nos mostra a amplitude da documentação pedagógica que,
muito além dos registros docentes, contempla outras tantas ferramentas e possibilidades de
tornar visível aquilo que é produzido na escola infantil. É nesse contexto que a documentação
pedagógica se encaixa no cenário nacional, envolvendo o registro que o professor faz a partir
das ações das crianças, incluindo observação, registro e interpretação da aprendizagem
infantil, mostrando para os interessados (professores, pais e direção, entre outros) o que as
crianças fazem na escola.
No Capítulo 1, em um breve apanhado histórico dos documentos legais publicados
pelo Ministério da Educação para a Educação Infantil, pude constatar a ênfase dada à
observação e ao registro docente sobre o crescimento e o desenvolvimento da criança. Por
volta de 2009, o MEC afirma que, além da escrita do professor, há que se utilizarem outros
registros, “tais como a escrita, a gravação de falas, diálogos, fotografias, vídeos, os trabalhos
das crianças etc.” (BRASIL/MEC, 2012, p. 14-15), inserindo, nos discursos governamentais e
108

nas orientações da esfera pública, a necessidade de práticas mais refinadas de registro


docente.
Ao acompanharmos a trajetória histórica da Educação Infantil no Brasil, podemos
perceber que foi necessário um incansável movimento de reconhecimento dessa primeira
etapa da educação básica como “educação”. Com traços de assistencialismo e custódia, com
caráter médico-higienista e sanitarista, deslocamo-nos para a concretização de um projeto
pedagógico com especificidades para a Educação Infantil. Destacaria que um desses
movimentos (e aquele que me interessa olhar aqui) foi levar a avaliação para esse nível de
ensino. Entretanto, como desde a sua emergência a Educação Infantil não contou com
retenção nem reprovação de crianças – e talvez por esse motivo não incrementou as formas de
exame –, foi necessário construir um refinado modelo de registro59. Inúmeras pesquisas e
publicações são destinadas a esse assunto, e, ainda que existam diferenças entre ideias e
fundamentos, parece-me que todos estão unidos na defesa da necessidade de os professores
observarem atentamente cada aluno para registrar e avaliar o seu comportamento,
desenvolvimento e aprendizagem na escola, a fim de propor melhorias, avanços, maior
desempenho individual, eficácia nos modos de aprender para alcançar os objetivos e
resultados almejados, controlando sucessos e fracassos.
Acompanhar o atendimento à infância na instituição escolar de Educação Infantil ao
longo dos tempos permite-nos compreender a emergência das práticas de registro docente
sobre as crianças. Se antes aceitávamos testes padronizados e fichas classificatórias, hoje
pactuamos com a necessidade de uma avaliação individualizada da criança60. Ligadas aos
modos de conceber a infância, a pedagogia e as propostas das instituições de atendimento às
crianças, as práticas de registro e seus instrumentos de avaliação vêm reconfigurando-se: de
fichas avaliativas, pareceres descritivos e relatórios, para portfólios, dossiês e a documentação
pedagógica. (CIASCA; MENDES, 2009). As fichas avaliativas, os pareceres descritivos e os
relatórios, geralmente instrumentos avaliativos preenchidos ao final de um processo letivo
(bimestre, trimestre, semestre), portanto, um tempo mais longo e analógico, seguem registros

59 Como atuei por alguns anos na Educação Infantil, tanto como professora, quanto coordenadora, posso atestar
que a avaliação, por conter muitos registros do professor e ser mais sistemática, torna-se um incômodo para
muitos professores. A própria literatura voltada à Educação Infantil aponta como forma de amenizar este
processo de registro, especialmente no período de emissão dos pareceres e os relatórios, a possibilidade de o
professor fazer escritas, tabelas, anedotários, fichas de cada aluno ao longo do processo letivo, não deixando para
o final do período escolar.
60 Se buscarmos estudos sobre avaliação na Educação Infantil, vamos encontrar Jussara Hoffmann (2006, p.9),
autora que nos chama a atenção para o fato de que a avaliação se insere na discussão histórica acerca de uma
concepção assistencialista ou educativa para o atendimento às crianças “e a exigência de um processo formal de
avaliação parece surgir, mais propriamente, como elemento de pressão das famílias de classe média por
propostas verdadeiramente pedagógicas, para além do modelo de guarda e proteção do modelo assistencialista”.
109

mais padronizados e uniformes das crianças, com termos mais vagos e imprecisos, sendo
considerados pelos professores como um trabalho burocrático. Assim, esses registros são
“sem qualquer significado ou importância pedagógica”. (CIASCA; MENDES, 2009, p. 303).
Utilizo-me das constatações do parágrafo acima, ainda que sucintas, para novamente
argumentar que as práticas de registro da documentação pedagógica são mais refinadas, sutis
e eficazes que outras práticas de registro, pois valorizam ações mais instantâneas,
transparentes, que não apenas mostrem números e dados escritos e padronizados, mas
utilizem imagens e narrativas em movimento. Ou seja, será necessária a construção de outras
formas de avaliação, não centradas no diagnóstico e na elaboração de pareceres e relatórios de
avaliação trimestrais ou semestrais; será preciso apresentar outra estética na produção do
material, utilizando-se diversos recursos, como fotos e filmagens, num tempo que prima pela
rapidez, permanência e aceleração do registro. Essa forma de registro mobiliza outras relações
espaço-temporais: na sala de aula, no pátio, entre colegas, entre professor e aluno. Se antes
importava um diagnóstico oferecido pelo professor, agora o próprio aluno mostra-se e é
incentivado a mostrar-se, e todos veem todos e cada um.
Como uma superfície de análise, gostaria de situar tal provocação que fiz sobre a
avaliação dentro de um esquema mais amplo, não restrito à consolidação da Educação
Infantil, mas como um movimento social, econômico e político, bem como pertencente a um
movimento de reconfiguração dos territórios de governo. Miller e Rose (2012), ao discutirem
sobre a administração da vida econômica e os deslocamentos do governo da economia,
expressam a necessidade da avaliação como um componente-chave para a
governamentalidade:

[...] esse imperativo de avaliar precisa ser visto, ele próprio, como um
componente-chave das formas de pensamento político em discussão: como
as autoridades e os administradores fazem julgamentos, as conclusões que
daí inferem, as retificações que propõem e o ímpeto que a ‘falha’ fornece
para a programação de novos programas de governo. A ‘avaliação’ da
política, em uma total variedade de formas, faz parte integral, portanto,
daquilo que denominamos de caráter programático da governamentalidade.
(MILLER; ROSE, 2012, p. 42).

Os autores sinalizam a crescente necessidade de avaliação dos mais variados aspectos


da vida: da empresa, da família, da criança e até de si mesmo, como meio de representação e
intervenção, afirmando que também os relatórios “poderiam possibilitar que se alcançassem
as exigências de planejamento, modernização e de crescimento”. (MILLER; ROSE, 2012, p.
110

52-53). Tudo isso seria sinônimo de atingir certa traduzibilidade daquilo que se pretende
instrumentalizar. Asseguram que é preciso

[...] fazer com que as pessoas registrem, e a natureza das coisas que as
pessoas são obrigadas a registrar é, em si, um jeito de governá-las, levando-
as a pensar e anotar determinados aspectos de suas atividades de acordo com
normas específicas. O poder flui para o centro ou para o agente que
determina as inscrições, que as acumula, contempla-as em sua forma
agregada e, portanto, pode compará-las e avaliar as atividades dos outros,
que são meramente dados em um gráfico. (MILLER; ROSE, 2012, p. 102-
103).

Isso mostra que a governamentalização do Estado lhe confere uma intervenção


avaliativa sobre a população, ocupando centralidade como um Estado avaliador (no âmbito
educacional, acompanhamos a crescente necessidade de estratégias de avaliações mais
sofisticadas, conforme constatado nas políticas públicas e nas avaliações em larga escala,
além da produção de estatísticas sobre aprendizagem, fracasso escolar, reprovação, entre
outros exemplos que já foram comentados no decorrer deste trabalho. As avaliações em larga
escala legitimam tamanho crédito, que as escolas recebem verbas e recursos financeiros para
investimento em estrutura física, materiais pedagógicos e formação docente). Contudo, a
avaliação não se restringe apenas ao Estado avaliador, mas também entra na vida de cada
sujeito, fazendo com ele mesmo perceba a necessidade de avaliação e autoavaliação
constante.
Importante marcar aqui as contribuições de Alfredo Veiga-Neto (2013), Elí Fabris e
Clarice Traversini (2013). Ao identificar o avanço e o fortalecimento do neoliberalismo no
Brasil, o professor Alfredo Veiga-Neto (2013) analisa as práticas curriculares e desenvolve o
argumento de que há um desvio à direita, “entendido como a ênfase acentuada na avaliação –
ao mesmo tempo em que é consequência da racionalidade neoliberal também contribui para a
expansão e o fortalecimento dessa mesma racionalidade”. (VEIGA-NETO, 2013, p. 2). Ele
coloca em jogo o destacado crédito dado à avaliação escolar (avaliação como farol do
currículo) e a invasão das práticas avaliatórias além do espaço escolar, atingindo as diversas
instâncias da vida humana. Afirma que “a todo o momento somos convocados a nos
avaliarmos e a avaliarmos os outros; pensamentos, ações e corpos estão constantemente sob
escrutínio e julgamento”. (VEIGA-NETO, 2013, p. 3). Costumeiramente, aprendemos que o
currículo se desenvolve em três etapas: planejamento, execução e avaliação, porém, conforme
afirma Veiga-Neto (2013), há um deslocamento das práticas curriculares de modo a
111

privilegiar a avaliação. O autor destaca que, ao tratar da avaliação, o currículo pode deixar
mais livre, mais preso ou até enforcar aqueles que a ele se submetem, e

[...] o fato é que, de uns anos para cá, estamos vivendo a exacerbação da
avaliação e de teorizações em torno dela. Ora se exalta a avaliação do ensino
e da aprendizagem, ora se inventam novos instrumentos para avaliar alunos e
professores, ora se criam novos mecanismos para avaliar os sistemas
educacionais, ora se desenvolvem algoritmos para ranquear as instituições às
quais se aplicam duvidosos critérios e instrumentos avaliativos. Por toda a
parte, parece que, por si só e num passe de mágica, do aperfeiçoamento da
avaliação resultará o aperfeiçoamento da educação para que, num outro
passe de mágica, se atinja o soi-disant “progresso social” [...]. O
salvacionismo pedagógico parece estar apostando, hoje e cada vez mais,
todas as fichas na capacidade da avaliação. (VEIGA-NETO, 2013, p. 9).

A acentuada ênfase na avaliação funciona como um instrumento útil para a


racionalidade neoliberal e o Estado avaliador. Conforme aponta Veiga-Neto, na Modernidade,
capturamos o mundo por meio de medidas, classificações, ordenações e hierarquização, e isso
possibilitou as condições para que a avaliação começasse a funcionar. Entretanto, o que “é
novo é a exacerbação da avaliação, em termos da sua intensidade e principalmente da sua
onipresença e atravessamento em todas as esferas da nossa vida. É novo, também, e não
menos importante, o caráter radicalmente econômico que a avaliação assume nas sociedades
neoliberais”. (VEIGA-NETO, 2013, p. 12). O autor aponta que a avaliação é uma tecnologia
que, além de classificar, segregar, posicionar, hierarquizar, “também ensina, promove e
naturaliza a classificação, a segregação, o posicionamento e a hierarquização sociais. Basta
compreender tais novidades para compreendermos por que a avaliação transformou-se num
farol para o currículo”. (VEIGA-NETO, 2013, p. 12).
Trazendo o debate firmado pelas pesquisadoras Traversini e Fabris (2013) ao
investigarem como o conhecimento escolar tem sido trabalhado nas escolas e que efeitos ele
produz, tanto no currículo, quanto nos sujeitos que frequentam esses espaços, também
encontro pistas para fortalecer meus argumentos nesta Tese. As autoras percebem “dois
deslocamentos nas práticas escolares presentes em nossas pesquisas – o como fazer e a
avaliação constante e sistemática”. (TRAVERSINI; FABRIS, 2013, p. 35). Tal como já
sinaliza Veiga-Neto (2013), as autoras também observam ênfase na avaliação, mas incluem a
ênfase na metodologia. “A escola, ao defrontar-se com questões de extrema precarização,
assume como principal ação a busca de proteção e segurança. Os conhecimentos vão ficando
para depois, e o foco é atender os sujeitos nos seus danos e prejuízos”. (TRAVERSINI;
FABRIS, 2013, p. 41).
112

As questões comportamentais são mais relevantes que o próprio conhecimento escolar,


e isso, segundo as autoras, fica evidente também nos processos avaliativos, em especial na
elaboração dos pareceres descritivos e nos registros do conselho de classe, ou seja, “a forma
de expressão dos resultados no parecer redescreve os conteúdos sob a forma de
comportamentos”. (TRAVERSINI; FABRIS, 2013, p. 46). Em tempos anteriores, afirmam as
autoras, o mais importante na escola era evidenciar a aprendizagem mediante provas que
verificavam os conteúdos aprendidos, mas “agora esse é apenas um aspecto, reservado,
prioritariamente, para as avaliações de larga escala”. (TRAVERSINI; FABRIS, 2013, p. 46).
E mais:

Elaborar pareceres descritivos com narrativas de julgamento e moralização


dos estudantes, muitas vezes como a única expressão visível de rendimento
escolar, pode fazer com que crianças e jovens permaneçam na obscuridade
com relação às suas aprendizagens escolares. Seus professores também
sofrem os efeitos disso por sentirem-se fracassados e sem saberem o que
fazer com a não aprendizagem observada em sala de aula e nos resultados
por meio dos registros avaliativos, incluídos os baixos índices nas
indesejadas classificações (rankings) de seus alunos e escolas.
(TRAVERSINI; FABRIS, 2013, p. 50).

Seguindo também numa perspectiva foucaultiana, a Tese de Doutorado de Rejane


Ramos Klein (2010), intitulada A reprovação escolar como ameaça nas tramas da
modernização pedagógica, representa uma leitura indispensável neste momento. Ao debater a
ampliação das funções da escola, a pesquisadora salienta a proliferação da avaliação escolar
como modernização pedagógica, permitindo um maior acompanhamento e intervenção do
professor na aprendizagem dos seus alunos. A autora afirma que

A avaliação, que se dava por meio de um exame, passará a ser, a partir dos
ideais modernizadores, muito mais preventiva através da observação
permanente e contínua do professor, que deverá não mais apenas almejar a
classificação do aluno, mas também intervir em seu processo de
aprendizagem, a fim de considerar as capacidades do estudante. (KLEIN,
2010, p. 72).

Pontuando os deslocamentos da avaliação escolar, a autora destaca a necessidade de


acompanhar, além dos aspectos cognitivos, também os aspectos psicológicos, de modo a
evitar a reprovação (que se torna uma ameaça à população; por esse motivo, são necessárias
estratégias de prevenção para controlar o índice de reprovação). O professor não pode
classificar o aluno somente a partir do exame, mas “será necessária a sua biografia para
113

conhecê-lo e assim ser possível intervir para corrigi-lo e educá-lo” (KLEIN, 2010, p. 122),
exigindo-se do professor avaliações mais frequentes e com variados instrumentos e formas.
Meu foco de análise segue outra direção daquela escolhida por Klein (2010).
Entretanto, sua Tese oferece fundamentos para perceber o quanto as práticas de registro da
aprendizagem e do desenvolvimento dos alunos vão se tornando cada vez mais refinadas,
mais frequentes, exigindo do professor novas formas de registrar. Talvez essas condições é
que possibilitaram o festejo da documentação pedagógica e seus ajustes à sociedade
contemporânea. Tal debate contribui nesta investigação, interessada em acompanhar os
deslocamentos nas práticas de registro docente. Não se trata de culpabilizar a sociedade, suas
transformações, sua competitividade, conectando o excesso de avaliação a uma necessidade
social. Não se trata, tampouco, de compreender o fenômeno como simples causa ou
consequência das relações sociais, políticas, econômicas e culturais. Trata-se de entender que
o Estado passa a operar sobre a vida da população de outras formas quando compreendemos a
governamentalidade neoliberal, reconfigurando suas tecnologias e estratégias de condução da
conduta dos indivíduos, com uma ênfase menor nos dispositivos disciplinares e mais potente
nos dispositivos de seguridade.
As próprias práticas refinadas de registro fortificam, sustentam e estimulam práticas
neoliberais. Se formos fazer uma comparação com o crescimento da grama – que cresce pelo
meio, não sendo possível visualizar seu início, tampouco seu fim –, os professores assumem
as práticas de registro sobre o outro por uma exigência social, mas também porque dessa
forma garantem sua própria condição docente. Eles próprios convencem a si mesmos e agem
consigo mesmos. Ao mesmo tempo, esses professores, com esses registros, colocam em ação
uma determinada noção de infância (talvez aquela estudada nos cursos que frequentam, nos
livros que leem, nas práticas de senso comum e até mesmo inspirados na própria infância que
tiveram) e asseguram a sua continuidade, confinando a infância em torno dela mesma, fixando
modos de representação e intervenção dessa infância e colocando em ação, movimentando a
racionalidade neoliberal, que é a lógica que “dá as cartas” no contemporâneo.
Há uma necessidade de avaliação constante, vinculada à individualidade de cada aluno
e dos seus próprios interesses, num momento em que a pedagogia e a escola são convidadas a
transformar-se (e a inovar). Dito de outro modo, a Pedagogia e a escola, reduzindo (mas não
excluindo) sua capacidade prescritiva, normativa e disciplinar, e ampliando flexibilidade e
liberdade, precisa da avaliação enquanto tecnologia para melhor governar a conduta dos
sujeitos para que sejam educáveis, mesmo que essa avaliação também se torne mais flexível e
livre (muitas vezes, não mais reprovando, não se configurando em folhas infindáveis de
114

relatórios, não constituindo uma nota ou um número para o aluno), por meio de conceitos,
registros cotidianos, aprovação com acompanhamento posterior, etc. Há uma proliferação de
estratégias de avaliação para uma criança-aluno que tem gradativas liberdades na escola, a fim
de ampliar as formas de controle no sucesso da sua aprendizagem, olhando e fixando a sua
individualidade e a de cada um. Uma avaliação com esse escopo precisa ser flexível, rápida,
acelerada, instantânea, digital, pontilhista. Embora registre instantâneos, não há aqui
preocupação com a história produzida por uma memória linear, mas uma memória
presentificada em que assume importância sempre o fato mais novo, atual, presente.
Diante desse cenário, é preciso entender “o poder da documentação pedagógica”
postulado nos referenciais italianos. É o que procuro desenvolver na última seção da Parte I
desta Tese, intitulada “Como um antídoto” – os registros da documentação pedagógica.
Reafirmo que, ao abordar inúmeras questões sobre o fazer pedagógico nas escolas italianas,
especialmente em Reggio Emilia e San Miniato (cidades que atuam fortemente na divulgação
e publicação do seu trabalho para o mundo inteiro), tomo a expressão documentação
pedagógica para fazer menção aos referenciais italianos para educação da infância, uma vez
que é possível perceber que o termo está mais fortemente presente nas pautas educacionais
após a chegada desses referenciais para a Educação Infantil (por volta do final da década de
1990)61.

2.5 “Como um antídoto” – os registros da documentação pedagógica

Como uma ferramenta para a análise e a avaliação, a documentação


pedagógica representa um antídoto extremamente forte para a proliferação
das ferramentas de avaliação e de análise que ficaram cada vez mais
anônimas e descontextualizadas – objetivas e democráticas apenas
superficialmente. (DAHLBERG, 2016, p. 231, grifos meus).

Antídoto extremamente forte contra outros modos de análise e avaliação. É com essas
palavras que Dahlberg caracteriza a documentação pedagógica em obra recentemente lançada,

61 Relembro o leitor de que, a partir da próxima seção, inicio a utilização das cinco variadas dinâmicas para
apresentar os materiais de pesquisa, ou seja, cinco diferentes estratégias e modos de escrita: 1) citação curta
constituída por excerto retirado do material de pesquisa, a qual aparece ao longo do trabalho escrita como as
demais citações, porém, destacada em itálico, para diferenciar-se das demais citações de fundamentação teórica;
2)citação longa constituída por excerto retirado do material de pesquisa, a qual aparece ao longo do trabalho
destacada em caixa de texto, a fim de também se diferenciar das demais citações longas advindas da
fundamentação teórica; 3)organização de um bloco de citações dentro de quadros numerados e nomeados; 4)
imagens que apresentam os exemplares produzidos pelos professores (como a imagem 1, já apresentada); 5)
epígrafes que se relacionam com o conteúdo de cada capítulo ou seção, destacadas em itálico, para diferenciar-se
das demais epígrafes advindas de fundamentação teórica.
115

em 201662. Nessa obra – As cem linguagens da criança: a experiência de Reggio Emilia em


transformação –, outros títulos são marcantes: O poder da documentação pedagógica; A
documentação pedagógica como forma de desafiar os discursos dominantes; Incorpore a
documentação como parte da prática diária; Aprendizagem negociada pelo design, pela
documentação e pelo discurso. Contudo, numa das primeiras obras traduzidas no Brasil, em
1999, já visualizávamos três funções da documentação pedagógica:

[...] oferecer às crianças uma memória concreta e visível do que disseram e fizeram, a fim de servir
como um ponto de partida para os próximos passos na aprendizagem; oferecer aos educadores uma
ferramenta para as pesquisas e uma chave para melhoria e renovação contínuas; e oferecer aos pais
e ao público informações detalhadas sobre o que ocorre nas escolas, como um meio de obter suas
reações e apoio. (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 25).

Poderíamos dizer, grosso modo, que essas três funções são evidenciadas em quase
todos os referenciais italianos analisados neste trabalho. Assim, crianças, professores e pais
formam o tripé da documentação pedagógica, ou ainda, uma comunidade de aprendizagem 63.
Lóris Malaguzzi traz grandes influências ao debate sobre a documentação pedagógica quando
destaca a exigência de educadores infantis comprometidos, afirmando que eles “devem
descobrir modos de comunicar e documentar as experiências crescentes das crianças na
escola, devendo preparar o fluxo constante de informação de qualidade, voltado aos pais,
mas também apreciado pelas crianças e pelos professores”. (MALAGUZZI, 1999, p. 80). O
autor defende a ideia de que os adultos aprendem sobre as crianças quando convivem com as
próprias crianças. Procura construir outra imagem de criança, não-padronizada, não-universal,
que não seja definida por manuais, por meio da “pedagogia da escuta”. (RINALDI, 2012, p.
124). Ao ser entrevistada, a educadora reggiana Laura Rubizzi afirma que “Loris Malaguzzi
estava bastante ciente da necessidade de documentar desde o começo. Sua ideia era criar
uma escola transparente, visível e que dialogasse com a cultura contemporânea”.
(GANDINI, 2012, p. 78).

62 Curioso mencionar aqui que, quando adquiri esse livro, em um evento internacional voltado à Educação
Infantil no estado de Santa Catarina, a livraria não possuía exemplares suficientes, pois havia “fila de docentes”
para a compra da obra.
63 Neste trabalho, meu foco não estava direcionado, de forma intencional, para as narrativas sobre a família,
embora reconheça que esse é um tema recorrente no material. A disciplinarização e a pedagogização da família
são ingredientes importantes para as práticas de documentação. Em função das limitações desta pesquisa, esse
ponto será abordado superficialmente, ficando o desafio para pesquisadores interessados nessa temática.
116

Para Malaguzzi – considerado pensador inicial e fundamental nas escolas de Reggio


Emilia (situada na região de Emília Romagna, nordeste da Itália)64 e visto por Rinaldi como
um “arquiteto do pensamento pedagógico e filosófico que permeia a experiência de Reggio”
(RINALDI, 2012, p. 138) –, a criança “tem cem linguagens” e “cem formas de pensar”; as
crianças precisam ser levadas a sério, e “desapontar as crianças priva-as das possibilidades
que nenhuma exortação pode fazer surgir, nos anos posteriores”. (MALAGUZZI, 1999, p.
76-77). Assim, é preciso investir nas crianças, de modo a não privá-las de todas as
possibilidades que o mundo lhes oferece.
É importante dizer que Malaguzzi expõe suas convicções após a II Guerra Mundial,
momento no qual a Itália se reorganizava após um longo período de conflitos; é nesse
contexto que Malaguzzi desencadeia e impulsiona a prática da documentação pedagógica65.
No que compete às instituições escolares, é nesse período que a Itália passa a minimizar o
poder da Igreja Católica e a reforçar o poder da comunidade e da sociedade civil na educação
das crianças pequenas. Em Reggio Emilia, os movimentos sociais deram origem às escolas
infantis municipais, onde pais trabalhadores se reuniram para construção de um local
educativo, visando ao desenvolvimento intelectual de seus filhos. Bujes (2008) compara essa
questão a uma educação moderna voltada ao porvir, preocupada com o futuro e com o
desenvolvimento das inteligências das crianças desde tenra idade. A autora constata que, “nos
processos de reformulação ou regeneração social, cabe à educação o imperativo ético de
‘reconduzir’ aos seus devidos eixos o processo civilizatório”. (BUJES, 2008, p. 111). Ao
mesmo tempo, a necessidade de registro, de preservar memórias nos tempos e espaços,
também se mostra uma necessidade de sociedades que passaram por experiências de situações
de guerra.
Como podemos acompanhar, a dedicação de Malaguzzi à educação das crianças e sua
preocupação com a construção e manutenção de escola infantis de qualidade transitam num
sentimento de pós-guerra, em que o próprio autor afirma que pode ter sido “uma forma de
recomeçar do zero, viver e trabalhar para o futuro. Este desejo atinge uma pessoa, quando a
guerra finalmente termina e os símbolos da vida reaparecem com uma violência igual àquela
do tempo da destruição”. (MALAGUZZI, 1999, p. 66). Ao compreenderem que a criança é

64 Alfredo Hoyuelos, atelierista, nascido em Pamplona, Espanha, vem disseminando os ideais do projeto
educativo de Malaguzzi, defendendo as práticas de documentação e mostrando sua necessidade e benefício em
alguns congressos no Brasil.
65 Em 1995, Howard Gardner propôs a realização de uma pesquisa em conjunto com estudiosos e professores de
Reggio Emilia, e a temática para tal foram as relações entre documentação e avaliação, por acreditarem no “valor
da documentação como ferramenta para a avaliação/apreciação e para a autoavaliação/autoapreciação”.
(RINALDI, 2012, p. 119).
117

protagonista, os professores devem tornar público aquilo que elas produzem nas escolas, pela
via da organização e sistematização de observações, registros e interpretações: documentação
pedagógica.
Poderíamos, até aqui, nos questionar: como a documentação pedagógica emerge com
tal força? Por que tal prática é celebrada e se encaixa nos dias atuais? Inspirados em Reggio
Emilia, os autores Dahlberg, Moss e Pence (2003, p. 91) apresentam a “documentação
pedagógica como um instrumento vital para a criação de uma prática pedagógica reflexiva e
democrática”, pois ela tem um papel fundamental no discurso da construção de significado,
ou seja, “em vez de se basear em alguma medida padronizada de qualidade [...] a
documentação pedagógica nos permite assumir a responsabilidade pela construção dos
nossos significados e chegar à nossas próprias decisões sobre o que está acontecendo”.
(DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 191). Ao dar visibilidade para o trabalho
pedagógico, “a documentação pedagógica proporciona a possibilidade de as instituições
dedicadas à primeira infância conseguirem uma nova legitimação na sociedade”.
(DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 191).
Entretanto, os mesmos autores reforçam: a documentação não deve ser confundida
com uma mera “observação da criança” (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 191), pois
essa observação classifica e categoriza as crianças em relação a um “esquema geral de níveis
e estágios desenvolvimentais”. (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 192). A mera
observação é compreendida como resultado, e não como processo; em outras palavras, é
encarada como uma “tecnologia de normalização relacionada às construções da criança
como natureza e como reprodutora de conhecimento” (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003,
p. 192), sendo tomada como uma prática de perspectiva modernista. Já a documentação
pedagógica, na perspectiva dos autores, é tida como pós-moderna: “adotando uma
perspectiva pós-moderna, a documentação pedagógica não reivindica que aquilo que é
documentado seja uma representação direta do que as crianças dizem e fazem; não é um
relato verdadeiro do que aconteceu”. (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 192).
Os autores Dahlberg, Moss e Pence (2003, p. 190), em um de seus escritos, procuram
desenvolver o exercício de buscar inspiração em Michel Foucault para pensar a documentação
pedagógica e afirmam que ela seria um meio para que os professores pudessem resistir ao
“nexus saber-poder, aqueles regimes de verdades que tentam determinar para nós o que é
verdadeiro ou falso, certo ou errado, o que podemos ou não podemos pensar e fazer”. Nesse
sentido, a documentação poderia desmascarar “os discursos e os regimes dominantes que
exercem poder sobre nós e por meio de nós, pelos quais temos construído a criança e nós
118

mesmos como pedagogos”. (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 199). Como o ato de
documentar nunca é neutro e inocente, a documentação é tomada “como um instrumento para
abrir uma prática crítica e reflexiva que desafie os discursos dominantes e construa
contradiscursos, por meio dos quais podemos encontrar pedagogias alternativas”.
(DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 199). Compreendendo-se tais práticas como meio de
resistir ao nexus poder/saber, elas são um empreendimento perigoso:

Podem ser perigosos, como declarou Foucault (1970), pois carregam significado político e teórico.
Por isso, a produção de conhecimento está sempre relacionada à produção de poder [...]. Se suscita
outras construções e perspectivas, então a documentação tem o potencial de revelar o caráter
incorporado da construção de conhecimento e, como tal, funciona como uma prática
emancipatória. (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 203, grifos meus).

Assim sendo, a documentação contrasta com práticas modernistas de avaliação


convencional, em que a criança era avaliada e classificada segundo categorias e estágios
predeterminados de desenvolvimento psicológico, uma vez que a documentação possibilita a
autorreflexão dos adultos em relação às crianças – e mais, ela “diz respeito principalmente à
tentativa de enxergar e entender o que está acontecendo no trabalho pedagógico e o que a
criança é capaz de fazer sem qualquer estrutura predeterminada de expectativas e normas”.
(DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 192).
Essa narrativa volta a ser defendida em 2016 por Dahlberg quando destaca que a
documentação pedagógica abre para a complexidade do processo da Educação Infantil,
deixando de lado a objetividade que muitas avaliações padronizadas nos mostram para
mensurar a qualidade. Porém, a autora traz um alerta, buscando novamente apoio em Michel
Foucault: a documentação “pode ser capturada por estratégias para ‘prever e controlar’ as
crianças mais efetivamente por meio de processos de normalização e vigilância”
(DAHLBERG, 2016, p. 232), transformando-as em meros objetos. Por isso que a escuta
atenta e sensível – aquela que é diferente do ouvir, aquela que envolve o terceiro ouvido
(FORMAN; FYFE, 2016, p. 260), aquela que suspende julgamentos e preconceitos em
relação às crianças, a qual vem sendo também denominada de pedagogia da escuta – garante
que a documentação seja um processo democrático, e, “graças à documentação pedagógica,
cada criança, professor e escola podem ganhar voz pública e identidade visível”.
(DAHLBERG, 2016, p. 233).
De acordo com os referenciais italianos analisados, a documentação pedagógica
também pretende fugir da ideia de mensuração, presente em algumas práticas avaliativas. A
119

mensuração é compreendida pela autora americana Brenda Fyfe (2016) como uma ciência
exata que avalia quantidades mediante unidades padronizadas de medida, tendo caráter
somativo de atribuir notas e comparar alunos, classificando-os “em uma escala para
determinar o nível de competência ou desenvolvimento, classificá-los para serviços especiais
ou decidir em reprová-los ou passá-los à próxima série”. (FYFE, 2016, p. 279). Já a
documentação consiste em “traços de aprendizagem”, e “nenhum traço de aprendizagem é
limitado em sua interpretação a uma unidade de medida padronizada”. (FYFE, 2016, p.
274). Portanto, as avaliações formais não fazem parte do conceito de documentação de
Reggio Emilia, afirma a autora, uma vez que a documentação – que vem de orientação
filosófica construtivista – “é conduzida de modo a estimular o aprendiz a participar da
própria aprendizagem para construir ou reconstruir novas e mais profundas compreensões”.
(FYFE, 2016, p. 274).
Na mesma obra, Forman e Fyfe (2016) constatam que a avaliação envolve um estudo
contínuo das crianças, que não é feito para compará-las, determinar sua série, incluí-las em
determinados programas ou rotulá-las e atribuir notas. “Ele é feito para entender as crianças
– seus métodos, seus sentimentos, seus interesses, suas disposições e suas capacidades”. É
assim que os professores conseguem planejar experiências de aprendizagem significativas e
desafiadoras.

Avaliações dessa natureza não se concentram no que as crianças podem ou não fazer, mas no que
elas podem fazer, independentemente, com assistência e em tipos diferentes de contextos sociais.
Trata-se de um processo dinâmico e flexível, que não busca congelar a criança no tempo e
quantificar as suas realizações ou o seu desenvolvimento com uma pontuação, classificação ou
nota. Trata-se de um processo vivo e contextualizado que busca compreender as crianças dentro de
experiências e situações de vida em constante mutação. A documentação, como a descrevemos, está
no cerne desse tipo de avaliação. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 263, grifos meus).

Conforme as descrições acima, é visível a expectativa de que a documentação


pedagógica ofereça certa especificidade para os processos avaliativos da Educação Infantil,
contemplando mais flexibilidade e menos direcionamento do adulto professor. Em grande
parte dos referenciais italianos, os autores chamam atenção ao trazer aspectos sobre a
documentação, alertando para que “as crianças não se tornem objeto de escrutínio excessivo
e que o olhar do adulto não seja um exercício de controle e poder”. (LUFF, 2010, p. 209). E
mais:
120

Se a documentação for literalmente um exercício de pôr coisas no papel – um dever realizado para
se ter os registros exigidos quando for realizada alguma inspeção –, ela provavelmente terá pouco
valor. Se a observação for reduzida a assinalar itens em uma lista de verificação de objetivos de
aprendizagem pré-identificados, ela dará insights muito limitados sobre a riqueza da aprendizagem
infantil. (LUFF, 2010, p. 209).

Entendo que as práticas da documentação pedagógica emergem com força nas escolas
de Educação Infantil, marcando um tempo em que a primeira etapa da Educação Básica é
convidada a elaborar e demarcar especificidades na sua proposta pedagógica, legitimando seu
papel social. Há um encaixe dos fundamentos da documentação pedagógica com a infância, a
escola e a docência do nosso tempo. Para os referenciais italianos, além da superficialidade e
da publicização, o poder da documentação é muito maior do que apenas dar visibilidade para
um projeto, por exemplo, como podemos ler nesta citação: “avaliar a documentação somente
pela sua função de visibilidade final de um projeto é um erro conceitual, que atrapalha a
compreensão da abordagem geral e das relações que se criam entre a criança, as crianças,
os professores, as famílias e o assunto enfrentado”. (VECCHI, 2014, p. 162).
É partindo dessas crenças – de que a documentação pedagógica pode ser um meio
avaliativo que busca evitar as avaliações padronizadas, descontextualizadas e objetivas, as
quais valorizam mais os resultados, especialmente aqueles voltados aos estágios de
desenvolvimento psicológico; de que a documentação pode auxiliar a trazer uma nova
imagem de criança, muito mais competente e ativa, desafiando os discursos dominantes; de
que a documentação pedagógica contribui para a legitimação da Educação Infantil enquanto
lugar de trabalho pedagógico – que tais práticas vêm emergindo paulatinamente nas
comunidades escolares e ganhando força nas práticas de registro e avaliação. Tal como afirma
Carla Rinaldi (ex-diretora dos centros municipais de Reggio Emilia que trabalhou ao lado de
Loris Malaguzzi por 24 anos e é considerada a sua sucessora, hoje é uma das consultoras
pedagógicas das escolas de Reggio Emilia):

Sinto que reconhecer a documentação como ferramenta possível para a aferição e avaliação nos dá
um ‘anticorpo’ extremamente poderoso contra a proliferação de ferramentas de aferição e
avaliação cada vez mais anônimas, descontextualizadas e só aparentemente objetivas e
democráticas. [...] a documentação é uma parte substanciosa do objetivo que sempre caracterizou
nossa experiência: a busca do significado – encontrar o significado da escola, ou melhor, construir
a significação da escola como lugar que desempenha papel ativo na busca das crianças pelo
significado e na nossa própria busca por significado (e significado partilhado). (RINALDI, 2012,
p. 119 - 120).
121

Vemos cada vez mais o risco de se considerar os testes como uma ferramenta de avaliação. Na
realidade, os testes só avaliam o conhecimento das crianças acerca do conteúdo da prova, e não a
sua aprendizagem verdadeira. (RINALDI, 2016, p. 239).

O desejo estaria em criar um modo bastante específico e particular para avaliar as


crianças que frequentam a Educação Infantil. O psicopedagogo Aldo Fortunati, principal
intercessor das escolas infantis de San Miniato66, também presidente do centro de
documentação e pesquisa La Bottega di Geppetto, ao buscar inspiração em Lóris Malaguzzi,
destaca que a documentação é “como uma estratégia para tornar visível uma criança
competente e protagonista, para afastar a sensação da cultura adulta rumo a um novo
respeito e reconhecimento de sua identidade como pessoa”. (FORTUNATI, 2014, p. 19,
grifos meus).
As duas obras de Aldo Fortunati, traduzidas para a língua portuguesa, uma em 2009 e
a outra, recentemente, em 2014, além de fundamentação teórica sobre o projeto educativo,
contemplam belas imagens das crianças em ação nas escolas infantis; portanto, são obras que
rapidamente fascinam e atraem a comunidade docente. O autor destaca, ao defender a
importância da documentação:

Entende-se a necessidade de emancipar-se de modelos e instrumentos de avaliação emprestados de


outros contextos educacionais que não levam em conta os refinados e complexos processos de
pensamento, encontrados na ação de sujeitos que estão em relação, mas muitas vezes não no
resultado de suas ações. (FORTUNATI, 2014, p. 32).

A partir desses apontamentos, é possível perceber os benefícios, os méritos e os


aspectos tomados como positivos na prática da documentação pedagógica, a partir dos
referenciais italianos estudados. É visível a defesa da documentação pedagógica como prática
que possibilita qualidade e inovação para a Educação Infantil, deixando de lado as marcas de
um ensino tradicional e os discursos dominantes em relação às crianças. Compreendida como
a segunda pele da escola, a documentação valoriza as vivências escolares:

A documentação cobre as paredes da escola como uma segunda pele. Convida a sentir-se ou
tornar-se parte, com os outros, de experiências, de histórias. Sugere a possibilidade de ver
valorizado o que vai ser vivido. Uma documentação que dá forma aos valores da memória e da
narração como direito e qualidade vital do espaço educativo. (STROZZI, 2014, p. 64).

66 A cidade de San Miniato, localizada na região da Toscana (norte da Itália), com aproximadamente 26 mil
habitantes, tem 35 anos de rede pública municipal de creches que atendem crianças de zero a três anos. Em 2006,
40% das crianças de zero a três anos frequentam escolas infantis.
122

A documentação auxilia professores a observar, escutar e, assim, entender melhor as


crianças. A pesquisadora Giordana Rabitti desenvolveu um estudo de caso, por ocasião de seu
Mestrado na universidade de Illinois (EUA), sob orientação do professor Robert Stake,
permanecendo de dezembro de 1990 a junho de 1991 na escola Villetta, em Reggio Emilia. O
problema central do seu estudo era responder a pergunta: “na escola o objeto de estudo pode
na educação artística servir de tema integrador da vida social e intelectual?”. (RABITTI,
1999, p. 43). A pesquisadora percebeu que o material exposto nas escolas deveria comunicar a
“crianças e adultos (educadores, familiares, visitantes) o que se está fazendo na escola e
como se está operando”. (RABITTI, 1999, p. 152). “Documentar um projeto significa
acompanhar e registrar as várias fases de um processo, de modo que a experiência possa ser
compartilhada”. (RABITTI, 1999, p. 160).
Na abordagem de Reggio Emilia, a documentação não é vista como um trabalho
isolado, e os professores não se preocupam com os passos finais, com os resultados.
(KINNEY; WHARTON, 2009). Esses autores buscaram uma aproximação entre as escolas de
Stirling, na Escócia, e as de Reggio Emília, com o desejo de, pela documentação pedagógica,
tornar mais visível o processo de aprendizagem das crianças e o que elas aprendem na escola.
A partir de então, desde 2002, as pré-escolas escocesas de Stirling (que atendem crianças de
três a cinco anos) procuram colocar em prática a abordagem reggiana de documentação
(interessante dizer que Peter Moss e Carlina Rinaldi são apoiadores do projeto em Stirling).
Os referidos autores dizem que a abordagem da documentação de Reggio Emilia é avançada,
pois coloca “a manutenção de registros e a avaliação no centro da aprendizagem das
crianças pequenas”, e ela “é invejada e imitada por muitos educadores do mundo todo”.
(KINNEY; WHARTON, 2009, p. 15).
A abordagem da documentação “se fundamenta na escuta atenta das crianças e na
observação de seus interesses e suas preocupações, concentra-se em registros e comentários
acerca da sua aprendizagem por meio de fotos, murais, vídeos e vários meios de
comunicação diferentes”. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 15). Para que tal
empreendimento seja possível, os autores destacam oito princípios, resumidos a seguir:
Respeito aos direitos das crianças; Adultos capazes de ouvir e responder; As crianças como
participantes; As crianças como agentes sociais ativos; As crianças como construtoras de
significado; As crianças como coconstrutoras da aprendizagem; A pedagogia da escuta; A
imagem da criança como rica e talentosa. (KINNEY; WHARTON, 2009).
Em síntese, observa-se que as práticas de registro denominadas de documentação
pedagógica estão pautadas num refinamento e alargamento da própria avaliação escolar
123

(minimiza-se a escrita, maximizam-se as fotografias, filmagens, transcrições de falas das


crianças). A documentação pedagógica – esse novo arranjo de registro das aprendizagens do
sujeito infantil na escola – é um reflexo das mudanças contemporâneas na forma de ser
criança e professor, ambos envolvidos com seus próprios e individuais interesses, sua
liberdade, autonomia, autorrealização e satisfação de desejos. As crianças, cada vez mais,
ganham centralidade no processo de aprendizagem, e os professores esmaecem sua função no
processo de ensino, mas potencializam as práticas de avaliação.
Por ora, cabe ainda ressaltar que as práticas de documentação pedagógica se encaixam
num mesmo plano67: as crianças estão submetidas a elas, mas também são constituídas por
elas e por meio delas; os professores estão submetidos a elas, mas também são constituídos
por elas e por meio delas. Ao tornar visível a aprendizagem das crianças, estetizando suas
vidas na escola, a documentação pedagógica, ela mesma, é o próprio espetáculo em ação (para
o bem ou para o mal), como mostro na segunda Parte da Tese. Creio que há, nas práticas da
documentação pedagógica, uma mudança de ênfase. O termo mudança de ênfase pretende
assinalar a passagem de uma forma de registro voltada à escrita docente, numa lógica
temporal voltada ao bimestre, trimestre ou semestre escolar e, portanto, aparentemente mais
duradoura e sólida, para registros mais diários e momentâneos, ou seja, registros com o
objetivo de documentar muitas ações infantis, no momento em que acontecem, incluindo,
além da escrita, as fotografias, as filmagens, as transcrições de falas das crianças, entre outros
recursos. Contudo, isso não significa a ausência da escrita, mas sua transformação.
Parece que nessa forma de registro se busca o congelamento da ação vivida na escola,
a captura do que cada criança consegue realizar, tornando-se atraente numa época em que o
sujeito (aluno e professor) precisa ser livre, fazer suas próprias escolhas, aprender o tempo
todo, extraindo o máximo de suas próprias potencialidades nas comunidades de
aprendizagem. A criança também assume uma posição estratégica, uma vez que ela
desenvolve as propostas de acordo com os seus interesses, e o professor busca na câmera ou
no vídeo o registro do que foi selecionado para mostrar, o que considera que ela deve
aprender. Essa é uma forma potente de registro que, partilhada com famílias, crianças e
professores, vai produzindo tipos de crianças e tipos de professores muito específicos.
Mostrei alguns recortes que fiz dos referenciais italianos a fim de “dar a ver” os
fundamentos que sustentam as práticas da documentação pedagógica, para construir o

67 “Nos processos em que a causalidade imanente está em jogo, não há uma causa inicial a produzir efeitos,
senão que algo que é visto como causa pode ser visto, ao mesmo tempo, como efeito”. (VEIGA-NETO, 2013, p.
9).
124

argumento de que tais práticas atuam como tecnologia de governamento da infância,


produzindo um certo tipo de estetização por meio da mobilização de um conjunto de
estratégias, tais como o interesse infantil e o aprender a aprender, as quais contribuem para a
produção da criança protagonista. Meu argumento é de que há outros modos de ser sujeito
infantil nas práticas da documentação pedagógica, produzindo o protagonismo infantil.
Procuro defender tal argumento no Capítulo 3 da Parte II da Tese. Também foi
empreendimento deste trabalho investigativo mostrar como as práticas da documentação
pedagógica produzem o design da docência, mobilizando um conjunto de estratégias, tais
como o gerenciamento de oportunidades e a inovação docente, as quais produzem o professor
designer. Esta Tese também advoga que há outros modos de ser docente nas práticas da
documentação pedagógica, muito mais voltados ao design, temática explorada no Capítulo 4
da Parte II da Tese, para a qual passaremos agora.
125

PARTE II

A PRODUÇÃO DA CRIANÇA PROTAGONISTA E DO PROFESSOR DESIGNER


NAS PRÁTICAS DA DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA

Análise do material empírico: 17 obras dos referenciais italianos e exemplares de


documentação pedagógica produzidos por professores da Educação Infantil no interior do
Rio Grande do Sul. Estetização da infância e design da docência como efeitos das práticas de
registro da documentação pedagógica. “Interesse infantil” e “aprender a aprender” como
estratégias que produzem a criança protagonista. “Gerenciamento de oportunidades” e
“inovação docente” como estratégias que produzem o professor designer.

Questões norteadoras: como as práticas de registro da documentação pedagógica atuam


como tecnologia que opera no governamento da infância contemporânea, produzindo uma
criança protagonista? Como a documentação pedagógica se instala nas práticas docentes
atuais de forma tão potente e central no fazer diário dos professores? Que efeitos tais
práticas produzem nos modos de ser criança e professor na Contemporaneidade? Que
estratégias são postas em ação na produção da criança protagonista e do professor
designer?

Questão central: como as práticas de registro docente denominadas de documentação


pedagógica operam como tecnologia de governamento da infância, produzindo modos de ser
sujeito na Educação Infantil contemporânea?
126

CAPÍTULO 3
A PRODUÇÃO DA CRIANÇA PROTAGONISTA

[...] a documentação pedagógica abre toda uma nova paisagem da infância.


(DAHLBERG, 2016, p. 231).

Na segunda parte do trabalho desta Tese, ao mostrar a emergência e os deslocamentos


das práticas de registro na Educação Infantil, interessa-me discutir como as práticas de
registro da documentação pedagógica atuam como tecnologia que opera no governamento da
infância contemporânea. Numa perspectiva foucaultiana, as tecnologias de poder e as
tecnologias de si articulam-se num conjunto de estratégias para governar cada sujeito e a
população. A estetização da infância e o design da docência são aqui entendidos como efeitos
das práticas de registro da documentação pedagógica, as quais colocam em ação uma série de
estratégias bastante sutis e refinadas, ligadas às tramas da racionalidade neoliberal. As
estratégias são: interesse infantil e aprender a aprender, que produzem a criança
protagonista; gerenciamento de oportunidades e inovação docente, que produzem o professor
designer. O quadro a seguir foi organizado por mim, neste trabalho, após exaustivas análises
do material empírico:

Quadro 2 - A tecnologia da documentação pedagógica em operação

Racionalidade: governamentalidade neoliberal

Efeitos das Práticas de Registro Estratégias Produção


da Documentação Pedagógica

Interesse Infantil

Estetização da Infância Aprender a aprender Criança Protagonista

Gerenciamento de
oportunidades
Design da Docência Professor Designer
Inovação Docente

Fonte: Elaborado pela autora (2016).

Minha argumentação é no sentido de que há uma forma básica e algo em comum nas
práticas da documentação pedagógica; se deixarmos de lado o conteúdo concreto de seus
registros particulares e quase infinitos e detivermo-nos em sua tecnologia de governamento,
perceberemos uma racionalidade, uma lógica geral que as movimenta. Essa racionalidade é a
governamentalidade neoliberal, que, ao atuar sobre a infância e a docência, produz alguns
127

efeitos, que nesta Tese chamo de estetização da infância e design da docência. Junto a essa
grade de inteligibilidade, aproprio-me do entendimento de sociedade disciplinar e de
sociedade de controle ou seguridade e das novas funções do Estado, possibilitando uma
compreensão sobre as transformações nas formas de operar das tecnologias de poder, um
poder que age na vida das pessoas.
Foi justamente nesse movimento que, ao trazer as duas expressões – estetização da
infância e design da docência –, fiz um exercício analítico a partir da perspectiva teórica do
filósofo francês Gilles Lipovetsky e do crítico de arte francês Jean Serroy (professor da
Universidade de Grenoble), especialmente exposta na obra A Estetização do Mundo: viver na
era do capitalismo artista68. Esses autores, perguntando-se sobre as experiências estéticas e o
domínio estético, mostram que o capitalismo e a economia liberal (com seus produtos
descartáveis, proletarização dos modos de viver, empobrecimento das experiências, triunfo do
capital, poder das finanças, por exemplo) produzem efeitos nos modos de vida das pessoas,
gerando a estetização total da vida cotidiana. Como imperativo das marcas, a beleza, o estilo,
o design, a mobilização dos gostos e das sensibilidades impõem-se a cada dia, produzindo um
modo de produção estético que define o capitalismo de hiperconsumo.
Os autores acreditam que o design, a moda, a publicidade, o cinema, o show business,
entre outros, criam nas indústrias de consumo produtos carregados de sedução.
(LIPOVETSKY; SERROY, 2015). Na hipermodernidade, as esferas do econômico e estético,
da indústria e estilo, da moda e arte, do divertimento e cultura, do comercial e criatividade, da
cultura de massa e alta cultura, hibridizam-se, misturam-se, interpenetram-se, havendo um
incremento do hiperindividualismo contemporâneo. “Com a estetização da economia,
vivemos num mundo marcado pela abundância de estilos, de design, de imagens, de
narrativas, de paisagismo, de espetáculos, de música, de produtos cosméticos, de lugares
turísticos, de museus e de exposições”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 14).
E é nesse contexto hipermoderno que os autores defendem que há uma potencialização
do capitalismo do tipo artista – capitalismo artista –, aquele que “explora racionalmente e de
maneira generalizada as dimensões estético-imaginárias-emocionais tendo em vista o lucro e a
conquista dos mercados” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 14), ou ainda, aquele que
“criou um império transestético proliferante em que se misturam design e star-system, criação

68
Neste sentido, a palavra estetização é aqui utilizada, estando vinculada à ideia de estetização capital da vida,
inserida em lógicas muito mais consumistas e capitalistas, inclusive no que diz respeito à arte. Sabe-se que
muitos autores, fundamentados nas noções foucaultianas de estética da existência e nas noções envolvendo ética-
estética, vem nos provocando a pensar em possibilidades de vida, de docência, de arte, de filosofia, articuladas
com o cuidado de si e com uma estética da existência. Assim, quero deixar claro que, neste estudo, a palavra
estetização articula-se com o capitalismo artista, seguindo os estudos de Lipovetsky e Serroy (2015).
128

e entertainment, cultura e show-business, arte e comunicação, vanguarda e moda”.


(LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 28). Para os autores, o capitalismo artista impulsiona o
hiperconsumo estético, ou seja, um consumo abundante de estilos, de sensações e de
experiências sensíveis, sendo o próprio consumo um componente estético.
Num contexto bastante particular e no âmbito da escola infantil, percebo que a
produção da documentação pedagógica também carrega seus traços de sedução e sensações e
experiências do sujeito infantil, uma vez que ela é carregada de materiais estéticos (além da
escrita do professor) que expõem e publicizam a infância. No exemplo que apresento abaixo,
as fotografias capturam registros de aprendizagens das crianças nos ambientes escolares. O
registro apresentado abaixo faz parte de um recorte da documentação pedagógica, uma vez
que ela é maior, estando em meio a outras fotografias, ou descrita em algumas montagens de
vídeos enviados aos pais ao longo de todo o ano letivo, ou ainda em exposições nos
corredores da escola.

Imagem 2 – Exemplar de documentação pedagógica

Fonte: Escola do interior do Rio Grande do Sul (2014).

O material da documentação pedagógica apresenta um estilo muito próprio: as


fotografias, por exemplo, são ricas em cores, em cenas, em expressões, em movimentos. As
crianças são investidas em ações escolares que marcam um sujeito aprendente e feliz por estar
129

na escola. Parece-me que essa criança é incitada a consumir as ofertas que a escola lhe
oferece, e os registros docentes tratam de presentificar as escolhas momentâneas das crianças.
Conforme destacam Lipovetsky e Serroy (2015), o capitalismo artista é compreendido
como um vetor para a estetização do mundo e da existência humana. A arte aparece como
uma mercadoria semelhante a qualquer outra e como um investimento de alta rentabilidade
financeira, banalizando também a identidade e a profissão do artista. “Criou-se uma nova
civilização, que se empenha, com êxito desigual, em casar arte e indústria, sedução e
comércio, divertimento e negócio, estética e comunicação”. (LIPOVETSKY; SERROY,
2015, p. 134). Nesse contexto, os indivíduos precisam consumir estilos. Ao explorarem os
destinos turísticos, por exemplo, os autores defendem a ideia de que o olhar turístico vê as
paisagens para apenas fotografar e concluem: “um ideal estático de vida centrado na busca
das sensações imediatas, nos prazeres dos sentidos e nas novidades, no divertimento, na
qualidade de vida, na invenção e na realização de si”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.
32).
O capitalismo artista estaria ligado à geração de sonhos, prazeres, emoções,
caracterizado na produção do espetáculo, da sedução e do emocional: “note-se que em sua
versão artista ele não para de moldar produções destinadas a gerar prazer, sonhos e emoções
nos consumidores. [...] ele se afirma como um sistema conceptor, produtor e distribuidor de
prazeres, de sensações, de encantamento”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 43). No
capitalismo artista, há um conteúdo sedutor e criativo na música, no jogo, na imagem, no
cinema, para citar alguns rápidos exemplos, uma vez que precisamos vender e consumir mais
prazeres, divertimento e emoções do que simplesmente produtos utilitários. Renovação
perpétua nas formas dos produtos e embalagens, rapidez na publicidade e na decoração das
lojas, aceleração da obsolescência dos produtos, são outros exemplos citados pelos autores
para marcar a emergência do imperativo do novo e da sedução estética.
Conforme as discussões dos referidos autores, há quatro fases para a estetização do
mundo pela via do capitalismo artista – a artealização ritual, a estetização aristocrática, a
moderna estetização do mundo e a era transestética. Esta última é caracterizada pela
superabundância estética, hiperarte e generalização das estratégias estéticas com finalidade
mercantil, ou seja, “a arte se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e da
vida comum”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 27). Nas palavras dos autores,

À estetização do mundo econômico corresponde uma estetização do ideal de


vida, uma atitude estética em relação à vida. Não mais viver e se sacrificar
por princípios e bens exteriores a si, mas se inventar, estabelecer para si suas
130

próprias regras visando uma vida bela, intensa, rica em sensações e em


espetáculos. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 32).

Há um apelo para os estilos, as imagens e o divertimento, a fim de mobilizar afetos,


“prazeres estéticos, lúdicos e sensíveis dos consumidores”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015,
p. 43). O capitalismo artista não apenas desenvolve uma grande oferta de produtos estéticos,
mas cria um consumidor “faminto de novidades, de animações, de espetáculos, de evasões
turísticas, de experiências emocionais, de fruições sensíveis: em outras palavras, um
consumidor estético ou, mais exatamente, transestético”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.
62).

Paixão pelas viagens e turismo, amor ao patrimônio e às paisagens, gosto


pela decoração da casa, uso generalizado dos produtos de cuidados diários e
de maquiagens, obsessão com a magreza, tatuagens e piercings, escuta
musical em todo o lugar e circunstância, karaokê, consumo crescente de
filmes, telefilmes e séries de TV, práticas também em alta da foto, do vídeo,
da música: fenômenos que são o sinal da formidável expansão social das
expectativas e das práticas estéticas, dos desejos de beleza, de música e de
espetáculos. Vivemos o tempo da explosão democrática das aspirações, das
paixões e dos comportamentos estéticos. Organizando uma economia em
que a lógica estética desempenha um papel fundamental, o capitalismo
artista avançado produziu ao mesmo tempo um consumidor estético de
massa. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 327).

Recorrendo a esses estudos de cunho sociológico, compactuo com a hipótese de que


há uma estetização da vida cotidiana e, no ponto que me interessa nesta Tese, há uma
estetização também da infância, como procuro mostrar nas seções seguintes. E é com a
estetização da vida cotidiana que o design se mostra como um grande vetor. Estetização da
vida e design, para Lipovetsky e Serroy (2015), parecem estar em profunda articulação:

A generalização do design nas indústrias de consumo aparece como a


característica mais evidente do avanço espetacular do capitalismo
transestético. Nenhum objeto, por mais banal que seja, escapa da intervenção
do design e de seu trabalho estilístico. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.
49).

Ao olhar para as produções de mercado e para as transformações no modo de


produção e consumo, os autores afirmam que “não há mais produção de bens de consumo fora
do processo de design, e isso não somente nos países ricos, mas também nos emergentes”.
(LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 50). Não se vendem apenas produtos, mas vendem-se
estilos, emoções, personalidade. No terceiro capítulo do livro em questão, os autores franceses
apresentam a terceira era do design (sendo que no capítulo anterior apresentam os dois
131

primeiros estágios do ciclo do design), articulada também com as três fases do capitalismo
artista, e defendem a ideia de que vivemos num “mundo design”. (LIPOVETSKY; SERROY,
2015, p. 225).
Do ponto de vista dos autores, a terceira fase do capitalismo artista iniciaria nos anos
de 1980, especialmente com a difusão dos microcomputadores e a expansão do mercado
mundial. É nesse contexto que o design contribui na economia da variedade, bem como na
personificação, criação, proliferação e renovação hiperacelerada de oferta de produtos. Nas
palavras dos autores,

[...] isso traduz o advento de um design cada vez mais sob a influência do
mercado, o peso que a esfera comercial tem na criação industrial, um
capitalismo estético em que triunfa um mercado de demanda movimentado
pelo cliente, em lugar do mercado de oferta, que dominava anteriormente,
em que os produtores ofereciam seus produtos a consumidores que tinham
poucas opções. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 229).

Nessa perspectiva, o design deve contar uma história para seduzir o indivíduo, o
design deve fazer sonhar, deve proporcionar prazer e atuar no imaginário de cada um,
oferecendo bem-estar e suscitando experiências, emoções, prazeres imediatos. O design, nesse
sentido, estaria a serviço da estetização da vida humana, pois ele se espraia nas mais diversas
situações e contextos de vida:

Enquanto se evaporam as antigas fronteiras, se afirma um novo tipo de


design feito de sobreposições, de interpretações, de transversalidade.
Atualmente, design, escultura, moda, decoração, luxo, tudo pode se misturar
e se confundir: o design não tem mais um estatuto claramente diferenciado.
Tornou-se um universo indeterminado, aberto, multidimensional, podendo
ser ao mesmo tempo um objeto utilitário, decoração, moda, arte e até peça de
luxo pelo preço proibitivo que às vezes é o seu. Assim é o estágio híbrido,
transestético, do design característico do último ciclo do capitalismo artista.
(LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 243).

Poderia dizer aqui que a leitura dessa obra, em especial ao problematizar o capitalismo
do tipo artista, mostra como estamos vivendo as nossas vidas numa lógica de estetização do
mundo e do cotidiano. Tais questões foram úteis para pensar sobre a estetização da infância,
posta em ação mediante variadas e refinadas práticas de documentação pedagógica; outras
práticas também visibilizam a estetização da infância, entretanto, esforço-me para fazer
referência aqui à documentação pedagógica, foco empírico selecionado para o
desenvolvimento desta Tese. Mesmo reconhecendo que Lipovetsky e Serroy (2015) não
tiveram a pretensão de levar as discussões resumidas acima para os espaços escolares,
132

tampouco de problematizar os processos de escolarização e as práticas pedagógicas, sinto


necessidade de trazer tais argumentações para sustentar algumas hipóteses que venho
desenvolvendo sobre os modos de viver a vida nas escolas infantis (sobre tipos muito
específicos de viver) no tempo presente.
Tais autores contribuíram na sustentação da argumentação daquilo que venho
mostrando desde o início da escrita deste trabalho – que as práticas da documentação
pedagógica operam como tecnologia de governamento da infância e também de
governamento da docência, por meio de um conjunto de estratégias bastante sutis, sofisticadas
e eficazes, as quais atuam na produção de subjetividades infantis e docentes. E aqui justifico
novamente porque não deixei de questionar a docência, ou seja, ao interrogar a infância, não
abandonei uma análise sobre a docência. Compreendo que as práticas de registro produzem
efeitos tanto na população e no sujeito que são seus alvos – que são a infância e a criança –
quanto na prática pedagógica do professor que as desempenham – a docência. Não é possível
pensar as práticas fora do sujeito que é alvo, nem fora do sujeito que está centralmente
envolvido na sua formação.
À luz da governamentalidade neoliberal, compreendida como grade de
inteligibilidade, quero mostrar que esse conjunto de estratégias, antes de compreender as
crianças como protagonistas e competentes, antes de valorizar outra docência e oferecer uma
nova imagem da infância, operam no governamento da infância contemporânea de forma mais
econômica e eficiente. Quando utilizo a palavra economia, quero referir-me à economia nas
ações pedagógicas, ou seja, nos processos de ensino propostos pelo professor. Com as
mudanças nas formas de governamento da infância, há uma economia nas ações pedagógicas
e certa marginalização do ensino (aprender mais, para ensinar menos; ensinar menos, para
aprender a aprender cada vez mais). Pretendo deixar essas questões mais claras no decorrer da
escrita, paralelamente, nos dois últimos capítulos da Tese, mostrando como esse conjunto de
estratégias opera nas práticas da documentação pedagógica69. Com isso, penso esclarecer o
argumento de que esta analítica não se coloca contra a prática da documentação pedagógica,
mas mostra a sua lógica e a sua produtividade para a sociedade.

69 Relembro que, na escrita desta Tese, as materialidades empíricas (17 obras denominadas, em seu conjunto, de
referenciais italianos e os exemplares de documentação pedagógica produzidos por professores da Educação
Infantil de escolas do interior do Rio Grande do Sul) foram organizadas a partir de diferentes estratégias de
escrita: excertos retirados do material de pesquisa, os quais aparecem ao longo do trabalho, escritos como as
demais citações; organização de um bloco de citações dentro de quadros; imagens que apresentam os exemplares
produzidos pelos professores; epígrafes que se relacionam com o conteúdo de cada capítulo ou seção. Tais
estratégias de escrita são mais evidentemente apresentadas a partir daqui.
133

Entendo que outros estudiosos, como por exemplo de George Yúdice (2004), já nos
apontavam para a conveniência da cultura e os usos da cultura na era global, o que pode nos
ajudar a entender o que estou argumentando com essa estetização da infância. Seria a captura
da infância para as conveniências de uma sociedade de consumo exacerbado em que, até
mesmo as mais elevadas e sensíveis dimensões da infância e da própria docência são
capturadas para o consumo e para uma forma estética que vende, que seduz e que coloca em
concorrência. Esse é o desafio e o tensionamento que apresento quanto aos efeitos que se
pode produzir ao colocar em funcionamento certas tecnologias e estratégias que colocam
ênfase neste tipo de estetização. Contudo, creio que é possível potencializar outras dimensões
ético e estéticas da infância e também da docência, articuladas com a experiência estética de
si mesmo, pelo cuidado de si e do outro de modo ético. Tal como aponta Dias (2012, p. 29)
“Ética por que se abre para a possibilidade de fazer escolhas” e “Estética como um dos
caminhos possíveis, entre outros, pelos quais adultos, jovens e crianças realizam estilo de vida
não conformados e não consensuais”. Ética e estética que lutam contra as formas de captura
através dos discursos que minimizam as possibilidades de afirmar a potência das práticas
cotidianas de vida.

3.1 “Nossas crianças têm muitas escolhas”: o interesse infantil

Nossas crianças têm muitas escolhas: possuem locais onde podem estar a
sós, em pequeno grupo, em um grupo grande, com os professores ou sem
eles. (MALAGUZZI, 1999, p. 99).

Neste subcapítulo, apresento o interesse infantil como uma estratégia que opera nas
práticas da documentação pedagógica sendo visibilizada nos materiais analisados.
Inicialmente, apresento alguns recortes feitos do referencial italiano, a fim de evidenciar como
o interesse infantil é potencializado, para então tecer algumas considerações e concluir que o
interesse infantil não é um tema novo na educação das crianças pequenas; entretanto, com as
práticas de registro da documentação pedagógica, é possível perceber novas nuances do
interesse infantil, o que acaba produzindo outras ênfases para a criança do nosso tempo,
denominada atualmente como protagonista.
134

A afirmativa do título e a epígrafe de Malaguzzi constituem uma especificidade central


que orienta muitas das reflexões propostas pelos referenciais italianos analisados. No famoso
livro As cem linguagens da criança70, Malaguzzi destaca:

Nossas crianças têm muitas escolhas: possuem locais onde podem estar a sós, em pequeno grupo,
em um grupo grande, com os professores ou sem eles, no atelier, no mini-atelier, na grande piazza
ou, se o tempo está bom, no jardim fora da escola, que possui muitas estruturas, pequenas e
grandes, para brincadeiras. Contudo, a opção por trabalhar em pequenos grupos, nos quais
exploram, juntos, agrada tanto às crianças quanto a nós. Em vista disso, a sala de aula é
transformada em um grande espaço com pequenos agrupamentos, cada um com suas próprias
crianças e seus próprios projetos e atividades. (MALAGUZZI, 1999, p. 99, grifos meus).

Na maior parte dos livros revisados neste estudo, é possível destacar a importância e a
necessidade de o adulto possibilitar inúmeras oportunidades de escolha às crianças para que
elas próprias possam mostrar seus interesses. Não são os adultos que escolhem, eles apenas
oferecem inúmeras possibilidades para que cada criança possa fazer a sua própria escolha.
Eles gerenciam as oportunidades. Dito de outro modo, é preciso preparar os espaços e os
tempos da escola infantil para que despertem o interesse das crianças, uma vez que elas
devem ocupar-se de si mesmas com liberdade e autonomia, tal como destaca Katz (1999, p.
41): “Parece-me que as crianças de Reggio Emilia abordam a tarefa de desejar o que quer
que estejam estudando com disposição e assiduidade”. Ou como refere Malaguzzi (1999, p.
98-99): “As crianças sabem que quando vão em busca de suas metas podem fazer suas
próprias escolhas, e que isso é tão libertador quanto revitalizante”.
A criança deve estar “ativamente envolvida na tomada de decisões sobre em que
processos de aprendizagem vai se envolver” (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 27), uma vez
que são consultoras e participantes dentro do ambiente de aprendizagem. Liberdades,
oportunidades, interesses, escolhas, motivação, parecem ser palavras de ordem, como
reforçam as exaustivas citações abaixo, grifadas por mim para destacar tal evidência:

70 Este livro documenta o conjunto de escolas criadas nos últimos 30 anos em Reggio Emilia, norte da Itália.
Lóris Malaguzzi é considerado o “gênio condutor de Reggio” (GARDNER, 1999), pois teve interesse na
construção de uma nova escola após a Segunda Guerra Mundial. Foi Diretor do Sistema de Reggio Emilia de
Educação Municipal para a Primeira Infância, o qual recebeu o selo de “As Dez melhores escolas do mundo”
pela revista Newsweek, em 1991. Howard Gardner afirma que “a publicação deste livro aumentará o tráfego para
a exuberante e civilizada área de Emilia Romagna”. (1999, p. X).
135

Quadro 3 – A imagem da criança ativa e protagonista

[...] as crianças mostram-nos que sabem como caminhar rumo ao entendimento. Uma vez que as
crianças sejam auxiliadas a perceber a si mesmas como autoras ou inventoras, uma vez que sejam
ajudadas a descobrir o prazer da investigação, sua motivação e interesse explodem.
(MALAGUZZI, 1999, p. 76-77, grifos meus).

A presença de espaços organizados e de laboratórios – com muitos materiais organizados de modo


racional e facilmente visíveis e acessíveis para todo o mundo – constitui o mapa de um território
transparente e aberto, onde as crianças se orientam com suas próprias bússolas, sempre capazes de
selecionar e de multiplicar as opções. (FORTUNATI, 2009, p. 153, grifos meus).

[...] às crianças são oferecidas e apresentadas listas de atividades planejadas cuidadosamente –


atividades significativas, voltadas ao desenvolvimento de muitas linguagens – e pede-se que as
crianças escolham. As crianças não são obrigadas a fazer alguma coisa, são convidadas a fazer,
se recusarem uma atividade, outras lhes serão oferecidas. Porém, os professores têm o cuidado
para que as crianças não se fixem num único tipo de atividade que não desenvolvam monomanias.
Por esse motivo, anotam-se com cuidado as atividades das quais cada criança participou.
(RABITTI, 1999, p. 154, grifos meus).

[...] quando as crianças são envolvidas na avaliação do seu próprio trabalho e participam
activamente no processo de construção do seu portfólio, começam a compreender as suas forças e a
refletir sobre as suas próprias necessidades e isso ajuda-as a sentirem-se responsáveis pela sua
própria aprendizagem, porque as crianças escolhem e tomam decisões, responsabilizam-se por
essas decisões e compreendem que essas decisões têm influência na sua vida. (AZEVEDO;
OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008, p. 130, grifos meus).

Isso significa reconhecer que uma ampla série de oportunidades e experiências devem estar
disponíveis para apoiar a participação das crianças e para auxiliar as maneiras como elas
aprendem e se envolvem umas com as outras e com os adultos. (KINNEY; WHARTON, 2009, p.
23, grifos meus).

[...] capazes de escolher entre várias oportunidades, especialmente quando o ambiente educacional
coloca à disposição um contexto de experiências adequado para a exploração e ainda, que o adulto
não interpreta seu próprio papel de maneira direcionadora, mas ao contrário, consegue sustentar as
ações entre os grupos e duplas. (FORTUNATI, 2014, p. 26, grifos meus).

A oferta de objetos e materiais disponíveis, muitos dos quais podem ser utilizados com autonomia,
com a seleção intencional de uma vasta gama de escolha de materiais reciclados e naturais, ou
então não-estruturados, permite às crianças reinventar significados e possibilidades de uso, padrões
e rituais de jogos originais e compartilhados com o pequeno grupo ou com toda a turma.
(FORTUNATI, 2014, p. 27, grifos meus).

Sabemos, porém, que não podemos ter muitas certezas, porque as crianças são imprevisíveis e nos
levam a desorientações com relação às quais é necessário ter muita flexibilidade e otimismo nas
suas e nas nossas capacidades. (VECCHI, 2014, p. 183, grifos meus).

Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).

Evidencia-se a centralidade do processo pedagógico nas crianças, e as crianças estão


no centro do processo educacional. No prefácio à edição brasileira do livro A educação
136

infantil como projeto da comunidade, Ana Lúcia Goulart de Faria destaca o depoimento de
uma maestra, a qual pontua uma das especificidades das creches de San Miniato: “no centro,
uma criança competente”. (FARIA, 2009, p. 12). É assim que a criança é compreendida nos
referenciais italianos: um ser competente, ativo, criativo, ator e protagonista de suas ações,
desafiador, curioso em descobrir o mundo, um sujeito com direitos e voz, repleto de
potenciais. Também Vea Vecchi, na obra intitulada Tornando visível a aprendizagem da
criança: crianças que aprendem individualmente e em grupo, traz uma breve e surpreendente
afirmativa ao evidenciar o avanço da criança e abordar os encontros entre crianças e adultos
na escola: “É bom que a criança saia vencedora desses encontros”. (VECCHI, 2014, p. 204,
grifo meu).
Há destaque para a capacidade de o sujeito infantil regular suas escolhas a partir dos
seus próprios interesses. Para tanto, uma imagem de criança competente precisa ser reiterada.
Essas narrativas novamente aparecem repetidas vezes nos excertos retirados dos referenciais
italianos, agrupados abaixo:

Quadro 4 - A imagem da criança competente

[...] portadora de história, capaz de múltiplas relações, construtora de culturas infantis, sujeito de
direitos. (FARIA, 2007, p. 280).

[...] dotadas de potencialidades naturais de extraordinária riqueza, força, criatividade. [...]


reconhecidas como sujeitos de direitos individuais, jurídicos, civis, sociais: como portadoras e
construtoras de suas próprias culturas e, logo, participantes ativas da organização de suas
identidades, autonomias e competências através das relações e interações com os colegas da mesma
idade, com os adultos, com as ideias e os eventos reais ou imaginários de mundos comunicantes.
(FARIA, 2007, p. 288).

[...] a criança tem direito a participar na sua educação e, como tal, a ser escutada. Ser escutada é ter
direito a ter voz relativamente às questões que lhe dizem respeito. (AZEVEDO; OLIVEIRA-
FORMOSINHO, 2008, p. 119).

[...] as crianças pequenas demonstram um nível inato de sensibilidade e competência perceptíveis


extremamente alto, que é polissêmico e holístico, em termos de espaço circundante. (RINALDI,
2013, p. 124).

[...] uma criança é plenamente capaz de criar mapas pessoais para sua própria orientação social,
cognitiva, afetiva e simbólica. [...] Uma criança competente, ativa e crítica; por isso, uma criança
‘desafiadora’. [...] produtora de cultura, valores, direitos, competente na vida e na aprendizagem
[...]. Uma criança que, desde bem cedo, é capaz de atribuir sentidos a eventos e que tenta
compartilhar significados e histórias de significados. (RINALDI, 2013, p. 125).

Continua.
137

[...] crianças fortes, crianças as quais não é necessário proteger, que sabem se divertir com
curiosidade e com espírito de aventura com os espaços, com os materiais, com os encontros, com
os confrontos e com as redes de relações [...]. Crianças cuja atividade e criatividade estimula-se,
observa-se, documenta-se e compartilha-se, tudo transformando-se assim, em memória e cultura.
(MANTOVANI, 2009, p. 24).

[...] a imagem da criança como muito competente e pronta para usar o próprio potencial
intelectivo, social, moral e estético ao resolver problemas e explorar o mundo; o direito das
crianças a trabalhar com materiais excelentes. (SEIDEL, 2014, p. 313).

Fonte: Elaborado pela autora, a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano.
(2016).

De um indivíduo que destinava proteção total, dependente do adulto, tanto por parte da
família quanto dos setores sociais, políticos e econômicos; de um indivíduo imaturo, carente e
selvagem; de um indivíduo inocente, angelical e natural, concedemos outras concepções e
condições para as crianças hoje em dia, não apenas nos referenciais italianos analisados, mas
fortemente neles. Sujeito ativo, competente e construtivo. Um sujeito rico –“sujeito rico:
significa uma criança que é competente e curiosa, sociável e forte, e ativamente engajada na
criação de experiências e na construção de sua própria identidade e de seu próprio
conhecimento”. (FORTUNATI, 2014, p. 20). Cidadãos plenos em seus direitos, as crianças
apresentam um “organismo dotado de um dinamismo interativo imediato, portanto, capaz de
estabelecer relações com uma variedade de pessoas e contextos que fazem parte da sua
experiência”. (FORTUNATI, 2014, p. 91). Dahlberg e Moss (2012) também explicam o que
é uma criança rica:

[...] uma imagem baseada na compreensão de que todas as crianças são inteligentes, o que quer
dizer que todas as crianças atribuem significado ao mundo, num processo constante de construção
de conhecimento, identidade e valores. Seguindo essa construção social, luta-se para mostrar as
potencialidades de cada criança e para dar a cada uma delas o direito democrático de ser escutada e
de ser reconhecida como cidadã na comunidade. (DAHLBERG; MOSS, 2012, p. 39-40).

É nesse contexto que a imagem da criança é tomada como rica, forte, poderosa –
criança sujeito de direitos. Rinaldi (1999) afirma que as crianças “têm potencial, plasticidade,
desejo de crescer, curiosidade, capacidade de maravilharem-se e o desejo de relacionarem-se
com outras pessoas e de comunicarem-se”. (RINALDI, 1999, p. 114, grifo meu). Rabitti
corrobora essa ideia, afirmando que “as crianças são criativas, desejosas de fazer perguntas,
de projetar soluções, de construir, se elas forem encorajadas a desenvolver suas próprias
138

boas experiências, se elas forem ouvidas, se viverem em um ambiente estimulante e rico em


materiais”. (RABITTI, 1999, p. 149). Malaguzzi conclui que as crianças são produtoras, e
não consumidoras de culturas. (MALAGUZZI, 1999, p. 83). Ainda, a criança é
compreendida:

[...] como alguém que experimenta o mundo, que se sente uma parte do mundo desde o momento
do nascimento; uma criança que está cheia de curiosidade, cheia de desejo de viver; uma criança
que tem muito desejo e grande capacidade de se comunicar desde o início da sua vida; uma criança
que é capaz de criar mapas para sua própria orientação simbólica, afetiva, cognitiva, social e
pessoal. Por causa de tudo isso, uma criança pequena pode reagir com um competente sistema de
habilidades, estratégias de aprendizagem e formas de organizar seus relacionamentos. (RINALDI,
2002, p. 76-77).

Num contexto de pós-guerra (vimos anteriormente que as escolas de Reggio Emilia se


reorganizam após a II Guerra Mundial e que Lóris Malaguzzi constrói sua pedagogia a partir
desse cenário), interessa construir uma imagem de criança competente e intervir para a
renovação da população. Afinal, a infância é compreendida como o melhor período para
investimentos num indivíduo útil econômica e socialmente no futuro. A promessa de um
mundo melhor encontra na infância uma possibilidade de renovação.
Rinaldi (2012) afirma que “temos uma maneira diferente de pensar e tratar a criança:
nós a enxergamos como sujeito ativo, com o qual podemos pesquisar, tentar compreender as
coisas no dia a dia, encontrar um significado, um pedaço da vida”. (RINALDI, 2012, p. 122-
123). As crianças têm voz, querem ser ouvidas e sabem escutar, “aliás, escutar parece uma
predisposição inata que acompanha as crianças desde o seu nascimento”. (RINALDI, 2012,
p. 127). A autora destaca cinco características da criança, um “indivíduo sagaz”:

1) faz distinções, decide acerca de limites e faz escolhas, os quais constituem pedras fundamentais
da construção do conhecimento; 2) é protagonista do ato de cognição, mas também do comentário,
posto que o aprendizado deve ser acompanhado de reflexão e revisitação. O que temos em mente,
então, é um meio ambiente que se torna uma espécie de superfície refletora na qual os
protagonistas da experiência de aprendizado podem ver os traços de sua ação e, com isso, têm a
oportunidade de falar sobre como estão aprendendo; 3) vivencia o aprendizado como prática, não
tanto para buscar um fim, mas para mudar a si mesmo [...]; 4) expressa a dimensão estética como
qualidade essencial do aprender, do conhecer e do relacionar. 5) O prazer, a estética e a brincadeira
são fundamentais em qualquer ato de aprendizado e de construção do conhecimento. O
aprendizado deve ser prazeroso, atraente e divertido. A dimensão estética, por conseguinte, se torna
uma qualidade pedagógica do espaço escolar e educativo. (RINALDI, 2012, p. 152-153).

Num contexto social mais amplo, as análises feitas por Gallo (2015) ajudam-nos a
pensar aqui. O autor percebe que as políticas educacionais contemporâneas exaltam a criança
139

enquanto cidadã repleta de direitos, denominando-a de “pequeno cidadão” e afirma que “está
em curso no Brasil, desde meados de 1980, a construção de uma ‘governamentalidade
democrática’, na qual o centro é o cidadão”. (GALLO, 2015, p. 332). Ele conclui que isso é
mais uma maneira de instrumentalizar a infância. (GALLO, 2015, p. 340).
Nos discursos dos referenciais italianos, é possível encontrar que a centralidade dos
processos educacionais deve estar na criança, tal como nos discursos pedagógicos oriundos da
Escola Nova: as crianças “deveriam estar no centro das decisões sobre sua aprendizagem e
seu desenvolvimento”. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 21). O centro deve estar na criança,
como fica evidente neste excerto: “É necessário passar da criança/estudante à criança
completa; de se centrar não no educador, com seu controle do tempo e dos conteúdos, mas na
criança, na descoberta, nos ritmos pessoais, na sociabilidade e na expressão por meio das
linguagens plurais”. (MANTOVANI, 2009, p. 25).
A autora Ana Lúcia Goulart de Faria, ao apresentar Malaguzzi como um grande e
influente pensador para a infância, no livro intitulado Pedagogia(s) da Infância: dialogando
com o passado: construindo o futuro, destaca que a herança deixada por Malaguzzi foi
“tornar essa criança o centro de sua pedagogia, que a reconhece como ativa, inventiva,
envolvida, capaz de explorar, curiosa, aceitando o desafio de exprimir-se nas mais diferentes
linguagens com as mais diferentes intensidades”. (FARIA, 2007, p. 281). Giordana Rabitti,
ao desenvolver sua pesquisa nas escolas de Reggio Emilia, diz: “Observando a exposição
desse material espalhado pela escola, impressionou-me também o fato de que a forma de
expor reflete a mudança pedagógica em ação na escola, em direção a uma abordagem muito
mais centrada na criança”. (RABITTI, 1999, p. 153). Kinney e Wharton corroboram tal
perspectiva e também enfatizam a centralidade nas crianças: “Colocar as crianças no centro
do processo garantindo que estejam totalmente envolvidas no planejamento e na revisão da
sua aprendizagem juntamente com os educadores”. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 23). As
práticas da documentação pedagógica precisam, desse modo, acionar essa nova visão de
criança – competente, autônoma, protagonista. Kinney e Wharton discorrem sobre a
articulação da documentação com a nova imagem de criança:

As crianças estão mais visíveis. Sua aprendizagem está se tornando mais visível por meio de
fotografias, do diálogo e das apresentações visuais do processo e dos resultados da documentação
da sua aprendizagem. Isso inclui imagens e transcrições de conversas de crianças e adultos como
colaboradores da aprendizagem disponibilizadas em paredes internas e externas da instituição, em
pastas e em laptops e apresentação de slides. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 87).
140

As práticas da documentação pedagógica fazem movimentar uma imagem de criança


que tem, desde muito pequena, interesses infantis. Assim, atuando como tecnologia, as
práticas da documentação acionam uma estratégia de governamento que celebra e deseja o
interesse infantil. Em outras palavras, o interesse infantil é uma estratégia de governamento da
infância, capaz de colocar em ação as práticas de registro da documentação pedagógica.
Enquanto antes importava um diagnóstico mais centralizado no professor (como os
referenciais entendem a avaliação tradicional), parece-me que agora o próprio aluno se mostra
e é incentivado a mostrar-se, sendo que todos são vistos e veem todos e cada um. Como a
centralidade do processo pedagógico está na criança, é ela que ocupa o centro de todas as
formas de captura pelos recursos tecnológicos (vídeos, fotografias, gravações de áudio, entre
outros) e é ela que ocupa o eixo e a razão dos processos educativos. Não precisamos mais de
crianças obedientes que têm no professor o seu mestre e autoridade, mas crianças que,
juntamente com os professores, compõem e compartilham processos de aprendizagem. A
produção dessa criança é tão completa e competente que quase podemos percebê-la com dons
naturais, inclusive a expressão “seres naturalmente” sociais passa a ser evidente: “A
sociabilidade não é ensinada às crianças; elas são seres naturalmente sociais”. (RINALDI,
2016, p. 238).
Diante de tais ideias, poderíamos estar nos questionando: isso tudo é novo? É a partir
dos referenciais italianos, introduzidos há pouco menos de duas décadas na comunidade
docente da Educação Infantil brasileira, que o interesse infantil passa a ocupar a centralidade
dos processos educacionais para a Educação Infantil? Ao tecer tais questionamentos,
concordo com Bujes (2002, p. 21) quando afirma que “este eu capaz de um auto-escrutínio,
que se sujeita a uma autoproblematização para encontrar a si mesmo, este sujeito que se volta
intencionalmente para seu interior, que é visto com um locus de pensamento e de ação, é aqui
concebido como uma invenção histórica”. Meu argumento é que as práticas da documentação
pedagógica, acionadas pelo conjunto de referenciais italianos voltados à infância analisados
neste trabalho, fabricam um sujeito infantil bastante particular, um “eu” infantil autorregulado
desde tenra idade, capaz de governar sua vida, de refletir sobre suas ações e de organizar sua
aprendizagem na escola. Pensamos, agimos, relacionamo-nos com as crianças a partir dessas
narrativas, mas, ao mesmo tempo, as crianças, elas próprias, consigo mesmas, passam a
pensar, a agir, a relacionar-se consigo mesmas a partir de tais narrativas. Entretanto, tudo isso
não é tão novo assim, pois já vem sendo foco de um debate mais amplo no campo
educacional. Faço esse alerta porque essa me parece ser uma estratégia muito potente das
141

novas racionalidades - fazer circular práticas discursivas e não-discursivas, as quais acabamos


por não mais estranhar, como se desde sempre “estivessem aí”.
Ó (2009, p. 18), ao analisar a passagem da escola tradicional para a escola moderna, já
observava que o discurso pedagógico estava atrelado à “prática cada vez mais definida como
da autonomia e da liberdade”, criando um “ideal-tipo moral, o do estudante independente-
responsável”, que deveria encontrar a melhor maneira de “se adaptar espontaneamente à vida
escolar”. (Ó, 2009, p. 19, grifos do autor). Ser um estudante ativo, independente e responsável
é um ideal que caminha desde a consolidação da escola moderna.
Marín-Díaz (2010a), ao tensionar a forma naturalizada com que concebemos a
natureza infantil, parecendo existir uma condição própria e universal de crianças, aponta que a
noção de interesse expressa com mais clareza a aceitação de discursos naturalistas, liberais e
disciplinares. A autora aponta que a definição e interpretação do interesse “no final do século
XVIII e nos inícios do século XIX assinalam uma estreita vinculação das práticas pedagógicas
com as estratégias de governamento próprias da racionalidade governamental liberal”.
(MARÍN-DÍAZ, 2010a, p. 99). Desenvolver o interesse natural das crianças tornou-se algo
central nas discussões pedagógicas, especialmente na primeira década do século XIX, com o
pedagogo alemão Johan Friederich Herbart (1776-1841). O filósofo defende que a finalidade
da educação é acompanhar a multiplicidade de interesses das crianças e que a tarefa do
professor será atender a tais interesses, “que se expressa[m] na criança tanto em sua vontade
(na totalidade das pretensões que ela, a partir desse querer, formula para si) quanto na força
com a qual seu desejo natural se apresenta nas atividades que realiza para conseguir suas
pretensões” por intermédio da instrução e disciplina. (MARÍN-DÍAZ, 2010a, p. 101). Neste
estudo, há um elemento importante para o qual gostaria de chamar atenção: a instrução deve
despertar e inspirar a multiplicidade do interesse infantil existente na natureza ativa de cada
criança71. A seguir, retomarei essa questão, articulada com as análises desenvolvidas nesta
Tese.
Por ora, cabe ainda enfatizar que muitas pedagogias, por longos anos e cada uma a seu
modo, vêm despendendo esforços para mostrar o quanto o sujeito aprendente precisa ser ativo
no seu processo de aprendizagem, destacando o interesse infantil como um elemento
fundamental para o processo escolar. Ser ativo e ter interesses são condições para a
aprendizagem. Escolho retomar alguns princípios já destacados por Rousseau, Claparède e

71 Recomendo a leitura do capítulo intitulado “Interesse Infantil e governamento educativo das crianças”
(MARÍN-DÍAZ, 2010), no qual a autora faz uma análise do pensamento do filósofo alemão Herbart e da noção
de interesse infantil vinculada à existência de certa natureza infantil.
142

Dewey, a fim de explicitar como o interesse infantil não é um tema novo na educação das
crianças pequenas.
Entretanto, a partir da análise dos referenciais italianos, percebo novas nuances do
próprio interesse infantil, o que acaba produzindo outras roupagens para as crianças do nosso
tempo, denominadas atualmente como protagonistas72. A criança protagonista precisa investir
no seu interesse, na sua liberdade de escolha, na sua autonomia e independência para
empreender sua própria aprendizagem na escola. Interessante notar que os referenciais
italianos – não só eles, mas especialmente eles – articulam interesse infantil com autonomia,
protagonismo, independência, competência, crescimento, desenvolvimento, aprendizagem.
Isso tudo faz parte do novo quadro no qual a criança do nosso tempo é emoldurada: criança
protagonista.
Vale retomar, então, algumas ideias de Rousseau, especialmente na obra A Educação
de Emílio, na qual já acompanhávamos uma educação centrada na liberdade e nos interesses
da criança. Os postulados de Rousseau para a educação das crianças, compreendidos como
educação liberal, mostravam que é possível educar o sujeito com liberdade. (MARÍN-DÍAZ,
2010; NOGUERA-RAMÍREZ, 2011). Para Rousseau, a infância era a condição primeira na
qual se desenvolviam e cresciam as crianças, “processos naturais que se devem respeitar,
processos que têm sua própria temporalidade e que dão sentido à existência da infância como
etapa inicial, na qual o homem se fortalece e aprende tudo o que precisa e que não foi dado
nos instintos pela natureza”. (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 160). É nesse contexto que
Rousseau pede que os adultos economizem suas ações em função da ação da criança e deem
tempo para que ela se desenvolva em liberdade.
Conforme destaca Noguera-Ramírez (2011), na educação liberal, a criança necessita
cada vez menos de uma ação direta do exterior, por intermédio do ensino exercido pelo
mestre, e ela deve aprender sem ser ensinada. Uma liberdade regulada: educar menos para que
o outro faça mais. “A educação liberal é uma economia da educação” (p. 163), afirma o autor,
porém, não é fraca; pelo contrário, “a educação liberal é uma educação intensiva, permanente,

72 Marín-Díaz (2012), ao propor uma leitura histórica da criação discursiva da noção de natureza infantil e, com
ela, algumas noções comuns, como interesse, experiência e aprendizagem, aponta que, nos discursos do século
XIX e XX, há duas ênfases que conformam a natureza infantil: uma ênfase filosófica (tradição pedagógica
germânica, presente em Herbart e Fröebel, seguindo o legado kantiano) e uma ênfase biológica (tradição
filosófica francófona, presente em Claparède, Decroly, Freinet e Ferrière, seguindo o legado de Rousseau). A
ênfase biológica, segundo a autora, também está presente nas tradições anglo-saxônicas, como Dewey (e não
deixa de estar presente na teorização germânica de Fröebel e, posteriormente, no movimento da Escola Nova).
Com esta escrita, quero deixar claro que não recorri a uma análise de muitos teóricos que abordam a noção de
interesse – como Herbart, Fröebel, Decroly, Freinet, entre outros. Selecionei especialmente três pensadores –
Rousseau, Claparède e Dewey – que me possibilitaram analisar a emergência da noção discursiva de interesse
nos processos educacionais envolvendo crianças.
143

constante, pois é uma educação da natureza, dos homens e das coisas” (p. 163). É uma
educação que renuncia à ação diretiva do professor, para governar por meio de uma educação
liberal, e os interesses infantis devem dar o tom para os processos pedagógicos (NOGUERA-
RAMÍREZ, 2011). De forma sintética, Marín-Díaz (2010) já destaca tal questão em um de
seus artigos73:

Antes de pensar que a infância moderna morreu ou que está emergindo outra
figura infantil, parece-me que as condições e práticas contemporâneas
possibilitaram a consolidação da concepção de infância liberal fundamentada
na ideia de autonomia, liberdade, interesse, desejo e direitos. Assim que,
aquela imagem da criança ativa, criativa, que pergunta, que exige respeito
aos seus direitos, que questiona os adultos, que escolhe, que toma decisões
sobre o que vestir, comer, beber, não é uma criação das mídias; é uma
produção do discurso psicopedagógico do fim do século XIX e dos
primórdios do século XX que, evidentemente, se promoveu e expandiu
graças às tecnologias da comunicação e da informação. (MARÍN-DÍAZ,
2010, p. 206).

Retornando aos referenciais italianos analisados, encontro a defesa e a consolidação da


educação liberal, em que a centralidade posta na criança pode ser lida como uma economia de
governamento do adulto e de sua ação mais diretiva em relação à criança. Ao perceber que a
celebração dos interesses infantis é uma estratégia de governamento da infância, vejo
operacionalizar-se a autorregulação na criança, ou seja, aparentemente governa-se menos para
governar-se mais. As estratégias contemporâneas de governamento da infância passam a agir
no interior do sujeito, de modo que ele possa agir sobre si mesmo, autorregulando suas ações,
seu pensamento, seu comportamento, num contexto de liberdade escolar.
Assim, a imagem de criança contemporânea que estamos nos esforçando para
consolidar exerce uma liberdade que parece considerar apenas o seu próprio ponto de vista, ou
seja, a sua individualização é o ponto de partida e o ponto de chegada da liberdade (e não
apenas o ponto de partida, como destacava Rousseau). Ao conceder centralidade à criança, é o
interesse particular que conduzirá todas as ações pedagógicas, inclusive as planejadas pelo
adulto. Arrisco-me a dizer que, se antes procurávamos diminuir as ações diretivas dos adultos
em relação à aprendizagem das crianças, uma vez que o sujeito aprendente deveria ser ativo
sobre si mesmo para aprender, hoje são quase proibidas as ações diretivas dos adultos, pois

73 Vale destacar aqui o artigo “Natureza infantil e Governamentalidade Liberal”, de Dora Marín-Díaz (2011),
em que destaca o lugar que o interesse infantil ocupa no processo educativo, nas suas variadas formas de
compreensão. Afirma que “vemos emergir, entre o século XIX e os primórdios do século XX, no saber
pedagógico, o conceito de interesse como elemento fundamental que orienta tanto as discussões quanto as
experiências educativas que alguns dos pedagogos realizaram”. (MARIN-DÍAZ, 2011, p. 117).
144

eles mesmos já exerceram sobre si tal verdade. O “eu” infantil é o ponto de partida e o ponto
de chegada nos processos pedagógicos na Educação Infantil da Contemporaneidade.
Edouard Claparède (1873-1940), médico, psicólogo e pedagogo de Genebra, Suíça,
reconhecido seguidor das ideias de Rousseau, renomado pensador da chamada Escola Nova,
ligado às correntes liberais e à Psicologia experimental (influenciando, posteriormente, Freud
– 1856/1939 e Piaget – 1896/1980), é considerado representante da “revolução copernicana”
que faz da criança ativa o centro em torno do qual se constrói o processo de ensinar e
aprender. (HAMELINE, 2010). Claparède, em 1919, afirmou que “a infância tem uma
significação biológica [...]. Há que se estudar, portanto, as manifestações naturais da criança e
ajustar a elas a ação educativa. Os métodos e os programas gravitando em torno da criança, e
não a criança que gira ao redor de um programa imposto, sem poder contar com ele, tal é a
revolução copernicana na qual o educador é convidado a adentrar”. (CLAPARÈDE apud
HAMELINE, 2010, p. 21).
O interesse também ocupa lugar central nas teorizações de Claparède74, que encontram
eco até hoje. Para ele, a criança em seu estado natural tem como interesse o brincar. “No
ecossistema de seu meio, o indivíduo, portador do dinamismo de seu próprio crescimento,
experimenta necessidades que o fazem voltar-se para o ambiente externo e se convertem em
interesse, transformado este, por sua vez, em interesses evolutivos que os intercâmbios com o
meio tornam cada vez mais complexos”. (HAMELINE, 2010, p. 23). Para o autor, se o
interesse é o motor biológico da educação, a escola deve ser laboratório, e não auditório,
portanto, deve haver uma educação atraente e uma escola sob medida (expressões trazidas por
Claparède à educação). O trabalho escolar não pode, em hipótese alguma, ser insuportável. A
escola constitui um meio social válido por si só e preparatório para as realidades da vida
adulta. Nela, o pedagogo é, acima de tudo, um “estimulador do interesse”. (HAMELINE,
2010).
Claparède formula a lei do interesse (psicologicamente, a lei da necessidade): “toda
conduta é ditada por um interesse. Isto é: Toda ação consiste em atingir o fim que nos importa
no momento considerado”. (CLAPARÈDE, 1959, p. 97). Assim, a palavra interesse comporta
uma ação entre indivíduo e objeto, ou seja, o interesse não está nas coisas, mas as coisas que
se tornam interessantes a partir da necessidade que se exprime no indivíduo. Claparède
considerava o professor como “um estimulador de interesses e pensava que os métodos
educativos e os programas deveriam estar a serviço e em torno do educando e não o

74 Para uma leitura detalhada sobre a natureza infantil e sua articulação com o interesse em Claparède, sugiro a
leitura do artigo de Marín-Díaz. (2012).
145

contrário”. (HAMELINE; PETRAGLIA; DIAS, 2010, p. 32). Enquanto estimulador de


interesses, o professor deve considerar os jogos e as brincadeiras como possibilidades reais e
estratégicas para despertar o interesse nas crianças, ou seja, “ao professor caberia, então, o
papel de estimulador de interesses ao aluno, com vistas à aquisição de conhecimentos. Assim,
valorizava a atitude lúdica em detrimento da memorização e, no adulto, esta atividade seria
substituída, naturalmente, pelo trabalho”. (HAMELINE; PETRAGLIA; DIAS, 2010, p. 33).
Noguera-Ramírez, ao estudar sobre a emergência do conceito de aprendizagem,
retoma a noção de interesse em Claparède e mostra que a criança aprende porque “existe uma
necessidade e um interesse que é preciso satisfazer, e não porque é submetida a um processo
programado de ensino ou instrução. Só aprende verdadeiramente como resultado da própria
ação e do próprio interesse”. (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 241). Podemos destacar, nas
breves análises sobre os postulados de Claparède, a ênfase na natureza infantil como guia para
organizar e planejar toda ação educativa, manifestada pelo interesse da criança. O psicólogo
suíço valoriza o jogo e a brincadeira como elementos para despertar o interesse infantil,
compreendido como um meio, um entre (inter-esse) a necessidade e o objeto.
John Dewey também nos ajuda a pensar sobre essa questão. Esse importante pensador
da educação, filósofo norte-americano, considerado um dos pedagogos da Escola Nova (viveu
entre os anos de 1859-1952; seguidor das teorizações de Johann Herbart – 1776/1841),
constata que a mente humana é fruto de associação, comunicação, transmissão e acumulação
de conhecimentos e interações. Portanto, para ele, o indivíduo torna-se quem ele é por meio
da participação no meio social. O pensamento e a reflexividade são frutos e resultados das
interações com o meio, não sendo inatas tais capacidades humanas. Por isso, a educação é
necessária, pois ela oferecerá aos componentes imaturos75 do grupo (termo utilizado por
Dewey para referir-se a crianças e jovens) oportunidades variadas e ricas, formando condições
para modelar a subjetividade. A aptidão do imaturo para crescer constitui sua plasticidade, e
“as escolas são, com efeito, um meio importante de transmissão para formar a mentalidade
dos imaturos”. (DEWEY, 1959, p. 4). “A presença de seres dependentes de nós e a
aprenderem as coisas é um estímulo à criação e à afeição”. (DEWEY, 1959, p. 49).
A educação seria um instrumento, um meio para atingir a maturidade e a experiência
consciente, habilitando os imaturos a participarem da vida em comum, pois “é evidente a
necessidade de educar” (DEWEY, 1959, p. 7), e “sem a educação formal é impossível a

75 A imaturidade é vista por John Dewey como condição para crescimento e não é tomada como algo negativo
nem como carência, pelo contrário, o sufixo im- significa algo positivo; assim, a imaturidade é vista como
aptidão e força positiva, como aptidão para o desenvolvimento. (DEWEY, 1959).
146

transmissão de todos os recursos e conquistas de uma sociedade complexa”. (DEWEY, 1959,


p. 08). A educação, para Dewey, seria uma direção, um controle e um guia das aptidões
naturais dos indivíduos, ou da subjetividade humana, possibilitando direção interna por meio
da identidade de interesses; a educação escolar suscita o desejo de desenvolvimento contínuo.
(DEWEY, 1959).
A plasticidade, para Dewey, é a aptidão de aprender com a experiência, conseguir reter
dos fatos algo aproveitável para situações futuras, e o crescimento decorre da plasticidade.
Plasticidade: “faculdade de reter e extrair da experiência anterior elementos que modificarão
os atos subsequentes”. (DEWEY, 1959, p. 49). Maus hábitos, hábitos irreflexivos ou
rotineiros (aqueles apartados da razão, instintivos, inconscientes, aqueles que nos possuem,
em vez de serem possuídos por nós, constata Dewey) assinalam o fim da aptidão para variar,
não formando uma conduta adequada, e marcam a parada do desenvolvimento. “Só pode
contrastar e deter esta tendência um ambiente que assegure o pleno funcionamento da
inteligência no processo de contrair hábitos”. (DEWEY, 1959, p. 53).
Conforme Dewey, o desenvolvimento implica a formação de hábitos com capacidade
prática executiva, interesses definidos e objetivos específicos para observação e reflexão. Fica
claro que a infância é o período de crescimento e desenvolvimento: “a crescente
complexidade da vida social requer cada vez mais prolongado período de infância para se
adquirirem as necessárias aptidões” (DEWEY, 1959, p. 49), sugerindo o autor o seu
prolongamento para impulsionar maior progresso social.
Em Dewey, vemos que a palavra interesse, epistemologicamente, está entre – inter –
esse, reunindo duas coisas que de outro modo ficariam distantes. O interesse, para o autor,
estaria em estreita conexão com a palavra objetivo, propósito: “são resultados desejados que
nos esforçamos por obter”. (DEWEY, 1959, p. 137). Só tem interesse um ser ativo, “que
participa das consequências em vez de ficar estranho às mesmas, existe ao mesmo tempo uma
reação pessoal”. (DEWEY, 1959, p. 137). O interesse indica uma preferência pessoal e
atitudes para com objetos e coisas exteriores. “Interesse significa que o eu e o mundo exterior
se acham empenhados em uma situação em marcha”. (DEWEY, 1959, p. 137). Esse empenho
precisa de tempo e disciplina para que o eu e o objeto se encontrem através do meio: “Entre
os dois ficam os meios, isto é, as condições intermediárias: atos a ser praticados; obstáculos a
superar; instrumentos a usar e aplicações a fazer”. (DEWEY, 1959, p. 139). É dessa relação
que depende o desenvolvimento.
147

O interesse é, para Dewey76, a intensidade da influência do fim previsto para fazer


uma pessoa empreender a sua realização, representando a força que faz mover os objetos.
(DEWEY, 1959). Ainda, o interesse é “a identificação ativa e operante do eu com certo
objeto”. (DEWEY, 1959, p. 386). O autor destaca que o interesse é sempre individual e está
atrelado às preferências de cada criança; sendo assim, o interesse tem uma natureza que segue
uma ordem psicológica, mas também uma ordem biológica. A instrução, portanto, deve
encontrar conteúdos nos quais o educando aplique sua atividade e que tenham objetivos de
seu interesse, ou seja, todas as atividades devem tomar o interesse do educando, permitindo
liberdade intelectual. Contudo, Dewey preocupa-se com a expressão interesse próprio, ligada
a uma noção de indivíduo egoísta, interessado apenas nas suas vantagens pessoais. Porém, ele
alerta: o eu está sempre em formação, não é uma identidade fixa e completa, o interesse do eu
não tem um fim no próprio eu. “O fato é que o eu e o interesse são dois nomes para
designarem uma coisa única; a espécie e a intensidade do interesse ativamente tomado por
alguma coisa revela e mede a qualidade do eu existente”. (DEWEY, 1959, p. 386). Dito de
outra forma, o interesse para aprender é um interesse moral, capaz de desenvolver a
capacidade de viver socialmente.
Dewey coloca o interesse infantil como um meio para aprender e como uma
possibilidade de o aluno adaptar-se, crescer e desenvolver-se. Interessado nos fundamentos de
Dewey, Noguera-Ramírez diz que “o interesse garante a economia da ação, uma economia
das forças, e a aprendizagem é a ação mais eficiente que um organismo pode conseguir”.
(NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 242). A abordagem de Dewey pretende trazer uma
interioridade e uma individualização do interesse humano, ou seja, há pouco de exterioridade
ao indivíduo e muito de interioridade. Em Democracia e Educação (1916 é a data da primeira
publicação), aprendemos com Dewey que é preciso despertar o desejo de aprender da criança,
ou seja, precisamos utilizar os seus próprios interesses para melhor conduzir a sua conduta.
Os recortes feitos a partir dos postulados de Rousseau, Claparède e Dewey procuram
mostrar os modos de conceber o interesse do indivíduo, em especial, o interesse infantil. Com
esses pensadores, vemos emergir, desde meados do século XVIII, e mais intensamente no
século XIX e início do século XX, a noção de interesse infantil como questão central para
organizar os processos educativos com as crianças. Nesta rápida revisão de três pensadores da
educação, tentei mostrar que a noção de interesse infantil é utilizada para descrever os
processos escolares envolvendo as crianças; tal noção não é tomada como universal, nem fixa,

76 Para uma leitura detalhada sobre a natureza infantil e sua articulação com o interesse em Dewey, também
sugiro a leitura do artigo de Marín-Díaz (2012).
148

ela se desloca, ocupando novos lugares nos propósitos educativos. O que chama minha
atenção é que a noção de interesse infantil permanece até hoje e talvez de forma mais pontual
e intensa nos discursos pedagógicos atuais, sendo concebida quase de forma naturalizada
pelos professores. Foi criada, discursivamente, a noção de interesse infantil para explicar
muitas questões e processos pedagógicos. Toda essa discussão sustenta minha argumentação
de que o interesse infantil é compreendido como uma estratégia de governamento da infância,
isto é, o interesse é uma das formas de governamento por meio da interioridade individual de
cada criança.
É do interior do indivíduo que se dá um governo muito mais efetivo e eficaz, capaz de
regular menos e de forma mais flexível, mais sutil, mais livre de coerções e restrições
diretivas, mas capaz de regular muito mais. Em uma de suas entrevistas, Foucault já destacava
que “o controle é menos severo e mais refinado, sem ser, contudo, menos aterrorizador”.
(FOUCAULT, 2006, p. 307). O governamento ocorre por meio da autorregulação do próprio
indivíduo, mediante a manifestação dos seus interesses nas escolhas que ele é incitado a fazer
a todo o momento e nas decisões tomadas para a sua vida. A educação das crianças dá-se pelo
autogoverno de seus próprios interesses; assim, parece que se governa menos, mas, pelo
contrário, governa-se mais. Racionalizamos e economizamos as formas de governar, a fim de
maximizar os resultados mediante um mínimo de investimento e intervenção.
Ao mesmo tempo em que a noção de interesse infantil é referência em postulados
educativos desde meados do século XVIII, a sua compreensão muda de lugar e passa a ocupar
outras formas e condições. As análises empreendidas neste estudo levam-me a perceber que
hoje não necessitamos da instrução, do ensino e de um foco na disciplina para estimular os
interesses, tampouco da ação mais diretiva do professor na organização curricular e no
planejamento, a fim de despertar e estimular interesses infantis. Parece-me que hoje as
crianças são paulatinamente concebidas como mais autônomas, mais criativas e intensamente
mais protagonistas de suas ações, sendo elas mesmas as condutoras de seus processos de
aprendizagem. Afirmando isso, não pretendo dizer que as crianças não são potencialmente
capazes de construir suas relações com o mundo, mas pretendo assinalar uma nova condição
para o sujeito infantil, especialmente na escola e na relação adulto-criança, e, ao mesmo
tempo, novas formas de governamento da infância contemporânea.
A imagem da criança contemporânea que nos esforçamos para consolidar não
abandona a ideia de superação da imaturidade por meio da educação (tal como expõe Dewey),
mas diminui o sentido da educação como transmissão, instrução ou como instrumentalização
por parte do indivíduo que já alcançou a maturidade. No tempo presente, a discursividade
149

pedagógica acerca de imaturidade e dependência infantil deixa passagem para outros


discursos que assumem posição de verdade: as crianças são seres potencialmente dotados e
competentes desde o período em que nascem. Todos parecem ocupar os mesmos lugares na
escola – adultos e crianças –, sendo que a organização dos espaços (o meio educativo) ocupa
papel central ao potencializar determinadas aprendizagens e possibilitar a manifestação do
interesse infantil.
Aliás, no quesito da organização do espaço escolar, os professores ainda ocupam lugar
central, pois eles é que têm a responsabilidade de organizar os espaços da escola,
instrumentalizando-os com recursos significativos às crianças (discuto essa questão no
Capítulo 4). Entretanto, em outros aspectos relacionados com o ensino (tais como a
organização da rotina, do planejamento, da avaliação), a ação do professor desloca-se de uma
posição de responsabilidade pelo conhecimento para a posição de gerenciamento de
oportunidades. A hipótese que tenho é que o professor da Educação Infantil, antes de tomar o
ensino como foco de sua atuação docente, deve preocupar-se com a organização das
condições do ambiente e dar oportunidades para que as crianças se desenvolvam livremente,
fazendo escolhas e com o mínimo de interferência dos adultos.
Vejamos o exemplar de documentação elaborado por uma professora de Educação
Infantil do interior do Rio Grande do Sul e atentemos para a manifestação do interesse infantil
e as possibilidades de escolha:
150

Imagem 3 – Exemplar de documentação pedagógica

Fonte: Escola do interior do Rio Grande do Sul (2014).

Creio ser necessário transcrever as escritas da professora, a fim de facilitar a leitura:

Quadro 5 - Exemplar de documentação pedagógica

Ana continuou motivada com as atividades propostas no Projeto “Pequenos Gestos”. Quando as
atividades envolviam tintas, Ana demonstrava preferência em utilizar os pincéis, quando a
proposta era a pintura com as mãos, ela as finalizava rapidamente, solicitando a higiene.
Reconhece algumas cores e vem percebendo suas tonalidades. Nestes últimos tempos, Ana tem se
mostrado mais espontânea. Vem compartilhando com a turma suas ideias e desejos, bem como
suas vivências: “Eu fiquei em casa com a minha mãe!”. “Eu também quero brincar com a
boneca!”.

No pátio, Ana gosta de interagir com os bebês, caminha com eles segurando-os pela mão, auxilia-
os na piscina de bolinhas e no escorregador. Também aprecia brincar de esconde-esconde através
da porta de vidro, que separa os dois pátios. Ana tem explorado em seu brincar o faz de conta. Na
casinha prepara comidinha, chimarrão e passeia com as bonecas. Também tem interagido mais
com os colegas, convidando-os para brincar.
Vem se alimentando sozinha, embora em vários momentos requeira auxílio. Dependendo do
cardápio, solicita repetição. Ana aceita bem os alimentos e come de tudo. Vem mostrando
independência no momento de derramar a água da garrafa, despejando-a com cuidado na bacia.
É importante que a família continue incentivando-a a se alimentar sozinha promovendo sua
autonomia.
Fonte: Documentação Pedagógica Professora C – Criança de 2 a 3 anos (2014, grifos meus).
151

As fotografias e as narrativas da professora parecem evidenciar os interesses da


criança e a singularidade de suas ações escolares, ou seja, a manifestação e a realização de
seus próprios interesses conformam-lhe uma identidade infantil ativa, rodeada de escolhas e
oportunidades, sendo que a criança, ela mesma, consegue distinguir suas preferênciase
escolher a partir daquilo que lhe foi ofertado pela professora. No primeiro excerto, encontram-
se frases como “continuou motivada”, “demonstrou preferência”, “compartilha ideias,
desejos, e vivências”, junto com fotografias que sinalizam as ações de uma criança feliz,
segura, que sabe fazer escolhas. No segundo excerto, marcam-se as preferências da criança ao
brincar, e mostra-se o quanto já sabe fazer coisas na escola e é competente para a sua idade.
As fotografias confirmam a criança ativa, que brinca, come sozinha, interage, explora o
espaço escolar, é atuante e age sobre si mesma. No terceiro excerto, ao abordar a importância
da independência e autonomia da criança, a professora aciona a família para que “continue
incentivando-a a se alimentar sozinha”, numa investida de convocar a comunidade educativa.
Interessante atentar para o recado final da professora: “Ana, foi muito gratificante estar ao seu
lado e acompanhar suas conquistas e o seu desenvolvimento nesta etapa da sua vida escolar”.
Num gesto afetivo, a professora coloca-se ao lado da criança e sinaliza que acompanhou as
conquistas ao longo do ano letivo.
Em resumo, percebo que as práticas de registro da documentação pedagógica
exercitadas na Educação Infantil estão articuladas com a governamentalidade neoliberal, mas
com deslocamentos, deslizamentos, desmoronamentos característicos de seu tempo. A
educação das crianças nas escolas infantis é operacionalizada mediante um governo mínimo,
mas para governar mais. Foucault já nos alertava que o governo liberal não renuncia ao
governo, mas opera numa economia de governo – governa menos, para governar mais–, e a
liberdade aparece como uma das artes mais refinadas de governar os vivos (debate realizado
na primeira parte da Tese). É na consolidação do poder disciplinar que o governo liberal e
neoliberal encontra frestas para se fortalecer. Ao mesmo tempo, no curso Nascimento da
Biopolítica, ao descrever a razão governamental do liberalismo, instituída no início do século
XVIII, Foucault já assinalava que a questão central para um melhor governo era a noção de
interesse.
Como tentei mostrar, o interesse infantil é uma das estratégias de governamento da
infância desde a educação moderna77. O interesse está no âmago do conceito de aprendizagem

77 Marín-Díaz (2012) mostra que o interesse infantil é uma noção que expressa o pensamento educativo
moderno, articulando discursos naturalistas, discursos liberais e as práticas disciplinares. Afirma que a noção de
interesse possibilitou práticas pedagógicas que operam como estratégias de governo numa racionalidade liberal.
152

moderna, conforme aprendemos com Noguera-Ramírez (2011), porque o interesse “coloca no


centro das análises a capacidade de ação do indivíduo”. (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p.
233). Acompanhada pelos estudos do referido autor, percebo que não é mais preciso agir
diretamente sobre o indivíduo quando se inventa o “interesse”, ou seja, o alvo não está no
corpo, como no governamento disciplinar, mas na condução das condutas individuais e
coletivas pela invenção do interesse. O interesse individual infantil não é mais tomado como
egocêntrico ou algo a ser superado, mas é a própria condição para ser infantil, para ser uma
criança do nosso tempo. A invenção de um sujeito infantil com interesses próprios é um efeito
de processos discursivos e não-discursivos (que não são atuais, do nosso tempo, como
pudemos refletir acima) que mobilizam estratégias de poder que atuam na condução da
conduta dos outros e de si para governar a infância.
Demonstrar interesses individuais infantis constitui a criança moderna, porém, na
Contemporaneidade, não é qualquer interesse, não é qualquer forma de manifestação, não é
qualquer um que pode falar sobre isso e mostrar os interesses na escola. Dito de forma mais
clara, minha análise leva a pensar que, na Educação Infantil de hoje, o interesse infantil é uma
estratégia que atua na produção da criança protagonista, aquela que é capaz também de
aprender a aprender. Portanto, o interesse infantil e o aprender a aprender atuam como
estratégias que operam no governamento da infância contemporânea, ambas deslocando, cada
vez mais, a criança para o centro do processo pedagógico. Vejamos a próxima seção.

3.2 Aprender a aprender: a centralidade na aprendizagem da criança

Jamais ensine a uma criança algo que ela possa aprender sozinha.
(MALAGUZZI apud RINALDI, 2012, p. 229).

A abordagem reggiana “enfatiza a documentação como parte integrante dos


procedimentos, para favorecer a aprendizagem e modificar a relação aprendizagem-ensino”.
(RINALDI, 2014, p. 80). Fica claro que há um deslocamento nos modos de praticar a vida na
escola – tanto para a criança, quanto para o professor –, valorizando o aprender a aprender,
em detrimento do ensinar e aprender. Podemos dizer que, do ensino e aprendizagem, se passa
para o aprender a aprender. As crianças aprendem a aprender quando demonstram seus
interesses infantis e, por meio da documentação pedagógica, podem revisitar o que fizeram na
escola, tomando consciência de suas estratégias de aprendizagem. Há uma série de
recomendações para dispensar o ensino quando se tem uma imagem forte de criança. Opto por
153

apresentar o quadro com o material empírico logo no início desta seção, a fim de salientar tais
recomendações.

Quadro 6 - Do ensinar para o aprender a aprender


[...] devem aprender a nada ensinar às crianças, exceto o que podem aprender por si mesmas. [...]
Devem perceber que escutar as crianças é tanto necessário quanto prático. Devem saber que as
atividades devem ser tão numerosas quanto as teclas de um piano, e que todas envolvem atos
infinitos de inteligência quando as crianças recebem uma ampla variedade de opções a partir das
quais escolher. (MALAGUZZI, 1999, p. 83, grifos meus).

É óbvio que entre a aprendizagem e o ensino, honramos a primeira. Não é o caso de desprezarmos
o ensino, mas declaramos: “Coloque-se de lado por um momento e deixe espaço para aprender,
observe cuidadosamente o que as crianças fazem e então, se você entendeu bem, talvez ensine de
um modo diferente de antes”. (MALAGUZZI, 1999, p. 93, grifos meus).

[...] uma imagem que não só impõe o dever de escutar quando se dispensam atenções e
ensinamentos, como também que leva a uma dimensão horizontal e cooperativa da relação.
(FORTUNATI, 2009, p. 76, grifos meus).

Uma das tarefas primordiais do educador e, portanto, da escola é ajudar o grupo de crianças e cada
uma delas individualmente a aprender a aprender, estimulando sua predisposição natural para os
relacionamentos e a consequente coconstrução do conhecimento. (RINALDI, 2012, p. 229, grifos
meus).

[...] mudar a ação da escola de ensinar para aprender [...] e favorecer a ação construtiva e
colaborativa das crianças e a presença do educador como ajudante que está sempre disponível para
elas, mas sem ser opressivo ou intrusivo. (RINALDI, 2012, p. 182, grifos meus).

A perspectiva que deriva de tudo isso é a de uma relação entre as diferentes situações em que a
criança constrói sua experiência, partindo da aceitação positiva do pressuposto de que não é o
adulto quem deve determinar diretamente as aprendizagens, mas que se trata, antes, de
solicitações que o adulto consegue colocar nos diversos contextos de experiência propostos às
crianças. (FORTUNATI, 2009, p. 73, grifos meus).

Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).

Como podemos perceber, a premissa do aprender a aprender não substitui o ensino,


mas fornece-lhe uma nova configuração e uma nova lógica de atuação nas escolas de
Educação Infantil, tanto por parte das crianças, quanto dos professores, permitindo novas
formas de viver a infância e a docência. Fazendo um rápido exercício interpretativo, pode-se
afirmar que não se fala numa proposta de ensino nos referenciais italianos, mas num projeto
de aprendizagem, como vimos acima, especialmente na última citação de Fortunati (2009),
quando afirma claramente que, na escola, não é o adulto quem determina as aprendizagens
das crianças.
154

Ao sugerirem que “não é o adulto quem deve determinar diretamente as


aprendizagens” e que “as solicitações do adulto devem ser colocadas nos contextos”
(FORTUNATI, 2009, p. 73), os referenciais italianos tratam de consolidar outras posições
para alunos e professores, acionadas fortemente pelas práticas de registro da documentação
pedagógica. Um exemplo está na arquitetura dos espaços escolares, que antes estava
centralizada mais no professor e no coletivo de crianças, mas que agora resulta em espaços
onde pequenos grupos executam ações segundo seus próprios interesses (como abordarei mais
intensamente no próximo capítulo). A imagem da criança imatura, dependente do adulto,
frágil em sua constituição física, transforma-se numa criança autônoma, competente, repleta
de interesses e vontades próprias, empreendedora desde tenra idade, um sujeito com
plasticidade para estar no mundo em que vive. A aprendizagem passa a ser o eixo estruturante
dos processos educativos. Redefinem-se os papéis e as funções docentes para esse tipo de
sujeito infantil. Potencializa-se o gerenciador de oportunidades, aquele que mais monitora,
acompanha, observa, registra, reflete, mas deixa a criança livre para tomar decisões para
aprender a aprender (esse tema será aprofundado no capítulo seguinte).
Por ora, vale dizer que, para movimentar o aprender a aprender na escola infantil,
alguns referenciais italianos abordam aspectos do currículo e dos projetos de trabalho, todos
em articulação com as práticas de registro da documentação pedagógica. Aldo Fortunati
defende, por exemplo, uma nova ideia de currículo, que corresponde à nova imagem de
criança e que está centrada no “planejamento de ação estratégica”. (FORTUNATI, 2014, p.
22), ou seja, não mais um currículo tradicional, com operações e resultados predeterminados,
mas um currículo atravessado por estratégias:

A “estratégia” requer a capacidade de aproveitar e trabalhar com as oportunidades e as conexões


que emergem do contexto educativo; a estratégia é feita ao mesmo tempo em que a ação acontece,
e é a arte de usar a informação produzida na ação e de incorporá-la, a fim de desenvolver planos de
ação no momento– o “aqui e o agora” –, possibilitando ao intérprete tirar o máximo de certeza
daquilo que é incerto. (FORTUNATI, 2014, p. 22).

Assim, o currículo para a infância nos referenciais analisados sugere que os planos de
ações sejam desenvolvidos no momento em que adultos e crianças se encontram na escola e
que as atividades possam emergir desse encontro. Mais surpreendente ainda é a seguinte
afirmativa:
155

O currículo não é centrado na criança, ou dirigido pelo professor. O currículo é originado na


criança e colocado em um quadro pelo professor. [...] Então, as atividades que darão seguimento
especificamente são propostas e negociadas com as crianças. Por outro lado, o currículo pode ser
provocado pelo professor e engajado pelas crianças. O que é importante aqui é que o professor
envolva a mente e os interesses das crianças nos tópicos propostos. (FORMAN; FYFE, 2016, p.
250, grifos meus).

Vale lembrar que é nesse contexto – o de desenvolver planos de ação no momento, no


aqui e agora – que a documentação faz sentido: ao tomar a criança como protagonista e
competente desde cedo, o adulto deve adotar uma atitude de “observador participante”
(FORTUNATI, 2014, p. 30) e, por isso, observa, dialoga e reflete mais do que propõe e
direciona planos. Na afirmativa de Rinaldi, também podemos ver essa trama entre currículo
emergente78, projetos de trabalho e documentação pedagógica: o papel do professor ao fazer a
documentação pedagógica não é ensinar uma série de regras nem apresentar fórmulas e
métodos, mas sim ter “a cultura do pensamento baseado em projetos”. (RINALDI, 2012, p.
138). Fortunati confirma:

A documentação tem sustentado a visibilidade das competências e dos processos através dos quais
as competências se expressam e evoluem e tem oferecido a possibilidade de uma reflexão
compartilhada sobre o quanto os vínculos e as possibilidades oferecidas podem condicionar a
expressão das potencialidades individuais. Entende-se que a habilidade de observação dos
educadores – que deve ser sustentada por uma formação adequada e complexa – é a ferramenta que
melhor permite reconhecer as potencialidades e inteligências, reconhecendo as múltiplas
linguagens utilizadas pelas crianças em sua exploração. (FORTUNATI, 2014, p. 32).

O currículo é originado nas escolhas que as crianças fazem, e é nesse contexto que
Malaguzzi afirma os projetos de trabalho. Mesmo que os referenciais italianos defendam o
coletivo ou grandes grupos, é sempre o interesse particular da criança que fala mais alto, e o
trabalho é proposto em pequenos grupos. O princípio do trabalho por projetos se fortalece,
uma vez que “os projetos não são apenas retirados do mundo das crianças, mas são
sugeridos por elas – as crianças agem como protagonistas”. (RABITTI, 1999, p. 152). Nessa

78 Rinaldi (1999, p. 113) define o currículo emergente como “um método de trabalho no qual os professores
apresentam objetivos educacionais gerais, mas não formulam objetivos específicos para cada atividade de
antemão. Em vez disso, formulam hipóteses do que poderia ocorrer, com base em seu conhecimento das crianças
e das experiências anteriores. Juntamente com estas hipóteses, formulam objetivos flexíveis e adaptados às
necessidades e interesses das crianças, os quais incluem aqueles expressados por elas a qualquer momento
durante o projeto, bem como aqueles que os professores inferem e trazem à baila à medida que o trabalho
avança”. Sobre currículo emergente, sugiro a leitura da Tese da professora Dra. Jacqueline Silva da Silva (2011),
intitulada O planejamento no enfoque emergente: uma experiência no 1º ano do Ensino Fundamental de 9 anos.
156

afirmativa de Rabitti, vemos que não basta compreender a criança como protagonista; é
preciso dar oportunidades escolares para ela exercer esse protagonismo, e o currículo
emergente e a metodologia de projetos seriam a melhor expressão disso.

As crianças pequenas dependem dos adultos em muitos aspectos de suas vidas e de suas
experiências de aprendizagem; entretanto, o trabalho em projetos é a parte do currículo na qual os
seus próprios interesses, ideias, preferências e escolhas podem ter rédeas relativamente soltas. [...]
As experiências precoces de domínio de conhecimento podem formar a base de uma disposição
permanente para buscar a compreensão em profundidade sobre tópicos que merecem atenção.
(KATZ, 1999, p. 41).

“Os seus próprios interesses, ideias, preferências e escolhas podem ter rédeas
relativamente soltas”: os projetos visam a ajudar a criança a extrair um sentido mais profundo
e completo de eventos e fenômenos de seu próprio ambiente e de experiências que mereçam
atenção. Os projetos oferecem a parte do currículo na qual as crianças são encorajadas a tomar
suas próprias decisões e a fazer suas próprias escolhas sobre o trabalho a ser realizado,
geralmente em cooperação com seus colegas. Esse tipo de trabalho aumenta a confiança das
crianças em seus próprios poderes intelectuais e reforça sua disposição de continuar
aprendendo.
Atividades do trabalho com projetos incluem observação direta, perguntas a pessoas e
especialistas relevantes, coleta de artefatos pertinentes, representação de observações, de
ideias, de memórias, de emoções, de imagens e de novos conhecimentos em várias maneiras,
incluindo encenação dramática. O trabalho em projetos faz com que as crianças contribuam
com seus próprios conhecimentos, sugerindo questões a serem indagadas e linhas de
investigação a seguir. Interessante ver que as crianças podem assumir a liderança no
planejamento, assumir responsabilidades por observações específicas, por informações e pelos
artefatos coletados e selecionados para os estudos.
No projeto educativo de Reggio Emilia, por exemplo, os projetos são a parte do
currículo na qual os interesses das crianças têm centralidade e, além disso, possibilitam
experiências de conhecer um tópico em profundidade. Assim, as crianças podem formar a
base de uma disposição permanente para buscar a compreensão profunda de tópicos que
mereçam atenção. Os professores prestam atenção, constantemente, às atividades das
crianças. Acreditam que, quando as crianças trabalham em um projeto de interesse para elas,
encontrarão naturalmente problemas e questões que desejarão investigar. A função dos
professores seria ajudá-las a descobrir seus próprios problemas e questões. Nesse ponto, não
157

oferecerão soluções fáceis; em vez disso, ajudarão as crianças a focalizar um problema ou


dificuldade e a formular hipóteses.

Para o educador, a capacidade de refletir sobre a forma com que se dá o aprendizado significa que
ele pode basear seu ensino não naquilo que deseja ensinar, mas naquilo que a criança deseja
aprender. Desse modo, ele aprende a ensinar e, junto com as crianças, busca a melhor maneira de
proceder. (RINALDI, 2012, p. 185).

Alguns referenciais italianos sugerem que os professores perguntem às crianças o que


elas precisam para realizar as experiências, mesmo quando percebem que determinada
abordagem ou hipótese não está “correta”. Os adultos devem servir como seus parceiros,
apoiando e oferecendo auxílio, recursos e estratégias para que possam prosseguir quando
encontrarem dificuldades. Eles encorajam as crianças a continuarem fazendo algo ou pedem
para terminarem ou acrescentarem algo ao que estão fazendo. Preferem não deixar que
trabalhem sempre por conta própria e tentam cooperar com as metas das crianças. A partir
dessa gramática, alguns autores sugerem que o professor possa ser “severo ou doce”, ou
ainda, um eletricista “que distribui as tintas e que seja o próprio público”, isto é, que assiste,
fica em silêncio, julga com ceticismo ou aplaude com entusiasmo e emoção. (RINALDI,
2012, p. 138).
A metodologia de projetos confirma a centralidade na criança. Interessante trazer para
a discussão os autores Saraiva e Veiga-Neto, que, ao abordarem a modernidade líquida, o
neoliberalismo e a educação contemporânea, destacam um ponto interessante: “as teorias e as
metodologias que vêm orientando o trabalho pedagógico na atualidade cada vez buscam mais
a satisfação imediata. Isso pode ser percebido na importância hoje concedida ao interesse dos
alunos”. (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009, p. 198). Segundo os autores, os projetos de
aprendizagem visam a transformar “o longo prazo de recebimento da recompensa em curto
prazo, produzindo uma satisfação imediata. O tempo contínuo da escola disciplinar torna-se
assim um tempo pontilhista, marcado pela sucessão de projetos”. (SARAIVA; VEIGA-
NETO, 2009, p. 198). Ou seja, os projetos de aprendizagem visam a transformar a
recompensa de longo prazo de recebimento em um curto prazo, produzindo uma satisfação
imediata. O tempo da escola disciplinar, contínuo e seguro, passa a ser um tempo pontilhista,
marcado pela sucessão de projetos.
Uma ressignificação do currículo é posta em ação ao destacar a criança como
competente, autora de suas ações, capaz, criativa, inteligente e, desde muito cedo, dotada de
competências e habilidades para aprender aquilo que lhe interessa. Com certo empoderamento
158

das ações infantis, próprio do protagonismo infantil, as próprias crianças são interpeladas a
produzirem suas aprendizagens a partir daquilo que lhes interessa conhecer, dos seus gostos,
das suas escolhas. Sob essa lógica, ao documentarem-se as vivências das crianças na escola,
há “o apelo para que cada criança se volte em direção àquilo que produziu, ao modo como se
sentiu, aos sucessos ou dificuldades na execução de um projeto”, e isso constitui uma
estratégia para tornar cada criança “consciente dos processos em que está envolvida, para dar-
se conta dessa possibilidade de refletir sobre si mesma, de poder pensar o seu pensamento”.
(BUJES, 2008, p. 115-116). Essa prática opera no sujeito, produzindo formas de ser e estar na
escola e outros modos de ser aluno, podendo ser compreendida como “técnicas ou
mecanismos de autovigilância, de autoavaliação, de autonarração (de confissão), que têm
como efeitos a construção e a transformação da consciência de si”. (BUJES, 2008, p. 116).
Um autocontrole sobre suas ações, aprendizagens, conquistas, constituiria a marca da
identidade de cada criança.
Vejamos um exemplar de documentação pedagógica produzido por professor que atua
em Escola de Educação Infantil do interior do Rio Grande do Sul. Ao apresentá-lo, chamo
atenção também para a apresentação estética do material.

Imagem 4 – Exemplar de Documentação Pedagógica

Fonte: Documentação Pedagógica Professora C – Criança de 2 a 3 anos (2014).


159

Quadro 7- Exemplar de Documentação Pedagógica

Tiago teve uma grande conquista nestes últimos meses, não usa mais fraldas e vem tendo um
bom controle dos esfíncteres. Vem se alimentando sozinho e geralmente solicita repetição. Tiago
aceita bem os alimentos e come de tudo. Vem mostrando independência no momento de derramar
a água da garrafa, despejando-a com cuidado na bacia. Ele vem construindo uma grande amizade
com o colega Gustavo. Juntos superam os desafios motores do pátio, montam estradas, brincam
de pega-pega e dão belas gargalhadas!

Tiago se envolve com tudo o que acontece na Escola. Conversa com todos contando suas
aventuras e vivências. Está sempre disposto a auxiliar a turma, mostrando-se afetivo e solidário
com quem convive com ele. Continuou motivado com as atividades propostas no Projeto,
mostrando entusiasmo quando elas envolviam as tintas. Reconhece algumas cores e vem
percebendo suas tonalidades. “É o azul forte ou o fraco?”.
Fonte: Documentação Pedagógica Professora C – Criança de 2 a 3 anos (2014, grifos meus).

Grandes conquistas, faz sozinho, mostra independência, constrói amizades, se envolve


em tudo, continua motivado, mostra entusiasmo... Essas narrativas oferecem um campo de
visibilidades para compreender duas questões: a primeira, como o interesse infantil está
conectado com a ideia de superação, felicidade, prazer, alegria; a segunda, como o
envolvimento, as conquistas, as motivações, estão articulados com a aprendizagem da criança
na escola. Parece-me uma temática recorrente – a ideia de conquista individual vinculada aos
interesses e à aprendizagem. As fotografias, tanto da Imagem 4, quanto da próxima,
apresentam a criança ativa, que realiza atividades para atingir seus interesses. No exemplar
abaixo, também é possível visualizar uma criança atuante, competente e interessada.
Vejamos:
160

Imagem 5 – Exemplar de documentação pedagógica

Fonte: Documentação Pedagógica Professora D – Criança de 3 a 4 anos (2014).

Para facilitar a leitura, repito a escrita da professora no quadro abaixo:

Quadro 8 - Exemplar de Documentação Pedagógica

Nossa pequena Paula, com seu jeitinho cativante, conquistou seu espaço na turma do Maternal.
Está sempre atenta aos acontecimentos da nossa rotina. Na sua chegada, se despede da mãe e vai de
mansinho entrando nas brincadeiras que estão acontecendo na nossa sala. Demonstra
amadurecimento para se alimentar sozinha, bem como fazer uso do banheiro, precisando de pouco
auxílio.

Paula adora brincar com as sucatas da nossa sala. Usa a imaginação para criar seus personagens e
interagir com seus amigos. Nas brincadeiras de casinha, geralmente quer ser a mamãe, pega uma
bolsa e diz que vai trabalhar. Em outras ocasiões ela é a filha e a ouvimos se dirigindo ao colega
como “mamãe, eu quero brincar”. Na hora do soninho, há dias em que adormece facilmente, já há
outros em que precisa de um carinho da professora para nanar. Tem o sono leve e geralmente é
uma das primeiras a acordar. Chama da cama “Oi profe!” e após lhe darmos saudação ela pede
“Posso ir no banheiro?”.

É uma menina muito meiga e carinhosa. Nos chama a atenção o cuidado e a organização que tem
com tudo que faz e com suas coisas também. Se avista sua mochila aberta, ela vai lá e fecha, por
exemplo. Quando seu familiar chega para buscá-la, Paula tem autonomia para pegar sua mochila
do ganchinho, guarda seu copinho e está pronta para ir. Antes disso, todos recebem o seu tchau
com cheirinho de “até amanhã!”. É muito bom acompanhar o seu crescimento na escola.

Fonte: Documentação Pedagógica Professora D – Criança de 3 a 4 anos (2014).


161

Estar sempre atenta, demonstrar amadurecimento, alimentar-se sozinha, precisar de


pouco auxílio, adorar brincar, criar, demonstrar autonomia com seus pertences – tudo isso
parece legitimar a construção e a afirmação da centralidade dos processos de aprendizagem da
criança. Vê-se um tom que marca a superação da dependência do adulto, aqui no caso, certa
independência do aluno em relação ao seu professor. A governamentalidade neoliberal pode
ser tomada aqui como grade de inteligibilidade para fazer a leitura desse cenário. Nos dois
primeiros excertos do quadro acima, fica visível que a criança age sobre seus desejos, sem
proibições ou limitações, ou seja, parece que o adulto faz agir, incentiva, impulsiona as
vontades manifestadas pela criança, para que ela própria possa seguir desejando sempre mais
e outras coisas. O terceiro excerto marca a autonomia da criança em relação à organização de
seus pertences e à dos colegas; não há submissão ou espera das ações do adulto, mas
iniciativas e liderança da própria criança, que gerencia e empreende a organização da sua
mochila, da sua ida ao banheiro, das suas preferências na alimentação, da entrada e saída da
escola, entre outras tarefas do cotidiano típicas da Educação Infantil. A chave para ser uma
criança protagonista.
Nesse universo escolar do nosso tempo, repleto de possibilidades de escolha,
“oportunidades são proporcionadas, escolhas são feitas, um estilo e uma orientação voltada
para o mundo social são instaurados”. (BALL, 2013, p. 149). O “interesse infantil” e o
“aprender a aprender” são compreendidos neste trabalho como eficientes estratégias de
governamento da infância contemporânea, produzindo a criança protagonista. As práticas da
documentação pedagógica (não apenas essas, mas tantas outras postas em ação na maquinaria
escolar da Educação Infantil) dão ênfase para a produção do protagonismo infantil, e seus
efeitos são a estetização da infância contemporânea.
Ao propor a estetização da infância, recorro novamente a Lipovetsky e Serroy, quando
indicam que o ideal estético que triunfa “é o de uma vida feita de prazeres, de novas
sensações, mas simultaneamente temos que dar prova de excelência, de eficiência, de
prudência”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 33). Intensificamos os imperativos de
saúde, eficácia, mobilidade, rapidez, desempenho, configurando uma ética estética
hipermoderna voltada para a beleza e para a competição. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015).
Com essa perspectiva, defendo a argumentação de que as práticas de registro
denominadas de documentação pedagógica atuam numa certa estetização da infância
contemporânea mediante duas estratégias de governo, denominadas por mim de interesse
infantil e aprender a aprender, as quais produzem uma nova roupagem para as crianças do
nosso tempo, atualmente tidas como protagonistas. Aprender a aprender permanentemente é
162

uma estratégia de governamento da infância que, assim como o interesse infantil, enfatiza a
autorregulação da criança desde tenra idade, sendo esta a produtora de aprendizagens.
Compreendo que as questões pontuadas acima me ajudam a visibilizar que a estratégia do
aprender a aprender também faz movimentar um certo tipo de estetização da infância,
colocando a condição de aprendente como condição de individualização. Como podemos
significar aprender a aprender para uma criança de um ano de vida? De dois anos de idade?
Faço tais perguntas, pois os referenciais italianos são, basicamente, voltados para a Educação
Infantil, nível que atende crianças de zero a cinco anos de idade.
Antes de finalizar esta seção, é interessante discutir aqui como o aprender a aprender
está conectado com os modos como os indivíduos são produzidos a partir das práticas de
governamentalidade neoliberal. Ao abordarem a “sociedade de aprendizagem”79, Popkewitz,
Olsson e Petersson defendem a ideia de que os modos de vida do cidadão dessa sociedade
implicam estar constantemente se colocando num lugar de aprendente e num processo
permanente de inovação.

Nós tratamos o aprendiz, numa Sociedade da Aprendizagem, como uma


fabricação do cosmopolitismo inacabado. A individualidade é tomada como
algo a ser apreendido por toda a vida. Trata-se de uma individualidade que
projeta a vida como uma contínua solução de problemas, que faz do
indivíduo um ser capaz de escolher e de colaborar em comunidades de
aprendentes num processo de permanente inovação. A única coisa sobre o
futuro não passível de ser escolhida é a própria escolha. (POPKEWITZ;
OLSSON; PETERSSON, 2009, p. 76).

A configuração das ações escolares não tem outra função senão tornar aqueles que
habitam a escola sujeitos de aprendizagem permanente, e os discursos pedagógicos que se
conectam com a documentação pedagógica fortalecem essa marca, uma vez que destacam
como princípios “tornar mais visível o processo de aprendizagem das crianças e o que elas
aprendem”. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 22). Num tempo em que todos são convidados
a aprender por si mesmos, a tarefa que se impõe é aprender a aprender. Conforme destacam
Saraiva e Veiga-Neto,

Um sujeito em permanente processo de aprendizagem, em permanente


reconfiguração de si, é o que se estaria pretendendo que a escola formasse a
partir dessa estratégia pedagógica. Entendemos que o aprender a aprender
significaria tornar-se empresário de si, colocando-se num processo de gestão
daquilo que, segundo Foucault (2008a), é chamado de capital humano pelo

79 Ao falar sobre a experiência escolar estendida e contínua, Augusto afirma que “estamos endereçados à escola
do nascimento à morte” (AUGUSTO, 2015, p. 11) e que a escola se tornou“um lugar familiar para toda a vida”.
(AUGUSTO, 2015, p. 12).
163

neoliberalismo. Gerir seu capital humano é buscar estratégias de multiplicá-


lo. À escola caberia ensinar essas técnicas de gestão. (SARAIVA; VEIGA-
NETO, 2009, p. 199).

Pensar sobre a relação entre o sujeito da aprendizagem permanente e a criança da


Educação Infantil pode ser uma possibilidade de compreender a defesa da plasticidade
infantil. Como vimos anteriormente, a plasticidade foi um conceito já traçado por Dewey que
encontra ressonâncias em alguns referenciais italianos. Plasticidade e flexibilidade são
atributos do sujeito contemporâneo, porém são noções diferenciadas por Noguera-Ramírez
(2011). Enquanto o sujeito flexível é capaz de adaptar-se e ajustar-se às mudanças do mundo,
o sujeito plástico não possui uma forma única, mas consegue mudar e ser diferente daquilo
que era antes, assumindo várias formas. O sujeito plástico é aquele que é capaz de ser outro,
diferente daquele que era anteriormente; um sujeito capaz de mudar a sua forma, pois não tem
uma forma única e definida previamente, mas uma forma que vai sempre se alterando, de
acordo com suas interações com o mundo.
A plasticidade torna-se uma característica fundamental para as crianças do nosso
tempo, pois é no sujeito plástico que ela encontrará meios para expor seus interesses para
aprender a aprender permanentemente. Tal plasticidade infantil possibilita às crianças não
mais se adaptarem aos espaços e tempos escolares atuando de forma dócil e obediente,
tampouco ajustarem seus corpos, movimentos e desejos no sentido de obrigação e proibição
(como nos sujeitos flexíveis). Mas a plasticidade infantil vai possibilitar que cada criança
possa agir de acordo com suas individualidades e orientar-se na condução de si própria, sendo
capaz de aprender e transformar-se permanentemente. Daí a relação da plasticidade infantil
com o sujeito infantil em permanente processo de aprendizagem. Sem a pretensão de estender
estudos detalhados sobre a plasticidade infantil, por ora faz-se interessante seguir pensando
sobre a noção de aprender a aprender na Contemporaneidade. Menciono a tese de Roberto
Rafael Dias da Silva, que, ao investigar a constituição da docência contemporânea no Ensino
Médio, também destacou a emergência da era do aprender a aprender, afirmando haver um
deslizamento do coletivo para o individual. Nas suas palavras,

Quanto à educação, parece-me que ocorre um deslocamento do caráter


coletivo dos processos escolares para os individuais. Seguindo a abordagem
de Hamilton (2002, p. 187), vê-se na atualidade um “revivescimento da
aprendizagem”, ou seja, o ensino (processo coletivo) perde a centralidade
nas relações pedagógicas, em detrimento da aprendizagem (processo
individual). Hamilton entende que, sob o movimento das chamadas
“economias do futuro, movidas a conhecimento” (HAMILTON, 2002, p.
90), os processos de escolaridade e empregabilidade passam a convergir. É
164

essa conversão, vinculada à centralidade das aprendizagens individuais, que


o pesquisador caracteriza como ponto de partida para o planejamento
contemporâneo da educação. Expressões como aprendizagem em rede,
cursos personalizados e ênfase nos processos povoam as práticas deste
tempo; entretanto, segundo Hamilton, um dos aspectos centrais na
escolarização da sociedade de aprendizagem é a noção de competência.
(SILVA, 2011, p. 77).

Também Noguera-Ramírez (2011) apresenta a tese de que, na virada do século XIX


para o século XX, passamos do ensino e da instrução para a aprendizagem; entretanto, o autor
avança no debate, pois nos mostra que o conceito de aprendizagem aqui é novo. Desde
Comenius, acreditava-se que por meio do ensino e da instrução todos pudessem aprender.
Conforme aponta Noguera-Ramírez (2011), ensinar e aprender, entre os séculos XVII e
XVIII, não eram vistos como opostos e ambos eram usados de forma indistinta. “Outra coisa
é a aprendizagem enquanto conceito relativo à capacidade dos organismos vivos de se adaptar
ao seu meio ambiente, transformando-se e transformando-o ao mesmo tempo”. (NOGUERA-
RAMÍREZ, 2011, p. 17). A Modernidade aciona o processo de constituição de uma sociedade
educativa, porém, a educabilidade não é entendida do mesmo jeito, não obedeceu à mesma
formação discursiva, nem foi constituída pelo mesmo tipo de práticas. (NOGUERA-
RAMÍREZ, 2011).
Além desses trabalhos, as contribuições de Gert Biesta, professor de Teoria e Política
Educacional na Universidade de Luxemburgo, em sua obra Para além da aprendizagem:
educação democrática para um futuro humano, são fundamentais aqui. O autor destaca que
algo se perdeu na mudança da linguagem da educação para a linguagem da aprendizagem,
visto que, nas últimas duas décadas, acompanhamos a ascensão e a onipresença do conceito
de aprendizagem e o declínio do conceito de educação. Ele defende que a cognição, o
conhecimento, “é apenas uma forma de se relacionar com o mundo natural e social, e não
necessariamente o mais frutífero, importante ou libertador”. (BIESTA, 2013, p. 31). “Ensinar
foi redefinido como apoiar ou facilitar a aprendizagem, assim como a educação é agora
frequentemente descrita como propiciadora de oportunidades ou experiências de
aprendizagem”. (BIESTA, 2013, p. 32).
Para Biesta (2013), enfatiza-se a necessidade de uma aprendizagem para a vida inteira
e a criação de uma sociedade aprendente. O autor aponta quatro tendências para essa
mudança: 1) A influência da psicologia da aprendizagem, com suas novas teorias
construtivistas e socioculturais de aprendizagem, as quais desviam “a atenção das atividades
dos professores para as atividades do estudante” (BIESTA, 2013, p. 34); 2) O impacto do pós-
165

modernismo sobre as teorias e práticas educacionais, no sentido de que os educadores podem


libertar e emancipar os alunos pela transmissão racional e pensamento crítico, restando a
aprendizagem; 3) A ampliação das pessoas envolvidas com diferentes tipos de formas de
aprendizagem (academias de ginástica, manuais de autoajuda, internet, vídeos, clubes
esportivos, etc.), ou seja, há uma “explosão silenciosa da aprendizagem [...] muito mais
individualista [...] muitos adultos aprendentes lutam hoje em dia consigo mesmos”. (BIESTA,
2013, p. 35); 4). Com a erosão do Estado de bem-estar social e o aparecimento da ideologia
de mercado neoliberal, há uma mudança na relação entre governo e cidadão – o Estado é visto
como provedor de serviços públicos, e o contribuinte é consumidor desses serviços, o que faz
surgir uma cultura de prestação de contas que resulta num rigoroso sistema de inspeção,
controle e protocolos educacionais mais prescritivos.
Aqui, segundo o referido autor, vemos entrar em jogo os pais vistos como
consumidores da educação de seus filhos, podendo, portanto, decidir o que deve ser oferecido
nas escolas – o consumidor é o aprendente (aprendente/consumidor), e o professor e a escola
são os provedores (educador/provedor); a educação, ou mais propriamente a aprendizagem,
deve ser o bem a ser vendido e consumido. “Essa é a lógica que existe por trás da ideia de que
as instituições educacionais e os educadores individuais devem ser flexíveis, que devem
responder às necessidades dos aprendentes”. (BIESTA, 2013, p. 38).
Tal lógica estaria voltada a pensar a educação como uma “transação econômica, como
um processo de satisfazer as necessidades do aprendente” (BIESTA, 2013, p. 41); estaria,
ainda, voltada à individualização (sujeito racional autônomo da educação moderna) e à
estrutura de pensamento neoliberal. Entretanto, destaca Biesta, entende-se mal o papel do
profissional da educação e do aprendente, uma vez que a competência profissional reside
justamente na definição das necessidades para educar. Como transação econômica, “a própria
aprendizagem tem de ser pintada como fácil, atraente e emocionante” (BIESTA, 2013, p. 42),
pois é entendida como aquisição de algo externo ao sujeito; ao adquiri-la, esta é tomada como
posse do sujeito.
Biesta (2013) indica duas objeções para colocar-se contra a linguagem da
aprendizagem. Em primeiro lugar, diz que essa nova linguagem facilita uma compreensão
econômica do processo da educação, em que o aprendente supostamente sabe o que ele ou ela
deseja e o provedor se apresenta simplesmente para satisfazer as necessidades do aprendente
(ou, em termos mais diretos: para satisfazer o cliente). (BIESTA, 2013). Em segundo, defende
que a nova linguagem da aprendizagem torna difícil propor questões de conteúdo e objetivo
da educação que não as formuladas e desejadas pelo cliente ou pelo mercado. Isso “representa
166

uma ameaça ao profissionalismo educacional e acaba solapando a deliberação democrática


sobre os objetivos da educação”. (BIESTA, 2013, p. 43).
Em termos gerais, é possível afirmar que o aprender a aprender se torna um
imperativo do nosso tempo, em que todos os indivíduos são convidados a aprender
permanentemente, desde tenra idade. Como ironiza Carvalho (2016), é preciso “aprender,
aprender, aprender para ir bem na vida – misteriosamente – ir bem na vida”. (CARVALHO,
2016, p. 8). Como podemos perceber na materialidade analisada, o aprender a aprender vai
muito além dos conteúdos e conhecimentos escolares. Esse aprender envolve atitudes,
valores, habilidades, enfim, o aprender também contempla questões comportamentais de cada
indivíduo que frequenta a escola, ampliando a própria noção de aprendizagem.
Ao tematizarem-se as práticas da documentação pedagógica, vemos que a expressão
aprender a aprender é recorrente em muitas das obras aqui analisadas, alicerçadas na imagem
da criança competente e protagonista, no interesse infantil, bem como na constituição de uma
nova docência (este último elemento será foco de debate do próximo capítulo). Para Noguera-
Ramírez, o “aprender a aprender é a divisa do governamento contemporâneo. Estamos sendo
compelidos a nos comportar como aprendizes permanentes, que moram em sociedades de
aprendizagem ou cidades educativas”. (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 230). Assim, pelas
práticas de registro da documentação pedagógica, podemos acompanhar um incentivo e uma
valorização ao aprender a aprender infantil desde muito cedo, o que podemos atrelar às
formas de condução da própria conduta como tecnologias de autorregulação e autorrealização,
cuja finalidade é fazer com que as crianças gerenciem suas vidas por elas mesmas.
Para compreender o aprender a aprender – indo além de considerá-lo como um dos
pilares da UNESCO para a educação do século XIX, mas como uma divisa do governamento
contemporâneo (NOGUERA-RAMÍREZ) e uma estratégia de governamento da infância–, é
interessante retornar a alguns escritos de John Dewey, considerando algumas condições de
emergência. O autor utiliza a expressão “aprender a aprender” em seu livro Democracia e
Educação (1916 é a data da primeira publicação). Nessa obra, aprendemos com Dewey que é
preciso despertar o desejo de aprender da criança; ele entende que a educação não é uma ação
direta, que educar não é transmitir conhecimento. Dewey (1976) reforça a centralidade do
processo educacional no aluno e critica a escola tradicional, com seus currículos fechados e
diretivos e propostas padronizadas. Nas palavras do autor,

Quanto aos estudantes, por exemplo, se tornam insensíveis às ideias e


quantos perdem o ímpeto por aprender, devido ao modo por que
experimentam o ato de aprender? Quantos admitem habilidades por meio de
167

exercícios de automatismo e assim limitam a capacidade de julgar e agir


inteligentemente em situações novas? Quantos acabam por associar o
processo de aprendizagem com algo de enfadonho e tedioso? Quantos
acharam o que aprenderam tão alheio às situações de vida fora da escola, que
nenhuma capacidade de controle puderam desenvolver para o comando da
vida? Quantos para sempre perderam o gosto pelos livros, associando-os a
supremo enfado e ficando “condicionados” para apenas lerem sumária e
ocasionalmente? (DEWEY, 1976, p. 15).

Aprender precisa fazer sentido para o indivíduo. A tarefa do professor, nesse contexto,
seria oferecer “experiências”. Somente uma experiência seria capaz de dar sentido ao
aprender. Na obra Experiência e educação, Dewey explica que “toda experiência modifica
quem a faz e por ela passa e a modificação afeta, quer o queiramos ou não, a qualidade das
experiências subsequentes, pois é outra, de algum modo, a pessoa que vai passar por essas
novas experiências”. (DEWEY, 1976, p. 25-26).
Para Dewey (1959, p. 153), o sujeito da experiência é aquele capaz de “aprender da
experiência”, ou seja, “fazer uma associação retrospectiva e prospectiva entre aquilo que
fazemos às coisas e àquilo que em consequência essas coisas nos fazem gozar ou sofrer”. É
pela experiência que somos capazes de aprender; “experimenta-se o mundo para se saber
como ele é; o que se sofrer em consequência torna-se instrução – isto é, a descoberta das
relações entre as coisas”. (DEWEY, 1959, p. 153). Se a experiência despertar curiosidade,
fortalecer a iniciativa e suscitar desejos e propósitos suficientemente intensos, ela será capaz
de “conduzir uma pessoa aonde for preciso no futuro, a continuidade funciona como um bem
diverso. Cada experiência é uma força em marcha. Seu valor não pode ser julgado se não na
base de, para que e para onde se move ela”. (DEWEY, 1976, p. 29).

O contato das crianças com outras pessoas participa, além disso, de um


caráter especial de continuidade. Praticamente não há, aliás, atividade
infantil que seja isolada. As suas atividades acham-se tão ligadas com as dos
outros, e o que os outros fazem as atinge tão profundamente e por tantos
lados [...]. É participando das ações dos outros, direta ou imaginariamente,
que a criança alcança experiências mais significativas e mais
compensadoras. (DEWEY, 1976, p. 107-108).

O aprender a aprender, para Dewey, coloca o aluno no centro do processo educativo,


fortalecendo a importância de ser ativo em todo esse processo, pois, como o autor afirma, “o
erro da educação tradicional não estava no fato de que os educadores tomavam a si a
responsabilidade de prover o meio. O erro estava no fato de não considerarem o outro fator na
criação da experiência, ou seja, as capacidades e os propósitos daqueles a que iam ensinar”.
(DEWEY, 1976, p. 39).
168

O aprender a aprender é entendido, nesse autor, como uma forma de superar o ensino
tradicional, que, segundo ele, não considerava as capacidades e os propósitos dos estudantes e
priorizava atividades de memorização e automação. Aprender a aprender seria uma estratégia
para que o sujeito seja ativo no seu processo de aprendizagem dos conhecimentos científicos e
necessários para a nova geração. Nesse sentido, parece-me que a aprendizagem vem sendo um
elemento central para organizar os processos educativos com as crianças, e essa discussão não
é nova na educação. No entanto, poderia afirmar que o debate acerca do aprender a aprender
na Contemporaneidade intensifica a centralidade na criança e ameniza a atuação do professor.
Isso pode ocasionar um esvaziamento de conhecimentos escolares e a destituição da
tarefa docente, que é o ensino – “cabe à escola ensinar e reivindicamos um espaço de
profissionalização da docência, ou seja, do ensino dos conhecimentos escolares”. (FABRIS;
TRAVERSINI, 2013, p. 37). O aprender a aprender da atualidade pode ocasionar certa
“fragilização dos critérios de seleção dos conhecimentos escolares” (SILVA, 2015, p. 75) e,
ao mesmo tempo, a “desintelectualização dos currículos e a desprofissionalização dos
professores”. (GARCIA, 2015, p. 57)80. Em relação aos processos escolares voltados às
crianças muito pequenas da Educação Infantil, o aprender a aprender pode ser perigoso, pois o
governamento da infância se dá na individualização máxima de cada criança, capaz de ser
protagonista de seus próprios processos educativos.
Tendo tudo isso em conta, o aprender a aprender e interesse infantil são mobilizados
como estratégias que produzem a criança protagonista na Educação Infantil por meio das
práticas de registro da documentação pedagógica (não apenas delas, mas de todo um conjunto
de engrenagens que compõem a maquinaria escolar). É sobre isso que tratarei na próxima
seção, a fim de mostrar a produtividade do protagonismo infantil.

3.3 Protagonismo infantil e governamento da infância contemporânea

O chamado protagonismo infantil emerge por meio dos referenciais italianos e vem,
paulatinamente, integrando a gramática brasileira da Educação Infantil nos últimos anos. As
crianças, a partir dos referenciais italianos, passam a ser vistas como protagonistas, ou seja,

80 Mesmo compreendendo que os três estudos assinalados neste parágrafo se instalam em níveis e esferas
diferentes, cercados pelos seus objetivos de estudos e pesquisas – o primeiro analisa os efeitos da sociedade
disciplinar para a sociedade de controle em relação aos conhecimentos escolares, a partir de entrevistas com
professores dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental; o segundo analisa as políticas curriculares para o Ensino
Médio no Rio Grande do Sul; o terceiro analisa as reformas curriculares para a formação inicial de professores–,
creio que eles auxiliam na sustentação daquilo que minhas análises me possibilitaram inferir: há um
esvaziamento de conhecimentos escolares no aprender a aprender contemporâneo.
169

“uma criança competente e curiosa, sociável e forte, e ativamente ocupada na criação da


experiência e na construção da identidade e do conhecimento”. (MOSS, 2009, p. 19). Uma
criança protagonista, para Rinaldi, tenta descobrir e entender as relações, conexões e
respostas, “elaborando suas próprias hipóteses e envolvendo outras crianças em suas
investigações”. (RINALDI, 2002, p. 79). Aldo Fortunati afirma que a meta da pedagogia da
primeira infância deveria ser a de “testemunhar o protagonismo das crianças”.
(FORTUNATI, 2014, p. 19). Ainda, as crianças:

[...] são os ‘protagonistas de seu processo de crescimento’. Possuem ‘uma formidável aptidão
natural para ser os protagonistas de seu crescimento e desenvolvimento, uma aptidão que elas
traduzem em curiosidade em relação ao mundo das coisas e das relações e na extraordinária
habilidade de estarem presentes de maneira construtiva dentro dos contextos de experiência em que
se acham envolvidos. (MOSS, 2009, p. 21, grifos meus).

As crianças referenciadas nas obras italianas adquirem gradativamente mais liberdade


e autonomia para fazerem as suas próprias escolhas na instituição escolar desde tenra idade
(estamos falando aqui de bebês, crianças muito pequenas), e o interesse infantil e o aprender
a aprender são tomados como estratégias de governamento da infância, atuando na
interioridade de cada sujeito infantil. É do interior desse indivíduo que se dá um
governamento muito mais efetivo e eficaz, capaz de regular menos, mas de forma mais sutil,
mais livre de coerções e restrições diretivas, por isso capaz de regular muito mais e com certa
economia da ação docente.
Nos referenciais italianos analisados, a criança precisa investir no seu interesse, na sua
liberdade de escolha, na sua autonomia e independência para empreender sua própria
aprendizagem na escola. E é justamente no investimento do sujeito autônomo, livre,
responsável pela sua própria educação, empreendedor e inovador, que encontro frestas para
pensar o protagonismo infantil celebrado nos referenciais italianos e nas escolas brasileiras
numa lógica bastante particular, que é o empreendedorismo infantil. O termo
empreendedorismo tem ampla significação (relação estritamente econômica, abertura de
pequenas empresas, negócios inovadores e políticas voltadas às economias emergentes, entre
outras). Neste trabalho, a expressão será utilizada como “um modo do indivíduo ser e estar no
mundo, a um estilo de vida a ser por ele adotado e constantemente exercitado”. (GADELHA,
2010, p. 130).
A criança protagonista, grosso modo, é aquele sujeito que tem interesses para com a
sua vida na escola. Isso faz parte do novo quadro no qual a criança do nosso tempo é
170

emoldurada. Trata-se de um governo da infância por meio da autorregulação da própria


criança, mediante a manifestação dos seus próprios interesses e das escolhas as quais ela é
incitada a fazer a todo o momento na escola. Na maior parte dos livros revisados neste estudo,
é possível destacar a importância e a necessidade de o adulto possibilitar e gerenciar inúmeras
oportunidades de escolhas às crianças. Dito de outro modo, não são os adultos que escolhem,
eles apenas oferecem oportunidades para que cada criança possa fazer a sua escolha a partir
do seu próprio interesse. Os espaços e materiais da escola infantil são cuidadosamente
organizados pelo professor para despertar o interesse infantil. Assim, as crianças passam a ser
vistas como protagonistas, e os adultos devem reconhecer “o direito de cada criança de ser
protagonista e elevar a curiosidade espontânea da criança ao nível mais alto”, afirmam
Dahlberg e Moss no prefácio de um dos livros. (RINALDI, 2012, p. 33).
Com Michel Foucault (2008b), entendemos que a liberdade é a condição de existência
para as relações de poder, sendo que as novas racionalidades de governo estão permeadas pela
liberdade de escolha de um cidadão livre, autônomo e empreendedor de si mesmo. Ao dizer
isso, pretendo olhar para as estratégias de governamento que operam nas práticas de registro
da documentação pedagógica e que, quando atuam no sujeito, ele mesmo passa a atuar sobre
si, sendo responsável pelas suas escolhas, ou seja, “os indivíduos podem ser governados
através de sua liberdade para escolher”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 104).
Para tornar mais explicativo o argumento que quero sustentar, incluo nesta discussão
um dos exemplares produzidos por uma professora que atua em Escola de Educação Infantil
do interior do Rio Grande do Sul.
171

Imagem 6 - Exemplar de Documentação Pedagógica

Fonte: Documentação Pedagógica Professora A – Criança de 1 a 2 anos (2014).

Os excertos que seguem, extraídos do material acima, procuram dar visibilidade para
algumas questões:

Quadro 9 - Exemplar de Documentação Pedagógica


Magali adora brincar na sala de aula com brinquedos de encaixe e sucatas. Na sucata, o pote de
amaciante é o seu preferido, na realidade é o seu “nenê”. Por muitas vezes ele foi seu companheiro
quando Magali chorava na escola. Quando dávamos para ela, pegava o pote e colocava-o no
carrinho ou na cadeirinha. No pátio adora brincar na casinha, nos balanços e em especial na caixa
de areia, colocando e tirando areia dos potes.

Magali adora música, seja para dançar ou cantar [...] cantamos e dramatizamos algumas músicas, e
Magali corre para fazer os gestos e já fala algumas palavras, como “joaninha, grilo, barata”, entre
outras. Na realidade a sua linguagem verbal vem se desenvolvendo muito, repetindo tudo o que
falamos.

Fonte: Documentação Pedagógica Professora A – Criança de 1 a 2 anos (2014, grifos meus).

Esse fragmento mostra uma professora atenta às preferências da criança, esmerando-se


em observar detalhes de suas escolhas (o pote de amaciante, a caixa de areia, as palavras que
sabe pronunciar), ao passo que a criança me pareceu livre para escolher os materiais com os
quais desejava brincar e aprender, dentre aqueles que foram disponibilizados pela professora.
172

Adora brincar na casinha, adora músicas e aprende muitas coisas no ambiente escolar. A
garantia da aprendizagem fica evidente, sendo visibilizada também na expressão “a sua
linguagem verbal vem se desenvolvendo muito”.
Ao visibilizarmos as aprendizagens das crianças, permeadas por muita alegria, prazer,
entusiasmo, motivação, envolvimento, acompanhamos uma criança que deseja aprender na
escola infantil, uma criança sempre ocupada, e as suas ações têm como objetivo fundamental
aprender. As conquistas individuais e constantes assinalam na criança a vontade de mostrar
afinidade com seu grupo de amigos e colegas aprendentes, mas não só isso, assinalam
também uma vontade de vencer a si mesma ou de ser melhor do que si mesma, a cada dia
letivo – um dever querer aprender permanentemente. Trata-se de uma condução orientada
para que cada criança se produza como um indivíduo aprendente e autônomo do adulto, que
vive a sua vida com alegria na escola, uma criança protagonista.
Parece-me que a individualidade da criança é marcada como “um tipo particular de
individualismo e um tipo particular de liberdade” (BALL, 2013, p. 149), destacando-se os
seus interesses num vasto universo de materiais e recursos pedagógicos que são
disponibilizados e organizados pelo professor, como “um eu que faz investimentos em
atividades de gosto legitimado e um eu tomado como investimento” (BALL, 2013, p. 148);
assim, vemos que a “aprendizagem ao longo da vida está começando cada vez mais cedo”.
(BALL, 2013, p. 148).
Vejamos outro exemplar de documentação pedagógica produzido por professora da
Educação Infantil (interessante chamar atenção também para as fotografias que acompanham
as escritas docentes).
173

Imagem 7 - Exemplar de Documentação Pedagógica

Fonte: Documentação Pedagógica Professora B – Criança de 2 a 3 anos (2014).

Quadro 10 - Exemplar de Documentação Pedagógica

Camila continua muito participativa em nossas propostas. Está brincando, se divertindo com seus
colegas, e aprendendo muito junto do grupo. Muitas vezes, ao observar um colega fazendo algo
que tenha achado legal, Camila costuma fazer o mesmo, dando boas gargalhadas e chamando a
professora ou auxiliar para observar-lhe.

Ao expressar-se oralmente em meio a nossas conversas de roda, buscamos fazer com que Camila
pronuncie as palavras em tom mais elevado para que seus colegas também a escutem. Em geral,
durante as brincadeiras mais espontâneas, Camila se manifesta e conversa mais com o grupo.

Fonte: Documentação Pedagógica Professora B – Criança de 2 a 3 anos (2014, grifos meus).

As imagens que compõem a escrita confirmam e apresentam crianças alegres,


atarefadas, com amigos ao lado (é notório que nenhuma fotografia revela crianças brigando,
chorando, fazendo birra; parece-me que todas precisam estar felizes). Inclusive, podemos
evidenciar abaixo a criança “fazendo pose” para ser fotografada pela professora. Isso desperta
minha atenção, no sentido de pensar sobre os modos de ser aluno na escola contemporânea
(sempre fotografado, filmado e gravado pelo professor). Embora sejam atitudes um tanto
“naturalizadas” socialmente, parece-me que, ao ser fotografada em uma determinada ação, a
174

criança percebe que isso interessa ao adulto e pode significar uma aprendizagem relevante na
escola. A criança passa a esperar pela ação da professora, que funciona como um gatilho para
suas aprendizagens e para a formação de hábitos e atitudes corretivas.
Talvez a criança passe a agir sobre si mesma, buscando novamente ações
significativas para serem capturadas pelo adulto, como se pudesse ser capaz de empreender
suas próprias ações. A fotografia, nesse caso, captura a minúcia de um momento, torna
pública uma satisfação imediata e valoriza a velocidade do tempo. Possibilita um olhar
particularizado, quase microfísico, levando o professor a conseguir capturar as escolhas das
crianças protagonistas, como se fosse possível controlar sem controlar; governar sem
governar; controlar sem exercer controle aparente, pois “governar será sempre aqui entendido
como agir de acordo com uma certa descrição”. (Ó, 2009, p. 25). Pois essa descrição realizada
vai funcionar para a professora, os colegas e as famílias reforçarem, aprimorarem e
incentivarem o que deve e o que não deve ser realizado pela criança.
Outro aspecto para o qual quero chamar atenção está na escrita dos professores nos
exemplares de documentação pedagógica até aqui expostos neste trabalho: a escrita no
gerúndio (explorando, fazendo, preparando, brincando, divertindo, aprendendo, entre outras).
Vejamos:

Quadro 11- Exemplar de Documentação Pedagógica


Na foto ao lado, Camila está explorando a tinta que fizemos de argila, carimbando suas mãos na
folha branca.
Acima, fazendo pose para foto, no alto do escorregador que temos no pátio da Educação
Infantil[...] Na foto ao lado, se preparando para escorregar no escorregador do pátio [...].

Fonte: Documentação Pedagógica Professora B – Criança de 2 a 3 anos (2014, grifos meus).

Na língua portuguesa, o gerúndio é uma forma verbal que indica uma ação contínua,
um processo verbal não-finalizado, ou seja, uma ação que está, esteve ou estará em
andamento. Assim, o gerúndio indica uma ação em curso, ou ainda, uma ação simultânea a
outra. Em relação às escritas nos exemplares cedidos pelos professores para fins de pesquisa,
é recorrente a escrita no gerúndio, o que reforça as ações das crianças acontecendo de forma
contínua – como se as crianças estivessem sempre em ação na escola, sempre em movimento;
a fotografia captura a ação em movimento, servindo para a reflexão sobre essas ações, no
sentido de tomada de consciência.
175

Ao admitir a hipótese de que os referenciais italianos inspiram e avivam um novo


lugar para a criança na escola e também na sociedade e nas relações com os adultos, é
importante evidenciar que a noção de currículo para atender essa criança precisa ser outra.
Assim, o currículo, não mais tomado como uma lista predeterminada de resultados ou de
conteúdos, é compreendido como um “quadro de oportunidades”. (FORTUNATI, 2014, p.
104). Um quadro de oportunidades tal como um cardápio colorido e multifacetado de
aprendizagens prazerosas, ou ainda, como um conjunto de mercadorias que a criança escolhe
para treinar suas habilidades e capacidades de escolha, seleção e desejos. Criam-se, então,
subjetividades que desde muito cedo aprendem a escolher, a selecionar, a desejar, a negociar.
Como referi acima, percebo articulação entre protagonismo e empreendedorismo
infantil. Procuro mostrar minha argumentação sustentando essa hipótese até o final desta
seção. Nas tramas da governamentalidade neoliberal, o protagonismo infantil tem afinação
com o empreendedorismo, uma vez que a criança protagonista é aquela empreendedora da sua
própria vida. O indivíduo empreendedor81 (e também o indivíduo protagonista) é aquele que
se preocupa constantemente com sua formação e educação, numa espécie de competição
consigo mesmo. Os empreendedores são “proativos, inovadores, inventivos, flexíveis, com
senso de oportunidade, com notável capacidade de promover mudanças”. (GADELHA, 2013,
p. 156). Poderia dizer que eles são concorrentes e competitivos, não apenas com os outros,
mas especialmente consigo mesmos82. “A iniciativa individual e o processo de ‘aprender a
aprender’ são muito mais enfatizados do que o trabalho em equipe e o ensino, e devem voltar-
se, sobretudo, para a inovação”. (GADELHA, 2013, p. 158).
A linguagem do empreendedorismo oferece modos de organizar as atividades por
meio das capacidades e competências de todos e de cada um, não só do meio empresarial, mas
também das escolas, universidades, família, hospitais, negócios, entre outros. “[...] o
empreendedorismo forja uma ligação entre as formas pelas quais somos governados pelos
outros e as formas pelas quais deveríamos nos governar”. (ROSE, 2011, p. 215). A pessoa

81 O sujeito empreendedor busca “maximizar sua ‘qualidade de vida’ através da habilidosa montagem de um
‘estilo de vida’ criado mediante o mundo dos bens”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 66). Em recente entrevista
publicada na revista IHU On-Line, nº 472, de 14-09-2015, o italiano Sandro Chignola afirma que é necessário
criar subjetividades nas quais o indivíduo se perceba como um livre empreendedor de si, em constante
competição e concorrência com os outros, numa lógica de governamentalidade neoliberal de liberdade.
82 Toda vez que assisto a alguns programas de televisão, especialmente àqueles denominados reality shows, que
mostram acontecimentos da vida “real”, com histórias de vidas “reais”, não apresentando personagens e ficção,
faço relações com a ideia que aqui desenvolvo sobre liberdade e empreendedorismo. Nesses programas, mesmo
contemplando assuntos diversos (concurso de maquiadores, Big Brother, moda e como usar roupas adequadas,
concurso de cozinheiros, nutrição e como se alimentar melhor, entre outros), fica visível o quanto cada
indivíduo, além de competir com os outros, precisa competir consigo mesmo, superando suas próprias metas e
sendo melhor do que foi anteriormente. Suas escolhas, feitas de uma forma bastante livre, são reguladas pelas
suas próprias ações.
176

deve tornar-se, ou melhor, querer tornar-se empresária de si mesma, fazendo suas escolhas
autônomas, a serviço de uma qualidade de vida que ela mesma projetou, tornando sua
existência diária relevante, ou seja, com o planejamento calculado de sua vida, formando uma
aliança com o progresso social.
Trata-se de investir em indivíduos que autogovernam sua vida, que são responsáveis
pelo seu próprio sucesso, ou seja, empreendedores de si mesmos. O empreendedorismo “[...]
refere-se a uma série de regras para a conduta da existência diária de uma pessoa: energia,
iniciativa, ambição, cálculo e responsabilidade pessoal. O self empreendedor fará de sua vida
um empreendimento”. (ROSE, 2011, p. 215). Gadelha (2013) compara o empreendedor ao
homem-empresa, ou “indivíduomicroempresa” (GADELHA, 2009), aquele indivíduo
preocupado com o acúmulo de pontos, como num sistema de milhagem, sempre em prol da
produtividade e sempre preso a avaliações (aqui também podemos citar os extensos currículos
que somos motivados a produzir). Acrescentando a essa discussão, comparo o empreendedor
à criança protagonista, aquela preocupada com o seu processo de crescimento e
desenvolvimento, sempre em prol da sua curiosidade e interesse, como microempresária de
suas aprendizagens.
Também Lemos (2015), ao analisar as práticas que a UNESCO vem efetuando no
Brasil, inseridas no contexto de intervenções diplomáticas e militares, numa política da
segurança que articula os poderes da soberania, disciplina e biopolítica, destaca que as
crianças estão pautadas “em estilos de vida empreendedores, desde cedo”, pois “já devem
aprender na escola, nos primeiros anos de vida, a serem produtivas, dóceis, obedientes,
submissas, investidoras e microempresárias em tudo o que fazem e pensam, sentem e vivem”.
(LEMOS, 2015, p. 124).
Empreendedorismo e educação conectam-se com a emergência da Teoria do Capital
Humano83, compreendida como uma grade de inteligibilidade para a compreensão da vida
social contemporânea, como destaca Gadelha (2009, p. 180): os indivíduos são produzidos a
partir de práticas de governamentalidade neoliberal, reinando uma “normatividade
econômico-empresarial” que fabrica um “indivíduo microempresa”. Ainda nas palavras do
autor,

83 A Teoria do Capital Humano (desenvolvida mediante pesquisas e análises da Escola de Chicago) adota o
mercado como princípio de inteligibilidade, tomando o comportamento e a conduta dos indivíduos como objeto
de cálculos racionais da relação custo-benefício de investimentos feitos pelos próprios indivíduos. O conjunto de
habilidades, capacidades e destrezas passa a fazer parte desse cálculo e, por meio de educação, formação e
qualificação técnica e profissional, o indivíduo tem retornos posteriores, a partir de fluxos de renda.
(GADELHA, 2010).
177

[...] os indivíduos e as coletividades são cada vez mais investidos por novas
tecnologias e mecanismos de governo que fazem de sua formação e de sua
educação, num sentido amplo, uma espécie de competição desenfreada, cujo
progresso se mede pelo acúmulo de pontos, como num esquema de
milhagem, traduzidos por índices de produtividade. E são avaliados de
acordo com os investimentos que são permanentemente induzidos a fazer
para valorizarem-se como microempresas num mercado cada vez mais
competitivo. O novo empreendedor já não pode mais ser caracterizado como
um passivo na contabilidade das grandes empresas e corporações; na
verdade, há quem diga que ele já não é mais nem mesmo um ativo, senão um
investidor, uma espécie de sócio que investe na empresa em que trabalha o
seu capital humano. (GADELHA, 2009, p. 180-181).

Ao impulsionar o debate da Teoria do Capital Humano e suas relações com a


educação, Gadelha compõe o “indivíduomicroempresa”, ou ainda, “Você S/A” (GADELHA,
2010) para caracterizar os modos como os indivíduos são produzidos a partir das práticas de
governamentalidade neoliberal norte-americanas. Posteriormente, Gadelha (2010) motiva-nos
a problematizar a governamentalidade neoliberal e a instituição de uma infância
empreendedora, com formas específicas de governo e controle das populações infantis. O
autor ajuda-nos a pensar em como o governamento da infância é estratégico para a
governamentalidade neoliberal de matiz norte-americana e, “através de uma forma de capital
configurado nas crianças, pode servir de meio estratégico ao governo dos indivíduos ou
coletividades adultos”. (GADELHA, 2010, p. 128).
Meu argumento é que essa discussão também faz sentido para a Educação Infantil,
mesmo que estejamos falando de crianças muito pequenas, mas que já exercitam suas vidas
para serem protagonistas, autônomas, independentes, plásticas, criativas, ativas, capazes de
fazer escolhas e tomar suas próprias decisões – características de um indivíduo empreendedor
–, como pudemos acompanhar na argumentação desenvolvida até aqui. E é justamente no
investimento no sujeito autônomo, livre, responsável pela sua própria educação,
empreendedor e inovador – que interessa para a governamentalidade neoliberal –, que
encontro articulação entre protagonismo e empreendedorismo infantil. A criança protagonista
é incitada a mostrar seus interesses e a gerir suas escolhas e aprendizagens na escola desde
tenra idade, sendo responsabilizada pelas suas habilidades e competências. Creio que a
imagem da criança protagonista está articulada com as práticas da documentação pedagógica,
disseminando uma cultura do empreendedorismo84 como um modo de vida aceitável e

84 Gadelha afirma que “Não tardaria, pois, que ela (a cultura do empreendedorismo) se voltasse para a
população infantil e, obviamente, para a educação das crianças. Entretanto, esse investimento mostra-se muito
mais complexo e ostensivo do que apenas fazer com que, como no passado, as crianças brinquem com o jogo
‘banco imobiliário”. (GADELHA, 2010, p. 133).
178

necessário no tempo atual, que ganha credibilidade social por conectar-se com as
transformações contemporâneas da governamentalidade.
Foi necessária toda uma nova produção estética para a criança: competência,
liberdade, protagonismo, autonomia são as palavras de ordem dessa estética. A estetização da
infância é possível na medida em que incluímos nessa categoria geracional outros modos de
ver e agir em relação às crianças, outros modos de a própria criança ver-se e agir sobre si
mesma. Acredito que reside no sujeito infantil do nosso tempo a lógica de pensar o mundo e
pensar a si mesmo a partir de racionalidades neoliberais, em que tecnologias de governamento
são mobilizadas de maneira a produzir um sujeito cada vez mais livre e interessado que
investe na sua qualificação e maximiza seu potencial produtivo, para que “talentos e
habilidades sejam encontrados e desenvolvidos ao máximo”. (BALL, 2013, p. 148). O que me
inquieta aqui é que estamos falando de crianças bastante pequenas.
Ao ser protagonista, a criança torna-se uma empresária de si mesma, e o “self deve
moldar sua vida através de atos de escolha”. (ROSE, 2011, p. 220). Dito de outra forma, a
criança da Educação Infantil deve reconhecer a si mesma como um tipo de indivíduo capaz de
derivar-se dos juízos normativos colocados em ação pelos educadores e toda uma rede de
atuação; a criança precisa estabelecer uma relação consigo mesma naquilo que ela é, pode ou
deseja ser; a criança regula a si mesma e é regulada pelo outro. Há uma responsabilização
incitada no sujeito infantil, uma vez que é ele quem precisa protagonizar seus processos de
aprendizagem, estabelecendo uma parceria com as lógicas de uma sociedade movida pela
lógica empresarial. Nesse contexto, as práticas de registro da documentação pedagógica
precisam garantir as liberdades de escolhas infantis para seguir operando enquanto tecnologia
de governamento dessa infância contemporânea.
Em relação ao professor, ao afastar-se de uma intervenção mais direta no ensino, ele
amplia sua atuação por meio do aprender a aprender e coloca todo o seu esforço na
organização do espaço escolar e no registro da documentação pedagógica. Pelo visto, as
formas de governamento são dissolvidas e espraiadas pela escola, uma vez que as práticas da
documentação pedagógica devem ser sistemáticas, com fluxo contínuo, entrando na rotina
cotidiana. Minimizamos as ações diretivas do ensino e maximizamos a liberdade individual
para que cada criança seja capaz de aprender a aprender por si mesma. Isso fica claro na
sugestão dada na epígrafe desta seção: “Jamais ensine a uma criança algo que ela possa
aprender sozinha”. (MALAGUZZI apud RINALDI, 2012, p. 229).
Das relações mais autoritárias e diretivas entre professor e aluno, da relação diretiva
entre ensino e aprendizagem, passamos para relações mais livres, plásticas, abertas,
179

transparentes, suaves, sedutoras, estéticas, evidenciadas e asseguradas pelas práticas da


documentação pedagógica. Ao exaltarmos as crianças como protagonistas, repletas de
interesses infantis e capazes de aprender a aprender, acionamos formas cada vez mais sutis e
refinadas de regular e conduzir a conduta de cada uma e de si mesma.
As relações de liberdade e autonomia são permeadas de poder, mas não um poder que
domina de forma vertical, nem um poder entendido como negativo, destruidor ou alienador,
mas um poder, tal como aprendemos com Michel Foucault, que atravessa todas as práticas
pelas quais os indivíduos são governados por outros ou por si mesmos, ou seja, um poder que
“trabalha através e não contra a subjetividade”. (ROSE, 2011, p. 211). Destaca Rose (2011)
que um bom governo é aquele baseado nas maneiras pelas quais os indivíduos governam a si
próprios ou o que governa por meio da liberdade:

[...] o self deve ser um ente subjetivo, ele deve aspirar à autonomia, lutar por
realização pessoal em sua vida terrena, interpretar sua realidade e destino
como uma questão de responsabilidade individual e encontrar significado na
existência moldando sua vida através de atos de escolha. (ROSE, 2011, p.
210).

Ou ainda: “as formas contemporâneas de poder foram construídas sobre a premissa de


liberdade, um tipo de liberdade controlada que encorajava ou exigia que os indivíduos
comparassem o que fizeram, o que conquistaram e o que eles eram com o que eles poderiam
ou deveriam ser”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 19). Precisamos produzir e consumir liberdade,
ou seja, a própria liberdade transforma-se em mais um objeto de consumo. A liberdade não
exclui o poder (e vice-versa), tampouco a liberdade é a negação do poder, mas um de seus
elementos mais essenciais. (ROSE, 2011). Ao abordar o self, Rose afirma que este é
“obrigado a ser livre”, “a interpretar todos os aspectos de sua vida como resultado de escolhas
realizadas dentre várias opções”. Ele segue dizendo que “cada atributo da pessoa deve ser
realizado por meio de decisões e justificado em termos de motivações, necessidades e
aspirações do self”. (ROSE, 2011, p. 141)85.
Nossas experiências contemporâneas são permeadas por liberdades de escolhas (e vejo
como isso está impregnado na fundamentação que sustenta as práticas da documentação
pedagógica). As formas de liberdade que praticamos hoje “estão intrinsecamente ligadas a um
regime de subjetivação no qual os sujeitos não são meramente ‘livres para escolher’, mas

85 Castelo Branco contribui nesse debate ao afirmar que “onde inexiste a prática de liberdade não há relações de
poder [...] a condição de exercício do poder é sempre e acima de tudo a liberdade. Sem liberdade [...] não há
possibilidade de relação ou exercício de poder”. (CASTELO BRANCO, 2013, p. 153). Onde não há liberdade,
segue descrevendo o autor, há relação autoritária e totalitária, pois “a liberdade é tanto condição para o exercício
do poder quanto da resistência a ele”. (CASTELO BRANCO, 2013, p. 154).
180

obrigados a serem livres, a entender e encenar suas vidas em termos de escolhas”. (ROSE,
2011, p. 32). Produzimos e regulamos indivíduos que são “livres para escolher”, dentro de
uma gama de possibilidades – portanto, nossas escolhas são “expressões de personalidade e
são refletidas de volta sobre o indivíduo que as fez. A prática da liberdade aparece somente
como a possibilidade de máxima autossatisfação do indivíduo ativo e autônomo” (ROSE,
2011, p. 32), uma vez que os “indivíduos ‘livres’ e espaços ‘privados’ podem ser
‘governados’ sem que se rompa sua autonomia formal”. (MILLER; ROSE, 2012, p. 58)86.
A partir desse conjunto de recorrências no material de análise, evidencia-se que as
práticas da documentação pedagógica se encontram conectadas com as lógicas e
racionalidades neoliberais; nutrem-se delas, nelas buscam seu sustento e alimento. Os modos
de compreender a infância, a pedagogia e a escola vêm provocando transformações na
sociedade, a ponto de estarmos assistindo à estetização refinada e alargada da infância
contemporânea.
Para concluir minha argumentação, vale contemplar aqui a ampliação que Lipovetsky
e Serroy (2015) fizeram a partir da ideia de “sociedade do espetáculo”, exposta por Guy
Debord (publicado em 1967 na França), expondo a sociedade do hiperespetáculo, ao
defenderem a tese de que o capitalismo do tipo artista vem provocando a estetização do
mundo. Para os autores, há oito eixos fundamentais que constituem essa nova sociedade do
hiperespetáculo.
O primeiro deles é a generalização da televisão, que, com um número crescente de
redes, canais, plataformas, e mediante uma profusão de imagens, pode ser vista em qualquer
lugar e a qualquer momento. A televisão torna-se um “centro multimídia de lazer interativo
capaz de proporcionar uma multidão de serviços [...] que abre um mundo ilimitado de
imagens e de programas”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 265). O segundo eixo envolve
as profundas mudanças nos modos de consumo articuladas com a televisão, ou seja, a TV
“cedeu lugar a um consumo individualista, desunificado, self-service [...] o consumidor se
torna um programador autônomo e personalizado”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 266).
O terceiro eixo contempla a transversalidade e a hibridização entre os domínios econômicos e
culturais, entre comércio, moda, arte, divertimento e show business. O quarto eixo refere-se
ao público, que paulatinamente “se quer e se pensa ator, adota atitudes destinadas às mídias

86 “Mesmo em um momento em que se valoriza a liberdade e a criatividade dos pequenos entre os muros
escolares, não se abre mão do governo dos corpos e das mentes para dar a justa medida da liberdade desse
homem a ser transformado e formatado. Nesse jogo de liberdades medidas se produz algo diverso da liberdade,
que é do âmbito das desmedidas, se expande no mais ordinário dos atos o seu contrário, a busca paranoica por
segurança”. (AUGUSTO, 2015, p. 11).
181

que o filmam. Hoje, os indivíduos se pensam em termos de imagens, e eles próprios se põem
em cena nas redes sociais ou diante das câmeras”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 266).
Este eixo, bastante interessante para as discussões deste trabalho, mostra o exemplo dos
esportistas, que não são filmados apenas nos estádios, mas eles próprios “mudam sua maneira
de ser em função da câmera que os filma” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 266), ou o
exemplo dos reality shows. Ou seja, não há nada de passividade e manipulação na mídia, “os
indivíduos fabricam e difundem em massa imagens, pensam em função da imagem, se
expressam e dirigem um olhar reflexivo para o mundo das imagens, agem e se mostram em
função da imagem de si que querem ver projetada”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.
267). O quinto eixo envolve a lógica da realidade aumentada, ou seja, da ilusão e do engano
em representar algo que os homens não vivem em sua realidade, passamos a gerar
permanentemente vivências, tais como viagens, finais de semana insólitos, hotéis exclusivos,
entre outros exemplos citados pelos autores. Já o sexto eixo implica a tarefa de produzir uma
avalanche de imagens para provocar emoções e estímulos imediatos nos consumidores. Todos
os dias, é preciso “encontrar frases de efeito, construir acontecimentos capazes de mobilizar
as mídias e fazer imagem”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 268). O sétimo eixo seria a
estrelização generalizada, ou seja, das grandes estrelas míticas do cinema, passamos a
estrelizar ícones mais ou menos mundializados: políticos, esportistas, homens de negócio,
princesas, gente da moda. Por fim, o oitavo eixo envolve a espetacularização do divertimento,
do sonho, do prazer imediato dos consumidores, ou seja, a sociedade do hiperespetáculo “trata
todos os temas na forma de divertimento, que transforma todas as coisas – a cultura, a
informação, a política – em espetáculo de show business, visando a prazeres e emoções a
serem incessantemente renovados”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 270).
Alguns eixos expostos pelos autores interessam-me para concluir a argumentação em
torno da estetização da infância contemporânea. Ao espetacularizarmos a vida,
espetacularizamos a infância contemporânea: a criança protagonista torna-se uma
programadora autônoma de suas ações na escola, na lógica do aprender a aprender; ela age e
se mostra em função daquilo que sabe nas fotografias, nas filmagens, nos registros de si, que
quer ver projetados e publicizados na documentação pedagógica; a escola e os professores,
por sua vez, apresentam um cardápio self-service de opções para aprendizagem, com variados
recursos pedagógicos que captam o interesse infantil. Uma nova estética para a infância. Boa?
Ruim? Com Michel Foucault, aprendemos que as práticas não são boas ou ruins em si, mas
são perigosas.
182

CAPÍTULO 4
A PRODUÇÃO DO PROFESSOR DESIGNER

Ao interrogar as práticas de registro docente na produção de uma infância


contemporânea bastante particular, percebo que a docência contemporânea também vem
sendo produzida de outros modos. É nesse contexto que foi possível olhar, além da infância,
também a docência87. Com isso, quero dizer que, ao compor o cenário dos estudos da infância
e investigar principalmente as práticas de registro docente sobre as crianças que frequentam a
Educação Infantil, refinadas no nosso tempo nas práticas de registro da documentação
pedagógica, deparo-me com um modo bastante específico, um tipo muito particular de
praticar a profissão docente – o que venho chamando nesta Tese de design da docência. O
design da docência é aqui compreendido como efeito das práticas de registro da
documentação pedagógica, as quais colocam em ação uma série de estratégias bastante sutis e
refinadas, ligadas às tramas da governamentalidade neoliberal. Apresento as estratégias de
gerenciamento de oportunidades e inovação docente, que operam na produção de um
professor do tipo designer.
Procuro mostrar, nas próximas seções, que, ao analisar as práticas de registro da
documentação pedagógica, percebo a centralidade dos processos educacionais na criança,
descentralizando as ações do professor. Esta descentralização não exclui o professor do
processo educacional; contudo, faz movimentar outros modos de ser docente, esmaecendo o
ensino em detrimento da aprendizagem. Como vimos anteriormente, os estudos de Biesta
(2013; 2016) e de Noguera-Ramírez (2009; 2011) mostram a passagem de uma linguagem da
educação ou de uma sociedade do ensino para a linguagem da aprendizagem ou da sociedade
de aprendizagem. Tais estudos possibilitam-me seguir com minhas análises, sustentando os
argumentos de que, também na Educação Infantil, ou seja, nos processos educativos
envolvendo crianças de zero a cinco anos de idade, tal mudança de ênfase é percebida:
esmaecemos o ensino e celebramos a aprendizagem. A chave para o entendimento desse
argumento está na movimentação de duas estratégias que, neste trabalho, denomino de
gerenciamento de oportunidades e inovação docente, as quais darão ênfase para a produção

87 Mesmo recebendo indicações de alguns dos componentes da Banca Examinadora de Qualificação do Projeto
de Tese para investir na infância, deixando a questão da docência para ser investida em outros trabalhos teórico-
acadêmicos, foi possível analisar, em conjunto com a Professora Orientadora desta Tese, bem como com os
colegas do grupo de orientação, que a emergência das práticas de registro opera na constituição de outros modos
de ser docente nas escolas de Educação Infantil que, articulados com a estetização da infância, produzem o
design da docência contemporânea. A documentação pedagógica faz parte de uma maquinaria e aciona
diferentes sujeitos (crianças, professores, famílias), e por isso é que se torna necessária e produtiva tal análise.
183

de um professor do tipo designer. Assim, no meu ponto de vista, há possibilidades de


articulação analítica entre a estetização da infância e o design da docência. É isso que procuro
argumentar neste capítulo final da Tese.
É sabido que muitas pesquisas desenvolvidas nesta linha de pesquisa no Doutorado em
Educação da Unisinos já trataram de mostrar os deslocamentos da docência contemporânea. A
pesquisa intitulada A relação universidade e educação básica na produção da docência
contemporânea (FABRIS, 2011), cujo objetivo foi conhecer as práticas de iniciação à
docência e as características da docência desenvolvidas no Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (Pibid), possibilitou a produção de muitos materiais de pesquisa.
Também destaco a Tese de Doutorado em Educação de Roberto Rafael Dias da Silva (2011),
que, ao investigar a constituição da docência no Ensino Médio, nos apresenta a inovação
como investimento pedagógico permanente e a interatividade como modo operante da
docência. A Tese de Doutorado em Educação de Sandra Oliveira (2015) investigou as práticas
de iniciação à docência no Pibid, apresentando uma docência virtuosa que conjuga os modos
comprometida, tática e interventora, produzida por uma matriz de experiência. A Tese de
Doutorado em Educação de Cristiane Fensterseifer Brodbeck (2015) analisou a constituição
da docência em ciências nas práticas de iniciação à docência do Pibid, defendendo a
emergência de uma Pedagogia da Redenção, que apresenta marcas das pedagogias críticas e
psicológicas, produzindo futuros professores que são subjetivados como superbolsistas e que
se lançam numa batalha de redenção da escola. Outras teses e trabalhos investigativos tomam
as docências contemporâneas como foco central de suas análises.
Antes de seguir adiante, proponho uma breve incursão pela palavra design: termo
original em inglês, significa “intenção, propósito, arranjo de elementos num dado padrão
artístico”, vem do latim designare, que significa “marcar, indicar”, e do francês designer,
“designar”, desenhar”. Design, segundo o Dicionário Houaiss (2002), é a “concepção de um
produto (máquina, utensílio, mobiliário, embalagem, publicação, etc.), especialmente no que
se refere à sua forma física e funcionalidade”.
Para a pedagoga e pesquisadora Andrea Filatro, design seria o “resultado de um
processo ou atividade (um produto), em termos de forma e funcionalidade, com propósitos e
intenções claramente definidos”. (FILATRO, 2007, p. 57). Design instrucional seria “a ação
intencional de ensino, que envolve o planejamento, o desenvolvimento e a utilização de
métodos, técnicas, atividades, materiais, eventos e produtos educacionais em situações
didáticas específicas, a fim de facilitar a aprendizagem humana”. (FILATRO, 2007, p. 65). O
professor, considerado um designer instrucional, pode utilizar o design instrucional como
184

processo para preparar e planejar suas aulas, devendo ser especialista em tecnologia
educacional, especialmente em situação educacional on-line e de educação a distância.
Retomando Lipovetsky e Serroy (2015), podemos perceber que o design está
articulado com a estetização da vida nas tramas do capitalismo artista. Nas palavras dos
próprios autores,

Os imperativos do estilo, da beleza, do espetáculo adquiriram tamanha


importância nos mercados de consumo, transformaram a tal ponto a
elaboração dos objetos e dos serviços, as formas da comunicação, da
distribuição e do consumo, que se torna difícil não reconhecer o advento de
um verdadeiro ‘modo de produção estético’ que hoje alcançou a maioridade.
(LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 40).

Em um cenário de aceleração e de estetização da vida cotidiana, vemos surgir uma


cultura de pressa e urgência nos momentos vividos e uma corrida obsessiva em busca de
resultados, todos enraizados no universo do mercado. Para os autores, estamos vivendo numa
estética da velocidade e do imediatismo, num tempo hipermoderno, em que o “design
incorporou hoje as características da obra de arte (raridade, distribuição em galerias, trabalho
sistemático de comunicação-promoção)”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 240). Nessa
ótica, o design artista ingressa em todos os sentidos da vida, desde a produção de uma
mercadoria e sua apresentação até a escolha dos produtos, a organização das vitrines das lojas,
as marcas escolhidas, a arquitetura dos espaços, as relações entre as pessoas, tudo isso como
expressão máxima de individualização. O design nas tramas da hipermodernidade acentua a
individualização, pois possibilita o uso personificado de objetos de comunicação, objetos
musicais, objetos esportivos, entre outros exemplos. Os modos de vida transformam-se de
maneira individualizada, e “[...] deve-se reconhecer nele (no design) uma força criadora de
novas práticas individuais e sociais, de novas estéticas do corpo, de novas sensações e
percepções, de novas aspirações relativas ao entorno doméstico”. (LIPOVETSKY; SERROY,
2015, p. 256).
Acompanhada dos estudos de Lipovetsky e Serroy, tomo a expressão design como a
possibilidade de “estender do domínio da racionalidade estética a todas as coisas, a todas as
experiências”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 253). Dito de outro modo, o design é
compreendido como uma forma de estetização operacional do mundo, uma razão
performática de entender a vida cotidiana, “depois do cálculo racional dos signos e das
formas, a engenharia dos sentidos, o gerenciamento das emoções”. (LIPOVETSKY;
SERROY, 2015, p. 253-254). Cabe reforçar aqui a ideia de que o estudo desenvolvido por
185

Lipovetsky e Serroy não teve como foco de análise a escola, os processos de escolarização ou
as práticas pedagógicas, mas as questões sociais mais amplas, especialmente aquelas voltadas
ao capitalismo e à economia. Entretanto, procuro fazer um exercício analítico trazendo tais
problematizações para tensionar a docência no âmbito da Educação Infantil no tempo
presente.
A partir deste exercício de pensamento, encontro frestas para olhar a docência na
lógica do design. Design como forma de oferecer situações às crianças visando à
aprendizagem; design como modo de dar visibilidade às aprendizagens infantis na escola;
design como propósito de atuação; enfim, design como modo de praticar a vida docente na
escola contemporânea. Passo a mostrar as recorrências que me permitem denominar o design
da docência enquanto efeito das práticas de registro da documentação pedagógica, na qual o
“gerenciamento de oportunidades” e a “inovação docente” são algumas das estratégias
mobilizadas no funcionamento dessa tecnologia, que produz o professor designer na
Educação Infantil.

4.1 “Criança protagonista exige professora bem dotada”: o gerenciamento de


oportunidades

Essa visão otimista da criança que é autônoma, capaz de estabelecer longas


‘conversações’ com os adultos e com outras crianças, que nasce com
infinitas possibilidades de construir pensamentos, ideias, interrogações e
tentativas de dar respostas, capaz de observar as coisas e reconstruí-las,
exigiu uma professora também ‘dotada’”. (FARIA, 2007, p. 283, grifos
meus).

Ser uma pessoa dotada, segundo alguns dicionários, significa ser alguém que recebeu
dote ou dotação; que possui alguns dotes; prendado; ornado. Um dote significa aquilo que a
mulher trazia ao matrimônio, bens próprios e exclusivos da mulher casada, ou os bens que a
freira levava ao convento; boas qualidades; méritos; dons naturais; merecimento. Uma
professora “bem dotada” – não estranhamos a vinculação da expressão com a figura da
mulher ou da freira numa discussão marcada pela Educação Infantil, em que a imagem
feminina e materna foi, historicamente, concebida como a ideal para educar as crianças
pequenas em instituições específicas, marcando a feminização do magistério88. A professora
bem dotada tem boas qualidades, méritos e dons quase naturais para trabalhar com crianças,

88 Vale recorrer à Tese de Doutorado em Educação da professora Dra. Elí Henn Fabris, intitulada Em cartaz: o
cinema brasileiro produzindo sentidos sobre a escola e o trabalho docente (2005), para acompanhar uma análise
da feminização do magistério na cultura brasileira.
186

desde que siga alguns preceitos, definidos como importantes no projeto educativo de grande
parte das escolas italianas que compõem o conjunto de obras aqui analisadas, especialmente
aquelas envolvendo o projeto de Reggio Emilia. Pode-se invocar Rinaldi (2002) para
corroborar a ideia destacada acima, dizendo que “uma imagem forte da criança também é
uma imagem forte do professor e da escola”. (RINALDI, 2002, p. 78).
Como campo discursivo, a feminização do magistério não se refere apenas a uma
maior quantidade de mulheres atuando como professoras, mas também ao longo processo pelo
qual a docência passou a ser uma profissão basicamente feminina. Mesmo quando realizada
por homens, a docência é uma profissão feminina. Os estudos de Fabris (2005), ao analisar a
feminização sob o olhar do cinema brasileiro, mostram como a representação de mulher
professora mantém ou desloca as representações hegemônicas do que se tem construído sobre
a mulher professora na cultura. A autora constata, nesse estudo, que há uma naturalização da
feminização do magistério quando a docência é desenvolvida com crianças. O discurso do
positivismo, aliado à religiosidade e ao discurso da Psicologia, que enfatizava o amor materno
na relação familiar, contribuiu “para que a mulher ocupasse o espaço na docência”. (FABRIS,
2005, p. 114).
A análise atenta aos referenciais italianos possibilitou-me encontrar vários outros
preceitos sobre o que é ser uma professora de crianças. Resolvi, assim, configurar alguns
desses preceitos a partir da leitura que fiz dos diferentes referenciais italianos, especialmente
quando estes tratavam das funções docentes em relação às práticas da documentação
pedagógica.

Quadro 12 - Preceitos para ser uma professora bem dotada


1. Provocar oportunidades de descobertas às crianças, “através de uma espécie de facilitação
alerta e inspirada e de estimulação do diálogo, de ação conjunta e da co-construção do conhecimento
pela criança”. (EDWARDS, 1999, p. 161, grifos meus).

2. Prestar atenção constantemente à atividade das crianças, pois quando elas trabalham em um
projeto do seu interesse, “encontrarão naturalmente os problemas e questões que desejarão
investigar”. (EDWARDS, 1999, p. 164, grifos meus).

3. Estar presente sem ser uma intrusa, a fim de manter melhor a dinâmica cognitiva e social das
crianças. Deve envolver-se para reviver uma situação, “quando as crianças estão perdendo o
interesse, porque o mapa cognitivo que está sendo construído está além ou abaixo das capacidades
atuais delas”. (RINALDI, 1999, p. 117, grifos meus).

Continua.
187

4. Permanecer sempre uma observadora atenta e uma pesquisadora, levando as suas observações
e fitas transcritas aos colegas, para a reflexão em grupo. (RINALDI, 1999, p. 117, grifos meus).

5. Ter capacidade para entender as mensagens que as crianças transmitem, pois elas têm o direito
de serem ouvidas e têm coisas importantes para dizer. Assim, deve libertar-se das “práticas
anteriormente usadas em que apenas eles tomavam decisões sobre o que, onde e como as crianças
aprendiam”. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 27, grifos meus).

6. Ficar sentada e observar mais; não deve colocar muitas frustrações às crianças. Sua presença
é estruturante na oferta de espaços, ou seja, deve organizar as oportunidades de apoio às
experiências das crianças. Deve estar sempre presente, sendo uma observadora incansável e
coprotagonista (FORTUNATI, 2014). Evitar frustrações inúteis e intervir prestando ajuda quando
a criança dá mostras de não estar pronta para agir sozinha. (FORTUNATI, 2009, p. 69, grifos
meus).

7. Ser uma tutoring (apoiar a experiência da criança) e uma scaffolding (oferecer estrutura e apoio
como “esquemas de ação ou de interpretação para solicitar sua aprendizagem”) e utilizar a
estratégia de modeling (interpretar as intenções da criança e, a seguir, fazer uma demonstração de
como se pode realizar essas intenções). (FORTUNATI, 2009, p. 74-75, grifos meus).

8. Ser uma pessoa que “consegue conviver com a incerteza, assumindo que ela seja a
responsabilidade da escolha e condição indispensável para experimentar, discutir, refletir e mudar,
concentrando-se nos processos da experiência e não nos resultados, e mantendo no trabalho o
prazer de espanto e da maravilha”. (FORTUNATI, 2014, p. 23, grifos meus).

9. Monitorar “através da observação e da documentação, a relação entre as crianças e o


ambiente organizado, de modo a propor ajustes constantes que acompanham a evolução das
relações individuais e coletivas”. (FORTUNATI, 2014, p. 64, grifos meus).

10. Ser uma designer para capturar a ação nos projetos e ajudar o novo leitor a discernir sobre as
ações implicadas no design (desenhos funcionam como design). (EDWARDS, GANDINI,
FORMAN, 2016, grifos meus).

Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).

Poderia listar outros preceitos, porém, procurei resumi-los em 10 itens – em 10


mandamentos – de como tornar-se uma professora bem dotada, uma gerenciadora de
oportunidades, diante de uma imagem de criança protagonista. Esses 10 preceitos auxiliam-
me a explicar o funcionamento da estratégia de “gerenciamento de oportunidades” na
produção de um design da docência. Vale destacar novamente que o objetivo não está em
apontar fraquezas no referencial italiano, mas antes posicioná-lo em um campo de forças onde
outros saberes e poderes estão sendo ressignificados na constituição de outros modos de ser
docente, conferindo à docência novos arranjos sociais. Nesse sentido, as práticas de registro
da documentação pedagógica, além de outras engrenagens postas em funcionamento pela
188

maquinaria escolar, operam como uma tecnologia capaz de movimentar esses novos arranjos
docentes.
A documentação pedagógica aparece relacionada com a possibilidade de o professor
desenvolver um bom trabalho, além de construir a memória da escola, como podemos
evidenciar no depoimento da educadora reggiana Laura Rubizzi, ao ser entrevistada por Lella
Gandini:

Em minha história pessoal, creio que a mudança ocorreu quando começamos a enfocar a evolução
do processo de aprendizagem das crianças, por meio da documentação. [...] Sempre que professores
se avaliam revisitando a documentação, eles aprendem algo mais do que haviam aprendido com as
crianças. Ademais, revisitar, com outros colegas, as análises da experiência e a troca de ideias pode
levar a uma avaliação valiosa. (GANDINI, 2012, p. 78).

Nos referenciais italianos, é possível perceber a indicação de que as práticas de


documentação pedagógica trazem benefícios à docência, qualificam o trabalho do professor,
mantêm a atenção e a reflexão docente e asseguram uma “avaliação valiosa”, como podemos
perceber no conjunto de excertos destacados, organizados no quadro abaixo:

Quadro 13 - Benefícios da documentação pedagógica para o professor

[...] a documentação é para Malaguzzi, ao mesmo tempo, a estratégia ética para dar voz para as
crianças, para a infância e para devolver uma imagem pública para a cidade (HOYUELOS, 2006, p.
197). [...] Através da documentação se revela uma escola que quer argumentar seu trabalho além
das palavras, uma escola que pensa, que reflete, que aprende no caminhar; uma escola que sabe
colocar-se em discussão pública, capaz de escutar e de dialogar com democracia, construindo
processos de confiança recíproca e de legitimidade pública. (HOYUELOS, 2006, p. 208).

A documentação sistemática permite que cada professor se torne um produtor de pesquisas, isto é,
alguém que gera novas ideias sobre o currículo e sobre a aprendizagem, em vez de ser meramente
um ‘consumidor da certeza e da tradição’. (EDWARDS, 1999. p. 164, grifos meus).

[...] um processo cooperativo que ajuda os professores a escutar e observar as crianças com que
trabalham, possibilitando, assim, a construção de experiências significativas com elas. A
documentação, interpretada e reinterpretada junto com outros educadores e crianças, oferece a
opção de esboçar roteiros de ação que não são construídos arbitrariamente, mas que respeitam e
levam em consideração todas as pessoas envolvidas. O processo de documentar é capaz de ampliar
a compreensão dos conceitos e das teorias sobre as crianças com a convicção de que, tanto para as
crianças quanto os adultos, a documentação serve de apoio aos seus esforços para entender e para
se fazer entender. (GANDINI; GOLDHABER, 2002, p. 150).

Se não nos comunicássemos, se não documentássemos, seria como se as coisas que fazemos como
professores e as coisas que as crianças fazem não existissem, ou existiriam por um tempo breve e
apenas dentro do contexto cultural de sua escola. (GANDINI, 2012, p. 77, grifos meus).
Continua.
189

A tarefa do educador é criar um contexto em que a curiosidade, as teorias e a pesquisa das crianças
sejam legitimadas e ouvidas, um contexto em que as crianças se sintam confortáveis e confiantes,
motivadas e respeitadas em seus processos e percursos cognitivos e existenciais. Um contexto em
que o bem-estar seja a expressão dominante, um contexto de escuta em diversos níveis, cheio de
emoção e entusiasmo. O papel do educador (e da equipe de educadores) também inclui o constante
levantamento de hipóteses acerca dos desenvolvimentos possíveis para o projeto educativo, e isso
se vincula intimamente a outros aspectos que caracterizam o trabalho do educador: escuta,
observação, documentação einterpretação. (RINALDI, 2012, p. 228, grifos meus).

Por exemplo, quando os professores documentam o trabalho das crianças e revisam esses
documentos com elas, o resultado é uma mudança na imagem do seu papel como professor,
passando do ensino da matéria para o estudo e a aprendizagem com as crianças. (FORMAN;
FYFE, 2016, p. 250, grifos meus).

Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).

Os preceitos listados acima, sugerindo modos de ser professor junto às crianças, bem
como o quadro apresentado, contemplando os benefícios de inserir a documentação
pedagógica na atuação docente, mostram a ênfase numa docência voltada para o
gerenciamento de oportunidades às crianças. O professor gerenciador de oportunidades não
exclui a sua ação e o seu protagonismo, uma vez que é ele quem constitui os espaços de
aprendizagem. Entretanto, é notório que há uma inclinação para a descentralização da ação
docente, passando de ações mais diretivas para a função de gerenciador de oportunidades, tal
como podemos observar nos materiais analisados nos quadros acima: provocar oportunidades
de descobertas para as crianças; prestar atenção constantemente à atividade das crianças; estar
presente sem ser um intruso; ter capacidade para entender as mensagens que as crianças
transmitem; ficar sentado e observar mais; não colocar frustrações às crianças; estruturar a
oferta de espaços, ou seja, organizar as oportunidades de apoio às experiências das crianças;
estar sempre presente, sendo um observador incansável e coprotagonista; ser tutoring (tutora),
scaffolding (andaime) e modeling (modelagem); conseguir conviver com a incerteza;
monitorar as crianças pela observação e documentação; enfim, ser um professor designer.
Há um redirecionamento nas funções docentes, articuladas com a produção da criança
protagonista. As práticas da documentação, entendidas como um trunfo para qualificação da
profissão docente, são capazes de “reinterpretar o papel do adulto e de restituí-lo a uma
dimensão mais indireta de protagonismo”. (FORTUNATI, 2009, p. 61, grifos meus).
Derivado do latim gerens (aquele que administra) e do verbo gerere (administrar,
cuidar de uma atividade), surge o verbo gerir, do qual deriva o verbo gerenciar. Gerenciar
190

tem como definição geral realizar a organização, planejamento e execução de atividades –


atividades relativas ao gerente, administrador ou líder; um gerente organiza o ambiente de
trabalho, toma decisões e direciona o trabalho dos membros do grupo. Ao pesquisar mais
sobre o termo gerenciamento, vejo que está ligado ao gerenciamento de empresas e à
administração, à capacidade de gerir e distribuir tarefas; ao mesmo tempo, está ligado
intensamente ao sistema de computação: gerenciar programas de computador, ter a
capacidade de administrar diferentes tarefas e recursos tecnológicos simultaneamente.
Neste trabalho, ao utilizar a expressão gerenciamento de oportunidades, pretendo
marcar uma nova posição de docência, não mais aquela que mediava as relações do aluno
com o conhecimento, tal como destacavam as pedagogias construtivistas, mas a de um
professor que distribui escolhas, a partir de um cardápio de oportunidades postas na
organização do espaço escolar. A expressão professor gerenciador de oportunidades é
pensada e proposta neste trabalho investigativo como um tipo particular de posição de sujeito
na sociedade atual, especialmente no âmbito escolar da Educação Infantil, estando relacionada
com a circulação de novas discursividades e de um conjunto de verdades sobre os modos de
viver a docência no nosso tempo presente. Assim, o professor gerenciador de oportunidades
conecta-se com a produção de uma criança protagonista, aquela capaz de produzir seu próprio
processo formativo por meio dos interesses próprios de aprendizagem. Creio que essa nova
posição de ser docente na Contemporaneidade se liga à criança protagonista. A lógica do
gerenciador de empresa parece também ingressar na escola: o professor gerenciador de
oportunidades é aquele que tem competências e habilidades múltiplas para administrar muitas
demandas ao mesmo tempo e é capaz de gerir os interesses de cada aluno que compõe a sua
turma; além disso, o gerenciador precisa desenvolver uma abertura e desenvoltura com as
novas tecnologias. De acordo com os materiais de pesquisa:

Quadro 14 - Professor como gerenciador de oportunidades

O professor deve concentrar-se “mais na organização das oportunidades que na ânsia de perseguir
resultados e mantendo, em seu próprio trabalho, o prazer com o espanto e com a maravilha”.
(FORTUNATI, 2009, p. 43, grifos meus).

[...] menos que executor de esquemas operacionais predeterminados, o adulto tem que se destacar
por suas funções de mediação das relações construtivas entre os elementos da situação em que se
acha mergulhado junto com as crianças. (FORTUNATI, 2009, p. 80, grifos meus).

Continua.
191

As crianças não são obrigadas a fazer alguma coisa, são convidadas a fazer, se recusarem uma
atividade, outras lhes serão oferecidas. Porém, os professores têm o cuidado para que as crianças
não se fixem num único tipo de atividade para que não desenvolvam monomanias. (RABITTI,
1999, p. 154, grifos meus).

A presença de espaços organizados e de laboratórios – com muitos materiais organizados de modo


racional e facilmente visíveis e acessíveis para todo o mundo – constitui o mapa de um território
transparente e aberto, onde as crianças se orientam com suas próprias bússolas, sempre capazes de
selecionar e de multiplicar as opções. (FORTUNATI, 2009, p. 153, grifos meus).

Isso significa reconhecer que uma ampla série de oportunidades e experiências devem estar
disponíveis para apoiar a participação das crianças [...]. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 23,
grifos meus).

A oferta de objetos e materiais disponíveis, muitos dos quais podem ser utilizados com autonomia,
com a seleção intencional de uma vasta gama de escolha de materiais [...]. (FORTUNATI, 2014,
p. 27, grifos meus).

Sabemos, porém, que não podemos ter muitas certezas, porque as crianças são imprevisíveis e nos
levam a desorientações com relação às quais é necessário ter muita flexibilidade e otimismo nas
suas e nas nossas capacidades. (VECCHI, 2014, p. 183, grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).

Fortunati (2009), no segundo excerto do quadro acima, faz menção às funções de


mediação docente e destaca o adulto como um mediador das relações entre elementos da
situação e das crianças. Entretanto, a investigação detalhada da materialidade de análise dos
referenciais italianos permite-me inferir que o professor da Educação Infantil, ao não
abandonar suas funções de mediador, se envolve mais no gerenciamento de oportunidades
educacionais. A expressão mediação emerge com a psicologia histórico-cultural,
especialmente com os estudos do psicólogo russo Vygostsky (1896 – 1934), autor que tratou
de mostrar o caráter histórico e social da mente humana. A mediação ocorre entre sujeito e
objeto por meio da palavra e da linguagem (um sistema de signos), permeada pelas relações
sociais, culturais e históricas, as quais fazem convergir os saberes historicamente produzidos
pelos homens para os saberes próprios de cada indivíduo. As práticas escolares seriam formas
de mediação, e o professor seria um mediador entre conhecimentos escolares e os sujeitos
aprendentes. A mediação ocorre entre indivíduos que sabem determinadas coisas e indivíduos
que poderão internalizar esses saberes por intermédio das interações sociais (daí decorrem as
explicações das zonas de desenvolvimento proximal, potencial e real que Vygostky definiu).
Professor-estudantes-conteúdos escolares formam o tripé que sustenta a mediação
192

pedagógica, formada pela interação entre pessoas sobre conhecimentos específicos, a partir do
ensino e da aprendizagem.
Vejo que a docência na Educação Infantil, ao conceder centralidade às crianças no
processo pedagógico e deixá-las livres para escolher ações, tarefas, atividades, de acordo com
seus próprios interesses e dentre várias oportunidades ofertadas pelo professor, se reconfigura
nas funções de gerenciar tais oportunidades, mais do que mediar situações entre professor-
estudantes-conteúdos escolares. O professor irá criar condições no espaço físico para que as
crianças possam livremente fazer suas escolhas. Nessa seara é que o gerenciamento de
oportunidades na atividade docente é chamado a mostrar-se e a operar.
Estudos já desenvolvidos sobre os deslocamentos na docência contemporânea
oferecem possibilidades para mapear deslocamentos nos modos de ser professor no nosso
tempo presente. Silva (2015), ao estudar as políticas curriculares para o Ensino Médio no
Brasil no período de 1996 a 2012, já destaca a fabricação de uma docência inovadora, atrelada
à inovação, à competitividade e ao desenvolvimento econômico, em que os alunos são
incitados a customizar seu próprio currículo, na busca pela formação de jovens
empreendedores e protagonistas, fragilizando-se o ensino dos conhecimentos escolares em sua
dimensão objetiva. Grimberg (2015) assinala que a formação docente convida os professores
a serem coaches da aprendizagem de seus alunos, e as expressões gestão por resultados,
counselling, gestão da aula e da aprendizagem estão difundidas em jornais, folhetos, revistas
e programas televisivos. A autora aponta que os professores são convidados a trabalhar a
autoestima dos alunos, suas emoções, suas capacidades afetivas, sua interioridade. Não se
trata mais de esperar que os outros façam ou que o Estado se ocupe, pois “agora somos
chamados a produzir-nos, a ser protagonistas, a fazer o próprio destino”. (GRIMBERG, 2015,
p. 27, tradução minha). Em tempos de gerenciamento, destaca a autora, não há posições a
ocupar, nem certezas, mas posições sempre em dança, nas quais os próprios indivíduos são
responsabilizados pelos seus êxitos e fracassos. Ela relaciona a formação docente ao
procedimentalismo, no qual o professor é um distribuidor de tarefas a serem cumpridas pelos
alunos.
Também Garcia (2015), ao apontar estudos sobre as reformas curriculares dos cursos
de licenciaturas e a formação docente inicial no Brasil, desde 1990, destaca que há uma
racionalidade prática e instrumental na construção de uma docência flexível e atenta à
diversidade dos alunos, reduzindo o professor a “um especialista na gestão do processo de
ensino e do seu desenvolvimento profissional, apontando, paradoxalmente, a
desintelectualização dos currículos e para a desprofissionalização desses professores”. (p. 57).
193

Analisando os documentos oficiais (pareceres e resoluções do Conselho Nacional de


Educação, que definem as diretrizes para os cursos de Licenciaturas), percebe que o professor
é denominado de educador.
Essas pesquisas ajudam-me a mostrar como a docência vem esmaecendo o seu
compromisso com o ensino e a responsabilidade perante o conhecimento escolar, passando a
fabricar outras subjetividades docentes. Na materialidade analisada nesta Tese, também foi
possível perceber novas posições para os sujeitos docentes na Educação Infantil muito mais
voltadas ao gerenciamento de oportunidades pela organização atenta e cuidados dos espaços
escolares, maximizando os interesses das crianças mediante suas próprias escolhas
individuais. Nesse universo, o docente fabricado por essas condições é muito mais um
educador do que um professor.
Em relação às 17 obras analisadas neste trabalho, conforme examinei até aqui, mesmo
que provenientes de concepções diferentes, pode-se dizer que trazem em comum a inclinação
para a descentralização da ação do adulto. É possível dizer que, em alguns referenciais
italianos, por exemplo, acompanhamos o uso da palavra educador, em detrimento da palavra
professor; outros utilizam as duas expressões, sem distinção. Essa é uma questão que vem
ocupando o fôlego de alguns debates na Educação Infantil, pois há a defesa de que não há
professor nesse nível de ensino, e sim, educadores. Nessa lógica, todos os adultos da escola
são educadores: professores, monitores, recreacionistas, merendeiros, recepcionistas. E é
nessa lógica também que não há alunos, ou seja, as crianças não são chamadas de alunos, mas
de crianças. Analisando-se alguns aportes teóricos e pesquisas no âmbito da Educação
Infantil, há posições que criticam o fato de chamarmos as crianças de alunos, os adultos, de
professores e os espaços internos, de salas de aula, assim também como criticam o termo
aula89.
Meu interesse aqui não está em mapear exatamente quais as obras, quais as cidades
italianas ou quais os autores que utilizam o termo educador ou professor90. O que quero

89 Considero válido relatar rapidamente uma experiência que tive ao realizar um dos Estágios Supervisionados
na Educação Infantil do Curso de Pedagogia, num grupo de crianças entre um e três anos de idade, numa escola
de Educação de Infância na cidade de Leiria, em Portugal, por ocasião de intercâmbio no período da graduação.
Lá não eram permitidos os termos sala de aula e aluno, pois me explicaram que eram crianças e que, uma vez
não havendo alunos, os professores não davam aulas, nem ensinavam. Quando eu falava ou escrevia algo e
referia os termos alunos, professor, sala de aula, sempre havia um profissional da escola que chamava a minha
atenção.
90 Sinônimos para o termo educador também podem ser visualizados: ser tutoring, ou seja, aquele adulto que
apoia a experiência da criança; ser um scaffolding, aquele adulto que oferece estrutura e apoio como “esquemas
de ação ou de interpretação para solicitar sua aprendizagem” (FORTUNATI, 2009, p. 74); ser um modeling, isto
é, aquele adulto capaz de usar estratégias para interpretar as intenções da criança e, a seguir, fazer uma
demonstração de como se podem realizar essas intenções. (FORTUNATI, 2009, p. 74-75).
194

assinalar aqui é a emergência de um docente que, antes de ensinar, deverá gerenciar as


oportunidades e situações entre as crianças, propondo a organização de espaços ricos em
aprendizagens. As práticas da documentação pedagógica de abordagem italiana fazem sentido
quando há um professor que, antes de centralizar as ações no seu planejamento, seja capaz de
descentralizar-se e atuar como um protagonista indireto.
Percebo que, com base nesse entendimento de docência, não omitimos um professor
que compreenda o desenvolvimento infantil, que planeje situações significativas, que estude
os conteúdos necessários, mas valorizamos aquele adulto que sabe fazer tudo isso partindo de
um olhar atento às crianças, àquilo que elas dizem (muitas vezes sem falar, mas por seus
gestos, brincadeiras, movimentação, choro, balbucios), alguém que mediante uma escuta
sensível consiga organizar um currículo centrado nas escolhas, preferências e interesses
infantis. Importante ressaltar que não se trata da exclusão do ensino, mas de uma ênfase em
determinados modos de ser professor, em detrimento de outros. Outras formas de ser
professor surgem, de modo a combinar com a criança protagonista.
Neste ponto da análise, podemos abordar um dos aspectos que aparecem nos
referenciais italianos intimamente ligados aos modos de constituição da docência enquanto
gerenciamento de oportunidades: o compromisso docente com a organização de um espaço
físico adequado e cheio de oportunidades para que as crianças protagonistas possam fazer
suas escolhas, de acordo com seus interesses e necessidades.

4.1.1 A organização do espaço como tarefa docente

Aldo Fortunati (2014) expõe claramente a ligação entre a docência e o compromisso


com a organização do espaço ao constatar que “os educadores explicitam desde o início como
o seu papel está estreitamente relacionado à organização dos espaços, ao ambiente
compreendido como o principal instrumento que os adultos podem oferecer para a expressão
do protagonismo das crianças”. (FORTUNATI, 2014, p. 60, grifos meus). Nesta seção,
procuro destacar o quanto a tarefa docente está voltada à organização do espaço escolar.
Distanciando-me da busca por binarismos, a discussão que vejo frutificar aqui como potente
está em analisar e discutir os deslocamentos da docência na Educação Infantil e perguntar-se:
por que e como aceitamos gerenciar oportunidades para as crianças na escola infantil? Por que
e como esmaecemos a figura do professor e enfatizamos o gerenciamento de oportunidades?
Nos excertos selecionados abaixo, podemos visualizar a relação existente entre a
organização do espaço escolar e as funções do professor gerenciador de oportunidades, ou
195

seja, menos que dirigir o coletivo de crianças, o adulto deve gerenciar as relações entre cada
uma das crianças e os elementos da situação. Os referenciais italianos sugerem que o adulto
seja um apoiador, que dê condições para as crianças fazerem suas escolhas: essa é uma das
novas configurações da docência na escola infantil do nosso tempo. Vejamos o quadro
abaixo:

Quadro 15 - O gerenciamento de oportunidades e o espaço escolar I

Tratamos de mostrar que uma criança ativa e construtiva solicita que o adulto concentre sua
atenção mais sobre a organização da oportunidade que sobre a pré-definição dos objetivos: trata-
se de uma articulação crucial, que desloca completamente os termos do planejamento educacional.
Já não se trata de apenas organizar algumas oportunidades úteis para se consumar certos objetivos
identificados anteriormente, mas de pensar nas oportunidades organizadas e continuamente
presentes no contexto como abrangedor de possibilidades a alcançar por meio de múltiplas e
variadas experiências, sempre mantendo um desembaraço positivo – uma vantagem – entre o que
se pode fazer e o que efetivamente se faz. [...] serão oferecidos contextos continuamente
disponíveis para efetuar uma ampla variedade de experiências como oportunidade aberta às
crianças no curso do tempo. (FORTUNATI, 2009, p. 39, grifos meus).

A presença de espaços organizados e de laboratórios – com muitos materiais organizados de


modo racional e facilmente visíveis e acessíveis para todo o mundo – constitui o mapa de um
território transparente e aberto, onde as crianças se orientam com suas próprias bússolas, sempre
capazes de selecionar e de multiplicar as opções. (FORTUNATI, 2009, p. 153, grifos meus).

Seu principal papel consiste em organizar os contextos – e o ambiente físico é visto como
elemento crucial na experiência das crianças, não como apenas uma tela de fundo – e as
oportunidades, sem conduzir as crianças a resultados predeterminados. O educador estabelece as
relações entre as pessoas, as ideias e as experiências. Desse modo, se ‘mantém longe da falácia
das certezas’ e, em compensação, tem que assumir ‘a responsabilidade de escolher, de
experimentar, de discutir, de refletir e de mudar, concentrando-se mais na organização das
oportunidades que nos resultados, mantendo no trabalho o prazer do espanto e da surpresa. Tem
que ser capaz de ‘se livrar de uma expectativa que logo se revela diferente do resultado a que as
crianças vão se aproximando enquanto constroem sua experiência’. É um educador que tem que
fazer escolhas contextualizadas, sem seguir os procedimentos pré-programados sobre resultados
específicos, e que deve ser capaz de conviver com o imprevisível e com o acaso. (MOSS, 2009, p.
21-22, grifos meus).

O professor, além de um papel de apoio e mediação cultural (ofertas disciplinares, instrumentais,


etc.), se souber observar, documentar e interpretar os processos que autonomamente se cumprem,
realizará, neste contexto, a sua mais alta possibilidade de aprender a ensinar. Documentação,
portanto, como ‘escuta sensível’, como construção de traços capazes não só de testemunhar os
percursos e os processos de aprendizagem das crianças, mas de torná-los possíveis, porque são
visíveis. (RINALDI, 2014, p. 85 – ZERO, grifos meus).

Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).

Como podemos perceber, a organização dos espaços na escola de Educação Infantil,


tanto interno, quanto externo, visa a favorecer a integração, a autonomia, a exploração, a
196

curiosidade e a comunicação, além de possibilitar às crianças inúmeras escolhas. A


organização dos espaços é um dos elementos destacados pelo projeto educativo de muitas
escolas italianas, como pude observar na análise do material (e, por que não dizer, elemento
fortemente destacado também no Brasil e em outros países). Embora não pretenda deter-me
nesse ponto, vale destacar que a organização do espaço sugere a descentralização do papel do
adulto nos processos educacionais, estando intrinsecamente articulada com as práticas de
documentação pedagógica.
Em visita a algumas escolas de Reggio Emilia em 2008 (ocasião em que fiz parte do
grupo de estudos), pude perceber que as construções das diferentes salas estavam articuladas,
uma dando ligação às outras através de portas, mas, em especial, através de vidros, podendo-
se observar os movimentos de um ambiente, mesmo sem estar lá. Também havia a piazza,
uma característica bastante marcante nas construções, ou seja, um espaço principal comum de
convivência, sendo que os demais espaços se abrem em direção a essa praça. O espaço é
quase um aquário, onde todos se encontram e se enxergam, devendo oferecer experiências
significativas e diversificadas. Acredita-se que o sentido de comunidade deve estar presente
nas características do espaço escolar, ou seja, “a centralidade da piazza, a não hierarquia dos
espaços (área de trabalho dos adultos, cozinha, ateliê e banheiros no mesmo e único andar) e
a horizontalidade da disposição desses ambientes” promovem encontros, bem-estar, trocas,
empatia e reciprocidade característicos de uma comunidade. (CEPPI; ZINI, 2013, p. 29).
Além disso, o espaço da escola é organizado com a premissa de ser “um laboratório para o
aprendizado autônomo das crianças” (CEPPI; ZINI, 2013, p. 48), com princípios de
transparência, comunicação, iluminação, relação entre o interior com o exterior.
Podemos trazer ao palco aqui o debate realizado na seção 2.3 da Parte I desta Tese,
intitulada “A instituição escolar de Educação Infantil”, na qual assinalei que a escola vai
constituir-se na mais potente instituição de captura das crianças, encarregando-se de criar
sujeitos infantis de determinado tipo. A escola moderna constitui-se numa instituição de
sequestro que, ao operar com tecnologias disciplinares, objetiva o sujeito, especialmente ao
controlar os tempos, os espaços, os corpos e as condutas. (FOUCAULT, 2012). A maquinaria
escolar moderna operou com um esquadrinhamento dos tempos e espaços, produzindo
sujeitos que internalizam a disciplina, ou seja, não se fazem mais necessárias as punições
corporais, pois o próprio indivíduo passa a ser sujeitado a si mesmo.
Somado a tudo isso, nos espaços escolares atuais, especialmente aqueles voltados para
a Educação Infantil, vemos arquiteturas que buscam quebrar com a lógica celular da sala de
aula, oferecendo espaços mais flexíveis, abertos, transparentes, onde todos se veem e podem
197

transitar com maior liberdade. Muito mais do que produzir corpos dóceis, disciplinados e
educados, é preciso produzir corpos flexíveis, plásticos e empreendedores de si mesmos.
Enquanto a disciplina distribui os sujeitos no espaço, a cada um conferindo um lugar
específico e fixo e posicionando-o de forma hierárquica, as tecnologias de seguridade
conferem maior controle do todo e de cada um, fazendo com que cada sujeito regule a si
mesmo e que mecanismos reguladores sejam acionados para agir preventivamente no controle
de riscos.
Nesse sentido, a importância concedida à organização dos espaços escolares na
materialidade de análise está articulada à necessidade de uma transformação nas funções
docentes, tal como podemos perceber nos excertos destacados no quadro abaixo:

Quadro 16 - O gerenciamento de oportunidades e o espaço escolar II


[...] assumir uma imagem forte, rica e potencial da infância necessita uma correspondente
transformação do papel do adulto em uma direção em que sua ação se desenvolve muito mais
sobre a organização de contextos estruturantes que sobre a proposta de estímulos diretos no fazer
das crianças, muito mais sobre a capacidade de reconhecimento e expansão das diversidades dos
estilos de condutas das crianças que sobre a ânsia de conduzi-las para atuações precisas e pré-
definidas, atendendo tanto a processualidade da atuação quanto a expressão de uma estratégia
evolutiva que o afã de certificar o estágio de desenvolvimento alcançado no âmbito de supostos
parâmetros gerais. (FORTUNATI, 2009, p. 38, grifos meus).

[...] a atribuição e o reconhecimento às crianças de uma identidade rica em protagonismo requerem


uma transformação no papel do adulto em uma direção na qual sua ação seja conduzida muito
mais sobre a organização de contextos estruturantes do que sobre estímulos diretos na ação das
crianças; muito mais na capacidade de reconhecimento e expansão da diversidade de estilos
comportamentais das crianças do que a ansiedade de levá-las a um desempenho preciso e
predefinido; muito mais na atenção aos processos da ação como expressão de uma estratégia
evolutiva do que desejo de certificar-se sobre o estágio de desenvolvimento alcançado a partir de
supostos parâmetros gerais: a dimensão que surge é a do diálogo, da partilha, das trocas e da
comparação”. (FORTUNATI, 2014, p. 21, grifos meus).

O professor é “um dos recursos que o contexto pode colocar à disposição, mais do que ser o
responsável pela sua adequação, e as modalidades comunicativas que se espera têm o objetivo de
oferecer espaço para o protagonismo dos meninos e das meninas”. (FORTUNATI, 2014, p. 30,
grifos meus).

[...] pensar o espaço da experiência das crianças ajuda o adulto a amadurecer as expectativas de
protagonismo nas ações que as crianças expressam em seu interior, utilizando as oportunidades
presentes, e também pode ajudar o adulto a suavizar a intromissão sobre a criança por parte das
instâncias educacional quando a ansiedade dos resultados prevalece sobre a sensibilidade da escuta.
(FORTUNATI, 2009, p. 61, grifos meus).

Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).
198

Com a centralidade na criança, o professor gerenciador de oportunidades deixa de ter


um papel central na relação educativa e passa a ser identificado como “um dos recursos que o
contexto pode colocar à disposição”. (FORTUNATI, 2014, p. 30). Ele conseguirá
desenvolver a não-centralidade no processo educativo, mediante uma proximidade não-
invasiva, escuta atenta, “retorno dos significados que surgem, o reconhecimento e a troca nas
ações do jogo, a disponibilidade para o reconhecimento afetivo, o esclarecimento das regras
compartilhadas e das transgressões intencionais observadas, o apoio para a autonomia”.
(FORTUNATI, 2014, p. 30). É nessa direção que alguns referenciais italianos sugerem que o
espaço seja um terceiro educador. Segundo Fortunati, o ambiente da escola “deve estar
equipado com painéis informativos e com o registro das experiências, para que qualquer um
seja capaz de se orientar e encontrar mensagens sobre o sentido e o valor do que acontece
ali”. (FORTUNATI, 2009, p. 65).
É na crença do espaço físico e do ambiente como um terceiro educador que vemos
consolidar atualmente o gerenciamento de oportunidades na Educação Infantil. Interessante
lembrar aqui que as práticas pedagógicas modernas já tinham como objetivo conduzir os
sujeitos ao progresso por meio de uma educação liberal. Liberdade, autonomia e interesse
passam a ser palavras de ordem, em que a ação diretiva do adulto para com a criança não é
mais bem-vinda na escola de Educação Infantil. Nesse contexto, dois aspectos já vinham
sendo questionados: as funções do professor em relação às crianças e a importância dos
espaços escolares como meios para incentivar a aprendizagem do indivíduo ativo.
Novamente, quero tomar aqui a educação liberal de Emílio, na qual Rousseau já
destacava, na metade do século XVIII, a importância do meio e da natureza na educação das
crianças e mostrava o quanto o preceptor deveria deixar Emílio livre pelo campo, “longe dos
maus costumes da cidade, que o verniz com que se cobrem torna sedutores e contagiosos para
as crianças”. (ROUSSEAU, 1979, p. 82). Como a infância conservava um estado de pureza,
que era degenerada pela cultura da civilização, Emílio deveria permanecer no meio natural.
Emílio não deveria receber “nenhuma espécie de lição verbal; só da experiência ele as deve
receber”; também o seu preceptor não deveria infligir-lhe “nenhuma espécie de castigo, pois
ele não sabe o que seja cometer uma falta”; seu preceptor não deveria ofendê-lo nem fazê-lo
pedir perdão, pois, “desprovido de qualquer moralidade em suas ações, nada pode ele fazer
que seja moralmente mal e que mereça castigo ou admoestação”. (ROUSSEAU, 1979, p. 78).
Na educação de Emílio, ao vermos a centralidade que Rousseau concede à criança,
encontramos no adulto a tarefa de mediador. Tal mediação encontra na natureza, no campo,
nos jardins, o seu lócus de atuação. Froebel dá seguimento, posteriormente, a tais
199

fundamentos, sendo considerado um grande pedagogo para a Educação Infantil. Tal como
destaca Noguera-Ramírez (2011), a manipulação do meio em Emílio é uma forma de incitar a
ação das crianças e das coisas sobre elas – “a arte da educação liberal é a arte de acondicionar
o meio para conduzir a ação das crianças”. (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 163). As
situações criadas no contexto servem como meio educativo, assim, “manipular o meio,
acondicionar o meio, preparar o ambiente em função de suas possibilidades educativas”
(NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 165) são tarefas dos adultos que, não por uma ação
diretiva, devem intervir através do meio, pois o que melhor ensina é a própria natureza e as
coisas. (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011). A educação liberal, tal como são compreendidos os
postulados de Rousseau, pretende atuar na autorregulação da conduta de cada indivíduo,
operando mediante sua liberdade de ação num meio que estabelece limites e possibilidades.
(NOGUERA-RAMÍREZ, 2011). Vimos no capítulo anterior que a regulação se dá na
interioridade das crianças e que o governamento se dá pela autorregulação da criança
protagonista.
Também poderíamos novamente incluir Dewey neste debate. Ao compreender que o
indivíduo se torna quem ele é por meio da participação no meio social, as interações com o
ambiente são fundamentais. A educação escolar é necessária, pois é ela que oferecerá
oportunidades variadas, possibilitando direção interna por meio da identificação dos interesses
dos alunos. Pela plasticidade, as crianças reterão e extrairão experiências para aprendizagens
futuras. Nesse contexto, cabe ao adulto utilizar suas aptidões para “transformar o ambiente em
que vive, ocasionando com isso o aparecimento de novos estímulos que reorientam suas
energias e as mantêm em desenvolvimento”. (DEWEY, 1959, p. 53).
Dewey apresenta uma crítica a Rousseau ao mostrar seus equívocos e contrapor-se à
ideia de desenvolvimento independente, espontâneo, dos órgãos e faculdades inatas – “a
concepção de um espontâneo desenvolvimento é puro mito”. (DEWEY, 1959, p. 124). É o
meio social que orienta o desenvolvimento, ou seja, podemos até ter aptidões inatas, mas elas
são energias iniciais e limitadoras da educação. Assim, “aprender não consiste em uma
espontânea expansão das aptidões não exercidas”. (DEWEY, 1959, p. 124). O educador
precisa ter objetivos educacionais, mas não os seus próprios objetivos, uma vez que eles são
“indefinidamente variados, diferindo de acordo com as diferentes crianças, mudando à
proporção que as crianças crescem e à proporção que cresce a experiência da pessoa que
ensina”. (DEWEY, 1959, p. 116). Os objetivos educacionais devem estar alicerçados no
indivíduo que vai ser educado, pois, para Dewey, é inútil tentar estabelecer os objetivos gerais
e finais da educação. Devem-se observar as condições concretas, não impor exteriormente
200

nada às crianças, sugerir atividades mais livres e “deixar seu espírito comunicar-se de perto
com o espírito do aluno e com as matérias do estudo”. (DEWEY, 1959, p. 118).
Como podemos ver, Dewey, ao criticar Rousseau, acrescenta ao debate educacional do
século XX a importância de o adulto organizar espaços adequados nas escolas, com recursos
que possam estimular e despertar o interesse das crianças. Ele continua acreditando, junto
com Rousseau, que esse adulto não deve direcionar as atividades, mas acrescenta a
necessidade de intervir no meio, que não é naturalmente organizado e adequado para a criança
aprender. Dessa forma, penso que os fundamentos abordados nos referenciais italianos em
relação à organização do espaço físico não são tão novos quanto nos parece, não são
teorizações tão recentes quanto aparentemente as compreendemos. Entretanto, o que me
parece novo aqui é o design dos mobiliários, das salas de aula, dos materiais pedagógicos dos
ateliês de arte e demais espaços das escolas infantis, mas também o design de uma docência
que tem no gerenciamento de oportunidades a possibilidade de desenvolver pessoas 91. Isso é
novo e sedutor. E mais: ao gerenciar as oportunidades, a mediação dá-se entre os elementos
do espaço, em que as oportunidades são gerenciadas pelo professor.
Recordo novamente as visitas que fiz a algumas escolas de Reggio Emilia em 2008,
quando me deslumbrei com a estética das salas e materiais, com o design dos mobiliários
(suas cores, funcionalidades, adequações ao universo infantil). Também os aromas, as
sensações, as luzes, as sombras, os tamanhos, criam um universo infantil bastante particular e
atraente. Estético. Lembro-me de ver crianças e adultos, em geral em pequenos grupos,
transitando calmamente pelos espaços, onde eram contempladas muitas transparências,
utilizando-se basicamente vidros para delimitar os diferentes lugares.
Ao organizar o meio educacional, o professor minimiza suas ações perante as crianças,
que usufruem livremente desse meio para aprender a aprender. O interesse, ao passar do
mundo externo para a interioridade da criança, fortalece a necessidade de organizar o espaço
como uma condição para potencializar-se, passando a ser criado “na relação” com os outros e
com os objetos. Talvez por isso que vemos, em alguns excertos destacados dos referenciais
italianos, que o interesse das crianças é natural, é autônomo, é independente do adulto. O
adulto não deve conduzir diretamente as crianças, mas deve conduzi-las pela organização dos
contextos escolares, de modo a governar à distância. Não se trata mais de mobilizar
tecnologias disciplinares, prescrevendo o que cada sujeito deve fazer, mas mobilizar

91 Larrosa (1994) destaca que a pedagogia oculta a sua própria operação constitutiva, que é produzir pessoas,
ocultando também “a crença arraigada de que as práticas educativas são meras ‘mediadoras’, em que se dispõem
os ‘recursos’ para o ‘desenvolvimento dos indivíduos’”. (LARROSA, 1994, p. 38).
201

tecnologias biopolíticas capazes de controlar pela regulação92. O culto ao indivíduo – a chave


é o indivíduo, expressão utilizada por Marín-Diaz (2015) na apresentação de seu livro –
perpassa os contextos escolares da Educação Infantil.
O educador gerenciador de oportunidades não apenas vai encontrar frentes para
gerenciar a organização do espaço escolar para que as crianças possam bem usufruí-lo com
liberdade e protagonismo, mas também vai atuar em outros espaços e linhas de frente, se
levarmos em consideração o alargamento das funções da escola. Utilizando os mesmos
exemplares de documentação pedagógica expostos no capítulo anterior, cedidos por
professores de algumas escolas de Educação Infantil do interior do Rio Grande do Sul,
proponho uma análise da docência e dos modos como os professores pensam a si mesmos
enquanto docentes, como conduzem sua própria conduta e como são conduzidos por práticas
discursivas e não-discursivas, de maneira a mudar as ênfases de suas ações. Por meio de uma
leitura atenta ao material empírico apresentado, é possível perceber nuances das práticas
docentes visibilizando a constituição de uma docência com características bastante peculiares
de mediação. Com base nos estudos apresentados anteriormente, é possível destacar três
aspectos recorrentes: mediar alimentação saudável para as crianças e suas famílias; mediar a
participação da família na escola; mediar o comportamento recomendável. Abaixo, escrevo
sobre essas recorrências.
O primeiro aspecto que gostaria de alertar é o destaque dado pelos professores para a
importância da alimentação na escola de Educação Infantil, ou melhor, a conscientização,
tanto da criança quanto da família, para uma alimentação saudável. Passo a apresentar
algumas das recorrências que refletem tais registros:

92 Michel Foucault apresenta os deslocamentos da sociedade disciplinar para uma sociedade de controle e
aponta que “[...] a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem proibir nem prescrever, mas dando-se
evidentemente alguns instrumentos de proibição e de prescrição, a segurança tem por função responder a uma
realidade de maneira que essa resposta anule a realidade a que ela responde – anule, ou limite, ou freie, ou
regule. Essa regulação no elemento da realidade é que é, creio eu, fundamental nos dispositivos de segurança”.
(FOUCAULT, 2008a, p. 61).
202

Quadro 17- Exemplar de Documentação Pedagógica


Dois dias no momento da janta... Camila aceita praticamente todos os alimentos oferecidos no
cardápio. Às vezes, no momento da janta recusa algum dos alimentos, mas repete sempre que
demonstra gostar (Professora B).

Vem se alimentando sozinho e geralmente solicita repetição. Tiago aceita bem os alimentos e
come de tudo. Vem mostrando independência no momento de derramar a água da garrafa
(Professora C).

Fonte: Documentação Pedagógica Professora B e Professora C – Crianças de 2 a 3 anos (2014, grifos


meus).

Seria a alimentação uma temática de preocupação escolar? Por que registrar aspectos
voltados à alimentação da criança? Creio que, com o alargamento das funções da escola93, a
pluralização das pedagogias e a ampliação da jornada escolar, a alimentação passa a ser uma
preocupação das instituições escolares, mas não só isso. Alimentação saudável também é um
trunfo para alcançar a qualidade de vida do indivíduo numa sociedade de seguridade. O risco
precisa ser calculável e programável, de modo a intervir na vida dos indivíduos para que a
norma possa ser executada (a norma não é fixa, nem universal; ela é cambiante), e seus
desvios, programados. Na perspectiva da sociedade de seguridade, cada um é convidado a
agir sobre si mesmo, e os cuidados com a saúde, a alimentação saudável e o cuidado consigo
mesmo requerem investimento permanente de todos e de cada um.
A escola passa a ser uma instituição que, em parceria com outras esferas, incorpora
problemas que antes eram governados de outras formas. “A saúde configura-se como um
exemplar dessa transformação” (ROSE, 2011, p. 226), em que não é mais necessária uma
burocracia estatal para agir na construção de corpos saudáveis, casas higiênicas ou hábitos
saudáveis de alimentação, pois “os indivíduos vão querer ser saudáveis, especialistas os
instruirão sobre como o serem e empreendedores irão explorar e ampliar esse mercado da
saúde”. (ROSE, 2011, p. 226). A escola do nosso tempo ocupa-se, portanto, em fazer
intervenções nas vidas dos indivíduos, atingindo também o interior de cada família e de cada
indivíduo.
Silva e Fabris (2016), ao estudarem as políticas curriculares do Ensino Médio no
Brasil, destacam que a alimentação saudável e a obesidade infantil foram temas escolhidos e
estudados por estudantes desse nível de ensino, além de outras temáticas centradas nas
preferências dos alunos. Os autores desenvolvem uma analítica da escola contemporânea que

93 Sobre essa temática, recomendo a leitura da Tese de Doutorado de Rejane Klein (2010), especialmente no
Capítulo 5, onde desenvolve uma análise sobre a ampliação das funções da escola.
203

protege, que estaria mais interessada em promovera seguridade; nesse sentido, “o currículo
passa a ser adequado às múltiplas funções que essa escola assume para si, desde a prevenção
às doenças, seleção de uma alimentação equilibrada até a prevenção às drogas, violência e
saúde financeira”. (SILVA; FABRIS, 2016, p. 438).
Com essa análise, percebo que as recorrências de uma preocupação e intervenção na
alimentação das crianças, evidenciadas nos registros docentes, se relacionam com projetos de
uma vida saudável desde a infância e atingem também a esfera familiar. Isso faz parte de uma
sociedade de seguridade vinculada a uma razão de governo que visa a otimizar a vida da
população, agindo sobre a vida de cada um e de todos para torná-la mais produtiva e saudável.
O segundo aspecto que chama atenção, exposto nos exemplares de documentação
pedagógica cedidos pelos professores de escolas do interior do Rio Grande do Sul, é a
interlocução com a família, ou seja, a escola convoca a família para participar dos
movimentos escolares, tanto na forma escrita – “Esta também pode ser uma maneira de a
família trabalhar com Magali em casa, pois ela precisa se sentir protegida e aprender a lidar
com estes medos” (Documentação Pedagógica Professora A – Criança de 1 a 2 anos), quanto
na forma de caixas de textos, denominadas “Espaço para registro da família”. São espaços
“vazios” em que os pais podem escrever algum recado para os professores ou para a própria
criança. Estaria aqui expressa uma vontade de pedagogização da própria família? A família é
mais uma das esferas sociais a serem incitadas como educadoras na sociedade de
aprendizagem; é também chamada para potencializar a avaliação da criança, num contexto de
Estado avaliador. Dito de outro modo, o Estado, ao conduzir as condutas dos indivíduos para
atingir resultados, calcular riscos, produzir e monitorar estatísticas sobre a vida da população,
encontra na família um objeto de intervenção. Como aponta Narodowski (2001; 2006), a
família passa a ser pedagogizada, e consolida-se o dispositivo da aliança “família-escola”.
204

Quadro 18 - A Documentação Pedagógica em funcionamento

ESPAÇO PARA REGISTRO DA FAMÍLIA:

Fonte: Elaborado pela autora (2016) a partir dos exemplares produzidos pelos professores envolvidos
na pesquisa.

O governamento da família ocorre quando ela passa de um mero ajuntamento de


indivíduos com laços em comum para um campo inteligível, com suas próprias
características, sobre as quais se pode falar, calcular, programar, fazer previsões, evitar os
riscos, avaliar94. Hoje em dia, parece-me que os professores “ainda sentem necessidade de
localizar na chamada ‘estrutura familiar’ uma possível solução para resolver os problemas de
disciplina na escola” (SCHWERTNER, HORN, GIONGO, 2013, p. 89), sendo capazes de
provocar intervenções nessa esfera social.
Diversos projetos, desde metade do século XIX, procuram usar a “tecnologia humana
da família para fins sociais”. (ROSE, 2011, p. 227). Embora seja uma instituição privada, a
família “deve cumprir suas obrigações sociais através da promessa de realizar as aspirações
pessoais de seus membros, da mesma forma como adultos veem a maximização do bem-estar
físico e mental de seus filhos como o caminho privilegiado para sua própria felicidade”.
(ROSE, 2011, p. 227). Assim, um novo campo pode ser governado mediante alianças e
parcerias entre instituições, desejos, saberes, cálculos.
O último aspecto refere-se à ênfase no registro do comportamento infantil,
esmaecendo os conhecimentos ou os conteúdos escolares. Como vimos, o processo de
escolarização não é mais coletivo, ou seja, o professor pouco seleciona os conteúdos
programáticos para trabalhar com a turma, visto que a seleção daquilo que pode ser estudado
está mais voltado à criança ou a pequenos grupos de crianças dentro de uma mesma turma.
Quase não é mais possível ter um planejamento único, posto que há uma pluralização e
heterogeneização dos modos de ser aluno na atualidade. Isso pode desencadear a necessidade

94 As seguintes pesquisas tomam a família e a escola como foco de seus estudos, problematizando suas relações:
Fonseca (2004), Roudinesco (2004), Nogueira (2006), Verdi (2006), Klaus (2011); Dal'Igna (2011), Junges
(2012) e Schwertner, Horn, Giongo (2013), entre outras.
205

de avaliar muito mais os comportamentos do que os conhecimentos que foram desenvolvidos.


A ênfase migra do ensino para a aprendizagem, da turma para o sujeito individualizado, do
trabalho de ensinar para o trabalho de avaliar constantemente cada ação. Aqui se mostra o
gérmen da escola ativa, mas em sua ênfase neoliberal, que se desloca para uma ênfase na
produção de atividades e tarefas que se processam em um continuum nas ações infantis. Seria
como uma customização do currículo, em que “os próprios estudantes são interpelados a
produzir os seus processos formativos, alicerçados nos seus interesses e nas oportunidades
que a economia do conhecimento possa lhes oferecer”. (SILVA, 2014, p. 131).
Os três aspectos descritos acima, essas verdades enunciadas – destaque para a
alimentação; convite à família para participar da escola; ênfase no comportamento –,
permitem-me inferir, mais uma vez, o quanto o professor do nosso tempo é convidado a ser
um gerenciador de oportunidades. Em síntese, é possível perceber um esmaecimento da
função de ensinar e uma ênfase maior na aprendizagem da criança. Articulada a isso,
acompanhamos a maximização da responsabilidade, tanto da família quanto da própria
criança, frente à educação, à alimentação, aos comportamentos, à saúde e a tudo que diz
respeito ao viver bem na sociedade atual. A forma contemporânea desse modo de ser
professor na escola infantil passa de um ofício central para um modo de gerenciamento de
oportunidades, cuja função é muito mais estimular, disponibilizar materiais, intervir, auxiliar,
observar, registrar, avaliar, fotografar, para que as próprias crianças realizem a sua
aprendizagem. Estamos visualizando um design da docência, atrelado a uma estetização da
infância, ambos investidos nas práticas da documentação pedagógica, como bem constata
Aldo Fortunati: “a valorização da ação das crianças passa necessariamente pela prática da
documentação, já que é exatamente através desta que se consegue dar visibilidade e tornar
evidente a identidade das crianças”. (FORTUNATI, 2014, p. 103).
Trata-se, então, de um profissional competente e responsável suficientemente para agir
e governar a vida de cada um e da coletividade, sobretudo e de preferência sem ações de
autoritarismo em relação às crianças, sem um planejamento rígido com tempos e atividades
predeterminadas, sem um currículo centrado nas áreas de conhecimento ou nos
conhecimentos escolares. Um adulto que despende todas as suas atenções para a organização
dos espaços internos e externos da escola, numa investida de governar menos para governar
mais.
O professor que gerencia as oportunidades deve ser capaz de organizar os espaços
escolares com ofertas sedutoras às crianças (o ateliê de arte, por exemplo, encaixa-se na ideia
de espaços escolares com outras estéticas, como veremos na seção seguinte). Se esse
206

profissional desenvolver uma escuta atenta e um olhar sensível, será capaz de oferecer
materiais, espaços e oportunidades de acordo com os interesses das crianças. Crianças
protagonistas demandam organização de espaços atrativos, esteticamente planejados, com
diferenciais na sua forma de apresentação, onde a sensação de liberdade seja garantida, quase
como um self-service de interesses infantis. Aprender a aprender é fazer acreditar que há
liberdade para escolher aquilo que pensamos desejar querer saber.
Parece-me que o aluno se vê cada vez mais livre, mas não pode permanecer na escola
sem fazer nada, pois ele mesmo sabe que precisa atuar sobre suas próprias habilidades e
competências. O professor, ao gerenciar o processo educativo, expande os controles pela
ampliação dos mecanismos de avaliação contínua e individualizada95. Vincula-se a esse
cenário a necessidade da avaliação constante, visto que, ao garantir liberdade, é preciso fazer
movimentar certo modo bastante particular de avaliar as crianças, o qual também prima pela
liberdade. É necessário fazer proliferar estratégias de avaliação para uma criança-aluno-
infantil que é livre na escola, que é capaz de fazer suas próprias escolhas, a fim de garantir a
aprendizagem infantil e dar-lhe visibilidade. Talvez isso justifique a “exacerbação da
avaliação” (VEIGA-NETO, 2013) nas instituições escolares, indicando algumas hipóteses
para a celebração e festejo da documentação pedagógica como uma forma de registro muito
potente entre a comunidade docente e também de seus ajustes à sociedade contemporânea, em
que vivemos outros tempos, não mais somente analógicos, mas intensamente digitais. Disso
tudo decorre a ênfase no professor designer.

4.2 Inovação docente: os recursos tecnológicos e a autoavaliação

Com o crescente acesso a ferramentas tecnológicas como câmeras digitais,


gravadores, ditafones e escâneres, nós podemos reunir evidências
adicionais para apoiar e documentar nossas observações das crianças.
(LUFF, 2010, p. 206).

95 Compactuo com as conclusões de Augusto (2015), ao pesquisar sobre o problema das drogas e da violência
entre jovens numa perspectiva foucaultiana, assinalando algumas mudanças na forma de ser docente hoje. O
autor destaca que “a professora austera cede lugar aos gentis professores que operam num regime de
amabilidades em que o exercício do castigo não se faz necessário no momento decisivo de sua aplicação, mas
num processo contínuo de avaliação que visa promover a adesão e a cumplicidade no exercício e produção das
regras [...]. A obtenção da obediência escolar se torna, assim, mais eficiente ao envolver os alunos com a
flexibilização da autoridade, ao mesmo tempo em que se expande a centralidade dos controles”. (AUGUSTO,
2015, p. 20).
207

A palavra inovação vem tomando fôlego nos debates educacionais desde a Educação
Infantil até a educação universitária, especialmente na última virada de século 96. No recorte
que faço neste trabalho, a inovação docente está atrelada a dois aspectos centrais: incentivo na
utilização de recursos tecnológicos e valorização da autoavaliação docente, ambos articulados
especialmente na concretização da documentação pedagógica. Com isso, procuro nesta seção
final mostrar como a estratégia da inovação docente opera nas práticas de registro da
documentação pedagógica, deslocando a ênfase para a produção de um professor designer na
Educação Infantil. Para tanto, apresento inicialmente os incentivos na utilização de recursos
tecnológicos ao fazer-se a documentação pedagógica. Ao final da seção, teço considerações
sobre a valorização da autoavaliação do professor, a partir da documentação pedagógica,
numa investida de inovar consequentemente e permanentemente sua atuação pedagógica.
Antes de apresentar os recursos tecnológicos sugeridos nos referenciais italianos para
as práticas de registro, há um assunto importante para destacar que tem articulação com o
ingresso desses novos recursos na inovação da docência: o ateliê de arte e a figura do
profissional denominado de atelierista na maioria dos projetos educativos italianos voltados à
primeira infância, especialmente nas escolas de Reggio Emilia, e suas implicações na atuação
dos demais docentes da escola.
Assim, abro um parêntese aqui. Por apresentar um olhar vinculado à arte, Malaguzzi
introduziu nas escolas um espaço central para o ateliê e/ou miniateliês, bem como para a
figura do atelierista (profissional com experiência em linguagens visuais). O atelierista, ao
trabalhar em conjunto com os professores, qualifica a prática da documentação pedagógica,
uma vez que o ateliê “foi introduzido para modificar a pedagogia, por meio de um novo
modo de enxergar e trabalhar”. (GANDINI, 2012, p.89)97. Segundo Malaguzzi (1999), o
ateliê auxilia na documentação e obriga os adultos a refinarem os “métodos de observação e
registro”. (MALAGUZZI, 1999, p. 85). “O ateliê e as salas de aula juntos tornam-se
laboratórios para a observação e a documentação”. (CEPPI; ZINI, 2013, p. 47).
Em entrevista com Lella Gandini, a professora reggiana Lucia Colla relata que “um
método único de observação para todos não seria adequado”; assim, os atelieristas ajudam

96 Para discussões mais detalhadas, sugiro a leitura das seguintes produções: Silva (2011), Fabris e Dal’igna
(2013), Dal’igna e Fabris (2013), Silva; Carvalho; Silva (2016).
97 Gandini (2012), no livro intitulado O papel do ateliê na educação infantil: a inspiração de Reggio Emilia,
apresenta capítulos escritos basicamente por pesquisadores americanos que estudaram a proposta de ateliês em
Reggio Emilia. Há fundamentação sobre a organização dos ambientes e materiais no ateliê, bem como sobre
alguns conceitos importantes voltados à Arte, sobre os quais não vou me deter neste trabalho. Meu interesse aqui
é perceber como o ateliê emerge no projeto educativo, a ponto de garantir, manter e qualificar a prática da
documentação pedagógica entre os professores, inserindo em suas ações o indispensável uso de variados
recursos tecnológicos.
208

os docentes a criarem tabelas e instrumentos de observação adequados e também a


interpretarem o trabalho das crianças. (GANDINI, 2012, p. 84). Podemos concluir que “o
ateliê é um espaço que pode ajudar na produção da documentação, assim como nos levar
para novas formas, como vídeos, tipos variados de livros e outros meios digitais”.
(SCHWALL, 2012, p. 42). As crianças também podem utilizar esse recurso para registrar
aquilo que julgarem pertinente (como, por exemplo, a produção de autorretratos).
A presença do atelierista também é fundamental para conceber inovações pedagógicas.
Por exemplo, em algumas escolas de Reggio Emilia, são feitos portfólios digitais individuais
utilizando-se, conforme entrevista de Giovanni Piazza, “as novas linguagens integradas do
computador: som, movimento e animação. Ela permite novas maneiras de falar sobre as
próprias experiências na escola”. (GANDINI, 2012, p. 155). Além de portfólios concretos, o
ingresso de mais uma linguagem – a digital – se faz necessário para a metacognição,
conforme destaca o atelierista Giovanni Piazza: “o portfólio digital nos oferece a
oportunidade de mudar para um novo nível de entendimento compartilhado sobre esses
processos dentro de uma situação dinâmica”. (GANDINI, 2012, p. 157).
Para tanto, a presença da tecnologia é significativa no ateliê: “um computador com
software gráfico e de criação de páginas, um scanner e uma impressora se tornam
ferramentas essenciais para o nosso estilo de trabalho”. (SCHWALL, 2012, p. 42). Os
professores utilizam essas ferramentas tecnológicas para processar vários documentos, “como
as conversas das crianças, carta aos pais, fotografias tiradas com câmeras digitais e
documentação que será colocada na parede da sala de aula”. (SCHWALL, 2012, p. 42). Na
citação abaixo, podemos mais uma vez perceber a importância do ateliê na documentação
pedagógica:

Creio que o verdadeiro ateliê seja um estado de espírito, que entra lentamente em seu
entendimento como professora, em seu modo de organizar os espaços, de observar as crianças, de
fazer anotações cuidadosamente sobre os processos de aprendizagem, de trabalhar com a
documentação e de comunicar o que as crianças e os professores estão fazendo. (GANDINI, 2012,
p. 76).

Os espaços voltados aos ateliês e os profissionais atelieristas também atuam na


formação dos professores, oferecendo-lhes suportes e técnicas para o desenvolvimento de
habilidade para a utilização dos recursos digitais disponibilizados no espaço escolar, pois os
professores devem manejar “habilidosamente as suas câmeras de filmagem e vídeo”.
(MALAGUZZI, 1999, p. 80). Nesse caso, treinamentos são oferecidos aos professores, como
209

podemos apreciar nestes dois excertos: “há oficinas dedicadas à aquisição de habilidades
técnicas, por exemplo, o desenho e preparação de cartazes para a documentação do trabalho
em projetos e informações sobre a escola para pais e visitantes”. (FILIPPINI, 1999, p. 125), e
“a outra função importante do atelier era a de oferecer uma oficina para documentação. A
documentação era vista então como uma possibilidade democrática de informar o público
sobre os conteúdos da escola”. (VECCHI, 1999, p. 131). A validade dessas formações é
confirmada nestes depoimentos: “com o ateliê, aprendi técnicas de comunicação que não
havia aprendido em minha formação como professora” (GANDINI, 2012, p. 75-76), e
“podemos usar a tecnologia digital para comunicar o crescimento das crianças”.
(GANDINI, 2012, p. 159). Fecho aqui o parêntese sobre o espaço do ateliê.
Com o breve esboço sobre o ingresso do ateliê em grande parte das escolas italianas
voltadas à primeira infância, saliento aqui o excessivo destaque e a valorização de outros
recursos tecnológicos que, além da mera escrita docente, contribuem para a prática da
documentação pedagógica. Fica visível um deslocamento nas formas de registro docente,
agora mais sistemáticas, instantâneas, transparentes e de fluxo contínuo, que não apenas
mostrem mensurações padronizadas e dados escritos, mas utilizem imagens e narrativas em
movimento. Será necessária, então, a construção de outras formas de registro e avaliação, não
centradas no diagnóstico e na elaboração de pareceres e relatórios de avaliação trimestrais ou
semestrais; será preciso apresentar outra estética na produção do material, utilizando-se
diversos recursos, como fotos e filmagens, num tempo que prima pela rapidez, permanência e
aceleração do registro. Diante dessa argumentação, procuro, nos excertos abaixo, mostrar
como isso aparece nos referenciais italianos analisados neste trabalho. O quadro apresenta um
agrupamento de citações que tratam sobre tal temática:

Quadro 19 - Os recursos tecnológicos nas práticas da documentação pedagógica

Toda a documentação – as descrições escritas, as transcrições das palavras das crianças, as


fotografias e atualmente as gravações em vídeo – torna-se uma fonte indispensável de materiais que
usamos todos os dias, para sermos capazes de ler e refletir, tanto individual quanto coletivamente,
sobre a experiência que estamos vivendo, sobre o projeto que estamos explorando [...]. A câmera, o
gravador, o projetor de slides, a máquina de escrever, a câmera de vídeo, o computador e a
fotocopiadora são instrumentos absolutamente indispensáveis para o registro, para a compreensão,
para o debate entre nós e, finalmente, para a preparação de documentos apropriados de nossa
experiência. (VECCHI, 1999, p. 131, grifos meus).

Continua.
210

Tal material pode ser produzido de muitas maneiras e assumir muitas formas – por exemplo,
observações manuscritas do que é dito e feito, registros em áudio e vídeo, fotografias, gráficos de
computador, o próprio trabalho das crianças, incluindo, por exemplo, arte realizada no atelier
com o atelierista. Este material torna o trabalho pedagógico concreto e visível (ou audível) e, como
tal, é um ingrediente importante para o processo da documentação pedagógica. (DALHBERG;
MOSS; PENCE, 2003, p. 194, grifos meus).

Os professores descobrem a máquina fotográfica e “uma forma de testemunhar e contar


acontecimentos extraordinários”. (HOYUELOS, 2006, p. 199).

[...] começamos a documentar, a registrar sistematicamente, com uma série de recursos dos meios
de comunicação, incluindo fotografias, vídeos e gravações em áudio, o que as crianças nos
contavam. (KINNEY; WHARTON, 2009, p. 22, grifos meus).
Anotações apresentadas em diferentes tipos de tabelas observacionais, assim como câmeras
digitais, computadores e scanners, modificaram nossa abordagem de documentação e pesquisa. Os
instrumentos e as estratégias para documentar estão em constante evolução, mudando em relação
aos diferentes contextos em que trabalhamos com as crianças. (Entrevista com Laura Rubizzi.
GANDINI, 2012, p. 77, grifos meus).

Um projeto único poderia ser documentado em milhares de maneiras: em um livro, um convite


para os pais, uma edição de um projeto para pesquisa, uma síntese de 10 páginas para os pais.
(Entrevista com Isabella Meninno. GANDINI, 2012, p. 120, grifos meus).

O percurso educativo torna-se concretamente visível por meio de uma documentação atenta aos
dados relativos às atividades, para os quais se pode valer tanto de instrumentos de tipo verbal,
gráfico e documentativo quanto de tecnologias audiovisuais mais difundidas nas escolas.
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(RINALDI, 2014, p. 80, grifos meus).
(2016).

Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial
italiano (2016).

Ao analisarmos os excertos acima, percebemos a entrada de ferramentas tecnológicas


para auxiliar o registro docente, articuladas, muitas vezes, ao trabalho de arte nos ateliês. São
instrumentos absolutamente indispensáveis para o registro – máquina fotográfica, gravador de
áudio, câmera filmadora, computador, impressora, scanner, software gráfico – e para a
transformação das ações e produções infantis num material visível, audível e concreto. Por
exemplo: os desenhos que as crianças fazem “significam relativamente pouco sem a
documentação feita pelos professores daquilo que as crianças disseram sobre o que
observaram e viveram. Gravados, os comentários e discussões das crianças oferecem aos
professores um conhecimento sobre seus níveis de entendimento”. (KATZ, 1999, p. 39).
De acordo com os referenciais italianos, as ferramentas tecnológicas proporcionam
rapidez e eficiência na comunicação dos registros, sendo que os professores em Reggio
Emilia, por exemplo, dispõem de um razoável tempo em serviço para documentar as
aprendizagens das crianças quase instantaneamente (como se fossem horas-atividade
211

cumpridas nas escolas para documentar o trabalho junto às crianças). Adiante, outros excertos
sugerem a importância do uso de tecnologias para rapidez e sistematização na comunicação:

Quadro 20 - Recursos tecnológicos, rapidez e sistematização na comunicação

Sobre o que documentar – fotograficamente – Malaguzzi nos dá algumas pistas: o grande valor da
experiência, de atuar, de pensar, da investigação e de aprender das crianças. Como se apropriam
do novo, do cognitivo, como organizam a sua curiosidade, como constroem sentimentos, seus
pontos de vista, como colocam à prova as suas energias, sua vitalidade, como satisfazem os seus
desejos, necessidades, como estabelecem relações e intercâmbios, como chegam a interpretar o
mundo dos coetâneos, dos adultos e das coisas. A documentação fotográfica pode revelar todas
essas questões através dos rostos, dos olhos, da boca, dos gestos, das posturas, dos pequenos sinais
que são as espirais dos sentimentos, das tensões, dos esforços, do prazer, dos desejos, das
expectativas. (HOYUELOS, 2006, p. 200).

[...] os educadores precisam ser observadores perspicazes, atentos para as possibilidades de


aprendizagem e portadores de câmeras fotográficas, câmeras de vídeo e gravadores de áudio,
sempre ‘prontos’ para captar estes momentos extraordinários. (KINNEY; WHARTON, 2009, p.
29, grifos meus).

A tecnologia tem uma presença significativa no ateliê: um computador, com software gráfico e de
criação de páginas, um scanner e uma impressora se tornaram ferramentas essenciais para o
nosso estilo de trabalho. Os professores usam a tecnologia diariamente para processar vários
documentos, como as conversas das crianças, cartas aos pais, fotografias tiradas com câmeras
digitais e documentação que será colocada na parede da sala de aula. O computador do ateliê
funciona como um servidor e pode ser acessado de outros computadores nas salas de aula. Isso
aumentou a eficiência do nosso trabalho, pois os professores têm tempo durante o dia para
trabalhar na documentação e podem acessar todos os seus arquivos de qualquer computador. O
ateliê é um espaço que pode ajudar na produção da documentação, assim como nos levar para
novas formas, como vídeo, tipos variados de livros e outros meios digitais. (SCHWALL, 2012, p.
42, grifos meus).

Para tornar o aprendizado das crianças visível, marcamos horários regulares para equipes de
professores e grupos de equipes de professores trabalharem juntos no planejamento, refletirem
sobre a experiência e produzirem a documentação. [...] Para promover parcerias com os pais,
estabelecemos meios para a comunicação com os pais, incluindo jornais diários na porta de cada
sala de aula e um boletim semanal a ser enviado para casa (hoje, são postados regularmente em
nossa página na internet). Os jornais e o boletim melhoraram substancialmente com o passar dos
anos, à medida que nos tornamos mais sofisticados com nossas câmeras digitais e programas de
artes gráficas para Macintosh. (CADWELL, 2012, p. 207-208. Grifos meus).

São utilizadas várias formas de linguagem para dar visibilidade à investigação: transcrições de
conversas das crianças, slides, fotografias e painéis na parede da seção e em toda a escola,
testemunhando o trabalho realizado pelas crianças nas várias fases do projeto, além de
apresentações formais e informais voltadas a grupos de professores e pais. (CHILDREN; ZERO;
UNIVERSITY, 2014, p. 157. Grifos meus).

Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial
italiano (2016).
212

Os recursos tecnológicos ingressam na ação educativa com um poder indispensável,


entrando como um testemunho, como uma confirmação daquilo que vem sendo produzido nas
relações entre crianças e adultos no ambiente escolar. A fotografia, por exemplo, assim como
a produção de vídeos98, descreve e torna visível a aprendizagem das crianças na escola, pois
ela captura o rosto, o olhar, a boca, os gestos, os movimentos de cada criança. Parece-me que
a minúcia de um detalhe precisa ser capturada, de modo a não escapar nada; portanto, quanto
mais recursos para tal empreendimento, mais sucesso o adulto terá no momento de
documentar a aprendizagem da criança. Assim diz Rubizzi: “um gravador ligado funcionará
como memória ‘objetiva’ dos diálogos que acontecerão no grupo”. (RUBIZZI, 2014, p. 98).
E segue destacando que:

Durante o percurso do projeto, há intuições das crianças que nos escapam no encontro ‘direto’ do
trabalho, e as reencontramos somente na leitura e nas interpretações feitas posteriormente. Não
podemos fugir de uma autoavaliação sobre o quanto a nossa falta de escuta dos pensamentos
expressos pelas crianças pode, às vezes, desorientá-las, distanciando-as do problema. (RUBIZZI,
2014, p. 115).

Além de evitar que coisas escapem, os recursos tecnológicos são aliados dos registros
docentes, primando pela instantaneidade e rapidez na comunicação. Embora eu perceba uma
extrema valorização desses recursos, é importante dizer que a escrita docente permanece e
acompanha a documentação pedagógica (especialmente por considerar que nem sempre temos
presentes câmeras digitais, por exemplo).

Juntamente com a descrição escrita do percurso da criança na instituição, consideramos


indispensável uma documentação fotográfica significativa que tenha a capacidade de acompanhar,
sustentar e ampliar o sentido da narrativa que ela integra. (FORTUNATI, 2014, p. 117, grifos
meus).

Nem sempre a máquina fotográfica ou a filmadora estão presentes; é necessário, por isso, registrar,
além das falas dos protagonistas, algumas notas de atmosfera, desenhos e esboços rápidos (por
exemplo, a direção do olhar de uma criança, os estados de ânimo etc.): todos os elementos que
ajudam a contextualizar as intervenções verbais e as ações das crianças. (RUBIZZI, 2014, p. 106).

Tudo isso pretende marcar a confirmação de um ideal para a qualificação das escolas
(que muitos estudiosos, especialmente economistas e administradores, acreditam ser a

98 “As fotografias devem ser tratadas como uma porta de entrada para um mundo de eventos possíveis, e não
como uma janela que enxerga apenas um tempo e lugar. (FORMAN, 1995). O vídeo deve ser tratado como uma
oportunidade para as crianças abstraírem teorias, suposições, crenças ou expectativas que tornem uma estratégia
razoável para elas usando aquela estratégia específica, possivelmente criando dissonância o suficiente para
motivar uma reconstrução dessas teorias, suposições, crenças e expectativas”. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 258).
213

salvação da crise educacional): o uso dos recursos tecnológicos e digitais. Destaco o quanto o
imperativo da inovação na docência contemporânea, configurado na inovação tecnológica,
entra no meio educacional com a garantia de rapidez, flexibilização, produção,
espetacularização da vida, publicização de resultados, definindo as competências do que é ser
um bom professor hoje em dia. A escola precisa ser vista como dinamizadora de inovações,
especialmente as tecnológicas. Assim, as práticas de registro deslocam-se do exame, das
fichas, dos pareceres descritivos e relatórios trimestrais ou semestrais, para a documentação
pedagógica, detalhando a biografia da criança em sua minúcia, indo além dos conteúdos e
considerando também seu comportamento, seus gostos, suas afinidades, suas amizades, suas
vontades.
A discussão bastante significativa e cara para a área das ciências sociais é sobre a
publicidade e os usos da tecnologia e da informação; sem entrar nessa seara, importa dizer
que Lipovetsky e Serroy (2015, p. 300) expressam que a publicidade contemporânea “adotou
um funcionamento do tipo propriamente estético”, ou seja, além de o visual ser objeto de
trabalho estético, o que vale é dirigir a publicidade às emoções e afetos, importa criar simpatia
e atenção do ser humano. Conforme destacam os autores, vivemos hoje na busca incessante
de divertimento e emoções estéticas, e o que interessa é interpelar o público criando “uma
proximidade emocional ou um laço de cumplicidade. Hoje a publicidade joga consigo mesma
como joga com a marca e com um consumidor que conhece os códigos da publicidade, da
moda e das mídias”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 300). Dessa forma, aquela
publicidade diretiva está perdendo fôlego, pois o objetivo não é “dirigir mensagens
unidirecionais a um consumidor assimilado a um objeto passivo”. (LIPOVETSKY; SERROY,
2015, p. 300). Na publicidade contemporânea, os modos narrativos são diversos e há um
sofisticado culto à forma (complexos procedimentos técnicos, e as imagens criam um
universo virtual).
Esses argumentos permitem-me analisar como as práticas da documentação
pedagógica também sugerem ao professor uma avaliação não-diretiva, não centralizada num
programa coletivo para todos os alunos, e registros não-unidirecionais; porém, com a ajuda de
tecnologias da comunicação, o professor é capaz de criar uma proximidade com cada criança,
um laço de cumplicidade que consiga mostrar suas ações e aprendizagens na escola. Há uma
sedução estética na produção da documentação pedagógica, um empenho docente em
valorizar a felicidade e a alegria, além de mostrar o quanto a escola infantil pode proporcionar
prazeres e experiências agradáveis às crianças protagonistas.
214

Mediante registros que contemplam fotografias, filmagens, portfólios, anedotários,


produções das crianças, montagem de slides e transcrições de falas, entre outras formas de
registro postuladas pela abordagem da documentação pedagógica de inspiração italiana,
valorizam-se a rapidez, a sistematização e a aceleração da comunicação, atreladas aos
recursos tecnológicos99. Percebo que há uma tendência na condição de ser docente de crianças
pequenas: valorizar o tempo destinado para observação, registro e interpretação da
documentação pedagógica. De forma simplificada, poderíamos pensar aqui que priorizamos
tempo para algumas questões e diminuímos tempo de outras tantas atividades e ações
escolares. Não se trata de modo algum de abandono dos compromissos pedagógicos com o
ensino, mas de uma supremacia da aprendizagem de cada criança e da exposição e
publicização de forma sistemática.
Talvez, se antes valorizávamos o estar junto com as crianças em encontros reais,
agora, ao fazermos tudo isso, valorizamos mais a performance de capturar registros por meio
das fotografias tiradas, das filmagens feitas para serem mostradas posteriormente a quem
interessar. Inspirada em Lipovetsky e Serroy (2015), comparo essa nova configuração docente
às atitudes atuais de alguns turistas que, ao conhecerem um novo lugar, antes de saberem as
histórias, os sentidos e os significados daquela paisagem, já estão à espreita da imagem com a
sua máquina fotográfica.
Retomo as expressões utilizadas por Aldo Fortunati, centradas no “aqui e agora”,
criando estratégias educacionais “ao mesmo tempo em que a ação acontece” e aproveitando
as ferramentas tecnológicas para registrar um tempo “produzido na ação”. (FORTUNATI,
2014, p. 22). Sugere-se que a exposição da ação vivida seja feita de forma imediata, enquanto
é vivida na escola, tornando público os gostos, as experiências, as sensações. Talvez
estejamos acompanhando a emergência de outros tempos na Educação Infantil, um tempo
escolar marcado pelas tecnologias digitais, carregado com outros ritmos para o trabalho
docente. Um tempo que está atrelado às tramas do neoliberalismo, ou, como diria Lipovetsky

99 Relato aqui algumas impressões que tive quando visitei escolas infantis de Reggio Emilia, em 2008, ao
observar os espaços e também ao conversar com algumas professoras. Pude perceber o grande investimento em
equipamentos tecnológicos em salas de aula e ateliês: máquinas fotográficas, filmadoras, gravadores de áudio,
impressoras, entre outros recursos, todos disponíveis aos professores de forma bastante acessível e rápida. Os
adultos comentaram que, nas suas horas-atividade, o principal foco é deter-se na documentação, que deve ser
diária e sistemática. Assim, os pais, ao buscarem seus filhos no final do turno, já poderiam observar registros,
fotografias, narrações, produções daquele dia na escola. Importante dizer também que em Reggio Emilia há um
Centro de Documentação e Investigação Educativa, o qual funciona desde 1986, reunindo e sistematizando a
documentação pedagógica produzida em cada escola, objetivando troca e compartilhamento desses materiais.
Além disso, é um espaço de exposições, intercâmbios culturais, formação de professores, encontros e seminários
da Reggio Children.
215

(2004), tempos hipermodernos100. Aceleração e rapidez fazem parte do imperativo de


inovação do nosso tempo também na escola infantil. Essas novas formas de praticar a
docência na escola mobilizam o design da docência. É nesse contexto que o design da
docência se evidencia: um professor artista, que sabe utilizar diferentes recursos tecnológicos
e digitais para capturar as ações das crianças na escola. Outra lógica docente se abre, a meu
ver, conectada com o design e com a velocidade das tramas neoliberais e capitalistas.
Ao mostrar a docência no viés do design, cabe citar a reportagem intitulada “Professor
do futuro será um designer de currículos”, no site Porvir: o futuro se aprende. O pesquisador
Ronaldo Mota (professor visitante do Instituto de Educação da Universidade de Londres)
defende a ideia de que o professor do futuro deverá ter habilidades para dominar as
tecnologias digitais, a fim de desenvolver currículos integrados, ensinando os alunos a
aprenderem a aprender. Consta na referida reportagem que os termos designer educacional e
designer de currículos são novos no Brasil, mas muito utilizados nos Estados Unidos.
Conforme Mota, “o professor designer de currículo é a expressão maior e mais completa do
mestre contemporâneo. Vai além de ministrar o conteúdo estrito senso, mas é também
responsável por preparar o educando para o hábito de aprender a aprender, desenvolvendo
habilidades de aprendizagem que são consideradas imprescindíveis aos profissionais e
cidadãos em um mundo centrado na inovação”101.
O designer educacional, de acordo com Ronaldo Mota, é aquele profissional
“responsável pela tradução de conteúdos acadêmicos via diferentes mídias e recursos,
envolvendo análise e escolhas para melhor disponibilizar os assuntos, considerando o público
a ser atingido e a linguagem a ser utilizada”. Tal como o arquiteto preocupa-se com a
acessibilidade, diz Mota, o designer educacional deverá projetar cursos adequados para
pessoas ou grupos “sempre levando em conta suas especificidades e peculiaridades”102.
O uso das tecnologias digitais possibilita, por exemplo, a criação de portais interativos
contendo videoaulas, criação de blogs pelos alunos e professores, utilização de recursos
multimídia, criação de games e de plataformas de aprendizado on-line, entre outras opções.
Na esteira da revolução educacional, acredita-se que o professor deve ser um designer
educacional, capaz de criar novos currículos por meio da tecnologia digital. Segundo Mota,
“desburocratizar o currículo nacional seria fundamental para que esses profissionais

100 De um modo mais geral na sociedade, “comemos cada vez mais depressa pratos padronizados, regredimos
nos modos à mesa, visitamos com pressa museus, não nos damos tempo para mais nada e passamos mais horas
diante das telas do que em encontros reais com os outros”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 333).
101 Disponível em: http://porvir.org/porfazer/professor-futuro-sera-um-designer-de-curriculo/20130419. Acesso
em: 30 mar. 2015.
102 Disponível em: http://blog.abmes.org.br/?p=8721. Acesso em: 6 abr. 2015.
216

conseguissem remodelar seus planos de aula, além de criar programas e disciplinas mais
dinâmicas, tornando-os também mais empoderados”103. Também aqui é possível afirmar que a
busca pela inovação educacional mediante tecnologias digitais na Educação Infantil pode ser
um aguilhão que torna potente a documentação pedagógica como outra forma de registro
docente sobre a aprendizagem das crianças e torna o professor um inovador do seu tempo.
Tal debate sobre a articulação entre inovação e docência não é novo. Desde o
movimento da Escola Nova, por exemplo, podemos acompanhar as críticas aos processos
tradicionais e a busca por metodologias ativas. O que me parece pertinente mostrar aqui é que,
neste momento, o ingresso de recursos tecnológicos nas ações docentes no âmbito da
Educação Infantil possibilita reconfigurar um perfil bastante específico de ser professor junto
às crianças. As práticas de documentação pedagógica (não apenas estas, mas também outras
práticas) operam como tecnologia capaz de colocar em funcionamento a estratégia da
inovação docente.
Outro aspecto presente na inovação docente é a intensificação e a valorização da
autoavaliação do professor em relação à sua atuação junto às crianças. A autoavaliação
coloca-se como prática pedagógica inovadora por estar em relação com a utilização de
recursos tecnológicos, os quais possibilitam revisitar os registros a fim de adquirir hábitos
reflexivos. Nesse sentido, podemos ver movimentarem-se certos modos de fazer a
autoavaliação nas práticas de documentação pedagógica postuladas nos referenciais italianos:

Quadro 21 - Autoavaliação docente nas práticas da documentação pedagógica

Toda a equipe, incluindo os membros que não ensinam, encontra-se semanalmente para discutir e
planejar, garantindo que o conhecimento detalhado de cada criança seja observado e compartilhado.
(KATZ, 1999, p. 53, grifos meus).

[...] a documentação pedagógica não é considerada aqui como uma mera coleta de dados realizada
de maneira distante, objetiva e descompromissada. Pelo contrário, ela é vista como uma observação
aguçada e uma escuta atenta, registrada através de uma variedade de formas pelos educadores que
estão contribuindo conscientemente com sua perspectiva pessoal. (GANDINI; GOLDHABER, 2002,
p. 151, grifos meus).

Os professores, seja durante o dia escolar ou ao final do dia, fazem anotações sobre os
acontecimentos diários em cada sala de aula; com frequência, fazem desenhos ou acrescentam
cópias de desenhos das crianças e os pontos altos das conversas. Essas anotações são coladas na
entrada de cada sala, para convidar os pais a verificar o que aconteceu naquele dia. (Entrevista com
Mara Davoli, GANDINI, 2012, p. 113-114, grifos meus).
Continua.

103 Disponível em: http://porvir.org/porfazer/professor-futuro-sera-um-designer-de-curriculo/20130419. Acesso


em: 30 mar. 2015.
217

Para tornar o aprendizado das crianças visível, marcamos horários regulares para equipes de
professores e grupos de equipes de professores trabalharem juntos no planejamento, refletirem
sobre a experiência e produzirem a documentação. O processo de documentação constante do
nosso trabalho com as crianças e da sua aprendizagem foi crucial para avaliar nosso progresso e
para demonstrar a efetividade do nosso programa para os pais. (CADWELL, 2012, p. 207-208,
grifos meus).

[...] o coordenador pedagógico lê o material documental juntamente com os professores e o


atelierista, com o objetivo de revisar o que está acontecendo ou o que já aconteceu, para ir além
da interpretação mais óbvia e superficial. Essa cooperação ajuda a adquirir consciência da
aprendizagem que ocorre com as próprias observações (faz parte de aprender a aprender). É como
fornecer filtros uteis para avaliar o que estamos fazendo ou fizemos. (Entrevista com Tiziana
Filippina, GANDINI, 2012, p. 87, grifos meus).

Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).

Mesmo que o tempo seja visto como o principal desafio da autoavaliação da


documentação pedagógica, pois é “difícil encontrar tempo suficiente para conversar, tempo
para escutar, tempo para refletir, tempo para registrar e tempo para estar junto” (KINNEY;
WHARTON, 2009, p. 101), os professores devem encontrar meios sistemáticos de refletir
sobre o processo educacional, sabendo narrar e descrever as aprendizagens das crianças.
Encontros sistemáticos com colegas, horários marcados com equipes (coordenador e
atelierista), cartazes colados nas portas da sala de aula, enfim, são técnicas de exercitação
eficientes para a autoavaliação docente.
Por intermédio desse arranjo é que a documentação sustenta e implementa a
“pesquisa-ação” (FORTUNATI, 2014, p. 106) e constitui um “instrumento fundamental de
formação, supervisão e coordenação do trabalho dos educadores” (FORTUNATI, 2014, p.
107) em sua dimensão reflexiva: “a reflexão sobre a adequação dos contextos oferecidos e do
papel interpretado pelos adultos possibilita não somente uma avaliação e uma autoavaliação
do trabalho dos adultos, mas também o trabalho de revisão e atualização do projeto em
curso”. (FORTUNATI, 2014, p. 106). Para Fortunati, a documentação – o domínio de
ferramentas de observação e documentação para dar visibilidade aos processos de crescimento
e aprendizagem – é tomada como um dos principais ingredientes de uma profissionalidade
educativa, ou seja, é necessário e imprescindível ao professor, “através do aprimoramento
das ferramentas de observação e documentação, saber como contar fragmentos de histórias e
imagens de crianças que se relacionam com outras – positivamente e não o contrário”.
(FORTUNATI, 2014, p. 106).
218

Para fazer a autoavaliação, cabe ao professor desenvolver uma escuta atenta àquilo
que dizem as crianças, bem como às suas formas de aprender, conviver e brincar com os
outros amigos na escola. Para Rinaldi, “os educadores que sabem como observar,
documentar e interpretar os processos que as crianças experimentam autonomamente
perceberão, nesse contexto, seus maiores potenciais para aprender como ensinar”.
(RINALDI, 2012, p. 129). Assim, a documentação pedagógica é desenvolvida mediante
escuta sensível e “construção de traços (por meio de notas, slides, vídeos e assim por diante)
que, além de testemunhar os processos e trajetórias de aprendizado das crianças, também os
tornam possíveis para serem visíveis”. (RINALDI, 2012, p. 129).
Vale repetir que a documentação envolve observação, registro e interpretação, visto
que “nenhuma dessas ações pode realmente ser separada ou isolada das outras” (RINALDI,
2012, p. 131), extrapolando, avançando e articulando as noções anteriores de mera
observação, mero registro ou mera interpretação docente (essa questão é reforçada nos
referenciais italianos). Pela documentação, o pensamento do professor “se torna material, isto
é, tangível e capaz de ser interpretado” (RINALDI, 2012, p. 131), ou seja, se torna objetivo.
Cabe ainda salientar que, ao apropriar-se de instrumentos flexíveis e abertos, a documentação
pedagógica serve para “construir memória de um passado no qual se possa encontrar e
reconhecer as orientações e as reflexões para constituir e alimentar o futuro”.
(FORTUNATI, 2014, p. 103).
Ao analisar os referenciais italianos, tendo como lente de aumento as narrativas sobre
documentação pedagógica, foi possível sistematizar algumas palavras de ordem, tais como:
reler, revisitar, reconstruir, reevocar, ressignificar. As práticas de documentação permitem
que professores e crianças revisitem, reevoquem, relembrem e retomem os acontecimentos
escolares. Tal como destaca Rinaldi, “os materiais são colhidos durante a experiência, mas a
leitura e a interpretação acontecem no final do percurso. A releitura e a reevocação da
memória são, portanto, posteriores”. (RINALDI, 2014, p. 80). Para isso, alguns instrumentos
são necessários, pois permitem capturar o que aprendemos para podermos voltar quando
julgarmos necessário, como se fosse possível recuperar os saberes que já possuímos mediante
a observação externa de nós mesmos e da autoavaliação permanente. Vejamos o quadro
abaixo:
219

Quadro 22 - Reler, revisitar, reconstruir, reevocar, ressignificar como forma de autoavaliação

Os documentos (gravações em áudio e vídeo, notas escritas) são coletados, algumas vezes
catalogados, e trazidos de volta para releitura, revisitação e reconstrução da experiência.
(RINALDI, 2012, p. 120-121. Grifos meus).

Garantir e escutar aos outros e a si próprio é uma das tarefas primárias da documentação: isto é,
produzir traços/documentos capazes de testemunhar e de tornar visíveis as modalidades de
aprendizagem individual e de grupo, capazes de garantir ao grupo e a cada criança individualmente
a possibilidade de observar-se de um ponto de vista externo enquanto aprende (tanto durante
quanto após os processos). (RINALDI, 2014, p. 85 - 80-90. Grifos meus).

A documentação pedagógica pode contribuir como uma estratégia para, além de buscar o
envolvimento com as famílias, também preservar as memórias no tempo e no espaço em que
aconteceram, dando visibilidade às experiências vivenciadas pelas crianças e possibilitando ao
professor e às próprias crianças revisitar, reconstruir, ressignificar esses momentos vivenciados no
contexto escolar. (KINNEY; WHARTON, 2009. Grifos meus).

O conceito de documentação, como é usado nas pré-escolas e nas creches em Reggio Emilia, é um
procedimento usado para tornar a aprendizagem visível para que ela possa ser relembrada,
revisitada, reconstruída e reinterpretada como base para a tomada de decisões [...] o mais
importante, do ponto de vista de Reggio, é que a documentação aprofundada pode revelar os
caminhos que os alunos estão percorrendo para aprender e os processos que estão desenvolvendo
em busca do significado. (FYFE, 2016, p. 273, grifos meus).

Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).

Consta no material analisado que tanto as crianças - em relação às suas próprias


aprendizagens - quanto os professores - em relação àquilo que estão oferecendo como
possibilidade de aprendizagem - têm a possibilidade de fazer a autoavaliação ao revisitarem a
documentação. Aqui, todos são considerados ativos no processo, e a documentação serve
como tomada de consciência, atribuição de sentido e busca de significado para as experiências
individuais. Parece-me que estamos falando da experiência de si (LARROSA, 1994) e da
exercitação de si, formas individualizadas de estar na escola, em que um “eu” sempre ativo é
capaz de regular-se, avaliar-se, revisitar o que fez, reconstruir suas ações. O que está em jogo
aqui, de forma bastante evidente, é a capacidade que os professores devem desenvolver para
voltar-se para o seu interior e avaliar suas práticas pedagógicas, a fim de exercitarem-se e, por
meio da reflexão, exteriorizarem aquilo que extraíram de si. Trata-se de exercícios de
autoconhecimento que atuam na fabricação de certos tipos de sujeitos. É preciso fazer ver; é
preciso fazer ver-se. Aqui, o importante “não é que se aprenda algo ‘exterior’, um corpo de
conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva” consigo
mesmo. (LARROSA, 1994, p. 37).
220

Em suma, podemos acompanhar a produção de um arsenal de estratégias pedagógicas


acionadas nos modos de fazer a documentação pedagógica defendida nos referenciais
italianos analisados, as quais atuam no sujeito e na sua relação consigo mesmo e com os
outros. Palavras recorrentes, tais como releitura, revisitação e reconstrução da experiência,
estabelecem o tom da autoavaliação docente. Larrosa (1994), ao analisar a contingência da
experiência de si no discurso pedagógico atual (influenciado pela Psicologia Social do
Desenvolvimento, segundo o autor), percebe que os termos autoconhecimento, autoestima,
autocontrole, autoconfiança, autonomia, autorregulação e autodisciplina implicam algum
tipo de relação do sujeito consigo mesmo. O autor afirma que a própria experiência de si é “o
resultado de um complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os
discursos que definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as
formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria interioridade”. (LARROSA, 1994,
p. 47). Movimenta-se uma gramática de autoavaliação docente.
Larrosa (1994), ao apresentar um exemplo de atividade pedagógica do tipo de
"clarificação de valores", vinculada às práticas de "educação moral" nas quais se trabalham
explicitamente a experiência de si, afirma que “o que se aprende, em suma, é um significado
específico da singularidade do eu e da compreensão mútua. Também um significado
específico para coisas como ‘autoconhecimento’ e ‘autoavaliação’, ‘sinceridade’,
‘comunicação’ e ‘compreensão’". (LARROSA, 1994, p. 47). O referido autor afirma que há
uma íntima relação entre o discurso pedagógico e o discurso terapêutico e que as práticas
pedagógicas mostram semelhanças estruturais com as práticas terapêuticas. “A educação se
entende e se pratica cada vez mais como terapia, e a terapia se entende e se pratica cada vez
mais como educação ou re-educação”. (LARROSA, 1994, p. 41).
Nesse sentido, as práticas de registro da documentação pedagógica, ao investirem na
autoavaliação docente pela utilização de recursos tecnológicos capazes de capturar ações,
mobilizam inovação da docência no âmbito da Educação Infantil. Corroborando estudos feitos
por Larrosa (1994), as palavras-chave de tal enfoque são reflexão, autorregulação,
autoanálise, autocrítica, tomada de consciência, autoformação e autonomia, entre outras.
Trata-se de “formar e transformar um professor reflexivo, capaz de examinar e reexaminar,
regular e modificar constantemente tanto sua própria atividade prática quanto, sobretudo, a si
mesmo, no contexto dessa prática profissional”. (LARROSA, 1994, p. 50).
Sob essa perspectiva, os próprios sujeitos docentes são convocados a agir de forma
reflexiva sobre si mesmos, maximizando suas ações em torno da aprendizagem da criança. A
constituição da docência na Educação Infantil, mobilizada nas práticas de registro da
221

documentação, investe em recursos tecnológicos e autoavaliação para produzir uma docência


inovadora. Tal como as crianças, os docentes agem sobre si mesmos, de modo a regularem
suas ações, operando do seu interior. A autoavaliação docente, permeada pelo uso de
tecnologias digitais, traz a possibilidade de inovar as práticas pedagógicas na Educação
Infantil. Por meio da reflexão constante e sistemática sobre suas práticas de registro da
documentação pedagógica, o professor é capaz de inovar permanentemente as ações junto às
crianças, o que caracterizaria discursividades muito próprias da governamentalidade
neoliberal do nosso tempo.

4.3 O professor designer na Educação Infantil

[...] eles [os professores] devem traduzir os seus estudos das crianças em
um design para a educação. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 260).

Nesta seção, procuro fechar o circuito do estudo, apresentando o professor designer


como uma nova ênfase para a docência contemporânea na Educação Infantil, articulada com a
construção da criança protagonista. Para sustentar tal defesa, primeiramente, pretendo mostrar
como a ideia do design vem emergindo na trajetória cronológica dos próprios referenciais
italianos ao mostrarem as funções docentes e traçarem características da docência (portanto,
se trouxe à tona as expressões design da docência e professor designer, foi impulsionada por
alguns dos próprios referenciais italianos analisados). Por fim, problematizo os efeitos da
produção de um professor designer.
De forma bastante pontual, as expressões design e designer aparecem em três obras
dos referenciais italianos, a saber: O papel do ateliê na educação infantil: a inspiração de
Reggio Emilia (2012), Crianças, espaços, relações: como projetar ambientes para a
educação infantil (2013) e As cem linguagens da criança: a experiência de Reggio Emilia em
transformação (2016).
Gandini (2012), ao mapear o papel do atelierista, narra como Isabella Meninno e
Barbara Quinti, ambas atelieristas em Reggio Emilia, enxergam seu papel junto a crianças e
professores. Na ocasião, Isabella diz que concluiu seus estudos em um ambiente bastante
inovador de design em Milão e, assim, adquiriu capacidade de planejar e trocar metodologias
de design, desenvolvendo-se uma designer gráfica. (RABITTI, 2012, p. 116). Por esse
motivo, ao tornar-se atelierista em Reggio, ela acredita que sua formação contribuiu para
documentar os processos das crianças. Bárbara, por sua vez, sugere na entrevista que o adulto
não se feche dentro da escola, mas que tenha diálogos com “pessoas que não seus
222

professores, pessoas que venham do mundo do design ou das artes gráficas ou alguém que
possa lhe dar uma chave contemporânea para ler o mundo em que nós, os pais e as crianças
vivemos”. (GANDINI, 2012, p. 121). O foco desse debate parece-me que estava centrado na
formação do profissional que atua nos ateliês – o atelierista –, que poderia qualificar seu
trabalho e o dos demais adultos com as contribuições do design.
Posteriormente, Branzi (2013), ao trabalhar no projeto de pesquisa sobre ambientes
para as crianças pequenas e contribuir na construção de um espaço relacional com
flexibilidade de uso, aborda a relação entre design e didática, destacando que ambos “tentam
alcançar transformações materiais e cíveis de grande escala, começando não pelos
macrossistemas urbano e cultural, mas sim pela realidade dos microssistemas, no nosso caso,
pelas crianças e objetos do dia a dia”. (BRANZI, 2013, p. 129). Assim, educadores e
designers (didática e design) unem-se para enfrentar as questões atuais, uma vez que há uma
marca didática secreta nos projetos de design, uma vez que “sempre houve esforço para
definir um novo modelo de ser humano; isto é, uma definição (também formal) da nova
humanidade que a Modernidade estava no processo de construção”. (BRANZI, 2013, p.
130).
A autora acredita que o design italiano está mais aberto ao redescobrimento e, antes de
racional, contempla conhecimento simples, novo e democrático por não envolver um código
estilístico preestabelecido. “Dentro do modelo italiano de modernidade, a pesquisa didática e
o design desempenham um papel importante, e eu diria que o interesse internacional nas
creches e pré-escolas de Reggio Emilia é uma demonstração clara desse fato”. (BRANZI,
2013, p. 131). Ela acredita que a infância esteve presente no design italiano do pós-guerra e
que isso pode mostrar o quanto o design entra em oposição ao racionalismo, baseando-se na
espontaneidade, simplicidade e democracia, pois a criança é vista como oposição,
reformismo, antiautoritarismo. (BRANZI, 2013). Por vivermos num período de transição
permanente e de crise interminável, que, portanto, não é transitório, pois a única certeza é a
incerteza, a autora acredita, fazendo referência a Carla Rinaldi, que estamos numa “estação
de design”. Vivenciamos o fim dos movimentos históricos de vanguarda e o nascimento da
“vanguarda permanente”. Ao ensinar para aprender, é preciso “colocar o designer, e não o
design, no centro da didática. Isso quer dizer não contar com métodos infalíveis, mas tentar
desenvolver em cada indivíduo as habilidades analíticas necessárias para compreender o
mundo e as habilidades de criação para mudá-lo”. (BRANZI, 2013, p. 133).
Parece-me que nessa obra o design e o designer entram em ação para pensar os
espaços das escolas, de modo a auxiliar na conexão com a nova visão de infância e criança
223

competente. Assim, o design e os designers estariam a serviço da educação e da didática para


pensar em como desenvolver ao máximo as habilidades das crianças, estruturando ambientes
didaticamente adequados.
É na obra de 2016 que os termos design e designer são visibilizados de forma
associada com a documentação pedagógica e com os professores e as crianças. No capítulo
“Aprendizagem negociada pelo design, pela documentação e pelo discurso”, George Forman
e Brenda Fyfe acreditam que o conhecimento nunca é verificável apenas pela escuta e
observação, “mas ganha clareza por meio da análise negociada do próprio processo de
comunicação”. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 249). A aprendizagem negociada – aquela em
que o professor busca descobrir as crenças, suposições e teorias das crianças, formando uma
comunidade de aprendizes com as crianças, pais e demais professores – é definida pelos
autores por meio de três componentes – design, discurso e documentação –, os quais
dinamizam causas, efeitos e contraefeitos. Vejamos a definição dos conceitos e a explicação
dos autores para esses três componentes da aprendizagem negociada:

Quadro 23 - Design, discurso e documentação


Design: refere-se a qualquer atividade em que o designer (criança ou adulto) faça o registro de
um plano ou solução pretendida. Um desenho é um design se for feito com a intenção de orientar
um futuro leitor na construção dos itens desenhados ou especificar uma sequência de ações. [...] Os
designs podem ser feitos em muitas mídias: uma fonte de argila para guiar a construção de uma
fonte com canos e mangueiras, um boneco de arame para indicar movimento de dança para ensinar
a outros. Como o design será revisitado posteriormente para orientar as ações de outra pessoa, ele
deve ser criado de modo a ser lido. Portanto, o designer deve considerar a clareza da
representação, e não o seu realismo. [...] O valor educacional do design flui a partir da atitude
especial do designer, da construção de uma relação com o leitor, mesmo que seja ele mesmo ao
revisitar o design. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 251, grifos meus).

Discurso: Conota um desejo profundo de compreender as palavras uns dos outros. Discurso é mais
do que falar. Discurso conota um estudo mais reflexivo do que está sendo dito, uma luta para
compreender, em que falantes se confrontem construtivamente, experimentem o conflito e
busquem o lugar comum em meio a uma constante mudança de perspectivas. Com efeito, o
discurso é a análise da comunicação, um processo metalinguístico em que o significado é
questionado em nome do crescimento e da compreensão. (GEE, 1990; STUBBS, 1983, grifos
meus). O discurso é a voz que usamos para a escolarização e a aprendizagem (GOODMAN,
1992). O design e a documentação servem para focar, manter e aprimorar os discursos durante o
processo negociado da aprendizagem. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 251, grifos meus).

Continua.
224

Documentação: Refere-se a qualquer registro de desempenho (performance) que contenha detalhes


suficientes para ajudar outros a compreenderem o comportamento registrado. Enquanto o design
representa uma previsão ou um plano, a documentação registra o desempenho durante um encontro
de aprendizagem, assim como a interpretação do documentador daquele desempenho. [...] O
objetivo da documentação é explicar, e não simplesmente descrever. A documentação é mais que
uma ‘amostra dos trabalhos’. A documentação pode ser exibida publicamente, como em painéis de
fotografias com textos explicativos nas paredes da sala, ou pode ser colocada em um portfólio
para estudo posterior. Estritamente falando, a documentação não é uma avaliação formal do
progresso dos alunos, e sim uma forma de explicação para os membros da escola sobre a
aprendizagem das crianças e da mentalidade educacional das atividades curriculares. (FORMAN;
FYFE, 2016, p. 251-252, grifos meus).
Fonte: Elaborado pela autora a partir do conjunto de materiais que compõem o referencial italiano
(2016).

Como podemos perceber no quadro acima, o design é compreendido como uma


atividade em que o designer busca traçar um plano ou uma solução, utilizando algumas
mídias. O design, assim, pode afetar e melhorar a documentação, que, ao ser revisitada, pode
afetar e melhorar o discurso. O discurso documentado, por sua vez, pode afetar e melhorar a
próxima sessão de design, sendo que ele muda e é mudado pelo design e pela documentação,
ou seja, há um fluxo contínuo entre esses três componentes da aprendizagem negociada que
não é simples nem unilateral. “O design ajuda os professores a planejarem atividades que
virão a seguir”. (FORMAN; FYFE, 2016, p. 252).
Nos excertos destacados acima, vemos que as crianças e adultos podem ser designers
na escola, desde que produzam designs representativos, que os outros possam compreender.
Um desenho, uma escultura de argila, uma criação tridimensional, uma pintura, podem ser
exemplos de design, conforme expõem os autores, em que cada um poderá mostrar suas
intenções e propósitos. Poderia dizer, grosso modo, que um design auxilia o adulto a
compreender aquilo que as crianças estão pensando, porém tal compreensão somente é
possível por meio da documentação, um processo de registro de desempenho ou de
performance da criança. Como todos são ativos no processo de aprender, todos são
potencialmente designers. Em síntese, parece-me que cabe ao professor documentar o
processo de design e discurso para explicar e dar visibilidade à aprendizagem das crianças.
Partindo da premissa de que as crianças são protagonistas de suas ações, seus projetos de
design geralmente não terão interferência do adulto, apenas o gerenciamento de
oportunidades, a fim de capturar e congelar o modo estético de produção do design.
Novamente, recorro aos estudos de Lipovetsky e Serroy quando afirmam que o design
estendeu seu domínio de racionalidade estética “a todas as coisas, a todas as experiências”.
225

(LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 253). O design estendeu seu domínio de racionalidade


estética inclusive para as ações e produções das crianças e dos professores na escola. Lá,
desenhos, esculturas, pinturas, são exemplos de design, tal como apontam os autores quando
dizem que o design é compreendido como uma forma de estetização operacional do mundo,
uma razão performática de entender a vida cotidiana, uma engenharia dos sentidos e um
gerenciamento das emoções. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 253-254). Nessa lógica, as
práticas de documentação pedagógica podem ser compreendidas como uma possibilidade de
congelar as emoções e os sentimentos expressos na elaboração dos designs.
Sob essas condições, é possível ver rastros da desejada revolução educacional focada
no uso das tecnologias digitais. Parece-me que a busca por um professor designer, atrelada às
práticas de documentação pedagógica, me possibilitam uma leitura apropriada para as
questões da infância contemporânea. Registros que utilizam alguns recursos digitais para
mostrar as aprendizagens das crianças; registros que objetivam ser instantâneos como as
tecnologias; registros que visam a capturar e publicizar o cotidiano vivenciado, nesse caso,
estetizando a vida das crianças na escola. Registros que, mediante sua nova estética, seduzem,
mexem com os sentimentos, com as emoções e com as sensibilizações do social. Registros
que acentuam a individualização, pois, mesmo mostrando as crianças em pequenos ou
grandes grupos, é sempre do interesse e protagonismo individual que estamos a falar.
Registros que, ao enfatizarem o gerenciamento de oportunidades, pouco ou nada propõem no
coletivo, uma vez que é preciso deixar cada criança fazer suas escolhas. Registros que
espetacularizam as vidas na escola, tanto das crianças, quanto dos professores.
As práticas de registro da documentação pedagógica, ao objetivarem um avanço na
elaboração de pareceres e relatórios de avaliação, não definem periodicidade para
compartilhar os registros (antes, nos pareceres ou relatórios, havia periodicidade definida
trimestralmente ou semestralmente, por exemplo), pois são compartilhados sempre que o
professor considerar necessário e sempre que mapear novas aprendizagens e conquistas das
crianças. Com o ingresso de diferentes recursos e tecnologias, isso é possível, como também é
possível uma estética diferente na produção desse material, utilizando fotografia, filmagem,
transcrição de falas das crianças, digitalização de suas produções, entre outros recursos
tecnológicos, como vimos acima.
O que importa agora na prática docente não é tanto rascunhar e observar para, depois,
ao final de um processo mais longo – bimestral, trimestral ou semestral –, registrar e
interpretar. O que conta é mostrar, quase diariamente, os avanços, as aprendizagens, as
conquistas, as novas aquisições das crianças na escola – “a escola se torna o lugar de
226

visibilidade total”. (AUGUSTO, 2015, p. 21). Vale recorrer às ideias de Saraiva e Veiga-Neto
(2009, p. 192) quando nos mostram a passagem do capitalismo industrial para o capitalismo
cognitivo e o deslocamento de ênfase da fábrica, “uma instituição de (re) produção de
mercadorias”, para a empresa, “uma instituição de inovação”, onde “o longo prazo já não
parece fazer sentido. Vive-se no curto prazo, numa cultura do instantâneo”. (SARAIVA;
VEIGA-NETO, 2009, p. 193). O que importa agora “é a satisfação imediata dos desejos, que,
tão logo satisfeitos se transformam em outros novos desejos a satisfazer”. (SARAIVA;
VEIGA-NETO, 2009, p. 193).
Na medida em que se acredita que a documentação pedagógica é uma possibilidade
mais justa e sem julgamentos de avaliação por contemplar ferramentas tecnológicas de
registro centradas naquilo que as crianças produzem na escola a partir de seus próprios
interesses, estamos colocando em ação estratégias mais refinadas e alargadas de registro que
capturam particularidades individuais e espetacularizam a infância. Na medida em que se
acredita que a documentação pedagógica é uma possibilidade de dar visibilidade às
aprendizagens infantis, estamos mobilizando estratégias mais refinadas e sutis que produzem
uma docência do tipo designer.
Por tudo isso, penso ter ficado claro que a docência contemporânea na Educação
Infantil não abandona, tampouco rejeita ou nega o ensino, mas coloca o professor numa nova
posição de sujeito. Uma posição designer, interessada em cultivar nas crianças o aprender a
aprender por si mesmas, motivadas pelos próprios interesses infantis. Trata-se de uma posição
designer investida numa docência inovadora e gerenciadora de oportunidades. Isso não
significa que o ensino não esteja em ação. Reafirmo aqui a mudança de ênfase que hoje recai
mais sobre o designer como modos atuantes de ser professor e de praticar o ensino. Biesta
defende a ideia de que a linguagem da aprendizagem opera como uma ideologia e faz com
que os professores se tornem uma “espécie de administradores de processos de aprendizagem
vazios e sem direção”. (BIESTA, 2016, p. 122)104.

104 Tradução minha.


227

CAPÍTULO 5
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para compreender as coisas, olhamos ao redor em busca de ajuda. (MILLER;


ROSE, 2012, p. 20).

Foi este exercício que procurei desenvolver até o momento: olhar ao meu redor e
buscar ajuda para compreender os movimentos escolares em relação às práticas de registro
docente e analisar que tipo de governamento da infância está posto em jogo na Educação
Infantil contemporânea. Com o objetivo do finalizar este trabalho investigativo e, ao mesmo
tempo, abrir possibilidades para novas pesquisas nessa área, há que relembrar os caminhos
percorridos, a fim de mostrar a tese defendida, tal como foi minha intenção, já nas escritas
iniciais, ao apresentar a citação do filósofo: “o que importa é acompanhar a marcha de um
mostrar”. (HEIDEGGER, 1979, p. 257).
Esta Tese buscou investigar como as práticas de registro docente denominadas de
documentação pedagógica operam como tecnologia de governamento da infância
contemporânea. Postas em funcionamento juntamente com outros elementos que compõem a
maquinaria escolar, as práticas de registro docente produzem modos muito particulares de ser
criança e de ser professor na escola de Educação Infantil do nosso tempo. Mostrar tal
funcionamento como tecnologia de governamento da infância, operando por meio de
estratégias bastante sutis, porém permanentes, eficientes e cada vez mais refinadas e
inovadoras, foi um dos principais investimentos da Tese. Outro desafio foi problematizar essa
forma de registro docente das aprendizagens sem deixar de ressaltar os aspectos que podem
criar formas de insurgências e de colocar em ação a potência da criança, até mesmo,
exercitando tanto uma ética quanto uma estética na infância e na docência. O maior desafio
foi tensionar as verdades que se naturalizam sobre as práticas de registro docente sobre as
aprendizagens da criança articuladas com uma infância e uma docência escolarizadas.
Reforço que os pesquisadores e estudiosos que defendem o uso da documentação pedagógica
o fazem baseados em um referencial que os permite dizer tais verdades. O que busquei fazer,
foi olhar com outras lentes teóricas para este referencial e mostrar aquilo que, talvez, não
tenha tenta visibilidade no momento social em que estamos vivendo, uma vez que outras
ordens de discursos são privilegiadas e permitidas.
Foi por isso que, na primeira parte da Tese, além de apresentar os conceitos que
sustentaram metodológica e analiticamente este estudo, minha intenção foi analisar as
condições de emergência das práticas de registro docente sobre os sujeitos infantis, mostrando
228

como a própria invenção e consolidação da infância na Modernidade, como a Pedagogia com


sua raiz psi e como a escola infantil atuam num mesmo plano de modo a garantir, qualificar e
naturalizar o registro do professor sobre a criança da Educação Infantil: daí o compromisso
assumido e naturalizado – todo professor de Educação Infantil registra “coisas” sobre seus
alunos, produzindo regimes de verdade sobre a infância, a criança, a escola, a docência.
Percebo que a emergência das práticas de registro denominadas de documentação pedagógica
se dá num contexto histórico, social, político e cultural bastante particular, estando ligada às
tramas da governamentalidade neoliberal e à lógica da seguridade, as quais, dentre outras
caracterizações, atuam na autorregulação do sujeito, levando cada indivíduo, desde tenra
idade, a gerenciar sua própria conduta e a empreender sua vida numa investida de
aprendizagem permanente, incitando-o à individualização. Daí a importância de mostrar as
formas de conduzir a conduta de si e da população por meio dos deslocamentos nas
tecnologias de poder – pastoral, disciplinar e biopolítico.
Entendo que a documentação pedagógica ocupa lugar de destaque e passa a ser
celebrada como forma adequada de avaliar as crianças nas escolas de hoje. Assim, foi
importante fazer um recuo histórico até a década de 1990, quando foram percebidos
deslocamentos nas práticas de registro docente. A documentação pedagógica é uma expressão
de inspiração nos referenciais italianos voltados à educação da primeira infância, emergindo
por volta de 1960 em algumas cidades italianas e, por volta do final da década de 1990, no
Brasil. Apesar da diferença de ênfases que os referenciais italianos apresentam, parece-me
possível identificar noções e lógicas comuns que são centrais para pensar as práticas de
registro na Contemporaneidade.
Os exemplares de documentação pedagógica produzidos por professores que atuam
em escolas de Educação Infantil no interior do Rio Grande do Sul, assim como os referenciais
italianos selecionados para a realização deste trabalho, constituíram o corpus empírico que me
possibilitou a visualização das práticas de registro da documentação pedagógica em
funcionamento. A análise empreendida nesta Tese possibilitou-me afirmar que tais práticas se
encaixam num contexto neoliberal de vida que celebra a centralidade dos processos
pedagógicos na aprendizagem da criança, esmaecendo o ensino e as propostas centradas no
professor. A partir daí, empreendi esforços analíticos e desenvolvi a segunda parte da Tese, na
qual mostrei como a documentação opera como tecnologia, cercada de estratégias que
produzem efeitos, tanto nas crianças quanto nos professores, produzindo, desta forma, uma
analítica das práticas de registro docente.
229

Ao tomar a governamentalidade como grade de inteligibilidade, percebi que tais


práticas, desejando governar menos, governam de forma muito mais eficiente, eficaz e sutil. A
governamentalidade neoliberal busca um governo que pretende deixar o sujeito livre para agir
de acordo com suas escolhas, um sujeito flexível e plástico nas dinâmicas do mercado
capitalista. O que pretendi defender e mostrar é que tais lógicas já iniciam na Educação
Infantil porque:
- a documentação pedagógica é sistemática, instantânea, quase diária, e captura
minúcias da criança, uma vez que não faz uso apenas da escrita (como nos pareceres e
relatórios trimestrais ou semestrais), mas de toda uma série de recursos tecnológicos
(fotografias, filmagens, gravação de áudios, transcrições de falas, digitalizações, entre outros);
- a documentação pedagógica permite registrar uma criança que empreende suas ações
na escola infantil, que tenha interesses próprios para aprender a aprender cada vez mais e
quase sozinha, sem a direção do professor, uma vez que essa criança é criativa, autônoma,
sujeito de direitos, ou seja, ela é protagonista. As próprias crianças são interpeladas a
escolherem livremente as atividades e as tarefas de seu próprio interesse; precisam, elas
próprias, empreender suas tarefas, sendo convocadas a aprender permanentemente, numa
sociedade de aprendizagem;
- a documentação pedagógica investe num professor que organiza os espaços escolares
e possibilita o maior número possível de oportunidades de aprendizagens aos alunos e, ao
mesmo tempo, investe num professor inovador, que utiliza recursos tecnológicos para
visibilizar aquilo que as crianças fazem na escola. As ações docentes deslocam-se de um
ensino mais coletivo, constante e uniforme a todos os alunos de um mesmo grupo para ações
mais pontuais voltadas à unicidade do indivíduo. Assim, as práticas docentes deslocam-se do
ensino coletivo para a centralidade da aprendizagem de cada sujeito infantil;
- a documentação pedagógica carrega uma proliferação discursiva acerca do não-
julgamento do professor em relação à criança –uma forma de avaliação mais justa e sem juízo
das crianças pelo adulto. Contudo, há que se analisar que estamos colocando em ação uma
tecnologia mais refinada e alargada de registro, que captura a minúcia de um detalhe.
Registram-se menos os conhecimentos que foram ensinados, e coloca-se mais ênfase nas
aprendizagens que cada criança conseguiu desenvolver.
As análises do material empírico de pesquisa, acompanhadas dos referenciais teóricos
de perspectiva foucaultiana, possibilitaram-me dizer que as práticas de registro da
documentação pedagógica atuam na estetização da infância e no design da docência
contemporâneas. Mesmo compreendendo a polissemia dessas duas expressões e os seus usos
230

em outras áreas do conhecimento, creio que ficou claro, no decorrer da escrita, que a
estetização e o design são aqui tomados como conceitos emergentes dos estudos do filósofo
francês Gilles Lipovetsky e do crítico de arte francês Jean Serroy, especialmente na obra A
Estetização do Mundo: viver na era do capitalismo artista. Eles afirmam que o capitalismo e
a economia liberal produzem efeitos nos modos de vida das pessoas, gerando a estetização
total da vida cotidiana, e que o design, acompanhado da moda, da publicidade, do cinema, do
show business, cria produtos carregados de sedução. A partir disso, tentei deixar claro como
as práticas de registro esteticizam a infância e oferecem uma docência design, ambas como
novas formas de vida na educação contemporânea.
Ao analisar a estetização de infância como efeito das práticas de registro da
documentação pedagógica, sinalizei duas estratégias em operação – o interesse infantil e o
aprender a aprender – que produzem a criança protagonista. Ao mesmo tempo, analisando o
design da docência como efeito das práticas de registro da documentação pedagógica, apontei
duas estratégias em operação – o gerenciamento de oportunidades e a inovação docente – que
produzem o professor do tipo designer. Postas em ação no campo educacional com outros
elementos da maquinaria escolar (currículo, planejamento, organização da rotina, entre outras
engrenagens), entendo que as práticas da documentação pedagógica fortalecem a centralidade
do processo educacional na escolha de oportunidades de aprendizagem feita pela criança,
desde tenra idade, e acabam por promover um individualismo – ou seja, a lógica é
individualista –, numa investida da produção da criança protagonista. Tais práticas favorecem
o desenvolvimento de novas regulações de subjetividades infantis e docentes.
E foi diante deste cenário que desenvolvi a seguinte tese: As práticas da documentação
pedagógica produzidas pela maquinaria escolar constituem a criança protagonista e o
professor designer. São acionadas por meio de estratégias do interesse infantil e do aprender a
aprender e mobilizadas por práticas docentes de gerenciamento de oportunidades e de
inovação docente.
Com tudo isso, quero dizer que entendo, a partir deste estudo, que o governamento da
infância não é, por si só, nem bom nem ruim; governamos as crianças, seja para o bem, seja
para o mal, ou porque queremos educa-las. Também quero dizer que as práticas de registro
docente da documentação pedagógica não são, em si, ruins ou negativas. Quando Michel
Foucault diz que “nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não significa exatamente o
mesmo que ruim” (FOUCAULT, 2010, p. 299), penso que governar a infância e as crianças é
perigoso, e nesse perigo há positividades e negatividades, em diferentes gradientes, fugindo
231

de uma visão binária. Precisamos pensar como e por que estamos governando a infância e as
crianças. Educamos a infância, entretanto, trata-se de problematizar como queremos educá-la.
Na Educação Infantil do nosso tempo, entende-se que é quase natural que a criança
seja o centro do processo educativo; entende-se também que é quase natural que o professor
seja gerenciador de oportunidades de aprendizagem; e entende-se que é natural que tudo seja
registrado e tornado público à sociedade. Minha intenção com este estudo foi deslocar tais
questões do plano natural, para então começar a analisar as práticas de registro a partir das
racionalidades política e pedagógica. Também foi dizer que a Educação Infantil não está fora
da governamentalidade neoliberal e, com isso, mostrar que, ao colocarmos os interesses
infantis em primeiro plano, ao promovermos o aprender a aprender, e ao celebrarmos o
protagonismo da criança, cada vez mais jogamos a educação para o plano do indivíduo. A
infância contemporânea vem sendo educada para a estetização da vida infantil. Tal como
afirma Carvalho (2016), “se a educação também é uma arte de governar, a crítica, nesse caso,
é uma capacidade de impor limites aos excessos de governo”. (CARVALHO, 2016, p. 15). É
essa crítica, ou a crítica radical, a hipercrítica (VEIGA-NETO, 2011), que procurei
movimentar neste empreendimento investigativo.
A escola de Educação Infantil engendra uma maquinaria que opera sobre o indivíduo –
cada indivíduo passa a ser único. E aqui, a posição do professor desloca-se. Se cada vez mais
a criança está no centro dos processos educacionais e é tratada no âmbito da individualização,
o que resta ao professor? Ser um designer e tratar cada criança na sua individualidade, como
um sujeito autocentrado. Se individualizarmos a infância, o que restará para a docência, senão
ser design?
Não posso dar as costas para toda essa produção e não provocar reações, mesmo
sabendo que eu mesma, como professora e formadora de futuros professores, estou imersa
neste tempo e nas mesmas práticas. Entretanto, esta não é a única forma e modo de registrar
as aprendizagens das crianças na escola. Sem a pretensão de fechar as questões, espero pelo
menos oferecer algumas pistas para pensar, uma vez que minha intenção não foi concluir e
sugerir às escolas e professores que deixem de fazer registros e que se posicionem contrários à
documentação. Na verdade, o que fiz, e pretendo seguir fazendo, é mostrar possibilidades de
leitura do real, de tal forma, que essa leitura possa significar um instrumento de lutas
possíveis no que diz respeito ao governamento da infância contemporânea. Produzir linhas de
forças, pontos de resistências, dar vida à cultura do estranhamento sobre aquilo que falamos e
fizemos com as crianças nas escolas e, sobretudo, meu desejo é instaurar a dúvida, suspender
certezas, resistir aos clichês e as representações sobre as quais repousamos o nosso
232

pensamento no campo educacional. Antes de tudo, espero ter apresentado problematizações e


definir alguns pontos sobre os quais nós, pedagogos e especialistas em Educação Infantil,
precisamos debater mais conjuntamente. Há que seguir pensando sobre as práticas de registro
docente na Educação Infantil, pois, “se tudo é perigoso, então sempre temos algo a fazer”.
(FOUCAULT, 2010, p. 299). Alegro-me em pensar que a Tese que defendo é um convite para
não colocarmos limites no potencial criativo das crianças e de seus professores. Esse é o
convite que faço aos profissionais que se ocupam da educação da infância contemporânea e se
responsabilizam pelos efeitos de suas práticas pedagógicas.
233

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GANDINI, Lella; FORMAN, George. As cem linguagens da criança: a abordagem de
Reggio Emilia na Educação da primeira infância. Porto Alegre: Calábria, 1999. p. 37-55.

MALAGUZZI, Lóris. História, Ideias e Filosofia Básica. In: EDWARDS, Carolyn;


GANDINI, Lella; FORMAN, George. As cem linguagens da criança: a abordagem de
Reggio Emilia na Educação da primeira infância. Porto Alegre: Calábria, 1999. p. 59-104.

MANTOVANI, Susanna. Prefácio edição inglesa. In: FORTUNATI, Aldo. A educação


infantil como projeto da comunidade. Porto Alegre: Artmed, 2009. p. 23-26.

MOSS, Peter. Prefácio edição inglesa. In: FORTUNATI, Aldo. A educação infantil como
projeto da comunidade. Porto Alegre: Artmed, 2009. p. 19-22.
253

PINAZZA, Mônica Appezzato. John Dewey: inspirações para uma pedagogia da infância. In:
OLIVEIRA-FORMOSINHO, Júlia; KISHIMOTO, Tizuco; PINAZZA, Mônica Appezzato.
Pedagogia(s) da Infância: dialogando com o passado: construindo o futuro. Porto Alegre:
Artmed, 2007.

PINAZZA, Mônica Appezzato. Desenvolvimento profissional em contexto: estudo de


condições de formação e mudança. In: KISHIMOTO, Tizuco; OLIVEIRA-FORMOSINHO,
Júlia. Em busca da pedagogia da infância. Porto Alegre: Penso, 2013.

RABITTI, Giordana. À procura da dimensão perdida: Uma Escola de Infância de Reggio


Emilia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

RINALDI, Carlina. O currículo emergente e o construtivismo social. In: EDWARDS,


Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George. As cem linguagens da criança: a abordagem
de Reggio Emilia na Educação da primeira infância. Porto Alegre: Calábria, 1999. p. 113-122.

RINALDI, Carlina. Reggio Emilia: a imagem da criança e o ambiente em que ela vive como
princípio fundamental. In: GANDINI, Lella; EDWARDS, Carolyn (Org.). Bambini: a
abordagem italiana à educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 75-80.

RINALDI, Carla. Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar, aprender. São Paulo: Paz
e Terra, 2012.

RINALDI, Carla. O ambiente da infância. In: CEPPI, Giulio; ZINI, Michele (Orgs.).
Crianças, espaços, relações: como projetar ambientes para a educação infantil. Porto Alegre:
Penso, 2013. p. 122-128.

RINALDI, Carla. Documentação e avaliação: qual a relação? In: ZERO, Project. Tornando
visível a aprendizagem: crianças que aprendem individualmente e em grupo. São Paulo:
Editora Phorte, 2014. p. 80-95.

RINALDI, Carla. A pedagogia da escuta: a perspectiva da escuta em Reggio Emilia. In:


EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George (orgs.). As cem linguagens da
criança: a experiência de Reggio Emilia em transformação. Porto Alegre: Penso, 2016. p.
235-248.

RUBIZZI, Laura. Documentar o documentador. In: ZERO, Project. Tornando visível a


aprendizagem: crianças que aprendem individualmente e em grupo. São Paulo: Editora
Phorte, 2014. p. 96-117.

SCHWALL, Charles. O ambiente e os materiais do ateliê. In: GANDINNI, Lella et al (orgs.).


O papel do ateliê na educação infantil: a inspiração de Reggio Emilia. Porto Alegre: Penso,
2012, p. 31-47.

SEIDEL, Steve. Começar em casa a compreender a documentar. In: ZERO, Project.


Tornando visível a aprendizagem: crianças que aprendem individualmente e em grupo. São
Paulo: Editora Phorte, 2014. p. 310-319.

VECCHI, Vea. O papel do atelierista. In: EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella;


FORMAN, George (orgs.). As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia
na Educação da primeira infância. Porto Alegre: Calábria, 1999. p. 129-135.
254

VECCHI, Vea. A curiosidade do entender. In: ZERO, Project. Tornando visível a


aprendizagem: crianças que aprendem individualmente e em grupo. São Paulo: Editora
Phorte, 2014. p. 160-215.

ZERO, Project. Tornando visível a aprendizagem: crianças que aprendem individualmente


e em grupo. São Paulo: Editora Phorte, 2014.
255

APÊNDICE A - MODELO DO QUADRO DE SISTEMATIZAÇÃO DAS 17 OBRAS


ANALISADAS

OBRA: EDWARDS, C; GANDINI, L; FORMAN, G. As cem linguagens da criança: a


abordagem de Reggio Emilia na Educação da primeira infância. Porto Alegre: Calábria, 1999.
Aspectos gerais Livro documenta conjunto de escolas criadas nos últimos 30 anos em Reggio
e importantes a Emília, norte da Itália. Lóris Malaguzzi é considerado “gênio condutor de
serem Reggio” (GARDNER, 1999), pois teve interesse na construção de uma nova
destacados da escola após a Segunda Guerra Mundial. Foi Diretor do Sistema de Reggio Emilia
obra de Educação Municipal para a Primeira Infância.

Recebeu selo de “As Dez melhores escolas do mundo” pela revista Newsweek,
em 1991.

Imagem de “As crianças não são encaminhadas correndo ou sequencialmente apressadas de


criança uma atividade para outra diferente, mas são encorajadas, ao invés disso, a repetir
experiências fundamentais, a observar e reobservar, a considerar e reconsiderar, a
representar e novamente representar”. (EDWARSDS; GANDINI, FORMAN,
1999, p. 25).

“As crianças pequenas dependem dos adultos em muitos aspectos de suas vidas e
de suas experiências de aprendizagem; entretanto, o trabalho em projetos é a parte
do currículo na qual os seus próprios interesses, ideias, preferências e escolhas
podem ter rédeas relativamente soltas. [...] As experiências precoces de domínio
de conhecimento podem formar a base de uma disposição permanente para buscar
a compreensão em profundidade sobre tópicos que merecem atenção”. (KATZ,
1999, p. 41).

“Parece-me que as crianças de Reggio Emilia abordam a tarefa de desejar o que


quer que estejam estudando com disposição e assiduidade”. (KATZ, 1999, p. 41).

“[...] a maior parte do trabalho com as crianças em Reggio Emilia é realizado em


pequenos grupos. Não foi observada qualquer evidência de que todas as crianças
em uma classe estivessem sujeitas à instrução ao mesmo tempo”. (KATZ, 1999, p.
50) – são pequenos grupos de crianças mistas.

“[...] as crianças mostram-nos que sabem como caminhar rumo ao entendimento.


Uma vez que as crianças sejam auxiliadas a perceber a si mesmas como autoras
ou inventoras, uma vez que sejam ajudadas a descobrir o prazer da investigação,
sua motivação e interesse explodem. [...] Desapontar as crianças priva-as das
possibilidades que nenhuma exortação pode fazer surgir, nos anos posteriores”.
(MALAGUZZI, 1999, p. 76-77).

As crianças são produtoras e não consumidoras. (MALAGUZZI, 1999, p. 83).

“As crianças sabem que quando vão em busca de suas metas podem fazer suas
próprias escolhas, e que isso é tão libertador quanto revitalizante”.
256

(MALAGUZZI, 1999, p. 98-99).

“Nossas crianças têm muitas escolhas: possuem locais onde podem estar a sós, em
pequeno grupo, em um grupo grande, com os professores ou sem eles, no atiler,
no mini-atelier, na grande piazza ou, se o tempo está bom, no jardim fora da
escola, que possui muitas estruturas, pequenas e grandes, para brincadeiras.
Contudo, a opção por trabalhar em pequenos grupos, nos quais exploram, juntos,
agrada tanto às crianças quanto a nós. Em vista disso, a sala de aula é
transformada em um grande espaço com pequenos agrupamentos, cada um com
suas próprias crianças e seus próprios projetos e atividades”. (MALAGUZZI,
1999, p.99).

“[...] imagem das crianças como ricas, fortes e poderosas. A ênfase é colocada em
vê-las como sujeitos únicos com direitos, em vez de simplesmente com
necessidades. Elas têm potencial, plasticidade, desejo de crescer, curiosidade,
capacidade de maravilharem-se e o desejo de relacionarem-se com outras pessoas
e de comunicarem-se”. (RINALDI, 1999, p. 114).

“Para nós, cada criança é única e é protagonista de seu próprio crescimento”.


(FILIPPINI, 1999, p. 124).

Funções “Os professores sabem como escutar as crianças, como permitir que tomem a
Docentes iniciativa e, também, guiá-las de formas produtivas”. (Gardner, p. XI).

“As salas de aula são organizadas para apoiar a aprendizagem por meio de um
enfoque altamente cooperativo de solução de problemas. Outras características
importantes são o uso de pequenos grupos na aprendizagem de projetos, a
continuidade de professores/alunos (2 professores trabalham juntos com a mesma
classe por 3 anos) e o método de gerenciamento baseado na comunidade”.
(EDWARSDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 23).

Os professores devem manejar “habilidosamente as suas câmeras de filmagem e


vídeo”. (MALAGUZZI, 1999, p. 80).

Os professores “Devem aprender a nada ensinar às crianças, exceto o que podem


aprender por si mesmas. [..] Devem perceber que escutar as crianças é tanto
necessário quanto prático. Devem saber que as atividades devem ser tão
numerosas quanto as teclas de um piano, e que todas envolvem atos infinitos de
inteligência quando as crianças recebem uma ampla variedade de opções a partir
das quais escolher”. (MALAGUZZI, 1999, p. 83).

“É óbvio que entre a aprendizagem e o ensino, honramos a primeira. Não é o caso


de desprezarmos o ensino, mas declaramos: ‘Coloque-se de lado por um momento
e deixe espaço para aprender, observe cuidadosamente o que as crianças fazem e
então, se você entendeu bem, talvez ensine de um modo diferente de antes”.
(MALAGUZZI, 1999, p. 93). “[...] o ensino pode ser a força para aprender a
aprender”. (MALAGUZZI, 1999, p. 94). “Aprender e reaprender com as crianças
é a nossa linha de trabalho”. (MALAGUZZI, 1999, p. 98).

“O desafio para o adulto é estar presente sem ser um intruso, a fim de manter
257

melhor a dinâmica cognitiva e social enquanto está em progresso.


Ocasionalmente, ele deve apoiar o conflito produtivo desafiando as respostas de
uma ou de várias crianças. Em outros momentos, deve envolver-se para reviver
uma situação, quando as crianças estão perdendo o interesse, porque o mapa
cognitivo que está sendo construído está além ou abaixo das capacidades atuais
delas. O professor permanece sempre um observador atento e, além disso, um
pesquisador. As observações e fitas transcritas do educador são levadas aos
colegas, para a reflexão em grupo. As fitas produzem discussão e conflito no
próprio pesquisador e no grupo em geral, que são tão importantes quanto os
conflitos e discussões, citados anteriormente, entre as crianças”. (RINALDI, 1999,
p. 117).

“O papel do professor centraliza-se na provocação de oportunidades de


descobertas, através de uma espécie de facilitação alerta e inspirada e de
estimulação do diálogo, de ação conjunta e da co-construção do conhecimento
pela criança”. (EDWARDS, 1999, p. 161). “[...] o professor guia a aprendizagem
de um grupo de crianças buscando ideias dos indivíduos para usá-las na
formulação da ação do grupo”. (EDWARDS, 1999, p. 162).

“Os professores prestam atenção, constantemente, à atividade das crianças.


Acreditam que quando as crianças trabalham em um projeto de interesse para elas,
encontrarão naturalmente os problemas e questões que desejarão investigar”.
(EDWARDS, 1999, p. 164) = retomar todo parágrafo sobre papel do docente =
estimular/ provocar oportunidades (p. 175).

Abordagem da “[...] os educadores percebem que documentar sistematicamente o processo e os


documentação resultados de seu trabalho com as crianças serviria sistematicamente a três
pedagógica funções cruciais: oferecer às crianças uma memória concreta e visível do que
disseram e fizeram, a fim de servir como um ponto de partida para os próximos
passos na aprendizagem; oferecer aos educadores uma ferramenta para as
pesquisas e uma chave para melhoria e renovação contínuas; e oferecer aos pais e
ao público informações detalhadas sobre o que ocorre nas escolas, como um meio
de obter suas reações e apoio”. (EDWARSDS; GANDINI; FORMAN, 1999,
p.25).

“[...] os desenhos significam relativamente pouco sem a documentação feita pelos


professores daquilo que as crianças disseram sobre o que observaram e viveram.
Gravados, os comentários e discussões das crianças oferecem aos professores um
conhecimento sobre seus níveis de entendimento e seus enganos de percepções
sobre fenômenos cotidianos”. (KATZ, 1999, p. 39).

“A abordagem do currículo parece ser a de que as características, aptidões,


necessidades e interesses de cada criança individual são examinadas e
monitoradas por extensos registros e documentação. Toda a equipe, incluindo os
membros que não ensinam, encontram-se semanalmente para discutir e planejar,
garantindo que o conhecimento detalhado de cada criança seja observado e
compartilhado”. (KATZ, 1999, p. 53).

Os professores “devem descobrir modos de comunicar e documentar as


258

experiências crescentes das crianças na escola, devendo preparar um fluxo


constante de informações de qualidade, voltado aos pais, mas também apreciado
pelas crianças e pelos professores. Este fluxo de documentação, acreditamos,
apresenta aos pais uma qualidade de conhecimentos que muda tangencialmente
suas expectativas. Eles reexaminam suas suposições sobre seus papéis como pais
e suas visões sobre a experiência vivida por seus filhos e assumem uma
abordagem nova e mais crítica com toda a experiência escolar”. (MALAGUZZI,
1999, p. 80).

O ateliê auxilia na documentação e “obrigou-nos a refinar nossos métodos de


observação e registro”. (MALAGUZZI, 1999, p. 85).

“Há oficinas dedicadas à aquisição de habilidades técnicas, por exemplo, o


desenho e preparação de cartazes para a documentação do trabalho em projetos e
informações sobre a escola para pais e visitantes”. (FILIPPINI, 1999, p. 125)

“A outra função importante do atelier era a de oferecer uma oficina para


documentação. A documentação era vista então como uma possibilidade
democrática de informar o público sobre os conteúdos da escola [...]. Toda a
documentação – as descrições escritas, as transcrições das palavras das crianças,
as fotografias e atualmente as gravações em vídeo – torna-se uma fonte
indispensável de materiais que usamos todos os dias, para sermos capazes de ler e
refletir, tanto individual quanto coletivamente, sobre a experiência que estamos
vivendo, sobre o projeto que estamos explorando [...]. A câmera, o gravador, o
projetor de slides, a máquina de escrever, a câmera de vídeo, o computador e a
fotocopiadora são instrumentos absolutamente indispensáveis para o registro, para
a compreensão, para o debate entre nós e, finalmente, para a preparação de
documentos apropriados de nossa experiência”. (VECCHI, 1999, p. 131).

“A documentação sistemática permite que cada professor se torne um produtor de


pesquisas, isto é, alguém que gera novas ideias sobre o currículo e sobre a
aprendizagem, em vez de ser meramente um ‘consumidor da certeza e da
tradição”. (EDWARDS, 1999, p. 164).
259

APÊNDICE B - CARTA DE ANUÊNCIA À DIREÇÃO DA ESCOLA

CARTA DE ANUÊNCIA

Eu, ___________________________________________________, na condição de Diretor


desta Instituição Escolar, aceito que a pesquisadora Cláudia Inês Horn, aluna do Doutorado em
Educação do Programa de Pós Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS,
sob a orientação da Professora Dr. Elí Terezinha Henn Fabris, desenvolva sua pesquisa intitulada “A
PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES DOCENTES E INFANTIS NOS REGISTROS DA
DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA”, coletando dados neste estabelecimento educacional. Esta
pesquisa tem como objetivo compreender como as práticas de registro docente sobre a aprendizagem
dos sujeitos infantis colocadas em funcionamento nos espaços escolares produzem efeitos nos
processos de subjetivação da docência e da infância contemporâneas.

A metodologia da pesquisa envolverá a coleta e a análise dos registros de “documentação


pedagógica” desenvolvidos pelos professores da Educação Infantil desta Instituição Escolar. Estes
registros serão divulgados e publicados na tese, garantido o sigilo nominal e a não identificação da
escola, dos professores e das crianças envolvidas. Caso estes registros contiverem fotografias de
crianças e adultos, as mesmas serão borradas, evitando o reconhecimento dos mesmos.

Ciente dos objetivos, métodos e técnicas que serão usados nesta pesquisa, concordo em
fornecer alguns exemplares de registro da “documentação pedagógica” produzidos por alguns
professores desta Escola, desde que seja assegurado o que segue abaixo:

1) O cumprimento das determinações éticas na pesquisa em Educação;

2) A garantia de solicitar e receber esclarecimentos antes, durante e depois do desenvolvimento da


pesquisa;

3) Que não haverá nenhuma despesa para esta instituição que seja decorrente da participação nessa
pesquisa;

4) No caso do não cumprimento dos itens acima, a liberdade de retirar minha anuência a qualquer
momento da pesquisa sem penalização alguma.

................... , 15 de agosto de 2015.

(assinatura/carimbo)

Direção da Escola
260

APÊNDICE C - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO -


DIREÇÃO DA ESCOLA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

DIREÇÃO DA ESCOLA

Prezado (a) Diretor (a) da Escola,

Você está sendo convidado (a) a participar da pesquisa intitulada “A PRODUÇÃO DE


SUBJETIVIDADES DOCENTES E INFANTIS NOS REGISTROS DA DOCUMENTAÇÃO
PEDAGÓGICA”, desenvolvida pela pesquisadora Cláudia Inês Horn, aluna do Doutorado em
Educação do Programa de Pós Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS,
sob orientação da Professora Dr. Elí Terezinha Henn Fabris. Esta pesquisa tem como objetivo
compreender como as práticas de registro docente sobre a aprendizagem dos sujeitos infantis
colocadas em funcionamento nos espaços escolares produzem efeitos nos processos de subjetivação da
docência e da infância contemporâneas. Justifica-se a importância desta temática, um vez que a
Educação Infantil, primeira etapa da educação Básica, tem como prática o registro docente e a
avaliação do desenvolvimento das crianças.

A metodologia da pesquisa envolverá a coleta e a análise dos registros de “documentação


pedagógica” desenvolvidos pelos professores da Educação Infantil desta Instituição Escolar. Estes
registros serão divulgados e publicados na tese, garantido o sigilo nominal e a não identificação da
escola, dos professores e das crianças envolvidas. Caso estes registros contiverem fotografias de
crianças e adultos, as mesmas serão borradas, evitando o reconhecimento dos mesmos.

Desta forma, assumo com você os seguintes compromissos:

1. De que sua identidade, assim como as identidades de todas (os) as(os) participantes serão mantidas
em sigilo; de que nenhuma pessoa será identificada e que se manterá o anonimato, das(os)
participantes, em quaisquer momentos que impliquem a divulgação dessa pesquisa.

2. De que as informações reunidas serão usadas, única e exclusivamente, para fins desta pesquisa e dos
trabalhos científicos que dela poderão se desdobrar.

3. De que os resultados lhe serão apresentados, pois esse retorno permitirá que você tome ciência das
informações produzidas durante a pesquisa, assim como assegurará que tais informações não serão
utilizadas em prejuízo ou para a estigmatização das pessoas envolvidas.

4. Do caráter voluntário de seu consentimento. Caso você tenha interesse em desistir da participação
na pesquisa, isso poderá ser feito em qualquer fase do grupo focal, sem penalização alguma.

5. Da garantia de que você pode receber respostas a qualquer momento sobre os procedimentos e
outros assuntos relacionados com a pesquisa, por meio de e-mail: [email protected] ou pelo
telefone (51) 96914972.

6. De que você não terá nenhum tipo de despesa para participar desta pesquisa, bem como nada será
pago por sua participação.
261

7. Este Termo será assinado em duas vias, ficando uma em seu poder e a outra coma pesquisadora
responsável.

Portanto, na condição de Diretor (a), autorizo a utilização de alguns exemplares de


“Documentação Pedagógica” produzidos por professores deste estabelecimento, para realização da
pesquisa. Estou ciente de que esse tipo de pesquisa exige uma apresentação de resultados, por isso
autorizo a divulgação para fins exclusivos de publicação, divulgação científica e para atividades
formativas de educadores.

_________________________________________________ de 2015.

Nome do Participante: ________________________________________________

Assinatura do Participante:_____________________________________________

Nome da Pesquisadora: _______________________________________________

Assinatura da Pesquisadora:____________________________________________
262

APÊNDICE D - TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO - PROFESSOR (A)


DA ESCOLA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

DOCENTE DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Prezado (a) Professor (a) da Escola,

Você está sendo convidado (a) a participar da pesquisa intitulada “A PRODUÇÃO DE


SUBJETIVIDADES DOCENTES E INFANTIS NOS REGISTROS DA DOCUMENTAÇÃO
PEDAGÓGICA”, desenvolvida pela pesquisadora Cláudia Inês Horn, aluna do Doutorado em
Educação do Programa de Pós Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS,
sob orientação da Professora Dr. Elí Terezinha Henn Fabris. Esta pesquisa tem como objetivo
compreender como as práticas de registro docente sobre a aprendizagem dos sujeitos infantis
colocadas em funcionamento nos espaços escolares produzem efeitos nos processos de subjetivação da
docência e da infância contemporâneas. Justifica-se a importância desta temática, um vez que a
Educação Infantil, primeira etapa da educação Básica, tem como prática o registro docente e a
avaliação do desenvolvimento das crianças.

A metodologia da pesquisa envolverá a coleta e a análise dos registros de “documentação


pedagógica” desenvolvidos pelos professores da Educação Infantil desta Instituição Escolar. Estes
registros serão divulgados e publicados na tese, garantido o sigilo nominal e a não identificação da
escola, dos professores e das crianças envolvidas. Caso estes registros contiverem fotografias de
crianças e adultos, as mesmas serão borradas, evitando o reconhecimento dos mesmos.

Desta forma, assumo com você os seguintes compromissos:

1. De que sua identidade, assim como as identidades de todas (os) as(os) participantes serão mantidas
em sigilo; de que nenhuma pessoa será identificada e que se manterá o anonimato, das(os)
participantes, em quaisquer momentos que impliquem a divulgação dessa pesquisa.

2. De que as informações reunidas serão usadas, única e exclusivamente, para fins desta pesquisa e dos
trabalhos científicos que dela poderão se desdobrar.

3. De que os resultados lhe serão apresentados, pois esse retorno permitirá que você tome ciência das
informações produzidas durante a pesquisa, assim como assegurará que tais informações não serão
utilizadas em prejuízo ou para a estigmatização das pessoas envolvidas.

4. Do caráter voluntário de seu consentimento. Caso você tenha interesse em desistir da participação
na pesquisa, isso poderá ser feito em qualquer fase do grupo focal, sem penalização alguma.

5. Da garantia de que você pode receber respostas a qualquer momento sobre os procedimentos e
outros assuntos relacionados com a pesquisa, por meio de e-mail: [email protected] ou pelo
telefone (51) 96914972.

6. De que você não terá nenhum tipo de despesa para participar desta pesquisa, bem como nada será
pago por sua participação.
263

7. Este Termo será assinado em duas vias, ficando uma em seu poder e a outra coma pesquisadora
responsável.

Portanto, a condição de Professor (a), autorizo a utilização de alguns exemplares de


“Documentação Pedagógica” produzidos por mim, para realização desta pesquisa. Estou ciente de que
esse tipo de pesquisa exige uma apresentação de resultados, por isso autorizo a divulgação para fins
exclusivos de publicação, divulgação científica e para atividades formativas de educadores.

__________________________________________________________ de 2015.

Nome do Participante: _______________________________________________________

Assinatura do Participante:____________________________________________________

Nome da Pesquisadora: ______________________________________________________

Assinatura da Pesquisadora:___________________________________________________

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