Le Bonheur - Agosto 2012

Fazer download em doc, pdf ou txt
Fazer download em doc, pdf ou txt
Você está na página 1de 24

2 A cinécriture de Agnès Varda

O sistema cromático de Agnès Varda em Le bonheur (1965) se impõe como


elemento central na experiência fílmica. A elaboração visual reaviva o tema proposto
pelo filme - a substituição de uma mulher pela outra - e autora une dois campos
aparentemente desconexos: cor e relações de gênero. O arranjo que a cor estabelece com
a crítica da felicidade numa família patriarcal emerge de maneira irônica através de uma
paleta multicolorida e aparentemente aleatória. No contexto do moderno cinema
francês, Le bonheur assume qualidades distintas quando visto numa relação de conjunto
com filmes de outros cineastas, notabilizados na história do cinema francês por ser uma
geração oriunda da crítica cinematográfica 1. A envergadura feminista da cineasta, como
mulher realizadora e militante, define, por si só, uma particularidade de Varda dentro da
Nouvelle Vague. Num ambiente predominantemente masculino, a cineasta se destaca
dos demais colegas por tocar em temáticas não assumidas pelo grupo dos jovens
realizadores franceses. A investigação da produção da feminilidade na sociedade
contemporânea, tema central de muitos dos seus trabalhos, parece ser uma propriedade
exclusiva de Varda, responsável em anunciar o cinema feminista feito a partir das
décadas de 60 e 70.
A poética das cidades assumida pelos cineastas da Nouvelle Vague colocou
Paris como cenário autêntico do cinema moderno francês2. Varda em Le bonheur realiza
curiosos deslocamentos, geográficos e visuais que reiteram a peculiaridade formal e
temática do filme. Ela opta por abandonar a capital francesa, elogiada na flanerie de
Cléo em Cléo de 5 à 7 (1962), e realoca o antimelodarma de Le bonheur na provinciana
cidade de Fontenay-aux-Roses e adjacências, cenário que julgou pertinente para discutir
as relações de gênero no antro de uma família de classe média, interiorana e
aparentemente feliz. A cineasta elege o recurso ao impressionismo na dinâmica das
cores e da paisagem. Enquanto Jean-Luc Godard aposta num diálogo gráfico com as
cores nacionais e do Pop, no intuito de traduzir uma visualidade contemporânea em
1
Sandy Flitterman-Lewis, To desire differently: feminism and the French cinema. Nova York: Columbia
University Press, 1996.
Richard Neupert, A history of the French New Wave cinema. Madison: University of Wisconsin Press,
2002.
2
Michel Marie, “Andanças parisienses da Nouvelle Vague”. São Paulo: n.07, p.79-85, ago. 2001.

1
Pierrot le fou, Varda regride temporalmente nas suas escolhas visuais. Por que um filme
de 1965, em pleno crescimento econômico da Quinta República Francesa, louva
paisagens provincianas registradas sob as menções a um movimento artístico do século
XIX?
Varda, sensível à criação visual de seus filmes e disposta a transformar os
códigos cinematográficos do cinema convencional, criou para si um termo que define
sua extensa obra: cinécriture. Para a cineasta, a cinécriture consiste no trabalho
específico do realizador, de transformar o roteiro - uma obra de referências literárias ou
teatrais - em um filme com códigos audiovisuais, que englobam a imaginação visual e
sonora do cineasta. A cinécriture de Varda coloca a cor num extenso painel de análise.
Como apontou Sandy Flitterman-Lewis a respeito dos filmes de envergadura mais
militante de Varda, incluindo Le bonheur, a cinécriture vardaniana expressa a
importância que a cineasta dá ao visual do filme. O controle artístico da realizadora está
no recurso consciente ao impressionismo, que reverbera no uso intenso das cores e a
figuração en plein air como código visual reinante. A cineasta cria, através do conceito
de cinécriture, uma elaborada formulação sobre as relações de gênero a partir da
homenagem, mesmo que difusa, à iconografia impressionista.
Cinécriture é um termo utilizado pela cineasta para definir qualitativamente sua
extensa obra, que reúne filmes de propriedades visuais distintas, às vezes opostas, e
temas desconexos quando vistos em conjunto. Le bonheur (1965), Cléo de 5 à 7 (1962),
Réponse de femmes: notre corps, notre sexe (1975), Une chante, l´autre pas (1976) e
Sans toi ni loi (1985) debatem a construção da feminilidade na sociedade
contemporânea, o corpo feminino violado (Sans toi) ou posto em sua integridade ética e
política (Réponse de femmes). Varda atribui a cada filme elucubrações e propostas
imagéticas díspares. A cinécriture expressa os modos de organização visual do texto 3,
os debates em torno das relações de gênero exige uma atitude estética exclusiva, assim,
Varda passa livremente do telefilme documental (Réponse de femmes) para o filme
narrativo (Sans toi ni loi), das ações afirmativas (L´une chante) para o registro do
sacrifício feminino (Le bonheur). Le bonheur se apresenta na carreira da cineasta como
um filme menor, entre o sucesso impulsionado por Cléo e a guinada militante do final
dos anos 60, com filmes de curta e longa-metragem de reconhecido valor político, como
Loin du Vietnam (1967) e Black Panthers (1968). A obra de 1965, na esteira de Cléo,
sacramenta a vertente feminista da cineasta e abre espaço para uma discussão enfática
3
Flitterman-Lewis, Op.cit.

2
sobre as relações de gênero na filmografia vardaniana, dando origem a filmes feministas
de estéticas e proposições diversas.
Por outro lado, Le bonheur refere-se igualmente às propostas experimentadas
nos dois documentários de curta-metragem e em cores que a cineasta realizou durante
os anos 50: Ô saisons, ô chateaux (1957) e Du côté de la Côte (1958), ambos em
Eastmancolor e consolidados na historiografia de Varda como filmes de encomenda ou
turísticos, pois destacam a imponência dos castelos da região do vale do Loire ou a
paisagem solar da Côte d´Azur e seus turistas. O recurso à cor, apatriada nesses dois
casos, ressalta as qualidades da França como país portentoso, mas não exime seu uso
crítico ao questionar o patriotismo solar da Riviera Francesa como o espaço do glamour,
das belezas naturais destinadas ao apreço burguês; ou ainda o luxo cortesão
historicamente engessado nas arquiteturas dos castelos. Tanto em um registro como em
outro, o uso estético dos figurinos, coloridos e saturados, em matizes que passam do
azul ao verde, do amarelo ao vermelho, evidencia a artificialidade de construção da
figura humana.

Tais como nos editoriais de moda, modelos trajando vestidos do mais


emblemático estilo New Look desfilam sobre as sólidas fortificações renascentistas dos
castelos do Loire, quando a narração over de Ô saisons destaca os flertes palacianos,
atualizando nesse sentido as imagens historicamente sedimentadas do feminino
enquanto âmbito do melindre e da vaidade. Em Du côté de la Côte, banhistas em seus
trajes coloridos remetem às construções visuais da publicidade turística em torno da
Cote d´Azur como recanto marítmo do refinamento. Turistas, geometricamente
dispostos em fileiras ao longo dos travellings, vestem trajes de banho que variam
igualmente entre o vermelho, amarelo, azul e verde. O recurso abusivo à cor, claramente

3
em evidência, perfaz o dispositivo crítico que a cineasta instaura nesses filmes de
encomenda, no intuito de questionar, através do visual, a artificialidade das interações
sociais mediadas por códigos oriundos da publicidade.
Ô saisons, ô chateaux e Du côté de la Côte apontam para novos caminhos
estéticos na filmografia da realizadora. Colocam a cor diante do horizonte de uma
liberdade narrativa, na organização de uma paleta vibrante na constituição dos corpos
das personagens, opondo figura e paisagem (Ô saisons, ô chateaux) ou mimetizando-os
(Du côté de la Côte). Herdeiros de padrões visuais publicitários, em especial a cor,
ambos utilizam ironicamente esses recursos, criando um contradiscurso. A liberdade
cromática de Le bonheur resvala igualmente na elaboração visual de comportamentos
masculino e feminino defendidos pela publicidade, além da motivação cromática
herdeira dos tradicionais clichês de felicidade familiar instituídos pela propaganda,
como ocorre na cena de abertura do filme.
Le bonheur, não sem ironia, agrega os debates propostos na cinematografia
vardaniana. A constituição do feminino no mundo burguês contemporâneo e os
referenciais à história da arte, discussões presentes em obras de relevância da cineasta,
criam uma interlocução possível entre cor e relações de gênero com as referências
visuais das quais a sociedade contemporânea é herdeira: de um lado, a visualidade
publicitária, do outro, a pintura impressionista. Tal como por Ô saisons e Du côté, a
evidência da cor saturada enfatiza a falsidade do enredo. Junto à ela, o recurso
visualmente irônico simula um conceito de felicidade.

Do impressionismo ao cinema

A narrativa de Le bonheur se estrutura de maneira cadente em virtude da


composição das personagens, criadas sob a lógica de uma aparente bondade de caráter e
simplicidade estrutural, e pela composição visual bela e festiva, supostamente aleatória.
O tema central, no entanto, é trágico. Varda desenvolve a substituição de uma mulher
pela outra numa família feliz, organizada em torno dos esquemas instituídos pelo
patriarcado. François Chevalier, sua esposa Thérèse e os dois filhos pequenos vivem na
cidade de Fontenay-aux-Roses e desfrutam os domingos no campo. Durante a semana, o
pai se dedica às suas atividades como marceneiro e a mãe como costureira. Num serviço
que deve prestar em outra cidade, François conhece a funcionária dos telégrafos, a bela
Émilie, e ambos passam a manter um relacionamento. Com um mês de caso

4
extraconjugal, François, num domingo, decide contar à sua esposa sobre Émilie e
propõe os três conviverem harmonicamente. Thérèse aceita num primeiro momento,
mas se suicida logo em seguida. Após a morte da esposa, François se une à Émilie, que
passa a assumir as funções dentro de casa. A nova família Chevalier vive placidamente,
tal como no início do filme.
O debate posto pela cineasta está em dimensionar a cor e a paisagem
impressionistas nas estruturas mais íntimas da narrativa. Uma análise da cor no cinema
só se revela possível a partir de um eixo interdisciplinar 4, diretriz que acompanha o
conceito de cinécriture criado pela cineasta. A cor não existe de maneira autônoma no
discurso fílmico, a relação de significados que ela constrói deve partir de uma
imbricação profunda com outros campos de atenção na análise fílmica: movimentos de
câmera, composição do espaço e de personagens, roteiro, fotografia, montagem, trilha
sonora. A cor é um elemento objetivo e subjetivo e sua percepção na obra
cinematográfica depende de quem a emprega (o cineasta) e de quem a vê
(pesquisador/espectador). Os mecanismos utilizados pela cineasta estão, de início, em
criar visualmente uma premissa imediata de felicidade na família Chevalier. Para tanto,
a música de Mozart na abertura do filme e o intenso colorido das paisagens en plein air
corroboram com uma visão clichê de felicidade e harmonia familiares.
A abertura do filme, emblemática nesse sentido, apresenta a família Chevalier
composta nuclearmente de pai (François), mãe (Thérèse) e filhos (Gisou e Pierrot). Os
adultos ocupam uma das pontas e dão as mãos aos filhos, localizados ao centro. A
corrente familiar caminha em direção à câmera onde há, em primeiro plano e em foco,
reluzentes e vistosos girassóis. No campo banhado por uma luz dourada, as roupas das
personagens vibram, sugerindo uma união entre o par masculino e feminino, pois são
vistos através de correspondências cromáticas em tons quentes. Um fade verde-limão
corta a cena e apresenta num plano geral Thérèse e François recostados numa grande
árvore e louvando a felicidade que os contempla: “oh, quel bonheur!”. Os filhos
dormem num berço improvisado com lençóis e tules, a fumaça da fogueira apagada sai
sutilmente. Um grupo de jovens coloridos e felizes passa num jipe e os vemos através
de uma subjetiva do casal.

4
Wendy Everett (org.), Questions of colour in cinema: from paintbrush to pixel. Berna: Peter Lang, 2007.
Brian Price e Angela Dalle Vacche (org.), Color: the film reader. Nova York: Routledge, 2006.

5
A referência da cineasta ao impressionismo francês coloca a dimensão da pintura
como uma espécie de mote visual e dramático do filme. Além de citar as imagens de
piqueniques e festividades coletivas estudadas pelos pintores impressionistas - em
especial Claude Monet, Édouard Manet e Auguste Renoir - Varda destaca ainda as
fotografias de família como referenciais de felicidade. A harmonia familiar de Le
bonheur está associada à vivência nos campos e nas festividades coletivas, sejam festas
e bailes na cidade, piqueniques no campo, almoços em família sob a árvore e a
paisagem, leve, bela e serena, reina ao fundo. Elementos visuais contribuem para atestar
essa “joie de vivre” da família Chevalier e a iconografia impressionista está em
destaque nas cenas de idílio. Varda expõe a harmonia existente dentro da família e na
relação entre essa e a natureza. Nesses momentos, “uma fileira de flores amarelas sob
um fundo de pequenas ou negras silhuetas de árvores contra um pálido azul do céu
demonstra que a cineasta investigou as pinturas do impressionismo francês com
cuidado” e de modo a evocar a vida cotidiana registrada pelos pintores5.
A figuação impressionista en plein air adquire uma potente inserção na
construção visual do filme, tanto nos aspectos da paisagem, quanto nas composições de
cor. Num dia de domingo - tal como os marceneiros e vendedoras de Manet, Monet ou
Renoir - François (marceneiro) e Thérèse (costureira) levam seus filhos ao campo para
desfrutar aquilo que existe de espaço natural na cidade de Fontenay-aux-Roses. Essa
modalidade de lazer é correspondida por mais outra massa de trabalhadores e
representantes de uma classe média quando Varda apresenta, na cena posterior, o
passeio da família Chevalier ao redor do lago. Mulheres cuidam de seus filhos, casais
lêem e pescam, outros apenas caminham. Lentas panorâmicas em planos gerais
acompanham esse convívio com o meio ambiente, nem totalmente natural nem
totalmente urbano, e as cores se destacam na imagem por seu uso festivo.

5
Dennis De Nitto e William Herman, “Le Bonheur”. Film and the critical eye. Nova York: Macmillan
Publishing Co., 1975, p.508-512.

6
A disposição geográfica selecionada por Varda, ao filmar em cidades como
Fontenay-aux-Roses, L’Hay-les-Roses, Bagneux, Créteil, Mennecy, Verrières-le-
Buisson, situadas na zona periférica de Paris e caracterizadas por nem serem nem
campo nem metrópole, retoma um debate estabelecido pelo impressionismo, quando
pintores se deslocaram de Paris para as cidades ao redor da capital em busca de retratar
o cotidiano de trabalhadores aos domingos e a modernidade errante que paulatinamente
se instaurava nessa região. Essas composições situam o homem na paisagem, em
registros geralmente festivos. Le bonheur acrescenta à paisagem uma relação mimética
com as personagens, em especial destaque à figura de Thérèse. Existe uma associação
imediata entre maternidade e natureza, pois Thérèse rima visualmente com os elementos
do cenário natural. Seu vestido florido em tons predominantemente quentes (amarelo,
laranja e rosa, além do verde) entra em sintonia com o campo amarelo do trigueiral e
com as árvores ao fundo e a luz dourada do sol rima com seu cabelo.

O impressionismo celebrou a vivacidade das festividades e prazeres individuais


e coletivos em lugares públicos, interiores ou paisagens, essas retratadas “sem tensão
nem drama”6, em especial nas pinturas de Monet. A inserção do cotidiano, do fugaz e
do fugidio, é o tema e também a forma do impressionismo 7. O crítico e historiador de
arte britânico T. J. Clark8 propõe uma análise social da pintura francesa em A pintura da
vida moderna. No capítulo “Os arredores de Paris”, ele defende que lugares como
Bougival, Asnières, Chatou, Bois-Combes, Grenouillere e principalmente Argenteuil
promoveram novas formas de sociabilidade, diferentes daquelas vividas em Paris, em
espaços caracterizados por uma constante mutação da paisagem.

6
Meyer Schapiro, Impressionismo, reflexões e percepções. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p.100.
7
Idem, p.28.
8
T. J. Clark, Pintura da vida moderna – Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004,

7
A singularidade desses balneários era o convívio entre natureza e urbanidade,
formas observadas pelos olhares atentos sobretudo de Manet, Monet e Renoir. Partindo
de Clark, havia nesses locais uma “justaposição entre produção e diversão” 9, a classe
social privilegiada em muitas das pinturas era a de pequenos burgueses, trabalhadores,
uma pequena classe média, quando não mesmo, em muitas ocasiões, os próprios
pintores. A representação delicada, sem ironia ou deboche dessa classe social composta
por marceneiros e vendedoras é para Clark “a expressão de uma nova forma de vida –
numa forma plácida, modesta, mas com aspiração ao prazer” 10. Ou seja, na pintura
impressionista, a convivência entre o moderno e idílico não equivale a uma contradição
da paisagem. A figuração en plein air dos arredores de Paris expõe, de maneira franca, a
emergência das formas de lazer da baixa classe média: o barco, as festas, os cafés de
esquina, o balneário, o dia no rio, nas corridas, nos campos. A partir da década de 80, as
cenas de idílio são tomadas pela volta à representação da cidade de Paris e em chave
melancólica, com personagens solitários em meio à multidão citadina, sinal do
desencantamento pequeno burguês em relação à modernidade11.
O entendimento da figuração impressionista, no seu tema e na sua forma, é
necessário para transformar as dispersas considerações entre o filme de Varda e a
pintura em assertivas mais objetivas e menos sumárias, de modo a deduzir as
motivações que levaram a cineasta a assimilar e reapropriar as conquistas estéticas
desenvolvidas pelo grupo de pintores. A cineasta empreende o mesmo deslocamento
realizado no século XIX pelos pintores franceses. Paris, a cidade moderna por
excelência na iconografia impressionista e objeto de apreço dos realizadores da
Nouvelle Vague, perde seu destaque para as cidades situadas “(n)os arredores de Paris”
nas pinturas realizadas no final da década de 1860 até as décadas seguintes. A cineasta,
consciente das referências que utiliza no seu filme, encontrou em Fontenay-aux-Roses,
localizada também nos arredores de Paris, a sua correspondente cidade com
características da figuração impressionista: nem campo, nem capital.
A paisagem, antes na tradição da história da arte dominada por variantes de
marrom e cinza, passou a ter, nas décadas de 60 e 70 do século XIX, a dinâmica da
pincelada rápida e em cores mais claras e saturadas. As tonalidades escolhidas pelos
impressionistas estavam condicionadas à atmosfera e à luz. Desta maneira, as cores das
pinturas en plein air eram luminosas principalmente quando realizadas sob a potente luz
9
Idem, ibdem, p.210.
10
Idem, p.241.
11

8
do sol. A predileção dos impressionistas estava na escolha das cores intermediárias, ou
seja, aquelas que se encontravam no intervalo entre o mais claro e o mais escuro de um
mesmo matiz. Varda destaca a premissa impressionista e a realoca no sentido do filme a
partir de elementos visualmente organizados:

(...) Le violet, c´est l´ombre de l´orange. C´est là une sensation qui ramène à l
´idée de peinture. Les impressionistes ont découvert que les ombres étaient
complementaires, qu´un citron avait une ombre blueu, et une orange une
ombre mauve, ce qui n´est pas tout à fait vrai dans la realité, mais ce qui est
tout de même une idée juste, une sensation juste. Dans Le bonheur, l´or (l´or-
couleur, pas l´or symbole) appellle le violet parce qu´il n´y a pas de couleur
sans ombre. C´est aussi qui parce que le violet est une couleur que j´adore,
une couleur que je porte, qui me parle à l´oeil (VARDA, “La grâce laïque”,
p.50).

A cineasta destaca na citação ao impressionismo a conquista dos pintores em


determinar o azul como a cor da sombra. Na pintura, as cores primária-pigmento são o
vermelho, o azul e o amarelo; e as complementares dessas cores são, respectivamente, o
verde, o laranja e o violeta. A conclusão cromática utilizada pelos impressionistas foi de
que um objeto amarelo (cor primária) ao lado de um vermelho induz nesse o
aparecimento de tons de violeta (complementar). Por sua vez, um objeto vermelho (cor
primária) ao lado de outro amarelo induz nesse o aparecimento de tons de verde
(complementar). Varda, décadas depois, reconsidera as influências do impressionismo
no modo de composição visual da pintura moderna e agrega a estética cromática
impressionista ao filme. O recurso ao impressionismo, além das paisagens, está em
definir a cor primordial (o dourado, mais as variantes de cores quentes derivadas do
amarelo) como representativo de Thérèse, a mulher solar, associada à natureza e ao
ouro. A complementar do amarelo seria o violeta, a cor representativa de Émilie,
personagem complementar e sombra de Thérèse na trajetória familiar instituída por
François.
As referências à iconografia impressionista dos arredores de Paris se situam
como uma dupla homenagem em Le bonheur: a primeira, e mais imediata, aos poetas da
modernidade, que passaram a compor as cores de acordo com as incidências da luz local
e não mais atendendo aos ditames de composição da pintura acadêmica 12. Uma outra,
mais sutil, menciona os filmes de Jean Renoir, filho do pintor Auguste Renoir. Nesse
diálogo intertextual, Varda verifica as inflexões do impressionismo no cinema e, para
tanto, recorre ao filho legítimo dessa tradição iconográfica. Renoir, fazendo uma
12
Jacqueline Lichtenstein, A pintura – o desenho e a cor. São Paulo: Editora 34, 2006.

9
homenagem ao pai e ao grupo de pintores, realiza em Une partie de campagne (1936)
uma exposição dos prazeres de comerciantes parisienses numa cidade dos arredores de
Paris. A família de Henriette se desloca num domingo da capital para um dos balneários
do Sena em busca de diversão e prazer no campo. Em Le déjeuner sur l´herbe (1959),
filme exibido na televisão do irmão de François, anos mais tarde Renoir retoma a
paisagem impressionista, onde também passou momentos de sua infância, mas desta vez
altera o foco para um cientista de meia idade que se apaixona por uma jovem moradora
local.
As citações ao impressionismo, justificados nos depoimentos da cineasta,
direcionam a análise da cor a um campo muito fecundo e pertinente ao filme: as
relações de gênero. Varda engendra um sistema de cores patente, menos racional e
sistemático se comparado ao de Godard, mas não menos digno de atenção,
especialmente pela proposta da cinécriture. Da pintura provêm os mecanismos de
reflexão sobre o estatuto da mulher numa família aparentemente sem problemas e
grandes conflitos, dominada ainda por uma figura masculina de visível bondade de
caráter. Estudos díspares quanto à pertinência e profundidade na análise tanto da cor
quanto das relações de gênero serão considerados e, o que fica evidente quase cinquenta
anos depois do lançamento de Le bonheur, é a excassez de estudos sobre cor dedicados
ao filme e que levem em conta a ambigüidade de significados proposta pela cinécriture
vardaniana.

Cor e crítica feminista: a singularidade de Le bonheur

A trajetória de Varda como cineasta feminista foi impulsionada depois do


sucesso internacional de Cléo de 5 à 7 (1962). Le bonheur, obra que veio em seguida,
opera a partir de códigos muito diversos do filme anterior e ocasionou debates dentro da
crítica, gerando destoantes interpretações acerca da colorida história da família
Chevalier. A fortuna crítica do filme, mesmo escassa se comparada a outros trabalhos
da cineasta, possibilita ver como a simbologia das cores em Le bonheur apresenta
leituras diferentes. Claire Johnston13, assim como Laura Mulvey, britânica pioneira na

13
Claire Johnston, “Le cinéma de femmes comme contre-cinéma” in CinémAction. Condé-sur-Noire:
n.67, p.157-162, 2º trimestre 1993.

10
introdução da crítica feminista no cinema, escreveu um breve e polêmico texto sobre o
cinema de mulheres e se coloca contra a cinematografia de Varda por considerá-la
complacente com os mecanismos burgueses de construção do feminino. Em oposição,
Flitterman-Lewis, décadas depois, reavalia a trajetória desempenhada pela cineasta e
dignifica sua obra como uma das mais autênticas diretoras feministas. O suporte do
argumento de Lewis está no reconhecimento da construção visual dos filmes de Varda,
seja no nível que tange a dramaturgia seja no campo estrito da imagem, que atende um
olhar sobre as cores, montagem e mise-en-scène. A análise de Lewis defende a
necessidade de olhar primeiramente o objeto fílmico para tirar dele diretrizes de análise
que possam indicar questões acerca das relações de gênero.
A decepção da crítica com o lançamento de Le bonheur pode ter sido ocasionada
pela comparação com a obra anterior. Cléo é um filme sobre a transformação do olhar, a
mulher-coquete (Cléo) que deixa ser observada e julgada pelos outros a partir do
momento em que ela adquire autonomia do seu próprio ver. A mudança de perspectiva,
da personagem que é apenas observada pelos outros mas não compreendida por eles,
para aquela que observa os eventos, a cidade, as pessoas numa espécie de flânerie
feminina, consagrou a assertiva feminista do filme. Le bonheur, ao lado de Cléo, parece
mais problemático ou ambíguo em sua dramaturgia e estética, por uma série de
argumentos que exigem a literalidade do roteiro e ignoram os procedimentos como a
construção visual do filme e os recursos de distanciamento utilizados na criação das
personagens.
O filme é narrado do ponto de vista masculino, o espectador acompanha os fatos
a partir da lógica de François e as mulheres, por sua vez, são figuras secundárias na
trama, o que não determina, entretanto, a sobrelevância de François como personagem
principal. A inserção da cor como poética fílmica acompanha por um lado os ditames
estéticos que o cinema moderno colocava naquele momento e, por outro, gera uma
ambigüidade nos códigos do filme, pois a paleta de cores não se altera, mesmo após a
morte de Thérèse. Por fim, não existe uma condenação e julgamento explícitos de
François, a substituição de uma mulher por outra aparece, numa primeira leitura, de
maneira plácida, natural. Por esses motivos, a crítica de Johnston foi implacável com a
filmografia de Varda, a pesquisadora critica a noção de naturalidade de seus filmes:

Les films de Varda constituent un très bon example d´un ouvre qui rend
hommage aux mythes bourgeois sur les femmes, et par là même, à l
´apperance innocence du signe. En particulier Le bonheur (...) La description

11
faite par Varda des fantasmes féminins constitue l´approximation la plus
proche qui existe sans doute au cinéma des rêveries simplistes perpetuées par
la publicité. Ses films semblent d´une innocence totale quant aux mécanismes
du mythe; en effet, le but du mythe est de fabriquer une impression d
´innocence grâce à laquelle tout devient “naturel”. L´intérêt de Varda pour la
nature est une expression directe de recul par rapport à l´histoire ; l´histoire
se transforme en nature, éliminant ainsi toute question, car tout semple
“naturel”. Il est évident que l´ouvre de Varda est réactionnaire : en rejetant la
culture et en plaçant les femmes en dehors de l´histoire, ses films marquent
un pas en arrière dans le cinéma des femmes (JOHNSTON, “Le cinéma de
femmes comme contre-cinéma”, p.161/162).

O parecer sumário de Johnston aponta problemas na análise fílmica. A autora


limita a interpretação dos códigos visuais utilizados por Varda e credita-os como sendo
a transposição imediata de uma visão reificada sobre o feminino. O mecanismo não
compreendido foi de que o cinema moderno utiliza recursos de ironia na composição
cromática, os elementos visuais podem criar uma disrupção ou um intervalo entre tema
e forma. É possível dentro da poética moderna a leitura não literal entre cor e felicidade.
A assertiva de Brian Price14 parece validar o caso de Le bonheur. Segundo o autor, as
cores compõem um código sutil e expõem um comentário não explícito sobre a
narrativa. O deslocamento do ponto de vista feminino para o masculino não significa
necessariamente a defesa da figura do homem em detrimento da mulher. Justamente
nesse âmbito é que Le bonheur articula um imbricado jogo entre ponto de vista
masculino e defesa do feminino através da cor, que se apresenta como um irônico
dispositivo visual. Em entrevista concedida décadas depois do lançamento do filme,
Varda apresenta Le bonheur como um filme feminista e justifica os mecanismos visuais
pelos quais optou:

Je n'ai pas beaucoup pensé sinon que la representation du bonheur par les
magazines feminins (un homme et une femme jeunes, la nature, les sourires)
est vraie et fausse en meme temps. La premiere femme se noie; il trouve une
autre femme, mais la meme: blonde, jolie. II pense qu'on peut additionner le
bonheur (plus, plus, plus). La deuxieme femme remplit la fonction, n'importe
quelle femme peut remplir la fonction, c'est tres troublant et tout a fait
angoissant.
Primo, j'ai ete frappée du fait que cette representation, ce cliche un peu
enervant, est en meme temps quelque chose de profond, de vrai, et
deuxiemement que la sociéte demandait aux individus d'etre des fonctions: la
fonction de l'homme c'est d'etre le protecteur de sa famille, d'apporter
l'argent, d'etre un homme; et la fonction de la maman, de la femme, c'est
d'aimer son mari, ses enfants, de faire a manger, arroser les plantes, coucher
les enfants au lit, fermer le gaz et éteindre la lumiere et que si un homme
amoureux de sa femme blonde tombe amoureux d'une autre femme blonde, si
la premiere disparait la deuxieme femme remplit la fonc-tion et fait les
memes choses: elle aime; elle arrose; et elle éteint. C'est le cliche du bonheur,

14
Op. cit.

12
I'image de "Marie-Claire", et pourtant un drame est passe. I y a un beau fruit
mais il faut savoir a quel moment le ver sort, ou est-ce qu'il y a des vies oti le
ver reste toujours derriere la peau de la pomme. La societé a besoin de
familles qui fonctionnent. Chacun de nous est unique et remplaqable-unique
comme une personne, une personnalite, et remplaqable dans la sociéte,
comme fonction sociale (VARDA, “Entretien avec Agnès Varda sur Jacquot
de Nantes”, p.949, destaques meus).

Flittermen-Lewis destacou que o conceito de cinécriture articula os mais


diversos códigos fílmicos para colocar como centro da obra o debate sobre a produção
da feminilidade na sociedade contemporânea, a maneira como as mulheres são
representadas socialmente. A autora considera os complexos mecanismos visuais
utilizados por Varda em seus filmes e, ao apontar uma análise de Le bonheur, expõe a
interferência da cor no conteúdo fílmico. Como afirmou Maire-Claire Ropars-
Wuilleumier15, o filme equivaleria a um melodrama banal se não fosse pelo extensivo
uso da cor. No entanto, o filme dialoga com o gênero cinematográfico do melodrama no
intuito de criar um antimelodrama. Dessa forma, a imagem adquire o mesmo estatuto da
dramaturgia, existe um arranjo entre construção das personagens e código visual.
Flitterman-Lewis foi aquela que apresentou uma análise mais contundente sobre as
cores em Le bonheur e alia, em seu diagnóstico, o cinema e a cor aos horizontes pós-
estruturalistas:

One of the most remarkable things about the film is its systematic,
antinaturalistic use of color. From the very outset, this color, accompanied by
amplified strains of Mozart on the soundtrack, signals the reflective,
contemplative distance that the film requires of its spectator. More than an
investigation into the nature of happiness, and perhaps more than an analysis
and critique of social relations, Le bonheur represents an exploration into the
processes of cinematic representation. In other words, it examines how both
the emotional and the societal, the psychological and the politicial, are
mediated by signifyin modes that construct our sense of “reality”.
Therefore, in Le bonheur the color is used not so much to enhance the
realism of the film as to call attention to itself as material or dramatic element
(…) In this Varda was not attempting a kind of color symbolism that would
equate happiness, for example, with yellow. Rather she was outlining the
parameters of a color system that would interact with the other structures of
meaning in the film-text to provide sociocritical commentary on the
emotional material of the plot (FLITTERMAN-LEWIS, To desire differently,
p. 232)

A crítica imanente é o argumento que Lewis se utiliza para a análise fílmica,


mesmo que essa seja orientada de acordo com a perspectiva dos estudos culturais e da
terceira onda feminista, dos quais Lewis é fruto. Esses debates presentes na teoria do
15
Marie-Claire Ropars-Wuilleumier, “Réflexions sur la couleur dans le cinéma contemporain”. Études
Cinématographiques. Paris: n.21, p.51-63, outono 1965.

13
cinema renegam, no entanto, a cor a um campo ainda subalterno aos grandes temas da
teoria cinematográfica. Lewis, com os referenciais conceituais que sinalizam sua
orientação de análise, parte incialmente das relações de gênero para pensar a cor. Nessa
linha de argumentação, proponho o inverso, que a análise de Le bonheur seja orientada
a ver a cor como um expediente cinematográfico capaz de estabelecer mediações com
outros concordantes fílmicos, criando assim arranjos estéticos e simbólicos necessários
à análise imanente da obra.

A artificialidade da composição visual de Le bonheur acompanha a falsidade do


enredo. A conduta inverossímil das personagens, pautada pela semelhança com os
comportamentos familiares reiterados pela publicidade, em especial sobre um conceito
de maternidade, articula-se com a constelação de recursos estéticos utilizados por
Varda. A realizadora assume os clichês de felicidade familiares, amplamente
codificados pela mídia e pela propaganda, para devolvê-los sob uma base irônica. A
abertura do filme, singular nesse aspecto, anuncia o campo onde Varda articula as
relações de gênero: inscritas numa estrutura familiar. As assimetrias de poder entre
masculino e feminino reverberam na cisão entre espaço público e privado, cada qual
associado a um gênero, nos papéis sedimentados como feminino, tais como a
sacrificialidade materna e a negação das vontades próprias em prol de uma harmonia
familiar.

14
Recursos de montagem integram essas qualidades atribuídas a cada gênero,
comparando comportamentos sociais do feminino e do masculino. Planos rápidos e
intercalados contam com o suporte da música - a mesma que abre o filme – e
diferenciam o espaço doméstico e público, mulher e homem em suas divisões sociais:
ela costura em casa, rega as plantas, lava a louça, apaga a luz, coloca as crianças para
dormir; ele, no espaço doméstico, garante a segurança da casa ao trancar a porta. O
dispositivo da montagem atesta as representações simbólicas normativas onde situam
cada gênero. A função da música de Mozart, associada à candura das imagens, articula
uma noção de “joie de vivre” por vezes inverossímil, já que os planos curtos enfatizam
o extensivo trabalho doméstico realizado por Thérèse, depois prosseguido por Émilie ao
final do filme.

Esses arranjos sociais também desenvolvem-se no decorrer do filme sob uma


estética visual e procedimentos dramatúrgicos calcados num refinado e seleto grupo de
referências das quais Varda tornou-se partidária nos anos 50, quando iniciou sua
carreira como cineasta: as alusões à história da arte e à dramaturgia brechtiana. Existe
uma articulação entre paisagem, cores, música e personagens que exigem do espectador
uma relação de não identificação com o ambiente proposto. A doçura excessiva de
François, a submissão de Thérèse e a aceitação imediata de Émilie, em arranjos
cromáticos que tendem à saturação, situam o filme num campo estrito de não
condenação do comportamento das personagens, em especial de François, e,
paradoxalmente, a não aceitação desses comportamentos. Esses recursos remetem a uma
ambientação de falsidade e propõem ao filme caminhos modernos quanto à cor e à
dramaturgia.
Varda, mesmo insatisfeita na época com o pouco conhecimento da dramaturgia
brechtiana, avalia que o legado do cinema moderno realizado por seus colegas criava
uma diferenciação entre potencial dramático das ações/roteiro e interação emocial do

15
público. A cineasta e, posteriormente algumas pesquisadoras como Ruth Hottell16,
defendem que Le bonheur, assim como outros filmes feministas da realizadora, é um
projeto bem sucedido, pois exige do espectador um julgamento das reações das
personagens por considerá-los falsos ou inadequados socialmente. A música de Mozart,
nesse sentido, reitera os caminhos do “distanciamento vardaniano”, pois não condena os
participantes do filme, ao contrário, reitera a doçura de seus comportamentos. Varda,
irônica, utiliza-se dessa peça musical clássica para validar um contradiscurso sobre as
reiteradas bases sociais onde a feminilidade é construída.
As cores operam a partir de conceitos herdados do impressionismo para esboçar
uma dicotomia central no filme, entre o amarelo/dourado (Thérèse) e o violeta (Émilie).
No entanto, e como afirma Richard Neupert17, a obra ultrapassa as referências ao
impressionismo e a atitude binária das cores, pois alude a tradições visuais
heterogêneas, até mesmo antagônicas, o que destitui a hegemonia do impressionismo
como matriz visual única. Para o autor, a cineasta criou um vocabulário próprio para sua
paleta fílmica, condicionada a sensações pessoais, organização racional das cores e
experimentação. Hottell, outra pesquisadora dedicada às relações de gênero no cinema,
declarou, mesmo sumariamente, que a paleta do filme se revela mais ampla que a paleta
impressionista.
No cinema dos anos 60, a introdução da cor ocorreu por uma defesa da liberdade
de criação. Reinava naquele contexto uma espécie de “camaradagem cinematográfica”,
cineastas contribuíam criativamente nos filmes de seus colegas. A possibilidade de troca
de idéias e de horizontes estéticos evidencia que a gênese cromática de Le bonheur se
associa tanto ao passado da autora como estudante de artes, quanto a sua convivência
com Jacques Demy, marido e parceiro de criação, que realizou seu primeiro filme em
cores um ano antes (Les parapluies de Cherbourg, 1964). Os recursos godardianos
podem ser sentidos pela extensiva utilização de faux-raccords nos encontros de
François com Émilie, na montagem acelerada e, inclusive, nas composições visuais
límpidas do apartamento da amante. Esses elementos vistos em conjunto atestam que o
trabalho da cinécriture vardaniana não é um conceito simples. Os recursos fílmicos, tais
como a cor, a montagem, os movimentos de câmera “suit d´autres rythmes et règles

16
Ruth Hottell, “Including ourselves: the role of female spectators in Agnès Varda´s Le bonheur and L
´une chante, l´autre pas” in Cinema Journal. Austin: v.38, n.02, p.52-71, inverno 1999.
17
Richard Neupert, “La couleur et le style visuel dans Le bonheur”. Agnès Varda : le cinéma et au-delà.
Antony Fiant, Roxane Hamery e Éric Thouvenel (org.). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009,
p.79-87.

16
propes à Agnès Varda (...) Grâce à sa cinécriture, Varda trouve des solutions très
personnelles aux problèmes de mise en scène dans ce drame ambivalent et troublant”18.
É justamente no recurso à ironia e na relação de distanciamento entre espectador
e personagens que Le bonheur se afasta das normas e convenções do cinema clássico,
que exigiam clareza na utilização simbólica da cor. Na composição cromática clássica,
códigos precisos são facilmente entendidos pelo espectador, em especial as relações
entre cor, personagem e sentido dramático da cena. O trabalho de Varda se apresenta
como ambíguo pois a cineasta parte de uma disposição geral dos tons que parece, à
primeira vista, arbitrária, distante de um sistema. Existe também uma ambiguidade
associada à narrativa, quando a morte de Thérèse ocorre em tons festivos e primaveris.
No cinema clássico, cor e emoção representam um par indissociável na composição
visual das personagens. Varda, na abertura do filme, procura dispor as cores como um
acompanhamento do estado emocional de felicidade de François Chevalier, o
protagonista zeloso que convive harmonicamente com sua esposa Thérèse e a amante
Émilie, até o suicídio daquela na última parte do filme. As cores exercem, até dois
terços da narrativa, quando todos os componentes da família convivem em harmonia,
como uma ilustração dessa joie de vivre de François19.
William Johnson afirma que a partir do suicídio de Thérèse, quando ela descobre
o adultério do marido, as cores mudam de registro simbólico, apesar de permanecerem
as mesmas ao longo das cenas. O filme conduz serenamente a substituição de uma
mulher pela outra de acordo com a visão masculina, centrada no ponto de vista do
protagonista François, que seria o registro de felicidade dentro da lógica patriarcal: uma
mulher renuncia sua própria vida em prol da felicidade de seu marido. O intenso
colorido da paisagem e dos interiores dos ambientes passa inicialmente da ilustração de
um estado pleno de harmonia para uma espécie de comentário irônico ao perigo de se
viver a felicidade do tempo presente. Serenamente é como as cores se engendram no
filme, a potência de felicidade que elas aparentemente traduzem associam-se ao estado
de ânimo de François. Essa “amoralidade” de Varda20 revela, acima de tudo, uma
desconfiança de que alguém não se enquadra dentro dos padrões de harmonia familiar.
As cores seriam uma indicação de que os códigos patriarcais nas relações conjugais
estão postos em questão, é necessário duvidar desse conceito de felicidade.

18
Neupert, Op. cit., p.86/87.
19
William Johnson, “Coming to terms with color”. Film Quarterly. Califórnia: v. 20, n.01, p.2-22, outono
1966.
20
Hottell, Op. cit.

17
O trabalho de Varda é baseado na justaposição e contradição 21. Thérèse, a
mulher solar, de cores quentes e de paleta mais diversificadas por estar associada aos
motivos orgânicos, a uma “planta vivaz”22, à floresta, às flores, aos planos longos e
lentas panorâmicas23, representa o reino da doçura. Émilie, a amante registrada em cores
que tendem à escala dos tons frios (do azul ao violeta, a cor favorita de Varda), seria o
veneno, o “animal selvagem”24, o leão do zoológico que aparece num insert, os planos
curtos e picados. As mulheres possuem padrões de composição visual distintos, mas
representam, no contexto da narrativa, o mesmo valor. Fisicamente são
semelhantes, ambas são bonitas, com algumas distinções sutis, como a cor do
cabelo de Émilie é mais gélida se comparada ao de Thérèse. Curiosamente é
como Varda articula Thérèse nesse dispositivo. Quando a mãe aparece nas
cenas do campo, sua paleta se torna mais vivaz, em sintonia com as cores da
paisagem. Quando posta dentro do ambiente doméstico, sob o domínio do
patriarcado e das funções consideradas comuns para uma mulher, Thérèse
acompanha a paleta fria do lar, representada pela cor azul da parede. No
entanto, socialmente ambas desempenham a mesma função. Para François,
que aceita a substituição de Thérèse por Émilie, o que valida sua relação com
a segunda mulher é a adequação dessa aos trabalhos domésticos e às funções
que desempenha na família. A rotina de François, em sua nova família, não
foi alterada, simplesmente houve a transposição de funções sociais de uma
para a outra, daí a plenitude de sua felicidade.

21
Flitterman-Lewis, Op. cit.
22
Maneira como François define sua esposa à Émilie.
23
Neupert, Op. cit., 2009.
24
Maneira como François distingue Émilie de Thérèse.

18
O filme é um estudo sobre o sentido de felicidade dentro da lógica patriarcal.
Cromaticamente Varda distingue as personagens, cria relações de oposição visual entre
as figuras femininas para determinar que ambas são, no entanto, iguais para François.
Não existe para a figura masculina uma relação bipartide entre as mulheres, Émilie é
complementar à Thérese, em termos de cor e de equivalência no drama, a partir do
momento em que uma substitui a outra. Os referentes cromáticos, da cor primária
(Thérèse) e cor complementar (Émilie), reivindicam um suporte de atenção para que o
espectador julgue as decisões de François, mas a personagem masculina, por si só, se
revela incapaz de refletir sobre o estatuto do feminino.

19
As cores indicam sutilmente o envolvimento do homem com Émilie, existe uma
equivalência cromática entre as personagens. Na cena de abertura, François está
associado à Thérèse a partir das cores quentes, assim como toda a família. A figura
masculina apresenta-se como a mais cambiante em termos de cor, pois a paleta de seu

figurino está determinada pelo envolvimento emocional de François com as mulheres.

20
Ele se engendra no campo das cores frias quando conhece Émilie. O fade in e out azuis
que ligam a cena de François com a esposa e o momento seguinte, quando passa pelos
correios e conhece Émilie, a personagem de predomínio do azul e do violeta, indica uma
nova passagem do filme, o envolvimento extraconjugal de François. Muros, inscrições,
cartazes, carros, uniformes do telégrafo e outros elementos ecoam a presença do azul
como elemento reiterante nesta e nas cenas seguintes. François, depois de combinar um
encontro com Émilie, que seria o primeiro momento íntimo entre ambos, trabalha em
sua oficina e o plano, no contraluz, reforça a qualidade azul da parede ao fundo, onde há
a inscrição azul. Varda retifica esses dados presentes na narrativa, ao dispor no espaço
diegético inscrições que saúdam a presença das cores.

Varda articula os códigos visuais para conceber personagem e cena e destitui a


cor de sua utilização exclusiva em cada figura. O sistema de Le bonheur apresenta um
sutil rigor, por vezes arbitrário, distante de “correspondências solidificadas”25. O uso
antirealista da paleta não é apenas uma maneira de diferenciar formalmente a estética
clássica da moderna, mas de colocar o espectador numa posição central de quem vê.
Para a cineasta, existe a necessidade de incluir o espectador nos mecanismos de
construção visual do filme, proporcionar uma curiosidade sobre as capacidades
cognitivas do ver, por isso esse primeiro trabalho de longa-metragem e em
Eastmancolor da cineasta privilegia as cores como elemento central. O cinema para
Varda é uma arte popular e por isso mesmo é necessário alterar a imagem das mulheres
ou ao menos proporcionar ao espectador uma capacidade de reflexão sobre as relações
de gênero. O adendo que a cineasta faz quanto aos limites do cinema concerne no
trabalho específico do diretor, o que valida a conquista ou não do público: “os cineastas
não devem se tornar chatos o suficiente a ponto de ninguém mais querer ouvi-los”26.
A não regressão ao realismo do cinema clássico permite que o espectador
considere as cores como um dispositivo cinematográfico, uma esfera simbólica
autêntica de atenção engendrada a partir de recursos de distanciamento. A cor, assim
como a negação da perspectiva psicológica das personagens, possibilita a criação de
recursos de distanciamento e não identificação do espectador nem com o drama, nem
com as personagens, nem com a imagem. Neupert27 aponta que essa é uma característica
da cineasta durante a primeira década de sua carreira; e Varda, por sua vez, declara que
25
Neupert, Op. cit., 2009, p.81.
26
Varda, citado em Flitterman-Lewis, p.236.
27
Neupert, Op. cit., 2002.

21
utilizou de conceitos da dramaturgia brechtiana para criar um olhar crítico do espectador
sobre a trajetória da família Chevalier. O filme coloca o espectador numa esfera
pensativa e reflexiva, as cores artificiais indicam a possibilidade de “olhar
profundamente” as imagens apresentadas pela cineasta.
O filme é construído a partir de uma trajetória cíclica, mas com mulheres
diferentes. A perspectiva social é dada a partir de eventos cotidianos, por isso a
relevância do impressionismo como matriz para dignificar figuras de uma classe média
trabalhadora. François não é julgado pelo espectador a partir de traços de personalidade
que atestem uma suposta “maldade” da personagem ou outros valores morais. Nesse
drama “amoral”28 que subverte os códigos (morais) simplistas do melodrama, Varda
questiona o que seria socialmente uma “especificidade feminina”, por isso coloca as
personagens a partir de comportamentos que o espectador consideraria como artificiais.
Nesse jogo, a cinécriture permite que as cores estabeleçam uma defesa das figuras
femininas, mesmo que essas não determinem o ponto de vista do filme. Para tanto, a
cineasta requer a atenção estética do espectador e isso confirma o uso antirealista das
cores saturadas, modernas. O filme é o registro de um conceito de felicidade
determinado pela figura masculina no registro da família nuclear burguesa e de quem
temos a visão dos fatos que se sucedem na narrativa. Contudo, Varda articula uma
inusitada relação entre cor e tema ao desviar a atenção cromática para as figuras
femininas, personagens consideradas secundárias e aquelas cujo conceito de felicidade
está submetido à lógica de François.
Apesar de Thèrése não ter uma paleta específica, ela é a personagem que possui
as cores mais vibrantes do filme. Ao passo que a amante Émilie é vista através de tons
mais gélidos e discretos, em figurinos de linhas retas e apartamento cujo estilo de
decoração é mais límpido, com poucos estímulos de cor; Thérèse acompanha o registro
geral da paleta do filme, sua identidade cromática rima visualmente com a paisagem da
natureza. O filme abre com as cenas primaveris da paisagem campestre de Fontenay-
aux-Roses e Thérèse é apresentada junto à sua família com um vestido de estampa floral
em intensos tons de amarelo, laranja e verde, sobreposto por um xale roxo. Seu cabelo
loiro se uniformiza com os campos de trigo e com a luz do sol, onde ela e o marido
passam os domingos com os filhos. Émilie, apesar da sua postura recôndita e doce,
obedece às padronagens frias, inclusive a cor de seu cabelo. O filme se encerra com a

28
Hottell.

22
nova família mimeticamente diluída na paisagem outonal, estação do ano em que a
natureza se encontra em estado de senescência.
O violeta é uma cor que perpassa a narrativa, não é uma identidade exclusiva de
Émilie, da mesma maneira que o azul pauta representações tanto da mãe, quanto do
marido e da amante, mas adquire significados diferentes de acordo com as cenas. O
sistema de Varda por vezes pode parecer impreciso, mas indica, como um todo, a
invalidação da figura de François. O filme parte do ponto de vista da personagem
masculina e essa, curiosamente, é aquela que apresenta menos embates em relação à
cor. Marrom, azul e verde rebaixados, tons que acompanham François, são, obviamente,
cores. No entanto, um filme realizado na ocasião em que o elogio à cor no cinema era
determinada pela saturação e iluminação do matiz como adjetivos positivos, a paleta de
François, nesse contexto de irrupção poética da cor, parece ir na contramão dessa
postura libertadora da cor. François não é mostrado a partir de gamas de um matiz
específico e detém as cores mais desinteressantes visualmente quando comparado às
suas companheiras. Nessa reação cromofílica de Varda, a cineasta atesta sua predileção
pelo gosto moderno de composição cromática.

Na cena final, que encerra o ciclo instituído pela narrativa, as cores outonais
partem da paisagem para os figurinos das personagens. Esse movimento, da natureza
para o homem, sugere uma relação conjugal de senescência e a rima visual entre a
figura feminina com a masculina indica, novamente, uma equivalência emocional entre
ambos, como se Émilie, no plano final, estivesse cromaticamente instituída dentro da
lógica patriarcal de François, assumindo sua posição numa família funcional. O filme
como um todo, ao abrir e fechar da mesma maneira, com um plano geral da família
andando sobre o campo, no início durante a primavera e no final durante o outono, mais
do que uma defesa de Thérèse em relação à Émilie, seria a reflexão de como as relações

23
conjugais burguesas patriarcais, por mais felizes que elas possam aparentar, são, no
fundo, destrutivas, senescentes. O registro irônico de Varda nos convida a ver, e com
certo ressentimento, o bom caráter de François ao se deparar com o problema do
adultério, porém, no plano das cores, a narrativa procura atender às demandas que a
crítica feminista colocou sobre o filme. Se a felicidade é colocada do ponto de vista
masculino, as cores, ao contrário, fazem um elogio às figuras femininas, as
cromaticamente mais evidentes.

24

Você também pode gostar