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A Arte Como Expressão Singular Do Inconsciente

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A ARTE COMO EXPRESSÃO SINGULAR

A Arte Como Expressão Singular do Inconsciente


Anna Raquel de Souza Oliveira
Maysa Alves Muniz
Fernando Figueiredo dos Santos e Reis
Centro Universitário de Anápolis – UniEVANGÉLICA

Nota dos Autores


Anna Raquel de Souza Oliveira, graduanda no Curso de Bacharelado em Psicologia do
Centro Universitário de Anápolis – UniEVANGÉLICA;
Maysa Alves Muniz, graduanda no Curso de Bacharelado em Psicologia do Centro
Universitário de Anápolis – UniEVANGÉLICA;
Fernando Figueiredo dos Santos e Reis, psicólogo, psicanalista, mestre em Psicologia
Social pela Universidade de São Paulo (USP) e docente do curso de graduação em Psicologia
no Centro Universitário de Anápolis – UniEVANGÉLICA.
A ARTE COMO EXPRESSÃO SINGULAR

Resumo

Qual a ligação existente entre a arte e a psicanálise? Existe uma fronteira real entre esses dois
universos? Se sim, qual é o ponto de convergência entre ambos domínios do ser humano?
Este trabalho tem como norte essas questões e se dedica a descobrí-las através de pesquisas
teóricas sobre conceitos que cercam esses dois mundos. Aponta-se estudos concebidos por
Freud e Lacan pela parte da psicanálise, entre outros autores que agregam assuntos também
contemplados para a completa realização da pesquisa. A escolha deste tema se deu pela
necessidade de novas perspectivas de compreensão sobre o universo do ser humano, com o
intuito de agregar à psicologia formas alternativas de acolhimento do sujeito, e até mesmo
para estimular mais produções de conhecimento sob tal ponto de vista. E diante do material
exposto, foi concebível o ponto de convergência tão procurado. Adentrou-se no espaço tão
complexo do inconsciente para finalizar (ou habilitar) as questões norteadoras dessa pesquisa.
Palavras-chave: Arte, psicanálise, inconsciente, sujeito
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A arte como manifestação do humano

Segundo Coli (1995), arte é a manifestação da atividade humana. Portanto, esclarecer


limites dentro do que é arte ou não é mais complexo ainda, pois ela nem sempre é abstrata,
lógica ou sólida, ou até mesmo facilmente entendível. Houve uma época que sua definição era
ainda mais difícil, pois existia muita crítica e julgamento em cima das obras e do próprio artista.
Coli (1995), retoma que hoje os critérios para se considerar uma arte ou seu conceito são bem
mais diversos. Também deve-se mencionar que a arte em si passou por inúmeras fases durante
toda a sua considerável história, desde as primeiras pinturas encontradas no período pré-
histórico, até a arte contemporânea e pós-moderna conhecida e produzida atualmente.
Com isso, é possível dizer que estudar a arte é também conhecer o mundo. Aprofundar
sobre a produção artística de um tempo é entender a percepção de sociedade, relações e a
construção de pensamento das pessoas que viveram a época. Segundo Borges (2016), desde a
pré-história o homem se utilizou da arte como uma ferramenta para manifestar esteticamente
sua cultura, rituais, tradições, sentimentos e cotidiano. Barbosa (1995), afirma que as artes
exteriorizam o que a história, sociologia e antropologia não conseguem falar pela linguagem
tradicional. A autora ainda reconhece a arte como instrumento do desenvolvimento de
percepção, imaginação e criatividade, e como habilidade para mudar a realidade observada.
Do mesmo modo, discutir a arte e sua relação com o sujeito como criador é envolver as
pessoas em sua cultura, experiências e vivências. Segundo Ostrower (1993), a natureza criativa
do homem se elabora no contexto cultural em que ele vive. Sendo assim, cabe aqui considerar
que todo sujeito desenvolve seus processos subjetivos de acordo com suas vivências,
relacionamentos, valores, realidade social e crenças. É através de todo esse movimento que se
dá a elaboração da vida subjetiva de cada indivíduo e a construção de suas particularidades.
Para expor a criação artística no contexto desses estudos, podemos citar Walter
Benjamin e sua crítica à reprodutibilidade. A arte técnica e reprodutiva não entra no conceito
que tanto se é dito nos estudos da psicanálise sobre singularidade da obra e a expressão do
inconsciente do sujeito, teoria que será explorada no decorrer deste trabalho. Segundo o autor,
alguns elementos que estão ausentes nas reproduções são o aqui e agora da obra, sua existência
única e por fim, sua autenticidade (Benjamin 1955/1987). Assim acontece o que ele denomina
de perda da aura, conceito esse que surgiu em experimentos e experiências vivenciadas pelo
autor através do “transe pelo haxixe”, situação em que a percepção do indivíduo fica mais
sensível e se difere do estado normal de consciência. Benjamin ainda fundamenta a aura em
alguns aspectos, entre eles: que ela está em todas as coisas, não somente nas pessoas; que a aura
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pode ser modificada a partir de movimentações, isto é, se as coisas se movimentam; e a aura,


para ele, se distingue de concepções místicas. Ainda de acordo com o autor, a aura seria “uma
figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa
distante, por mais perto que ela esteja” (Benjamin, 1955/1987, p. 170). A perda da aura seria a
desaparição desse conceito em cima da obra, essa que se deixou levar pela industrialização da
reprodutibilidade, fazendo com que a função social da arte seja transformada.
Neste ponto, salienta-se que a arte vem como uma forma de expressão dos conteúdos
psíquicos do artista, que transmite significados através de uma linguagem própria. É por meio
da arte que o sujeito expressa seus sentimentos, emoções e conflitos. Aqui cabe se atentar ao
sujeito conceituado na psicanálise de Lacan, este que possui duas dimensões: o sujeito como
identificação, partindo da ideia que o Outro possui dele e de papéis que desenvolve socialmente,
no que pode ser manifestado; e o sujeito da dimensão inconsciente, aquele que pode ser
considerado como o sujeito real, com seus desejos, pulsões, etc. De acordo com Fink
(1956/1998), a partir da leitura das obras de Lacan, “o sujeito do inconsciente manifesta-se no
cotidiano como uma irrupção transitória de algo estranho ou extrínseco. Em termos temporais,
o sujeito aparece apenas como uma pulsação, um impulso ou interrupção ocasional que
imediatamente se esvanece” (p. 63). Ainda para o autor, esse sujeito se expressa por meio dos
significantes. Isto posto, pode-se mencionar que a arte é uma das variáveis formas de fazer com
que o inconsciente desse sujeito seja manifestado no mundo externo.
Freud, em seus trabalhos acerca da psicanálise, também fez menções sobre a arte, o
artista e os processos artísticos e psíquicos em si. Rivera (2005), propõe que o artista expõe em
sua criação suas mais secretas moções e relembra o termo sublimação que Freud levantou,
sendo que neste caso ela seria um destino específico da pulsão que poderia ser mais valorizado
e aceito socialmente. O autor não caracterizou, necessariamente, o conceito de sublimação,
apesar de ser uma palavra citada em diversas de suas obras. Segundo Metzger (2015), as
definições de sublimação encontradas nos textos de Freud variam de acordo com a época em
que eles foram escritos, sendo a última a mais utilizada até os dias atuais, caracterizando a
sublimação como a transformação da finalidade e do objeto da pulsão para objetos não sexuais.
Em relação à definição Lacaniana, o autor, baseado nas obras de Freud, caracterizou a
sublimação como uma pulsão dessexualizada com ênfase na ascensão do objeto à dignidade da
coisa, como indicativo de um produto do vazio, assim, novamente de acordo com Metzger
(2015), se afastando de um viés sexual. Com efeito, a sociedade enxerga a arte como acessível
e aceita, fazendo com que essa se torne uma ótima forma de substituição de pulsões.
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A arte e sua particular relação com a psicanálise

A psicanálise traz como discussão a influência da cultura na construção do indivíduo e


a arte como expressão dessa cultura, buscando entender qual impacto a produção ou o consumo
de arte pode gerar em cada um e como isso interfere na elaboração dos processos psíquicos
(Carrijo, 2013). De acordo com Rivera (2005), parte da conexão entre a arte e a psicanálise se
dá porque ambas são produtos culturais. A autora relaciona os objetos de estudo da psicanálise
(lapsos de linguagem, sonhos, atos falhos, etc) como forma de conhecer mais sobre a alma
humana. Quando esses são relacionados, mais uma vez, com a expressão da subjetividade e
construção psíquica do ser humano, é possível dizer que há uma conexão significativa e direta
com a criação artística. A psicanálise retoma que a produção implica em uma subversão do
sujeito, e a teoria freudiana ressalta que a arte em conjunto com a psicanálise consegue ir além
do terapêutico, atingindo assim um conceito universal que é o da subjetividade e construção do
sujeito. Não se trata de colocar a arte como objeto de estudo da psicanálise, mas sim de afirmar
uma ligação direta entre os dois conceitos e de como o sujeito é diretamente afetado e
investigado por eles. Segundo Kosovski (2016), Freud e Lacan usavam a arte como instrumento
de reflexões relacionando a prática da psicanálise, que de acordo com Lacan, não pode ser
utilizada como um meio de esclarecer o mistério da arte, mas como forma de reflexão sobre
questões éticas que fundamentam a consciência moral, sendo assim, se transformado em um
meio de comunicar o que significa a ética do desejo.
Diante disso, é importante retomar o sujeito na psicanálise conceituado por Lacan como
sujeito do inconsciente, para melhor compreender seus processos artísticos. Elia (2010), afirma
que se algo estimula a produção do inconsciente do sujeito, supõe-se que o sujeito se encontra
em ação no inconsciente. Assim também se presume que, se o inconsciente está diretamente
depositado na arte e o inconsciente é parte do sujeito, logo, algo do sujeito está contido na arte.
A arte, nesse sentido, se estrutura como linguagem do inconsciente, esse, por sua vez, também
estruturado como linguagem. Nas palavras de Lacan (1957/1998, p. 498), essa concepção “é
toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente.”
Certamente, a arte é uma linguagem que produz significantes e significados, sobretudo
porque, como já foi dito, ela é considerada uma forma de expressão do inconsciente do sujeito,
aqui podendo ser colocado como artista. Nisto, para retomar Lacan (1998) e adicionar sua
compreensão de significante e significado, esses dois inerentes à linguagem, que por sua vez
foi um conceito proposto inicialmente por Ferdinand de Saussure (1916/2012) com sua visão
estruturalista da língua, é preciso ressaltar suas dimensões. Há uma inversão de sentido no
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conceito retirado de Saussure, já que, para ele, a partir do significado é que surge o significante.
Mas para Lacan o significante passa a ser mais importante que o próprio significado,
“significante sobre significado” (Lacan, 1998, p. 500), pois os significantes são soltos dos
significados e podem estar ligados a vários, assim havendo a possibilidade de ressignificações
ao longo da vida do sujeito. De acordo com Vilela (2009, p. 93), “o sentido é formado a partir
da ordem em que se combinam os significantes.” O significante é uma parte representada que
oferece um significado, sendo o significante ligado ao sentido ou significado, esses que também
são produzidos, por assim dizer, por cada sujeito a partir de sua ligação com o Outro. Mediante
o exposto, e segundo a ideia de a cura pela fala apresentada por uma das primeiras pacientes
analisadas por Freud, é possível afirmar que o acesso do analista para o paciente se dá através
da linguagem, seus significantes e significados, e se a arte é considerada também uma
linguagem, se estabelece que a arte é mais um meio de acessar o paciente – ou o sujeito.
Como anteriormente dito, Freud também utilizava a arte como instrumento, além de
seus diversos objetos e formas de análise. Fuks (2003), relata que o autor deu um novo
significado para a produção artística quando iniciou seus estudos sobre o mundo da arte,
incluindo em seus ensaios a estranheza das obras artísticas, relacionando o estranho à verdade
do sujeito. De acordo com a autora, o desamparo, estranheza e angústia são fundamentos que
permitem o entendimento psicanalíticos dos vários processos de sujeito e cultura.
Neste ponto é necessário se atentar ao conceito de infamiliar estabelecido também por
Freud. Não existe nenhuma tradução que especifique, necessariamente, a conceituação proposta
por ele, mas em suas palavras: “[...] familiar [Heimlich] é uma palavra cujo significado se
desenvolveu segundo uma ambivalência, até se fundir, enfim, com seu oposto, o infamiliar
[Unheimlich]. Infamiliar é de certa forma um tipo de familiar” (Freud, 2019, p. 47-9, grifos do
autor). É possível perceber algo de inquietante inclusive em sua tradução, como se fosse um
conceito intraduzível, ou como se falasse de algo impossível de ser dito ou expressado. Mas o
infamiliar, independentemente de qualquer tradução, retrata o horror e o conforto no mesmo
local como, por exemplo, em uma obra de arte em que o espectador repara e se sente inquietado,
mas também precisamente abraçado. É o íntimo dentro do obscuro e o obscuro dentro do que
se faz íntimo. O infamiliar existe dentro do familiar e vice-versa – são dois conceitos que se
habitam e coexistem. Assim como, talvez, seja indissociável a arte do sujeito ou o sujeito da
arte – um não existe sem estar ligado ao outro. Embora persista toda a certeza sobre a arte ser
uma expressão do inconsciente, e por mais que, porventura, isso cause certo estranhamento por
conta dos conteúdos psíquicos expostos, não é possível que o sujeito se sinta menos do que
abraçado ou contemplado em toda a sua autoexposição – ou que o espectador tenha essa mesma
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sensação ao observar e admirar uma obra determinada obra de arte.

Um espaço para processos criativos

Além de toda a teoria psicanalítica aqui proposta, quando se fala sobre arte é preciso
contemplar os processos de criação. A criatividade, assim como a arte, é um conceito
amplamente difícil de se esclarecer ou desvendar. Fayga Ostrower é a autora mais citada quando
o assunto é criatividade, e ela afirma que essa criatividade é inerente à vida humana. Como cita,
“consideramos a criatividade um potencial inerente ao homem, e a realização desse potencial
uma de suas necessidades” (Ostrower, 1993, p. 5). Contudo, focando nos estudos próprios da
psicologia, cabe afirmar que cada área ou abordagem possui sua visão de criatividade. Se a
psicanálise a enxerga como um processo inconsciente, a teoria humanista, por exemplo, acredita
que um ajustamento criativo do individuo seja necessário para que ele satisfaça necessidades e
se ajuste ao meio. Como menciona Rogers, “é esta tendência a motivação primária da
criatividade quando o organismo forma novas relações com o ambiente num esforço para ser
mais plenamente ele próprio” (Rogers, 1961/2001, p. 407).
Também existem enfoques comportamentais, psicoeducacionais, entre tantos outros. É
cabível afirmar bem como que em todos esses estudos existem mais divergências do que uma
comunhão entre informações adquiridas. De qualquer forma e em todas essas conceituações, a
criatividade pode ser descrita não só como inata, mas também como um aspecto desenvolvido
a caráter individual e de sociedade (De Masi, 2002/2003).
Quanto aos estudos da psicanálise, “o que a psicanálise oferece à criatividade? Freud
inconscientemente compreendeu o processo que não estava apenas no coração da criatividade,
mas era o próprio processo criativo” (Bollas, 2010, p. 200). Ainda para o autor, existe uma
questão de transferência psíquica de um campo para outro, assim o artista transubstancia sua
realidade para que ela retome um lugar externo e “se torne uma inteligência diferente.”
Esses processos poderiam ser vistos em parte como objetos transformacionais
no sentido de que cada procedimento irá alterar a vida interna do indivíduo
segundo as leis de sua própria forma [...] um artista não entra facilmente num
alterado estado de inconsciência. Eles sentem a fronteira entre a vida psíquica
comum e o espaço de trabalho artístico como algo que é sempre difícil de ser
atravessado e ocasionalmente intolerável. Mesmo quando eles se acostumam a
entrar nesse outro campo, estão cientes de terem deixado a si mesmos para trás,
de terem sido lançados numa diferente forma de vida. (Bollas, 2010, p. 201).

Conforme Cattapan (2009), Freud coloca que toda ação ou atividade humana, da mais simples
até a mais elaborada, são de força de processos e trabalhos inconscientes. Isso não significa,
para Freud, que a consciência não participe ou esteja totalmente fora da criação, mas sim afirma
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que “a essência do trabalho criativo está no inconsciente” (Cattapan, 2009, p. 79). Mais uma
vez é possível supor que, se de acordo com Freud e suas afirmações sobre a criatividade vir de
um trabalho inconsciente, e se o sujeito é também considerado um sujeito do inconsciente,
considera-se que algo do sujeito se encontra na criatividade, ainda que o próprio indivíduo não
tenha uma determinada noção deste trabalho ou da fronteira existente entre si, seu inconsciente,
seus processos criativos e suas obras.

A arte como objeto de reflexão social

Por outro lado, não só de teoria vive a arte. É por isso que, neste ponto, cabe se atentar
aos exemplos de artistas que vivem para que sua arte não seja só uma forma de se expressar e
de manifestar os conteúdos de seu mundo interno, mas que possa ir além para que haja um meio
de ligação entre ela e a possibilidade de reflexão e relevância social.
No âmbito da reflexão, Marina Abramović é uma das artistas mais lembradas. Sua arte
diz respeito à performance, tanto que ela é considerada como a “avó da arte performática”.
Segundo Fuks (2019), Marina Abramović nasceu em Belgrado, na atual Sérvia, e sua carreira
começou em 1965 com seus estudos na Academia de Belas Artes de Belgrado. Até seus mais
iniciantes projetos tinham relação com seu corpo, sendo este um espaço de exploração artística
e de transcendência de limites corporais. Veiga (2015, p. 34) afirma que “é na busca de
ultrapassar os limites constitutivos de si, ou de, ao menos, chegar à superfície de si mesmo, lá
onde o dentro e o fora não mais se distinguem e toda a subjetividade se torna uma questão de
limiar.” Acrescentando conforme explicado por Tardivo (2016, p. 101), Marina explora as
possibilidades corpóreas e, com isso, “a artista convoca o espectador a refletir sobre a sua
própria condição.” Há, nesse sentido, uma participação ativa do espectador em relação à obra
proposta por Abramović. A construção de um significado parte da perspectiva vivenciada pelo
outro, o que consegue ir além do que a própria artista propõe.
Em sua performance The artist is present, que consistia em uma mesa com duas
cadeiras, uma em cada extremidade, sendo que Marina estava sentada em uma delas, e esperava
que os espectadores se sentassem na outra para que a performance pudesse começar, é claro ver
a atividade do espectador em sua obra, este passando a ser agente performático também. A
performance nada mais era do que duas pessoas se olhando, em silêncio, e dividindo um espaço
de aqui-agora, sendo que o espectador poderia vivenciar a experiência de um encontro afetuoso
com a própria artista enquanto obra – retomando que a artista sempre tem como fronteira seu
corpo para realizar suas obras, sendo assim, ela se faz como obra.
É importante analisar que nas performances/obras de Marina Abramović há um intenso
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momento de reflexão e modificação do público presente. Esse tipo de arte não é só uma
transposição do mundo interno ou das ideias do sujeito, aqui novamente colocado como artista,
para o mundo externo sem nenhuma razão maior para tal, mas cabe como uma forma de trazer
novos significados, a partir de significantes (a obra/performance), para outro indivíduo que se
dispõe a ser afetado pelo que está assistindo ou experienciando. E ainda que a artista tenha uma
proposta anteriormente pensada para tal momento, muito do que acontece depende,
exclusivamente, de seu público. Aqui cabe mencionar que esse público também coloca parte de
si na maneira como reage ao momento ou experiência, então pressupõe dizer que as pessoas
presentes também se utilizam de seu inconsciente para reagir às performances, visto que cada
um é afetado de forma responsiva singular e unicamente. Seria, então, esse singular a assinatura
inconsciente de cada indivíduo, independente do estímulo externo colocado para ele?
No âmbito da relevância social, temos como exemplo o álbum “Sobrevivendo no
inferno” de Racionais MC’s, de 1997. Segundo o sociólogo Oliveira (2018), esse disco salvou
vidas, sendo considerado um raio x da realidade periférica naquela época, onde a violência
estava em alta e os marginalizados buscavam força através de organizações sociais, que
ofereciam alternativas ligadas a arte, para sobrevivência em um estado que criminalizava pretos,
pobres e moradores da favela. O sucesso do álbum veio como um estímulo fundamental para o
fortalecimento da luta dos periféricos, dando reconhecimento da sociedade que não tinha
contato com essa realidade.
Oliveira (2018) ainda afirma que a estrutura do álbum vem como uma linguagem
metafórica e alegórica, através de códigos de que só podiam ser compreendidos pelos
moradores da periferia, desde a escolha do título das músicas, como por exemplo, a ordem das
faixas baseada em um culto evangélico, com narrativa, cânticos e testemunhos, trazendo uma
sensação para o ouvinte de identificação com a realidade, principalmente naqueles anos onde
as igrejas neopentecostais estavam crescendo nas favelas. O contexto de “Sobrevivendo no
Inferno” se dá pós o massacre do Carandiru em 1992, onde as únicas informações divulgadas
foram sob o olhar da imprensa elitizada. Ainda para o autor, o álbum veio como a voz da
minoria, que viveu na pele a crueldade da maioria, esta sendo representada pela Polícia Militar.
A música “diário de um detento” apresenta a versão de quem viveu os fatos na pele da minoria.
Ela foi escrita a partir dos relatos de Joceir, um dos que estava preso na época. De acordo com
Medeiros (2018), a obra dos racionais é considerada um álbum de memória.
Segundo Djamila Ribeiro (2018), filósofa formada pela Unifesp, ativista pelo
movimento feminista negro no Brasil e colunista da Folha de São Paulo, a obra dos Racionais
foi essencial para sua formação política, através da crítica social, influenciando a reflexão em
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relação a sua autoestima, identidade como mulher negra e periférica. A filósofa relata que
utilizou da obra como instrumento de ensino quando atuava como professora na rede estadual
em São Paulo, em uma escola da periferia. O cantor Emicida (2018), afirma que o álbum
“Sobrevivendo no Inferno”, que se transformou em um livro no ano de 2018, não é apenas um
marco para o rap brasileiro, mas sim para a construção da história do Brasil, para a construção
da reflexão sobre minorias e privilégios, e o fortalecimento da identidade dos pretos, pobres e
a população marginalizada do país.
Por fim, esse álbum é sobre dar sentido aos que precisavam de sentido. É sobre uma
ressignificação de significantes tão cruéis que foram postos, desde sempre, na vida de toda essa
população, sendo o álbum considerado como o significante que possibilitou um novo sentido
para os indivíduos inseridos nessa realidade, para que pudessem reconhecer sua origem e
valorizarem sua identidade. Mas de qualquer forma, a obra também afeta cada sujeito de forma
singular, pois todos trazem consigo seu inconsciente e as questões que só podem ser norteadas
de forma única por eles, ainda que toda uma população seja intensamente afetada.

Considerações finais

Este trabalho se propôs a aproximar as fronteiras entre a psicologia, mais precisamente


a psicanálise, e a arte. Dentro disto, vários conceitos foram discutidos para que o espaço entre
os dois princípios fizesse um real sentido. Um dos conceitos mencionados foi a sublimação,
termo proposto, inicialmente, por Freud, tendo como definição a transformação de pulsões para
um destino mais aceito socialmente. A arte, neste caso, é um objeto de sublimação, pois o artista
transpassa para o mundo seus conteúdos psíquicos através de suas obras, sendo que estas são
altamente valorizadas pela sociedade, independente de seu formato. Outro conceito considerado
foi o de infamiliar, também proposto por Freud, pois ele incluía, em seus ensaios, as estranhezas
das obras artísticas. Esse conceito, desde sua tradução, se faz indefinível, mas quando tocante
à arte diz respeito à sensação de conforto (familiar) e estranheza (infamiliar) em uma mesma
obra. Em suma, é sobre o horror e o afeto que habitam um mesmo espaço. Paralelamente, cabe
expor que se atrelou também estudos acerca do sujeito para que houvesse uma compreensão
ainda maior sobre como a arte se expressa nesse ser tão complexo, indizível e
pesquisado/estudado. Esse sujeito aqui citado é o proposto por Lacan, o sujeito do inconsciente,
definido como o real, tendo em consideração todos os seus desejos, pulsões, etc.
Quem sabe, talvez, a vontade principal fosse descobrir, por fim, de onde a arte sai e onde
é que ela mora nesse espaço tão preciso do sujeito. Há uma atmosfera extremanente explorada
que responde isso e aqui retoma-se Cattapan (2009), “a essência do trabalho criativo está no
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inconsciente”. Como mencionado, arte é criação e criatividade, logo, esses conceitos estão
altamente atrelados ao universo do inconsciente do sujeito. Seria ali, então, sua morada?
É possível, portanto, afirmar aqui que as hipóteses e perguntas iniciais deste trabalho
foram singularmente respondidas: precisamente, a compreensão da arte junto aos estudos da
psicanálise conseguem ampliar e construir uma nova perspectiva de observação do sujeito. E a
prática da psicologia pode se utilizar desse instrumento tão rico que é a arte para acessar os
indivíduos de uma forma diferente da convencional. Não se trata de técnicas artísticas, mas sim
de deixar o sujeito falar, se expressar e se deixar “ser” em um outro modo. Retoma-se que
durante as pesquisas teóricas foi possível confirmar que a arte é uma forma de linguagem do
ser humano – desde os primórdios. A psicanálise diz que o acesso para os conteúdos do sujeito
se dá através de uma linguagem, necessariamente, a fala. Então, por quê não aproveitar outra
para expandir esse acesso? Por quê não buscar novos caminhos de significantes e significados?
Talvez a prática da psicologia esteja tão vinculada aos apectos técnicos e formais que
acabe deixando passar a essência (real) do sujeito para conseguir encaixá-lo em teorias e
conceitos previamente impostos ou categorias diagnósticas importadas, sendo que, talvez,
alguns (pode ser que não todos) tenham um outro tipo de expressão de sua subjetividade. E é
preciso deixar que esse sujeito seja livre para percorrer esse caminho de exteriorização,
oferecendo uma escuta qualificada. Encaixar alguém em padrões técnicos é, precisamente,
impedí-lo de ser real. E todo o trabalho da psicologia não consiste em deixar, sim, o sujeito ser
livre e real? Há, em cada humano, uma linguagem própria e singular que precisa achar seu
caminho de libertação.
Há, também, na arte, uma possibilidade de transubstanciação do sujeito para o mundo
externo. É nesse âmbito que ocorre o acesso de outras pessoas para a parte mais particular do
sujeito que se representa pelo artista. É nesse espaço que acontece a identificação tocante entre
artista, obra e espectador. Não é incrível afirmar que a arte é um universo tão profundo que
consegue tocar, intensamente, tudo por onde passa? Ela se faz obra singular enquanto está
velada em um espaço inconsciente do sujeito e quando, por sua vez, afeta outros sujeitos no
setor da identificação ou representação – ainda que nesse ponto culmine em haver a recriação
de sentidos, uma vez que cada indivíduo processa, a seu modo, seus estímulos externos.
Como relembra Trilling (2015), em um retorno à Freud, “os poetas e os filósofos
descobriram o inconsciente antes de mim; o que eu descobri foi o método científico que nos
permite estudar o inconsciente.” Finda-se, então, esse trabalho, evocando essa frase tão célebre
de Freud, mas permanece aqui, indubitavelmente, os caminhos que podem ser melhor trilhados
se houver mais desejo de descoberta e aprofundamento sobre o ser humano. E com certeza há.
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Referências

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