Ética
Ética
Ética
Lattes
No vídeo a seguir, Jelson Oliveira apresenta os principais modelos éticos, além de demonstrar
a importância de compreender e aplicar esses conceitos no dia a dia.
Ética – Introdução
Ética
Muitos pensadores têm classificado nosso tempo como tempo de crises. Motivos para isso não
faltam: vivemos a maior crise sanitária dos últimos tempos com a pandemia do novo Coronavírus.
Assim, estamos diante de uma emergência climática sem precedentes, uma vez que a tecnologia
promete alterar, significativamente, o nosso modo de vida a curto e médio prazo.
Essas são crises significativas, que trazem questões importantes para o campo da ética,
reconhecida como uma reflexão sobre as nossas ações no mundo. Podemos afirmar, todavia,
que a crise contemporânea tem um sentido muito mais profundo, porque suas raízes estão na
nossa forma de existência: trata-se, por isso, de uma crise ética, no sentido de que o nosso tempo
vive a crise dos fundamentos, dos valores e das virtudes que orientaram a vida social até agora.
É como se vivêssemos um tempo em que perdemos o sentido e a orientação da nossa vida: não
sabemos muito bem o que é certo e o que é errado, não conseguimos definir, com clareza, o bem
e o mal, a ambiguidade das nossas ações aumenta e o seu poder de impacto multiplica o perigo
de suas consequências. Conforme expressou o filósofo alemão Hans Jonas: “agora trememos
na nudez de um niilismo no qual o maior dos poderes se une ao maior dos vazios; a maior das
capacidades, ao menor dos saberes sobre para que utilizar tal capacidade” (JONAS, 2006, p.
65). Ou seja, temos muito poder, mas não temos orientação sobre como usá-lo: é assim que a
crise ética se articula com o problema da tecnologia. Vejamos, a seguir, como isso se efetiva.
Um tempo de crises
A situação em pauta faz com que o nosso tempo seja descrito com palavras pouco honrosas:
era dos extremos (Eric Hobsbawm), era do vazio, sociedade da decepção (Gilles Lipovetsky),
era do efêmero, sociedade individualizada, sociedade do cansaço (Byung-Chul Han), tempos
líquidos (Zygmunt Bauman), tempo de perplexidades e de depressão (Frei Betto).
Essas expressões refletem algumas características centrais da nossa vida ética: nenhuma lei
definitiva (antinomismo), ausência de regras definitivas aceitas pela maioria (amoralismo ou
mesmo imoralismo), reivindicação de liberdade absoluta (libertinismo), promoção de certa
apatia diante dos problemas comuns, desinteresse pelo espaço público, prisão ao presente
(imediatismo), hostilidade ou indiferença em relação à natureza, crença cega nos poderes da
tecnologia, consumismo etc.
Essa crise teria começado precisamente no final do século XIX, quando vários pensadores
tematizaram aquilo que ficou conhecido na filosofia com o nome de niilismo. Em latim, nihil
significa “nada” e expressa um vazio, um esvaziamento, uma perda completa do sentido das coisas.
O niilismo, embora tenha começado na literatura, principalmente nas obras dos russos Dostoievsky
e Ivan Tourgueniev, chegou até a filosofia por meio do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, cujas
obras podem ser consideradas uma espécie de diagnóstico da crise que se abatia sobre a cultura.
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Nesse contexto, as cláusulas pétreas da civilização ocidental estavam em colapso, porque a
humanidade teria perdido três de seus valores centrais: a ideia de finalidade, de verdade e de
unidade. Tudo o que nós compreendemos como civilização ocidental estaria embasado nessas
três ideias: a finalidade é aquilo que dá sentido à nossa vida, que impõe uma meta às nossas
ações e orienta o que pode e o que não pode ser feito; a verdade é o que se torna inspiração,
é o que confirma que estamos no caminho certo, é o que fundamenta as nossas crenças; a
unidade tem a ver com a capacidade que temos de compreender o mundo ao nosso redor, de
reunir aquilo que é múltiplo e complexo, em algo unitário, de tornar compreensível a realidade.
Todas essas ideias estão no fundamento da nossa crise: perdemos o sentido da vida reduzido
a obrigações burocráticas e a desejos consumistas e individualistas; perdemos a inspiração
e a crença na verdade com letra maiúscula e passamos a acreditar em pequenas mentiras,
que nos levaram ao mundo das Fake News e da chamada pós-verdade, de forma a nos induzir a
substituir o senso crítico pelo conforto e bem-estar das notícias simples que nos chegam dos
nossos amigos e membros das nossas “bolhas de opinião”. Aqui, inclusive, primamos pelo acordo
afetivo e não pelo debate de ideias que sempre inclui a discordância; já não somos mais capazes
de compreender a complexidade do mundo e, por isso, acabamos por optar, muitas vezes, pela
ignorância, fechando os olhos para a nossa tendência ao conhecimento.
Nietzsche traduziu a situação por meio de uma metáfora que ficou amplamente famosa e
polêmica: no fragmento 125 de seu livro A Gaia Ciência, de 1882, ele afirmou que “Deus morreu”.
Deus, nesse caso, significa o fundamento último, a autoridade maior que servia de orientação
para as nossas ações no mundo. Não se trata simplesmente do Deus religioso, por isso. Trata-
se da autoridade das autoridades, do fundamento último dos nossos ideais de mundo, das
nossas expectativas, das nossas esperanças e de nossas utopias. Afirmar que “Deus morreu” é
expor que todos os fundamentos se perderam ou se esvaziaram. É como se o homem estivesse
sozinho no mundo e, agora, tivesse de reconstruir a partir de si mesmo – e somente a partir de
si mesmo – um caminho capaz de conduzi-lo para a vida boa, ou seja, à felicidade.
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Para Nietzsche, nem a filosofia racional herdada de Platão e Aristóteles, tampouco o cristianismo
e a modernidade foram capazes de oferecer esse caminho. Por esse motivo, tem-se a crise
como parte da descrença em relação às suas promessas. Para ele, sozinho no mundo, caberia
ao ser humano construir alternativas a partir de si mesmo, com base sempre na ideia de que a
vida precisa ser afirmada, independentemente do que ela seja.
A crise dos três fundamentos que nós denominamos cláusulas pétreas da cultura ocidental
acabou, por isso, levando à crise das autoridades parentais, ou seja, daquelas autoridades cujo
respeito atravessou a nossa história e traduziu os nossos ideais de mundo. Podemos afirmar, de
forma resumida, que são cinco as instituições que nos ajudavam a decidir o caminho do bem,
que transmitiam os valores de uma geração para outra, que orientavam as nossas ações no
mundo: a família, a escola, o emprego, as igrejas e o estado. Nessas instituições, a humanidade
explicitou os desafios da vida ética ao longo dos tempos. Cada uma delas guarda uma autoridade
parental: no caso da família, o pai; da escola, o professor; do emprego, o patrão; das igrejas,
o papa, o padre ou pastor; e, do estado, o político, o presidente, o parlamentar. Curiosamente,
todas essas autoridades começam com a letra P. Por essa razão, podemos compreender que
estamos diante do problema do P.
Agora, vivemos no tempo em que essas autoridades precisam se reinventar. Trata-se de uma
espécie de encruzilhada: o que fomos até agora já não serve mais e não sabemos qual é o
caminho que devemos tomar. Paira um grande nevoeiro sobre a nossa estrada e não conseguimos
enxergar muito bem o que deve ser feito, o que é o melhor a fazer. Esse é o nosso dilema; essa
é a nossa missão: ao pensar sobre a nossa crise, precisamos redescobrir maneiras de refundar
essas autoridades, dar-lhes um novo sentido.
Ninguém quer mais um pai que senta na ponta da mesa e dite todas as regras ou um político
autoritário, ou um modelo de professor que quebre uma régua nas nossas mãos. No seu lugar,
queremos lideranças comprometidas, que nos ajudem a crescer no diálogo, na democracia,
na construção conjunta de alternativas para a nossa vida. Eis a tarefa que nos cabe agora,
precisamente a nós que estamos atravessando essa crise.
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Os desafios éticos da tecnologia: o sentido ético dos
campos de concentração e da bomba atômica
Podemos afirmar que a crise do niilismo alcançou o seu auge nos eventos em torno da Segunda
Guerra Mundial. Com esse acontecimento, a crise dos fundamentos atingiu o seu auge na negação
da própria essência ou natureza do ser humano. Nenhum momento foi tão expressivo quanto a
Segunda Guerra Mundial nesse sentido. De um lado, esvaziamos a dignidade humana criando os
campos de concentração, o nazismo, e todas os experimentos com seres humanos realizados aí.
Quando alguém é simplesmente condenado à morte em uma câmara de gás, porque simplesmente
nasceu sendo quem é, sem nenhuma culpa moral que não aquela inserida na sua própria essência
enquanto ser humano, então, nesse caso, o que se nega e o que se repreende e condena constituem
mais do que o ato de uma pessoa, mas é o fato mesmo de que ela exista. Foi exatamente o que
fizeram com os judeus, os ciganos, os homossexuais e outros indesejados sociais.
Além disso, a Segunda Guerra Mundial explicitou como a racionalidade humana poderia ser maléfica
para a vida em geral. Com a invenção da bomba atômica, a humanidade experimentou o gosto
amargo dessa racionalidade: usada, agora, para o empoderamento tecnológico, tal racionalidade
se expressou pela via da destruição e da morte não apenas dos seres humanos, mas dos seres vivos
em geral. Com a bomba atômica, os seres humanos descobriram o grande poder em suas mãos:
um poder que precisa, como nunca, de um controle capaz de orientar o seu uso responsável. Do
contrário, não haveria justificativa para não usá-lo. Em outras palavras, nesse caso, se podemos
destruir povos inteiros ou mesmo a espécie humana como um todo, por que não devemos fazer?
Essa é a pergunta que a ética agora precisa enfrentar: cabe a ela justificar e fundamentar as ações
humanas em um novo patamar, aquele que nasce do uso das tecnologias.
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A tecnologia como nova utopia
Depois da Segunda Guerra Mundial, foi precisamente a tecnologia que cresceu exponencialmente.
Chegamos ao século XXI com poderes inéditos, em todos os âmbitos da existência, do micro
até o macrocosmos. Inventamos procedimentos, objetos e processos impressionantes que
nos dão condições de alterar geneticamente a vida, de melhorar (pretensamente) o ser humano
incluindo nele novas capacidades, habilidades e aumentando a sua performance, de retardar o
envelhecimento e, até mesmo, curar o ser humano da morte, de fazer upload de nossas mentes
em uma máquina ou em um corpo sintético, de inventar novos seres em laboratório, de conectar
células vivas a máquinas, de viajar pelo universo descobrindo novas galáxias e horizontes nunca
antes imaginados.
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Obviamente, a sociedade industrial que se iniciou no século XVII, com o uso das máquinas,
também chegou ao nosso tempo provocando o desgaste da natureza e o esgotamento dos
recursos naturais. As máquinas precisam de energia para se movimentar e, após usá-la, devolvem
à atmosfera resíduos na forma de gases poluentes, principalmente advindos da queima do
petróleo, do gás natural e do carvão. Ao esgotar os recursos naturais e gerar poluição, a sociedade
industrial acabou por trazer o grande desafio das mudanças climáticas para o centro da pauta
ética. Precisamos, agora, preocupar-nos com nossas ações não apenas no âmbito intra-humano
e do presente, mas no âmbito extra-humano e no âmbito do futuro. O que fazemos agora precisa
estar em conexão de responsabilidade com os demais seres vivos e com as gerações que ainda
virão, sobre as quais temos uma ligação, embora não direta, pelo menos de responsabilidade.
O filósofo alemão Hans Jonas explicitou essa questão por meio de um novo imperativo ético: “Aja
de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica
vida humana sobre a terra” (JONAS, 2006, p. 47). Para ele, o princípio orientador das nossas
ações, diante desses novos poderes, deveria ser a responsabilidade no seu uso: não significa
que a tecnologia deveria ser cancelada, mas que deveríamos usá-la de forma parcimoniosa e
cuidadosa, a fim de evitar ao máximo suas consequências danosas que poderiam colocar em
risco o meio ambiente, a vida no futuro. Não se trata de ter uma atitude tecnofóbica, portanto.
Trata-se de que todos os agentes da tecnologia estejam dispostos ao compromisso responsável
com a vida.
Todos nós sabemos que esses novos poderes estão já presentes no nosso dia a dia, seja na forma
dos nossos eletrodomésticos, da internet das coisas, das redes de comunicação, da medicina, dos
estudos sobre a ação e o poder do nosso cérebro. Esse movimento tem sido denominado convergência
tecnológica e tem atuado decisivamente no objetivo de promover mudanças na performance
do ser humano: agora, trabalham, de forma convergente, a biotecnologia, a nanotecnologia, a
infotecnologia e as ciências cognitivas. Essas quatro áreas da tecnologia, juntas, deram ao ser
humano um poder imenso, que passou a substituir as antigas utopias religiosas ou políticas.
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Atualmente, se pensarmos no melhoramento do mundo, tais promessas estão nas mãos
da tecnologia. O modo como nascemos, como vivemos e como morremos depende dela.
O futuro está sendo desenhado a partir delas. É por isso que precisamos estar atentos para o
seu uso: interesses financeiros ou ideológicos nunca poderão estar à frente da ética e do bem
comum.
A intenção dessa articulação das tecnologias é reformar o homem, gerenciar sua condição,
definir seu futuro, suas esperanças, a legitimidade de suas ações e a medida de seus poderes.
Tal processo tem sido conhecido como transumanismo, um movimento que reúne filósofos
e cientistas que acreditam que o ser humano deve usar a tecnologia para aprimorar suas
capacidades. Esses chamados bioliberais (porque defendem a liberdade plena na manipulação
da vida) são contrapostos aos bioconservadores (em geral, eticistas que chamam a atenção para
os riscos desses procedimentos e para a responsabilidade diante desses processos).
No vídeo a seguir, conversamos com uma especialista da área de biotecnologia para avaliarmos
os desafios éticos trazidos por essa realidade.
Embora essas ideias não sejam novas na cultura, tal movimento tem sua origem em 2002,
quando é publicado, nos Estados Unidos, o relatório Converging Technologies for Improving
Human Performance. Nanotechnology, Biotechnology, Information Technology and Cognitive
Science (CT-NBIC), seguido pela publicação de um segundo relatório, em 2004, por parte da
União Europeia, intitulado Converging Technologies – shaping the future of European Societies,
que se opunha à euforia que marcava o documento norte-americano em torno das chamadas
ambições transhumanistas e anunciava que tal tarefa não deveria ser assumida como prioritária
e que as tecnologias deveriam ser mantidas em seu uso exclusivamente terapêutico.
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Em 2009, um novo relatório é publicado pelo Parlamento Europeu sob o título Human Enhancement,
no qual são diluídas as diferenças entre terapia e melhoramento e que reconhece o transumanismo
como um ator central no debate em todos os níveis – filosófico-religioso, ético, político. Esse
relatório de 2009 define o Human Enhancement nas seguintes palavras:
Vemos, assim, que estamos diante de um enorme desafio para o campo da ética. Até onde podemos
ir no uso desses poderes? Qual é o limite dessas mudanças? Podemos alterar definitivamente o
ser humano? O que restará da humanidade se, por acaso, essas mudanças forem implementadas?
Temos o direito de uma aposta tão séria? Até onde vai a nossa responsabilidade? Essas são
questões centrais de nossa época que precisamos estar prontos(as) para responder. Afinal, a
tecnologia precisa estar a nosso favor – e não o contrário.
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Fique de Olho
ARTIGO
NIILISMO E TECNOLOGIA
Disponível em:
http://revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/view/fsu.2020.211.07
ARTIGO
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Ética, moral e lei
Precisamos fazer uma distinção entre os conceitos de ética, moral e lei, para bem compreender
o que cada um deles significa. Para começar essa reflexão, vamos ouvir a opinião de um Head
de Desenvolvimento Humano para ver como esses conceitos são vividos na sua realidade de
trabalho.
Comecemos pela distinção entre ética e moral. Por mais que no dia a dia utilizamos tais expressões como
sinônimos, do ponto de vista didático, é necessário diferenciar o que é ética daquilo que compreendemos
por moral. Obviamente, essa diferença tem por objetivo demonstrar o potencial questionador que é
necessário que cada um de nós tenha, como cidadão e cidadã, diante dos padrões morais estabelecidos
pela sociedade, muitos dos quais já estavam estabelecidos antes de que chegássemos aqui e devem
continuar sem nós. Com essa afirmação, já podemos começar a pensar essa diferença: se a ética
tem um papel crítico, de questionamento e de análise, a moral geralmente busca a padronização e
a normatização dos comportamentos, principalmente por meio da definição de valores e virtudes
estabelecidas em função dos interesses de determinada comunidade, em determinado tempo histórico.
A moral depende desses interesses e é produto dos esforços dos indivíduos para satisfazer as
suas necessidades em um tempo e lugar específicos e, com isso, alcançar o bem-estar social.
Isso ocorre, porque nenhuma sociedade pode viver sem normas, ou seja, onde tem seres
humanos reunidos, é preciso que tal reunião seja orientada por determinadas regras, que sempre
demandam dos indivíduos determinados “sacrifícios” pessoais em benefício da segurança e da
felicidade no âmbito do coletivo.
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Um dos autores a problematizar essa questão foi Sigmund Freud: segundo ele, sempre trocamos
um pouco de nossa felicidade individual, por mais segurança e tranquilidade na vida social.
Essa troca, embora possa trazer insatisfação, é necessária para que não apenas realizemos
as nossas vontades e desejos mais íntimos, mas para que possamos nos realizar como seres
sociais. Nenhuma coletividade pode se fundar, afinal, unicamente sobre os anseios, impulsos
e instintos individuais e egoístas.
Como todos os indivíduos, os seres humanos podem ser considerados animais políticos, no
sentido em que são gregários e dependem uns dos outros, então eles também precisam se
comportar segundo determinadas normas. É esse conjunto de normas que denominamos moral.
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Filosofia da moral: o outro nome da ética
A ética é uma disciplina de filosofia, ao lado de outras, como estética, filosofia política,
epistemologia, ontologia etc. Aliás, se a estética poderia ser também denominada uma filosofia
da arte ou uma filosofia do belo, a ética também poderia ser chamada de uma filosofia da
moral – esse é o outro nome da ética, porque, como ciência do agir, ela coloca em questão a
ação humana, ela é uma ciência (ou seja, um conhecimento, uma reflexão) sobre o agir (a ação,
as atitudes e os comportamentos). Foi por isso que Aristóteles considerou a ética, ao lado da
política, como as duas ciências práticas, que seriam distintas das ciências produtivas (aquelas
que produzem coisas) e das ciências teóricas (que são meramente contemplativas). Nesse caso,
a ética é prática, precisamente porque está ligada à ação do ser humano no mundo.
No dia a dia, encontramos pendurados nas paredes de nossas empresas ou escritos nos panfletos
que são distribuídos aos clientes os chamados códigos de ética. Repare, entretanto, que esses
códigos, na verdade, pretendem orientar ou, muitas vezes, padronizar o comportamento dos
colaboradores de tal empresa ou organização e, sendo assim, tal código de ética seria, mais
corretamente, um código de moral. Mesmo sabendo dessa diferença, não quebraremos os
quadros ou rasgar os documentos, mas compreender o seu sentido mais profundo e, ao fazer
isso, praticar o que chamamos de ética.
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Obviamente, essa distinção se torna importante para compreender porque a ética exige sempre
um raciocínio, uma análise e um exame das ações, acreditando que, com isso, poderemos
encontrar melhores motivos e razões para justificar o nosso comportamento, o qual, assim
compartilhado, pode ser direcionado para o bem comum. Pensando sobre o que fazemos,
fazemos melhor, ou seja, conseguimos nos comportar em vista do bem de todas as pessoas
com as quais compartilhamos a vida.
Por esse motivo, a ética sempre primou pelo uso da razão, em equilíbrio com os afetos, em vista
do controle dos nossos sentimentos morais. Embora tenhamos ódio, inveja e violência, não
podemos deixar que esses sentimentos sejam exteriorizados, isto é, convertem-se em ações e
influenciam nossos comportamentos no dia a dia. Para tanto, precisamos avaliar o que fazemos
para garantir que o bem, a vida boa ou, em outras palavras, a felicidade, realize-se. Aliás, foi
também Aristóteles quem explicou que a felicidade é a meta da ética, como a ciência do sumo
bem, ou seja, do bem mais importante de todos. Veremos isso, com mais eficácia, adiante.
Por ora, deixemos claro que, como disciplina filosófica, a ética é um convite ao pensamento.
Sua matéria consiste nos comportamentos humanos em sociedade. Em outras palavras, o
assunto, o tema e a questão central da ética constituem a própria moral. Isso significa que não
fazemos ética a todo momento e, por isso, precisamos ser convocados para o pensamento. No
cotidiano, geralmente, obedecemos ou não às regras sociais e fazemos isso de forma mais ou
menos natural ou automática, sem que tenhamos de dar explicações sobre isso, porque, afinal,
é isso que a sociedade espera de nós e preparou para que todos fizessem.
A maior parte de nossas atitudes não precisa de uma análise racional, pois costumamos introjetar,
dentro de nós, essas regras. A ética, contudo, não gosta desse tipo de atitude impensada: ao
contrário, a ética pretende acordar o ser humano de dois “sonos” – o sono da maioria (quando
fazemos sempre aquilo que todos os outros fazem) e o sono interior (quando as regras são
seguidas de forma cega).
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Para a ética, essas atitudes não são boas, porque significa que não pensamos por nós mesmos,
mas apenas seguimos o que os outros esperam de nós. Ora, quem não pensa por si mesmo
e costuma seguir a maioria corre grandes riscos de errar, uma vez que, quando participa de
um grupo social em que determinada atitude é tida como correta, aceita e pratica tal coisa;
mas, ao se mudar de um grupo social e os seus membros têm outros valores, então tal pessoa
facilmente muda de lado.
Eis o papel de nossa disciplina: a ética pretende ao mesmo tempo nos ajudar a pensar sobre
o que fazemos e oferecer argumentos que fundamentam essas ações. Em outras palavras, se
todos somos animais políticos, isso significa que todos nós agimos em sociedade e interferimos
no seu destino. Todavia, essa interferência precisa ser analisada, refletida, para que bons
resultados sejam alcançados. Ademais, a situação se agrava: quanto mais se evidencia o poder
de impacto de nossas ações, por exemplo, dependendo do cargo que ocupamos na sociedade,
as consequências das ações podem ser maiores do que aquelas praticadas por um cidadão
“comum”, isso exige uma maior responsabilidade das lideranças, as quais devem zelar mais por
suas atitudes. É pertinente destacar que, no mundo contemporâneo, o poder de intervenção,
em especial no âmbito da vida (com a biotecnologia), exige uma responsabilidade ampliada para
evitar possíveis consequências danosas.
Do ponto de vista etimológico, a palavra ética vem do grego ethos, que significa caráter ou modo
de ser. Moral, por sua vez, vem do latim morus, que significa costume. De um lado, portanto,
aquilo que nos identifica como seres humanos racionais. Do outro, os costumes e as regras
sociais. Para o grego, o caráter de um indivíduo, ou seja, aquilo que ele é em sua essência, seria
manifestado pelo seu comportamento. Por isso, a ética tem a ver tanto com esse lado mais
interior (do caráter) quanto com seu comportamento exterior (o costume). Ao traduzir a ideia
de ethos para o latim, priorizou-se o fato de que o comportamento de um indivíduo, portanto,
aquilo que ele é na sua essência, deve se adaptar e ser moldado pelos costumes da sociedade
na qual ele está inserido.
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Nesse sentido, outra definição para ética seria o fato de ela ser um conjunto de conhecimentos
que nascem justamente do exame desses comportamentos humanos e da tentativa de explicar
como surgem e se mantêm as normas sociais e os padrões de comportamento. Nessa mesma
perspectiva, a moral seria o conjunto de regras usadas no cotidiano para orientar as ações. A
partir dessas regras, pode-se avaliar se uma coisa é certa ou errada, moral ou imoral, se está
encaminhada para o bem ou para o mal.
Podemos mesmo afirmar que definir o bem e o mal de uma ação, a partir de uma análise criteriosa
de suas motivações e consequências, é a tarefa própria da ética. Aliás, sobre isso, cabe uma
explicação: muitas pessoas usam a expressão “falta de ética” ou mesmo “antiético” para expressar
uma crítica ou advertência em relação a um comportamento de um determinado indivíduo.
Ponderamos, por exemplo, que uma pessoa é sem ética, que faltou ética a tal político, que aquela
ação é antiética. Na verdade, em todos esses casos, estamos nos referindo a algo imoral, ou
seja, a uma atitude contrária às regras estabelecidas, portanto, contrário à moralidade, àquilo
que a sociedade esperava que tais indivíduos fizessem.
Na vida social, além das regras morais, somos obrigados a respeitar as leis. A diferença entre
a moral e a lei é que a primeira tem regras simbólicas, enquanto a segunda tem um caráter
obrigatório; é fundamentada em uma relação de justiça ou de direito entre os vários indivíduos
de uma sociedade. No caso das leis, estão previstos os impedimentos e as punições para usar
atos considerados ilegais, ou seja, socialmente indesejados. Embora seja necessário reconhecer
que nem tudo que está na lei é justo, depreende-se que ela não resume a ideia de justiça e o
seu cumprimento não significa que seja suficiente para garantir o bem comum. As leis são, no
fundo, apenas um meio para isso.
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Nesse sentido, a própria definição de lei inclui tanto o fato de ela ser uma prescrição escrita
quanto o fato de emanar de uma autoridade concedida pelo povo sobre o qual compete a
obrigação de cumpri-la, sob o risco de penas e sanções previstas na própria lei, que inclui tanto
o que deve ser feito quanto o que acontecerá com quem não cumpre o previsto. Trata-se, como
prevê a etimologia latina da palavra (lex), de uma obrigação imposta. A lei, sendo norma escrita,
implica sempre o poder e a solenidade do direito.
Segundo a Constituição Federal (BRASIL, 1988), no art. 5º do inciso II, a lei obriga os indivíduos a
fazerem ou não fazerem determinada coisa – e só perante a ela os cidadãos estariam obrigados
a abrir mão de seus interesses próprios, de nada mais. Como norma escrita, a lei envolve tanto
a Constituição quanto as suas emendas, as leis complementares, ordinárias, delegadas, as
medidas provisórias, os decretos legislativos, as resoluções e todos os demais processos que
envolvem as obrigações dos indivíduos perante a sociedade.
Enquanto a moral age, na maior parte das vezes, com punições do tipo simbólico, a lei impõe
obrigações legais – e as duas podem estar em desacordo. Vejamos um exemplo: do ponto de
vista legal, o divórcio está previsto e é um direito de qualquer cidadão que resolve romper um
contrato afetivo amparado legalmente; do ponto de vista moral, em determinados grupos,
mesmo previsto legalmente, o divórcio pode ser repreendido ou a pessoa divorciada por sofrer
diversas punições simbólicas.
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Fique de Olho
ARTIGO
Leia o texto e tente destacar porque, segundo o autor, temos de ter cuidado
com o uso exacerbado dos termos ética e moral no nosso cotidiano. Você
concorda com os argumentos do autor? Em que você não concordaria?
Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
73302001000300006&script=sci_arttext
LIVRO
O QUE É ÉTICA
Leia a obra pensando sobre o conceito de ética e como ele ajuda a orientar
as nossas escolhas nos dias atuais.
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Modelos éticos
Os modelos éticos são formas resumidas que ajudam a compreender como determinada
época elaborou orientações para a vida moral, ou seja, a respeito do bem e do mal. Levando
em consideração que a ética se pergunta sobre os fundamentos a partir dos quais as ações
humanas são avaliadas, podemos afirmar que, ao longo da história ocidental, alguns modelos
(compreendidos como referência) foram elaborados. Podemos identificar, pelo menos, quatro,
destacados na figura a seguir:
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Ética das virtudes
Um dos primeiros modelos éticos que precisamos discutir diz respeito ao que chamamos de
ética das virtudes. No geral, esse modelo serve de orientação das práticas humanas a partir de
uma concepção de que o próprio ser humano, por meio do hábito e das práticas, orientado pela
liberdade de deliberar a respeito de si mesmo, poderia encontrar o caminho do bem. Isso significa
que esse modelo está baseado no uso da racionalidade como potencial capaz de dominar os
instintos e as emoções, em vista do alcance de um resultado favorável ao bem comum, em vista
daquilo que podemos chamar de felicidade. Entre os autores desse modelo, desenvolvido no
mundo grego, estão Platão e Aristóteles, além de outros filósofos desse momento da história
da filosofia, que inclui o denominado período helenístico, com o epicurismo e o estoicismo.
No seu livro Ética a Nicômaco, Aristóteles define a virtude como “uma disposição de caráter
relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual
é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática” (1973,
p. 273). Isso significa, primeiro, que a virtude depende da vontade do indivíduo de conduzir as
suas ações da melhor maneira possível.
Como uma disposição, a virtude é algo que precisa ser adquirido constantemente e praticado, de tal
forma que se torne um hábito e funde uma espécie de “segunda natureza” que se integre ao nosso
caráter. Por isso, o filósofo acrescenta: “a virtude do homem será a disposição de caráter que o
torna bom e que eu faz desempenhar bem a sua função” (ARISTÓTELES, 1973, p. 272). Além disso,
tal definição deixa evidente que essa orientação das ações está relacionada com a possibilidade de
uma escolha refletida, ou seja, de uma deliberação por parte de cada indivíduo. Ora, toda escolha,
como ato de liberdade, está fundada no uso da racionalidade: usamos a razão para escolher os
meios que estão em nosso poder e que podem nos conduzir para a prática do bem.
Outra questão importante que aparece na definição de virtude proposta por Aristóteles é o conceito
de mediania. Para ele, “virtude diz respeito às paixões e ações em que o excesso é uma forma de
erro, assim como a carência, ao passo que o meio termo é uma forma de acerto digna de louvor”
(ARISTÓTELES, 1973, p. 273). Assim, para que uma ação seja considerada virtuosa, ela deve fugir
tanto do excesso quanto da falta: por exemplo, se consideramos a coragem uma virtude, isso
ocorre porque ela não é o medo (que é a sua falta), nem é a temeridade (que é o seu excesso).
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A justa medida, portanto, deve orientar todas as ações humanas no mundo e ela tem a ver com
uma sabedoria prática, ou seja, não com uma norma fixa que valha para todos em todos os
tempos, mas com a capacidade de cada indivíduo avaliar o bem conforme a ocasião, ou seja,
“na ocasião apropriada, com referência objetos apropriados, para com as pessoas apropriadas,
pelo motivo e da maneira conveniente” (ARISTÓTELES, 1973, p. 273).
Obviamente, tal capacidade de sabedoria depende do uso da racionalidade e isso significa que o
princípio racional ajuda a avaliar e compreender bem as circunstâncias e decidir o que deve ser
feito. Por isso, a sabedoria prática é, ela mesma, um tipo de virtude que envolve a capacidade
de deliberar e avaliar bem as circunstâncias sobre as quais é necessário que se decida fazer
alguma coisa. Trata-se de uma capacidade cotidiana, não de uma regra geral e universal, mas
de um empenho do próprio indivíduo em buscar o bem na sua vida.
Para Aristóteles, dessa capacidade, nasceria a conquista da felicidade, tida por ele como o
sumo bem, ou seja, o bem mais importante. Ora, esse bem é precisamente, segundo o filósofo,
o objeto principal da ética, enquanto ciência do agir. Aristóteles, no seu livro, elenca uma série
de ciências para as quais a sua finalidade (para que elas existem) é o seu bem: por exemplo,
o bem da economia seria a riqueza, algo que também é a sua finalidade, ou seja, a economia
existe para que as pessoas e mesmo a sociedade possam ser mais ricas (qualquer coisa que
isso signifique) e não para que elas sejam mais pobres e miseráveis. Assim, o bem e a finalidade
da economia é a riqueza.
Outro exemplo: a finalidade da medicina é a saúde – esta também é o seu bem. Isso significa que
deveria ser obrigação de todo médico promover a saúde e esse é o bem central da ciência que
ele pratica. A arte da guerra também é uma ciência e é descrita por Aristóteles: sua finalidade
e, portanto, seu bem é a vitória – ninguém planeja uma guerra sem o objetivo de vencê-la, ou
seja, essa é a finalidade do planejamento.
Ocorre que a riqueza, a saúde e a vitória são bens menores, importantes, mas não centrais
para a conquista da felicidade. Como bens, a sua conquista dependeria de um raciocínio,
de um saber, de uma ciência própria. Ora, todos esses bens menores estariam fundados no
sumo bem, ou seja, sobre a finalidade última e mais importante da vida humana, sobre o bem
maior, aquele que está acima de todos esses bens: Aristóteles chama isso de felicidade.
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Significa que a riqueza, a saúde e a vitória na guerra são importantes, porque nos ajudam a
encontrar a felicidade – e não detêm a felicidade em si mesma. É fácil entender que o dinheiro
é importante para sermos felizes, por exemplo, mas não é uma garantia para isso – há muita
gente rica que não é feliz e, inversamente, muita gente pobre que é feliz.
Aristóteles destaca, ainda, que, enquanto os bens menores são conquistados a partir das ciências
particulares, o sumo bem, ou seja, o maior bem de todos, seria conquistado precisamente pela
ética. Portanto, a ética é, para esse autor tão relevante na nossa cultura, a ciência do sumo bem,
porque ela nos ajuda a conquistar a felicidade, precisamente por meio da prática das virtudes.
Outro autor importante para exemplificarmos esse tipo de modelo ético é Epicuro. Embora tenha
escrito muita coisa, restou-nos desse autor alguns poucos fragmentos, entre eles, um texto
muito famoso conhecido como Carta sobre a felicidade ou, também, como Carta a Meneceu
(que era seu amigo). Como explica nessa carta, para Epicuro, a meta da vida seria a busca do
prazer e a fuga da dor. Essa busca, contudo, deveria ser equilibrada racionalmente: existiriam,
para ele, os prazeres naturais e necessários; os prazeres naturais, mas não necessários; e os
prazeres que não são nem naturais, nem necessários. Por exemplo, seria um prazer natural e
necessário; comer muito seria natural, mas não necessário; viver de luxo não seria nem natural,
nem necessário.
Para esse autor, os prazeres deveriam ser ponderados em vista da escolha dos prazeres
de primeiro tipo, ou seja, os prazeres naturais e necessários, os quais, em resumo, são os
mais simples. Entre esse tipo de prazer, estariam, por exemplo, a vida entre os amigos, o
aproveitamento de uma refeição ou a simplicidade da vida no campo. Epicuro, não por acaso,
vivia em uma espécie de chácara na periferia de Atenas, junto com seus amigos. Para ele, a
experiência da vida feliz poderia ser resumida nesses prazeres simples.
A vida conduzida pela virtude seria o único caminho capaz de levar à felicidade e ela poderia
ser alcançada com uma vida autoanalisada, com o exercício da liberdade entre os amigos. Em
outras palavras, ser livre, ter amigos e levar uma vida sempre racionalmente avaliada (poderíamos
afirmar que isso é, também, viver filosoficamente) poderiam contribuir para que o ser humano
pudesse alcançar o sumo bem. Nesse caso, à ética, compete ajudar o ser humano a praticar as
virtudes capazes de aproximar a luz da felicidade.
24
Ética do dever
A ética do dever está baseada na concepção de que o homem, sozinho, não pode alcançar o bem e
que, por isso, deve obedecer a uma força exterior a si mesmo. Tal modelo pode ser compreendido
a partir de dois momentos históricos diferentes: a era medieval e a era moderna.
Por isso, autores como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino desenvolvem uma teoria segundo a
qual o homem deveria seguir as orientações de Deus, caso quisesse encontrar o caminho do bem.
Nesse caso, não é mais a prática das virtudes, mas a obediência às normas advindas do criador e
salvador que conduziria um homem a uma vida boa, a uma vida feliz, geralmente associada à ideia
de beatitude no pós-morte. Esse modelo ético, conhecido, então, como ética do dever, explica-se,
precisamente, porque exige a obediência a uma norma exterior, que está baseada na interpretação
da palavra de Deus por parte da igreja medieval.
Como nessa época a Bíblia só podia ser lida pelas autoridades máximas da igreja, então, a ética
também passou a ser orientada por essas autoridades. Ao homem comum, cabe o esforço da fé,
tida como a primeira das virtudes teologais, porque, sem fé, o ser humano não se abriria para a
mensagem de Deus e correria sério risco de andar pelo caminho que leva ao pecado e à maldade.0
É como se o ser humano fosse uma espécie de copo de água pela metade: essa “água” pode ser
a racionalidade, cuja quantidade ainda é insuficiente para matar a sede humana de verdade e de
bem. Precisa-se, portanto, preencher esse copo com a “água” que vem de Deus, a fim de que a
saciedade seja plena. Por isso, em Santo Agostinho, é a falta de bem, ou seja, o fato de o homem
virar as costas para Deus e achar que pode encontrar o caminho do bem sozinho que o leva ao erro.
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É a verdade divina revelada, portanto, que orienta a ética medieval. O apelo ao amor, à compaixão e
à benevolência deveria orientar o cristão a partir do reconhecimento de que o outro é seu irmão e
o seu próximo, ao qual ele está ligado pelo amor filial que vem de Deus, tendo como recompensa a
bem-aventurança futura. O estilo de vida, agora orientado pelas ideias de salvação, de criação, de
amor incondicional, mostra como o caminho do bem depende da mensagem advinda da sabedoria
divina.
Para Santo Agostinho, no período denominado Patrística, a moralidade cristã é orientada pela
ideia do livro arbítrio: cada ser humano pode escolher, porque Deus lhe deu esse potencial, mas
suas escolhas precisam ser encaminhadas, segundo as normas advindas do criador.
Para Tomás de Aquino, a moralidade deveria ser esclarecida, ou seja, contar também com
argumentos racionais. Todo o esforço desse autor (que vive no século XIII, período da escolástica),
reunido na sua obra Suma Teológica, tem como objetivo conciliar a fé e a razão. São Tomás
reconhece a natureza racional do homem como algo doado por Deus, embora também reconheça,
no livre-arbítrio, a raíz de todo mal. Nesse caso, a ação deliberada do homem é a origem do mal cuja
saída seria a obediência às normas divinas. Para ele, a virtude é uma boa ação que torna melhor
aquele que a pratica, dependendo, também, do hábito, a fim de evitar o vício.
Podemos afirmar que o mote central desse modelo ético é a crença no amor fomentada pelo
imperativo do outro que está, por sua vez, inspirada no sacrifício de Cristo que dá a vida pelo ser
humano. Assim, Deus inspira o homem na prática do bem, oferecendo-lhe uma redenção final,
associada à ideia de felicidade.
Para exemplificarmos melhor o papel da religião na orientação moral da sociedade , veja, a seguir,
como um religioso compreende esse tema e como ele pensa sobre os desafios éticos das religiões
e das Igrejas no mundo contemporâneo.
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A ética do dever na modernidade
A ética do dever assume uma nova face na era moderna: todos sabemos que a partir do Renascimento,
ou seja, de meados do século XV em diante, a sociedade ocidental se volta novamente para o mundo
grego em busca das referências capazes de orientar a vida humana sem contar necessariamente
com o horizonte teológico da Idade Média.
Assim, autores como Hobbes, Locke, Rousseau e Kant formularam teorias que pretendiam pensar
a ética ainda sob a perspectiva do dever, embora não mais de um dever religioso, mas um dever
humano, de tipo civil, por assim dizer. A formulação desses autores de um estado, de contratos,
pactos, normas e constituições, mais ou menos independentes da figura divina, mostra o esforço
de formulação de um modelo de orientação da ação humana cujo fundamento consiste nos acordos
voluntários e associativos entre os próprios homens.
Se a era moderna começa com uma celebração da força da racionalidade por meio do filósofo
francês René Descartes, esses ideais emancipatórios da razão foram importantes no movimento do
Iluminismo, na reforma protestante, nos novos descobrimentos de mundos, no avanço da ciência e
mesmo nas revoluções francesas e americanas. Um dos autores mais importantes desse momento
será o alemão Immanuel Kant. Seu conceito de Alfklärung, ou seja, de esclarecimento, exige que o
ser humano faça um movimento de saída da sua menoridade, em direção a uma tomada das rédeas
da sua própria vida, por meio do uso da razão autônoma, liberta das tutelas vindas da religião, da
política e da pedagogia. Para ele, permanecer dependentes dessa tutela seria, no mínimo, um ato
de covardia, preguiça e comodismo.
O esclarecimento, portanto, deve ser compreendido como uma exigência, dado que todo ser
humano é detentor do princípio universal da racionalidade. Por isso, o ser humano deveria utilizar
a razão para controlar os seus instintos naturais e corporais. Afinal, no reino da natureza, não
haveria moralidade, sendo esta um produto do chamado reino da razão. Como o homem não é
apenas pertencente ao reino da razão, mas também da natureza (porque tem um corpo), nele, estão
sempre em conflito a necessidade e a liberdade. Ora, para Kant, todas as decisões, as escolhas
e mesmo as normas morais são produtos do reino da liberdade, ou seja, da racionalidade. Nesse
caso, a virtude seria produto da capacidade que um indivíduo tem de impor as decisões do reino
da liberdade sobre o reino da necessidade.
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Para tanto, o filósofo alemão formulou o chamado imperativo categórico, ou seja, uma norma
universal capaz de orientar as práticas dos seres humanos: “aja apenas segundo uma máxima
tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1973, p. 223). Como
imperativo, tal norma impõe um dever ao ser humano: ele só pode fazer aquilo que ele gostaria
que todos fizessem. Em outras palavras, por que não devo roubar? Porque eu não gostaria que
todos roubassem. Por que não posso matar? Porque eu não gostaria que toda sociedade também o
fizesse, inclusive contra mim. E assim por diante. Ou seja, todas as ações deveriam ser orientadas
por esse princípio, que se impõe como uma norma, isto é, um critério que deve ser obedecido por
todos os seres humanos.
A ética proposta por Kant, nesse caso, é uma ética de tipo deontológica, ou seja, ela primeiro
estabelece o que é obrigatório e correto, para, só depois, encontrar o bem. Além disso, para que
uma ação seja moral, ela deve, segundo Kant (1973), ser realizada em respeito ao dever. Em outras
palavras, qualquer indivíduo só pode ser reconhecido como um agente moral se aquilo que ele faz
está de acordo com aquilo que está previsto no dever. Ou seja, vale a norma, vale a lei. Por exemplo:
não interessa se alguém, na sua subjetividade, gosta de pessoas negras ou de homossexuais; o
que interessa é que a sociedade na qual ele vive (a sociedade humana) o obriga a cumprir uma
norma que diga que ele precisa respeitar os direitos de todas as pessoas.
Contudo, Kant introduz a ideia de boa vontade: o agir deve ser determinado por ele mesmo, ou seja,
o próprio querer deve estar orientado para o bem, sem que seja necessário recorrer à avaliação
dos resultados de sua ação. Isso significa que não é porque alguma ação possa trazer algum tipo
de benefício que ela deve ser praticada, mas, simplesmente, porque o ser humano está obrigado
a fazer o que está previsto na norma, independentemente das consequências.
Nota-se, assim, como o modelo deontológico proposto por Kant é um exemplo de como a
modernidade pensou um modelo ético no qual o ser humano deve obedecer a normas que advêm
de fora, embora seja necessário reconhecer que tal fato não compromete o conceito de liberdade
(que é central na modernidade): obedecer, no fundo, é obedecer a uma norma criada pelo próprio
ser humano – não por mim, nem por você, talvez, mas por todos nós como membros da espécie
humana. Obedecer à lei, portanto, não coloca em xeque a nossa liberdade. É precisamente o
contrário: quanto mais obedecemos a lei, notoriamente, mais exercemos a nossa liberdade, porque
a lei é produto do reino da razão e, da liberdade, o reino da ética.
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Ética da utilidade
Um terceiro modelo ético que devemos levar em consideração é o modelo utilitarista. Essa corrente,
ligada a Jeremy Bentham (1979) e, mais precisamente, a John Stuart Mill, especialmente em sua
obra Utilitarismo, de 1861, diz respeito a um padrão de comportamento que busque sempre o
maior índice de felicidade para o maior índice de pessoas. Nesse caso, a ética seguiria a ideia de
que a ação útil é a mais valiosa, precisamente pelo índice de satisfação que ela pode promover. O
lema que poderia resumir essa teoria prevê que o indivíduo deve agir sempre de forma a produzir
a maior quantidade de bem-estar para o maior número de pessoas.
Dessa forma, o que determinaria se uma ação é conduzida para o bem ou se uma decisão é correta
seria o benefício que ela trouxesse à coletividade: quanto maior for esse benefício em termos de
felicidade geral e quanto maior for o número de pessoas que pudessem acessá-la, maior seria
a correção moral dessa ação. Assim, todas as ações humanas seriam julgadas segundo as suas
consequências no que tange ao bem-estar coletivo.
O critério geral da validade moral de uma ação, nesse caso, seria precisamente o seu benefício em
termos de bem-estar, de felicidade, de bem e de beleza. Como se deduz facilmente, a racionalidade
tem papel importante para que essa ação seja bem equalizada, segundo a sua utilidade geral, que
está ligada aos prazeres e à redução do sofrimento.
Para Mill (2000), as regras seriam valiosas precisamente na medida em que trouxessem não apenas
uma maior quantidade de prazeres, mas, sobretudo, uma intensificação na sua qualidade. Dessa
forma, não se trata apenas de buscar mais prazer, mas de encontrar mais intensidade do prazer
– e esse seria o critério principal para avaliar a ação moral.
Nota-se que essa corrente está muito ligada à reflexão sobre as consequências dos atos humanos.
Por isso, muitos de seus preceitos dizem respeito ao consequencialismo ético (que se distingue do
principialismo precisamente porque, enquanto este diz respeito ao princípio que orienta a ação,
aquele se preocupa mais com as consequências dessa ação). O que diferencia o utilitarismo e
o consequencialismo talvez seja o fato de que o utilitarismo pretende trazer o maior bem-estar
para todos os indivíduos igualmente, incluindo aí, segundo uma corrente mais contemporânea,
os animais não humanos, segundo as ideias desenvolvidas por Peter Singer.
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Observa-se, também, como o utilitarismo está pautado em um elemento importante herdado
da ética das virtudes, segundo a qual a felicidade era considerada como o princípio relevante da
ação moral. A maximização do bem, por isso, é apresentada sempre como elemento central dessa
teoria, porque seus arautos acreditam que a felicidade é o produto do bem e este, por sua vez, é
alcançado por meio de escolhas orientadas pelo princípio do que é útil para o bem-estar geral.
Ética da responsabilidade
Em outras palavras, levando em consideração que toda ação humana é assunto da ética, o
modelo da responsabilidade parte de uma leitura bastante acurada das novas dimensões dos
poderes trazidos pela tecnologia, que não são apenas inéditos em termos de impactos futuros,
mas também em se tratando das consequências geográficas. Ou seja, como nossos poderes
de impacto no tempo e no espaço aumentaram de forma impressionante nos últimos séculos,
também a nossa responsabilidade deve aumentar, dando conta de fornecer orientações para
o uso desses poderes.
Um dos autores centrais dessa teoria é o filósofo alemão Hans Jonas. Nascido em 1903 e falecido em
1993, esse autor atravessou o século XX e pode assistir de perto o cenário das duas grandes guerras,
o agravamento da crise dos valores e o crescimento da ciência e da tecnologia, principalmente a
partir dos anos 1970. A preocupação de Jonas diz respeito tanto ao tema do meio ambiente, das
mudanças climáticas e da extinção da vida no planeta quanto ao uso da medicina e da biotecnologia
na mudança e na alteração genética dos seres humanos e não humanos.
De um lado, a sua preocupação se dirige aos impactos da chamada civilização tecnológica sobre
o âmbito da natureza e à obrigação incondicional do ser humano de cuidar dos outros seres e
das condições da vida, legado que ele precisa repassar para as gerações futuras; de outro lado,
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ele precisa examinar até onde os procedimentos de intervenção na genética, no controle de
comportamento, no prolongamento da vida e em todos os demais procedimentos da moderna
biotecnologia não colocariam em risco a existência de uma autêntica vida humana no futuro.
Assim, a ética da responsabilidade parte de um dado ontológico, ou seja, que está ligado à
essência do ser humano, como um ser capaz de responsabilidade – o único, na verdade, capaz
disso. Essa capacidade, pelo simples fato de existir no ser humano, torna-se uma obrigação:
se o ser humano pode, ele deve, então, assumir essa responsabilidade, para que possa, afinal,
realizar-se plenamente como ser humano. Negar essa responsabilidade seria negar esse dado
ontológico que lhe é mais próprio. Assim, a responsabilidade deveria ser usada como instrumento
não apenas para impor o que Jonas chama de “freios voluntários”, lá onde a ação tecnológica
se torne perigosa e arriscada demais, mas, sobretudo, para levar em consideração os riscos
das ações tecnológicas.
Por isso, para Jonas, trata-se de desenvolver um modelo ético que não esteja mais limitado
ao horizonte do antigo antropocentrismo que marcava as éticas tradicionais (afinal, agora,
precisamos cuidar da vida como um todo e não apenas do ser humano); da visão de neutralidade
ética da natureza (porque os novos poderes elevam as possibilidades de que a ação humana
interfira de forma decisiva no mundo natural); da constância da entidade “homem” (agora
objeto da técnica reconfiguradora, embora sem uma imagem capaz de orientar essa tarefa);
o curto prazo do planejamento da ação (agora, precisamos prever, em longo prazo no tempo,
as consequências das nossas ações); e ao círculo imediato da ação (atualmente, precisamos
pensar nas gerações futuras, porque muitas de nossas ações se estendem no tempo de forma
sequer calculável).
Esse modelo ético tem como intenção enfrentar um dogma do pensamento filosófico
contemporâneo, que negava qualquer fundação metafísica dos valores. Para Jonas, ao contrário,
o princípio ético da responsabilidade parte de uma antiga pergunta filosófica fundamental,
formulada por Leibniz: “por que o Ser e não antes o nada?”.
Tal pergunta, contudo, assume um novo sentido no cenário tecnológico: se temos o poder de
destruir a vida como um todo, quais são os critérios capazes de nos impedir de fazê-lo?; ou, em
outras palavras, se podemos matar a vida, por que não o fazer?; por que, afinal, a vida merece
ser preservada e por que devemos orientar os nossos atos em direção à sua preservação?
31
A ética proposta por Jonas adquire, portanto, uma base tanto ontológica quanto metafísica,
na medida em que ela parte de uma pergunta sobre o Ser que se apresenta em sua forma viva,
por assim dizer. É onde a sua ética se apoia em sua ontologia: a vida, segundo Jonas, diz sim
a si mesma e, como é parte da história evolutiva do espírito, o ser humano é o único ser de
responsabilidade porque ele é aquele que, tendo ascendido a graus superiores de espiritualidade,
pode entender essa afirmação e assumir a sua responsabilidade sobre os demais, até porque
ele se tornou um perigo para si e para as demais formas de vida.
Com isso, Jonas enfrenta um dos principais dogmas da filosofia: ele afirma que, diante da
emergência dos novos tempos, é não apenas possível, como necessário, que retiremos do Ser
um dever ser. A ética deve, agora, pela primeira vez, garantir a existência de seu próprio objeto.
Para Jonas, a responsabilidade evoca três questões centrais: precisamos reconhecer a vulnerabilidade
da natureza e as novas dimensões do poder humano, que tornam muito perigosa qualquer intervenção;
precisamos prever os danos possíveis antes de que eles aconteçam (a responsabilidade, nesse caso,
não é apenas imputabilidade, mas tem a ver com a previsibilidade, ou seja, com a capacidade de
vislumbrar os efeitos em longo prazo das nossas ações); e, em terceiro lugar, perante a previsão,
dar preferência para o prognóstico negativo e alterar a ação, a fim de evitá-lo.
Para tanto, a nova ética deve reunir o máximo de informações advindas das demais ciências,
a fim de forjar um diagnóstico o mais preciso possível dos danos que atingem, no momento
presente, a vida como um todo. Ademais, é preciso combater a ingenuidade das promessas do
progresso tecnológico que acabam forjando uma versão limitada e enganosa dos benefícios
futuros das ações técnicas do presente; para isso, é preciso dar preferência ao prognóstico
negativo, por meio daquilo que Jonas chama de “heurística do temor” (JONAS, 2006, p. 70), ou
seja, em termos técnicos, o reconhecimento do malum deve ter preferência ao do bonum.
Cabe à ética, afinal, prever os efeitos distantes da ação técnica, operando por meio de
“diagnósticos hipotéticos relativos ao que se deve esperar, ao que se deve incentivar ou ao que
se deve evitar” (JONAS, 2006, p. 70). A partir daí, tal ética precisa mobilizar um sentimento de
responsabilidade, capaz de orientar as ações do presente para que o mal futuro seja evitado: “o
efeito final imaginado deve conduzir à decisão sobre o que fazer agora e ao que renunciar”, algo
que, afinal, “justifique a renúncia a um desejável efeito próximo em favor de um efeito distante”
(JONAS, 2006, p. 74), a fim de que ele não nos atinja jamais.
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Para Jonas (2006), a responsabilidade tem, por isso, um horizonte maior do que a obrigação,
na medida em que ela está amparada no valor da previsão: a “previsibilidade de certo usos e
suas consequências” pode – e, em boa parte dos casos, deve – levar a um “exercício negativo”
da responsabilidade. Cabe a ele fazer um balanço entre essa “responsabilidade negativa” (não
fazer algo em função de seus perigos) e a “responsabilidade positiva” (“servir, com a pesquisa,
a fins benéficos, promotores da vida” [JONAS, 2006, p. 89]).
Tal balanço traz à tona, evidentemente, a ambiguidade da ciência e, com ela, o cientista deve
lidar: há, nesse ciência, tanto utilidade quanto risco de dano, pois “todo poder é poder para
ambas as coisas e amiúde provoca ambas sem a vontade de quem o exerce” (JONAS, 2006, p.
89). É essa ambiguidade, unida à magnitude dos novos poderes, que torna a previsibilidade um
dos valores centrais da ética do futuro.
Por esse motivo, Jonas forja uma ética pautada em um “dever primário com o Ser, em oposição ao
nada” (2006, p. 87), interpretado, agora, como o risco do nada absoluto, ou seja, o desaparecimento
das várias formas de vida no planeta. Tal perspectiva leva à formulação de um novo imperativo,
cujo cerne é a prudência e cuja formulação parte do dever de existir da própria humanidade no
futuro: “aja de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma
autêntica vida humana sobre a Terra” (JONAS, 2006, p. 47).
33
Fique de Olho
LIVRO
UTILITARISMO
LIVRO
CONFISSÕES
34
também, uma espécie de testamento da importância central que Deus
desempenha na vida ética da Era Medieval.Leia a obra, tentando identificar
as características da ética do dever, presentes na reflexão agostiniana.
ARTIGO
Leia o texto analisando como o homem deixou de ser apenas um sujeito para
se tornar também um objeto da tecnologia. Veja quais as três formas dessa
passagem no mundo contemporâneo e quais os riscos que cada um deles
traz como desafio ético.
Disponível em:
https://periodicos.ufpb.br/index.php/problemata/article/view/16966
35
Dilemas éticos
Como vimos até aqui, a ética é a ciência do agir e sua intenção é contribuir para que as ações
humanas sejam realizadas e encaminhadas da melhor maneira possível, tendo em vista,
principalmente, a realização do bem-estar humano, ou seja, a sua felicidade. A ética existe,
precisamente, para nos ajudar diante daquilo que nós chamamos de dilemas éticos: momentos
e situações nas quais somos desafiados pelo cotidiano e precisamos tomar alguma atitude. Em
outras palavras, os dilemas éticos são as situações que exigem de nós uma tomada de decisão
e que, pela gravidade das suas consequências e pela ambiguidade das questões envolvidas,
torna-se difícil alcançar a certeza sobre se o caminho seguido é o correto. Aparecem, portanto,
questões como “fazer ou não fazer”, “o que e como fazer”, qual é a melhor escolha, quais são as
consequências de tal ação etc.
Obviamente, esse tipo de pergunta está constantemente em nosso entorno. Desde a hora em que
levantamos até a hora em que vamos dormir, somos seres de escolhas e precisamos fazer com
que essas escolhas sejam as melhores possíveis. Tudo que nós fazemos, portanto, exige essa
capacidade de pensamento crítico, de avaliação e escolha. Ocorre que, em alguns momentos
da nossa vida individual e da nossa vida coletiva, ou seja, da nossa vida em sociedade, essas
decisões são muito mais delicadas, seja pela gravidade das consequências, seja pelo impacto
e os efeitos que uma escolha errada pode ter sobre nós e sobre as outras pessoas com as quais
convivemos, seja com a natureza em geral, seja com as pessoas que ainda sequer existem, como
é o caso das gerações do futuro. Quanto mais cresce o poder desse impacto, maior é a obrigação
de resolvermos esses dilemas da melhor forma possível. Agora, veja, no vídeo a seguir, a opinião
de um Especialista em Direito Contemporâneo sobre as leis e a orientação ética.
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Muitas vezes, o dilema aparece, pois estamos diante de um paradoxo no qual a nossa escolha
pode ser entre dois ou mais imperativos morais ou modelos éticos, em que nem tudo está
claramente decidido, isto é, não basta apenas o recurso à lei ou à consciência, sendo necessário
realizar uma reflexão bem mais aprofundada, a fim de evitar, ao máximo, um possível dano.
Geralmente, esses dilemas colocam em xeque os sistemas éticos e o cálculo racional cuidadoso
se torna imprescindível. Temas como eutanásia, adultério, suicídio, aborto, prisão perpétua,
pena de morte, clonagem, direitos dos animais e da natureza em geral e/ou procedimentos
melhorísticos ligados ao aumento e à melhoria da performance humana estão entre os casos
que sempre traduzem esses paradoxos.
Diante desses casos, quando, principalmente, referem-se a decisões cujo impacto se relaciona
com a vida ou a morte de outros seres, impacto que é, geralmente, irreversível, precisamos
ampliar nossa capacidade de pensamento crítico e de exame da situação, não bastando apenas
boa vontade no cumprimento das leis e das normas, mas, sobretudo, um conhecimento profundo
dos vários modelos éticos, das argumentações e dos debates desenvolvidos por especialistas de
todas as áreas, para que possamos ter uma decisão mais clara possível em vista do bem comum.
Dessa forma, os dilemas éticos podem ser resolvidos com o uso da racionalidade, ora para
desvendar possíveis enganos que se impõem à situação, ora para mostrar que o dilema não existe
enquanto tal, ora para verificar qual é o fundamento ou a referência preferível (ou seja, as teorias
disponíveis e os modelos que podem ajudar a decidir o que é o bem e o mal) quando se trata de
solucionar o dilema. Nesses casos, no geral, precisamos encontrar alternativas criativas que
levem em consideração o maior número possível de informações sobre o caso, comparando-o
com outros modelos e outras situações nas quais as respostas encontradas obtiveram sucesso.
Em casos como esse, o dilema ético que, aparentemente, é um problema, pode ser mais desejado
do que o absolutismo dogmático de uma única resposta, que pode ser perigosa na medida em
que se oferece como uma “saída fácil” ou uma “resposta pronta”. Muitas vezes, os dilemas incluem
contradições entre imperativos e sua análise envolve um conhecimento do contexto e das teorias
e, no final, há um ganho ético, porque o raciocínio pode criar o que, no direito, denominamos
“jurisprudência”: as respostas encontradas podem ajudar a inspirar e a resolver outros dilemas.
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Um exemplo de dilema ético diz respeito à obrigação de alimentar a família, mas, para que isso
seja necessário, um indivíduo acaba roubando alimentos de um supermercado. O que seria mais
adequado: roubar alimento para salvar a família (poderia, nesse caso, utilizar os argumentos da
ética da utilidade) ou seguir o imperativo que proíbe, radicalmente, o roubo (como poderia ser
o caso do modelo da ética do dever)?
Como decidir, sem levar em consideração o conflito em seu contexto adequado? Muitas vezes,
para solucionar esse tipo de dilema, devemos fazer trocas de prioridades e tomar decisões
pautadas na revisão dos argumentos e, como já salientamos, na análise de dilemas semelhantes
já vividos no passado.
Assiduamente, como a decisão pode ser tomada tendo em vista uma exposição ideológica ou
mesmo uma disputa ligada às várias classes que formam uma sociedade, não é raro que os dilemas
éticos se tornem também parte das divisões políticas econômicas nas quais os indivíduos são
envolvidos por lutas recorrentes entre facções, partidos ou grupos sociais diferentes. Disso,
decorre-se que a saída do dilema ético deve evitar essa ideologização e ter sempre em vista
o bem comum, ou seja, o bem de toda a sociedade e não apenas de um grupo em específico.
Ora, para que isso seja possível, precisamos de instituições sérias que nos ajudem a “organizar”
essas decisões, legitimando e justificando as respostas encontradas.
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O exemplo de Sócrates
Um dilema ético pode ser facilmente detectado quando somos convidados a pensar sobre: o
que fazer diante de uma situação moral? Sócrates, no diálogo de Platão denominado Críton,
enfrenta a questão: ele está preso, condenado injustamente pela sociedade na qual ele vive e
seus amigos trazem a notícia de que uma fuga era possível e, mais ainda, que havia um consenso
de que ele deveria fugir – porque, afinal, era inocente. Por que, mesmo assim, Sócrates não
fugiu (como se sabe, ele é condenado a beber a cicuta e morreu envenenado)? Essa questão é
o mote central da reflexão de Platão que pode nos ajudar a entender como solucionar os nossos
próprios dilemas éticos.
Platão começa lembrando aquilo que podemos chamar de as três premissas da ética socrática:
não se deixar influenciar pela emoção – usar sempre a razão; não se deixar influenciar pelo
consenso, porque os outros podem errar – devemos pensar por nós mesmos; não se deixar
influenciar pelas consequências – usar o critério do certo e errado da moral, aqui e agora.
Além disso, Platão levanta três argumentos utilizados por Sócrates para não violar as leis: nunca
lesar ninguém (a fuga de Sócrates lesaria o Estado pela transgressão da lei à qual ele jurou
fidelidade); sempre manter as nossas promessas (Sócrates vivia no Estado e havia aceitado
as suas regras); e sempre obedecer aos pais e mestres (Sócrates considerava que o Estado é
o pai ou mestre). Nesse caso, se fugisse, Sócrates estaria, portanto, ofendendo a sociedade,
faltando a uma promessa, desobedecendo ao seu pai e mestre.
Ao ter em vista essas três premissas e esses três argumentos, diante do dilema ético (fugir ou
não fugir), note-se como Sócrates faz uso do raciocínio, pensa muito sobre o assunto, avalia e
pondera as consequências, sempre tentando encontrar um caminho próprio e não simplesmente
seguindo a opinião dos outros – mesmo que confiasse nos seus amigos. Esse é um exemplo
típico de um raciocínio ético.
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Em outro texto, intitulado Apologia de Sócrates, Platão esclarece o que fez Sócrates: ele
teria escolhido uma regra como mais importante: diz que ele não pode cumprir a vontade do
Estado (parar de ensinar) porque Apolo lhe atribuiu essa tarefa, porque seus ensinamentos são
necessários para o bem do Estado. Nesse caso, em que há um conflito de deveres, ele criou
uma ordem de precedência que o leva tanto a afirmar que ele está no caminho certo quanto
a obedecer a lei imposta pelos seus conterrâneos. Sócrates morre, pois decide não ferir os
argumentos que ele acreditava, depois de muita análise, serem os mais corretos.
Obviamente, poucos de nós viveremos uma situação tão delicada em que a nossa vida e a nossa
morte estejam em jogo. Mas, mesmo assim, é muito comum que precisemos usar esse tipo de
raciocínio para encontrar o caminho mais correto diante de uma situação moral.
Uma das ocasiões mais comuns para o surgimento de dilemas éticos é a nossa vida profissional. Embora
muitas regras da prática das profissões estejam previstas nos códigos e nos estatutos específicos
de cada profissão (como é o caso dos chamados “códigos de ética” que orientam as decisões dos
médicos, advogados, psicólogos etc.), muitas vezes, as situações concretas não podem ser resolvidas
simplesmente lendo essas normas. Como nossa dinâmica social é instável e marcada por muitas
mudanças que afetam diretamente nossa vida profissional, também, nesses casos, estamos diante de
desafios complexos que exigem decisões rápidas e legítimas. Há ocasiões, além disso, que o próprio
seguimento das normas previstas nesses regulamentos acaba por levar os profissionais a serem
considerados “antiéticos” por parte de seus pares ou, até mesmo, da população em geral.
Casos desse tipo são muito comuns. Por exemplo, um dilema comum tem a ver com a denúncia
de práticas escusas realizadas por um colega de trabalho: se descubro que isso está ocorrendo,
como agir? Se não denuncio, estou quebrando o contrato que fiz com minha organização ou
empresa, que espera de mim o cumprimento das normas éticas previstas; mas, se o denuncio,
pode ser que as relações pessoais dentro da empresa fiquem abaladas e, em nome da amizade,
muitos passem a me considerar um traidor. Aceitar ou pagar suborno tem sido outra ocasião na
qual nossa vida profissional é contraposta com as exigências éticas da nossa profissão.
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Os casos de corrupção que aparecem na grande mídia, geralmente ligados aos políticos, são
gestados nas práticas cotidianas da nossa vida e na dificuldade que temos de solucionar os
dilemas éticos que vivenciamos nas nossas realidades profissionais. Outro caso bastante
comum tem a ver com a política de metas das empresas, em que, muitas vezes, a competição
gera práticas extremamente questionáveis e disputas que fogem das regras previstas, levando
a dilemas imprevisíveis vividos pelos indivíduos, os quais devem optar por esse tipo de prática
em nome da garantia do emprego.
Nesses casos e em tantos outros, o único caminho a fazer é ser transparente, contar com a
ajuda e com a experiência das demais pessoas, ser humilde e reconhecer erros, esforçando-
se sempre para evitar o mal e para corrigir os equívocos e recompensar os prejuízos. Ninguém
de nós está livre de tomar decisões erradas; ao contrário, todos nós podemos facilmente
incorrer em equívocos. Errar é humano, como se afirma. Mas permanecer no erro, manter-se no
caminho errado, é algo que devemos sempre evitar. Nunca é tarde para corrigir os problemas
que aparecem nas nossas vidas e, certamente, seremos melhores profissionais não apenas
porque não erramos, mas, sobretudo, porque aprendemos com nossos erros e os utilizamos
para ajudar outras pessoas a evitarem os seus próprios equívocos.
Fique de Olho
LIVRO
CRÍTON
Autor: Platão
Ano: 1972
ISBN: 19725217
Editora: Clássicos Cultrix
Sinopse: O livro traz a antologia de alguns dos mais importantes diálogos de Platão,
a qual reúne Defesa de Sócrates, Um banquete, Êutifron, Critão e O dever e Fédon.
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Leia a obra de Platão, tentando compreender como Sócrates enfrentou o
dilema ético central de sua vida: aceitar a condenação à morte ou fugir?
Disponível em:
https://saudeglobaldotorg1.files.wordpress.com/2013/08/te1-platc3a3o-
crc3adton.pdf
LIVRO
APOLOGIA DE SÓCRATES
Autor: Platão
Ano: 2002
ISBN: 3237000001783
Editora: Escala
Leia o texto e tente detectar as razões pelas quais, segundo Platão, Sócrates
decidiu morrer e não fugir, como os seus amigos propunham. Preste atenção
no tom do texto: Platão está tecendo comentários que elevam o ato do seu
mestre. Por quê?
Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/270801/mod_resource/content/1/
platao%20apologia%20de%20socrates.pdf
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Considerações finais
Vimos, como a ética exige um raciocínio diante de situações decisivas de nossa vida. Como
ciência do agir, ao longo da história ocidental, foram desenvolvidos vários modos de enfrentar
essas dificuldades. Os modos de responder a esses problemas são conhecidos como modelos
éticos: no mundo grego, prevaleceu o que denominamos “ética das virtudes”; no modelo medieval,
a “ética do dever”; na modernidade, além da “ética do dever”, tem-se a “ética da utilidade”; e, no
mundo contemporâneo, há a “ética da responsabilidade”.
Todos esses modelos éticos são importantes para que nós possamos enfrentar os chamados
“dilemas éticos”, situações que, pela complexidade, exigem raciocínios cuidadosos e profundos,
análises e julgamentos adequados e, sobretudo, parcimônia e humildade.
Veja, no vídeo a seguir, as considerações finais que Jelson Oliveira nos traz pontuando as
principais discussões em torno dos modelos éticos.
Ética – Conclusão
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Referências
COENEN, C. et al. Human Enhancement: study. Bruxelas: European Parliament, 2009. Disponível
em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2009/417483/IPOL-JOIN_
ET(2009)417483_EN.pdf. Acesso em: 29 jun. 2020.
KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os
Pensadores).
PAZ, O. El labirinto de la soledad. Posdata. Vuelta a “El labirinto de la soledad”. 3. ed. Cidade do
México: FCE, 2004.
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