AGAMBEN, Giorgio. Ideia Da Prosa

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IDEIA DA PROSA I
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LÍVR ÒS COTOVIA ;
Giorgio Agamben

Ideia da Prosa

Tradução, prefácio e notas de


João Barrento

Título original: Idea della Prosa


© Giorgio Agamben, 1985
© Edições Cotovia , Lda., Lisboa, 1999

Concepçã o grá fica de João Botelho

-
ISBN 972 8423-70-5 Cotovia
índice

f
Prefacio p. 9

LIMIAR 19

I
Ideia da maté ria 29
>Jdeia da prosa 30
X Ideia da cesura 34
'

Ideia da voca ção 37


'

Ideia do Ú nico 39
j;
Ideia do ditado
Ideia da verdade
Ideia da Musa
46
49
11
Ideia do amor 51
Ideia do estudo 52
Ideia do imemorial 57
i :

i
II
Ideia do poder 63
Ideia do comunismo 65
Ideia da política 69
Ideia da justiça 72
Ideia da paz 74
Ideia da vergonha 76
Ideia da época 81

ig :
:
Ideia da m úsica Pref á cio
Ideia da felicidade
Ideia da inf â ncia
Ideia do Juízo Final

III
f Ideia do pensamento 101
Ideia do nome 104 Ideia da Prosa traz no próprio título o seu pro ¬

Ideia do enigma 106 grama: o de uma indistin ção de fundo entre uma
Ideia do silêncio 111 ideia da linguagem e uma ideia da Ideia , ou do pen ¬

Ideia da Hnguagem I 112 sar. Importa , por isso, começar por perguntar que
Ideia da linguagem II 113 escrita é esta. Porque escrita (écriture) é o que estes j
Ideia da luz 117 textos são, n ão literatura nem filosofia convencional.
Ideia da apar ência 118 A questão sobre a forma da escrita é desde logo es ¬

Ideia da gló ria 121 sencial, porque ela é indissociável do que se diz, e
Ideia da morte 126 mais ainda do que, nestes ensaios -fragmentos, é da
Ideia do despertar 127 ordem do não-dito. Aspecto central da nossa rela ção
com o texto de Agamben é também a percepção da >

IIMIAR natureza herética de uma linguagem filosófica que,


Defesa de Kafka contra os seus intérpretes na linha do postulado wittgensteiniano da unidade
de ética e estética , se move na esfera de uma consci ¬

ência da precariedade sobre a qual se funda toda a


observa ção que tem ainda algo do “ espanto ” antigo
frente ao mundo e deixa transparecer a consciência
dos limites da linguagem que funda a distinção entre
-
nome e discurso (cf. “ Ideia do Nome ” ).
Que escrita é esta então? A do fragmento? A do
1 ensaio? Provavelmente algo entre as duas, inclassi ¬
ficá vel: a do Essai- Échec (a expressã o é de Henri
Michaux ) , a de um jardim de muitos canteiros em
que se semeiam ideias esperando que daí nasça al ¬

I
guma coisa (como o Ideen Paradles de Novalis ) ,

8 9

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>
1

-
uma forma de prosa reflexiva - narrativa poética que antes como língua festivamente experienciada. Esta
nasceu para a modernidade, depois dos românticos , festa foi expurgada de toda a solenidade, n ão co ¬

com os pelits poèmes en prose de Baudelaire e ga ¬


nhece cânticos celebratórios. A sua língua é a pró ¬
nhou plena maturidade com os Denkbilder (ima ¬ pria ideia da prosa que todos os homens entendem ,
gens do pensamento) de Walter Benjamin. De per ¬ do mesmo modo que a linguagem dos pássaros é
meio est á a prosa filosófica, também heterodoxa entendida por aqueles a quem a sorte bafejou. ”
e inconfund ível, de Nietzsche ou de Kierkegaard. Os textos de Ideia da Prosa lêem -se como “ histó ¬
A Walter Benjamin foi Giorgio Agamben, aliás , rias de almanaque ” filosóficas, algumas delas, na sua
buscar o próprio título deste livro. Esse título vem , brevidade, como “ contos morais ” escritos a contrapê-
de facto, de uma das in ú meras anotações que cons ¬
lo da conceptualidade filosófica dominante e das
tituem o aparato crítico das teses Sobre o Conceito grandes teorias (da interpretação, do conhecimento,
da História. Num desses fragmentos de Benjamin ( o da linguagem ): atravessa -as uma vontade hermenêuti- ;
“ B 14 ” da edição crítica alemã), a “ ideia da prosa ” ca sub-versiva e inconclusiva, um pudor do definitivo
equivale a uma utopia de linguagem ( que é também comparável àquele temor da conclusão, mísera e mo-
aquela que subjaz, como reverso inaliená vel de uma 1
ral, e ao prazer dos inícios e reinícios de que fala
utopia do pensar, à escrita filosófica de Agamben ) , Barthes em Roland Barthes par Roland Barthes. Os
associada por Benjamin à transparência absoluta e , blocos de pensamento que daí emergem como ilhas
ideal de uma língua pura, ad ámica e universal, e flutuantes, num processo contínuo de tensão-expan ¬

despida do pathos solene da poesia , que seria a do são, produzem o efeito final de um “ contínuo como
mundo messiâ nico da revelação. Transcrevo todo o um murm ú rio” , como dos seus próprios fragmentos
fragmento, para melhor compreensão do próprio diz Michaux em jEmergences Resurgences. De facto, o
lugar da linguagem na filosofia de Benjamin e de conjunto deste mosaico de ideias actúa como o baixo
Agamben: “ O mundo messiânico é o mundo da ac- contínuo musical, ou como uma fuga: entre abertura
tualidade plena e integral. Só nele existe uma histó¬ e fecho (os “ Limiares” de Ideia da Prosa ) , ouvem-se
ria universal. Aquilo que hoje assim se designa mais sequências de temas e variações, entrecortadas por
n ão pode ser que uma espécie de esperanto. Nada nós mais densos que funcionam como stretto.
lhe pode corresponder antes de ser eliminada a Por seu lado, cada peça isolada é um sistema ;
confusão instituída com a construção da Torre de intensivo (era assim também que Barthes entendia
Babel Esse mundo pressupõe aquela língua para a
qual terão de ser traduzidos, sem reduções, todos
o ensaio) construído a partir de uma
mântica — — muito ro ¬
excitação da ideia que se oculta atrás de
os textos das línguas vivas e mortas. Ou melhor, ele véus (cf. “ Os discípulos de Sais” , de Novalis) e que
próprio é essa língua . Mas n ão como l íngua escrita , só é transmissível na exalta ção da forma breve, e

10 11

i
segundo princípios que parecem agora ser os do do- literá ria pela pequena forma a que Kundera , em
decafonismo atonal, . tal como Adorno os descreve no Os Testamentos Traídos, numa fórmula certeira , cha - -

ensaio sobre a filosofia da m úsica nova: a infracção ma “ a estratégia de Chopin ” ) é definido por Benja ¬

das regras ( do pensamento sistemático) leva a con ¬ min no final de Origem do Drama Lutuoso Alemão
trair espacialmente as formas , a extrema expressivi ¬
em termos que acentuam a sua natureza radicalmen ¬

dade exige uma particular brevidade. Cada “ imagem te fragmentá ria e decisivamente poética, isto é “ bela ”
do pensamento ” , cada fragmento da Ideia , que se vai ( n ão fora a presen ça , em Agamben e Waller Benja ¬

expandindo, adentro de limites auto-impostos , numa min , de uma noção de verdade sempre diferida e em
alternâ ncia entre o paradoxo e a tautologia , em di - constru ção, e estar
íamos de regresso áo Banquete de
recção a um final que é quase sempre uma revelatio , Platão e à unidade, aí proclamada , do Belo e do
uma frase última que constitui o último momento de Verdadeiro). “ No espírito da alegoria ” , escreve Ben ¬

uma ontologia aberta da constata ção, tem a forma da jamin, “ ele [o drama barroco] é concebido desde o ;
alegoria benjaminiana. E isto quer dizer: na fragmen ¬
in ício como ruína, como fragmento. Quando outros
taçã o do dito ( que nega ) alude à possibilidade de resplandecem , grandiosos como no dia primeiro [a
uma totalidade do/no n ão-dito. É ainda a tensã o dia ¬
cita ção escondida do ‘Prólogo no Céu’ do Fausto de
léctica entre a consciência do precá rio e a vontade de Goethe identifica aqui, na expressão ‘grandiosos co ¬

interpretação e de sentido que alimenta a busca da mo no dia primeiro’, um desses ‘outros’!], esta forma
“ Ideia ” (mais no sentido de Goethe e Benjamin do associa ao último a imagem do Belo” . Todo o aconte- \
que no platónico ) e o interesse de conhecimento cimento hermenêutico é, assim , uma ocupação com
subjacente a cada fragmento. Interesse de conheci ¬
as ruínas ( do sentido ) e os seus enigmas, que são os
mento que, servindo-se da linguagem como instru ¬
enigmas da verdade. Da verdade última e transcen- j
mento intuitivo-associativo, n ã o pode deixar de re ¬
dente do Nome, do “ Quem ? ” na abertura do Zohar
sultar numa epistemología mais poética que concep ¬
( cf. “ Ideia da Verdade ” ), e da verdade do absurdo
tual, e que, como ainda em Novalis, não passa, na impenetrável das existências que, numa obra como a j
sua fun ção propedêutica e heur ística, de uma antecâ ¬ de Kafka , antecipa, ou transfere para cada dia das
mara (Vorstufe) do conhecimento, de um “ paraíso suas personagens o Juízo Final ( o derradeiro Juízo
das Ideias” que também o poeta-filósofo romântico Final será aquele em que o lugar último da verda ¬
preferia â ordem definitiva de um edif
tual abstracto. O espírito da alegoria
ício concep ¬
que informa as

de, Deus — ou a Linguagem , num último gesto
absurdo ou num último assomo da lucidez (e) da ver ¬

“ imagens do pensamento ” em Agamben e já susten


( ¬
dade, a si próprio se julga nesse tribunal: cf. “ Ideia do
tava a escrita filosófico- poética de Nietzsche depois Juízo Final ” ). Uma e outra destas verdades são gran ¬
de Morgenrôte/ Aurora , ou a preferência musical e des enigmas , talvez os únicos que restam ao homem

12 13

-*
j
moderno. Mas a verdade é que o enigma , como lem ¬
ja obra principal se reduz a um aglomerado de Note
bra Agamben, não contém qualquer verdade, mas tão senza testo / Notas sem Texto ). Ou poderão ser vistos
somente a sua aparência: “ Que o enigma n ão seja, como “ vedores ” do Ser que, de varinha hermenêuti ¬
que o próprio enigma não consiga captar o Ser, a um ca na mão, vão sondando e descobrindo veios de
tempo perfeitamente manifesto e absolutamente indi água da existência. Num pequeno livro a vá rios títu

¬
¬
zível: esse é agora o verdadeiro enigma, perante o los fascinante Palingenese del frammento / Palingé-
qual a razão humana pá ra, petrificada.” (cf. “ Ideia do
Enigma ” ). A busca da verdade pelo filósofo através
de textos em si mesmos enigmáticos não é, assim ,

nese do Fragmento (Roma, 1995 ) , Antonio Cas-
tronuovo resume esta relação autor-leitor: “ A expres
são fragment ária permite, em suma, n ão renunciar a
¬

mais que a busca, consciente, de cintilações (repre¬ uma relação com a experiência, e nisto a situação do
sentações efémeras) da verdade num movimento que anotador aproxima -se da do leitor: mais do que escre
encena e deixa à vista — no texto, na obra
movimento pendular entre envolvimento e distancia
— um
¬
ver, ele lê o mundo” .
Na sua leitura das coisas, das Ideias e dos afectos
¬

mento: “ é importante que a representação pare um que gerem a existência humana, Giorgio Agamben
instante antes da verdade; por isso, só é verdadeira a
representação que representa também a distância que
' parece também identificar-se
— mas n ão totalmente
— com -aquele filósofo que um dia “ chegou à conclu ¬
s
a separa da verdade ” ( “ Ideia do Enigma ” ). / são de que a única forma legítima de escrita seria
O caminho seguido em Ideia da Prosa parece ter aquela que imunizasse sempre os leitores contra a ilu ¬
sido este: cada fragmento é movido pela consciência são de verdade que podia suscitar. ” Um tal filósofo
do trabalho vão do querer dizer/definir, e aceita o terá de se situar tora de qualquer doxa , numa atitude
desafio do Nome — nomeia , enigmaticamente, um
objecto para lhe perseguir a Ideia. Como o oráculo,
de abertura e suspensão em relação aos problemas
que coloca. É por isso que as formas de linguagem
d á por vezes apenas estilhaços de uma Ideia, fecha -se que melhor lhe servem são aquelas “ formas simples ”
sobre um certo hermetismo, constrói-se segundo a dos pequenos tratados (como os de um autor afim de j
lei da metonimia, valoriza os impulsos indutivos, cul¬ Agamben no espaço francês, o Pascal Quignard dos
tiva o poliperspectivismo, tem uma lógica interna Petits Traités ) , dos “ idílios ” , no sentido etimológico
própria, pressupõe que os silêncios contêm potencia ¬
lidades comunicativas. Com isto, gera uma rela ção — —
do termo ( “ pequena ideia ” ) o apólogo, a fábula, a
lenda , “ que até o Sócrates moribundo não tinha
particular com o leitor: ambos, quem escreve e quem desdenhado, e que parecem sugerir ao leitor que não
lê, se transformam em “ anotadores” (a fórmula servi ¬ as leve muito a sério ” ( “ Ideia do Enigma ” ).
ria ainda melhor a um outro autor-leitor de “ notas ” Alas a Apologia de Sócrates , sabemo-lo, ressuma
filosóficas e literá rias, o triestino Roberto Bazlen , cu - de ironia. Também nós temos de levar a sério a filo-

14 15

/
sofia dos indícios, da fábula, do exemplum, de Gior ¬

gio Agamben neste livro (como levamos a sério as


Mitologias de Barthes, para entender melhor um cer ¬

to tempo) , se quisermos aproximar-nos, ainda que


apenas tacteantemente, sem qualquer pretensão de os
“ resolver ” , de alguns dos “ problemas vitais ” , não de
hoje, mas de sempre: aquelas questões, da filosofia e
da existência, para as quais estes pequenos tratados A
nos despertam, e que constituem o essencial daquilo José Bergamín
que, já para Platão, não pode ser esquecido. E que in memoriam
instrumento mais adequado para uma apreensão do
que não se pode e não se deve esquecer do que a Y es tanto su desvelo que, al velarlo
“ medida mais breve ” , a forma mínima que, armando de sueño sin sentido,
o cerco às coisas, fazendo refulgir a Ideia , tornando siente que por debajo de ese sueño
vis ível a força da palavra em acção nos intersticios do nunca despertará del sueño mismo.
silencio, acede à Ideia da linguagem e aspira a iludir a
Moite?

28 de Agosto de 1999

JOãO BARRENTO

16

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7 LIMIAR

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No ano 529 da nossa era, o imperador Justinia -
no, instigado por fanáticos conselheiros do partido '

anti-helénico , decretou através de um édito o encer ¬

ramento da escola filosófica de Atenas . Coube, as ¬

sim, a Damáscio,1 o escolarca responsável , ser o últi ¬

mo diá doco da filosofía pagã. Ele tinha tentado, por


meio de funcioná rios da corte que lhe ofereceram os
seus préstimos , evitar o acontecimento, mas conse ¬

guiu apenas que lhe concedessem , para compensar a


confisca ção dos seus bens e os rendimentos da esco ¬

la , o salá rio de superintendente de urna biblioteca de


provincia. Ora, temendo possíveis perseguições, o
escolarca e seis dos seus mais próximos colaborado ¬

res carregaram um carro com livros e instrumen ¬


tos , e procuraram refugio na corte do rei dos persas,
Khosró Anocharvan. Os bá rbaros tinham salvo aque ¬

la puríssima tradição helénica que os gregos


antes, os “ romanos ” , como agora se chamavam - já
ou ——
não eram dignos de guardar.
0 diá doco já não era novo, e já iam longe os
tempos em que julgara poder ocupar-se de historias
maravilhosas e de aparições de espíritos; em Ctesi-
1 Damáscio: filósofo neoplat ó nico, nascido em Damasco cerca do ano

470. Propõe um misticismo dialéctico, dissolvendo a metaf ísica neoplatónica


numa simbologia que acentua a distancia entre o Uno e o M ú ltiplo

21

/
d t.
fonte , depois dos primeiros meses de vida de corte, Diz a tradição que Dam á scio trabalhou na sua i
deixou aos seus discípulos Prisciano e Simplicio a obra durante trezentos dias e outras tantas noites,
incumbência de satisfazer, com coment á rios e edi ¬ ou seja , durante todo o período do seu exílio em i

ções crí ticas, a curiosidade filosófica do soberano. Ctesifonte. Por vezes interrompia o trabalho duran ¬
Fechou -se na sua casa da parte norte da cidade , em te dias e semanas e, nesses momentos, apercebia -se, >

companhia de um escriba grego e de uma criada sí ¬ como através de uma parede de n évoa , da vanidade t

ria , e decidiu consagrar os últimos anos de vida à da sua empresa . O texto que hoje podemos ler est á
redacção de uma obra que intitularia Aporias e semeado de frases como “ apesar da nossa demora ¬

Soluções em Torno dos Princípios Primeiros. da investigação, n ão chegá mos , ao que me parece, a
Sabia perfeitamente que a quest ão que preten ¬ conclusões nenhumas ” . Ou então: “ que tudo o que
dia abordar não era uma quest ão filosófica entre ou ¬ acabamos de escrever tenha o destino que a Deus
tras. N ão havia escrito o pró prio Plat ão , numa carta aprouver ! ” Ou ainda: “ Na minha exposiçã o h á ape ¬

que até os cristãos consideravam importante (sem , nas uma coisa louvável: o ela se condenar a si mes- ;
no fundo , a entenderem ) , que precisamente a inter ¬ ma , ao reconhecer que não vê claro, que é incapaz •

rogação sobre a Coisa Primeira é a causa de todos de olhar para a luz ” . Mas depois retomava infalível- :
os males? Mas tinha acrescentado que o sofrimento mente o trabalho, at é à suspensã o seguinte, at é à
que aquela interrogação causa na alma é como a, dor inevitável nova crise. Pois, como pode o pensamen ¬
do parto: enquanto se n ão libertar dela, a alma não to colocar a questã o sobre o princípio do pensa ¬
poderá encontrar a verdade. Por esta razã o, sem he ¬ mento ? Como se pode , por outras palavras , com ¬
sitar, já ao selar a obra, o velho diádoco formulou preender o incompreensível? É claro que aquilo
com clareza o tema: “ Aquilo a que chamamos prin ¬ que aqui é posto em questã o n ã o pode ser tematiza - 2

cípio ú nico e supremo do Todo está para além do do nem sequer como incompreensível, não pode
Todo, ou numa determinada parte do Todo, por ser expresso nem sequer ccmo inexprimível. “ É de
'

exemplo o ponto culminante das coisas que daí de ¬ tal modo incognoscível que nem sequer tem por na- ¡

rivam ? Devemos nós dizer, por outro lado, que o tureza o incognoscível, e n ão é dizendo-o incognos ¬

Todo está no princípio, ou que vem depois dele e é cível que podemo's criar a ilusão de o conhecer, 1

procedente dele? Pois, a admitir-se esta alternativa, porque n ão sabemos sequer se é incognoscível. ” i

terá de admitir-se que algo est á fora do Todo — e Por isso , o discípulo de Siriano, que tinha sido tam
bém mestre do seu primeiro mestre, Marino, e que
¬

como seria isso possível ? Aquilo a que n ão falta na ¬


da é, de facto, o Todo absoluto; mas falta o princí¬ muitos consideravam insuper á vel, escreveu uma vez
pio, e portanto aquilo que vem depois do princí pio que, como ele n ã o tem nome, n ós podemos pensá -
e está fora dele n ã o é o Todo absoluto. ” -lo através do acento agudo ( spiritus asper) que colo-

22 23
I

camos sobre a vogal da palavra ev. Mas tratava-se, que se furta a qualquer composição
evidentemente, de uma subtileza indigna de um fi ¬ de nome e dis ¬
curso, como também a toda a distin
lósofo, no limite da charlatanice. Não era deste mo ¬ ção, tal a do
cognoscível e do cognoscente. Temo
do, com um sinal ilegível ou com um sopro, que eie s de concebê-lo
como uma espécie de halo plano e liso
poderia expor, nas suas Aporias , o impensável que no qual ne ¬
nhum ponto se pode distinguir do
está para além do sopro e do acento que se pode es ¬ outro, como a
coisa mais simples e mais englobante:
crever. Foi assim que uma noite, enquanto escrevia, n ão apenas o
Uno, mas o Todo-Uno, e Uno antes de Tudo

lhe veio subitamente à ideia a imagem que assim
lhe pareceu — o havia de guiar até à conclusão da
o Uno de um Todo... ”
Damáscio levantou por um instante a
, e n ão

obra. N ão era , porém , uma imagem , mas qualquer olhou a tabuinha sobre a qual ia anotando m ã o e
coisa como o lugar totalmente vazio no qual apenas dos seus pensamentos. De repente, o curso
as imagens, um sopro, a palavra, poderiam eventual ¬
passagem do livro sobre a alma em
lembr ou -se da
mente acontecer; n ão era , assim, nem sequer um lu ¬ que o filósofo
compara o intelecto em potência a uma
gar, mas , por assim dizer, o lugar do lugar, uma sobre a qual não está escrito nada . Como tabuinha
superfície, uma á rea absolutamente lisa e plana, na "sou ele nisto
n ã o pen -
antes? Era isto que, dia após dia , ten
qual nenhum ponto se podia distinguir de outro. tara apreender, era isto que, sem
¬

Pensou na eira de pedra branca da fazenda onde descanso, tinha


perseguido no breve lampejo daquele
nascera, às portas de Damasco, e onde à tarde os nível, cegante. O limite último que
halo indiscer-
camponeses malhavam o trigo para separar o grã o o pensamento
pode atingir n ão é um ser, não é um
da palha. Não era aquilo que buscava como a eira, lugar ou uma
coisa, mesmo despojados de qualquer
ela própria impensá vel e indizível, sobre a qual os qualidade,
mas a própria potência absoluta, a pura
potê
crivos do pensamento e da linguagem separavam o própria representaçã o: a tabuinha para ncia da
grão e a palha de todo o ser ? Aquilo que até aí julgara pensar como escrever!
Aquela imagem agradava-lhe, e, scguindo-a, veio- o Uno, como
o absolutamente Outro do pensam
ento , era, pelo
-lhe aos lábios uma palavra inaudita, que ligava o ter¬ contrá rio, apenas a maté ria , apenas
mo que significa eira ou á rea com aquele outro com a potência do
pensamento. E todo o longo volum
o qual os astrónomos designam a superfície da Lua e que a m ã o do
.^ escriba tinha enchido de letras, mais não
ou do Sol: cétaoç. Não, não era má solução para era que a *
tentativa de representar aquela tábua perfeit
aquilo que queria dizer. Devia ater-se a ela e n ã o lhe amente
rasa sobre a qual ainda se n ão
acrescentar nada. “ É certo ” , escreveu, “ que do ab escreveu nada. Por
¬
isso não conseguia levar a bom termo a
solutamente inef á vel n ão podemos nem mesmo que não podia deixar de se escrever
obra: aquilo
afirmar que é inef á vel, e do Uno teremos de dizer era a imagem
daquilo que nunca deixava de não se
escrever. No
24
25

y
i
1

uno espelhava -se o outro, inatingível. Mas tudo era


finalmente claro: agora podia quebrar a tabuinha ,
deixar de escrever. Ou antes , começar verdadeira ¬

mente. Julgava agora compreender o sentido da


m áxima segundo a qual conhecendo a incognosci -
bilidade do outro, n ão conhecemos alguma coisa
dele, mas alguma coisa de nós. Aquilo que nunca
poder á ser primeiro permitia -lhe aperceber-se, di ¬

I
fusamente , do vislumbre de um início.

26
Ideia da matéria

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>
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A experiencia decisiva que, para quem a tenha
/ feito, se diz ser t ão dif ícil de contar, nem chega a
r o ser uma experiência. Não é mais que o ponto no
qual tocamos os limites da linguagem. Mas aquilo
que ent ão tocamos n ão é, obviamente, urna coisa ,
de tal modo nova e portentosa que, para descrevé-
-la , nos faltam as palavras: é antes matéria , no senti ¬

do em que falamos de “ matéria da Bretanha ” ou


“ entrar ha matéria ” , ou ainda “ índice de mat érias ” .
Aquele que, neste sentido, toca a sua matéria , en ¬

contra facilmente as palavras para dizê-lo. Onde


acaba a linguagem , começa , não o indizível, mas a
matéria da palavra. Quem nunca alcan çou , como
num sonho, esta subst â ncia lenhosa da língua , a
que cs antigos chamavam silva (floresta ) , ainda que
se cale, est á prisioneiro das representa ções.
É como o caso daqueles que regressaram à vida
-
depois de uma morte aparente: na verdade, de mo
do nenhum morreram (senão não teriam regressa -
¬

do ) , nem se libertaram da necessidade de ter de


morrer um dia; libertaram -se, isso sim , da represen ¬

ta ção da morte. Por isso, interrogados sobre aquilo


que lhes aconteceu, não t êm nada a dizer sobre a
morte, mas encontram maté ria para muitas histó ¬

rias e para muitas belas f ábulas sobre a sua vida.

29

. A
Ideia da prosa ao seu n úcleo específico diferencial,
admitindo que
o enjambement individualiza, no
sentido referido, o
traço distintivo do discurso poé
tico. Citemos um
poema recentíssimo:

A porta
branca...
É um facto sobre o qual nunca se reflectirá o A porta
suficiente que nenhuma definição do verso é perfei ¬ que, da transparência, leva '

tamente satisfató ria, excepto aquela que assegura a à opacidade... s


sua identidade em relação à prosa através da possi ¬ A porta
bilidade do enjambement. Nem a quantidade, nem condenada...
o ritmo, nem o n úmero de sílabas todos eles ele — —
¬
A tradicional consistência métrica do é
mentos que podem também ocorrer na prosa
fornecem , deste ponto de vista, uma distinção sufi
ciente: mas é, sem mais, poesia aquele discurso no
¬ -aqui drasticamente reduzida, e as retic
racter ísticas da fase tardia de Caproni,
verso é
ências, tão ca
assinalam pre
¬

qual é possível opor um limite métrico a um limite cisamente a impossibilidade de desenvolver


o tema
prosódico para iá do seu n úcleo
sintáctico (todo o verso no qual o enjambement não
está efectivamente presente será então um verso
constitutivo (que
observação nada trivial, ainda que, depois do que
foi
— í

com enjambement zero ), e prosa aquele discurso no


qual isto nã o é possível.

dito, não surpreendente está, não no princ pio
mas no fim, no lugar da versuray ), um pouco í ,
como,

Há poetas Petrarca é seu arquétipo
quais o enjambement zero é a regra, e outros
nos
e
—— no adagio do quinteto op. 163 de Schub
Caproni aproveitou a lição, o pizzicato
ert, do qual
marca todas

Caproni2 encontra -se entre eles nos quais o grau
marcado tende, pelo contrá rio, a prevalecer. Na fa ¬
as vezes a impossibilidade, para as cordas,
tar até ao fim uma frase melódica.
de execu
Não é por isso
¬

se tardia de Caproni, porém , esta tend ência vai até que a poesia deixa de ò ser: uma vez mais,
o enjam ¬

aos limites do inverosímil: aí, o enjambement devo¬ bement , diferentemente do branco de Mallarmé,
que
ra o verso, que se reduz apenas àqueles elementos
que permitem atestar a sua presença portanto, — 3 Versura
: termo latino que designa o lugar
no fim do campo. Existe um paralelismo com aiguns
gos, nos quais as linhas correm alternada
mente
em que o arado dá a volta
sistemas de escrita ami ¬
da direita para a esquerda, como acontecia na da esquerda para a direita e
escrita grega antiga, na hitita
-
2 Caproni: Giorgio Caproni (1912 ), escritor e poeta italiano cuja obra ou também na escrita rú nica. Este tipo de
escrita é geralmente designado de
se desenvolve entre as temá ticas quotidianas e o hermetismo. escrita bustrofédica (do grego bustropbcdon
: o modo de virar os bois ).

30 31

/-
integra a prosa no domínio da poesia , é condição ne ¬ da proposta da Vita Nuova no dealbar
da idade mo¬
cessá ria e suficiente da versificação. derna . A versura , que, embora não referenciada
O que há ent ão nele de t ão particular, para que tratados de métrica, constitui o cerne do nos
lhe seja conferido um tal poder na condu ção do cuja manifestação é o enjã verso (e
mbement ), é um gesto
metro do poema ? O enjã mbement exibe uma n ão- ambíguo que se orienta ao mesmo
tempo para
-coincidência e uma desconexão entre o elemento direcções opostas, para trás (verso) e para duas
métrico e o elemento sint á ctico , entre o ritmo sono ( prosa ). Esta suspensão, diante
¬
esta sublime hesitação en ¬
ro e o sentido, como se, contrariamente a um pre ¬
tre o sentido e o som , é a heran
ça poética que o
conceito muito generalizado , que vê nela o lugar de pensamento deve levar até ao fim
. Para aproveitar
um encontro , de uma perfeita conson â ncia entre esse testamento, Platão, recusando as
som e sentido , a poesia vivesse, pelo contrá rio, ape ¬
formas
cionais da escrita, nunca perde de vista aquelatradi
¬

nas da sua íntima discórdia. O verso, no pró prio ac ¬ da linguagem que, de acordo com o ideia
testemunho de
to com o qual, quebrando um nexo sint á ctico, afir ¬ Aristóteles, não era , para ele, nem poesia, nem
pro
¬
ma a sua própria identidade, é, no entanto, irresisti ¬
sa, mas o meio termo entre as duas.
velmente atraído para lan çar a ponte para o verso
seguinte, para atingir aquilo que rejeitou fora de si:
esboça uma figura de prosa , mas com um gesto que
atesta a sua versatilidade. Neste mergulho de cabe ¬

ça sobre o abismo do sentido, a unidade puramente


sonora do verso transgride, com a sua medida , tam ¬

bém a sua identidade.


O enjãmbement traz, assim , à luz o andamento
originário, nem poético, nem prosaico, mas, por as ¬

sim dizer, bustrofédico da poesia, o essencial hibri ¬

dismo de todo o discurso humano. O testemunho


precoce do prosimetronA nos GathcP do Avesta ou
na satura6 latina confirma o car á cter n ão episódico
* Prosimetron: termo grego que designa a mistura de prosa e verso.
3 Gatha:termo do Avesia o livro sagrado da religião persa do merzHeís -
mo. Gatha significa literalmente “ canto ” , e designa cada um dos dezassete hi ¬
nos compostos pelo profeta Zaratustra.
6
Satura: termo latino que designa a composição literá ria em que se mis¬
turavam v á rios g éneros; mistura de prosa e verso.

32 33

/-
bre um tal cavalo que, adormecido durmen sus un —
Ideia da cesura

chivau , nas origens da poesia novilatina , Guilher
me de Aquitânia declara ter composto o seu vers\ e
¬

5
h á um certo ind ício do tenaz simbolismo desta ima ¬

gem , quando, no princípio do século, na obra de


Pascoli8 (e, mais tarde, no próprio Penna e em Del ¬

fini9 ) , o cavalo toma a forma mais descontraída de


uma bicicleta.
Talvez nenhuma poesia do século XX confie O elemento que faz parar o lance métrico da
conscientemente o seu ritmo ao travão da cesu
¬

tão voz, a cesura do verso, é, para o poeta , o pensamen


mes
ra como a de Sandro Penna . O poeta esgotou
¬
7 ¬

um tratamento to. Mas o lado exemplar do tratamento do proble ¬


mo , no breve espa ço de um dístico ,
ma em Sandro Penna reside no facto de o conteúdo
da cesura que se n ão encontra em nenhum tratado tem á tico do d ístico se espelhar perfeitamente na
de m étrica: sua estrutura m étrica: na cesura que parte o segun ¬

do verso em dois hemistiquios. O paralelismo entre i


Io vado verso il fiume su un cavallo
{
che quando io penso un poco un poco egli si erma
. sentido e metro é ainda reforçado pela repetição da
mesma palavra nas duas margens da cesura , quase
( Vou a caminho do rio num cavalo ,
logo dando à pausa a consistência épica de um intervalo
que quando eu penso um pouco um pouco 1

intemporal entre dois instantes, que suspende o


estaca. )
gesto a meio, num extravagante passo de ganso ( tal ¬
vez por isso, o poeta escreveu aqui um alexandrino,
O cavalo que transporta o poeta é , segundo verso duplo por excelência, cuja cesura é convencio-
de S.
uma antiga tradição exegé tica do Apocalipse nalmcnte definida como épica ) .
João, o elemento sonoro e vocal
Comentando o Apocalipse 19.11, onde se
da linguage
descreve
m.
_ _ _
Mas que se pensa afinal nesta cesura , que faz es _ ¬

tacar o cavalo do yerso ? Que coisa dá a ver esta inter


o logos como um cavaleiro “ fiel e veraz ” que
monta ¬

genes explica que o cavalo é rupçã o do transporte r ítmico do poema ? A isto res ¬
um cavalo branco, Or í
ponde Hõlderlin da maneira mais directa: “ O trans-
, que " cor
a voz, a palavra como enunciado sonoro ¬

gi
re com mais energia e velocidade que qualquer
¬

nete ” e que só o logos torna inteligível


e clara . É so - 8
Pascoli: Giovanni Pascoli (1855-1912 ) , poeta italiano cuja obra exer ¬
ceu sobre a poesia italiana do século XX uma influ ência t ão grande ou maior
que a de D’ Annunzio ou Carducci.
) italiano, com uma poesia de recorte
9 Delfini:
Antonio Delfini ( 1908 -1963), escritor humorístico e fantásti ¬
' Sandro Fenna ( 1906-1977 : poeta co, com tem á ticas de fundo provinciano.
clássico e grande musicalidade.

34 35

/ -
porte trágico é, de facto, verdadeiramente vazio , e o Ideia da vocação
mais livre. Por isso, na sucessão rítmica das repre¬
sentações, nas quais se evidencia o transporte, tor¬
na -se necessário aquilo a que, no metro, se chama
cesura, a palavra pura, a interrupção antirrítmica,
para contrastar, no seu clímax, com a mudança in -
cantatória das representações, de modo a trazer à
evidência, n ão já a altern ância da representação, A que coisa é fiel o poeta? A pergunta envolve
mas a própria representação. ” 10 certamente qualquer coisa que não pode ser fixada
O transporte rítmico, motor do lance do verso, é em proposições ou em profissões de fé memoriza ¬

o, é apenas transporte de si. E é esse vazio que, das. Mas como se pode conservar uma fidelidade
enquanto palavra pura, a cesura - por um instante— sem nunca a formular, nem sequer a si próprio? Ela
— pensa, suspende, enquanto o cavalo da poesia pá-
ra um pouco. Como escreve, em estilo latino, Rai¬
mundo Llull11 numa das suas peças: “ Cavalgando o
teria sempre de sair da mente no próprio instante
em que se afirma.
Um glossá rio medieval explica assim o sentido ;
seu palafrém , ia à Corte para ser armado cavaleiro e, do neologismo dementicare (esquecer), que tinha
enquanto ia andando, embalado pelo andamento da passado a ser usado para substituir o termo literário
cavalgadura, adormeceu. Mas, ao chegar a uma fon ¬ oblivisci: dementicastis: oblivioni tradidistis. Aquilo
\
te, o animal parou para beber; e o escudeiro, que no que se esqueceu não foi simplesmente anulado, pos¬
seno sentiu que o cavalo já não se movia, acordou de to de parte: foi consignado ao esquecimento. O es ¬
repente.” Aqui, o poeta adormecido sobre o cavalo quema desta informulá vel tradição foi exposto, na
j
acorda e contempla por um instante a inspiração que sua forma mais pura, por Hõlderlin quando, nas

mais.

o transporta - e o que pensa é a sua voz, e nada notas à tradu ção do Édipo de Sófocles, escreve que
o deus e o homem, “ para que não desapareça a me¬
mória dos olímpicos, comunicam na fornia, esque¬
cida de tudo, da infidelidade” .
10 A citação provém de "Anmerkungen zum Oedipus” (Anotações à A fidelidade àquilo que não pode ser tem atiza-
tradu ção do Édipo Rei de Sófocles), 1804. do, mas também n ão simplesmente silenciado, é
11 Raimundo Llull (ou Lúlio): filósofo, escritor e missionário, nascido
uma traição de natureza sagrada na qual a memó
depois de uma viagem de divulga ção da sua ars combinatoria
— —
em 1233 em Palma de Maiorca, onde terá morrido também em 1315 ou 1316

Lógica c a Teologia pelo Norte de África. O Lulismo teve, nos séculos


XV e XVI, uma forte presença em Portugal, particularmente na sua vertente
,
entre a ria, girando subitamente como um redemoinho,
descobre a frente de neve do esquecimento. Este
¬

-
mística. gesto, este abraço invertido da memória e do esque-

36 37

/-
\t
cimento, que conserva intacta , no seu centro, a Ideia do Único !

identidade do que é imemorial e inesquecível , é a


vocação.

Em 1961, Paul Celan deu a seguinte resposta a


um inqué rito do livreiro Flinker, de Paris, sobre o
problema do biling ü ismo:
“ Não acredito que haja biling ü ismo na poesia .

Falar com l íngua bífide isso sim , existe, também
em diversas artes ou artif ícios da palavra e dos nos ¬

sos dias, especialmente naqueles que, numa feliz


concord ância com o respectivo consumo cultural,
sabem estabelecer-se, de forma tanto poliglota co¬
mo polícroma .
Poesia —
essa é a inelut á vel «« zcidade da lín
gua . N ão é, portanto —
permitam -me este lugar co
¬

mum: a poesia , tal como a verdade , vê-se hoje fre ¬


quentemente na situa çã o de nã o ir dar a lugar ne ¬

nhum . , n ão é, portanto, a sua duplicidade.” ''
Num poeta judeu de língua alem ã , nascido e
crescido numa região, a Bucovina , onde se falavam
correntemente, além do yiddish , pelo menos mais
quatro línguas, uma resposta como esta n ã o podia
ser dada de â nimo leve. Quando , logo depois da
guerra, em Bucareste, os amigos, para convencê-lo
a tomar-se um poeta romeno ( e deste período con-

* In : P. Celan , Arte Poética. O Meridiano e Outros Textos. Trad , de João


Barrento e Vanessa Milheiro. Livros Cotovia 1996.

38 39

/-
'/
i
o O

servam-se poemas escritos em romeno), lhe recor ¬ ma; por isso os provençais conheciam um género
davam que não devia escrever na língua dos assassi
nos dos seus pais, mortos num campo nazi, Celan
¬ poético — —
o descort que atestava a realidade da
única língua ausente apenas através da babélica ¬
vo
respondia simplesmente: “ Só na língua materna se zearia dos múltiplos idiomas. A língua única não é
pode dizer a verdade. O poeta mente se usa uma uma língua. O Único, de que os homens participam
língua estrangeira. ” como da única possível verdade materna, isto é, co ¬
Que espécie de experiência e unicidade da lín ¬ mum , é sempre qualquer coisa dividida: no preciso
gua estava aqui em causa para o poeta ? Não era, instante em que alcan çam a palavra úniça, eles têm
por certo, simplesmente a de um monolinguismo de tomar partido, escolher uma língua. Do mesmo
que se serve da língua materna para excluir as ou¬ modo, nós, ao falarmos, podemos apenas dizer al¬
tras, mas situando-se no mesmo plano. O que estava
aí em jogo era antes aquela experiência que Dante
tinha em mente quando escrevia, sobre a fala mater ¬

guma coisa não podemos dizer unicamente a ver
dade, nem podemos dizer apenas que dizemos.
¬

Mas que o encontro com esta língua única, di ¬


na, que ela “ é una e única, sempre primeira na nossa vidida e de que não podemos participar, constitua,
mente ” . É, de facto, uma experiência da língua que neste sentido, um destino, eis uma confissão a que

pressupõe desde sempre palavras com as quais fa ¬
lamos, como se tivéssemos desde sempre palavras
só num momento de fraqueza um poeta pode ter
acedido. De facto, como poderia isso ser um desti¬
para a palavra, como se tivéssemos desde sempre no, se não existem ainda palavras com significa ção,
uma língua mesmo antes de a ter (a língua que fala ¬ se não existe ainda uma identidade da língua? E a
mos então já não é única, mas sempre dupla, tripla, quem se destinaria um tal destino, se nesse momen ¬
presa na série infinita das metalinguagens); e há uma to ainda não temos o dom da fala ? O infante
nunca
outra experiência na qual o homem, ao contrá rio, es¬ está tão intacto, distante e sem destino como quando
,
tá absolutamente sem palavras perante a linguagem. no nome, está sem paiavras frente à língua. O destino
I A língua para a qual não temos palavras, que não fin ¬ tem apenas a ver com a língua que, frente à infância
ge, como a língua gramatical, ser mesmo antes de ser, do mundo, jura poder encontrá -la e ter, desde sem ¬
mas que “ é única e primeira em toda a mente ” , é a pre, e para lá do nome, qualquer coisa a dizer dela
nossa língua, ou seja a língua da poesia. - e sobre ela.
Por isso Dante não buscava, no De Vuigari elo- Esta vã promessa de um sentido da língua é o
quentia, esta ou aquela língua materna escolhida na seu destino, ou seja, a sua gramática e a sua tradi¬
floresta de línguas vernáculas da península mas tão
, ção. O infante que, piedosamente, recolhe esta pro¬
somente aquele vulgar ilustre que, deixando em to ¬
messa e, mostrando embora a sua vanidade, se deci¬
das o seu perfume, não se confundia com nenhu ¬ de pela verdade, decide recordar-se desse vazio e

40 41

/-
aí, a língua Ideia do ditado12
preenchê lo, é o poeta. Mas, chegado a si própria
-
está diante dele tão só e abandonada
: pelo contrá
que já não se irnpõe de modo nenhumdo poeta Paul
¬

rio
—— e são ainda palavras, tardias
Celan , expõe-se, de um modo absoluto
ésie ne s’impose plus, elle s’
,
( “ La po-
expose” . Neste mo
) ¬

atingiu verdadeira
mento , a vanidade das palavras
¬

. Quando a poesia era uma pr á tica responsável,


mente o centro do coração pressupunha -se que o poeta estaria sempre em con ¬

dições de justificar o que havia escrito. Os prcven -


çais chamavam razo à exposiçã o desta fonte escon ¬

dida do canto , e Dante intimava o poeta , sob pena


de cair em vergonha , a saber “ abri-la em prosa ” .
Delfini, acrescentando em 1956 uma introdução
à segunda edição dos seus contos, escreveu para II n
cordo delia Basca (Recorda ção da Basca ) , a mais longa
razo que um poeta jamais imaginou para uma obra
sua. Mas, como era geralmente há bito entre os poetas
de amor, a razo pode aqui também enganar o leitor.
De facto, ela sugere imediatamente um encaminha ¬

mento no sentido da biografia do autor, biografia, na ¬

turalmente, inventada a partir da obra, mas que se ar¬


risca a ser tomada por verdadeira pelo leitor. A Basca,
transparente senhal da língua e do “ ditado” da sua poe ¬

sia, toma-se assim Isabel De Aranzadi, uma rapariga


conhecida durante um verão em Lerici, 20 anos antes.
12 O termo italiano dettato mantém , para além do significado de “ dita ¬

do", “ sentença", ainda um resto de sentido derivado de dictare, que no fim da


latinidade significava “ compor uma obra ” ( próximo do alem ão dichten: “ poe -
maiizar ” , construir a essê ncia do poético ). Expressões como “ obra ditada ”
( obra composta , escrita ) e “ bons ditadores ” ( bons escritores ) surgem ainda ,
neste sentido derivado de C ícero, por exemplo na “ Dedicat ória ” do Livro dos
Ofícios, de Cícero, traduzido pelo Infante D. Pedro em 1437 .

43
42

/-
como se sugeriu , a sua poética ) afirma o dualismo e a
La Basca é qualquer coisa de tão íntimo e pre
¬
i

diglossia que constituem para ele a experiência da


sente que em caso algum pode ser recordado
, e esta
( “ Gostaria que ela poesia: a memória e a imediatez, a letra e a voz, o
feliz impossibilidade de recordar pensamento e a presen ça. Entre uma impossibilidade
estivesse tão próxima de mim que nenhuma recorda ¬

de pensar ( “ eu n ão pensava , não pensava em ti: eu


ção, por mais voluntária que fosse, pudesse dar-
me
da nunca pensei em ti ” ) e um nã o poder mais que pen ¬
sequer uma imagem deia ” ) é c verdadeiro tema
sar, entre uma incapacidade de recordar na perfeição, ;
uma
narrativa , que, consequentemente, termina com amorosa adesã o ac presente, e a memória que surge
glossolalia , ou seja com o mito de uma língua na qual
o espírito se confunde
— imediatamente com a voz

pelo menos na aparência
. Á narrativa intitula -se,
a
precisamente na impossibilidade desse amor: eis os
eternos pólos de divisão do poema. E é este dilacera -
mento interior que constitui o “ ditado ” do poema.
5

no entanto , Ricordo delia Basca , para significar que Como Folquet de Marselha14, o poeta recorda no
escrita é a tentativa , desde logo votada ao fracasso ,
canto aquilo que, no canto, desejaria apenas esquecer,
de apreender esta proximidade imemorial ,
que se não pode manter à distância ( daí “ a trag
irremediável desta recordação” . De) resto ,
este

o
amor
édia
poema ,
ou ent ão

para sua felicidade
o que com ele queria recordar.

esquece no canto 5
t

de que a própria narrativa é a razo, não é, realmente , É por isto que a poesia lírica —
que se orienta \

uma glossolalia , mas uma copla em puríssima língua


apenas por um tal ditado ”
“ —
é necessariamente va
zia , está sempre na margem de um dia que há muito
¬

basca que, em tradu ção, termina com os seguintes


,
chegou ao crepúsculo: n ão tem , literalmente, nada a
versos: “ Quando enfim chego ao poema , / já o sono dizer ou a contar. Mas graças a essa paragem , sóbria e
te vai chegando; / como um sonho em tua noite
/ se ¬

extrema , da palavra poética nos seus começos, nasce


ja para ti o meu canto” . pela primeira vez, na recorda ção e na palavra, aquele
Contradizendo-se deste modo, Delfini faz um¬ espa ço do vivido que o narrador recolhe como maté¬
discreto aceno àquela outra basca da literatura italia ria da sua narrativa.
na do século XX, que provavelmente lhe serviu
de
de Dualis É por isso que os traços de Beatriz no livro da
modelo: Manuelita Etchegarrav, a crioula
¬

mem ória desenham uma “ vida nova ” ; é por isso


mo, nos Canti Orfici (Cantos Orfícos) de Dino Cam ¬
¬

pana15, cujo nome denuncia uma origem basca incon que a recorda çã o da Recorda çã o da Basca
sim que Delfini define a sua longuíssima razo
é as ¬
é
——
fundível. Contra a crença ingénua numa imediatez, uma autobiografia.
inerente à poesia, Campana (que com isto formula
u , internado de 1918
Di:to Campana (1855-1932): poeta louco e malditorficos foram reescri 14 Folquet (ou Folchetto) de Marselha : nascido na segunda metade do

até ao fim da vida num hospital psiquiá


trico. Os Cantos Ó ¬

século XIT , morre talvez em Toulouse em 1321. Figura importante na história


tos por Campana de memória , na sequê
ncia da peída do manuscrito original, da poesia provençal, e citado por Petrarca no seu Trionfo d' Amore, Canto III.
e publicados em 1914 em edição de autor .

45
44

/-
É certo que o pensamento, uma vez atingido o
Ideia da verdade limite do Quem?, deixa de ter objecto, chega à ex ¬

periência da ausência de objecto último. Mas isto


nã o é desconsolador, ou melhor, é-o apenas para
um pensamento que, tomando uma pergunta por
outra , continua a perguntar Quem? , lá onde não só »
já n ão h á respostas , como também n ão h á pergun ¬

tas. Verdadeiramente desconsolador seria o conhe ¬

Scholem escreveu um dia que há qualquer coisa cimento último ter ainda a forma da objectualida- »

de infinitamente desconsolador na doutrina da


au ¬

supremo , tal de. É precisamente a ausência de um objecto últi ¬

sência de objecto do conhecimento mo do conhecimento que nos salva da tristeza sem


corno é ensinada nas primeiras páginas do
Zohar ,e
mís remédio das coisas. Toda a verdade última formulá-
que constitui, de resto, a lição última de toda a
¬

vel num discurso objectivante, ainda que na aparên


tica. Nessas páginas, no limite extremo do conheci
¬
¬

O quê ? cia feliz, teria necessariamente um car ácter destinai


mento, aparece o pronome interrogativo cie condenação, de um ser condenado à verdade. A de- s
(Mah ), para lá do qual n ão h á já resposta poss ível:
ndo discer riva em dir-ecção a este definitivo fechamento da ver- j

“ Quando um homem interroga, procura


¬

, atinge dade é uma tendência presente em todas as línguas


nir e conhecer, grau após grau até ao último históricas, a que a filosofia e a poesia obstinada
quê? ¬

o Quê?, ou seja: Entendeste o quê? Viste o mente se opõem, e na qual encontram alimento, s
á
Buscaste o quê? Mas tudo continua tão impenetr
¬

e oculto é , no tanto o poder significante das linguagens humanas,


vel como ao princípio.” Mais íntimo
inter ¬ como a sua inelutável morte. A verdade, a abertura
entanto, segundo o Zohar, o outro pronome que, segundo um oros platónico, é própria da alma,
dos céus:
rogativo, que assinala o limite superior fixa-se, através da linguagem e na linguagem, num
interroga a
Quem? (Mi). Se o Quê? é a pergunta que último e imutável estado de coisas, num destino.
per¬
coisa (o quid da filosofia medieval), o Quem? é a Nietzsche tentou escapar a este pensamento pela s
gunta que se dirige ao nome: “ O impenetr
ável, o
?... ideia do eterno retomo, pelo sim dito ao instante
Antigo, criaram isso. E quem é isso? E o Quem mais atroz, quando a verdade parece fechar-se para
e indes -
Como é. a um tempo, objecto de pergunta
l á sempre num mundo de coisas. O eterno retomo é, de
Para
vend ável e fechado, chama-se-lhe Quem ?
facto, uma última coisa, mas ao mesmo tempo tam ¬

dele n ão h á mais perguntas... Existente e inexisten


¬

bém a impossibilidade de uma última coisa: a eterna


te, impenetrável e fechado no nome, nã
o tem outro
ser desvend ável, a repetição do fechamento da verdade num estado de
nome senão Quem?, aspira çã o a
coisas é, enquanto repetição, também a impossibili-
ser chamado por um nome.”
46
47

i
/-
dade desse fechamento. Na formulação insuperável Ideia da Musa
de Nietzsche, o amor fati, o amor do destino.
Este monstruoso compromisso entre destino e
mem ó ria , no qual aquilo que só pode ser cbjecto de
?
recorda ção ( o retorno do idêntico) é vivido todas as A

vezes como um destino, é a imagem distorcida da


verdade, que o nosso tempo não consegue dominar.
Porque a abertura da alma — a verdade — n ão se
abre sobre o abismo de um destino infinito, nem se
Heidegger dava o seu semin ário em Le
Thor
num jardim, à sombra de grandes árvores
fecha na eterna repeti ção de um estado de coisas, . Mas por
vezes saía-se da aldeia e ia-se na direc
mas , abrindo-se num nome, ilumina apenas a coisa ção de
Thouzon ou do Rebanquet , e ent ão o semin
c, fechando-se sobre ela, apreende ainda a sua pró ¬
zia-se em frente a uma cabana perdida no
ário fa-
pria aparência recorda -se do nome. Este dif ícil meio de
,
um olival. Um dia, quando o seminá rio chegav
cruzamento entre dom e memória, entre uma aber a ao
¬
fim e os discípulos, à volta do filósofo, lhe faziam
tura sem objecto e aquilo que nã o pode ser senão 'perguntas sem
fim , ele respondeu simplesmente:
objecto, é a verdade na qual, segundo o autor do “ Vocês podem reconhecer os meus limites, eu
Zohar, o justo encontra a sua morada: “ O Quenf ? é não ” .
Anos antes tinha escrito que a grandeza de
o limite superior do céu, o Quê? o limite inferior. um pen ¬
sador se mede pela fidelidade ao seu próprio
Jacob recebe-os a ambos em herança, foge de um li limite

¬
interior, e que não conhecer esse limite não o ¬
mite para outro , do limite inicial Quem? para o li co
nhecer devido à sua proximidade do indizível

¬

mite final Quê?, e mantém -se no meio.” o dom secreto, e raro, do ser. é
Que uma latência se mantenha para que
possa
haver não-latência , que um esquecimento seja ¬
pre
servado para que possa haver memória: é isto a ¬
ins
piração, o transporte suscitado pela musa
, que põe
o homem em harmonia com a palavra
e o pensa-
mento. O pensamento só est á próximo
da coisa se
se perder na sua latência, se deixar de ver
a
Esta é a sua natureza de coisa “ ditada ” : a dialécoisa .
ctica
latência/não-latência, esquecimento/memó
ria é a
condição que permite que a palavra possa
aconte¬
cer, e n ão apenas ser manipulada por
um sujeito.
48
49

/ -
( Eu n ão posso, evidentemente, inspirar- me a mim Ideia do amor
mesmo ) .
Mas esta latência é também o n ú cleo tartá rico em
volta do qual se adensa a obscuridade do carácter e
do destino , o não-dito que, agigantando-se no pensa ¬
mento, o precipita na loucura. Aquilo que o mestre
n ã o vê é a sua própria verdade: o seu limite é o seu
princípio. Não vista , não exposta , a verdade entra no Viver na intimidade de um ser estranho , n ão
seu ocaso, fecha -se no seu próprio amanthisP para nos aproximarmos dele, para o dar a
“ É concebível que um filósofo caia nesta ou na conhecer,
¬
mas para o manter estranho, distante, e mesmo ina
quela forma de aparente incoerência , por amor des
te ou daquele compromisso: ele pr ó prio pode estar
consciente disso. Mas aquilo de que ele não tem
¬

parente
— t ão inaparente que o seu nome o possa
conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal - ¬
tar, dia após dia n ão ser mais que o lugar sempre
es
-

consciência é que a possibilidade deste aparente aberto, a luz inesgotável na qual esse ser ú nico, essa
compromisso tem a sua raiz mais funda numa insufi ¬

coisa, permanece para sempre exposta e murada.


ciente exposição do seu princípio. Se, portanto, um
filósofo recorreu realmente a um compromisso, os
seus discípulos devem explicar a partir do mais ínti ¬

mo e essencial conteúdo da sua consciência aquilo


que, para ele pró prio, tomou a forma de uma consci ¬

ência exoté rica . ”


A insuficiente exposição do princípio constitui
este em limite do que é dado pela musa, em inspira ¬

ção. Mas, para poder escrever, para poder tornar-se


também inspiração para nós , o mestre teve de aba ¬

far a sua inspiração, teve de a esgotar: o poeta ins-


pii ado é um poeta sem obra. Este rasurar da inspi ¬

ra çã o, que arranca o pensamento ao reino das som ¬

bras do seu ocaso, é a exposição da Musa: a ideia.

15 Amanthis: nome que os antigos Egípcios davam ao lugar de perma ¬

nê ncia das almas.

50 51

t
/-
Â
Ideia do estudo No legado do judaísmo conta-se, assim, tam ¬
bém esta polaridade soteriológica do estudo, pró ¬

pria de uma religião que não celebra o seu culto,


mas dele faz objecto de estudo. A figura do doutor
ou do letrado, respeitada em todas as tradições, ad - !
quire assim uma significação messiânica desconhe¬
cida no mundo pagão: uma vez que, na sua busca , é
Talmud significa estudo. Durante o exílio em a redenção que est á em jogo, ela confundç-se com a
Babilónia, os Judeus, que já não podiam celebrar os do justo, com a sua pretensão de salvação.
sacrifícios, uma vez que o Templo tinha sido des ¬
Mas, ao mesmo tempo, ela é atravessada por ten ¬

truído, confiaram a preservação da sua identidade sões contraditórias. O estudo, de facto, é em si mes ¬
ao estudo do culto, em vez de ao próprio culto. mo interminável. Quem conheça as longas horas de
Aliás, Tora n ão significava , nas origens , Lei , mas vagabundagem entre os livros , quando qualquer
doutrina , e o próprio termo Mishnah , que designa ¬ fragmento, qualquer código, qualquer inicial prome- 3
va a compilação das leis rabínicas, derivava de uma te abrir uma via nova, logo abandonada em favor de
raiz cujo sentido era antes de mais o de “ repetir ” . uma nova descoberta, ou quem quer que tenha co ¬

Quando o édito de Ciro autorizou os Judeus a re¬ nhecido a impressão ilusória e labiríntica daquela
gressar à Palestina , o Templo foi reconstruído; mas “ lei da boa vizinhan ça ” a que Warburg16 submeteu a
a religião de Israel ficou para sempre marcada pela organização da sua biblioteca , sabe bem que o estu ¬
piedade do exílio. Ao Templo único, onde se cele ¬ do não só não pode ter fim, como também o não
brava o sacrifício solene e de sangue, vieram juntar ¬ quer ter.
se numerosas sinagogas, simples lugares de reunião A etimologia da palavra studium torna-se então
e de oração, e o poder dos sacerdotes viu -se reduzi ¬
transparente. Ela remonta a uma raiz st- ou sp- , que
do pela crescente influência dos fariseus e dos sá ¬
designa o embate, o choque. Estudo e espanto ( stu-
bios das Escrituras, homens do estudo e do livro.
No ano 70 d.C. as legiões romanas voltaram a
-
diare e stupiré) são, pois, aparentados neste sentido:
aquele que estuda encontra -se no estado de quem
destruir o Templo. Mas o douto rabino Joannah ben - '
recebeu um choque e fica estupefacto diante daqui ¬
-Zakkaj, fugido secretamente da Jerusalém assediada, lo que o tocou, incapaz, tanto de levar as coisas até
obteve de Vespasiano autorização para continuar o ao fim, como de se libertar delas. Aquele que estu -
ensino da Tora na cidade de Jamnia. Desde entã o o
Templo não foi reconstruído, e o estudo, o Talmud , “ Warburg' o historiador da arte e coleccionador judeu-alemão Aby War¬
burg (1866-1929), cuja obra se ocupa das influências da Antiguidade em v á rios
tomou -se assim o verdadeiro templo de Israel. dom ínios da cultura europeia moderna .

52 53

/- t
perpétuo adiamento do acto como a melancholia phi- ,
da fica , portanto , sempre um pouco estúpido, ata
¬

rantado. Mas, se por um lado ele fica assim perple ¬ lologica que Pasquali , sob pretexto de a ido bus- ter ¿

car ao testamento de Mommsen 17, transformou em


xo e absorto se o estudo é cssencialmente sofri
¬
,

símbolo enigm ático da exist ência do letrado.


mento e paix ão, por outro lado, a heran ça messiâ ni
¬ ¡

ca que ele traz consigo incita -o incessantemente a


O fim do estudo pode eventualmente nunca ser
prosseguir e concluir. Esta festina lente , esta alter
¬

alcan çado e , neste caso, a obra ficar á para sem ¬

n â ncia de estupefacção e de lucidez, de descoberta


pre em estado de fragmento, de fichas , ou ent ã o
pode coincidir com o instante da morte, no qual

e de perda , de paixão e de acção constituem o rit
¬

aquilo que parecia uma obra acabada se fevela co ¬


mo do estudo.
Nada se assemelha mais a isso do que aquele mo simples estudo. É o caso de S. Tom ás, que, pou ¬

estado que Aristóteles, opondo-o ao acto, designa co antes de morrer, se abre em segredo com o seu
de “ potê ncia ” . A pot ê ncia é , por um lado, potentia amigo Rinaldo: “ os meus escritos est ã o a chegar ao
passiva, passividade, paixão pura e virrualmente in
¬ fim , porque agora me foram reveladas coisas em re- ;

finita , e por outro lado potentia activa , tensã o irre ¬ lação com as quais tudo o que escrevi e ensinei me
parece sem import â ncia. E espero n ã o sobreviver i
dutível em direcção à conclusão, passagem ao acto.
É por isso que Fílon compara a sabedoria realizada muito tempo ao fim da doutrina. ” i
Mas a mais extrema e exemplar incarna ção do
com Sara, que , sabendo-se esté ril, instiga Abra ã o a
unir-se à sua serva Hagar, isto é ao estudo, para po
¬ estudo na nossa cultura n ão é, nem a do grande fi- ;

der gerar um filho. Mas, uma vez fecundado, o estu ¬ lólogo, nem a do doutor da Lei. É antes a do estu - ,
do é de novo confiado a Sara , que é a Mja patro!n)a. dante, tal como ele aparece em certos romances de ;

E r ão é por acaso que Plat ão, na Carta Sétima , se Kafka ou de Walser18. O modelo destes é o do estu - :

serve de um verbo da mesma família de estudar dante de Melville, que passa a vida numa mansarda ,
(ojtouòd co ) , para referir a sua rela ção com aquilo baixa “ em tudo semelhante a um t ú mulo ” , os coto ¬

^
que mais preza: é apenas após um longo período de velos apoiados nos joelhos e a cabeça entre as m ãos.
E a sua figura mais acabada é a de Bartleby, o escri
convivência sé ria com os nomes, as definições e os
¬

tor que deixou de escrever. Neste caso, a tensão


conhecimentos que se produz na alma a centelha
que , inflamando-a , marca a passagem da paixão à 11
Mommsen: o historiador e jurista alemão Theodor Mommsen ( 1817-
realização. -1903), autor de uma monumental e influente História de Roma, em 5 volumes.
É isto que contribui para explicar a tristeza do 18
-
Walser. o romancista e prosador suíço Robert Walser (1878 1956 ), cuja
obra narrativa mais original é constituída pelas suas pequenas histórias em pro- \
letrado: nada é mais amargo que uma permanência sa ( “ microgramas ” ) , que revelam afinidades com obras como as de Kafka,
prolongada na esfera da potência . E nada mostra tã o Walter Benjamin e Bernardo Soares (O Livro do Dessassossego ). Walser passou 1

bem a inconsol á vel tristeza que pode nascer deste os ú ltimos 27 anos de vida num asilo, sem escrever.

54 ^5
i
> ró-
messiâ nica do estudo foi invertida , ou antes, está dez;
Ideia do imemorial rna
para lá de si mesma . O seu gesto é o de uma pot ê n ¬

cia que n ã o precede o seu acto, mas se lhe segue e o cia ,


i SÍ J
deixou para todo sempre atrás de si: é o gesto de
um Talmud que n ã o só renunciou à reconstru ção
do Templo, mas pura e simplesmente o esqueceu .
Deste modo, o estudo liberta -se da tristeza que o
desfigurava , para regressar à sua verdadeira nature ¬
Quando acordamos sabemos por vezes que vi ¬

za: n ão a obra , mas a inspira ção, a alma que se ali


¬
mos em sonhos a verdade, clara e ao alcance da .
menta de si pró pria . m ão , de tal modo que ficamos totalmente domina ¬

dos por ela . Umas vezes é - nos dado ver uma escrita
cujo selo subitamente quebrado nos fornece o se ¬

gredo da nossa exist ência. Outras vezes , uma só pa ¬

lavra , acompanhada de um gesto imperioso, ou re ¬

petida numa lenga -lenga infantil, ilumina como um


rel â mpago toda uma paisagem de sombras , devol ¬

vendo a todos os pormenores a sua forma reencon ¬

trada , definitiva .
No despertar, porém , embora nos recordemos ,
de forma límpida , de todas as imagens do sonho,
aquela escrita e aquela palavra perderam a sua força
de verdade, e é com tristeza que as voltamos de to ¬

dos os lados, sem conseguir redescobrir-lhes o en ¬


canto. Temos o sonho, mas, inexplicavelmente, falta ¬
mos a sua essência, que ficou sepultada naquela terra
à qual, uma vez despertados, deixámos de ter acesso.
Raramente temos tempo de observar aquilo
que devia ser perfeitamente evidente: que confia ¬

mos em vã o a um outro tempo e a um outro lugar o


segredo do sonho. Só no momento do despertar,
quando nos vem como um lampejo, o sonho existe
para nós na sua inteireza. A recorda çã o que o so-

56 57

/-

nho nos concedeu é a mesma que nos faz ver o va ¬ Assim, a promessa que o sonho formula no pró ¬
zio que aflige: as duas est ão contidas num e no mes ¬
prio momento em que se dissipa é a de uma
mo gesto.
lucidez
tão poderosa que nos entrega à distracção, de
A memória involunt á ria proporciona uma ex uma
¬
palavra tão completa que nos reenvia para a infância ,
periência an áloga . Nela , a recorda ção que nos de ¬ de uma razão t ão soberana que se compreende a si
volve a coisa esquecida esquece- se também dela , e mesma como incompreensível.
este esquecimento é a sua luz . Daí, por ém , vem a
nostalgia que a anima: h á uma nota elegíaca que vi ¬
bra t ão tenazmente no fundo de toda a memória
humana que, no limite, a recordação que n áo recor ¬
da nada é a mais poderosa das recorda ções.
Em vez de ver nesta aporia do sonho e da recor ¬
da ção uma limitação e uma fraqueza , devemos, pelo
contrá rio, tom á -la por aquilo que ela é: uma profecia
que tem a ver com a própria estrutura da consciên ¬

cia. Não é aquilo que vivemos e depois esquecemos


que regressa , na sua imperfeição, à consciência; so ¬

mos antes n ós que acedemos ent ão a qualquer coisa


que nunca foi, ao esquecimento como parte da cons ¬

ciência. É por isso que a nossa felicidade est á im ¬

pregnada de nostalgia: a consciência contém em si o


presságio da inconsciência, e esse presságio é preci ¬

samente a condição da sua perfeição. Isto significa


que toda a atenção tende, em última instância, para
uma distracção e que, no seu limite extremo, o pen ¬

samento não é mais que um estremecimento. Sonho


e recordação mergulham a vida no sangue de dragão
da palavra e, deste modo, tornam -na invulnerá vel à
memória. O imemorial, que se precipita de memória
em memó ria sem nunca chegar à recordação, é ver ¬
dadeiramente inesquecível. Este esquecimento ines ¬

quecível é a linguagem , é a palavra humana.

58
Ideia do poder

A.
ê
Talvez só no prazer as duas categorias inventa ¬

das pelo génio de Arist óteles , a potência e o acto,


percam a sua opacidade, entretanto transformada
em estereótipo, para , por um instante, se tornarem
â transparentes. O prazer — pode ler -se no tratado
que o filósofo dedicou ao seu filho Nicómaco
aquilo cuja forma é completa em cada instante, per
— é
*li ¬

petuamente em acto. Desta definiçã o resulta que a


1 pot ência é o contr á rio do prazer. Ela é aquilo que
nunca est á em acto, que sempre falha o seu objecti -
III!
m
vo, em suma , é a dor. E se o prazer, de acordo com
esta defini çã o, nunca se desenrola no tempo, j á a po ¬

m tência se inscreve essencialmente na dura çã o. Estas


« considera ções permitem lan çar luz sobre as rela ções
secretas que ligam o poder à pot ência. A dor da po ¬

t ência. desvanece-se, de facto, no momento em que


à
'
rXíra
-
.l

eia passa a acto. Mas existem por toda a parte
tamb ém dentro de nós — forças que obrigam a

J pot ência a permanecer em si mesma. É sobre
for ças que repousa o poder: ele é o isolamento da
estas

pot ê ncia em rela çã o ao seu acto, a organiza ção da


potência. Apropriando-se da sua dor, o poder funda ¬

2fy
menta sobre ela a sua própria autoridade: e deixa
literalmente incompleto o prazer dos homens.
Mas aquilo que assim se perde não é tanto o
prazer como o pró prio sentido da potência e da sua

63

/
J
s
der. Tomando-se intermin á vel, esta cai sob a alçada Ideia do comunismo
do sonho e gera , para si própria e para o prazer, os
mais monstruosos equ ívocos. Pervertendo a justa
rela ção entre os meios e os fins, a busca e a formu ¬

la ção, confunde o cú mulo da dor


cia—
— a omnipot ên
com a maior das perfeições . Mas o prazer só
¬

I é humano e inocente enquanto fim da pot ê ncia , en -


i quanto impot ência ; e a dor só é aceit á vel enquanto Na pornografia , a utopia de uma sociedade sem
tensã o que obscuramente prenuncia a sua crise, o classes manifesta -se através do exagero . caricatural
ju ízo resolutivo. Na obra , como no prazer, o ser hu ¬ dos tra ços que distinguem essas classes e da sua
mano desfruta enfim da sua própria impotê ncia . transfigura ção na rela ção sexual . Em nenhum outro
contexto , nem sequer nas m áscaras de carnaval, se
insiste com tanta obstina ção nas marcas de classe
da indument á ria , no próprio momento em que a si -
' tua çã o leva à sua transgressã o e anula ção, da forma
mais despropositada . As toucas e os aventais das
criadas de quarto, o fato- macaco dos oper á rios, as
luvas brancas e os galões do mordomo, e mesmo,
mais recentemente , as batas e as m áscaras das en ¬

fermeiras, celebram a sua apoteose no instante em


que, estendidos como estranhos amuletos sobre
corpos nus indestrinçavelmente enroscados uns nos
outros, parecem anunciar, com um toque estridente
de trombeta , aquele último dia em que eles ter ão de
apresentar-se como sinais de uma comunidade ain ¬

da n ão anunciada.
Só no mundo antigo se encontra qualquer coisa
de semelhante a isto, na representa ção das relações
amorosas entre deuses e homens, que constituem
uma fonte inesgot ável de inspiração para a arte
clássica na sua fase final. Na união sexual com o
deus , o mortal, vencido e feliz , anulava de um golpe

64 65

/-
a infinita distâ ncia que o separava dos imortais; nunca qualquer coisa de já dado. O naturismo, que
mas, ao mesmo tempo, esta distâ ncia restabelecia - leva a tirar a roupa, é desde sempre o adversá rio mais
-se , ainda que invertida , nas metamorfoses da divin ¬
aguerrido da pornografia ; c do mesmo modo que um
dade em animais. O meigo focinho do touro que filme pornográfico sem acontecimento sexual não
rapta Europa , o bico sagaz do cisne inclinado sobre teria sentido, também dificilmente se poderia quali¬
o rosto de Leda , sã o sinais de uma promiscuidade ficar de pornográ fica a exibição pura e simples do
t ão íntima e tã o heroica que se nos torna , pelo me ¬
sexo no ser humano.
nos durante algum tempo, insuport ável. Mostrar o potencial de felicidade presente na
mais insignificante situa çã o quotidiana é em qual ¬

Se procurarmos o conteú do de verdade da por ¬


quer forma de socialidade humana: essa é a eterna
nografia , imediatemente ela nos mete diante dos razã o polí tica da pornografia. Mas o seu conteú do
olhos a sua ingénua e simplista pretensão de felicida ¬
de verdade, que a coloca nos ant ípodas dos corpos
de. A caracter ística essencial desta última é a de ser nus que enchem a arte monumental do Fim -de -sé -
exigível a qualquer momento e em qualquer ocasião: culo, é que ela não eleva o quotidiano ao n ível do
qualquer que seja a situação de despedida, ela tem cé u eterno do prazer, mas exibe antes o irremediá ¬
infalivelmente de acabar com a rela ção sexual. Um vel car ácter episódico de todo o prazer, a íntima di ¬

filme pornográfico no qual, por um qualquer contra ¬


gressão de todo o universal. Por isso, só na repre ¬
tempo, isto não acontecesse, seria uma obra - prima , senta ção do prazer feminino, cuja expressã o é visí ¬
mas n ã o seria um filme pornográ fico. O strip-tease é, vel apenas no rosto , ela esgota a sua inten çã o.
neste sentido, o modelo de toda a intriga pornográfi ¬

ca: no início temos sempre e apenas pessoas vestidas, Que diriam os personagens do filme pornográ ¬

numa determinada situa ção , e o único espaço deixa ¬


fico que estamos vendo se pudessem , por seu tur ¬

do ao imprevisto é o d ò modo como, no fim , elas no , ser espectadores da nossa vida ? Os nossos so
-—
¬

têm de reencontrar-se, agora sem roupa. ( Nisto, a nhos n ão podem ver-nos e esta é a tragédia da
pornografia recupera o gesto rigoroso da grande lite¬
ratura clássica: n ão pode haver espaço para surpre ¬
utopia . A confusão entre personagem e leitor
boa regra de toda a leitura — deveria funcionar

sas, e o talento manifesta -se nas imperceptíveis varia
¬
també m aqui. Acontece, porém , que o importante
ções sobre o mesmo tema m ítico). E com isto puse ¬
n ã o é tanto aprender a viver os nossos sonhos , mas
mos a nu também a segunda característica essencial sim que eles aprendam a ler a nossa vida.
da pornografia: a felicidade que ela exibe é sempre
circunstancial, é sempre uma história e uma ocasião “ Um dia se mostrará que o mundo já h á muito
que se aproveitam , mas nunca uma condi ção natural, tempo que possui o sonho de uma coisa , da qual

66 67

/

apenas precisa de ter consciência para a possuir Ideia da política
verdadeiramente ” 19. Certamente que sim mas,
como se possuem os sonhos , onde é que est ão guar
— ¬

dados ? Porque aqui não se trata , naturalmente, de S


realizar alguma coisa . Nada é mais entediante do
que um homem que tenha realizado os seus sonhos:
é o zelo social - democrá tico e sem gosto da porno ¬

grafia. Mas tão- pouco se trata de guardar em câ ma ¬


Segundo a teologia , o castigo mais severo em
ras de alabastro , intocáveis e coroados de rosas e que pode incorrer urna criatura, aqüele contra o
jasmim , ideais que, ao tornar-se coisas, se quebrari ¬
qual n ão h á mesmo mais nada a fazer, n ão é a cóle¬

am: esse é o secreto cinismo do sonhador. ra de Deus, inas o seu esquecimento. De facto , a
Roberto Bazlen20 dizia : aquilo que sonh á mos é Sua cólera tem a mesma natureza que a Sua miseri - ;
qualquer coisa que já tivemos. Há tanto tempo, que córdia: mas quando a nossa falta ultrapassa os limi¬

já n ão nos recordamos disso. Não num passado, tes , até a cólera de Deus nos abandona . “ Esse é o
portanto —
já lhe perdemos os registos. Os sonhos
e os desejos não realizados da humanidade são an ¬
momento terrível ” , escreve Orígenes, “ o momento
extremo em que já n ão somos punidos pelos nossos
;

tes os membros pacientes da ressurrei çã o, sempre a pecados. Quando ultrapassamos a medida do mal,
ponto de despertar no dia final. E n ão dormem fe ¬
o Deus enciumado esquece todo o seu zelo em rela -
!
chados em preciosos mausoléus, mas est ão prega ¬ ção a nós: ‘O meu ci ú me abandonar-te-á’, diz Ele,
dos, como astros vivos, ao céu remotíssimo da lin ¬
‘e já não ficarei irado por tua causa .” ’
guagem , cujas constela ções mal conseguimos deci ¬
Este abandono, este esquecimento divino, é,

frar. E isso pelo menos isso n ão o sonh á mos.
Ser capaz de apanhar as estrelas que, como lágri
— ¬
para . lá de todo o castigo, a mais refinada das vin ¬
ganças, aquela que o crente teme por ser a única ir ¬
mas, caem do firmamento jamais sonhado da hu ¬
reparável , e face à qual o seu pensamento recua,

manidade essa é a tarefa do comunismo. aterrado: de facto, como será possível pensar aquilo
de que a própria omnisciência divina já não sabe
19A citação vem de uma conhecida carta de Marx a A. Ruge, nos anos
40 do século passado, na qual se lê: "O mundo h á muito que est á de posse do nada , aquilo que foi apagado para todo o sempre
sonho de uma coisa da qual apenas precisa de ter consciência para a possuir da mem ória de Deus? Daquele que é vítima deste
realmente” .
20
Roberto Bazlen (1902 -196? ): escritor triestino, filho de pai alemão e abandono diz George Bernanos que ele está , “ nem
m ãe italiana , descobre í talo Svevo e manté m uma importante troca de corres absolvido nem condenado note-se, mas perdido ” .
,
pondência com o poeta Eugenio Montale. Autor de textos deliberadamente
fragmentarios , reunidos ( par? al ém do texto maior O Capitão de Longo Existe, no entanto, um caso, um único, em que
Curso ) no conjunto Notas sem Texto. esta condição deixa de ser infeliz e alcança uma fe -

68 69
licidade muito particular é o das crianças n ão bap ¬
,
cam , irremediavelmente perdidos, no abandono di ¬
tizadas que morreram sem pecado, a não ser o ori ¬
vino: não foi Deus que os esqueceu , são eles que
ginal , e que permanecem eternamente no limbo, na desde sempre já O esqueceram, e o esquecimento
companhia dos loucos e dos pagãos que tenham si ¬ divino nada pode fazer contra o seu esquecimento.
do justos. Mitissima est poena puerorum, qui cum Nem bem - aventurados como os eleitos, nem deses ¬

solo originali decedunt 21 . O castigo do limbo , desta perados como os condenados, carregam uma espe ¬
eterna margem dos infernos , n ão é , segundo os teó ¬
rança sem saída possível.
logos, urna pena aflitiva , não condena ao tormento Esta natureza própria do limbo é a de Bartleby,
e as chamas: é apenas urna pena privativa , que con ¬
a mais antitrágica das figuras de Melville (ainda
siste na perpétua carencia da visão de Deus. Mas, que, aos olhos dos homens, nada pareça mais deso

¬
contrariamente aos condenados , os habitantes do lador que o seu destino) e está aí a raiz, impossí¬
limbo n ão sofrem desta carencia: uma vez que ape ¬
vel de arrancar, daquele “ preferia não ” , contra o
nas detêm o conhecimento natural, e não o conhe ¬ qual se desfaz, simultaneamente com a razão divi ¬
cimento sobrenatural que nos foi dado pelo baptis- na, toda a razão humana.
mo, n ão sabem que são privados do bem supremo,
ou , se o sabem ( como admite uma outra opinião) ,
não podem sofrer um desespero superior ao de um
homem sensato que se afligisse por não poder voar.
( De facto, se sofressem com isso, e dado que sofre ¬
riam por uma falta de que se não podem penitenciar,
a sua dor acabaria por levá -los ao desespero, como
acontece aos condenados, o que n ã o seria justo.)
Para além disso, os seus corpos sãc insensíveis como
os dos bem-aventurados, mas unicamente no que se
refere à justiça divina; quanto ao resto, desfrutam
perfeitamente da sua perfeição natural.

O maior castigo a carência da visão de Deus
— transforma-se assim em alegria natural: eles n ão
sabem , nunca saberão, nada de Deus. E assim fi-

2 J Tradu o da frase latina: “ Suav íssimo é o castigo


çã das crianças que
morreram apenas com o pecado original ” .

70 71

/
Ideia da justi ça como um discurso que se poderia silenciar ou di ¬

vulgar, mas como uma voz, não como um testamen ¬


to aut ógrafo, mas como um gesto anunciador ou
uma voca ção. Neste sentido, a mais antiga tradi ção
humana n ão é Logos, mas Dike22 (ou melhor, os
a Carlo Bctoccbi dois são, em princípio, indissociáveis ). A lingua ¬

gem , enquanto mem ória hist órica consciente , mais


Que pretende o Esquecido? N ão memória nem n ão é que o desespero que nos vem do confronto
conhecimento, mas justiça. A justi ça em que ele se com as dificuldades da tradi ção. Ao - julgarem que
fia, porém , pelo facto de ser justi ça n ão pode fazê- transmitem uma língua , os homens d ão-se de facto
lo aceder ao nome e à consciência ; a sua decisão reciprocamente uma voz; e, ao falarem , entregam -se
implacá vel exerce-se apenas , como puni ção, sobre sem remissão à justiça.
os esquecidos e os carrascos — do Esquecido nada
diz ( a justi ça n ã o é vingan ça , n ão tem nada a rcvin -
dicar ). Nem poderia fazê-lo sem trair aquilo que se
entregou nas suas m ãos , n ã o para ser entregue à
mem ória e à língua , mas para permanecer imemor á ¬

vel e sem nome. A justiça é, assim, a tradição do Es ¬

quecido. Mais essencial que a transmissão da mem ó¬


ria é de facto, para o homem , a transmissã o do es ¬
quecimento, cuja acumula ção anónima lhe recai dia
a dia sobre os ombros , inapagável e sem ref úgio.
Para todos os homens, e, por maioria de razões, pa ¬
ra todas as sociedades, esta acumulação é de tal
modo que nem o mais perfeito dos arquivos teria
capacidade para uma pequena parcela que fosse
( por isso é falaciosa toda a tentativa de construir a
Histó ria como um tribunal ).
E no entanto essa é a única herança que cada
homem infalivelmente recebe. Furtando-se à língua
dos signos e à mem ó ria , o Esquecido faz nascer a
justiça , para o homem e unicamente para ele. Nã o Dike ( Dik ): o conceito órfico grego para a Justiça e o direito.
22

72 73
Ideia da paz A verdade, porém , é que n ão há, n ão pode haver
nisso sinal de paz, porque a verdadeira paz só pode ¬

ria verificar-se no momento em que todos os sinais se


consumassem e esgotassem. Toda a luta entre os ho ¬

mens é, de facto, uma luta pelo reconhecimento, e a


paz que se segue a essa luta é apenas uma convenção
que institui os sinais e as condições desse m ú tuo e
Desde que a reforma da liturgia reintroduziu na precá rio reconhecimento. Uma tal paz é sempre e
missa o sinal da paz trocado entre os fiéis , verifi - apenas paz das na ções e do direito, ficção de reco¬
cou -se, n ão sem algum mal-estar, que estes ingenua ¬ nhecimento de uma identidade na linguagem, que
mente ignoravam completamente que sinal poderia provém da guerra e acabará na guerra.
ser esse, e que, n ã o o sabendo , após alguns instan¬ Não o reclamar-se de sinais e de imagens garan ¬
tes de perplexidade, recorriam ao ú nico gesto que tidos, mas sim o facto de não podermos reconhecer¬
lhes era familiar e, sem muita convicção, aperta ¬ mos em qualquer sinal cu imagem: é isso a paz. Ou,
vam -se as m ãos. O seu gesto de paz era , pois, aque¬
se quisermos, aquela alegiia que é mais antiga que a
le mesmo que , nos negócios dos camponeses nas paz e que uma admirável parábola franciscana define
feiras e mercados , fechava o acordo. como uma permanência — nocturna , paciente, de¬

O termo para paz indicava , na sua origem, um


pacto, uma conven ção, e isso estava no seu próprio
senraizada — no não-reconhccimento. Ela é o céu
totalmente vazio da humanidade, a exposição da ina-
étimo. Mas o termo que, para os Latinos, designava a parência como ú nica pá tria dos homens.
situação saída desse acordo, n ão era pax, mas sim oti-
um, cujas incertas correspondências nas línguas in-
do-europeias (grego aiíoioç , vazio, awoç, em vão;
gótico aupéis, vazio; islandés aud , deserto) conver ¬
gem todas para o campo semântico do vazio e da au ¬

sência de finalidade. Um gesto de paz só podia ser


então um gesto puro, com o qual não se pretende di¬
zer nada, que mostra a inactividade e a vacuidade da
mão. E é esse, de facto, entre muitos povos, o gesto
da saudação; e é talvez apenas porque o aperto de
m ão se tornou hoje apenas uma simples forma de
saudar o outro, que os fiéis , ao apelo do sacerdote,
recorrem a esse gesto incaracterístico.
74 75

/-
imundície nunca pode ser mítica: Hércules limpa os
Ideia da vergonha está bulos de Áugias sem qualquer nojo , submetendo
as forças naturais à sua vontade, enquanto que nós
não conseguimos livrar-nos completamente da nossa
imundície, à qual se cola sempre um resíduo mitoló ¬

gico). Curiosamente, deparamos com ela naquela


passagem do Parménides em que o jovem Sócrates
expõe ao filósofo de Eleia a teoria das ideias. À per
I. O homem antigo não conhece o sentimento de
¬

, e em gunta de Parménides sobre se existem ideias “ dos


miséria e contingência que, aos nossos olhos cabelos, da imundície, da lama e de outras coisas de
ura
última instância, retira toda a grandeza à desvent natureza baixa e nojentas em último grau ” , Sócrates
humana . É certo que , para ele , a alegria pode trans ¬

confessa que se apossa dele uma vertigem: “ Já uma


formarse num instante, enquanto hPpiç, na
mais
ao dar - se isso vez me atoimentou a ideia de que isso pudesse pro¬
amarga desilusão , mas é precisamente pagar-se a todo ó universo. Mas, assim que me entre-
, gra ças à sua
que o trágico intervém , para impedir 'go a este pensamento, fujo-lhe logo, com medo de
. Tr á gico ,e
cbjecção heroica, toda a possível miséria me perder, precipitando-me num abismo de estultí¬
antigo face
não mesquinho, é o naufrágio do homem cia...” Mas isto só dura um instante: “ É porque és
infelici dade nem a sua feli
ao seu destino: nem a sua
¬

de tacanhe z . É verda ainda muito novo ” , replica Parménides, “ e a filosofia


cidade revelam qualquer sinal
¬

se mostra do seu ainda n ão tomou conta de ti como prevejo que acon¬


de que na comédia a culpa trágica tecerá um dia, quando já n ão estiveres relutante em
lado ridículo: e apesar disso, esse mundo abando na ¬

de relação a nenhuma dessas coisas ” .


do pelos deuses e pelos heróis n ão é um mundo É importante que seja um problema metafísico
um ho
miséria , mas sim de graça: “ Que graça tem
¬

“ quando é (em última an álise, teológico) a desencadear para o


mem", diz um personagem de Menan dro ,
pensamento, ainda que só por um instante, a verti¬
verdadeiramente humano!” .
Não é na comédia, mas na filosofia, que encon
e único sinal de
¬

gem da miséria. O próprio Deus o mundo hiperu-
raniano das ideias, modelo que serviu ao demiurgo
tramos no mundo antigo o primeiro
um sentimento que podemos, sem exagero 23
, aproxi ¬ —
para criar o mundo sensível mostra aquela face re¬
pugnante que hoje nos é tão familiar, e perante a qual
in , ou
mar da vergonha que paralisa a fé de Stavrog o homem pagão imediatamente volta a cara, e sente
da mítica promiscuidade, da sujidade m í tica dos tri ¬

( no mundo antigo ,a aquele «íõcóç que é a marca tão forte da piedade anti ¬

bunais e dos castelos kafkianos ga. Deus não precisa de justificação: 'Otòç àvoc útioç,
ki. proclama, na República, a virgem Láquesis.
Stavrogin: personagem d’ Os Possessos, de Dostoicvs

76 77

-ai
/

- redenção de Klamm24, do Conde25, da anónima lou
Para o homem moderno, pelo contrá rio, a teo
¬

da for cura teológica dos juízes, dos funcionários das


diceia é necessária , e ao mesmo tempo falha
¬

e se re chancelarias e dos guardas, que se fecha na promis¬


ma mais miserável: o próprio Deus se acusa
¬

, na sua pr ó pria lama teol ógi


¬ cuidade de corredores poeirentos ou se curva sob
bola, por assim dizer tectos demasiado baixos.
ca , e é precisamente isso que d á ao nosso mal - estar
O génio de Kafka está no facto de ele ter meti
a sua natureza inconfundível. O abismo
sobre o ¬

da necessi dade, do Deus num desvão, de ter feito da arrecadação e


qual vacila a nossa razão não é o do lugar do lixo o lugar teológico por excelência.
mas o da contingencia e da banalidade
do mal.
de Mas a sua grandeza, que só de quando em quando
N ão se pode ser, nem culpado nem inocente brilha no gesto das suas personagens, vem -lhe de
qualquer coisa de contingente: pode apenas -
ter se
na rua , escorreg a ele, a dada altura, ter renunciado à teodiceia, e ter
vergonha disso, como quando , ¬

Deus é posto de lado o velho problema da culpa e da ino ¬


mos numa casca de banana. O nosso uin
a re cência , da liberdade e do destino, para se concen
Deus que se envergonha. Mas, tal como toda
¬
¬

, uma se trar unicamente na vergonha.


lutância trai, naquele que a experimenta
¬

creta solidariedade com o objecto do seu


desprezo, ' Tinha à sua frente uma humanidade a peque
na burguesia planetária — que fora expropriada de
— ¬

assim também a vergonha é o sinal de uma


inaudi ¬

ta e tremenda proximidade do homem em relação toda a experiência à excepção da sua vergonha a


vergonha, que o mesmo é dizer, a forma pura, e va

éria é o último ¬

a si próprio. O sentimento de mis zia, do mais íntimo sentimento do eu. Para uma tal
, do mesmo
pudor do homem frente a si próprio humanidade , a única inocência possível seria a de
modo que a contingência — sob o signo da qual
a sua poder sentir vergonha sem mal-estar. O aíôoóç n ão
parece agora desenrolar-se docilmente toda

exist ência é a m áscara que
cente que causas unicamente humana
encobr e
s
o peso
exercem
cres
so
¬

¬
era, para o homem antigo, um sentimento embaraço
so; peló contrário, confrontado com ele, reencontra
va, como Heitor diante do seio desnudo de Hécuba,
¬

bre os destinos da humanidade. a sua coragem e a sua piedade. É por isso que Kafka
procura ensinar aos homens o uso do único bem que
II. É uma leitura muito pobre de Kafka aquela lhes restou: não a libertar-se da vergonha, mas a li
ão ci ¬

que não vê nessa obra mais do que a express


¬

o bertar a vergonha. É isto que Joseph K. se esforça


frada da angústia do homem culpado perante por conseguir durante todo o tempo que dura o seu
se tornou estra
inescrut ável poder de um Deus que ¬

óprio
nho e distante. Muito pelo contrá rio, aí é o pr 2‘! Klamm: personagem (o alto funcion á rio do
castelo) do romance O
fim feliz
Deus que precisa de ser salvo, e o único Castelo , de Kafka.
25 O Conde: personagem d ’ O Castelo, de Kafka .

que podemos imaginar para os seus romanc


es é a
79
78
pró pria vergonha , Ideia da época
orocesso; e é para salvar a sua ele se sub
não a sua própria inocência , que no fim
¬

mete obstinadamente ao cutelo do


carrasco: “ pare-
, “ que a
cia -lhe ” , diz -se no momento da sua morte
sua vergonha lhe sobreviveria ’ .
1

Apenas para cumprir esta missão, para manter


vergonha ,
para a humanidade pelo menos a sua
como uma felici ¬
Kafka reencontrou qualquer coisa O aspecto mais farisaico da mentira implícita no
dade antiga. conceito de decad ê ncia é a pedantería com a qual,
no próprio momento em que se lamentam a medio ¬

cridade e o declínio e se registam os presságios do


fim , se faz em cada gera ção a lista dos novos talentos
e se catalogam as formas novas e as tend ências epo-
cais nas artes e no pensamento. Neste recenseamento
mesquinho, muitas vezes de m á fc , perde-se o ú nico
e incompar ável título de nobreza que o nosso tempo
poderia legí timamente reivindicar a propósito do
passado: o de não querer já ser uma época histórica . Se
há característica da nossa sensibilidade que merece
sobreviver, ela é a do sentimento de impaciência , e
quase de n á usea, que temos perante a perspectiva de
tudo poder recomeçar desde o in ício , ainda que da
melhor das maneiras: perante novas obras de arte,
novos sinais dos costumes ou da moda , quando a
tradição, depois de os. ter solto momentaneamente,
volta a apertar os fios da sua própria tessitura, celera -
da e antiquíssima , há qualquer coisa em nós que,
mesmo que possa encher-nos de admira ção, não po ¬

de reprimir um sentimento de horror.


Ora, é precisamente isto que se perde, na von ¬
tade cega do nosso tempo de ser a todo o custo
uma época , nem que seja a época da impossibilida -

80 81

/-
de de ser uma é poca: a época do niilismo. Concei ¬
mente tomar a palavra, é a própria razão da lingua
tos como os de pós - moderno, de novo renascimen ¬
gem que perdemos.
- o
to, de humanidade ultra - metaf ísica , revelam o gr ão Por isso não queremos novas obras de arte ou a
de progressismo escondido em todo o pensamento do pensamento, não desejamos uma outra é poca
da decadencia e no próprio niilismo: o que importa ;
cultural e social: o que queremos é salvar a época e
é. em todos os casos, n ão perder a nova é poca que a sociedade da sua errâ ncia na tradição,
apreender
já chegou ou chegará , ou , pelo menos, poder á che
gar, e cujos sinais já podem ser decifrados à nossa
volta. E não h á nada mais triste que o esgar com
¬
o bem que elas trazem consigo
— um bem indiferí-
vel e n ão epocal. Assumir esta missão seria a ú
ética , a ú nica política à altura deste nosso
'
nica
tempo.
que, no meio do mal -estar geral , os mais espertos
roubam aos seus semelhantes os seus próprios so ¬
frimentos, mostrando-lhes que eles são apenas os
hieróglifos, para eles próprios por enquanto indeci ¬

frá veis , da nova felicidade dessa é poca . Do outro


lado, aqueles que se limitam a acenar com o fantas ¬
ma do fim da humanidade , n ão escondem a sua
nostalgia por tudo aquilo que , apesar de tudo, po ¬

deria ter continuado t ão bem .


Como se para lá desta alternativa n ão houvesse
a única possibilidade propriamente humana e espi ¬

ritual: a de sobreviver à extin ção, de pular por cima


dc fim do tempo e das é pocas históricas, n ão em di-
recção ao futuro ou ao passado, mas em direcção
ao próprio coração de tempo e histó ria. A hist ó ria ,
tal como a conhecemos, não foi até hoje outra coisa
sen ão a sua pi ó pria actualização incessante , e só no
momento em que a sua pulsa ção cesse teremos
oportunidade de aproveitar a ocasião nela contida ,
antes que ela seja de novo traída (tradita: traída/
/ transmitida ) num destino epocal. Na nossa obsti ¬

na ção de nos darmos tempo, perdemos o sentido


deste dom , tal como, no nosso querer incessante-

82 83

/-
i
r aos breves e febris apontamentos da “ Viagem atra ¬

Ideia da m úsica vés da infla ção alemã ” , de Walter Benjamin ,27 que
temos de recorrer. Quanto à fenomenologí a do i
amor, ninguém conseguiu acrescentar muito às pá ¬

ginas da Recherche que lhe fixaram , pela última vez,


a faceies hippocratica, nem nunca a vergonha e a ¡

promiscuidade reencontraram , para n ós , a épica


Uma estranha pobreza de descrições fenome- concisã o das pequenas narrativas de Kafka .
nológicas contrasta com a abundancia de an álises Mesmo o Surrealismo, que, com - indubitável
conceptuais do nosso tempo. É um facto curioso sentido de actualidade, se tinha proposto redese ¬

que seja ainda um punhado de obras filosóficas e li ¬ nhar o mapa da sensibilidade epocal, não conse ¬

terá rias escritas entre 1915 e 1930 a constituir a


guiu realizar essa sua inten çã o: a atmosfera surrea -
chave da sensibilidade da época , que a última des ¬ lista, com a sua pacotilha rimbaudiana e as suas in ¬

congruentes associações , tem hoje o mesmo sabor


crição convincente do nosso estado de alma e dos
nossos sentimentos remonte, em suma , a mais de
' arcaico um tanto fr ívolo que Benjamin tinha reco-
cinquenta anos. É certo que, no segundo pós-guer- nhecido- no seu prot ótipo das passages parisienses; e
ra , o existencialismo francês (e, na sua peugada , o se conserva , apesar de tudo, algum valor, n ão é por
ter deixado a sua marca no gosto de uma época , ;
cinema europeu do fim dos anos cinquenta ) tentou
fazer uma revisão em grande escala dos estados de mas talvez por ter posto em evidência o carácter es- ,

alma fundamentais; mas não é menos certo que ela sencialmente utópico da sensibilidade moderna.
— quase instantaneamente —
se torna incrivelmen
te insípida e obsoleta. Nem a n áusea sartriana , nem
¬ Se a sensibilidade é a esfinge com a qual toda a
época histórica tem sempre de medir-se, então o
o absurdo cinzento das personagens de Camus enigma que o nosso tempo tem de resolver é aquele
mesmo que encontrou pela primeira vez a sua for
acrescentaram , a nosso ver, nada à caracterização
¬

heideggeriana da ang ústia e das outras Stimmungen mulaçã o na Paris obscurecida peia Primeira Guerra
(estados de alma; disposição interior ) em Sein und
Zeit ( Ser e Tempo ) ; e se quisermos procurar uma v- lham o processo de decad ência do Império Austro - H ú ngaro, do mundo ju ¬
deu do Leste europeu e dos anos vinte e trinta . De Joseph Roth podem ler-se
imagem do nosso desenraizamento e da nossa misé ¬
em tradução portuguesa os seguintes romances e narrativas: Hotel Savoy , A
ria social é ainda à descrição da quotidianidade em Fuga sem Fim, A Marcha de Radetzky , O Busto dc Imperador, A Cripta dos
Sein und Zeit cu aos romances de Joseph Roth ou
26 Capuchinhos e A Lenda do Santo Bebedor .
27 A " Viagem através da infla o alemã ” é um
çã conjunto de 14 fragmen ¬

tos de Walter Benjam ín , inclu ídos no livro Einbabstrafie ( Rua de Sentido Ú nico
íaco , proveni
26 Joseph Roth ( 1894 - 1939 ) : romancista e jornalista austr ¬

[1928]) com o t ítulo “ Panorama Imperial . Viagem através da inflacçao alemã ” .


ente da Galicia e autor de vários romances e livros de reportagens que espe-

84 85

/-
Á
Mundial, na Alemanha da grande inflação ou na que estava implícita na ang ústia e no desespero, o
Praga da queda do Império Austro -H úngaro. Isso Tpaxxxç íáaexai e a promessa de cura , que ainda
não significa de modo nenhum que desde ent ã o se em Heidegger são os guardi ões da excrema espe - -
n ã o tenham produzido obras de valor, na filosofia ran ça da época , perderam o seu prestígio. Não que .
como na literatura , mas t ão somente que elas n ã o n ã o seja ainda possível experimentar a polaridade di
¬

contêm o invent á rio dos novos sentimentos epo- aléctica da ang ú stia; e também , se quisermos, pode- ¡

cais. Quando não se limitavam a revisitar as atmos ¬ remos experimentar o poder catá rtico dos estados de
feras do passado ou a registar pacientemente ínfi ¬ alma. Mas ninguém pensaria em servir-se de uma ex ¬

mas varia ções, a sua grandeza reduzia -se precisa ¬ periência — e muito menos de uma experiência des - í
mente ao gesto sóbrio com o qual os estados de te tipo— para reivindicar qualquer autoridade. ,

alma eram decididamente postos de lado. O recen ¬ A nossa sensibilidade, os nossos sentimentos, já
seamento das Stimmungcn , a escuta e a transcrição n ã o nos prometem nada: sobrevivem ao nosso lado ,
desta silenciosa m úsica da alma , tinham chegado ao faustosos e in ú teis como animais domésticos de
fim de uma vez por todas por volta de 1930. apartamento. E a coragem — perante a qual o nii -
Uma das explicações possíveis deste fenómeno , lismo imperfeito do nosso tempo n ã o cessa de bater 5

( insatisfatória como todas as explica ções ) é a de que, em retirada — consistiria precisamente em reco ¬

entretanto , aquilo que a princípio foram experiên çi- nhecer que já n ão temos estados de alma , que so ¬

as-limite de uma élite intelectual deu lugar a experi ¬ mos os primeiros seres humanos n ão afinados por •

ências de massas: nos cumes mais inacessíveis do uma Stimmung , os primeiros seres humanos , por
pensamento, onde o nada afivela a sua m áscara inex ¬ assim dizer, absolutamente n ão musicais: somos j

pressiva , o filósofo e o poeta encontrar-se- iam agora sem Stimmung , ou seja sem voca çã o. N ão é uma 1

em companhia de uma intermin ável massa planetá ¬ condição alegre, como alguns desgra çados no-lo
ria. E uma Stimmung de massas deixa de ser uma querem fazer crer, nem sequer é uma condição, se ¡

m úsica que se pode ouvir, transforma -se em ruído. por condi ção entendermos necessariamente, e ain ¬

Mais decisiva é a constatação da vertiginosa da , um destino e uma certa disposi ção; mas é a nos ¬

perda de autoridade da biografia individual e da sa situação, o sítio desolado onde nos encontramos , ' ¡

existência privada: tal como já n ão acreditamos em absolutamente abandonados por toda a vocação e j
atmosferas, nem nenhum homem inteligente deseja ¬ por todo o destino, expostos como nunca antes. .
ria hoje deixar a sua marca no mobili á rio de uma E se os estados de alma são na história dos indi - ¡

rasa ou num estilo de vestu á rio, assim também n ã o víduos aquilo que as épocas sã o na história da hu ¬

esperamos já muito dos sentimentos que mobilam manidade, ent ão aquilo que se anuncia na luz de
a nossa alma. A capacidade de inversão dialéctica chumbo da nossa apatia é o céu , jamais visto, de {

86 87

/-
uma situa ção absolutamente não. epocal da história Ideia da felicidade
humana. O desvelamento da linguagem e do ser em
termos apenas epocais, que os deixam sempre n ão
ditos em toda a abertura histórica e em todo o desti ¬
no, está talvez a chegar ao fim. A alma humana per¬

deu a sua m úsica e por m úsica entende-se aqui a
marca na alma da inacessibilidade destinai da ori ¬
a Ginevra

gem. Privados de época, esgotados e sem destino, Em todas as vidas existe qualquer coisa de não
chegamos ao limiar feliz do nosso habitar não musi ¬
vivido, do mesmo modo que em toda a palavra há
cal no tempo. A nossa palavra regressou verdadei ¬ qualquer coisa que fica por exprimir. O carácter é a
ramente ao princípio. obscura força que se assume como guardiã desta vi ¬
da intocada: vela atentamente por aquilo que nunca
foi, e, sem que o queiras, inscreve no teu rosto a mar ¬
ca disso. Por esta razão, a criança recém -nascida pa ¬
rece já ter semelhanças com o adulto: de facto, não
há nada de igual entre esses dois rostos, a não ser,
'

num como no outro, aquilo que não foi vivido.


A comédia do carácter: no momento em que a
morte arranca das suas m ãos o que estas tenazmen ¬

te escondem , aquilo de que se apodera é apenas


uma m áscara. Neste momento, o cará cter desapare ¬
ce: no. rosto do morto já n ão h á marcas do que n ão
foi vivido, as rugas gravadas pelo carácter alisam -se.
Assim se brinca com a morte: ela não tem nem
olhos nem mãos para o tesouro do carácter. Este te
souro — aquilo que nunca foi

¬

é recolhido pela
ideia da felicidade. Ela é o bem que a humanidade
recebe das m ãos do carácter.

88 89

/-
transformar num exemplar adulto de salamandra
Ideia da inf ância mosqueada (.Amblistoma tygrinum ). Esta circuns ¬

t â ncia pode levar a classificar o axolotl como um


caso de regressão evolutiva, uma espécie de derrota
na luta pela vida, que obriga um batrá quio a renun ¬

ciar à parte terrestre da sua existência e a prolongar


indefinidamente a sua vida larvar. Mas desde há al ¬

gum tempo este infantilismo obstinado (pedomor-


Nas águas doces do México vive uma espécie fose ou neoténia ) forneceu as chaves para entender
as
de salamandra albina que há muito tempo atraiu o de modo novo a evolução humana.
atenções dos zoólogos e dos estudiosos
da evolu çã
A evolu ção do homem não se teria dado a par
animal. Quem tenha tido a oportunidade de obser
¬ ¬

com tir de indivíduos adultos, mas sim das crias de um


var um espécime em aquá rio fica surpreendido primata que, como o axolotl, teria adquirido pre
fetal, deste anf íbio : a cabe
o aspecto infantil, quase
¬ ¬

, a pe¬ maturamente â capacidade de se reproduzir. Isto


ça relativamente grande e enterrada no corpo explicaria aquelas particularidades morfológicas do
le opalescente, com uma leve mancha de cinzento
fe¬ homem -que, da posição do furo occipital à forma
no focinho e azulada e rosada nas excrescências ¬ da concha da orelha, da pele glabra à estrutura das
bris à volta das guelras, as delicadas patas com de
mãos e dos pés, não correspondem às dos antropói-
dos em forma de flor- de -
lis.
des adultos, mas às dos seus fetos. Particularidades
A princípio, o axolotl foi classificado como uma que nos primatas são transit órias, mas que se torna ¬
espécie própria, com a particularidade de
manter
tipicamente lar ¬ ram definitivas no homem, realizando, de certo mo¬
durante toda a vida características do em carne e osso, o tipo do eterno rapazinho. Mas
çã o bran
vares para um anfíbio, tais como a respira
¬

quial e a permanência exclusiva na água. Tinhase


, esta hipótese permite sobretudo uma aproximação
nova à linguagem e a toda aquela esfera da tradição
aliás, sido provado sem discussão possível que exossom ática que, mais do que qualquer código ge
tratava de uma espécie autónoma , pelo
facto de o ¬

, ser perfeita¬ nético, caracteriza o homo sapiens , e que a ciência


axolotl, apesar do seu aspecto infantil ainda não foi capaz de compreender.
mente capaz de se reproduzir. Só mais tarde
uma sé¬
que, Tentemos agora imaginar uma criança que não
rie de experiências permitiu pôr em evidê
ncia
se limitasse, como o axolotl, a fixar-se no seu estado
depois de receber hormonas tircideias, o pequeno larvar e nas suas formas incompletas, mas que fos
tritão passava pela metamorfose habitual nos
anfíbi ¬ ¬

respira se, por assim dizer, de tal modo abandonada à sua


os: perdia as branquias e, desenvolvendo
a ¬

para se pró pria infância , tão pouco especializada e de tal


ção pulmonar, abandonava a vida aquática
90 91
modo omnipotente que se afastasse de qualquer mente e armazenada numa mem ória genética , mas
destino específico e de todo o meto ambiente deter ¬
antes qualquer coisa que ter á de permanecer abso ¬

minado, para se limitar unicamente à sua própria lutamente exterior, que não lhe diz respeito e que,
imaturidade e ignorância . Os animais rejeitam as como tal , só pode ser confiada ao esquecimento, is ¬
possibilidades som á ticas que não est ão inscritas no to é a uma mem ó ria exossom á tica e a uma tradiçã o.
seu gérmen: no fundo, contrariamente ao que se Para essa criança, trata -se de n ão se recordar verda ¬
poderia pensar, n ão d ão qualquer aten çã o ao que é deiramente de nada , de nada que lhe tenha aconte ¬

mortal (o soma é, em cada indivíduo, aquilo que é cido ou se tenha manifestado , mas que, no entanto ,
sempre destinado à morte) , e cultivam unicamente enquanto nada , antecipa toda a presença e toda a
as possibilidades infinitamente repetíveis fixadas no mem ória. Por isso, antes de transmitir qualquer sa ¬

código gen ético. Só d ã o aten ção à Lei , à quilo que ber ou qualquer tradi ção, o homem tem necessaria ¬

est á escrito. mente de transmitir a sua pró pria distraeção. a sua


A crian ça neoténica , pelo contrá rio, estaria em própria não-latência indeterminada , pois só nela se
condições de poder dar atenção precisamente àqui¬ tornou possível qualquer coisa como uma tradição
lo que n ã o est á escrito, a possibilidades som á ticas hist órica concreta . O mesmo se poderia dizer atra ¬

arbitrá rias e n ão codificadas: na sua infantil omni ¬ vés da constata çã o, aparentemente trivial , de que o
potência , ela seria tomada de estupefacçã o e ficaria homem , antes de transmitir seja o que for, tem de
fora de si, não, como os outros seres vivos , numa transmitir a linguagem ( é por isso que um adulto
aventura e num ambiente específicos, mas, pela pri ¬ não pode aprender a falar: foram as crianças, e não
meira vez , num mundo: ela estaria , verdadeiramen ¬
te, à escuta do ser. E como a sua voz est á ainda livre
os adultos, as primeiras a aceder à linguagem ; e,
mau grado os quarenta milénios da espécie do homo I
de toda a prescriçã o genética , n ão tendo absoluta ¬ sapiens , aquilo que constitui precisamente a mais hu ¬
mente nada para dizer ou exprimir, ela seria o ú ni ¬
co animal da sua espécie que, como Ad ão, seria ca ¬
mana das suas caracter ísticas
linguagem —
— a aprendizagem da
permaneceu estreitamente ligado a
u
paz de nomear as coisas na sua l íngua. No nome, o uma condiçã o infantil e a uma exterioridade: quem
'1
homem liga-se à inf â ncia, para sempre amarrado a acredita num destino específico n ão pode, verda ¬

uma abertura que transcende todo o destino especí¬ deiramente, falar). r


fico e toda a voca ção gen é tica. A cultura e a espiritualidade genu ínas sã o aque ¬

h
Mas esta abertura , esta atordoante paragem no las que n ão esquecem esta origin á ria voca çã o infan¬

ser, n ão é um evento que, de algum modo, lhe diga


respeito, nem sequer é mesmo um evento, qualquer
til da linguagem humana , enquanto que uma cultu ¬
ra degradada se caracteriza por tentar imitar um
(!
coisa susceptível de ser registada endossomatica - gé rmen natural para transmitir valores imortais e H
b
92 93
1
<
j-
r
codificados, pelos quais a n ã o-latência neoténica se tra ído do seu jogo, os homens poderiam construir
volta a fechar numa tradi ção específica . Na verda ¬ uma hist ó ria e uma l íngua universais , já n ã o diferí-
de , se h á alguma coisa que distinga a tradi ção hu ¬
veis , e pôr fim à sua err â ncia nas tradi ções. Este
mana do gé rmen , é o facto de ela querer salvar, n ão aut ê ntico apelo da humanidade em rela ção ao so ¬

apenas aquilo que pode ser salvo ( as características ma infantil tem um nome: o pensamento , ou seja a
essenciais da espécie) , mas també m aquilo que política .
nunca poderá ser salvo, que est á , assim , perdido
para sempre, ou melhor, nunca foi possu ído como
uma propriedade específica , mas que, precisamen ¬

te por esta razã o, é inesquecível: o ser, a n ã o-lat ên


¬

cia do wma infantil , ao qual apenas o mundo , ape ¬

nas a linguagem , est ã o adaptados. Aquilo que a


ideia e a essê ncia querem salvar é o fen ó meno, o ir -
repet ível que já foi, e a inten çã o mais pr ópria do ?

logos nã o é a conserva ção da espécie , mas a ressur ¬


reiçã o da carne.
Em qualquer parte dentro de nós o distra ído
rapazinho neotcnico continua o seu jogo real . E é
esse seu jogo que nos d á tempo, que mant ém aberta
para n ós essa n ã o-latê ncia inultrapassá vel que os
povos e as línguas da terra , cada um a seu modo, se
preocupam em conservar e diferir — e em conser
var apenas na medida em que a diferem . As diver
¬

sas na ções e as muitas línguas histó ricas são as fal ¬

sas voca ções com as quais o homem tenta respon ¬

der à sua insuport ável ausência de voz; ou , se


quisermos, as tentativas , fatalmente condenadas ao
fracasso, de tornar apreensível o inapreensível, de
tornar adulta a eterna crian ça . Só no dia em que es ¬

sa origin á ria não-lat ência infantil fosse verdadeira¬

mente, vertiginosamente, assumida como tal. em que


se recuperasse o tempo e o menino Aion fosse dis ¬

94 95

/-
O poder da linguagem deve voltar-se para a lin ¬
Ideia do Juízo Final guagem . O olho deve ver o seu ponto cego. A pri ¬

são deve encarcerar-se a si própria . Só assim os pri - a


sioneiros poder ão sair.

Nalgum lugar, na sala já decrépita onde as ca - :


a Elsa Morante
deiras criaram bolor, as velas se derreteram , se for ¬

maram nos cantos gigantescas teias de aranha , con ¬

As almas dos homens chegam de toda a parte tinua o processo de Deus contra si pr óprio.
ao tribunal , mas o banco dos réus já est á todo ocu ¬
pado. São convidadas a sentar-se no banco dos ju ¬ E , no entanto, trata - se apenas de uma gravura
rados , ou sentam -se, ruidosamente, em grupos, en ¬
colorida num livro infantil com o t ítulo Li sietie pa- *
tre o p ú blico. Quando uma sineta anuncia a entra ¬
lomielle28.
da dos ju ízes, o culpado, que , entretanto, enfiou à
socapa a borla e a toga , sobe precipitadamente para
a cadeira do juiz. Mas, assim que declara aberta a
audiência , deita fora a toga e desce até ao banco da 1

acusa ção p ú blica , e depois até ao da defesa . Nos in


¬

tervalos da sessão volta a sentar- se, com a alma a


sangrar, no banco dos réus.
Enquanto Deus se ocupa assim deste julgamen ¬

to de Si próprio, e no qual assume de seguida todos


os papéis, os homens, consternados, abandonam a
pouco e pouco a sala em silêncio.

O juízo final não é um juízo na linguagem, e co ¬

mo tal n ão pode nunca ser decisivo: de facto, est á


permanentemente a ser adiado ( daqui a ideia de
que o ju ízo final só virá no fim dos tempos) . Ele é,
antes, um ju ízo sobre a própria linguagem , que, na 28 Li
zictte palomiclle: “ As Sete Pombinhas ” , conto de Giambattista
linguagem, elimina a linguagem da linguagem . Basile (1575-1632 ) incluído no livro, escrito em dialecto napolitano e sob o
pseud ónimo de Gian Alcsio Abbattutis, Lo cunto de li cunti.

97
96

/-

/
\
Ideia do pensamento

ÍQ m
iâ mAi
:
7
a Jacques Derrida
£
m ;;
tefl &

>

m mm C
I . As aspas gozam desde h á algum tempo de
«a uma prefer ência especial entre os sinais de pontua
t m maKS|
¬

S-í ji í k *$ h mm
:
V

i M
m ção. A extensão do seu uso para lá do do signum ci-
tationis , naquela pr á tica , t ão generalizada hoje em
St- r .

«o m *;
dia , de pô r uma palavra entre aspas, sugere que esta
preferê ncia deve ter razões que são tudo menos su ¬

perficiais.
Que significa , de facto , pôr uma palavra entre
aspas? Através das aspas, quem escreve toma as
Ê suas dist â ncias em rela ção à linguagem: elas indi ¬
r-
If cam que um determinado termo n ã o é tomado na
>

f? & acen çã o que lhe é própria , que o seu sentido foi


& modificado ( citado, chamado para fora do seu cam ¬

po habitual ) , sem , no entanto, ser completamente


5
excluído da sua tradição semântica. N ão se pode ou
í n ão se quer simplesmente usar o velho termo, mas
também n ão se quer encontrar um novo. O termo
colocado entre aspas é deixado em suspenso na sua
histó ria , é pesado
elementar, pensado.
— ou seja , pelo menos de forma

Nos ú ltimos tempos, a universidade elaborou


í uma teoria geral da cita ção para uso próprio. Con ¬
& vém recordar a quem julgue que pode manipular,
I com a habitual irresponsabilidade académica , esta
pr á tica arriscada , extrapolando- a da obra de um fi -

101

/-
lósofo, que a palavra entre aspas só espera pela pri ¬ regressam àquela vírgula de onde nasceram e que,
meira oportunidade de se vingar. E nenhuma vin ¬ segundo Isidoro de Sevilha , assinala o ritmo da res ¬
gança é mais subtil e mais irónica que a sua . Quem piração na enuncia ção do sentido.
alguma vez colocou uma palavra entre aspas, nunca
mais se livrará dela: suspensa a meio caminho no II. No lugar onde caiu uma voz, onde faltou o
seu lance significante, ela torna -se insubstituível
ou melhor, já n ão é possível separarmo- nos d éla .
— sopro da respira ção, um min úsculo sinal est á sus
penso, em cima . Sem outro suporte além deste, he
¬

A invasão das aspas trai também o mal -estar do sitante , o pensamento aventura -se.
nosso tempo face à linguagem: elas representam os
muros — finos, mas intranspon íveis — da prisão
que é para n ós a palavra . No círculo que as aspas
fecham à volta de um vocá bulo ficou encerrado
também o falante.
Mas se as aspas são, para a linguagem , uma
chamada para comparecer perante o tribunal do
pensamento, o processo assim intentado n ão pode
ser definitivamente adiado. Todo o acto de pensa ¬
mento acabado, para o ser — ou seja , para poder
referir-se a qualquer coisa que est á fora do pensa ¬

mento — , deve dissolver-se inteiramente na lingua


gem: uma humanidade que só soubesse exprimir-se
¬

entre aspas seria uma humanidade infeliz que, à è


força de pensar, teria perdido a capacidade de levar
um pensamento até ao fim . í
Por isso, o processo intentado contra a lingua ¬

gem só pode dar-se por concluído com a supressão :


das aspas. Mesmo no caso de o veredicto final ser
uma condena ção à morte. Nesse caso, as aspas
apertam o pescoço da palavra em questã o até a su - ;
focarem. No momento em que esta parece esvaziar-
-se de toda a significação e soltar o último suspiro,
os pequenos carrascos , pacificados mas inquietos,
i
102 103
J

/-
Oj
tV;
Ideia do nome vel da ciê ncia bem podem atribuir uma definição a
cada nome: aquilo que deste modo se diz , é sempre
dito graças à pressuposição do nome. Toda a lin - s
guagem assenta , de facto, sobre um único nome,
em si impossível de proferir: o nome de Deus .
Contido em todas as proposi ções , em cada uma de ¬
las ele permanece necessariamente n ã o dito.
Para quem medita sobre o inef ável , é ú til obser
¬ Outra é a atitude da filosofia . Ela partilha com
var que a linguagem pode perfeitamente nomear a m ística o desafio em rela çã o a uma adequa çã o de - i

aquilo de que n ã o pode falar. Por saber isto, a filo


¬ masiado precipitada entre os dois planos, sem per ¬
sofia antiga distinguia cuidadosamente o plano do der a esperan ça de fazer justi ça à quilo que o nome
nome ( onoma ) do plano do discurso { logos ) , e con¬ invocou . É por isso que o pensamento n ã o pá ra no s
siderava a descoberta desta distin çã o suficiente ¬ limiar do nome, e n ão conhece, para lá deste, ou ¬
mente importante para a atribuir a Plat ã o. Na ver ¬ tros nomes mais secretos : no nome, ele persegue a
dade, a descoberta era mais antiga: tinha sido Ideia. Porque, como acontece na lenda judia do
Antístenes o primeiro a afirmar que das substâ ncias Golem , o - nome com o qual se invocou o informe
simples e primeiras n ã o pode haver logos , mas ape ¬ para lhe dar vida é o da verdade. E quando a ori -
nas nome. Segundo esta concepçã o, é indizível, n ã o meira letra deste nome foi apagada na fronte deste
aquilo que de modo nenhum est á atestado na lin ¬ inquietante famulus , o pensamento continuou a fi ¬

guagem , mas sim aquilo que, na linguagem , apenas | xar o olhar sobre esse rosto, sobre o qual agora está
pode ser nomeado; o dizível , pelo contrá rio é aqui-
, j escrito o nome “ morte ” , até que também ele , por
lo de que se pode falar num discurso defin í t ó rio, sua vez, seja apagado. A fronte muda , ilegível , é
ainda que, eventualmente , n ão tenha nome pró prio. agora a sua ú nica liçã o , o seu ú nico texto. ¡
A distinção entre dizível e indizível passa, pois, pe¬

lo interior da linguagem , que aquela divide como


uma crista afiada entre duas vertentes a pique.
Sobre esta fractura da linguagem se funda o sa ¬
ber antigo que, com o nome de m ística , impede que
se possam confundir o plano dos nomes e o das ¡ .
t
proposições. É certo que o nome entra nas proposi ¬ a
ções , mas aquilo que estas dizem n ã o é aquilo que o
nome invocou. Os dicion á rios e o trabalho incansá -
I
104 105 3

Ou
*
>Qb
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1
Ideia do enigma verdadeiro enigma , perante o qual a razã o humana
pá ra , petrificada . ,
( É deste modo que Wittgenstein coloca o pro-
blema do enigma. )

a Philipp Ingold II. Temos medo sempre e apenas de uma coisa: i


da verdade. Ou mais precisamente, da representa ção
I. A essência do enigma est á no facto de a pro ¬ que nos fazemos dela. De facto , o medo não é sim ¬

messa de mist é rio que ele gera ser sempre necessa ¬ plesmente uma falta de coragem face a uma verdade ;

riamente gorada , uma vez que a solu ção consiste que nos representamos de forma mais ou menos ¿
precisamente em mostrar que o enigma não era consciente: h á um outro medo que precede este, e
mais que apar ência . O facto de esta expectativa , que est á já implicitamente presente no próprio facto :
que hoje sabemos ser vã , constituir nas origens o de n ós termos fabricado uma imagem da verdade, e,
pathos do enigma , é atestado , entre outras coisas , de uma maneira ou de outra , lhe termos sabido o no ¬

pelas hist ó rias relativas à morte dos sá bios e profe¬ me e experimentado o pressentimento. F. este medo -
tas antigos, que, quando n ão encontravam a solu ¬
arcaico contido em toda a representa çã o que tem no ,
çã o dos enigmas que lhes eram propostos, morriam enigma a sua expressão e o seu antídoto.
literalmente de medo. Mas o verdadeiro ensina ¬ Isto n ã o significa que a verdade seja qualquer s
mento do enigma só começa para lá da solu çã o e da coisa de irrepresent á vel que nós nos apressamos a
desilusão que ele parece inevitavelmente trazer con ¬
assimilar às nossas representa ções. Pelo contrá rio , a
sigo. De facto, nada é mais desesperante do que a verdade começa apenas no instante a seguir ao mo- í
constata çã o de que n ã o h á enigma , mas t ã o somen¬
mento em que reconhecemos a verdade ou a falsi- >
te a sua aparê ncia. O que significa , na realidade, dade de uma representa ção ( na representa ção, ela
que o facto enigm á tico se refere apenas à linguagem í só pode ter uma de duas formas: ou “ Afinal era :
e à sua ambiguidade , e não à quilo que nessa lingua - | mesmo assim ! ” , ou ent ão “ Estava enganado! ” ). Por r

gem é visado, e que, em si, não só é absolutamente isso, é importante que a representa ção pare um ins ¬
desprovido de misté rio, como também n ão tem na ¬ tante antes da verdade; por isso , só é verdadeira a s
da a ver com a linguagem que deveria dar-lhe ex ¬ representa ção que representa também a dist â ncia
pressão, mas se mant ém a uma dist â ncia infinita . que a separa da verdade.
Que o enigma n ão seja, que o próprio enigma
n ã o consiga captar o ser, a um tempo perfeitamente III. Conta -se que Plat ã o, no fim da vida , convo¬

manifesto e absolutamente indizível: esse é agora o cou um dia os seus discípulos da Academia , anun -

106 107
t

/- to
I<
I I
ciando que lhes iria falar do Bem . Como ele tinha o modo, um filósofo n ão pode defender uma tese
h á bito de designar com este termo o n ú cleo mais nem emitir opiniões sobre um problema . ” Por isso
íntimo e mais obscuro da sua doutrina , que nunca decidiu ater- se à quelas formas simples que são o
tinha abordado de forma explícita , reinava entre to ¬ apólogo , a f á bula , a lenda , que at é o Só crates mori ¬

i
dos aqueles què se tinham reunido na éxedra — en ¬ bundo n ão tinha desdenhado , e que parecem suge ¬

tre eles Espeusipo, Xen ócrates , Arist ó teles e Filipe rir ao leitor que n ã o as leve muito a sé rio . í


de Oponte uma bem compreensível expectativa ,
e mesmo um certo nervosismo. Mas quando o filó ¬
Um outro fil ósofo, por ém , fez -lhe ver que uma
tal escolha era , na verdade , paradoxal , uma vez que
sofo começou a falar e se tornou claro que o discur ¬ fazia supor no autor uma tal intenção de ser sério
so se ocupava exclusivamente das questões mate ¬ que ele era obrigado a tomar as devidas precau ções
m á ticas , dos n ú meros , das linhas, das superfícies , em rela çã o à sua pró pria expressã o. Se a inten ção
dos movimentos dos astros , e que por fim se defen ¬ did áctica das f á bulas antigas era , afinal , aceit á vel,
dia a ideia de que o Bem era o Uno , os discí pulos isso devia - se ao facto de elas terem sido repetidas ,
começaram por ficar espantados , depois trocaram com variantes infinitas , ao longo dos séculos , e por -
olhares , abanaram a cabeça , e por fim alguns aban ¬ ' que a mem ó ria do seu autor se tinha perdido com ¬

donaram a sala em silêncio. Mesmo aqueles que fi ¬ pletamente. Mas de resto, continuava , a ú nica in ¬
¡

caram at é ao fim , como Aristó teles e Espeusipo, es ¬ ten çã o que escapava a toda a possibilidade de erro
tavam embara çados e n ão sabiam que coisa pensar. era a absoluta ausência de qualquer inten ção. E é i

Deste modo Plat ão, que até aí tinha sempre avi ¬ precisamente esta ausência de inten ção que os poe ¬
i
sado os seus discípulos para desconfiarem do trata ¬ tas exprimiam através da imagem da Musa, que
mento tem á tico dos problemas , e que, nos seus es ¬ lhes ditava as palavras , às quais eles se limitavam a t
critos , tinha reservado um lugar de destaque às fic¬ í dar voz. Mas para a filosofia isso n ão era possível:
ções e aos mitos , torna - se por sua vez , aos olhos dos que sentido teria , na verdade, uma filosofia inspira ¬

seus discípulos , um mito e um enigma . da ? A não ser que encontrasse qualquer coisa como
uma Musa da filosofia , a n ão ser que fosse possível
|
IV. Depois de muita reflexão, um filósofo che ¬ encontrar uma expressão que, como o canto dessa r
gou à conclusã o de que a única forma legítima de I Musa muito antiga a que os Tebanos chamavam
escrita seria aqueia que imunizasse sempre os leito ¬ Esfinge, se desintegrasse no pró prio momento em 5

res contra a ilus ão de verdade que podia suscitar. que mostrava a sua verdade.
“ Se chegássemos a saber ” , costumava ele repetir,
“ que Jesus ou Lao- Tsé tinham escrito um romance V. Imaginemos que todos os signos estavam
policial, isto parecer- nos -ia indecente. Do mesmo preenchidos, que tinha sido redimida a culpa do
ir.
108 109
to
'V
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4
I
homem na linguagem , satisfeitas todas as demandas Ideia do silêncio
possíveis e proferido tudo o que pudesse ser dito
— o que seria ent ão a vida dos homens sobre a
Terra ? “ Os nossos problemas vitais ” , dizes tu ,
“ nem sequer aflorados teriam sido ” . Mas, supon
29 ¬

do que tivéssemos ainda vontade de chorar ou de


rir, por que coisa chorar íamos ou riríamos, que coi ¬

sa poderiam saber esse choro ou esse riso , se, en ¬


Numa recolha de f á bulas dos fins da Antigui ¬

quanto n ós é ramos prisioneiros da linguagem , eles dade lê-se este apólogo:


n ão eram , n ão podiam ser mais do que a experiên ¬
“ Os Atenienses tinham por hábito chicotear a ri ¬

cia , triste ou alegre, tragédia ou com é dia , dos seus gor todo o candidato a filósofo, e, se ele suportasse
limites, da insuficiência da linguagem ? No lugar pacientemente a flagela ção, poderia ent ã o ser consi ¬

onde a linguagem fosse perfeitamente acabada, per ¬


derado filósofo. Um dia , um dos que se tinham sub ¬

feitamente delimitada , começaria o outro riso, o ou ¬


metido a esta prova exclamou, depois de ter suporta ¬

tro pranto da humanidade. do os golpes em silêncio: ‘Agora já sou digno de ser


considerado filósofo!' Mas responderam -lhe, e com
razão: ‘Tê-lo-ias sido, se tivesses ficado calado.’”
A f á bula ensina - nos que a filosofia tem certa ¬

mente a ver com a experiência do silêncio, mas que


o assumir dessa experiência n ão constitui de modo
nenhum a identidade da filosofia . Esta est á exposta
no silêncio, absolutamente sem identidade, suporta
o sem -nome sem encontrar nisto um nome para si
própria. O silêncio n ão é a sua palavra secreta
pelo contrário, a sua palavra cala perfeitamente o

1 próprio silêncio.

i
7) -
A cita çã o vem do Tractatus logtco pbilosopbicus, de Wittgenstein
( proposição 6.52: Sentimos que, mesmo quando todas as possíveis questões
cient íficas tiverem obtido resposta , os nossos problemas vitais nem sequer te
¬

rão sido aflorados...” ). i

no 111

/-
Ideia da linguagem I Ideia da linguagem II

Ingsborg Bachmann in memoriam

I. Um belo rosto é talvez o ú nico lugar onde h á A narrativa de Kafka Na Colónia Venal ilumina -
verdadeiramente silêncio. Enquanto que o car á cter -sc singularmente se compreendermos que o apare ¬

deixa no rosto as marcas de palavras n ão ditas, de lho de tortura inventado pelo ex - comandante da
inten ções n ão realizadas , enquanto que a face do colónia é, de facto , a linguagem . Mas ao mesmo
animal paiece sempre estar a ponto de proferir pa ¬ tempo a hist ó ria complica -se de uma forma consi - 1 fa 2
lavras , a beleza humana abre o rosto ao silêncio . derá vel . Na lenda , a m á quina é , de facto, antes do ' scu -

Mas o silêncio - aquele que advém daqui n ão é —
uma simples suspens ã o do discurso, mas silêncio da
mais, instrumento para julgar e punir. Isto quer di -
zer que també m a linguagem, nesta Terra e para os
a a¿
Jfo ¿
própria palavra , a palavra a tornar- se visível: a ideia homens, é .um instrumento do mesmo tipo. O se- 1
qu
da linguagem . Assim , o silêncio do rosto é a verda ¬ gredo da colónia penal seria ent ão aquele mesmo ecu¿.
deira morada do homem . que o personagem de um romance contempor â neo *o p
trai nos seguintes termos: “ Vou confiar-lhe um se- ;cu -
II . Só a palavra nos põe em contacto com as gredo: a linguagem é que é o castigo. Todas as coi - / es ¬

coisas mudas. A natureza e os animais são desde lo ¬ sas têm de entrar nela e perecer nela na medida da da t
go prisioneiros de uma língua , falam e respondem a sua culpa. ” o
signos , mesmo quando se calam ; só o homem con ¬ Mas se se trata de expiar uma culpa ( e o oficial ‘o

segue interromper, jna. palavra, a.língua infinita da


,

natureza e cplocat-.se- por um instante diante das


coisas mudas . A rosa informulada , a ideia da rosa ,
I n ão tem quaisquer d úvidas a este respeito: “ a culpa
é sempre certa ” ), em que consiste o sentido da pu
ni ção? Tamb ém quanto’a isso as explica ções do off
¬
Q s¡

só existe para o homem . ciai n ão deixam d ú vida: consiste naquilo que se jj


passa por volta da sexta hora. Passadas seis horas a
partir do momento em que as agulhas começaram a
gravar na carne do condenado o parágrafo por ele 5
violado, ele começa a decifrar o texto: “ Como o ho ¬

mem fica calmo à sexta hora ! At é o mais est ú pido

112 113

/-
i
ganha entendimento. Tudo começa à volta dos
olhos. Depois começa a alastrar. Um espect á culo
nas no momento em que o oficial — quando perce

be que o viajante não se deixa convencer liberta
¬

que provoca a tenta çã o de nos colocarmos também o condenado e toma o seu lugar na m á quina. Neste
debaixo das agulhas. Não acontece mais nada , o episódio é decisivo o texto que lhe será gravado na
homem começa simplesmente a decifrar a inscri ¬ carne. Ele n ã o tem— como no caso do condenado
çã o , afundando a boca , como se estivesse à escuta . — a forma de um mandamento preciso ( “ respeita
Como viu , não é fá cil decifrar esta escrita com os os teus legítimos superiores ” ) , consiste apenas na
olhos; mas o nosso homem decifra - a com as suas fé ¬ simples ordem: “ Sê justo ” . Mas no momento em
tidas. Mas d á muito trabalho: ele precisa de seis ho ¬
que a m á quina tenta escrever esta ordem , ela desin ¬

ras para chegar ao fim . Mas nessa altura as agulhas tegra - se e deixa de poder cumprir a sua fun ção: “ as
trespassam - no totalmente e lan çam - no na fossa , on ¬ agulhas já n ão escreviam , apenas espetavam ...
de ele cai sem ru ído sobre o algod ão e a á gua en ¬
Aquilo n ão era suplício , era assassinato puro e sim ¬

sanguentada . ” ples. ” Por isso n ão é possível descobrir no fim no


Aquilo que o condenado , em silêncio, compre ¬
rosto do oficial qualquer sinal da reden çã o prome
'
¬

ende finalmente na sua ú ltima hora é o sentido da tida: “ aquilo que todos os outros tinham encontra ¬

linguagem . Os homens, poderia dizer-se, vivem a do na m áquina , o oficial n ão o encontrou . ”


sua existência de seres falantes sem entenderem , o Duas interpretações da lenda são possíveis a
sentido da iinguagem ; mas para cada um deles tra ¬ partir daqui. Segundo a primeira , o oficial teria
ta -se de uma sexta hora na qual at é o mais est ú pido efectivamente , na sua fun ção de juiz , infringido o
vê a razã o abrir- se. Naturalmente que n ã o se trata preceito “ Sê justo ” , e tinha de pagar por isso. Mas
da compreensão de um sentido l ógico, que também também a m á quina , c ú mplice indispensá vel , terá de
poderia ser lido com os olhos; trata -se de um sçnu - ser destru ída . O facto de o oficial n ão ter podido
do mais profundo , que n ão pode ser decifrado a encontrar na puniçã o a reden çã o que os outros ti
_
n ã o ser através das feridas, e que só é atribuível à nham julgado encontrar a í, explica -se facilmente:
¬

linguagem enquanto punição (é por isso que o do ¬


ele conhecia antecipadamente o texto a gravar.
m ínio da lógica é o do ju ízo: de facto, o ju ízo lógico Mas uma outra leitura é igualmente possível.
é uma sentença , uma condenação ) . Compreender Segundo ela , o preceito “ Sê justo ” n ão se refere ao
este sentido e medir a culpa pró pria é um trabalho mandamento violado pelo oficial, mas seria antes a
dif ícil; e só depois deste trabalho conclu ído se pode instru ção destinada a destruir a m á quina. E o ofici¬

dizer que foi feita justi ça . al tem plena consciência disso , a partir do momen ¬

No entanto, esta interpreta çã o n ã o esgota o to em que anuncia ao viajante: ‘“ Chegou ent ã o a


sentido da lenda. Pelo contrá rio, esta revela-se ape- hora’, disse por fim , olhando subitamente para o vi -

114 115
1
ajante com um olhar límpido, uma espécie de ape ¬ Ideia da luz
lo, um qualquer convite à compreensã o. ” Não res ¬

tam ent ã o d ú vidas: ele introduziu a ordem na m á ¬

quina com a inten ção de a destruir.

ce dizer a m á quina — —
O sentido último da linguagem é o que pare ¬

é o preceito “ Sê justo"; e no
entanto é precisamente o sentido desse preceito que a
máquina da linguagem não está minimamente etn Acendo a luz num quarto escuro; é um facto
condições de nos fazer compreender . Ou antes: ela só que o quarto iluminado já n ão é o quarto escuro,
pode fazê-lo renunciando à sua fun çã o penal, só que perdi para sempre. E no entanto: n ão será ain ¬

pode fazê -lo desintegrando- se, assassinando em vez da o mesmo quarto ? N ã o ser á o quarto escuro o
de punir. Deste modo, a justi ça triunfa sobre a justi ¬
ú nico conte údo do quarto iluminado ? Aquilo que
ça e a linguagem sobre a linguagem . E ent ão torna - n ão posso ter, aquilo que , ao mesmo tempo, recua
-se perfeitamente compreensível que o oficial n ã o at é ao infinito e me empurra para diante, n ã o é
tenha encontrado na m á quina o que os outros nela mais que uma representa ção da linguagem , o escu ¬

encontravam: nesse momento já n ão havia para ele ro que pressupõe a luz ; mas se renuncio a captar es ¬
mais nada a compreender na linguagem . Por isso a se pressuposto , se volto a aten çã o para a própria
expressão do seu rosto ao morrer é a mesma de
quando ele estava vivo: o olhar límpido e convenci ¬

luz, se a recebo ent ão aquilo que a luz me dá é o
mesmo quarto, c escuro n ã o hipot ético. O único
do, a fronte perfurada pela ponta de uma grande conteúdo da revela çã o é aquilo que é fechado em
agulha de ferro.

si , o que é velado a luz é apenas a chegada do es
curo a si pró prio.
¬

116 117

/
i
Ideia da aparência movimentos circulares e perfeitamente regulares
que convé m tomar como hipó tese, afim de se pode ¬

rem salvar as aparê ncias no que se refere aos astros


errantes ? ”
Sabemos como a astronomia grega , a partir de
Eudoxo de Cnidos, para responder a esta exigência
— isto é , para salvar as aparê ncias infinitamente
Foi um comentador tardio de Arist óteles — complexas postas pelo movimento irregular dos as ¬

Simplicio da Sicília , professor na escola de Atenas tros a que se chamava “ errantes ” (Tttaxvpxeç) , foi—
poucos anos antes do seu encerramento, e depois obrigada a supor, para cada um deles , uma sé rie de
exilado, com os últimos filósofos pagãos , na corte de esferas concêntricas, cada uma animada de um mo ¬


Khosrô I quem transmitiu à astronomia medieval
(e. através desta , à ciência moderna ) a expressão
vimento uniforme cuja combina ção com o movi
mento das outras resultava no movimento aparente
¬

“ salvar as aparências ” (xà cpaivó peva acóte tv ) co ¬ do planeta . O aspecto decisivo aqui é o do estatuto
mo lema da ci ência plat ónica . Se n ão do pró prio atribu ído às hipóteses: para Plat ão , elas n ã o deveri¬

Plat ão, a expressã o vem todavia do ambiente da am de modo nenhum ser consideradas como prin ¬

Academia , e talvez n ão seja por acaso que ela foi cípios verdadeiros, mas precisamente como hipóte ¬

atribu ída pela primeira vez a Heraclides do Ponto, ses, cujo sentido se esgotava com a salva çã o dos fe ¬

candidato à sucess ão de Espeusipo na direcção da n ómenos. Como escreve Proclo , na sua polé mica
Academia: dele se conta que ter á tentado falsificar com aqueles que tomam as hipóteses por princípios
a aparência da sua pró pria morte (substituindo o n ã o hipot é ticos: “ estas hipóteses foram concebidas
cad á ver por uma serpente ) , sendo por isso, segun ¬ para descobrir os movimentos dos astros — que,
do o mesmo biógrafo, posto a rid ículo com um em verdade, n ão diferem da sua aparência (còa7tep
acróstico por n ão ter reconhecido a natureza apó ¬ KOU tpaí vexai ) — , ou seja para tornar inteligível a
crifa de um manuscrito de Sófocles. medida desses movimentos” . Assim , quando Newton
No seu coment á rio ao De coelo de Arist óteles , inscreve o seu Hypotheses non fingo no limiar da
Simplicio expõe nestes termos a tarefa que Plat ã o . ci ência moderna , atribuindo a esta a tarefa de de ¬

teria atribu ído aos astrónomos do seu tempo: duzir da experiê ncia as causas reais dos fenómenos,
“ Plat ão admite , em princípio, que os corpos celes ¬ a express ão “ salvar as aparências ” iniciou aquela
tes se deslocam segundo um movimento circular, lenta migra ção sem â ntica que, exilando - a do â mbi ¬

uniforme e constantemente regular. Coloca , assim , to da ci ê ncia , a levou a assumir o significado pejo ¬

aos matem á ticos o seguinte problema: quais sã o os rativo que ainda tem no uso corrente.

118 119

/-
\

Que coisa podia significar, na inten ção plat óni ¬


Ideia da gló ria
ca , xà (paivó peva atoÇetv ? Com que finalidade
eram salvas as aparências ? E salvas de qu ê?
A aparê ncia errante tornou -se compreensível
gra ças às hipóteses , ficou liberta de toda a necessi ¬
dade de explica ção cient ífica ulterior, de todos os
“ porqu ê? ” que a hipó tese chamou a si . A hip ótese,
dando conta disso , mostra a err â ncia da aparê ncia “ Parecer ” : como é estranha a gram á tica deste
como aparência da err â ncia . O que n ão significa que verbo! Ele significa tanto videtur ( “ tem a aparê ncia
a hipótese seja verdadeira , que ela se possa substituir de, aparece -me como , podendo, assim , ser engana ¬

à aparência como um fundamento real ein torno do dor ” ) como lucet ( “ brilha, manifesta -se na sua evi ¬

qual devesse girar o conhecimento. A bela apar ência , dencia ” ) ; de um lado, uma latência que fica escondi ¬

n ão explicá vel ulteriormente através de hipó teses, é da na sua própria maneira de se dar a ver ; do outro,
assim entesourada , poupada, “ salva ” para uma outra uma visibilidade sem sombra, pura e absoluta. Na
compreensão, que a capta agora por ela e nela pró ¬
Vita Nuova , construída inteiramente como uma feno ¬

pria , a-hipoteticamente , no seu esplendor. Chega -se, menología, por assim dizer, da aparê ncia , os dois sen ¬
é certo, ent ão ainda a um elemento sensível ( daqui tidos surgem por vezes intencionalmente contrapos ¬
o termo “ ideia ” , que indica uma visã o, íóeíV ) , mas tos: “ julgava { mi parea ) ver no meu quarto uma nu ¬

n ã o a um elemento sensível pressuposto em relaçã o vem cor de fogo dentro da qual eu distinguia uma
à linguagem e ao conhecimento , antes exposto ne ¬ figura de um senhor de aspecto pavoroso para quem
les, de forma absoluta. A aparência que assenta , não o olhasse; e ele aparecia -me ( pareami ) , em si mesmo,
j á na hipótese, mas nela pró pria , a coisa já n ão se ¬ tão cheio de alegria... ” Com n ão menos ironia,
parada da sua inteligibilidade, mas no cerne dela — Guinizelli30 distingue-os, como se quisesse evidenciar
é isto a ideia, a pró pria coisa. melhor a confusão entre os dois: “ mais qué a estrela
de Diana brilha e parece... ” ( pm che Stella Diana
splende e pare.. .)
Estes dois sentidos não são realmente separáveis,
e n ão é fácil , em certos casos, decidirmo- nos por um
ou pelo outro: é como se todo o esplendor implicasse
uma aparência , todo o “ parecer ” um “ aparecer ” .
Guinizelli’. Guido de Guinizelli (1230 ou 1240 - 1276), autor Jas Rime
que influenciaram decisivamente o gosto de Dante e seus contempor â neos.

120 121
|
No rosto humano, os olhos afectam -nos, não f ( “ doxa ” significa etimológicamente aparência, sem¬

pela sua transparencia expressiva, mas precisamen ¬


blante). No Evangelho de S. João, aquele que cr é
te pelo contr ário: pela sua obstinada resist ência à em Cristo não precisa de sinais ( oqueta, milagres ) ,
expressão, a sua perturbação. E se olhamos o outro porque vê ¡mediatamente a sua glória, o seu “ ros ¬

nos olhos, vemos t ã o pouco esse outro que os seus to ” . Este est á totalmente exposto na cruz, o último
olhos nos devolvem o nosso olhar, essa imagem mi - “ sinal” , no qual todos os outros se consumam.
niaturizada que dá o seu nome à pupila.
Neste sentido, o olhar é verdadeiramente “ o Olho alguém nos olhos: estes p õem - se no ch ão
fundo do homem ” — mas esse depósito do huma ¬
(por pudor, um pudor que vem precisamente desse
no, essa opacidade abissal, essa miséria do semblan ¬
vazio atr á s do olhar) , ou ent ão olham -me também.
te (na qual tantas vezes o amante se perde, e que o E eles podem olhar-me despudoradamente, exibin ¬

homem político é capaz de avaliar t ão bem, para fa ¬


do o seu vazio como se por tr ás deles existisse um
zer disso um instrumento de poder ) , é o único sinal outro olho abissal que conhece esse vazio e o usa
genuíno da espiritualidade. como refúgio ¡impenetr ável; ou ent ão com um sem -
-pudor casto e sem reservas, permitindo que no va
1

A palavra latina voltas — de onde deriva o itali


¬
zio dos nossos olhares se instalem amor e palavra.
ano “ volto ” ( rosto, semblante) tem um único equi¬

valente nas línguas indo-europeias, e uma exacta cor¬


Nas fotografias pornogr áficas, é por um estrata¬

respondência apenas no gó tico wullhus. Na Bíblia gema calculado que os sujeitos retratados por vezes
de Wulfila, que nos transmitiu este vocábulo, ele se voltam para a objectiva, exibindo assim a consci ¬

não serve, no entanto, para dar uma palavra que ência de estarem expostos aos olhares. Esta circuns ¬

signifique “ rosto ” ( já Cícero observava que o grego t ância inesperada desmente com violência a fic ção
n ã o possui um equivalente para esta palavra: “ aqui¬
implícita no consumo de tais imagens, segundo a
lo a que nós chamamos ‘rosto’” , escreve, “ e que i qual aquele que olha surpreende os actores sem ser
não pode existir em nenhum animal, mas apenas no visto: estes, desafiando conscientemente o seu
homem, assinala o elemento moral: este significado olhar, obrigam o voyeur a olhá-los nos olhos.
os Gregos não o conhecem, e por isso lhes falta No breve instante que dura esta surpresa, nasce
também a palavra ” ), mas traduz o grego ôó a, que entre essas imagens sórdidas e aquele que as olha
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significa a glória de Deus. No Antigo Testamento, a qualquer coisa como uma autêntica interrogação
glória (Kabod ) indica a divindade no momento em amorosa; o despudor confunde- se com a transpa ¬

que ela se manifesta aos humanos, ou antes, a mani ¬


rência e, por um instante, a sua aparição é apenas
festação como um dos atributos essenciais de Deus esplendor (mas s ó por um instante: é claro que aqui

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/-
a inten çã o impede a perfeita transpar ência , j á que cessidades e da nossa rela çã o imediata com elas.
os modelos sabem que est ã o a ser olhados, sã o pa ¬ Elas sã o , simplesmente , maravilhosamente , inatingi -
gos para o saber ). velmente.

No momento em que a imagem reflectida é Mas que coisa pode significar a visão de uma
inervada na retina e se torna propriamente visã o, o cegueira ? Eu quero apreender a minha obscurida ¬
olho é necessariamente cego. Ele organiza a visão à de, aquilo que em mim permanece n ã o-expresso e
volta deste centro invisível — o que significa , tam ¬ n ão dito : mas essa é precisamente a minha pró pria
bém , que toda a visã o é organizada para que n ã o n ão-lat ê ncia , o meu ser apenas rosto e aparência in ¬

vejamos esta cegueira . É como se toda a n ã o - lat ên - transpon ível. Se eu pudesse verdadeiramente ver o
cia contivesse, encastrada no seu centro , uma latê n - ponto cego do meu olho , n ã o veria nada (é esta a
cia inapagá vel , como se toda a luminosidade aprisi ¬ treva que , segundo os m ísticos , é a morada de
onasse uma íntima treva . Deus ) .
Este ponto cego permanece para sempre escon ¬

dido para o animal , que adere imediatamente à sua É por isto que todo o rosto se contrai numa ex ¬

pró pria vis ã o , que n ã o pode trair a sua pró pria ce ¬ pressã o , se torna hirto num cará cter e, deste modo ,
gueira , fazer a experiência dela . A sua consciê ncia * se ultrapassa e se aprofunda em si mesmo. O cará c
desvanece-se , assim , no próprio ponto em que des ¬ ter é o esgar do rosto quando se apercebe de que
perta: é pura voz ( é por isso que o animal ignora as n ã o tem nada para exprimir, e bate desesperada ¬

aparências; apenas o homem se interessa pelas ima ¬ mente em retirada em rela çã o a si pró prio , em bus ¬
gens enquanto imagens e conhece a aparê ncia co ¬ ca da sua própria cegueira . Mas aquilo que aqui se
mo aparência ) . poderia apreender mais n ã o seria que uma n ã o-la ¬
É agarrando - se com todas as suas for ças a este t ência , uma pura visibilidade: apenas um rosto. E o
ponto cego que o homem se constitui como sujeito rosto n ã o transcende a face -—é a exposiçã o da face
consciente. É como se tentasse desesperadamente na sua nudez, vit ória sobre o cará cter: palavra .
ver a sua pr ó pria cegueira . Assim , para ele, em toda
a visão se insinua um atraso , uma n ã o-contiguidade , E n ão nos foi a linguagem dada para libertar ¬

uma mem ória entre sinal e resposta . Pela primeira mos as coisas das suas imagens, para levar à aparê n ¬

vez , a aparê ncia separa -se da coisa, o semblante do cia a própria aparência , para conduzi - la à glória ?

esplendor. Mas esta gota de trevas este atraso —
remete para o facto de alguma coisa ser , é o pró prio
ser. Só para n ós as coisas são , libertas das nossas ne-

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L
Ideia da morte Ideia do despertar

a í talo Calvino

O anjo da morte , que em certas lendas se cha ¬ I . Nagarjuna percorria em todas as direcções o
ti Samael, e do qual sc conta que o pr ó prio reino de Andhra , e em todos os lugares onde parava
loisés teve de o afrontar, é a linguagem. O anjo ensinava à queles que queriam instruir-se a doutrina
í uncia - nos a morte— e que outra coisa faz a lin - da vacuidade. Acontecia que por vezes se mistura ¬

lagem ? — mas é precisamente este an ú ncio que


rna a morte t ã o dif ícil para nós. Desde tempos
vam entre os discípulos e curiosos alguns adversá
rios , e Nagarjuna tinha ent ã o , embora contra vonta
¬

lemoriais , desde que tem hist ória , a humanidade de , de refutar as suas objecções c deitar por terra os
ita com o anjo para lhe arrancar o segredo que ele seus argumentos. Dessas discussões nos pá tios perfu ¬
: limita a anunciar. Mas das suas m ã os pueris ape- mados dos templos ou no ru ído dos mercados ficara -
is se pode arrancar aquele an ú ncio que , assim co ¬ lhe um certo amargor. O que o atormentava não
rn assim , ele nos viera fazer. O anjo n ã o tem culpa eram , no entanto, os violentos reparos dos monges
isso, e r ó quem compreende a inocência da lingua - ortodoxos que lhe chamavam niilista e o acusavam
;m entende também o verdadeiro sentido desse de destruir as quatro verdades ( o que ensinava , se
íú ncio e pode , eventualmente, aprender a morrer. fosse bem compreendido, mais n ão era que o sentido
das quatro verdades ). Tampouco o perturbavam as
ironias dos solit á rios que, quais rinocerontes, cultiva ¬

vam a ilumina ção só para si ( n ã o tinha sido , n ão era


ele próprio ainda um tal rinoceronte?) . Afligiam -no
mais os argumentos daqueles lógicos que nem se-
--- quer se apresentavam como adversá rios e declara ¬

vam até professar a mesma doutrina . A diferen ça en ¬


tre o seu ensinamento e o deles era t ã o subtil que ele
próprio, por vezes , n ão conseguia ver onde estava.
E no entanto n ão se podia imaginar nada de mais
distante. Porque se tratava , de facto, da mesma dou -

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trina da vacuidade, mas tratada adentro dos limites mo vazio , se se lhe atribui o ser ou o n ão- ser, isso é
da representação. Eles serviam -se da produ ção con ¬
que é o niilismo, isso e mais nada: apropriar- se do
dicionada e do princípio de razão para mostrar a va ¬
nada como de uma presa , como uma defesa contra
cuidade de todas as coisas, mas não chegavam à quele a vacuidade. Mas o sá bio est á na dor sem encontrar
ponto onde esses princípios revelavam a sua própria nela , nem al ívio, nem razão: est á na vacuidade da
vacuidade. Em suma , postulavam como princípio a dor. Por isso , Candrakirti, escreve: aquele para
ausência de todo o princípio e , deste modo, ensina¬
quem at é a vacuidade é uma opinião, e o irrepre-
vam o conhecimento sem o seu despertar, a verdade sent á vel uma representa ção , aquele para quem o in ¬

sem a sua invenção.


Nos últimos tempos, esta doutrina imperfeita

dizível é uma coisa sem nome - cs Vitoriosos ter ão
razã o em declar á -lo incur á vel. Ele á como aquele
tinha penetrado também entre os seus discípulos. comprador demasiado ávido que, ao vendedor que
Nagarjuna ruminava estas ideias enquanto ia , mon ¬ lhe diz ‘n ão te darei nenhuma mercadoria ' , respon ¬

tado num burro, em direcção a Vidharba. O atalho de ‘d á - me ao menos a mercadoria chamada ‘nenhu ¬

estreito corria entre uma alta montanha cor- de- rosa ma ’ ... Quem vê o absoluto n ão vê outra coisa sen ão
e um prado a perder de vista , interrompido aqui e ' a vacuidade do relativo. Mas precisamente esta é a
ali por pequenos lagos que espelhavam as nuvens. prova mais dif ícil: se não entendes a natureza da va ¬
Até Candrakirti , o seu discípulo mais querido, p- cuidade e continuas a fazer uma representa ção de¬
nha sido vítima daquele erro. Mas como se podia la , ent ão cais na heresia dos gram á ticos e dos niilis
¬

combatê-lo sem recorrer a uma representação ? tas: és como o mago que foi mordido pela serpente
Com os joelhos enganchados sobre a sua parda que n ão soube apanhar. Se, pelo contrá rio, pacien ¬

montada , o olhar perdido entre as pedras e os mus ¬ temente, permaneceres na vacuidade da representa ¬

gos do atalho, Nagarjuna sentia nascer dentro de si ção, se n ão te fazes nenhuma representa ção , ent ão,
o esboço das Estâncias para o Caminho do Meio: ó bem -aventurado , atingir ás aquilo a que chamamos
“ Aqueles que professam a verdade como uma o caminho do meio. O vazio relativo deixa de ser re ¬

doutrina , como uma representação da verdade. lativo em relação a um absoluto. A imagem vazia dei ¬

Estes outros tratam o vazio como uma coisa , repre ¬ xa de ser a imagem do nada. A palavra extrai a sua
sentam a vacuidade da representa ção. Mas o conhe ¬ plenitude da sua própria vacuidade. O despertar é
cimento da vacuidade da representa ção n ão é, por esta suspensão da representa ção. Aquele que desper ¬
sua vez , uma representa ção: é simplesmente o fim ta sabe apenas que sonhou , sabe apenas da vacuida ¬

da representação... Tu queres usar o vazio como um de da sua representa ção , só conhece aquele que dor ¬
ref úgio contra a dor: mas como poderia a vacuida ¬
me. Mas o sonho que agora recorda nã o representa ,
de proteger- te ? Se o vazio não permanece esse mes- não sonha nada. ”

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/-
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II. “ Redeu de Perusio et de nocte profunda venio presenta ção n ão foi transcendida por uma outra re ¬
hue et est tempus hiemis lutosum et adeo jrigidum, presenta ção superior, mas apenas através da sua
quod dondoli aquae frigidae congelatae fiunt ad ex- exibição , do seu aprofundamento. Enquanto limiar,
tremitates tunicae et percutiunt super crura et san¬
guis emanat ex vulnerihus talibus. Et totus in luto et
o nome in - significante— a subjectividade pura
faz parte do edif ício da alegria. )

frigore et glacie venio ad ostium, et postquam diu
pulsavi et vocaoi, venit frater et quaerit: Quis est?
Ego respondeo: Prater Pranciscus. Et ipse dicit: Vade,
non est hora decens eundi; non intrahis. Et iterum
insistenti respondeat: Vade; tu es unus simplex et idi ¬

ota; admodo non venis nobis; nos sumus tot et tales,


quod non indigemus te. Et ego iterum sto ad ostium
et dico: Amore dei recolligatis me ista nocte. Et Ule
respondet: non faciam. Vade at loco cruciferorum et
ibi pete. Dico tibi quod si patientiam habuero et non
fuero motus, quod in hoc est vera laetitia et vera vir-
tus et salus animae.” J, i
( S. Francisco n ã o encontra ref ú gio no n ã o- reco ¬
nhecimento, em caso algum a ausência de identida ¬

de pode constituir uma nova identidade. Ele insiste


antes, repetindo: Sou eu, Francisco , abri! Aqui, a re ¬

31) Tradu ção do texto latino: “ Venho de Perugia , chego aqui a meio da
noite e é Inverno, tudo enlameado e tanto frio. E gotas dc. á gua fria , gelada , co¬
brem -me o há bito e fustigam -me as pernas de tal modo que sai sangue das feri ¬

das. E cheio de lama e frio e gelo chego ao port ão, e depois de eu bater e cha ¬

mar muito tempo vem um irmão e pergunta: Quem é? Eu respondo: O irmão


Francisco! E ele diz: Vai - te! Com um tempo destes nenhum homem decente
anda por esses caminhos. Não podes entrar. Eu insisto, e ele volta a responder:
Vai-te! És um louco e um idiota ! E gente dessa n ão entra no nosso convento .
Somos que chegamos, não precisamos de ti. E eu continuo diante do port ão e
digo: Por amor de Deus, deixai -me Pear esta noite! E ele responde: N ão faço
uma coisa dessas. Vai ao acampamento dos soldados c pede asilo lá. Mas ainda
te digo: se fosses paciente e n ão andasses por a í t ão activo, essa seria a verdadei ¬
ra bem -aventuran ça e a verdadeira virtude e a salva ção da alma . ”

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/-
1

LIMIAR

/
Defesa de Kafka contra os seus intérpretes

Sobre o inexplicável correm as mais diversas


lendas. A mais engenhosa — encontrada pelos ac ¬

tu á is guardi ões do Templo ao remexerem nas ve ¬

lhas tradições — explica que , sendo inexplicá vel,


ele permanece como tal em todas as explicações
que dele foram dadas e continuar ão a sê-lo nos sé ¬

culos vindouros. São precisamente essas explica ¬

ções que constituem a melhor garantia da sua inex-


nlicabilidade. O ú nico conte údo do inexplicá vel
e nisto est á a subtileza da doutrina — —
consistiria na
ordem ( verdadeiramente inexplicá vel ):“ Explica! ”
N ão podemos subtrair-nos a esta ordem , porque ela
n ão pressupõe nada de explicá vel, ela própria é o
seu ú nico pressuposto. Seja o que for que se res ¬

ponda ou - n ão responda a esta ordem — mesmo o



silêncio - ser á de qualquer modo significativo,
conter á de qualquer modo uma explica ção.
Os nossos ilustres pais — —
os patriarcas , n ã o
encontrando nada para explicar, procuraram no seu
cora ção a maneira de explicar este mist ério, e n ão
encontraram , para o inexplicável , nenhuma expres ¬

são mais adequada que a própria explica ção. A ú ni ¬

ca maneira de explicar que n ão h á nada a explicar


— este o seu argumento
Qualquer outra atitude


é dar explicações disso.
incluindo o silêncio —
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/-
agarra o inexplicá vel cora m ã os demasiado desajei ¬

tadas: só as explica ções o deixam intacto.


Entre os patriarcas , que foram os primeiros a
formular esta doutrina, ela andava , porém , sempre
a par com um codicilo que os actuais guardiões do
Templo deixaram cair. O codicilo deixava claro que
as explica ções n ã o poderiam durar eternamente:
:
um dia , a que eles chamavam o ‘ dia da Glória ” ,
cias poriam fim às suas dan ças em volta do inexpli ¬

cá vel .
De facto , as explicações n ã o sã o mais que um
momento na tradi ção do inexplicá vel: o momento
que toma conta dele, deixando-o inexplicado.
Privadas do seu conte údo, as explica ções esgotam
assim a sua fun çã o. Mas no momento em que, mos ¬

trando a sua vacuidade, elas o abandonam , também


o inexplicá vel vacila . Inexplicá veis eram , na verda ¬
de, apenas as explica ções, e para as explicar inven -
tou -se aquela lenda . Aquilo que n ã o podia ser ex ¬
plicado est á perfeitamente contido naquilo que n ão
explica mais nada .

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