Monografia - O Sentido Da Religiao em Freud, Jung e Montefoschi - 2020

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AELLA - INSTITUTO INTERNACIONAL SER&SABER CONSCIENTE

RAQUEL MIRANDA ARAUJO LIMA

O SENTIDO DA RELIGIÃO EM FREUD, JUNG E MONTEFOSCHI

Curitiba - PR

2020
RAQUEL MIRANDA ARAUJO LIMA

O SENTIDO DA RELIGIÃO EM FREUD, JUNG E MONTEFOSCHI

Monografia apresentada como requisito parcial


à conclusão do Curso de Formação em
Psicanálise Pós-Junguiana do AELLA –
Instituto Internacional Ser&Saber Consciente.

Orientadora: Profa. Dra. Adriana Tanese


Nogueira.

Curitiba - PR

2020
Ao Ser que nos permeia.
AGRADECIMENTOS

Agradeço o amor da vida que, em sua generosidade e continuidade, permitiu minha

concepção, geração e nascimento.

Agradeço o amor fundamental de meus pais (in memorian), Luiz, homem comunicativo

e trabalhador, e Bernadete, mulher sensível e dedicada, que juntos se doaram a mim

e a meus irmãos, nutrindo, ensinando valores importantes e nos incentivando e

proporcionando estudar e trabalhar.

Agradeço o amor e incentivo do meu esposo, Fabiano. Seu olhar é nutrimento e

espelho meu em afetos e também em desafios a serem superados.

Agradeço o presente do amor e da vida, nossas filhas Sofia e Sâmia, turbilhões de

sentimentos despertados em meu coração.

E agradeço imensamente à minha orientadora, professora e analista Adriana Tanese

Nogueira, que tanto nos ensina. Foi quem me guiou no despertar do meu amor ao ser,

e me sugeriu o tema deste trabalho, consonante com minhas buscas; incentivou e

compartilhou leituras importantes, que senti tão providenciais em minha vida enquanto

escrevia. Certamente uma profissional que inevitavelmente admiro como pessoa e ser

que é.

Por fim agradeço ao AELLA – Instituto Internacional Ser&Saber Consciente, pela

oportunidade de produzir e publicar este trabalho e pela continuidade em

aprendizados.
“Talvez brincando
de correr atrás daquele
grande deus criança,
eu ultrapasse ali
onde se vive
a intimidade dos numens,
e descobri
o sono pequeno do vento
adormecido em seu grande respiro,
e surpreendi o sol,
à fresca nudez,
que me aquecia
em um espelho d’água.

Mas a minha boca,


ainda na expressão
de uma tímida careta de incerteza, não soube acolher
aquele riso, aquele riso cheio
da minha grande criança.

Talvez tremeu
na sombra, ainda, daquele pudor, talvez temeu a
nova intimidade daquele silêncio.

E o grande deus criança voltou


ao seu sono grave,
sobre o meu peito.”

“A fuga”, Silvia Montefoschi


(“Foi uma chuva de estrelas sobre o meu rosto”)
RESUMO

Faz-se necessário encontrar o sentido da religião na vida de uma pessoa. Mais cedo
ou mais tarde essa palavra encontra alguma importância, pois que nascemos,
crescemos com algum amparo e depois é preciso assumir as rédeas de encontrar e
manter um amparo próprio. E nesse ponto, a religião seja como fé, seja como modelo
de crença ou outro significado, inevitavelmente surgirá, só não de uma mesma
maneira para todos, pois que não se tem um conceito pronto e fixo dessa palavra. A
religião surge como ideia de uma ou várias experiências com o sagrado, vivenciadas
por pessoas, e de variadas formas criam-se conceitos que uma parte de nossa mente
quer fixar, quer obter garantias. Impossível. O sentido da religião em três perspectivas
importantes da psicanálise nos fornece uma direção a olhar. Freud, criador desse
método terapêutico que reconhece o inconsciente como parte importante e atuante
no indivíduo, apresenta a religião como uma ilusão, um dilema a ser resolvido
futuramente. Jung, pesquisador empirista, por meio de suas experiências inéditas,
explicita pontos importantes do inconsciente e sobre a religião, a qual diz ser uma
função autônoma e primária natural da psique. Montefoschi, por sua vez, nos traz
uma abordagem que não somente abarca as duas anteriores, mas nos mostra uma
direção universal a seguir. Cabe a cada um, como parte importante de uma sociedade
e de um todo, encontrar esse direcionamento interno.

Palavras-chave: Religião – Sagrado – Freud – Jung – Montefoschi – Psicanálise –


Psique – Individuação – Sentido – Universal.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO......................................................................................................7
1.1 SIGNIFICADO E SENTIDO DA RELIGIÃO E SUA RELAÇÃO COM A
PSICANÁLISE
2 OBJETIVO...........................................................................................................12
2.1 JUSTIFICATIVA E MÉTODO................................................................12
3 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA................................................................................14
3.1 O SENTIDO DA RELIGIÃO EM FREUD: O Futuro de Uma Ilusão........14
3.2 O SENTIDO DA RELIGIÃO EM JUNG: Psicologia e Religião................21
3.3 O SENTIDO DA RELIGIÃO EM MONTEFOSCHI: O Tema do
Universal...............................................................................................30
3.4 RELIGIÃO NO SÉCULO XXI................................................................36
4 CONCLUSÃO......................................................................................................39
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................44
7

1 INTRODUÇÃO

1.1 SIGNIFICADO E SENTIDO DA RELIGIÃO E SUA RELAÇÃO COM A

PSICANÁLISE

A escrita requer palavras cujo entendimento dos significados etimológicos

presume-se, em sua maior parte. Quando necessário, uma explicação além é

oportuna e normalmente suficiente. Porém há de se saber que mais de um

significado pode gerar controvérsias e este é o caso da palavra religião. Eis

então, antes de prosseguirmos, um breve esclarecimento de sua origem

etimológica.

O termo religião deriva do latim religio, cuja etimologia não é totalmente

esclarecida. (RELIGIONE, 2020).1

Historicamente foram propostas várias etimologias para a origem de

religio. Cícero2, na sua obra De natura deorum, (45 a.C.) afirma que o termo se

refere a relegere, “reler”, sendo característico das pessoas religiosas

compenetrarem-se de tudo o que se relacionava com os deuses, relendo assim

as escrituras, ou sublinhando o carácter repetitivo do fenômeno religioso,

refazendo rituais, com atenção. Mais tarde, Lactâncio3 (século III e IV d.C.) rejeita

a interpretação de Cícero e afirma que o termo vem de religare, “religar”,

1
RELIGIONE em: https://it.wikipedia.org/wiki/Religione#cite_note-2
2
Marco Túlio Cícero (106–43 a.C.; em latim: Marcus Tullius Cicero, em grego clássico: Κικέρων; transl.:
Kikerōn) foi um advogado, político, escritor, orador e filósofo da gens Túlia da República Romana eleito
cônsul em 63 a.C. com Caio Antônio Híbrida. Era filho de Cícero, o Velho, com Élvia e pai de Cícero, o
Jovem, cônsul em 30 a.C., e de Túlia. Cícero nasceu numa rica família municipal de Roma de ordem
equestre e foi um dos maiores oradores e escritores em prosa da Roma Antiga. Ref:
https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%ADcero
3
Lucio Célio Firmiano Lactâncio, em latim : Lucius Caecilius (ou Caelius) Firmianus Lactantius , mais
conhecido simplesmente como Lactâncio (África , cerca de 250 - Gália , depois de 317), foi um escritor
romano , retórico e apologista da fé cristã , entre os mais famoso do seu tempo. Ref:
https://it.wikipedia.org/wiki/Lattanzio e https://pt.wikipedia.org/wiki/Lact%C3%A2ncio.
8

argumentando que a religião é um laço de piedade que serve para religar os

seres humanos a Deus. No livro A cidade de Deus Agostinho de Hipona4 (século

IV d.C.) afirma que religio deriva de religere, “reeleger” em que a humanidade

reelegia de novo a Deus, do qual se tinha separado. Posteriormente, na obra De

vera religione, Agostinho retoma a interpretação de Lactâncio, que via em religio

uma relação com "religar".

Atualmente encontramos nos dicionários os seguintes significados para

religião: Crença em forças superiores que regem o destino do ser humano, sendo

estas responsáveis pela criação do universo e, por isso, devem ser respeitadas;

comportamento moral e intelectual que é resultado dessa crença (7Graus,

2019)5; manifestação de tal crença por meio de doutrina e ritual próprios, que

envolvem, em geral, preceitos éticos; reverência às coisas sagradas; crença

fervorosa, devoção; vida religiosa; princípios (FERREIRA, 2004)6; ato de

professar ou praticar uma crença religiosa; ordem ou congregação religiosa

(MELHORAMENTOS, 2020)7.

Azevedo (2010) cita que “Segundo Benveniste, relegere diz respeito a

recolher-se, a fazer uma nova escolha, a retornar a uma síntese anterior para

recompô-la, e religio, o escrúpulo religioso, sendo, na origem, uma disposição

subjetiva, um movimento reflexivo ligado a algum temor de caráter religioso:

“refazer uma escolha já feita (retractare, diz Cícero), revisar a decisão que dela

4
Agostinho de Hipona (em latim: Aurelius Augustinus Hipponensis), conhecido universalmente como
Santo Agostinho, foi um dos mais importantes teólogos e filósofos nos primeiros séculos do cristianismo,
cujas obras foram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e filosofia ocidental. Era o bispo
de Hipona, uma cidade na província romana da África. Escrevendo na era patrística, é amplamente
considerado como sendo o mais importante dos Padres da Igreja no ocidente. Suas obras-primas são De
Civitate Dei ("A Cidade de Deus") e "Confissões". Ref: https://pt.wikipedia.org/wiki/Agostinho_de_Hipona
5
RELIGIÃO em: https://www.dicio.com.br/religiao/
6
RELIGIÃO em: FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3 ed.
revisada e atualizada. Curitiba: Positivo, 2004. p. 1729.
7
RELIGIÃO em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-
brasileiro/religi%C3%A3o/
9

resulta, tal é o sentido próprio de religio. Ele indica uma disposição interior e não

uma propriedade objetiva de certas coisas ou um conjunto de crenças e de

práticas. A religio romana, na sua origem, é essencialmente subjetiva.”.

Nota-se que sua origem etimológica não é única, visto que se trata não

só de um simples significado, mas refere-se também a uma ideia.

Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicanalista suíço, contemporâneo de

Sigmund Freud com quem primeiro aprendeu sobre psicanálise, deu

considerável importância ao tema em seus estudos.

Portela (2013, p.52) busca descrever em seu trabalho o conceito de

religião no pensamento de Jung:

A religião é ressaltada enquanto uma


observação cuidadosa de fenômenos e forças sobrenaturais que
transpassam o mundo objetivo. Jung também recorre a esta
definição em algumas cartas, onde relata que: “Segundo opinião
antiga, a palavra religio provém de religere e não do termo
religare. A primeira palavra significa ‘considerar ou observar
cuidadosamente’. Esta derivação dá a religio a correta base
empírica, isto é, a condução religiosa da vida [...]” (Cartas, v. III,
p. 227). (...) De toda forma, o conceito de religião usado por Jung
se remete às raízes antigas do paganismo, no qual está
vinculado à prática correta dos ritos, exigindo uma postura de
escuta, observação e submissão por parte do ser humano ao
desejo ou à vontade dos deuses.

“Encaro a religião como uma atitude do


espírito humano, atitude que de acordo com o emprego ordinário
do termo: “religio”, poderíamos qualificar a modo de uma
consideração e observação cuidadosa de certos fatores
dinâmicos concebidos como “potências”: espíritos, demônios,
deuses, leis, ideias, ideais, ou qualquer outra denominação dada
pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a
experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos,
perigosos ou mesmo úteis, para merecerem respeitosa
consideração, ou suficientemente grandes, belos e racionais,
para serem piedosamente adorados e amados.” (OC, v. XI/1, p.
20, § 8)
10

Relembrando a definição de Cícero para o termo relegere, associado a

“reler”, nota-se que também significa observação cuidadosa e nova leitura, ou

seja, releitura com estado de atenção no sentido de querer se aprofundar, de

atribuir novo aspecto, de ir além das aparências que é a abordagem que Jung

recupera.

No entanto, a discussão a respeito da origem da palavra religião, ou

mesmo seu conceito definido atualmente, não será o objetivo do presente

trabalho. Vamos nos guiar à sua ideia principal e compreensível ao senso

comum, que é a de que: religião é a experiência vivenciada com o sagrado.

Sagrado este que, seja como busca, vivência, sentimento ou pensamento,

expressos ou não, é aspecto partícipe comum da vida de todo ser humano.

Lembremos que o sagrado é uma experiência sentida e vivida

internamente e, portanto, individualmente em primeiro lugar. Independente e

antes de qualquer correlação a uma denominação externa que a queira definir,

é de dentro que ela surge ou, também, é vivenciada fora e percebida dentro, e,

portanto, nesse ponto é indiscutível seu aspecto subjetivo. Fato que não exclui,

a posteriori, sua comunicação e comunhão entre seres humanos, que é onde se

volta ao significado de religião.

Mas a religião tomou caminhos vários, nunca tendo encontrado campo

fértil onde germinar e crescer como conceito universal estático, justamente

porque o lugar fecundo não se encontra fora do ser e nem mesmo é inerte.

Sendo o sagrado um objeto de experiência particular, com dimensão

singular, cabe a cada um o direito e a responsabilidade de decifrar e construir

sua própria verdade autêntica, seu propósito, a partir do seu conhecer-se como

ser individual que também pertence ao todo, ser coletivo. Construção esta que
11

se faz na relação consigo e com o outro. No entanto, para que esta relação seja

límpida, coerente, e dinâmica, é necessário justamente rever o próprio caminho

e desvendar os desafios a serem superados.

A psicanálise, método terapêutico criado por Sigmund Freud no final do

século XIX, nasce como ferramenta para esse autoconhecimento porque

inaugura um campo de conhecimento inédito e que gradualmente “reconhece no

discurso interior, que se desenvolve no indivíduo singular, o discurso humano

em sua universalidade e chega assim a admitir que aquilo que o homem singular

alcança em si mesmo pertence à inteireza do humano.” (MONTEFOSCHI, 1984).

De fato, por validar a experiência individual, a psicanálise permite que

cada ser, realizando o si mesmo, recupere suas partes constituintes para tornar-

se “ser integral”, reconectando-se então à evolução da consciência.

Essa ciência independente, formalmente iniciada em Freud, ganha novas

amplitudes em Jung e Silvia Montefoschi.

Em uma entrevista à BBC em 1959, quando perguntado se antes

acreditava em Deus e se agora ainda acreditava, Jung respondeu: “Oh, sim.

Agora? ... Difícil responder... Eu sei. Eu não preciso acreditar. Eu sei.”8

8
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SjP_nRvHfuQ
12

2 OBJETIVO

2.1 JUSTIFICATIVA E MÉTODO

Mas então, qual é a relevância do tema do sentido da religião em Freud,

Jung e Montefoschi?

É perceptível a necessidade de sair da discussão somente externa ou

superficial sobre o significado do termo religião e dar vez e voz ao que de fato

cria e alimenta esse aspecto: o fio condutor, o mistério que se encontra no

profundo de todo ser, que por sua vez, já sabemos, não é monopólio de nenhuma

religião como instituição. Tal discussão em sua origem, é justamente a

experiência individual com o sagrado e é também o sentido deste tema.

A experiência do sagrado é sim religiosa, independente de conotações.

O sagrado é encantador, mas também pode ser ameaçador e assombroso. Daí

a importância dos rituais e da figura mediadora (padre, líder religioso ou outra

denominação) entre os mundos objetivo e subjetivo.

Vê-se, no decorrer da história, que as pessoas continuam indo à igreja

para renovar suas crenças. Mudam-se os nomes, os papéis e até mesmo outras

configurações vêm se modificando. O que porém não mudou é a crença em si.

Mas a crença deveria mudar? O que ainda não descobrimos? A crença

vivida como fé não necessariamente precisa mudar, mas se vivida como

conhecimento, então aí se transforma, e há a necessidade inerente do ser, agora

reconhecida, que pede pela mediação individual interna, contínua, como um rio

perene.
13

A revisão bibliográfica será a abordagem em síntese da obra, ou parte

dela, dos três autores: O futuro de uma ilusão de Sigmund Freud, Psicologia e

Religião de Carl Gustav Jung e O Tema do Universal de Silvia Montefoschi,

incluindo as correlações pertinentes e outros artigos relacionados.


14

3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

3.1 O SENTIDO DA RELIGIÃO EM FREUD: O Futuro de Uma Ilusão

Freud (1856 – 1939), médico neurologista e psiquiatra criador da

psicanálise, em O Futuro de uma Ilusão, obra publicada ao final da década de

1920, aborda o lugar que ocupa a religião como fruto de nossa cultura e

civilização, dimensões que diferenciam os seres humanos dos animais e que

Freud utiliza como sinônimo uma da outra. De fato, é perceptível a similaridade

dos conceitos encontrados de civilização e de cultura: a civilização9, processo

pelo qual os elementos culturais concretos ou abstratos de uma sociedade

(conhecimentos, técnicas, bens e relações materiais, valores, costumes, gostos,

etc.) são coletiva e/ou individualmente elaborados, desenvolvidos e

aprimorados; e cultura10, processo ou estado de desenvolvimento social de um

grupo, um povo, uma nação, que resulta do aprimoramento de seus valores,

instituições, criações, etc., civilização, progresso.

Por civilização e cultura Freud descreve toda capacidade adquirida em

dominar as forças da natureza e obter seus bens para satisfação de

necessidades, como também as instituições necessárias para regular as

relações humanas e a divisão dos bens acessíveis, e as relações humanas

mútuas são influenciadas pela medida de satisfação de seus próprios impulsos.

No entanto, tais impulsos, sendo alimentados pelos bens e vice-versa, permitem

9
CIVILIZAÇÃO em: FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3 ed.
revisada e atualizada. Curitiba: Positivo, 2004. p. 478
10
CULTURA em: FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3 ed.
revisada e atualizada. Curitiba: Positivo, 2004. p.587
15

ao próprio indivíduo se relacionar com outro na condição de um bem, como força

de trabalho ou objeto sexual.

As urgências instintivas do indivíduo devem ser então refreadas para que

haja o funcionamento da sociedade mesmo que suas formas culturais sejam

ainda imperfeitas. Segundo Freud, dentre tais desejos impulsionais estão

"canibalismo, incesto, e ânsia de matar ", considerados primitivos, mas que ainda

da cultura se ressentem. Deste modo, ele afirma, só pela influência de indivíduos

que deem o exemplo e a quem as massas reconhecem como seus líderes, é que

estas (as massas) podem ser induzidas ao trabalho e a renunciar os instintos

destrutivos para que a civilização continue a existir. A sociedade hostil que

poderia se destruir, se preserva pelas normas e coerção ao trabalho. Essa

mesma repressão, no entanto, pode nos anular como seres individuais. É

discutível, porém, se viveríamos em harmonia caso a coerção cessasse, pois o

homem por si não é adepto ao trabalho e ficaria à mercê de suas paixões.

Segundo Antunes (2007), sobre O futuro de uma ilusão:

A maioria dos homens reprime seus desejos instintuais


primitivos (pela coerção), porém satisfazem outros desejos ou
impulsos que prejudicam os semelhantes, mas que podem ser,
de certa forma, camuflados e livres de punição. Isso demonstra
a incapacidade do homem de ser totalmente moralizado. Outro
fator bastante comum é o das restrições que se aplicam a grupos
provenientes de classes pouco favorecidas, às quais é imposto
um excesso de privações e trabalho, para manter privilégios dos
mais ricos ou detentores do poder, que não sofrem iguais
imposições e privações. Os grupos oprimidos podem
desenvolver certo grau de hostilidade a ponto de sentirem
revolta e desejo de destruir os postulados nos quais se baseia a
civilização.
16

Freud diz que o indivíduo ameaça a cultura e vice-versa, mas como

ambos são coexistentes, esta precisa ser defendida daquele com o uso das

normas. E como a psique também evolui, é natural que a coerção externa seja

internalizada, fortalecendo o superego, que é aspecto moral da personalidade.

Outra dimensão que o ser humano precisa enfrentar é o da natureza, que

não se deixa dominar. Neste ponto, é tarefa da cultura nos defender de suas

forças descomunais. “Procurei mostrar que as ideias religiosas resultaram da

mesma necessidade que todas as demais conquistas da cultura, da necessidade

de se defender da força opressora da natureza”, diz Freud (2011). Para se

proteger, o homem humaniza a natureza, dando-lhe um caráter divino. E quando

ele percebe que esta não pode protegê-lo do destino, volta-se à ideia de Deus

como um Pai poderoso que oprime, mas também protege, assim como a figura

paterna da infância.

Relacionando a religião com o desejo de suprir os desafetos do indivíduo,

Freud mostra que esta tem a natureza de uma ilusão, o que não é propriamente

um erro, pois quer atender a uma necessidade afetiva não diretamente ligada

com a realidade. Uma ilusão que brota de desejos humanos profundos: o desejo

de se ter um amparo paterno, de tornar suportável o desamparo em que se

encontra o ser humano, de ser acolhido após a morte, o desejo de que a vida se

perpetue.

Freud expõe a religião como uma neurose coletiva, pois que esta reaviva

a figura paterna da infância, aquela protetora e também punitiva, a quem se deve

respeito e temor, e que relembra o sofrimento infantil de desamparo na

convivência com tal figura. Freud argumenta que sofremos de neuroses da

infância que são inevitáveis e derivam das condições exteriores e da falta de


17

carinho, e que a religião elimina a maioria daquelas neuroses ao custo da criação

de uma outra neurose. Então "...a religião seria a neurose obsessiva universal

da humanidade e, tal como a da criança, teria a sua origem no complexo de

Édipo, na relação com o pai.” (Freud 2011), porém dela seria mais difícil de se

libertar, em oposição às neuroses tratáveis da infância, que Freud considerava

curáveis.

Assim como a ciência, a arte, a tecnologia e a política são frutos de uma

cultura, a religião também o é, porque intermedia e controla os impulsos

instintivos antissociais e anticulturais do homem tornando-se uma coerção

psicológica, que faz uso do temor ao castigo e da recompensa como meios

civilizatórios. “...para a psique individual, significa um imenso alívio que os

conflitos da infância que se originam do complexo paterno, nunca inteiramente

superados, lhe sejam tomados e levados a uma solução aceita por todos.”

(Freud, 2011).

A religião se vale de dogmas ancestrais passados de geração em

geração, que os indivíduos devem aceitar, respeitar e temer, pois tais dogmas

comunicam algo que o indivíduo comumente não encontra por conta própria, ou

seja, a proteção contra o desamparo. A intensidade da crença é diretamente

proporcional à necessidade de crer, pois a função da religião é a de proteção

psicológica, tornando suportável o sofrimento humano.

Por meio da religião, há um apaziguamento do conflito psíquico trazido

da infância como também do temor diante das forças da natureza, ambos nunca

superados, e há porém o desenvolvimento de uma neurose pessoal com a

possibilidade de ulterior superação da mesma, caso haja um processo assumido

de crescimento real, como pelo tratamento psicanalítico.


18

Assim a religião se torna um obstáculo ao indivíduo no enfrentar, como

adulto, as próprias angústias. A equação da lógica da vida parece não fechar.

Mas caso a superação dessa neurose seja possibilitada, há então uma relação

adulta com a realidade hostil da vida; usa-se a inteligência que se tem aqui e

agora, e não uma fuga para o além.

Freud afirma que a educação religiosa prejudica o desenvolvimento da

inteligência, pois impede o indivíduo de fazer seus próprios questionamentos e

suas próprias conclusões; subestima a inteligência da criança, quando não a

deixa começar a pensar e questionar por si, já sendo forçada a aceitar ideias

pré-concebidas, quando nela mesma deveriam acontecer novas concepções.

Freud apoia uma educação livre de dogmas e mais próxima à realidade cultural.

Um sonho pessoal retrata uma necessidade de resgate desse

pensamento humano genuíno:

R. está no evento de uma igreja. Era uma apresentação com crianças em

um palco. R. observa dois homens que estavam cuidando delas. Um deles quer

demonstrar uma brincadeira com uma das crianças, mas ela estava tímida e não

se manifestou. O homem chama então o nome de outra criança, que veio tão

rápido e era tão pequena que parecia um mosquito. R. só via a cabecinha dele.

Seus membros pareciam asas. R. então entra nos bastidores e descobre que ali

é um orfanato. Quer saber como funciona e se envolve nos cuidados com as

crianças; tem a sensação de estar trabalhando lá. Na hora do almoço pôde

escolher uma criança para alimentar. Foi atrás do menino que parecia um

mosquito. Ele estava dormindo dentro de uma caixa de sapatos perto da porta.

Quando o pega no colo, ele já está como um bebê maior e mais claro. Fica com

ele, e ambos se afeiçoam. R. poderia voltar depois para alimentá-lo, mas quando
19

vai até a porta, o bebê se agarra tão forte em sua perna que precisa então ficar.

R. coloca-o sentado em uma cama e o olha profundamente, bem dentro de seus

olhos. A feição da criança muda quando percebe esse olhar profundo. O agora

menino tinha sobrancelhas pretas e grossas, e os olhos também pretos e

grandes. Ele olha para R. com medo. R. o acolhe e não sabe mais a hora em

que sairia dali. Pensa como faria para adotá-lo.

Nota-se que no sonho, as crianças no palco da igreja estão entretidas

artificialmente e coagidas pela presença dos homens. A espontaneidade é

coagida. A liberdade de expressão é ensaiada. O menino, ainda com aparência

primitiva de mosquito, parecia estar disfarçando sua inteireza que não poderia

ser mostrada. É ágil porém pequeno. Cresce em seu aspecto humano quando é

visto profundamente, e demonstra medo de continuar ali. R. sente a premência

de levá-lo consigo.

Antes de Freud, outros filósofos já haviam posto em dúvida as crenças

religiosas, mas nenhum deles mencionou a religião como patologia. Freud

colocou-se em risco ao escrever que a religião é uma ilusão que faz o crente

perder o sentido de realidade em favor de fantasias psíquicas, que se tornam

ilusões em anuências coletivas. Anula-se a personalidade e comprime-se a

realidade, pois que a crença pela fé proporciona imunidade às dúvidas e

incertezas, encobrindo a condição natural humana (FREUD: LA RELIGIONE

COME PATOLOGIA, 2006).

Será possível viver sem religião? O que a substituiria para se ter

esperança e ser mais feliz? O desamparo, que é transferido para instâncias

religiosas ou até políticas, deveria ser assumido por cada um.


20

Porém Magnani, filósofo e estudioso de Freud, citado por Galardi (1998),

questiona sua metapsicologia11 quando analisa o conflito pessoal a partir da

recusa da religião por Freud, recusa esta que parece ter que encontrar uma

justificativa para aderir ao reducionismo científico de seu tempo. Apesar de que

em sua vida pessoal, ao menos até os 17 anos, Freud tenha participado da vida

religiosa dos pais, a educação recebida nunca se tornou uma escolha pessoal.

Aderiu ao empirismo científico e ao determinismo psíquico como pressuposto da

ciência. Na busca de um princípio explicativo universal, de fato, Freud não

apenas torna o homem impessoal, abstrato e teórico, mas nega a ele a

característica puramente humana do livre-arbítrio, apesar de afirmar a liberdade.

Assim, coloca a psicanálise dentro do paradigma científico, considerando-a no

início como apenas um método novo e imparcial usado para o tratamento de

neuroses. Em seguida, perde sua neutralidade quando não consegue encaixá-

la em uma só categoria.

Ele escreve sabendo e admitindo que não há como fazer um juízo ou

revisão coerente de algo quando a subjetividade afeta tal avaliação, mas ousa,

mesmo assim, fazer tal previsão para a religião e sugere uma superação racional

da mesma, o que não significa colocar outra crença sem sentido em seu lugar,

ou uma crença sem comprovações na ciência, o que seria outra ilusão.

11
Metapsicologia é uma série de escritos teóricos de Sigmund Freud que descreve os métodos de
construção e funcionamento dos processos psíquicos e aspectos da dinâmica psíquica por meio do uso de
conceitos principalmente simbólicos e metafóricos retirados do mundo da física. É provavelmente o ponto
de contato máximo entre a psicanálise em sua dimensão clínica, a psicologia e a filosofia. A metapsicologia
consiste principalmente em teorias derivadas do trabalho clínico com pacientes ou da observação direta,
e foi desenvolvida por Freud na necessidade de construir um amplo arcabouço teórico para a psicanálise
além dos aspectos clínicos e intervencionistas, criando assim um teoria completa da mente. A
metapsicologia pode ser usada em referência direta à psicodinâmica, uma vez que descreve sua natureza
e a maneira pela qual os processos mentais são estruturados e sua utilidade na economia da energia
psíquica. Disponível em: https://it.wikipedia.org/wiki/Metapsicologia
21

A possibilidade de racionalizar o problema religioso ou removê-lo diante

da incapacidade de uma solução coloca Freud diante de seu próprio conflito,

pois há um ponto em que tanto a ciência, quanto a religião tornam-se impotentes:

o destino.

Não obstante a sua brilhante descoberta, aquela da dimensão afetiva e

inconsciente da vida que subjaz e se expressa em todo comportamento humano,

nota-se uma insatisfação em Freud. Ele ficou limitado em suas ideias acerca da

religião justamente por não as conectar às suas dimensões universais e nem à

sua própria individualidade, desconsiderando aspectos inerentes ao ser humano.

Foi um grande observador da cultura e sua patologia. No entanto, considerando

a religião como uma ilusão, um elemento a ser eliminado, não vê outra alternativa

a não ser deixar a resolução desse dilema para o futuro, revelando a ausência

de elementos elucidativos por parte de sua metapsicologia, suas premissas

lógicas, e da racionalidade da ciência na época.

Ainda há tantos fatores desconhecidos em relação ao destino da

humanidade, quanto ainda temos a descobrir a respeito do inconsciente. A

evolução da psicanálise a partir de Freud e Jung demonstra essa necessidade e

esse movimento evolutivo.

3.2 O SENTIDO DA RELIGIÃO EM JUNG: Psicologia e Religião

Jung, psiquiatra e psicanalista suíço (1875 – 1961), escreveu Psicologia

e Religião em 1939, tema já antes vivenciado e estudado por ele, além de ser

parte da vida de sua família de origem. E a despeito da contemporaneidade e

amizade com Freud, Jung dissidiou de suas ideias sobre o funcionamento da


22

psique no que diz respeito ao sentido da religião. Primou pelo empirismo em

suas investigações, pela observação contínua e dinâmica da prática sujeita à

verificação, se abstendo da abordagem metafísica e filosófica. Nunca foi

intransigente, ao contrário, realizou o movimento e a dinâmica em suas

descobertas, sempre deixando em aberto novas possibilidades de compreensão,

pois que a experiência constitui um processo de constante assimilação.

Abordaremos a primeira parte desta obra: “A autonomia do inconsciente”.

A religião para Jung não tem o mesmo sentido que para Freud porque

justamente o conceito de funcionamento da psique é diferente para ambos.

Enquanto Freud permaneceu inflexível na concepção de que a religião é uma

forma de neurose, em Jung a religião é uma função psicológica, que ele chamou

de “função religião”.

A Função da religião é comum a todo ser humano que inerentemente

precisa lidar com as dificuldades da vida e os mistérios da morte. Jung não se

referiu à instituição religiosa, mas ao significado intrínseco de religião, conforme

escrito anteriormente, em que o ser humano está observando com cuidado e

atenção a existência do fenômeno do numinoso12, seja como experiência

objetiva ou que subjetiva, pois “uma ideia é psicologicamente verdadeira, na

medida em que existe”; é subjetiva, enquanto ocorrer em um indivíduo, e é

objetiva, quando partilhada por um grupo maior (JUNG, 2013).

Cicali e Squilloni (1995), em Il “sentimento religioso” in C. G. Jung e oltre

(O "sentimento religioso" em C. G. Jung e além), observaram que, apesar de

12
Numinoso é um conceito derivado do latim numen significando "emoção espiritual ou religiosa
despertadora; misteriosa ou inspiradora". O termo foi popularizado pelo teólogo alemão Rudolf Otto em
seu influente livro alemão de 1917, Das Heilige (em português, O Sagrado), que apareceu em inglês
como The Idea of the Holy, em 1923. Ref: https://pt.wikipedia.org/wiki/Numinoso. Segundo o próprio
Jung (2013), “Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é
independente de sua vontade.”
23

nascido em 1875, Jung só publicou algo especificamente sobre religião em 1938,

sendo que, implicitamente, seus trabalhos anteriores já continham elementos de

base com os quais elaborou sua concepção sobre a dinâmica psíquica da

“função religiosa”, aspectos estes que foram percebidos pelo filósofo e teólogo

russo Vyseslavcev, já em 1932. O artigo em questão compara as visões

freudiana e junguiana em relação à dinâmica da psique, ou seja, entre o eu e o

inconsciente, ampliando as duas visões com a religiosa de Vyseslavcev.

Descobre-se então que a personalidade humana se baseia em uma divisão

trágica que lhe é inerente, divisão que resulta nas duas partes (ego e

inconsciente) da mesma personalidade, cuja interação é espontânea e resulta

em transformações progressivas além de que...

...essa interação é permitida e regulada pelo que


poderíamos chamar de função "religiosa" da psique que, para
Jung, é uma função autônoma e primária (e não o resultado,
como para Freud, de um desvio da libido sexual original) que
empurra o ego do sujeito para a religião, ou seja, à adoção de
uma atitude de "observância cuidadosa e escrupulosa" em
relação a uma instância que é percebida pelo próprio sujeito
como independente de sua vontade, algo desconhecido e
poderoso que invade o Eu de outro lugar, que não é o ego. A
função religiosa permite que o sujeito estabeleça uma relação
com essa presença, na medida em que o leva primeiro à
atenção, à escuta e depois à elaboração de uma linguagem e
comportamento (ritual), adequados ao diálogo e muito diferentes
das demais atividades racionalizantes usuais.

A verdadeira identidade individual, o “Eu” de Jung, diz o artigo, está onde

ego e inconsciente se encontram sem se excluir um ao outro graças à mediação

simbólica de atividades que tendem a representar o mistério percebido pelo

indivíduo a fim de compreender seu significado. A busca por tal identidade é

parte do caminho para integração de si mesmo com a identidade individual


24

autêntica, o que deve ser assumido sem pular fases ou áreas evolutivas da

psique, pois o objetivo é a relação e integração das partes da personalidade.

Essa identidade, segundo o filósofo russo, refere-se a algo mais profundo

do que a uma percepção superficial que geralmente se tem de si mesmo, e

“Vyseslavcev a define como ‘o homem escondido no coração’, que é o ... ‘centro

oculto da personalidade ... invisível para os outros e em grande parte também

para nós mesmos’ ... O coração é o lugar onde a verdadeira identidade do

homem se oculta, [...] pois permite ‘... um contato real com Deus.’”

Jung (2013) atribui à consciência transformada pela experiência com o

numinoso a possibilidade de sua comunicação com os mistérios. Porém,

construções mentais inflexíveis e rituais sacralizados enrijecem tais experiências

com a finalidade de perpetuá-las, e tendem, portanto, a dogmatizá-las. Mas Jung

considera também que há grande número de rituais e práticas com a finalidade

de invocar deliberadamente o efeito do numinoso, como encantação, invocação,

sacrifícios, meditação, prática da ioga, etc., com uma crença numa causa exterior

objetiva divina que precede tais práticas, e que tais sacramentos teriam um

motivo divino para existir.

Apesar das instituições alegarem que o dogma é vivo e sujeito a

transformações e evoluções, Jung afirma que até mesmo o número de dogmas

limitantes é ilimitado, e assim também são os rituais referentes à repetição de

uma mesma experiência original. Exemplifica que até mesmo o protestante,

aparentemente liberto dos dogmas e rituais, é obrigado a se expressar “dentro

do quadro de que Deus se revelou em Cristo, o qual padeceu pela humanidade”,

quadro este impossível de ampliação ou conexão com outras ideias diferentes

(budismo, islamismo). Aqui Jung alerta que o psicólogo que se coloca numa
25

posição puramente científica, também não deve se considerar possuidor da

verdade exclusiva e eterna, pois “uma vez que trata da experiência religiosa

primordial, deve considerar sua atenção no aspecto humano do problema

religioso, abstraindo o que as confissões religiosas fizeram com ele.”.

E observando assim a psicologia da religião e seus efeitos no homem,

Jung os relaciona à vida prática e vê que a neurose se interliga com a vida íntima

do homem, sendo este inteligente ou não, vindo acompanhada por um

sentimento de desmoralização, de inferioridade, uma derrota por algo imaginário.

Ele atribui esse sentimento desmoralizante a uma concepção geralmente

materialista da psique, considerada ainda um fenômeno secundário do processo

orgânico cerebral, portanto um descrédito, que dificulta o diagnóstico e possível

cura.

Ainda que não haja dúvida de que as neuroses provêm de causas

psíquicas, as descrenças em relação a essas mesmas causas e suas dinâmicas

é um impasse à evolução da compreensão humana. É preciso superar o

preconceito de que a existência só pode ser de natureza corpórea e preconceito

contra os sonhos que subestima a sabedoria interna. Jung afirma que a única

forma existencial imediata é a psíquica e que seus transtornos foram e ainda são

causa de muitos sofrimentos, inclusive trágicos, tornando-se mais perigosos que

epidemias e terremotos. “A psique existe, e mais ainda: é a própria existência.

[...] Podemos considerar a consciência como sendo nossa própria existência

psíquica.” (JUNG, 2013).

Por meio de observações de seus pacientes e experimentos, Jung vê que

doenças corpóreas, como um carcinoma, são manifestações (já físicas)


26

espontâneas de parte da psique que não se identificam com a consciência e que,

portanto, se manifestam de maneira autônoma. São os chamados complexos.

Os complexos se manifestam quando menos se espera, e têm autonomia,

por este motivo as pessoas sentem medo de se tornarem conscientes de si

mesmas. Observam-se e consideram-se cuidadosamente fatores externos à

consciência; há um receio dos conteúdos inconscientes, um temor dos “perigos

da alma”, o que é justificável e natural quando se trata do desconhecido. No

entanto, em meio à massa coletiva pode haver um desencadeamento de

dinamismos profundos em cada um, onde o inconsciente está prestes a irromper.

"Na realidade, vivemos sempre como que em cima de um vulcão, e a

humanidade não dispõe de recursos preventivos contra uma possível erupção

que aniquilaria todas as pessoas a seu alcance." Uma neurose desencadearia

uma força incontrolável por meio racional, a exemplo do paciente com carcinoma

o qual reflete uma invasão à consciência por aspectos antes ignorados, quando

houve uma unilateralidade da razão. (JUNG, 2013).

Jung (2013) diz ser insuficiente o desenvolvimento científico e tecnológico

quando não acompanhado pela sabedoria da introspecção. Embora as doutrinas

religiosas abordem a imortalidade da alma, muito pouco se fala a respeito da

psique humana real; há uma subestima desta, e a isto Jung relaciona o medo e

a aversão primitivos ao inconsciente. Áreas de tabus, como palavras proibidas e

até mesmo formas de cortesia, revelam uma atitude religiosa de precaução e

conciliação em relação à possíveis perigos psíquicos. Sonhos, que são a voz do

desconhecido e que primitivamente eram a suprema instância de alguns povos,

hoje ainda são subestimados e pela Igreja apenas eventualmente foram ou

podem ser considerados uma revelação genuinamente divina.


27

O autor cita um tratado sobre sonhos de Benedictus Pererius13, que

revela a dificuldade em se demostrar categoricamente a importância dos sonhos

e classificá-los, visto que podem ser de caráter e opiniões pessoais ou mesmo

superficiais, havendo inclusive a questão da interpretação: a quem competiria

fazê-la corretamente? São questões ainda subjetivas que dependem de

credibilidade e objetividade para serem incorporadas às ciências.

Porém, do caráter divino de alguns sonhos ninguém pode duvidar, dada

a maneira como estes acontecem e de sua importância até mesmo para a

sociedade. E as mudanças de atitude espirituais debilitaram a introspecção

favorável a uma consideração séria dos sonhos, como antigamente. Até mesmo

o protestantismo, ainda que tenha se livrado de alguns dogmas, sentiu falta das

revelações individuais.

Jung (2013) então, dialogando com um paciente, encoraja-o a enfrentar

sua obsessão, e quando este lhe pergunta a respeito do diagnóstico e como

detectar a raiz da ideia obsessiva, Jung lhe sugere que seus sonhos fornecerão

as informações necessárias. Mesmo sabendo dos riscos que corria e da

descrença alheia em seu método, Jung se permitiu imaginar e preconizar a

imagem da psique como um corpo sutil para encorajar a superação da

desconfiança nos sonhos e “na exatidão de um funcionamento psíquico fora da

consciência”. Observou nos sonhos os mesmos conflitos e complexos

detectados pela experiência das associações e mais uma riqueza de

informações de processos inconscientes além de somente a consciência.

13
Benedictus Pererius (1535-1610) publicou em 1576 seu livro De principiis, de maior sucesso, depois de
ter ensinado filosofia no Colégio Romano dos Jesuítas. Ref:
https://link.springer.com/article/10.1007/s11191-004-2456-4
28

O sonho a seguir, a exemplo, é pessoal e cabe ao tema religião, ao

mesmo tempo que indica conflitos pessoais do processo em análise:

Dirijo um carro de teste em frente à casa de minha tia. Há um encontro lá.

Estão presentes meu pai, minha prima, minha irmã e também outras pessoas de

outros lugares. Dentro da casa, no sonho, tem um auditório onde está

acontecendo uma apresentação. O palco é grande, o teto é muito alto. As

cortinas são vermelhas e igualmente altas e compridas. Estão abertas, enquanto

a apresentação acontece. Inicia-se um movimento nos fundos do palco. É um

grande fogo em forma de Jesus crucificado e que vem lentamente para frente se

transformando em um homem de carne e osso, que na verdade, ao final da

transformação, é uma mulher indígena, viva, lindíssima e gigante, com adornos

e pinturas naturais. A apresentação é esta. Depois, todos se reúnem no palco

para tirar fotos. Meu pai está lá, mas não é o momento de eu abraçá-lo. Nos

organizamos para tirar fotos. Proponho-me a tirar, mas na minha foto estou só.

Sinto-me diferente. Volto à rua para continuar o teste de carros. Faço manobras

arriscadas e encosto a traseira do carro em um muro. Entro novamente na casa

com a peça do carro riscada e mostro para minha irmã que diz não ter problema.

Ela me mostra a filmagem que fez do fogo se transformando em Jesus e depois

em mulher indígena. Percebo mais detalhes e fico impressionada vendo aquelas

imagens.

O carro em teste remete às novas possibilidades de estar e se movimentar

pelo mundo. O auditório numa casa familiar (casa é onde se mora), também se

abre ao novo quando recebe pessoas de outros lugares. A apresentação causa

grande admiração. Do fogo de transformação, o Cristo que se transforma em

uma mulher indígena remete ao feminino autêntico e humano que precisa ser
29

resgatado. Em seguida se volta a uma movimentação normal e as pessoas

querem tirar fotos, que podem se associar a pensamentos ainda objetivantes. A

sonhadora, após bater a traseira do carro (atrás é o passado), volta com a peça

avariada e a mostra para a irmã, que é sensível e lhe diz palavras que tiram o

peso da culpa. É necessário um novo olhar. As fotos são estáticas e podem

representar o apego a detalhes. Quando a irmã lhe mostra o vídeo da

apresentação no palco, a sonhadora se encanta novamente e fica percebendo

mais detalhes (dinâmicos) das imagens filmadas.

Não somente na obra Psicologia e Religião, mas também em outras, Jung

reuniu inúmeros sonhos e tratou de suas interpretações psicológicas. Com

cautela utilizou os processos oníricos, os fatos e a lógica realista como

ferramentas de trabalho; considerou os processos oníricos fenômenos naturais

e fiéis, quando consciência e vontade estão debilitadas; percebeu nos sonhos

personificações do inconsciente e mais ainda, que existe uma continuidade nos

processos inconscientes em que o sonhos são elos visíveis, por isso considera

que um sonho seja parte integrante de uma série. Não se deteve a dogmas, mas

os questionou, mesmo que não tivesse a resposta, pois justamente esse

movimento de busca é combustível para novas sínteses. A abordagem

terapêutica de Jung contemplou a neurose tanto como o fracasso do processo

de individuação como também uma exigência de recuperação desse mesmo

processo, como um pedido de socorro.

Cicali e Squilloni (1995), quando em seu texto citam as funções de

personalidade de Jung como funções também de uma sociedade, pontuam que

no ocidente a função sentimento foi sobreposta pela função pensamento devido

ao desenvolvimento unilateral do ego. Mas no sentir, que é uma função racional,


30

o ego atribui um valor ao conteúdo percebido sem necessariamente revelá-lo,

sem resolvê-lo, enfraquecendo, portanto, essa função. Neste ponto, os autores

atribuem o “sentimento junguiano” ao sentimento religioso, que é um sentir pela

experiência religiosa sem necessária explicação, pois tal sentimento permite

contato com os abismos interiores sem necessária exposição do ego, portanto

excluindo-o da participação na interação com o inconsciente, parte

desconhecida da personalidade. Tal exclusão nega a existência de um mistério

divino em seu interior e interrompe a comunicação necessária à evolução.

Jung não atribuiu seu sentimento religioso a uma crença porque ele se

colocou como objeto de sua própria experiência, se entregou a ela. Seu legado

contribuiu para que a relação dialógica entre as duas partes da personalidade,

(consciência e inconsciente) fosse retomada, e renovada.

3.3 O SENTIDO DA RELIGIÃO EM MONTEFOSCHI: O Tema do Universal

Mas qual é o percurso a se fazer até se chegar à verdadeira identidade

individual?

Em C.G. Jung - um pensamento em devir (do original “C.G. Jung: un

pensiero in divenire”, 1985), Silvia Montefoschi, médica, bióloga e psicanalista

italiana (1926 - 2011), apresenta uma visão de Jung a partir do próprio

pensamento junguiano, de como ele chegou em suas concepções

essencialmente a partir de como veio ao mundo, sua expressão do processo de

individuação, processo este inerente a todo ser humano, necessário à

recuperação da totalidade do indivíduo que também é a expressão de uma

totalidade maior que o transcende – o Si mesmo universal.


31

E sobre “O Tema do Universal” nesta mesma obra, Montefoschi diz que

o Si mesmo universal está se manifestando através do nosso processo de

individuação. Cabe a cada um o seu realizar-se dentro da história, que é em si

um processo maior. Nesse momento, o curso histórico pede ao indivíduo um

movimento diferente da quietude e acomodação do cotidiano. Não se pode sair

da neurose sem pagar o preço do processo de individualizar-se. A cura da

neurose é recuperar o valor universal do indivíduo. E o preço é colocar a vida à

serviço da história aceitando as mudanças necessárias e não querendo estagná-

las.

Colocar-se à serviço da história, diz Montefoschi, é superar o

egocentrismo que se identificou com o antropocentrismo, aquela identidade

gloriosa do homem que na idade moderna se viu com o poder de criar

tecnologias, de ser senhor do mundo, de superar obstáculos naturais, de fazer

história, ou seja, o homem representado pelo arquétipo do Herói. E o Eu se

identificou com esse herói que tudo pode conseguir. Mas essa identidade, ainda

que necessária como etapa no processo evolutivo, limitou o ser humano a uma

satisfação egóica que hoje precisa ser superada sob a demanda de uma

ampliação de sua identidade ao plano universal e social, porque esta é a direção

do devir da história. Este mito em si não é mais suficiente para acompanhar a

evolução.

Há uma revolução do objeto de conhecimento humano: o homem como

criador (sujeito) e criatura (objeto criado) da própria história e também, inclusive,

como responsável para que essa interação entre ambos aconteça. O homem é

o material onde o futuro é criado. E o objeto de conhecimento agora é o mundo

psíquico com o inconsciente e os processos internos, que se une ao processo


32

de outros no coletivo e dá voz ao ser universal. A psicanálise enxerga esses

processos internos e se faz incluir no movimento histórico enquanto método

terapêutico de autoconhecimento e transformação da realidade social.

É certo que a formação da identidade é necessária e fundamental para o

indivíduo em seu processo de evolução, mas isto também inclui

desidentificações no tempo certo, seguindo o fluxo de equilíbrio e movimento

natural. Por vezes nos sentiremos inadequados nesse processo porque a

mudança é antagônica à estagnação, à qual, por sua vez, é a tendência

alimentada pelas normas sociais. O sistema é produto de pensamentos que o

criaram num momento histórico, não nasceu pronto nem deve ser eterno,

portanto deve ser atualizado, sujeito à modificações e adaptações, e não

enrijecido. Superar a inadequação também é superar o preconceito de que se

está sendo egoísta quando se trabalha em si mesmo não estando adequado ao

estagnado sistema vigente. Cada indivíduo tem um determinado desafio a

superar, uma problemática existencial a solucionar. Novas formas de superação

são imprescindíveis. É necessário vivenciar a tensão histórica inerente ao

processo de se conhecer que coincide com a capacidade de se assumir para se

resolver a neurose e se colocar em liberdade.

Porém, a liberdade do Eu, segundo Montefoschi (1985), seria uma ilusão

de ótica porque um Eu liberto, sendo um complexo que quer se estabilizar e

conservar sua identidade, aprisionaria a individuação, que é movimento e

mudança. E o devir histórico carece sintonia com as mudanças do processo

evolutivo. A verdadeira liberdade é aquela que disponibiliza o Eu à serviço do si

mesmo e não mais ficar refém de um sistema, ou seja, o Eu que cumpre seu
33

papel de relação entre o individual e o universal, pois ambas realidades tem

exigências.

Realizando dialeticamente a integração entre essas duas dimensões e se

inserindo no processo global histórico, encontra-se o sentido da existência. Por

isso a psicanálise não se restringe ao consultório. Pela interlocução com o

inconsciente ela inclui o social, a relação com o outro, superando a visão egóica

de resolver as próprias situações sem considerar a relação social.

Montefoschi amplia o olhar de Jung para uma nova síntese de seu legado,

abrindo uma visão de mundo para o desenvolvimento humano, uma identidade

ao nível social. Esse novo olhar significa assumir as problemáticas pessoais

dialeticamente, portanto em um fluxo de transformação. Na visão de Jung, crer

em Deus é sentir Deus. Porém a evolução humana avança em fazer do sentir

um realizar. É primordial sentir, mas também trazer à tona o significado do sentir

ou, segundo Montefoschi, transformar a carne em verbo.

É preciso atualizar nossos modos de pensar, o que acontece depois de

nos livrarmos individualmente das correntes de nossa própria história, para então

nos socializarmos de forma livre e fluida que produza novas realidades. Livre de

revoltas individualistas.

A verdadeira individualidade é criar nova realidade social, cada um em

primeira pessoa, pela inversão da lógica pessoal. O novo ordenamento nasce de

dentro, é a energia vital do amor, do feminino que é movimento dialético do

espírito, o pensamento masculino. Amor e pensamento coincidem com feminino

e masculino. Perene processo de transformação do ser em consciência de ser é

a dialética da consciência.
34

Somos “deus” no processo de autodescoberta, na experiência como

sujeito e objeto, e não mais como somente objeto, criação do criador, submissos

ao endossamento daquele que nos criou e que se encontra separado de nós. O

distanciamento de si (e não a negação de si) nos faz sujeito de conhecimento.

Montefoschi (1985), analisou vários sonhos de seus pacientes e viu que

“o valor do Eu está em seu próprio sacrifício de sua identificação com o

anthropos para alçar o grandioso voo do espírito criativo, transformando-se

nele.”, ou seja, o Eu, “ele próprio se torna pescador das profundidades do

inconsciente coletivo”.

Em vários sonhos de transformação apocalíptica a autora viu que a força

transformadora vem de baixo, da Terra, de uma energia feminina que nos

ameaça, símbolo também do valor regenerador. É no inconsciente que está “o

novo valor do que deve vir à luz.”.

O novo princípio ordenador que vem do inconsciente é a própria libido,

energia vital do amor, o feminino que traz em si o masculino e que deve superar

sua tendência à união imediatista de gratificação e se tornar movimento dialético

da vida, portanto espírito.

Montefoschi (1985) vai além da dialética do amor e do pensamento como

nova força ordenadora e princípio ordenador, e diz que a dialética do novo

ordenamento é justamente nos reconhecermos como responsáveis portadores

do processo de permitir ao si mesmo de se manifestar em nós.

Um sonho por ela analisado ilustra essa dialética:

P. junto a outras pessoas, vê tantos feixes de trigo precipitarem

desordenadamente por uma colina. Ela sabe que ela e todos os presentes são

ao mesmo tempo eles mesmos e as espigas de trigo contidas nos feixes.


35

O grão, diz Montefoschi, é símbolo da transformação da natureza em

cultura, como também é “símbolo do sacrifício de si que o homem cumpre

morrendo à própria dimensão particular para se tornar nutrimento do universo

humano.”. Sacrifício este que renuncia idealismo e controle. Mas quem seria o

semeador divino que guiou a obra do homem até então?

Deus, segundo Montefoschi, foi subtraído da função ordenadora porque

o homem, à medida em que progrediu em conhecimento de si e do mundo, foi

retirando do céu a tendência ordenadora. Quando parou de projetar fora de si tal

tendência, que era seu princípio guia, a transferiu para o anthropos (para o Eu).

E tendo hoje que renunciar ao Eu, o homem se vê em risco de precipitar na

desordem, como à que o sonho remete. E aonde se encontra o princípio

ordenador que o guia? É em si que o homem deve reconhecê-lo, mas como outro

de si, o Si mesmo universal que o compreende e o transcende, como sujeito do

conhecimento que se coloca num plano de visão mais amplo e elevado de onde

pode ver o limite temporal de sua existência particular e a universalidade de sua

dimensão social que se transforma no tempo. Assim ele poderá ser o colhedor e

o trigo ao mesmo tempo.

É chegado o tempo do homem se responsabilizar por sua própria vida e

por sua própria história, o que implica resolver seus problemas internos honesta

e verdadeiramente para criar e alimentar uma relação saudável com os mistérios

divinos, o que reflete diretamente no social.

A religião como está hoje é incoerente porque as pessoas vão à

instituição para comungar um sentimento que nem sempre está verdadeiramente

presente em seu coração e não há como saber sobre a honestidade e a intenção

de cada um. Algumas vão porque tem o sentimento verdadeiro e outras vão
36

como que para adquiri-lo. Mas quantas pessoas vemos atuando, como atores,

quando na instituição agem de um jeito e na rua são completamente diferentes,

inclusive no trato com outras pessoas? Vive-se uma fantasia. As instituições

criam normas que não se atualizam. Não se trata de julgamento, mas de uma

percepção, pois mesmo que isso não faça diferença para aqueles que vão

somente por sua verdadeira fé e sentimento, o fato de reunir-se com um coletivo

incoerente torna a sociedade igualmente incoerente e isso pode-se constatar

facilmente por observação.

O problema se encontra em ignorar que essa incoerência existe. Faz

parte da vida humana, em suas experiências, duvidar, questionar, até mesmo

extraviar-se e retornar depois ao contato com seu Deus. É mais autêntico colher

as próprias experiências do que simplesmente aceitar ideias prontas em um

automatismo infértil. As instituições até percebem que há uma necessidade de

mudança, mas existe uma dificuldade de aceitar que a transformação requer

mudanças de paradigmas e desapego à velhas normas, pois o novo deve ser

criado por nós mesmos.

Quebrar o tabu do incesto, em Montefoschi, é então descobrir-se ser e,

ao mesmo tempo, consciência do ser; sujeito e objeto; abdicar de deixar a

responsabilidade nas mãos de um “deus” separado de nós em permanente

infantilização. É ser o trigo e o colhedor. É tomar a vida nas próprias mãos.

3.4 RELIGIÃO NO SÉCULO XXI

Pensar por si significa de alguma maneira suprir a necessidade por

segurança. “A resposta está dentro”. Sim, esta frase clichê implica um percurso
37

relativamente árduo, por vezes longo. Um aluno que estuda em um sistema

tradicional de ensino, em algum momento vai se exaustar nesta maneira de

aprender arcaica, sem interação e diálogo, que não acompanha a evolução tanto

tecnológica quanto humana em seu ser. Memorizar “cartilhas” prontas, por

exemplo, já não cabe ao aluno que percebe pensamentos e conteúdos carentes

de serem externados e que portanto precisam de novo espaço, novo paradigma.

E isto explicita a necessidade de transformação em todos os âmbitos, inclusive

o religioso.

Em grande maioria, não desenvolvemos nossa própria fé. Em algum

momento fomos obrigados a aceitar pensamentos e denominações já prontas de

experiências por outros vividas, a aceitar um sistema de crenças formatado que

se sobrepôs às crenças genuínas que espontaneamente brotavam em nós.

Muitos não tiveram tempo de se questionar, aderindo automaticamente, como

um dever a cumprir, por obediência. É como interferir constantemente em um

jardim, impedindo que novas espécies tenhas oportunidade de existir e contribuir

com o sistema existente, renovando-o constantemente, criando novas

harmonias no movimento de fluxo da vida.

O controle externo na sociedade é também o controle que se quer ter na

crença interna das pessoas, o que envolve por vezes jogos de poder e

manipulação. Está claro que existe uma dificuldade em lidar com as forças do

inconsciente, que remete ao desconhecido, e seria justificável se as soluções

seguissem a direção da evolução. Porém nomear, denominar, engessar

definitivamente a ideia de religião não proporciona segurança alguma. Inviável é

querer domar o indomável.


38

A instituição religiosa também tem um papel importante na educação.

Senão todas, ao menos a maioria das instituições seguem uma ordem, uma

hierarquia (nomes, títulos, posicionamentos, funções, etc.). Seguir tais normas

seria uma oportunidade do indivíduo se disciplinar, encontrar seu centro e suas

identificações, seu mestre, desde quando tais normas acompanhem a evolução

histórica. E essa busca por uma autoridade externa deveria coincidir com o

desenvolvimento de sua autoridade interna, seu centro interno para justamente

buscar aquilo que seu coração sente. Este deve ser o objetivo da religião: educar

para uma liberdade de espírito sem risco de sucumbir irresponsavelmente aos

instintos, e evoluir. Parece que as instituições não querem alforriar

explicitamente essa liberdade. O sistema religioso ainda não se adequou a essa

necessidade.

O que parece insolúvel na questão religiosa é o limiar entre o físico e o

anímico. Se no plano físico, comum a todos, ela seria indiscutível, porém no

plano anímico que é experienciado individualmente e não se pode comprovar

completamente, ainda carece abertura e integração. Talvez justamente o que

aparentemente seja um problema por falta de provas e mensurações físicas, seja

também o motivo para o respeito à diversidade humana em seu íntimo. E isso

faz parte da psicanálise.


39

4. CONCLUSÃO

O eixo central deste trabalho é interligar três perspectivas do sentido da

religião, não como conceito rígido pois, vimos, trata-se de descrever aspectos de

experiências subjetivas e não estáticas. A religião compreende aspectos

experienciais internos, vivenciados individualmente, e também externos, quando

há comunhão em um grupo. O ponto comum é a experiência com o sagrado.

Freud aborda o lugar da religião como fruto de nossa cultura e civilização,

devendo as urgências instintivas do indivíduo serem refreadas para que haja o

funcionamento da sociedade, sendo assim também com a dimensão da

natureza, a qual o ser humano precisa enfrentar, pois que esta não se deixa

dominar, ficando a critério da cultura nos defender de suas forças descomunais.

Para se proteger, diz Freud, o homem quer humanizar a natureza, dando-lhe um

caráter divino e depois também paterno: a religião, para suprir uma necessidade

afetiva não atendida, não diretamente ligada com a realidade, e por isso trata-se

de uma ilusão, um dilema sem resolução imediata, tarefa portanto para o futuro.

Diferentemente de Freud, para Jung, a religião é uma função autônoma e

primária, e não o resultado de um desvio da libido. Tal função, chamada por ele

de “função religião”, faz com que o indivíduo tenha uma atitude de "observância

cuidadosa e escrupulosa" em relação a experiência com o numinoso, pois que é

independente de sua vontade. Algo desconhecido e poderoso que invade o

coração, lugar onde a verdadeira identidade do homem se oculta, e onde há um

contato real com Deus. E a partir desta experiência a consciência se transforma.

Jung, em sua abordagem terapêutica de investigação profunda da psique

humana, trouxe à superfície problemas como a carência de sabedoria interna e


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o preconceito contra os sonhos que a subestima, ainda presentes atualmente. A

despeito da falta de respostas imediatas, ele deu voz à essa sabedoria,

começando por si mesmo em seu processo de individuação.

Silvia Montefoschi vem apresentar uma visão de Jung a partir do próprio

pensamento junguiano. Ela considera a maneira como ele chegou em suas

concepções, sua trajetória e seu processo de individuação, que é inerente a todo

ser humano e necessário à recuperação de sua totalidade, expressão de uma

totalidade maior, o Si mesmo universal, que por sua vez está acontecendo

através do processo de individuação de cada um. Segundo Montefoschi, é

preciso um processo de desidentificação do egocentrismo com o

antropocentrismo, já que a fase de identificação entre ambos foi necessária

como etapa no processo evolutivo, limitando porém o ser humano à satisfação

egóica, que hoje precisa ser superada para atender a demanda de ampliação de

identidade a um plano universal social, direção do devir histórico. É necessária

uma identidade diferente do que aquela apenas consigo, e também diferente

daquela somente coletiva, em que uma desconsidera a outra. Montefoschi diz

que o homem surge como criador e criatura; o objeto de conhecimento agora é

o mundo psíquico com o inconsciente e os processos internos, e o homem é o

próprio material aonde o futuro é criado, responsável pela própria história criada

e dialeticamente sendo realizada.

E é justamente na integração entre essas duas dimensões humanas que

se encontra o sentido da existência. Um fluxo em transformação em que cada

indivíduo assume suas problemáticas pessoais dialeticamente, superando

também o mal-estar social.


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Há um desejo humano de alcançar uma maior ou melhor percepção de

suas experiências espirituais sem, contudo, estagnar-se em dogmas e ideias

fixas, ao mesmo tempo em que há uma busca por verdades universais.

A religião, atualmente, ainda que uma necessidade, não se conecta às

experiências reais. Está no campo das idealizações. Oferece salvação muitas

vezes cobrando o preço da falta de liberdade do livre pensamento e nos

distanciando de nossa autorresponsabilidade.

O sentido da religião então é atender à necessidade que o ser pede, que

é a de renovação do próprio ser. O fio condutor é o próprio mistério. É nossa

tarefa dialogar com ele, diálogo que se constrói individual e intimamente

vivenciando experiências.

Vê-se na sociedade incoerências como a pressa desenfreada de ser feliz

a qualquer preço, sem discernimento, ânsia essa descomedida que pode estar

associada a pulsões incontroláveis, para as quais também haveria de ter

repressão controladora.

Então como desenvolver discernimento?

Cada indivíduo passa por experiências as quais ele não toma

conhecimento, na maioria das vezes ignoradas como material inútil ou

vivenciadas automaticamente. Um desperdício. Mal se sabe que cada

experiência é valorosa matéria prima para a próxima, e que assim nos damos

conta do caminho de nossa própria evolução. Quando não se está à vontade

consigo próprio, um outro trabalho deve ser feito antes: o de autoconhecimento,

e assim seguir a frase difundida por Sócrates, “Conhece-te a ti mesmo”. Porém

este conhecer-se ainda não tem espaço prioritário na sociedade. Prioriza-se

ainda uma identidade social egóica, que distorce o caminho do ser.


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Ao longo da história da nossa sociedade (brasileira), entre colonizações

e imigrações, fomos agregando diversas culturas sem a preservação de nossa

cultura ancestral indígena. Ao que parece foi uma sobreposição de valores, sem

uma integração saudável, mas sempre com a tendência a um posicionamento

dominante de costumes, um sobrepondo-se a outros. Nossa diversidade é

pulsante, porém não assumida, talvez uma pulsão incontrolável que precisa ser

colocada em prática, mas que atormenta os repressores que não querem aceitar

a diversidade porque a veem como uma derrota de seus aforismos rígidos.

Por que não se pode descrever a um público heterogêneo o que é Deus?

O “conhece-te a ti” mesmo implica conhecer a própria verdade, que certamente

tem pontos em comum com a verdade de outros, e ali encontramos também as

verdades ditas universais. Porém nunca será uma verdade concreta, linear ou

estática, é espiritual e não material, e é indiscutível a diferença entre o que é

espírito e matéria. Há consubstancialidade no espiritual e no material, mas a

espiritual perpassa além do material e por isso uma não acompanha a outra,

assim como o intelecto não acompanha o espírito em todas as suas atividades.

Mas o espiritual, sim, deveria estar presente em todas as nossas ações

materiais, e para tal ele precisa de um espaço, o seu espaço genuíno que

anormalmente está ocupado com atividades aberrantes de nossa mente e

intelecto. E a fim de que o espírito volte ao seu lugar, atuante de ser, aqui está

o papel do autoconhecimento na psicanálise, conhecer nossos aspectos em

todas as dimensões possíveis, alinhá-las ou realinhá-las e conectá-las, ou

reconecta-las.

A psicanálise surge para reconhecer o discurso interno humano, sempre

existente, mas antes ignorado. Dar voz à experiência individual, trazê-la para a
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superfície com respeito, sem reprimi-la ou exaltá-la, torna-se nova possibilidade

do realizar o humano, pois que a subjetividade é comum a todos, mas não igual

em todos. Portanto a crença como fé é inerente ao ser humano, pois temos fé

em algo para viver, nem que seja na própria vida. Porém a forma desse algo é

particular para cada indivíduo e não é escrupuloso impor uma forma única a algo

que não a tem. Cabe a cada ser humano cumprir sua existência tanto individual

quanto coletivamente e construir-se como verdade autêntica. Cabe às

instituições permitirem e promoverem um conhecimento do Si-mesmo autêntico

com a fluidez que a vida demanda. A experiência interna necessita mediação

com a experiência externa. O sentido da religião alude tanto ao sentir quanto à

direção a se tomar, é a bússola interna de cada um a ser desenvolvida.


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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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