AGAMBEN, Giorgio. Ideia Da Prosa
AGAMBEN, Giorgio. Ideia Da Prosa
AGAMBEN, Giorgio. Ideia Da Prosa
I
IDEIA DA PROSA I
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LÍVR ÒS COTOVIA ;
Giorgio Agamben
Ideia da Prosa
-
ISBN 972 8423-70-5 Cotovia
índice
f
Prefacio p. 9
LIMIAR 19
I
Ideia da maté ria 29
>Jdeia da prosa 30
X Ideia da cesura 34
'
Ideia do Ú nico 39
j;
Ideia do ditado
Ideia da verdade
Ideia da Musa
46
49
11
Ideia do amor 51
Ideia do estudo 52
Ideia do imemorial 57
i :
i
II
Ideia do poder 63
Ideia do comunismo 65
Ideia da política 69
Ideia da justiça 72
Ideia da paz 74
Ideia da vergonha 76
Ideia da época 81
ig :
:
Ideia da m úsica Pref á cio
Ideia da felicidade
Ideia da inf â ncia
Ideia do Juízo Final
III
f Ideia do pensamento 101
Ideia do nome 104 Ideia da Prosa traz no próprio título o seu pro ¬
Ideia do enigma 106 grama: o de uma indistin ção de fundo entre uma
Ideia do silêncio 111 ideia da linguagem e uma ideia da Ideia , ou do pen ¬
Ideia da Hnguagem I 112 sar. Importa , por isso, começar por perguntar que
Ideia da linguagem II 113 escrita é esta. Porque escrita (écriture) é o que estes j
Ideia da luz 117 textos são, n ão literatura nem filosofia convencional.
Ideia da apar ência 118 A questão sobre a forma da escrita é desde logo es ¬
Ideia da gló ria 121 sencial, porque ela é indissociável do que se diz, e
Ideia da morte 126 mais ainda do que, nestes ensaios -fragmentos, é da
Ideia do despertar 127 ordem do não-dito. Aspecto central da nossa rela ção
com o texto de Agamben é também a percepção da >
I
guma coisa (como o Ideen Paradles de Novalis ) ,
8 9
5‘
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>
1
-
uma forma de prosa reflexiva - narrativa poética que antes como língua festivamente experienciada. Esta
nasceu para a modernidade, depois dos românticos , festa foi expurgada de toda a solenidade, n ão co ¬
despida do pathos solene da poesia , que seria a do são, produzem o efeito final de um “ contínuo como
mundo messiâ nico da revelação. Transcrevo todo o um murm ú rio” , como dos seus próprios fragmentos
fragmento, para melhor compreensão do próprio diz Michaux em jEmergences Resurgences. De facto, o
lugar da linguagem na filosofia de Benjamin e de conjunto deste mosaico de ideias actúa como o baixo
Agamben: “ O mundo messiânico é o mundo da ac- contínuo musical, ou como uma fuga: entre abertura
tualidade plena e integral. Só nele existe uma histó¬ e fecho (os “ Limiares” de Ideia da Prosa ) , ouvem-se
ria universal. Aquilo que hoje assim se designa mais sequências de temas e variações, entrecortadas por
n ão pode ser que uma espécie de esperanto. Nada nós mais densos que funcionam como stretto.
lhe pode corresponder antes de ser eliminada a Por seu lado, cada peça isolada é um sistema ;
confusão instituída com a construção da Torre de intensivo (era assim também que Barthes entendia
Babel Esse mundo pressupõe aquela língua para a
qual terão de ser traduzidos, sem reduções, todos
o ensaio) construído a partir de uma
mântica — — muito ro ¬
excitação da ideia que se oculta atrás de
os textos das línguas vivas e mortas. Ou melhor, ele véus (cf. “ Os discípulos de Sais” , de Novalis) e que
próprio é essa língua . Mas n ão como l íngua escrita , só é transmissível na exalta ção da forma breve, e
10 11
i
segundo princípios que parecem agora ser os do do- literá ria pela pequena forma a que Kundera , em
decafonismo atonal, . tal como Adorno os descreve no Os Testamentos Traídos, numa fórmula certeira , cha - -
•
ensaio sobre a filosofia da m úsica nova: a infracção ma “ a estratégia de Chopin ” ) é definido por Benja ¬
das regras ( do pensamento sistemático) leva a con ¬ min no final de Origem do Drama Lutuoso Alemão
trair espacialmente as formas , a extrema expressivi ¬
em termos que acentuam a sua natureza radicalmen ¬
dade exige uma particular brevidade. Cada “ imagem te fragmentá ria e decisivamente poética, isto é “ bela ”
do pensamento ” , cada fragmento da Ideia , que se vai ( n ão fora a presen ça , em Agamben e Waller Benja ¬
expandindo, adentro de limites auto-impostos , numa min , de uma noção de verdade sempre diferida e em
alternâ ncia entre o paradoxo e a tautologia , em di - constru ção, e estar
íamos de regresso áo Banquete de
recção a um final que é quase sempre uma revelatio , Platão e à unidade, aí proclamada , do Belo e do
uma frase última que constitui o último momento de Verdadeiro). “ No espírito da alegoria ” , escreve Ben ¬
uma ontologia aberta da constata ção, tem a forma da jamin, “ ele [o drama barroco] é concebido desde o ;
alegoria benjaminiana. E isto quer dizer: na fragmen ¬
in ício como ruína, como fragmento. Quando outros
taçã o do dito ( que nega ) alude à possibilidade de resplandecem , grandiosos como no dia primeiro [a
uma totalidade do/no n ão-dito. É ainda a tensã o dia ¬
cita ção escondida do ‘Prólogo no Céu’ do Fausto de
léctica entre a consciência do precá rio e a vontade de Goethe identifica aqui, na expressão ‘grandiosos co ¬
interpretação e de sentido que alimenta a busca da mo no dia primeiro’, um desses ‘outros’!], esta forma
“ Ideia ” (mais no sentido de Goethe e Benjamin do associa ao último a imagem do Belo” . Todo o aconte- \
que no platónico ) e o interesse de conhecimento cimento hermenêutico é, assim , uma ocupação com
subjacente a cada fragmento. Interesse de conheci ¬
as ruínas ( do sentido ) e os seus enigmas, que são os
mento que, servindo-se da linguagem como instru ¬
enigmas da verdade. Da verdade última e transcen- j
mento intuitivo-associativo, n ã o pode deixar de re ¬
dente do Nome, do “ Quem ? ” na abertura do Zohar
sultar numa epistemología mais poética que concep ¬
( cf. “ Ideia da Verdade ” ), e da verdade do absurdo
tual, e que, como ainda em Novalis, não passa, na impenetrável das existências que, numa obra como a j
sua fun ção propedêutica e heur ística, de uma antecâ ¬ de Kafka , antecipa, ou transfere para cada dia das
mara (Vorstufe) do conhecimento, de um “ paraíso suas personagens o Juízo Final ( o derradeiro Juízo
das Ideias” que também o poeta-filósofo romântico Final será aquele em que o lugar último da verda ¬
preferia â ordem definitiva de um edif
tual abstracto. O espírito da alegoria
ício concep ¬
que informa as
—
de, Deus — ou a Linguagem , num último gesto
absurdo ou num último assomo da lucidez (e) da ver ¬
12 13
-*
j
moderno. Mas a verdade é que o enigma , como lem ¬
ja obra principal se reduz a um aglomerado de Note
bra Agamben, não contém qualquer verdade, mas tão senza testo / Notas sem Texto ). Ou poderão ser vistos
somente a sua aparência: “ Que o enigma n ão seja, como “ vedores ” do Ser que, de varinha hermenêuti ¬
que o próprio enigma não consiga captar o Ser, a um ca na mão, vão sondando e descobrindo veios de
tempo perfeitamente manifesto e absolutamente indi água da existência. Num pequeno livro a vá rios títu
—
¬
¬
zível: esse é agora o verdadeiro enigma, perante o los fascinante Palingenese del frammento / Palingé-
qual a razão humana pá ra, petrificada.” (cf. “ Ideia do
Enigma ” ). A busca da verdade pelo filósofo através
de textos em si mesmos enigmáticos não é, assim ,
—
nese do Fragmento (Roma, 1995 ) , Antonio Cas-
tronuovo resume esta relação autor-leitor: “ A expres
são fragment ária permite, em suma, n ão renunciar a
¬
mais que a busca, consciente, de cintilações (repre¬ uma relação com a experiência, e nisto a situação do
sentações efémeras) da verdade num movimento que anotador aproxima -se da do leitor: mais do que escre
encena e deixa à vista — no texto, na obra
movimento pendular entre envolvimento e distancia
— um
¬
ver, ele lê o mundo” .
Na sua leitura das coisas, das Ideias e dos afectos
¬
mento: “ é importante que a representação pare um que gerem a existência humana, Giorgio Agamben
instante antes da verdade; por isso, só é verdadeira a
representação que representa também a distância que
' parece também identificar-se
— mas n ão totalmente
— com -aquele filósofo que um dia “ chegou à conclu ¬
s
a separa da verdade ” ( “ Ideia do Enigma ” ). / são de que a única forma legítima de escrita seria
O caminho seguido em Ideia da Prosa parece ter aquela que imunizasse sempre os leitores contra a ilu ¬
sido este: cada fragmento é movido pela consciência são de verdade que podia suscitar. ” Um tal filósofo
do trabalho vão do querer dizer/definir, e aceita o terá de se situar tora de qualquer doxa , numa atitude
desafio do Nome — nomeia , enigmaticamente, um
objecto para lhe perseguir a Ideia. Como o oráculo,
de abertura e suspensão em relação aos problemas
que coloca. É por isso que as formas de linguagem
d á por vezes apenas estilhaços de uma Ideia, fecha -se que melhor lhe servem são aquelas “ formas simples ”
sobre um certo hermetismo, constrói-se segundo a dos pequenos tratados (como os de um autor afim de j
lei da metonimia, valoriza os impulsos indutivos, cul¬ Agamben no espaço francês, o Pascal Quignard dos
tiva o poliperspectivismo, tem uma lógica interna Petits Traités ) , dos “ idílios ” , no sentido etimológico
própria, pressupõe que os silêncios contêm potencia ¬
lidades comunicativas. Com isto, gera uma rela ção — —
do termo ( “ pequena ideia ” ) o apólogo, a fábula, a
lenda , “ que até o Sócrates moribundo não tinha
particular com o leitor: ambos, quem escreve e quem desdenhado, e que parecem sugerir ao leitor que não
lê, se transformam em “ anotadores” (a fórmula servi ¬ as leve muito a sério ” ( “ Ideia do Enigma ” ).
ria ainda melhor a um outro autor-leitor de “ notas ” Alas a Apologia de Sócrates , sabemo-lo, ressuma
filosóficas e literá rias, o triestino Roberto Bazlen , cu - de ironia. Também nós temos de levar a sério a filo-
14 15
/
sofia dos indícios, da fábula, do exemplum, de Gior ¬
28 de Agosto de 1999
JOãO BARRENTO
16
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7 LIMIAR
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/
No ano 529 da nossa era, o imperador Justinia -
no, instigado por fanáticos conselheiros do partido '
21
/
d t.
fonte , depois dos primeiros meses de vida de corte, Diz a tradição que Dam á scio trabalhou na sua i
deixou aos seus discípulos Prisciano e Simplicio a obra durante trezentos dias e outras tantas noites,
incumbência de satisfazer, com coment á rios e edi ¬ ou seja , durante todo o período do seu exílio em i
ções crí ticas, a curiosidade filosófica do soberano. Ctesifonte. Por vezes interrompia o trabalho duran ¬
Fechou -se na sua casa da parte norte da cidade , em te dias e semanas e, nesses momentos, apercebia -se, >
companhia de um escriba grego e de uma criada sí ¬ como através de uma parede de n évoa , da vanidade t
ria , e decidiu consagrar os últimos anos de vida à da sua empresa . O texto que hoje podemos ler est á
redacção de uma obra que intitularia Aporias e semeado de frases como “ apesar da nossa demora ¬
Soluções em Torno dos Princípios Primeiros. da investigação, n ão chegá mos , ao que me parece, a
Sabia perfeitamente que a quest ão que preten ¬ conclusões nenhumas ” . Ou então: “ que tudo o que
dia abordar não era uma quest ão filosófica entre ou ¬ acabamos de escrever tenha o destino que a Deus
tras. N ão havia escrito o pró prio Plat ão , numa carta aprouver ! ” Ou ainda: “ Na minha exposiçã o h á ape ¬
que até os cristãos consideravam importante (sem , nas uma coisa louvável: o ela se condenar a si mes- ;
no fundo , a entenderem ) , que precisamente a inter ¬ ma , ao reconhecer que não vê claro, que é incapaz •
rogação sobre a Coisa Primeira é a causa de todos de olhar para a luz ” . Mas depois retomava infalível- :
os males? Mas tinha acrescentado que o sofrimento mente o trabalho, at é à suspensã o seguinte, at é à
que aquela interrogação causa na alma é como a, dor inevitável nova crise. Pois, como pode o pensamen ¬
do parto: enquanto se n ão libertar dela, a alma não to colocar a questã o sobre o princípio do pensa ¬
poderá encontrar a verdade. Por esta razã o, sem he ¬ mento ? Como se pode , por outras palavras , com ¬
sitar, já ao selar a obra, o velho diádoco formulou preender o incompreensível? É claro que aquilo
com clareza o tema: “ Aquilo a que chamamos prin ¬ que aqui é posto em questã o n ã o pode ser tematiza - 2
cípio ú nico e supremo do Todo está para além do do nem sequer como incompreensível, não pode
Todo, ou numa determinada parte do Todo, por ser expresso nem sequer ccmo inexprimível. “ É de
'
exemplo o ponto culminante das coisas que daí de ¬ tal modo incognoscível que nem sequer tem por na- ¡
rivam ? Devemos nós dizer, por outro lado, que o tureza o incognoscível, e n ão é dizendo-o incognos ¬
Todo está no princípio, ou que vem depois dele e é cível que podemo's criar a ilusão de o conhecer, 1
procedente dele? Pois, a admitir-se esta alternativa, porque n ão sabemos sequer se é incognoscível. ” i
terá de admitir-se que algo est á fora do Todo — e Por isso , o discípulo de Siriano, que tinha sido tam
bém mestre do seu primeiro mestre, Marino, e que
¬
22 23
I
camos sobre a vogal da palavra ev. Mas tratava-se, que se furta a qualquer composição
evidentemente, de uma subtileza indigna de um fi ¬ de nome e dis ¬
curso, como também a toda a distin
lósofo, no limite da charlatanice. Não era deste mo ¬ ção, tal a do
cognoscível e do cognoscente. Temo
do, com um sinal ilegível ou com um sopro, que eie s de concebê-lo
como uma espécie de halo plano e liso
poderia expor, nas suas Aporias , o impensável que no qual ne ¬
nhum ponto se pode distinguir do
está para além do sopro e do acento que se pode es ¬ outro, como a
coisa mais simples e mais englobante:
crever. Foi assim que uma noite, enquanto escrevia, n ão apenas o
Uno, mas o Todo-Uno, e Uno antes de Tudo
—
lhe veio subitamente à ideia a imagem que assim
lhe pareceu — o havia de guiar até à conclusão da
o Uno de um Todo... ”
Damáscio levantou por um instante a
, e n ão
obra. N ão era , porém , uma imagem , mas qualquer olhou a tabuinha sobre a qual ia anotando m ã o e
coisa como o lugar totalmente vazio no qual apenas dos seus pensamentos. De repente, o curso
as imagens, um sopro, a palavra, poderiam eventual ¬
passagem do livro sobre a alma em
lembr ou -se da
mente acontecer; n ão era , assim, nem sequer um lu ¬ que o filósofo
compara o intelecto em potência a uma
gar, mas , por assim dizer, o lugar do lugar, uma sobre a qual não está escrito nada . Como tabuinha
superfície, uma á rea absolutamente lisa e plana, na "sou ele nisto
n ã o pen -
antes? Era isto que, dia após dia , ten
qual nenhum ponto se podia distinguir de outro. tara apreender, era isto que, sem
¬
y
i
1
I
fusamente , do vislumbre de um início.
26
Ideia da matéria
o Jr m
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O
*
>
>
A experiencia decisiva que, para quem a tenha
/ feito, se diz ser t ão dif ícil de contar, nem chega a
r o ser uma experiência. Não é mais que o ponto no
qual tocamos os limites da linguagem. Mas aquilo
que ent ão tocamos n ão é, obviamente, urna coisa ,
de tal modo nova e portentosa que, para descrevé-
-la , nos faltam as palavras: é antes matéria , no senti ¬
29
. A
Ideia da prosa ao seu n úcleo específico diferencial,
admitindo que
o enjambement individualiza, no
sentido referido, o
traço distintivo do discurso poé
tico. Citemos um
poema recentíssimo:
A porta
branca...
É um facto sobre o qual nunca se reflectirá o A porta
suficiente que nenhuma definição do verso é perfei ¬ que, da transparência, leva '
se tardia de Caproni, porém , esta tend ência vai até que a poesia deixa de ò ser: uma vez mais,
o enjam ¬
aos limites do inverosímil: aí, o enjambement devo¬ bement , diferentemente do branco de Mallarmé,
que
ra o verso, que se reduz apenas àqueles elementos
que permitem atestar a sua presença portanto, — 3 Versura
: termo latino que designa o lugar
no fim do campo. Existe um paralelismo com aiguns
gos, nos quais as linhas correm alternada
mente
em que o arado dá a volta
sistemas de escrita ami ¬
da direita para a esquerda, como acontecia na da esquerda para a direita e
escrita grega antiga, na hitita
-
2 Caproni: Giorgio Caproni (1912 ), escritor e poeta italiano cuja obra ou também na escrita rú nica. Este tipo de
escrita é geralmente designado de
se desenvolve entre as temá ticas quotidianas e o hermetismo. escrita bustrofédica (do grego bustropbcdon
: o modo de virar os bois ).
30 31
/-
integra a prosa no domínio da poesia , é condição ne ¬ da proposta da Vita Nuova no dealbar
da idade mo¬
cessá ria e suficiente da versificação. derna . A versura , que, embora não referenciada
O que há ent ão nele de t ão particular, para que tratados de métrica, constitui o cerne do nos
lhe seja conferido um tal poder na condu ção do cuja manifestação é o enjã verso (e
mbement ), é um gesto
metro do poema ? O enjã mbement exibe uma n ão- ambíguo que se orienta ao mesmo
tempo para
-coincidência e uma desconexão entre o elemento direcções opostas, para trás (verso) e para duas
métrico e o elemento sint á ctico , entre o ritmo sono ( prosa ). Esta suspensão, diante
¬
esta sublime hesitação en ¬
ro e o sentido, como se, contrariamente a um pre ¬
tre o sentido e o som , é a heran
ça poética que o
conceito muito generalizado , que vê nela o lugar de pensamento deve levar até ao fim
. Para aproveitar
um encontro , de uma perfeita conson â ncia entre esse testamento, Platão, recusando as
som e sentido , a poesia vivesse, pelo contrá rio, ape ¬
formas
cionais da escrita, nunca perde de vista aquelatradi
¬
nas da sua íntima discórdia. O verso, no pró prio ac ¬ da linguagem que, de acordo com o ideia
testemunho de
to com o qual, quebrando um nexo sint á ctico, afir ¬ Aristóteles, não era , para ele, nem poesia, nem
pro
¬
ma a sua própria identidade, é, no entanto, irresisti ¬
sa, mas o meio termo entre as duas.
velmente atraído para lan çar a ponte para o verso
seguinte, para atingir aquilo que rejeitou fora de si:
esboça uma figura de prosa , mas com um gesto que
atesta a sua versatilidade. Neste mergulho de cabe ¬
32 33
/-
bre um tal cavalo que, adormecido durmen sus un —
Ideia da cesura
—
chivau , nas origens da poesia novilatina , Guilher
me de Aquitânia declara ter composto o seu vers\ e
¬
5
h á um certo ind ício do tenaz simbolismo desta ima ¬
genes explica que o cavalo é rupçã o do transporte r ítmico do poema ? A isto res ¬
um cavalo branco, Or í
ponde Hõlderlin da maneira mais directa: “ O trans-
, que " cor
a voz, a palavra como enunciado sonoro ¬
gi
re com mais energia e velocidade que qualquer
¬
34 35
/ -
porte trágico é, de facto, verdadeiramente vazio , e o Ideia da vocação
mais livre. Por isso, na sucessão rítmica das repre¬
sentações, nas quais se evidencia o transporte, tor¬
na -se necessário aquilo a que, no metro, se chama
cesura, a palavra pura, a interrupção antirrítmica,
para contrastar, no seu clímax, com a mudança in -
cantatória das representações, de modo a trazer à
evidência, n ão já a altern ância da representação, A que coisa é fiel o poeta? A pergunta envolve
mas a própria representação. ” 10 certamente qualquer coisa que não pode ser fixada
O transporte rítmico, motor do lance do verso, é em proposições ou em profissões de fé memoriza ¬
o, é apenas transporte de si. E é esse vazio que, das. Mas como se pode conservar uma fidelidade
enquanto palavra pura, a cesura - por um instante— sem nunca a formular, nem sequer a si próprio? Ela
— pensa, suspende, enquanto o cavalo da poesia pá-
ra um pouco. Como escreve, em estilo latino, Rai¬
mundo Llull11 numa das suas peças: “ Cavalgando o
teria sempre de sair da mente no próprio instante
em que se afirma.
Um glossá rio medieval explica assim o sentido ;
seu palafrém , ia à Corte para ser armado cavaleiro e, do neologismo dementicare (esquecer), que tinha
enquanto ia andando, embalado pelo andamento da passado a ser usado para substituir o termo literário
cavalgadura, adormeceu. Mas, ao chegar a uma fon ¬ oblivisci: dementicastis: oblivioni tradidistis. Aquilo
\
te, o animal parou para beber; e o escudeiro, que no que se esqueceu não foi simplesmente anulado, pos¬
seno sentiu que o cavalo já não se movia, acordou de to de parte: foi consignado ao esquecimento. O es ¬
repente.” Aqui, o poeta adormecido sobre o cavalo quema desta informulá vel tradição foi exposto, na
j
acorda e contempla por um instante a inspiração que sua forma mais pura, por Hõlderlin quando, nas
mais.
—
o transporta - e o que pensa é a sua voz, e nada notas à tradu ção do Édipo de Sófocles, escreve que
o deus e o homem, “ para que não desapareça a me¬
mória dos olímpicos, comunicam na fornia, esque¬
cida de tudo, da infidelidade” .
10 A citação provém de "Anmerkungen zum Oedipus” (Anotações à A fidelidade àquilo que não pode ser tem atiza-
tradu ção do Édipo Rei de Sófocles), 1804. do, mas também n ão simplesmente silenciado, é
11 Raimundo Llull (ou Lúlio): filósofo, escritor e missionário, nascido
uma traição de natureza sagrada na qual a memó
depois de uma viagem de divulga ção da sua ars combinatoria
— —
em 1233 em Palma de Maiorca, onde terá morrido também em 1315 ou 1316
-
mística. gesto, este abraço invertido da memória e do esque-
36 37
/-
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cimento, que conserva intacta , no seu centro, a Ideia do Único !
38 39
/-
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i
o O
servam-se poemas escritos em romeno), lhe recor ¬ ma; por isso os provençais conheciam um género
davam que não devia escrever na língua dos assassi
nos dos seus pais, mortos num campo nazi, Celan
¬ poético — —
o descort que atestava a realidade da
única língua ausente apenas através da babélica ¬
vo
respondia simplesmente: “ Só na língua materna se zearia dos múltiplos idiomas. A língua única não é
pode dizer a verdade. O poeta mente se usa uma uma língua. O Único, de que os homens participam
língua estrangeira. ” como da única possível verdade materna, isto é, co ¬
Que espécie de experiência e unicidade da lín ¬ mum , é sempre qualquer coisa dividida: no preciso
gua estava aqui em causa para o poeta ? Não era, instante em que alcan çam a palavra úniça, eles têm
por certo, simplesmente a de um monolinguismo de tomar partido, escolher uma língua. Do mesmo
que se serve da língua materna para excluir as ou¬ modo, nós, ao falarmos, podemos apenas dizer al¬
tras, mas situando-se no mesmo plano. O que estava
aí em jogo era antes aquela experiência que Dante
tinha em mente quando escrevia, sobre a fala mater ¬
—
guma coisa não podemos dizer unicamente a ver
dade, nem podemos dizer apenas que dizemos.
¬
40 41
/-
aí, a língua Ideia do ditado12
preenchê lo, é o poeta. Mas, chegado a si própria
-
está diante dele tão só e abandonada
: pelo contrá
que já não se irnpõe de modo nenhumdo poeta Paul
¬
rio
—— e são ainda palavras, tardias
Celan , expõe-se, de um modo absoluto
ésie ne s’impose plus, elle s’
,
( “ La po-
expose” . Neste mo
) ¬
atingiu verdadeira
mento , a vanidade das palavras
¬
43
42
/-
como se sugeriu , a sua poética ) afirma o dualismo e a
La Basca é qualquer coisa de tão íntimo e pre
¬
i
no entanto , Ricordo delia Basca , para significar que Como Folquet de Marselha14, o poeta recorda no
escrita é a tentativa , desde logo votada ao fracasso ,
canto aquilo que, no canto, desejaria apenas esquecer,
de apreender esta proximidade imemorial ,
que se não pode manter à distância ( daí “ a trag
irremediável desta recordação” . De) resto ,
este
o
amor
édia
poema ,
ou ent ão
—
para sua felicidade
o que com ele queria recordar.
—
esquece no canto 5
t
de que a própria narrativa é a razo, não é, realmente , É por isto que a poesia lírica —
que se orienta \
pana15, cujo nome denuncia uma origem basca incon que a recorda çã o da Recorda çã o da Basca
sim que Delfini define a sua longuíssima razo
é as ¬
é
——
fundível. Contra a crença ingénua numa imediatez, uma autobiografia.
inerente à poesia, Campana (que com isto formula
u , internado de 1918
Di:to Campana (1855-1932): poeta louco e malditorficos foram reescri 14 Folquet (ou Folchetto) de Marselha : nascido na segunda metade do
45
44
/-
É certo que o pensamento, uma vez atingido o
Ideia da verdade limite do Quem?, deixa de ter objecto, chega à ex ¬
Scholem escreveu um dia que há qualquer coisa cimento último ter ainda a forma da objectualida- »
o Quê?, ou seja: Entendeste o quê? Viste o mente se opõem, e na qual encontram alimento, s
á
Buscaste o quê? Mas tudo continua tão impenetr
¬
i
/-
dade desse fechamento. Na formulação insuperável Ideia da Musa
de Nietzsche, o amor fati, o amor do destino.
Este monstruoso compromisso entre destino e
mem ó ria , no qual aquilo que só pode ser cbjecto de
?
recorda ção ( o retorno do idêntico) é vivido todas as A
mite final Quê?, e mantém -se no meio.” o dom secreto, e raro, do ser. é
Que uma latência se mantenha para que
possa
haver não-latência , que um esquecimento seja ¬
pre
servado para que possa haver memória: é isto a ¬
ins
piração, o transporte suscitado pela musa
, que põe
o homem em harmonia com a palavra
e o pensa-
mento. O pensamento só est á próximo
da coisa se
se perder na sua latência, se deixar de ver
a
Esta é a sua natureza de coisa “ ditada ” : a dialécoisa .
ctica
latência/não-latência, esquecimento/memó
ria é a
condição que permite que a palavra possa
aconte¬
cer, e n ão apenas ser manipulada por
um sujeito.
48
49
/ -
( Eu n ão posso, evidentemente, inspirar- me a mim Ideia do amor
mesmo ) .
Mas esta latência é também o n ú cleo tartá rico em
volta do qual se adensa a obscuridade do carácter e
do destino , o não-dito que, agigantando-se no pensa ¬
mento, o precipita na loucura. Aquilo que o mestre
n ã o vê é a sua própria verdade: o seu limite é o seu
princípio. Não vista , não exposta , a verdade entra no Viver na intimidade de um ser estranho , n ão
seu ocaso, fecha -se no seu próprio amanthisP para nos aproximarmos dele, para o dar a
“ É concebível que um filósofo caia nesta ou na conhecer,
¬
mas para o manter estranho, distante, e mesmo ina
quela forma de aparente incoerência , por amor des
te ou daquele compromisso: ele pr ó prio pode estar
consciente disso. Mas aquilo de que ele não tem
¬
parente
— t ão inaparente que o seu nome o possa
conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal - ¬
tar, dia após dia n ão ser mais que o lugar sempre
es
-
consciência é que a possibilidade deste aparente aberto, a luz inesgotável na qual esse ser ú nico, essa
compromisso tem a sua raiz mais funda numa insufi ¬
50 51
t
/-
Â
Ideia do estudo No legado do judaísmo conta-se, assim, tam ¬
bém esta polaridade soteriológica do estudo, pró ¬
truído, confiaram a preservação da sua identidade sões contraditórias. O estudo, de facto, é em si mes ¬
ao estudo do culto, em vez de ao próprio culto. mo interminável. Quem conheça as longas horas de
Aliás, Tora n ão significava , nas origens , Lei , mas vagabundagem entre os livros , quando qualquer
doutrina , e o próprio termo Mishnah , que designa ¬ fragmento, qualquer código, qualquer inicial prome- 3
va a compilação das leis rabínicas, derivava de uma te abrir uma via nova, logo abandonada em favor de
raiz cujo sentido era antes de mais o de “ repetir ” . uma nova descoberta, ou quem quer que tenha co ¬
Quando o édito de Ciro autorizou os Judeus a re¬ nhecido a impressão ilusória e labiríntica daquela
gressar à Palestina , o Templo foi reconstruído; mas “ lei da boa vizinhan ça ” a que Warburg16 submeteu a
a religião de Israel ficou para sempre marcada pela organização da sua biblioteca , sabe bem que o estu ¬
piedade do exílio. Ao Templo único, onde se cele ¬ do não só não pode ter fim, como também o não
brava o sacrifício solene e de sangue, vieram juntar ¬ quer ter.
se numerosas sinagogas, simples lugares de reunião A etimologia da palavra studium torna-se então
e de oração, e o poder dos sacerdotes viu -se reduzi ¬
transparente. Ela remonta a uma raiz st- ou sp- , que
do pela crescente influência dos fariseus e dos sá ¬
designa o embate, o choque. Estudo e espanto ( stu-
bios das Escrituras, homens do estudo e do livro.
No ano 70 d.C. as legiões romanas voltaram a
-
diare e stupiré) são, pois, aparentados neste sentido:
aquele que estuda encontra -se no estado de quem
destruir o Templo. Mas o douto rabino Joannah ben - '
recebeu um choque e fica estupefacto diante daqui ¬
-Zakkaj, fugido secretamente da Jerusalém assediada, lo que o tocou, incapaz, tanto de levar as coisas até
obteve de Vespasiano autorização para continuar o ao fim, como de se libertar delas. Aquele que estu -
ensino da Tora na cidade de Jamnia. Desde entã o o
Templo não foi reconstruído, e o estudo, o Talmud , “ Warburg' o historiador da arte e coleccionador judeu-alemão Aby War¬
burg (1866-1929), cuja obra se ocupa das influências da Antiguidade em v á rios
tomou -se assim o verdadeiro templo de Israel. dom ínios da cultura europeia moderna .
52 53
/- t
perpétuo adiamento do acto como a melancholia phi- ,
da fica , portanto , sempre um pouco estúpido, ata
¬
rantado. Mas, se por um lado ele fica assim perple ¬ lologica que Pasquali , sob pretexto de a ido bus- ter ¿
estado que Aristóteles, opondo-o ao acto, designa co antes de morrer, se abre em segredo com o seu
de “ potê ncia ” . A pot ê ncia é , por um lado, potentia amigo Rinaldo: “ os meus escritos est ã o a chegar ao
passiva, passividade, paixão pura e virrualmente in
¬ fim , porque agora me foram reveladas coisas em re- ;
finita , e por outro lado potentia activa , tensã o irre ¬ lação com as quais tudo o que escrevi e ensinei me
parece sem import â ncia. E espero n ã o sobreviver i
dutível em direcção à conclusão, passagem ao acto.
É por isso que Fílon compara a sabedoria realizada muito tempo ao fim da doutrina. ” i
Mas a mais extrema e exemplar incarna ção do
com Sara, que , sabendo-se esté ril, instiga Abra ã o a
unir-se à sua serva Hagar, isto é ao estudo, para po
¬ estudo na nossa cultura n ão é, nem a do grande fi- ;
der gerar um filho. Mas, uma vez fecundado, o estu ¬ lólogo, nem a do doutor da Lei. É antes a do estu - ,
do é de novo confiado a Sara , que é a Mja patro!n)a. dante, tal como ele aparece em certos romances de ;
E r ão é por acaso que Plat ão, na Carta Sétima , se Kafka ou de Walser18. O modelo destes é o do estu - :
serve de um verbo da mesma família de estudar dante de Melville, que passa a vida numa mansarda ,
(ojtouòd co ) , para referir a sua rela ção com aquilo baixa “ em tudo semelhante a um t ú mulo ” , os coto ¬
^
que mais preza: é apenas após um longo período de velos apoiados nos joelhos e a cabeça entre as m ãos.
E a sua figura mais acabada é a de Bartleby, o escri
convivência sé ria com os nomes, as definições e os
¬
bem a inconsol á vel tristeza que pode nascer deste os ú ltimos 27 anos de vida num asilo, sem escrever.
54 ^5
i
> ró-
messiâ nica do estudo foi invertida , ou antes, está dez;
Ideia do imemorial rna
para lá de si mesma . O seu gesto é o de uma pot ê n ¬
dos por ela . Umas vezes é - nos dado ver uma escrita
cujo selo subitamente quebrado nos fornece o se ¬
trada , definitiva .
No despertar, porém , embora nos recordemos ,
de forma límpida , de todas as imagens do sonho,
aquela escrita e aquela palavra perderam a sua força
de verdade, e é com tristeza que as voltamos de to ¬
56 57
/-
•
nho nos concedeu é a mesma que nos faz ver o va ¬ Assim, a promessa que o sonho formula no pró ¬
zio que aflige: as duas est ão contidas num e no mes ¬
prio momento em que se dissipa é a de uma
mo gesto.
lucidez
tão poderosa que nos entrega à distracção, de
A memória involunt á ria proporciona uma ex uma
¬
palavra tão completa que nos reenvia para a infância ,
periência an áloga . Nela , a recorda ção que nos de ¬ de uma razão t ão soberana que se compreende a si
volve a coisa esquecida esquece- se também dela , e mesma como incompreensível.
este esquecimento é a sua luz . Daí, por ém , vem a
nostalgia que a anima: h á uma nota elegíaca que vi ¬
bra t ão tenazmente no fundo de toda a memória
humana que, no limite, a recordação que n áo recor ¬
da nada é a mais poderosa das recorda ções.
Em vez de ver nesta aporia do sonho e da recor ¬
da ção uma limitação e uma fraqueza , devemos, pelo
contrá rio, tom á -la por aquilo que ela é: uma profecia
que tem a ver com a própria estrutura da consciên ¬
58
Ideia do poder
A.
ê
Talvez só no prazer as duas categorias inventa ¬
2fy
menta sobre ela a sua própria autoridade: e deixa
literalmente incompleto o prazer dos homens.
Mas aquilo que assim se perde não é tanto o
prazer como o pró prio sentido da potência e da sua
63
/
J
s
der. Tomando-se intermin á vel, esta cai sob a alçada Ideia do comunismo
do sonho e gera , para si própria e para o prazer, os
mais monstruosos equ ívocos. Pervertendo a justa
rela ção entre os meios e os fins, a busca e a formu ¬
da n ão anunciada.
Só no mundo antigo se encontra qualquer coisa
de semelhante a isto, na representa ção das relações
amorosas entre deuses e homens, que constituem
uma fonte inesgot ável de inspiração para a arte
clássica na sua fase final. Na união sexual com o
deus , o mortal, vencido e feliz , anulava de um golpe
64 65
/-
a infinita distâ ncia que o separava dos imortais; nunca qualquer coisa de já dado. O naturismo, que
mas, ao mesmo tempo, esta distâ ncia restabelecia - leva a tirar a roupa, é desde sempre o adversá rio mais
-se , ainda que invertida , nas metamorfoses da divin ¬
aguerrido da pornografia ; c do mesmo modo que um
dade em animais. O meigo focinho do touro que filme pornográfico sem acontecimento sexual não
rapta Europa , o bico sagaz do cisne inclinado sobre teria sentido, também dificilmente se poderia quali¬
o rosto de Leda , sã o sinais de uma promiscuidade ficar de pornográ fica a exibição pura e simples do
t ão íntima e tã o heroica que se nos torna , pelo me ¬
sexo no ser humano.
nos durante algum tempo, insuport ável. Mostrar o potencial de felicidade presente na
mais insignificante situa çã o quotidiana é em qual ¬
ca: no início temos sempre e apenas pessoas vestidas, Que diriam os personagens do filme pornográ ¬
do ao imprevisto é o d ò modo como, no fim , elas no , ser espectadores da nossa vida ? Os nossos so
-—
¬
têm de reencontrar-se, agora sem roupa. ( Nisto, a nhos n ão podem ver-nos e esta é a tragédia da
pornografia recupera o gesto rigoroso da grande lite¬
ratura clássica: n ão pode haver espaço para surpre ¬
utopia . A confusão entre personagem e leitor
boa regra de toda a leitura — deveria funcionar
—
sas, e o talento manifesta -se nas imperceptíveis varia
¬
també m aqui. Acontece, porém , que o importante
ções sobre o mesmo tema m ítico). E com isto puse ¬
n ã o é tanto aprender a viver os nossos sonhos , mas
mos a nu também a segunda característica essencial sim que eles aprendam a ler a nossa vida.
da pornografia: a felicidade que ela exibe é sempre
circunstancial, é sempre uma história e uma ocasião “ Um dia se mostrará que o mundo já h á muito
que se aproveitam , mas nunca uma condi ção natural, tempo que possui o sonho de uma coisa , da qual
66 67
/
—
apenas precisa de ter consciência para a possuir Ideia da política
verdadeiramente ” 19. Certamente que sim mas,
como se possuem os sonhos , onde é que est ão guar
— ¬
am: esse é o secreto cinismo do sonhador. ra de Deus, inas o seu esquecimento. De facto , a
Roberto Bazlen20 dizia : aquilo que sonh á mos é Sua cólera tem a mesma natureza que a Sua miseri - ;
qualquer coisa que já tivemos. Há tanto tempo, que córdia: mas quando a nossa falta ultrapassa os limi¬
já n ão nos recordamos disso. Não num passado, tes , até a cólera de Deus nos abandona . “ Esse é o
portanto —
já lhe perdemos os registos. Os sonhos
e os desejos não realizados da humanidade são an ¬
momento terrível ” , escreve Orígenes, “ o momento
extremo em que já n ão somos punidos pelos nossos
;
tes os membros pacientes da ressurrei çã o, sempre a pecados. Quando ultrapassamos a medida do mal,
ponto de despertar no dia final. E n ão dormem fe ¬
o Deus enciumado esquece todo o seu zelo em rela -
!
chados em preciosos mausoléus, mas est ão prega ¬ ção a nós: ‘O meu ci ú me abandonar-te-á’, diz Ele,
dos, como astros vivos, ao céu remotíssimo da lin ¬
‘e já não ficarei irado por tua causa .” ’
guagem , cujas constela ções mal conseguimos deci ¬
Este abandono, este esquecimento divino, é,
—
frar. E isso pelo menos isso n ão o sonh á mos.
Ser capaz de apanhar as estrelas que, como lágri
— ¬
para . lá de todo o castigo, a mais refinada das vin ¬
ganças, aquela que o crente teme por ser a única ir ¬
mas, caem do firmamento jamais sonhado da hu ¬
reparável , e face à qual o seu pensamento recua,
—
manidade essa é a tarefa do comunismo. aterrado: de facto, como será possível pensar aquilo
de que a própria omnisciência divina já não sabe
19A citação vem de uma conhecida carta de Marx a A. Ruge, nos anos
40 do século passado, na qual se lê: "O mundo h á muito que est á de posse do nada , aquilo que foi apagado para todo o sempre
sonho de uma coisa da qual apenas precisa de ter consciência para a possuir da mem ória de Deus? Daquele que é vítima deste
realmente” .
20
Roberto Bazlen (1902 -196? ): escritor triestino, filho de pai alemão e abandono diz George Bernanos que ele está , “ nem
m ãe italiana , descobre í talo Svevo e manté m uma importante troca de corres absolvido nem condenado note-se, mas perdido ” .
,
pondência com o poeta Eugenio Montale. Autor de textos deliberadamente
fragmentarios , reunidos ( par? al ém do texto maior O Capitão de Longo Existe, no entanto, um caso, um único, em que
Curso ) no conjunto Notas sem Texto. esta condição deixa de ser infeliz e alcança uma fe -
68 69
licidade muito particular é o das crianças n ão bap ¬
,
cam , irremediavelmente perdidos, no abandono di ¬
tizadas que morreram sem pecado, a não ser o ori ¬
vino: não foi Deus que os esqueceu , são eles que
ginal , e que permanecem eternamente no limbo, na desde sempre já O esqueceram, e o esquecimento
companhia dos loucos e dos pagãos que tenham si ¬ divino nada pode fazer contra o seu esquecimento.
do justos. Mitissima est poena puerorum, qui cum Nem bem - aventurados como os eleitos, nem deses ¬
solo originali decedunt 21 . O castigo do limbo , desta perados como os condenados, carregam uma espe ¬
eterna margem dos infernos , n ão é , segundo os teó ¬
rança sem saída possível.
logos, urna pena aflitiva , não condena ao tormento Esta natureza própria do limbo é a de Bartleby,
e as chamas: é apenas urna pena privativa , que con ¬
a mais antitrágica das figuras de Melville (ainda
siste na perpétua carencia da visão de Deus. Mas, que, aos olhos dos homens, nada pareça mais deso
—
¬
contrariamente aos condenados , os habitantes do lador que o seu destino) e está aí a raiz, impossí¬
limbo n ão sofrem desta carencia: uma vez que ape ¬
vel de arrancar, daquele “ preferia não ” , contra o
nas detêm o conhecimento natural, e não o conhe ¬ qual se desfaz, simultaneamente com a razão divi ¬
cimento sobrenatural que nos foi dado pelo baptis- na, toda a razão humana.
mo, n ão sabem que são privados do bem supremo,
ou , se o sabem ( como admite uma outra opinião) ,
não podem sofrer um desespero superior ao de um
homem sensato que se afligisse por não poder voar.
( De facto, se sofressem com isso, e dado que sofre ¬
riam por uma falta de que se não podem penitenciar,
a sua dor acabaria por levá -los ao desespero, como
acontece aos condenados, o que n ã o seria justo.)
Para além disso, os seus corpos sãc insensíveis como
os dos bem-aventurados, mas unicamente no que se
refere à justiça divina; quanto ao resto, desfrutam
perfeitamente da sua perfeição natural.
—
O maior castigo a carência da visão de Deus
— transforma-se assim em alegria natural: eles n ão
sabem , nunca saberão, nada de Deus. E assim fi-
70 71
/
Ideia da justi ça como um discurso que se poderia silenciar ou di ¬
72 73
Ideia da paz A verdade, porém , é que n ão há, n ão pode haver
nisso sinal de paz, porque a verdadeira paz só pode ¬
/-
imundície nunca pode ser mítica: Hércules limpa os
Ideia da vergonha está bulos de Áugias sem qualquer nojo , submetendo
as forças naturais à sua vontade, enquanto que nós
não conseguimos livrar-nos completamente da nossa
imundície, à qual se cola sempre um resíduo mitoló ¬
( no mundo antigo ,a aquele «íõcóç que é a marca tão forte da piedade anti ¬
bunais e dos castelos kafkianos ga. Deus não precisa de justificação: 'Otòç àvoc útioç,
ki. proclama, na República, a virgem Láquesis.
Stavrogin: personagem d’ Os Possessos, de Dostoicvs
76 77
-ai
/
—
- redenção de Klamm24, do Conde25, da anónima lou
Para o homem moderno, pelo contrá rio, a teo
¬
a si próprio. O sentimento de mis zia, do mais íntimo sentimento do eu. Para uma tal
, do mesmo
pudor do homem frente a si próprio humanidade , a única inocência possível seria a de
modo que a contingência — sob o signo da qual
a sua poder sentir vergonha sem mal-estar. O aíôoóç n ão
parece agora desenrolar-se docilmente toda
—
exist ência é a m áscara que
cente que causas unicamente humana
encobr e
s
o peso
exercem
cres
so
¬
¬
era, para o homem antigo, um sentimento embaraço
so; peló contrário, confrontado com ele, reencontra
va, como Heitor diante do seio desnudo de Hécuba,
¬
bre os destinos da humanidade. a sua coragem e a sua piedade. É por isso que Kafka
procura ensinar aos homens o uso do único bem que
II. É uma leitura muito pobre de Kafka aquela lhes restou: não a libertar-se da vergonha, mas a li
ão ci ¬
óprio
nho e distante. Muito pelo contrá rio, aí é o pr 2‘! Klamm: personagem (o alto funcion á rio do
castelo) do romance O
fim feliz
Deus que precisa de ser salvo, e o único Castelo , de Kafka.
25 O Conde: personagem d ’ O Castelo, de Kafka .
80 81
/-
de de ser uma é poca: a época do niilismo. Concei ¬
mente tomar a palavra, é a própria razão da lingua
tos como os de pós - moderno, de novo renascimen ¬
gem que perdemos.
- o
to, de humanidade ultra - metaf ísica , revelam o gr ão Por isso não queremos novas obras de arte ou a
de progressismo escondido em todo o pensamento do pensamento, não desejamos uma outra é poca
da decadencia e no próprio niilismo: o que importa ;
cultural e social: o que queremos é salvar a época e
é. em todos os casos, n ão perder a nova é poca que a sociedade da sua errâ ncia na tradição,
apreender
já chegou ou chegará , ou , pelo menos, poder á che
gar, e cujos sinais já podem ser decifrados à nossa
volta. E não h á nada mais triste que o esgar com
¬
o bem que elas trazem consigo
— um bem indiferí-
vel e n ão epocal. Assumir esta missão seria a ú
ética , a ú nica política à altura deste nosso
'
nica
tempo.
que, no meio do mal -estar geral , os mais espertos
roubam aos seus semelhantes os seus próprios so ¬
frimentos, mostrando-lhes que eles são apenas os
hieróglifos, para eles próprios por enquanto indeci ¬
82 83
/-
i
r aos breves e febris apontamentos da “ Viagem atra ¬
Ideia da m úsica vés da infla ção alemã ” , de Walter Benjamin ,27 que
temos de recorrer. Quanto à fenomenologí a do i
amor, ninguém conseguiu acrescentar muito às pá ¬
que seja ainda um punhado de obras filosóficas e li ¬ nhar o mapa da sensibilidade epocal, não conse ¬
alma fundamentais; mas não é menos certo que ela sencialmente utópico da sensibilidade moderna.
— quase instantaneamente —
se torna incrivelmen
te insípida e obsoleta. Nem a n áusea sartriana , nem
¬ Se a sensibilidade é a esfinge com a qual toda a
época histórica tem sempre de medir-se, então o
o absurdo cinzento das personagens de Camus enigma que o nosso tempo tem de resolver é aquele
mesmo que encontrou pela primeira vez a sua for
acrescentaram , a nosso ver, nada à caracterização
¬
heideggeriana da ang ústia e das outras Stimmungen mulaçã o na Paris obscurecida peia Primeira Guerra
(estados de alma; disposição interior ) em Sein und
Zeit ( Ser e Tempo ) ; e se quisermos procurar uma v- lham o processo de decad ência do Império Austro - H ú ngaro, do mundo ju ¬
deu do Leste europeu e dos anos vinte e trinta . De Joseph Roth podem ler-se
imagem do nosso desenraizamento e da nossa misé ¬
em tradução portuguesa os seguintes romances e narrativas: Hotel Savoy , A
ria social é ainda à descrição da quotidianidade em Fuga sem Fim, A Marcha de Radetzky , O Busto dc Imperador, A Cripta dos
Sein und Zeit cu aos romances de Joseph Roth ou
26 Capuchinhos e A Lenda do Santo Bebedor .
27 A " Viagem através da infla o alemã ” é um
çã conjunto de 14 fragmen ¬
tos de Walter Benjam ín , inclu ídos no livro Einbabstrafie ( Rua de Sentido Ú nico
íaco , proveni
26 Joseph Roth ( 1894 - 1939 ) : romancista e jornalista austr ¬
84 85
/-
Á
Mundial, na Alemanha da grande inflação ou na que estava implícita na ang ústia e no desespero, o
Praga da queda do Império Austro -H úngaro. Isso Tpaxxxç íáaexai e a promessa de cura , que ainda
não significa de modo nenhum que desde ent ã o se em Heidegger são os guardi ões da excrema espe - -
n ã o tenham produzido obras de valor, na filosofia ran ça da época , perderam o seu prestígio. Não que .
como na literatura , mas t ão somente que elas n ã o n ã o seja ainda possível experimentar a polaridade di
¬
contêm o invent á rio dos novos sentimentos epo- aléctica da ang ú stia; e também , se quisermos, pode- ¡
cais. Quando não se limitavam a revisitar as atmos ¬ remos experimentar o poder catá rtico dos estados de
feras do passado ou a registar pacientemente ínfi ¬ alma. Mas ninguém pensaria em servir-se de uma ex ¬
mas varia ções, a sua grandeza reduzia -se precisa ¬ periência — e muito menos de uma experiência des - í
mente ao gesto sóbrio com o qual os estados de te tipo— para reivindicar qualquer autoridade. ,
alma eram decididamente postos de lado. O recen ¬ A nossa sensibilidade, os nossos sentimentos, já
seamento das Stimmungcn , a escuta e a transcrição n ã o nos prometem nada: sobrevivem ao nosso lado ,
desta silenciosa m úsica da alma , tinham chegado ao faustosos e in ú teis como animais domésticos de
fim de uma vez por todas por volta de 1930. apartamento. E a coragem — perante a qual o nii -
Uma das explicações possíveis deste fenómeno , lismo imperfeito do nosso tempo n ã o cessa de bater 5
( insatisfatória como todas as explica ções ) é a de que, em retirada — consistiria precisamente em reco ¬
entretanto , aquilo que a princípio foram experiên çi- nhecer que já n ão temos estados de alma , que so ¬
as-limite de uma élite intelectual deu lugar a experi ¬ mos os primeiros seres humanos n ão afinados por •
ências de massas: nos cumes mais inacessíveis do uma Stimmung , os primeiros seres humanos , por
pensamento, onde o nada afivela a sua m áscara inex ¬ assim dizer, absolutamente n ão musicais: somos j
pressiva , o filósofo e o poeta encontrar-se- iam agora sem Stimmung , ou seja sem voca çã o. N ão é uma 1
em companhia de uma intermin ável massa planetá ¬ condição alegre, como alguns desgra çados no-lo
ria. E uma Stimmung de massas deixa de ser uma querem fazer crer, nem sequer é uma condição, se ¡
m úsica que se pode ouvir, transforma -se em ruído. por condi ção entendermos necessariamente, e ain ¬
Mais decisiva é a constatação da vertiginosa da , um destino e uma certa disposi ção; mas é a nos ¬
perda de autoridade da biografia individual e da sa situação, o sítio desolado onde nos encontramos , ' ¡
existência privada: tal como já n ão acreditamos em absolutamente abandonados por toda a vocação e j
atmosferas, nem nenhum homem inteligente deseja ¬ por todo o destino, expostos como nunca antes. .
ria hoje deixar a sua marca no mobili á rio de uma E se os estados de alma são na história dos indi - ¡
rasa ou num estilo de vestu á rio, assim também n ã o víduos aquilo que as épocas sã o na história da hu ¬
esperamos já muito dos sentimentos que mobilam manidade, ent ão aquilo que se anuncia na luz de
a nossa alma. A capacidade de inversão dialéctica chumbo da nossa apatia é o céu , jamais visto, de {
86 87
/-
uma situa ção absolutamente não. epocal da história Ideia da felicidade
humana. O desvelamento da linguagem e do ser em
termos apenas epocais, que os deixam sempre n ão
ditos em toda a abertura histórica e em todo o desti ¬
no, está talvez a chegar ao fim. A alma humana per¬
—
deu a sua m úsica e por m úsica entende-se aqui a
marca na alma da inacessibilidade destinai da ori ¬
a Ginevra
gem. Privados de época, esgotados e sem destino, Em todas as vidas existe qualquer coisa de não
chegamos ao limiar feliz do nosso habitar não musi ¬
vivido, do mesmo modo que em toda a palavra há
cal no tempo. A nossa palavra regressou verdadei ¬ qualquer coisa que fica por exprimir. O carácter é a
ramente ao princípio. obscura força que se assume como guardiã desta vi ¬
da intocada: vela atentamente por aquilo que nunca
foi, e, sem que o queiras, inscreve no teu rosto a mar ¬
ca disso. Por esta razão, a criança recém -nascida pa ¬
rece já ter semelhanças com o adulto: de facto, não
há nada de igual entre esses dois rostos, a não ser,
'
é recolhido pela
ideia da felicidade. Ela é o bem que a humanidade
recebe das m ãos do carácter.
88 89
/-
transformar num exemplar adulto de salamandra
Ideia da inf ância mosqueada (.Amblistoma tygrinum ). Esta circuns ¬
minado, para se limitar unicamente à sua própria lutamente exterior, que não lhe diz respeito e que,
imaturidade e ignorância . Os animais rejeitam as como tal , só pode ser confiada ao esquecimento, is ¬
possibilidades som á ticas que não est ão inscritas no to é a uma mem ó ria exossom á tica e a uma tradiçã o.
seu gérmen: no fundo, contrariamente ao que se Para essa criança, trata -se de n ão se recordar verda ¬
poderia pensar, n ão d ão qualquer aten çã o ao que é deiramente de nada , de nada que lhe tenha aconte ¬
mortal (o soma é, em cada indivíduo, aquilo que é cido ou se tenha manifestado , mas que, no entanto ,
sempre destinado à morte) , e cultivam unicamente enquanto nada , antecipa toda a presença e toda a
as possibilidades infinitamente repetíveis fixadas no mem ória. Por isso, antes de transmitir qualquer sa ¬
código gen ético. Só d ã o aten ção à Lei , à quilo que ber ou qualquer tradi ção, o homem tem necessaria ¬
arbitrá rias e n ão codificadas: na sua infantil omni ¬ vés da constata çã o, aparentemente trivial , de que o
potência , ela seria tomada de estupefacçã o e ficaria homem , antes de transmitir seja o que for, tem de
fora de si, não, como os outros seres vivos , numa transmitir a linguagem ( é por isso que um adulto
aventura e num ambiente específicos, mas, pela pri ¬ não pode aprender a falar: foram as crianças, e não
meira vez , num mundo: ela estaria , verdadeiramen ¬
te, à escuta do ser. E como a sua voz est á ainda livre
os adultos, as primeiras a aceder à linguagem ; e,
mau grado os quarenta milénios da espécie do homo I
de toda a prescriçã o genética , n ão tendo absoluta ¬ sapiens , aquilo que constitui precisamente a mais hu ¬
mente nada para dizer ou exprimir, ela seria o ú ni ¬
co animal da sua espécie que, como Ad ão, seria ca ¬
mana das suas caracter ísticas
linguagem —
— a aprendizagem da
permaneceu estreitamente ligado a
u
paz de nomear as coisas na sua l íngua. No nome, o uma condiçã o infantil e a uma exterioridade: quem
'1
homem liga-se à inf â ncia, para sempre amarrado a acredita num destino específico n ão pode, verda ¬
h
Mas esta abertura , esta atordoante paragem no las que n ão esquecem esta origin á ria voca çã o infan¬
apenas aquilo que pode ser salvo ( as características ma infantil tem um nome: o pensamento , ou seja a
essenciais da espécie) , mas també m aquilo que política .
nunca poderá ser salvo, que est á , assim , perdido
para sempre, ou melhor, nunca foi possu ído como
uma propriedade específica , mas que, precisamen ¬
94 95
/-
O poder da linguagem deve voltar-se para a lin ¬
Ideia do Juízo Final guagem . O olho deve ver o seu ponto cego. A pri ¬
As almas dos homens chegam de toda a parte tinua o processo de Deus contra si pr óprio.
ao tribunal , mas o banco dos réus já est á todo ocu ¬
pado. São convidadas a sentar-se no banco dos ju ¬ E , no entanto, trata - se apenas de uma gravura
rados , ou sentam -se, ruidosamente, em grupos, en ¬
colorida num livro infantil com o t ítulo Li sietie pa- *
tre o p ú blico. Quando uma sineta anuncia a entra ¬
lomielle28.
da dos ju ízes, o culpado, que , entretanto, enfiou à
socapa a borla e a toga , sobe precipitadamente para
a cadeira do juiz. Mas, assim que declara aberta a
audiência , deita fora a toga e desce até ao banco da 1
97
96
/-
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\
Ideia do pensamento
ÍQ m
iâ mAi
:
7
a Jacques Derrida
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m ;;
tefl &
•
>
•
m mm C
I . As aspas gozam desde h á algum tempo de
«a uma prefer ência especial entre os sinais de pontua
t m maKS|
¬
S-í ji í k *$ h mm
:
V
i M
m ção. A extensão do seu uso para lá do do signum ci-
tationis , naquela pr á tica , t ão generalizada hoje em
St- r .
«o m *;
dia , de pô r uma palavra entre aspas, sugere que esta
preferê ncia deve ter razões que são tudo menos su ¬
perficiais.
Que significa , de facto , pôr uma palavra entre
aspas? Através das aspas, quem escreve toma as
Ê suas dist â ncias em rela ção à linguagem: elas indi ¬
r-
If cam que um determinado termo n ã o é tomado na
>
101
/-
lósofo, que a palavra entre aspas só espera pela pri ¬ regressam àquela vírgula de onde nasceram e que,
meira oportunidade de se vingar. E nenhuma vin ¬ segundo Isidoro de Sevilha , assinala o ritmo da res ¬
gança é mais subtil e mais irónica que a sua . Quem piração na enuncia ção do sentido.
alguma vez colocou uma palavra entre aspas, nunca
mais se livrará dela: suspensa a meio caminho no II. No lugar onde caiu uma voz, onde faltou o
seu lance significante, ela torna -se insubstituível
ou melhor, já n ão é possível separarmo- nos d éla .
— sopro da respira ção, um min úsculo sinal est á sus
penso, em cima . Sem outro suporte além deste, he
¬
A invasão das aspas trai também o mal -estar do sitante , o pensamento aventura -se.
nosso tempo face à linguagem: elas representam os
muros — finos, mas intranspon íveis — da prisão
que é para n ós a palavra . No círculo que as aspas
fecham à volta de um vocá bulo ficou encerrado
também o falante.
Mas se as aspas são, para a linguagem , uma
chamada para comparecer perante o tribunal do
pensamento, o processo assim intentado n ão pode
ser definitivamente adiado. Todo o acto de pensa ¬
mento acabado, para o ser — ou seja , para poder
referir-se a qualquer coisa que est á fora do pensa ¬
/-
Oj
tV;
Ideia do nome vel da ciê ncia bem podem atribuir uma definição a
cada nome: aquilo que deste modo se diz , é sempre
dito graças à pressuposição do nome. Toda a lin - s
guagem assenta , de facto, sobre um único nome,
em si impossível de proferir: o nome de Deus .
Contido em todas as proposi ções , em cada uma de ¬
las ele permanece necessariamente n ã o dito.
Para quem medita sobre o inef ável , é ú til obser
¬ Outra é a atitude da filosofia . Ela partilha com
var que a linguagem pode perfeitamente nomear a m ística o desafio em rela çã o a uma adequa çã o de - i
guagem , mas sim aquilo que, na linguagem , apenas | xar o olhar sobre esse rosto, sobre o qual agora está
pode ser nomeado; o dizível , pelo contrá rio é aqui-
, j escrito o nome “ morte ” , até que também ele , por
lo de que se pode falar num discurso defin í t ó rio, sua vez, seja apagado. A fronte muda , ilegível , é
ainda que, eventualmente , n ão tenha nome pró prio. agora a sua ú nica liçã o , o seu ú nico texto. ¡
A distinção entre dizível e indizível passa, pois, pe¬
Ou
*
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1
Ideia do enigma verdadeiro enigma , perante o qual a razã o humana
pá ra , petrificada . ,
( É deste modo que Wittgenstein coloca o pro-
blema do enigma. )
messa de mist é rio que ele gera ser sempre necessa ¬ plesmente uma falta de coragem face a uma verdade ;
riamente gorada , uma vez que a solu ção consiste que nos representamos de forma mais ou menos ¿
precisamente em mostrar que o enigma não era consciente: h á um outro medo que precede este, e
mais que apar ência . O facto de esta expectativa , que est á já implicitamente presente no próprio facto :
que hoje sabemos ser vã , constituir nas origens o de n ós termos fabricado uma imagem da verdade, e,
pathos do enigma , é atestado , entre outras coisas , de uma maneira ou de outra , lhe termos sabido o no ¬
pelas hist ó rias relativas à morte dos sá bios e profe¬ me e experimentado o pressentimento. F. este medo -
tas antigos, que, quando n ão encontravam a solu ¬
arcaico contido em toda a representa çã o que tem no ,
çã o dos enigmas que lhes eram propostos, morriam enigma a sua expressão e o seu antídoto.
literalmente de medo. Mas o verdadeiro ensina ¬ Isto n ã o significa que a verdade seja qualquer s
mento do enigma só começa para lá da solu çã o e da coisa de irrepresent á vel que nós nos apressamos a
desilusão que ele parece inevitavelmente trazer con ¬
assimilar às nossas representa ções. Pelo contrá rio , a
sigo. De facto, nada é mais desesperante do que a verdade começa apenas no instante a seguir ao mo- í
constata çã o de que n ã o h á enigma , mas t ã o somen¬
mento em que reconhecemos a verdade ou a falsi- >
te a sua aparê ncia. O que significa , na realidade, dade de uma representa ção ( na representa ção, ela
que o facto enigm á tico se refere apenas à linguagem í só pode ter uma de duas formas: ou “ Afinal era :
e à sua ambiguidade , e não à quilo que nessa lingua - | mesmo assim ! ” , ou ent ão “ Estava enganado! ” ). Por r
gem é visado, e que, em si, não só é absolutamente isso, é importante que a representa ção pare um ins ¬
desprovido de misté rio, como também n ão tem na ¬ tante antes da verdade; por isso , só é verdadeira a s
da a ver com a linguagem que deveria dar-lhe ex ¬ representa ção que representa também a dist â ncia
pressão, mas se mant ém a uma dist â ncia infinita . que a separa da verdade.
Que o enigma n ão seja, que o próprio enigma
n ã o consiga captar o ser, a um tempo perfeitamente III. Conta -se que Plat ã o, no fim da vida , convo¬
manifesto e absolutamente indizível: esse é agora o cou um dia os seus discípulos da Academia , anun -
106 107
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I I
ciando que lhes iria falar do Bem . Como ele tinha o modo, um filósofo n ão pode defender uma tese
h á bito de designar com este termo o n ú cleo mais nem emitir opiniões sobre um problema . ” Por isso
íntimo e mais obscuro da sua doutrina , que nunca decidiu ater- se à quelas formas simples que são o
tinha abordado de forma explícita , reinava entre to ¬ apólogo , a f á bula , a lenda , que at é o Só crates mori ¬
i
dos aqueles què se tinham reunido na éxedra — en ¬ bundo n ão tinha desdenhado , e que parecem suge ¬
tre eles Espeusipo, Xen ócrates , Arist ó teles e Filipe rir ao leitor que n ã o as leve muito a sé rio . í
—
de Oponte uma bem compreensível expectativa ,
e mesmo um certo nervosismo. Mas quando o filó ¬
Um outro fil ósofo, por ém , fez -lhe ver que uma
tal escolha era , na verdade , paradoxal , uma vez que
sofo começou a falar e se tornou claro que o discur ¬ fazia supor no autor uma tal intenção de ser sério
so se ocupava exclusivamente das questões mate ¬ que ele era obrigado a tomar as devidas precau ções
m á ticas , dos n ú meros , das linhas, das superfícies , em rela çã o à sua pró pria expressã o. Se a inten ção
dos movimentos dos astros , e que por fim se defen ¬ did áctica das f á bulas antigas era , afinal , aceit á vel,
dia a ideia de que o Bem era o Uno , os discí pulos isso devia - se ao facto de elas terem sido repetidas ,
começaram por ficar espantados , depois trocaram com variantes infinitas , ao longo dos séculos , e por -
olhares , abanaram a cabeça , e por fim alguns aban ¬ ' que a mem ó ria do seu autor se tinha perdido com ¬
donaram a sala em silêncio. Mesmo aqueles que fi ¬ pletamente. Mas de resto, continuava , a ú nica in ¬
¡
caram at é ao fim , como Aristó teles e Espeusipo, es ¬ ten çã o que escapava a toda a possibilidade de erro
tavam embara çados e n ão sabiam que coisa pensar. era a absoluta ausência de qualquer inten ção. E é i
Deste modo Plat ão, que até aí tinha sempre avi ¬ precisamente esta ausência de inten ção que os poe ¬
i
sado os seus discípulos para desconfiarem do trata ¬ tas exprimiam através da imagem da Musa, que
mento tem á tico dos problemas , e que, nos seus es ¬ lhes ditava as palavras , às quais eles se limitavam a t
critos , tinha reservado um lugar de destaque às fic¬ í dar voz. Mas para a filosofia isso n ão era possível:
ções e aos mitos , torna - se por sua vez , aos olhos dos que sentido teria , na verdade, uma filosofia inspira ¬
seus discípulos , um mito e um enigma . da ? A não ser que encontrasse qualquer coisa como
uma Musa da filosofia , a n ão ser que fosse possível
|
IV. Depois de muita reflexão, um filósofo che ¬ encontrar uma expressão que, como o canto dessa r
gou à conclusã o de que a única forma legítima de I Musa muito antiga a que os Tebanos chamavam
escrita seria aqueia que imunizasse sempre os leito ¬ Esfinge, se desintegrasse no pró prio momento em 5
res contra a ilus ão de verdade que podia suscitar. que mostrava a sua verdade.
“ Se chegássemos a saber ” , costumava ele repetir,
“ que Jesus ou Lao- Tsé tinham escrito um romance V. Imaginemos que todos os signos estavam
policial, isto parecer- nos -ia indecente. Do mesmo preenchidos, que tinha sido redimida a culpa do
ir.
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'V
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4
I
homem na linguagem , satisfeitas todas as demandas Ideia do silêncio
possíveis e proferido tudo o que pudesse ser dito
— o que seria ent ão a vida dos homens sobre a
Terra ? “ Os nossos problemas vitais ” , dizes tu ,
“ nem sequer aflorados teriam sido ” . Mas, supon
29 ¬
cia , triste ou alegre, tragédia ou com é dia , dos seus gor todo o candidato a filósofo, e, se ele suportasse
limites, da insuficiência da linguagem ? No lugar pacientemente a flagela ção, poderia ent ã o ser consi ¬
i
7) -
A cita çã o vem do Tractatus logtco pbilosopbicus, de Wittgenstein
( proposição 6.52: Sentimos que, mesmo quando todas as possíveis questões
cient íficas tiverem obtido resposta , os nossos problemas vitais nem sequer te
¬
no 111
/-
Ideia da linguagem I Ideia da linguagem II
I. Um belo rosto é talvez o ú nico lugar onde h á A narrativa de Kafka Na Colónia Venal ilumina -
verdadeiramente silêncio. Enquanto que o car á cter -sc singularmente se compreendermos que o apare ¬
deixa no rosto as marcas de palavras n ão ditas, de lho de tortura inventado pelo ex - comandante da
inten ções n ão realizadas , enquanto que a face do colónia é, de facto , a linguagem . Mas ao mesmo
animal paiece sempre estar a ponto de proferir pa ¬ tempo a hist ó ria complica -se de uma forma consi - 1 fa 2
lavras , a beleza humana abre o rosto ao silêncio . derá vel . Na lenda , a m á quina é , de facto, antes do ' scu -
—
Mas o silêncio - aquele que advém daqui n ão é —
uma simples suspens ã o do discurso, mas silêncio da
mais, instrumento para julgar e punir. Isto quer di -
zer que també m a linguagem, nesta Terra e para os
a a¿
Jfo ¿
própria palavra , a palavra a tornar- se visível: a ideia homens, é .um instrumento do mesmo tipo. O se- 1
qu
da linguagem . Assim , o silêncio do rosto é a verda ¬ gredo da colónia penal seria ent ão aquele mesmo ecu¿.
deira morada do homem . que o personagem de um romance contempor â neo *o p
trai nos seguintes termos: “ Vou confiar-lhe um se- ;cu -
II . Só a palavra nos põe em contacto com as gredo: a linguagem é que é o castigo. Todas as coi - / es ¬
coisas mudas. A natureza e os animais são desde lo ¬ sas têm de entrar nela e perecer nela na medida da da t
go prisioneiros de uma língua , falam e respondem a sua culpa. ” o
signos , mesmo quando se calam ; só o homem con ¬ Mas se se trata de expiar uma culpa ( e o oficial ‘o
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/-
i
ganha entendimento. Tudo começa à volta dos
olhos. Depois começa a alastrar. Um espect á culo
nas no momento em que o oficial — quando perce
—
be que o viajante não se deixa convencer liberta
¬
que provoca a tenta çã o de nos colocarmos também o condenado e toma o seu lugar na m á quina. Neste
debaixo das agulhas. Não acontece mais nada , o episódio é decisivo o texto que lhe será gravado na
homem começa simplesmente a decifrar a inscri ¬ carne. Ele n ã o tem— como no caso do condenado
çã o , afundando a boca , como se estivesse à escuta . — a forma de um mandamento preciso ( “ respeita
Como viu , não é fá cil decifrar esta escrita com os os teus legítimos superiores ” ) , consiste apenas na
olhos; mas o nosso homem decifra - a com as suas fé ¬ simples ordem: “ Sê justo ” . Mas no momento em
tidas. Mas d á muito trabalho: ele precisa de seis ho ¬
que a m á quina tenta escrever esta ordem , ela desin ¬
ras para chegar ao fim . Mas nessa altura as agulhas tegra - se e deixa de poder cumprir a sua fun ção: “ as
trespassam - no totalmente e lan çam - no na fossa , on ¬ agulhas já n ão escreviam , apenas espetavam ...
de ele cai sem ru ído sobre o algod ão e a á gua en ¬
Aquilo n ão era suplício , era assassinato puro e sim ¬
ende finalmente na sua ú ltima hora é o sentido da tida: “ aquilo que todos os outros tinham encontra ¬
dizer que foi feita justi ça . al tem plena consciência disso , a partir do momen ¬
114 115
1
ajante com um olhar límpido, uma espécie de ape ¬ Ideia da luz
lo, um qualquer convite à compreensã o. ” Não res ¬
ce dizer a m á quina — —
O sentido último da linguagem é o que pare ¬
é o preceito “ Sê justo"; e no
entanto é precisamente o sentido desse preceito que a
máquina da linguagem não está minimamente etn Acendo a luz num quarto escuro; é um facto
condições de nos fazer compreender . Ou antes: ela só que o quarto iluminado já n ão é o quarto escuro,
pode fazê-lo renunciando à sua fun çã o penal, só que perdi para sempre. E no entanto: n ão será ain ¬
pode fazê -lo desintegrando- se, assassinando em vez da o mesmo quarto ? N ã o ser á o quarto escuro o
de punir. Deste modo, a justi ça triunfa sobre a justi ¬
ú nico conte údo do quarto iluminado ? Aquilo que
ça e a linguagem sobre a linguagem . E ent ão torna - n ão posso ter, aquilo que , ao mesmo tempo, recua
-se perfeitamente compreensível que o oficial n ã o at é ao infinito e me empurra para diante, n ã o é
tenha encontrado na m á quina o que os outros nela mais que uma representa ção da linguagem , o escu ¬
encontravam: nesse momento já n ão havia para ele ro que pressupõe a luz ; mas se renuncio a captar es ¬
mais nada a compreender na linguagem . Por isso a se pressuposto , se volto a aten çã o para a própria
expressão do seu rosto ao morrer é a mesma de
quando ele estava vivo: o olhar límpido e convenci ¬
—
luz, se a recebo ent ão aquilo que a luz me dá é o
mesmo quarto, c escuro n ã o hipot ético. O único
do, a fronte perfurada pela ponta de uma grande conteúdo da revela çã o é aquilo que é fechado em
agulha de ferro.
—
si , o que é velado a luz é apenas a chegada do es
curo a si pró prio.
¬
116 117
/
i
Ideia da aparência movimentos circulares e perfeitamente regulares
que convé m tomar como hipó tese, afim de se pode ¬
Simplicio da Sicília , professor na escola de Atenas tros a que se chamava “ errantes ” (Tttaxvpxeç) , foi—
poucos anos antes do seu encerramento, e depois obrigada a supor, para cada um deles , uma sé rie de
exilado, com os últimos filósofos pagãos , na corte de esferas concêntricas, cada uma animada de um mo ¬
—
Khosrô I quem transmitiu à astronomia medieval
(e. através desta , à ciência moderna ) a expressão
vimento uniforme cuja combina ção com o movi
mento das outras resultava no movimento aparente
¬
“ salvar as aparências ” (xà cpaivó peva acóte tv ) co ¬ do planeta . O aspecto decisivo aqui é o do estatuto
mo lema da ci ência plat ónica . Se n ão do pró prio atribu ído às hipóteses: para Plat ão , elas n ã o deveri¬
Plat ão, a expressã o vem todavia do ambiente da am de modo nenhum ser consideradas como prin ¬
Academia , e talvez n ão seja por acaso que ela foi cípios verdadeiros, mas precisamente como hipóte ¬
atribu ída pela primeira vez a Heraclides do Ponto, ses, cujo sentido se esgotava com a salva çã o dos fe ¬
candidato à sucess ão de Espeusipo na direcção da n ómenos. Como escreve Proclo , na sua polé mica
Academia: dele se conta que ter á tentado falsificar com aqueles que tomam as hipóteses por princípios
a aparência da sua pró pria morte (substituindo o n ã o hipot é ticos: “ estas hipóteses foram concebidas
cad á ver por uma serpente ) , sendo por isso, segun ¬ para descobrir os movimentos dos astros — que,
do o mesmo biógrafo, posto a rid ículo com um em verdade, n ão diferem da sua aparência (còa7tep
acróstico por n ão ter reconhecido a natureza apó ¬ KOU tpaí vexai ) — , ou seja para tornar inteligível a
crifa de um manuscrito de Sófocles. medida desses movimentos” . Assim , quando Newton
No seu coment á rio ao De coelo de Arist óteles , inscreve o seu Hypotheses non fingo no limiar da
Simplicio expõe nestes termos a tarefa que Plat ã o . ci ência moderna , atribuindo a esta a tarefa de de ¬
teria atribu ído aos astrónomos do seu tempo: duzir da experiê ncia as causas reais dos fenómenos,
“ Plat ão admite , em princípio, que os corpos celes ¬ a express ão “ salvar as aparências ” iniciou aquela
tes se deslocam segundo um movimento circular, lenta migra ção sem â ntica que, exilando - a do â mbi ¬
uniforme e constantemente regular. Coloca , assim , to da ci ê ncia , a levou a assumir o significado pejo ¬
aos matem á ticos o seguinte problema: quais sã o os rativo que ainda tem no uso corrente.
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/-
\
à aparência como um fundamento real ein torno do dor ” ) como lucet ( “ brilha, manifesta -se na sua evi ¬
qual devesse girar o conhecimento. A bela apar ência , dencia ” ) ; de um lado, uma latência que fica escondi ¬
n ão explicá vel ulteriormente através de hipó teses, é da na sua própria maneira de se dar a ver ; do outro,
assim entesourada , poupada, “ salva ” para uma outra uma visibilidade sem sombra, pura e absoluta. Na
compreensão, que a capta agora por ela e nela pró ¬
Vita Nuova , construída inteiramente como uma feno ¬
pria , a-hipoteticamente , no seu esplendor. Chega -se, menología, por assim dizer, da aparê ncia , os dois sen ¬
é certo, ent ão ainda a um elemento sensível ( daqui tidos surgem por vezes intencionalmente contrapos ¬
o termo “ ideia ” , que indica uma visã o, íóeíV ) , mas tos: “ julgava { mi parea ) ver no meu quarto uma nu ¬
n ã o a um elemento sensível pressuposto em relaçã o vem cor de fogo dentro da qual eu distinguia uma
à linguagem e ao conhecimento , antes exposto ne ¬ figura de um senhor de aspecto pavoroso para quem
les, de forma absoluta. A aparência que assenta , não o olhasse; e ele aparecia -me ( pareami ) , em si mesmo,
j á na hipótese, mas nela pró pria , a coisa já n ão se ¬ tão cheio de alegria... ” Com n ão menos ironia,
parada da sua inteligibilidade, mas no cerne dela — Guinizelli30 distingue-os, como se quisesse evidenciar
é isto a ideia, a pró pria coisa. melhor a confusão entre os dois: “ mais qué a estrela
de Diana brilha e parece... ” ( pm che Stella Diana
splende e pare.. .)
Estes dois sentidos não são realmente separáveis,
e n ão é fácil , em certos casos, decidirmo- nos por um
ou pelo outro: é como se todo o esplendor implicasse
uma aparência , todo o “ parecer ” um “ aparecer ” .
Guinizelli’. Guido de Guinizelli (1230 ou 1240 - 1276), autor Jas Rime
que influenciaram decisivamente o gosto de Dante e seus contempor â neos.
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|
No rosto humano, os olhos afectam -nos, não f ( “ doxa ” significa etimológicamente aparência, sem¬
nos olhos, vemos t ã o pouco esse outro que os seus to ” . Este est á totalmente exposto na cruz, o último
olhos nos devolvem o nosso olhar, essa imagem mi - “ sinal” , no qual todos os outros se consumam.
niaturizada que dá o seu nome à pupila.
Neste sentido, o olhar é verdadeiramente “ o Olho alguém nos olhos: estes p õem - se no ch ão
fundo do homem ” — mas esse depósito do huma ¬
(por pudor, um pudor que vem precisamente desse
no, essa opacidade abissal, essa miséria do semblan ¬
vazio atr á s do olhar) , ou ent ão olham -me também.
te (na qual tantas vezes o amante se perde, e que o E eles podem olhar-me despudoradamente, exibin ¬
respondência apenas no gó tico wullhus. Na Bíblia gema calculado que os sujeitos retratados por vezes
de Wulfila, que nos transmitiu este vocábulo, ele se voltam para a objectiva, exibindo assim a consci ¬
não serve, no entanto, para dar uma palavra que ência de estarem expostos aos olhares. Esta circuns ¬
signifique “ rosto ” ( já Cícero observava que o grego t ância inesperada desmente com violência a fic ção
n ã o possui um equivalente para esta palavra: “ aqui¬
implícita no consumo de tais imagens, segundo a
lo a que nós chamamos ‘rosto’” , escreve, “ e que i qual aquele que olha surpreende os actores sem ser
não pode existir em nenhum animal, mas apenas no visto: estes, desafiando conscientemente o seu
homem, assinala o elemento moral: este significado olhar, obrigam o voyeur a olhá-los nos olhos.
os Gregos não o conhecem, e por isso lhes falta No breve instante que dura esta surpresa, nasce
também a palavra ” ), mas traduz o grego ôó a, que entre essas imagens sórdidas e aquele que as olha
^
significa a glória de Deus. No Antigo Testamento, a qualquer coisa como uma autêntica interrogação
glória (Kabod ) indica a divindade no momento em amorosa; o despudor confunde- se com a transpa ¬
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/-
a inten çã o impede a perfeita transpar ência , j á que cessidades e da nossa rela çã o imediata com elas.
os modelos sabem que est ã o a ser olhados, sã o pa ¬ Elas sã o , simplesmente , maravilhosamente , inatingi -
gos para o saber ). velmente.
No momento em que a imagem reflectida é Mas que coisa pode significar a visão de uma
inervada na retina e se torna propriamente visã o, o cegueira ? Eu quero apreender a minha obscurida ¬
olho é necessariamente cego. Ele organiza a visão à de, aquilo que em mim permanece n ã o-expresso e
volta deste centro invisível — o que significa , tam ¬ n ão dito : mas essa é precisamente a minha pró pria
bém , que toda a visã o é organizada para que n ã o n ão-lat ê ncia , o meu ser apenas rosto e aparência in ¬
vejamos esta cegueira . É como se toda a n ã o - lat ên - transpon ível. Se eu pudesse verdadeiramente ver o
cia contivesse, encastrada no seu centro , uma latê n - ponto cego do meu olho , n ã o veria nada (é esta a
cia inapagá vel , como se toda a luminosidade aprisi ¬ treva que , segundo os m ísticos , é a morada de
onasse uma íntima treva . Deus ) .
Este ponto cego permanece para sempre escon ¬
dido para o animal , que adere imediatamente à sua É por isto que todo o rosto se contrai numa ex ¬
pró pria vis ã o , que n ã o pode trair a sua pró pria ce ¬ pressã o , se torna hirto num cará cter e, deste modo ,
gueira , fazer a experiência dela . A sua consciê ncia * se ultrapassa e se aprofunda em si mesmo. O cará c
desvanece-se , assim , no próprio ponto em que des ¬ ter é o esgar do rosto quando se apercebe de que
perta: é pura voz ( é por isso que o animal ignora as n ã o tem nada para exprimir, e bate desesperada ¬
aparências; apenas o homem se interessa pelas ima ¬ mente em retirada em rela çã o a si pró prio , em bus ¬
gens enquanto imagens e conhece a aparê ncia co ¬ ca da sua própria cegueira . Mas aquilo que aqui se
mo aparência ) . poderia apreender mais n ã o seria que uma n ã o-la ¬
É agarrando - se com todas as suas for ças a este t ência , uma pura visibilidade: apenas um rosto. E o
ponto cego que o homem se constitui como sujeito rosto n ã o transcende a face -—é a exposiçã o da face
consciente. É como se tentasse desesperadamente na sua nudez, vit ória sobre o cará cter: palavra .
ver a sua pr ó pria cegueira . Assim , para ele, em toda
a visão se insinua um atraso , uma n ã o-contiguidade , E n ão nos foi a linguagem dada para libertar ¬
uma mem ória entre sinal e resposta . Pela primeira mos as coisas das suas imagens, para levar à aparê n ¬
vez , a aparê ncia separa -se da coisa, o semblante do cia a própria aparência , para conduzi - la à glória ?
—
esplendor. Mas esta gota de trevas este atraso —
remete para o facto de alguma coisa ser , é o pró prio
ser. Só para n ós as coisas são , libertas das nossas ne-
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/
L
Ideia da morte Ideia do despertar
a í talo Calvino
O anjo da morte , que em certas lendas se cha ¬ I . Nagarjuna percorria em todas as direcções o
ti Samael, e do qual sc conta que o pr ó prio reino de Andhra , e em todos os lugares onde parava
loisés teve de o afrontar, é a linguagem. O anjo ensinava à queles que queriam instruir-se a doutrina
í uncia - nos a morte— e que outra coisa faz a lin - da vacuidade. Acontecia que por vezes se mistura ¬
lemoriais , desde que tem hist ória , a humanidade de , de refutar as suas objecções c deitar por terra os
ita com o anjo para lhe arrancar o segredo que ele seus argumentos. Dessas discussões nos pá tios perfu ¬
: limita a anunciar. Mas das suas m ã os pueris ape- mados dos templos ou no ru ído dos mercados ficara -
is se pode arrancar aquele an ú ncio que , assim co ¬ lhe um certo amargor. O que o atormentava não
rn assim , ele nos viera fazer. O anjo n ã o tem culpa eram , no entanto, os violentos reparos dos monges
isso, e r ó quem compreende a inocência da lingua - ortodoxos que lhe chamavam niilista e o acusavam
;m entende também o verdadeiro sentido desse de destruir as quatro verdades ( o que ensinava , se
íú ncio e pode , eventualmente, aprender a morrer. fosse bem compreendido, mais n ão era que o sentido
das quatro verdades ). Tampouco o perturbavam as
ironias dos solit á rios que, quais rinocerontes, cultiva ¬
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/-
trina da vacuidade, mas tratada adentro dos limites mo vazio , se se lhe atribui o ser ou o n ão- ser, isso é
da representação. Eles serviam -se da produ ção con ¬
que é o niilismo, isso e mais nada: apropriar- se do
dicionada e do princípio de razão para mostrar a va ¬
nada como de uma presa , como uma defesa contra
cuidade de todas as coisas, mas não chegavam à quele a vacuidade. Mas o sá bio est á na dor sem encontrar
ponto onde esses princípios revelavam a sua própria nela , nem al ívio, nem razão: est á na vacuidade da
vacuidade. Em suma , postulavam como princípio a dor. Por isso , Candrakirti, escreve: aquele para
ausência de todo o princípio e , deste modo, ensina¬
quem at é a vacuidade é uma opinião, e o irrepre-
vam o conhecimento sem o seu despertar, a verdade sent á vel uma representa ção , aquele para quem o in ¬
tado num burro, em direcção a Vidharba. O atalho de ‘d á - me ao menos a mercadoria chamada ‘nenhu ¬
estreito corria entre uma alta montanha cor- de- rosa ma ’ ... Quem vê o absoluto n ão vê outra coisa sen ão
e um prado a perder de vista , interrompido aqui e ' a vacuidade do relativo. Mas precisamente esta é a
ali por pequenos lagos que espelhavam as nuvens. prova mais dif ícil: se não entendes a natureza da va ¬
Até Candrakirti , o seu discípulo mais querido, p- cuidade e continuas a fazer uma representa ção de¬
nha sido vítima daquele erro. Mas como se podia la , ent ão cais na heresia dos gram á ticos e dos niilis
¬
combatê-lo sem recorrer a uma representação ? tas: és como o mago que foi mordido pela serpente
Com os joelhos enganchados sobre a sua parda que n ão soube apanhar. Se, pelo contrá rio, pacien ¬
montada , o olhar perdido entre as pedras e os mus ¬ temente, permaneceres na vacuidade da representa ¬
gos do atalho, Nagarjuna sentia nascer dentro de si ção, se n ão te fazes nenhuma representa ção , ent ão,
o esboço das Estâncias para o Caminho do Meio: ó bem -aventurado , atingir ás aquilo a que chamamos
“ Aqueles que professam a verdade como uma o caminho do meio. O vazio relativo deixa de ser re ¬
doutrina , como uma representação da verdade. lativo em relação a um absoluto. A imagem vazia dei ¬
Estes outros tratam o vazio como uma coisa , repre ¬ xa de ser a imagem do nada. A palavra extrai a sua
sentam a vacuidade da representa ção. Mas o conhe ¬ plenitude da sua própria vacuidade. O despertar é
cimento da vacuidade da representa ção n ão é, por esta suspensão da representa ção. Aquele que desper ¬
sua vez , uma representa ção: é simplesmente o fim ta sabe apenas que sonhou , sabe apenas da vacuida ¬
da representação... Tu queres usar o vazio como um de da sua representa ção , só conhece aquele que dor ¬
ref úgio contra a dor: mas como poderia a vacuida ¬
me. Mas o sonho que agora recorda nã o representa ,
de proteger- te ? Se o vazio não permanece esse mes- não sonha nada. ”
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l
II. “ Redeu de Perusio et de nocte profunda venio presenta ção n ão foi transcendida por uma outra re ¬
hue et est tempus hiemis lutosum et adeo jrigidum, presenta ção superior, mas apenas através da sua
quod dondoli aquae frigidae congelatae fiunt ad ex- exibição , do seu aprofundamento. Enquanto limiar,
tremitates tunicae et percutiunt super crura et san¬
guis emanat ex vulnerihus talibus. Et totus in luto et
o nome in - significante— a subjectividade pura
faz parte do edif ício da alegria. )
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frigore et glacie venio ad ostium, et postquam diu
pulsavi et vocaoi, venit frater et quaerit: Quis est?
Ego respondeo: Prater Pranciscus. Et ipse dicit: Vade,
non est hora decens eundi; non intrahis. Et iterum
insistenti respondeat: Vade; tu es unus simplex et idi ¬
31) Tradu ção do texto latino: “ Venho de Perugia , chego aqui a meio da
noite e é Inverno, tudo enlameado e tanto frio. E gotas dc. á gua fria , gelada , co¬
brem -me o há bito e fustigam -me as pernas de tal modo que sai sangue das feri ¬
das. E cheio de lama e frio e gelo chego ao port ão, e depois de eu bater e cha ¬
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LIMIAR
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Defesa de Kafka contra os seus intérpretes
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agarra o inexplicá vel cora m ã os demasiado desajei ¬
cá vel .
De facto , as explicações n ã o sã o mais que um
momento na tradi ção do inexplicá vel: o momento
que toma conta dele, deixando-o inexplicado.
Privadas do seu conte údo, as explica ções esgotam
assim a sua fun çã o. Mas no momento em que, mos ¬
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