Cópia de Escritas Do Corpo Ausente

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Escritas do corpo ausente

Maria Zilda Ferreira Cury∗

CURY, Maria Zilda Ferreira. Escritas do corpo ausente. In: WALTY, Ivete Lara
Camargos e MOREIRA, Terezinha Taborda. Violência e escrita literária [recurso
eletrônico] e Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2020. p. 170-188.

* Professora Associada do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da


FALE/UFMG. Pesquisadora do CNPq.
A morte sem corpo, sem o ritual da despedida é a magia macabra e
perversa dos assassinos. Mas os desaparecidos sempre procuram a
Terra (Pontos de fuga - Milton Hatoum)

[...] dona Rita ainda chora quase todas as noites a ausência do filho. (O
velório - Bernardo Kucinski)

[...] era rara a noite em que não descia para lhe abrir a porta, despertada
por um toque de buzina ou pelos passos de um gambá lá fora (O irmão
alemão - Chico Buarque)

Em 22 de junho de 2020, Eliane Brum publica impactante


matéria no jornal El país com o título “Mães Yanomami imploram
pelos corpos de seus bebês”.1 Relata a jornalista como três
mulheres Sanöma, grupo da etnia Yanomami, foram levadas com
seus bebês para hospitais em Boa Vista com suspeita de estarem
com pneumonia. Lá as crianças contraíram covid-19 e morreram.
“E então seus pequenos corpos desapareceram, possivelmente
enterrados no cemitério da cidade.” As mães reclamam os corpos
de seus filhos para a eles darem as honras fúnebres próprias a
sua cultura. “Sofri para ter essa criança. E estou sofrendo. Meu
povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do meu filho para
a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”. (BRUM,
2020). A jornalista comenta: “Eu escuto a mensagem antes da
tradução. Não entendo as palavras. Mas compreendo o horror.
A linguagem universal daquela que está sendo arrancada do
mundo dos humanos.” (BRUM, 2020). Explica que os Yanomami
nunca enterram os corpos de seus mortos, mas os cremam e “há
um longo ritual para que o morto possa morrer para si e para
1 Cf.https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-24/maes-yanomami-
imploram-pelos-corpos-de-seus bebes.html Consultado em 03/08/2020.
Agradeço a Dayane de Oliveira Gonçalves a indicação deste texto.

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a comunidade”, um ritual que pode durar meses, até anos. “O
morto então será lembrado em seus feitos, em suas desavenças,
em todas as marcas importantes de sua trajetória. Será lembrado
para então poder ser esquecido, suas marcas serem apagadas
e a comunidade seguir adiante”. (BRUM, 2020). A jornalista
reporta-se à entrevista ao jornal dada por Bruce Albert em
que o antropólogo francês compara o enterro compulsório e
“biosseguro” dos Yanomami vitimados pela covid-19 com o
“desaparecimento” dos corpos das vítimas dos torturadores
na  ditadura militar  (1964-1985). “Roubar os mortos alheios e
negar o seu luto sempre foi o estágio supremo da barbárie, no
desprezo e na negação do Outro étnico e/ou político”. (BRUM,
2020).
Invoco uma segunda cena, desta vez literária, em que
igualmente se pranteia a ausência do corpo do ente querido.
Antígona, inconformada com o segredo sobre a localização da
tumba de seu pai Édipo, lamenta amargamente:

Ele morreu em solo estranho


de acordo com sua própria vontade.
Seu leito está oculto para sempre
e ao nosso luto não faltarão lágrimas.
Meus olhos, pai, não param de chorar
sentidamente, e não sei — ai de mim!
se terá fim essa tristeza imensa
que me deixaste. Querias morrer
em solo estranho, mas, por que morreste
assim, tão só, longe dos meus cuidados?
(SÓFOCLES, 1990, s/p)

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Jacques Derrida reporta-se a essa tragédia de Sófocles,
em que se encena o duplo exílio de Édipo – morto longe da terra
natal e enterrado em solo estrangeiro – e diz que Antígona, assim
como sua irmã Ismênia, são condenadas a “um luto infindo”,
sem remissão possível, uma vez que a elas foi negado conhecer
o destino final do corpo do pai, a elas foi negado o direito de
prestar-lhe, portanto, as honras fúnebres que, como filhas,
tinham o dever de fazer.

Nessa tragédia das leis escritas e não escritas, antes de viver a


experiência do último dever a cum­prir junto a um dos seus irmãos
mortos, Antígona suporta e nomeia essa coisa terrível: estar privada
da tumba de seu pai, privada, sobretudo, como também sua irmã
Ismene, de saber quanto à última morada do pai. Pior, privada pelo
pai, segundo o desejo do próprio pai. [...] É como se ele qui­sesse partir
sem mesmo deixar um endereço para o luto daquelas que o amam.
É como se ele quisesse agravar infindavelmente o luto, encorpá-lo,
mesmo, com o luto que elas não podem mais fazer. Ele vai privá-las de
seu luto, obrigando-as assim a fazer o seu luto do luto. Conhecemos
uma forma mais generosa e mais envenenada de dom? Édipo não dá
nem mesmo o tempo do luto, ele o recusa a elas; mas por isso mesmo
ele ainda oferece a elas, simultaneamente, um sursis sem limite, uma
espécie de tempo infin­do (DERRIDA, 2003, p. 83, grifos do autor).

Veja-se que Derrida move-se também no campo semântico


do Direito, ou antes, no campo mais amplo da Justiça. Lembre-se
que o termo sursis, utilizado pelo filósofo, é palavra de origem
francesa, derivada do verbo surseoir que quer dizer adiar, dilatar,
prorrogar (Cf. AZEVEDO, 1998, p. 1366). “No sentido jurídico,
porém, exprime propriamente a sobrestada, ou a suspensão da
feitura de um ato, ou da aplicação de uma sanção.” (SILVA. 1991,
p. 306). A ausência do corpo de Édipo, segundo Derrida, é para

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as filhas o mesmo que a oferta de um estado de suspensão sem
limite, a condenação a um luto infindável, a um luto encorpado
no luto impossível, espessado na dilatação imensurável de um
tempo de sofrimento e espera, “o luto do luto” (e ao nosso luto
não faltarão lágrimas, tal é o lamento de Antígona).
Muitas obras ficcionais brasileiras contemporâneas que
enfocam a violência do período da ditadura civil-militar, que
teve lugar no Brasil entre 1964 e 1985, centram-se na figura
do desaparecido político ou a ele fazem referência. Nelas,
tomam a cena, com dicções diferentes, corpos violentados pela
tortura, o sofrimento das famílias violentadas pelo vazio do
desaparecimento, pelo prolongamento infindável da dor da
espera pela confirmação definitiva da morte que só a realidade
do corpo poderia conferir. Romances como K., relato de uma busca
e os contos de Você vai voltar para mim, de Bernardo Kucinski;
A noite da espera e Pontos de fuga, de Milton Hatoum; O irmão
alemão, de Chico Buarque; Sob os pés, meu corpo inteiro, de Marcia
Tiburi; Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva; A resistência,
de Julián Fuks, só para mencionar alguns mais recentes, exibem
essa ausência do corpo, a impossibilidade do luto, o sofrimento
em sursis, em suspensão, ficcionalizados como traumas. Nessas
e em outras narrativas,2 a condição estranha do desaparecido
político insiste em corporificar-se no texto, como uma forma
de resistência ao esquecimento, como forma da “expressão do
inexprimível” da situação traumática.
2 Registre-se que também as Artes Plásticas, em muitas instalações, ocupam-
se da temática dos desaparecidos políticos. Vejam-se, a título de exemplo,
os trabalhos de Rosângela Rennó e Cildo Meireles e o projeto Ausêns’as, do
fotógrafo argentino Gustavo Germano. Ver ensaio de minha autoria em que
proponho o diálogo entre o projeto de Gustavo Germano, o discurso jurídico
e o texto literário. CURY, Maria Zilda Ferreira. Non Habeas Corpus: Droit au
Corps dans la Fiction de Bernardo Kucinski. In: Poétiques et politiques du
corps dans les aires lusophones. Éditions Hispaniques, 2020.

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Eurídice Figueiredo, ao final de seu livro A literatura como
arquivo da ditadura, em que faz tão importantes levantamento e
análise de textos literários sobre a ditadura, se reporta aos jovens
mortos e desaparecidos, vítimas do regime autoritário. Para falar
do trauma incurável das famílias utiliza a expressão “sofrimento
interminável”: “Muitos foram brutalmente torturados e, dentre
os tantos mortos, alguns corpos não foram entregues às famílias,
o que acarretou um sofrimento ainda maior, um sofrimento
interminável.” (FIGUEIREDO, 2017, p. 167)
É o que também diz Janaina Teles sobre “os desaparecidos”
da ditadura:

O silêncio e o esquecimento introduzidos pelo terror do


desaparecimento criam uma situação sem um fim, perpetuando
a tortura que é vivenciar a ausência dos corpos e de informações a
respeito de parentes queridos. O desaparecimento e a falta de um
momento de luto assumem uma dimensão tal que impossibilita a
emergência de representações de um corte, de um antes e um depois.
(TELES, 2012, p. 110)

Essas considerações iniciais servem de preâmbulo para


breve abordagem do livro O corpo interminável, de Claudia
Lage, publicado em 2019. Desde o título, já se aponta para esse
estranho corpo que, ausente embora, “desaparecido” embora,
interminavelmente perdura. O romance se constrói com a
intercalação de cenas enunciativas, em que se cruzam diferentes
vozes, com o foco narrativo que se desdobra em uma pluralidade
de “eus” e “tus”, muitas vezes embaralhados, perfazendo um
mosaico de histórias interrompidas, fragmentadas, embora
entrelaçadas, com finais sempre em aberto. Histórias sobretudo
de mães, mas também de pais, filhos, militantes, assim como de

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torturadores. Tecido que o leitor desfia aos poucos para apoderar-
se de uma meada principal que narra as angústias de um homem,
Daniel, em busca de traços que possam reconstituir o “corpo” da
mãe, militante política cujo desaparecimento traumaticamente
marca sua trajetória. A voz desse filho, em meio a tantas outras,
acaba por ser a voz prevalente, a voz de um filho que busca suas
origens e os vestígios que reconstituam o corpo materno.
Muitos teóricos contemporâneos, de várias áreas do
conhecimento, debruçam-se sobre eventos traumáticos que
marcaram a História, indagando-se sobre suas possibilidades
de representação. A psicanalista Maria Rita Kehl, por exemplo,
ao falar do depoimento de vítimas da tortura e de familiares
de desaparecidos políticos durante a ditadura militar de
1964, insiste em que o trauma não pode ser visto apenas na
sua dimensão individual, mas, antes, há que ser tratado como
uma ferida aberta numa comunidade (Cf. KEHL, 2010) e cujo
recalque amplia na sociedade a repetição de atrocidades e de
discriminação violenta, mesmo muitos anos depois (Cf. KEHL,
2014). Tal repetição, própria à estrutura do trauma, configura-
se como a “naturalização da violência como grande sintoma
social no Brasil” (KEHL, 2010, p. 124). Por sua vez, o historiador
Dominick LaCapra registra que os estudos sobre o trauma fazem
parte da agenda contemporânea, especialmente no campo
dos estudos literários e, como Kehl, acentua que o trauma não
pode ser visto apenas como uma realidade individual; antes,
estabelece conexões com a sociedade e com a política. (LaCAPRA,
2014).3 Em seu livro, reunião de ensaios significativamente
3 “In any case, it is misguided to see trauma as a purely psychological or
individual phenomenon. It has crucial connections to social and political
conditions and can only be understood and engaged with respect to them.”
(LaCAPRA, 2014, p. xi)

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denominada Writing history, writing trauma, o conceito advindo
da psicanálise é trazido para o campo disciplinar da História, com
enfoque na transmissão do trauma entre gerações, propondo,
sob este prisma, uma análise dos efeitos do trauma na cultura
sob a perspectiva social e política. Coloca, com isso, em questão,
a forma como a historiografia elabora a narrativa do trauma.
Referindo-se mais especificamente à Shoah, salienta como a
historiografia do Holocausto faz com que a disciplina abra mão
das certezas e ponha em xeque sua possibilidade de representação
do real: narrar a história é narrar o trauma, sem pretensão de
que o discurso histórico obedeça a uma pretensa neutralidade,
afirmando o caráter “transferencial” desse discurso. O historiador
refere-se ao impasse da impossibilidade do luto convertido numa
melancolia interminável:

When loss is converted into (or encrypted in an indiscriminately


generalized rhetoric of absence), one faces the impasse of endless
melancholy, impossible mourning, and interminable aporia in which
any process of working through the past and its historical losses is
foreclosed or prematurely aborted. (LaCAPRA, 2014, p. 46)

Em muitos de seus textos, Márcio Seligmann-Silva reflete


sobre o testemunho e a literatura de testemunho relativos ao
Holocausto e salienta a tensão incontornável que tais narrativas
apresentam entre o desejo de narrar o trauma e a própria
insuficiência da linguagem para expressá-lo, uma vez que essa
impossibilidade se origina na natureza mesma do trauma. No
ensaio “A história como trauma” pergunta o estudioso: “Como
dar testemunho do irrepresentável? Como dar forma a nossa
capacidade de pensar?” (Cf. SELIGMANN-SILVA, 2000. p. 83).
Sobre a representação do Holocausto, Seligmann-Silva diz, ainda,

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que ela envolve uma estrutura tensa, uma aporia: “a não solução
do conflito entre a necessidade e a impossibilidade de sua
representação” (Cf. SELIGMANN-SILVA, 2000. p. 90) e registra a
exigência de uma nova linguagem para fazê-lo e a necessidade de
revisão de nossas representações.
No denso ensaio “Escritas da tortura”, Jaime Ginzburg
retoma esse último texto de Seligmann-Silva, desta feita para a
reflexão especialmente sobre a tortura e suas possibilidades
de representação, voltando-se para o contexto brasileiro da
ditadura civil-militar de 1964. Ginzburg, na mesma direção
tomada por Seligmann-Silva, conclui que “ver a história como
trauma coloca em questão a própria possibilidade de elaborar
uma representação, pois o trauma é, por definição, algo que
evitamos lembrar, evitamos reencontrar pelo grau intolerável
de dor que a ele se associa” (GINZBURG, 2017, p. 442). Partindo
dos nossos “traumas de fundação” – a exploração colonial
e a escravidão –, registra que a sociedade brasileira vive,
como repetição constitutivamente própria ao trauma, “uma
continuidade do autoritarismo entre nós” (GINZBURG, 2017, p.
446) e a naturalização da violência. A literatura do contexto pós-
ditatorial, diz o crítico, em seu diálogo com a história, exibe a
incapacidade de superação dos nossos traumas.

Na perspectiva psicanalítica, isso significa, necessariamente, uma


problematização a fim de lidar com a linguagem e da capacidade
de representar a experiência. Algumas obras incorporam em si,
em termos adornianos, antagonismos não resolvidos do processo
histórico. (GINZBURG, 2017, p. 446).

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Na mesma linha desenvolvida por Seligmann-Silva
sobre a literatura do Holocausto, conclui, a partir dos trabalhos
críticos voltados para a literatura sobre a ditadura, “que o regime
ditatorial no Brasil exigiu mudanças nas condições de produção
literária, incluindo renovações de linguagem e rupturas com
valores tradicionais.” (GINZBURG, 2017, p. 447). Dentre os
recursos de linguagem presentes nessa literatura, ele se refere
ao descentramento e à divisão do foco narrativo, ao abandono
do realismo tradicional no tratamento da matéria histórica, à
manutenção de incertezas que impedem o fechamento do texto,
à alternância de pessoas verbais, a fragmentação, à demanda de
um trabalho de reflexão do leitor, à suspensão da linearidade
temporal. (GINZBURG, 2017, p. 448 e ss). Essas características de
construção textual são levantadas pelo crítico na análise que faz
de conto de Luis Fernando Verissimo. Então conclui:

“A importância da literatura para a consciência social nesse sentido é


enorme, por conseguir, por recursos de construção, certa fidelidade
ao impacto da violência funda que resulta aos que viveram, direta
ou indiretamente, o impacto da experiência da tortura”. (GINZBURG,
2017, p. 458).

Volto, agora, ao livro O corpo interminável, de Claudia


Lage, com essas chaves de leitura sobre a expressão literária
do trauma. Como já salientei, entre os muitos narradores há a
prevalência da voz narrativa de Daniel, personagem que busca
a reconstituição do corpo materno. Sem uma lembrança da mãe
de quem foi violentamente afastado ainda recém-nascido – sem
uma foto da mãe adulta ou uma carta, sem uma gravação ou a
lembrança do calor de um regaço, sem ter alguém que dela queira
falar – apega-se a fragmentos, vestígios de seu corpo, ou antes,
de seu estranho não-corpo de desaparecida política. Fixa-se, por

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exemplo, num decalque já surrado, uma imagem de papel colada
na janela do quarto que foi da mãe, cuja cama seria a sua durante
toda a infância na casa do avô – “O avô deixou a cama arrumada e
vazia na esperança de a filha voltar.” (LAGE, 2019, Pos. 317). Mas
o peso da ausência do corpo materno é o que perdura, corpo que
permanece como recordação negada:

Não lembro de nenhuma sensação de conforto ao dormir na cama


da minha mãe, não era nela nem em seu sorriso que pensava, mas na
sua ausência e na sua morte nunca confirmada, no seu corpo que não
estava, que não se podia ver nem tocar, isso me assombrava, como um
monstro no armário, mas muito pior do que um monstro no armário,
porque eu sentia em minha pele, era um horror real. (LAGE, 2019,
Pos. 395)

Relê inúmeras vezes as marcas que ela deixou à margem


do livro, Alice, de Lewis Caroll, já quase em pedaços, marcas
que revelariam, talvez, nas impressões de leitura, um pouco
do olhar e do desejo maternos. Traços vãos que expõem a
ausência interminável. Em entrevista, a autora diz ter escolhido
o livro por ele representar um limiar entre muitas linguagens e
interpretações

[...] livro “Alice” como metáfora do aparelho, da prisão, do absurdo de


um governo autoritário, da necessidade da fantasia para sobreviver
a isso, tem também a imagem do buraco do coelho, a cova, o exílio,
e a própria linguagem, uma língua a ser resgatada, reinventada para
contar essa história. (LAGE. In: LAMEGO, 2019)

Referências às estranhas situações tão presentes no livro


de Lewis Carroll vão sendo disseminadas no romance, desde a
cena inicial, e o leitor vai aos poucos relacionando com a mãe
desse narrador.

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A mistura de temporalidades, como sói acontecer nas
narrativas e nos testemunhos de vítimas de trauma, promove, no
romance, com a articulação mesmo que precária entre passado
e presente, o retorno insistente dos acontecimentos traumáticos
que afetaram a vida das personagens e que, de resto, exibem
feridas do corpo social brasileiro, ampliando a extensão do
trauma para além do tempo presente da narrativa e para além do
trauma individual dos personagens.

[...] pessoas que foram arrancadas de suas casas, de suas famílias,


e sumiram depois de longas sessões de torturas, jogadas no fundo
do mar, incineradas em fornos a lenha, industriais, ou enterradas
em cemitérios clandestinos. São a essas pessoas transformadas em
corpos que a moça que olhava o adesivo na janela se une, e não é que a
agonia desse filho que perdeu a mãe, que só a encontrou no momento
da despedida, não importe, não só importa como se junta a outros
filhos e filhas, uma grande massa de crianças e adultos arrancados da
própria vida. (LAGE, 2019, Pos. 412)

Essa voz prevalente na narrativa, no entanto, se expõe


à alteridade de outras vozes, que vão produzir o que Bakhtin
denomina excedente de visão (Cf. BAKHTIN, 2003): à voz de
militantes clandestinas, à da namorada, à de torturadores, à da
própria mãe e à de outras mulheres, à voz, inclusive, de mulheres
que estão sob tortura. Um texto literário, portanto, que já de
início, metalinguisticamente, aponta o caráter mediador da
literatura como espaço para a circulação de vozes. E é por essa
força da alteridade que se instaura no romance uma ambiguidade
contraditória, em que esse narrador principal confessa sua não
conformidade com a própria narrativa, colocando-a em dúvida,
assumindo-a como fragmentária, e mesmo como impossível.

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Em O Corpo interminável, a voz prevalente de Daniel põe em
discussão o ato de escrita, inquirindo-se sobre seus limites éticos
e expondo o risco de banalização do sofrimento.

Só depois, muito depois, conseguia escrever. Ainda assim, me sentia


como se cometesse um equívoco. Um grande equívoco. Como se
forçasse aquelas pessoas, tão reais, tão vivas dentro de suas lutas,
desaparecimentos e mortes, a se tornarem meras referências em
um texto, ou pior, personagens, meus personagens, como se eu
impusesse a elas, depois de tudo que viveram, algo tão frágil, capaz
de se desmantelar ao menor sopro, à mínima insistência, uma farsa,
uma representação. (LAGE, 2019, Pos. 181)

Ao não se contentar com a narrativa que ele próprio vai


produzindo diante do leitor, abre espaço para essas vozes que
vão dialogicamente alternando-se no romance (CF. CAMPOS et
al., 2020). Vozes que estabelecem um discurso de resistência e
não-conformismo ao discurso da ditadura que se quer único,
que nega o corpo, que impede o luto e prolonga a ausência, que
favorece o esquecimento.

Outro dia li no jornal, Melina disse, uma competição esportiva foi


realizada num estádio que pertencia a uma sede militar, onde houve
prisões, torturas, mortes. Cinquenta anos depois atletas corriam na
pista, torcedores ovacionavam na arquibancada, pódios e medalhas
exibidos à espera do vencedor. Nenhum registro dos acontecimentos.
Não foi necessário meio século para isso, poucos anos depois e era
como se aquelas paredes não conhecessem outra rotina além dos
esportes e das competições. A sua mãe pode ter ficado presa ali, ter
sido torturada e assassinada naquele lugar, e um dia você acorda
e sai de casa para assistir a um jogo, a uma corrida, e se senta na
arquibancada, e você torce e vibra, sem a menor ideia do que
aconteceu. É aterrorizante. (LAGE, 2019, Pos. 563)

182 Escritas do corpo ausente


Essa pluralidade de vozes, responsáveis pelo deslocamento
constante do foco narrativo, é responsável pela ampliação do
âmbito do trauma do assassinato e desaparecimento do corpo
da dissidente política, para o trauma coletivo causado pela
ditadura no corpo social brasileiro. A ausência do corpo torna-se
estranhamente presente, pois, como dever de memória, no corpo
da escrita, como uma forma de exposição do trauma causado pela
ditadura ao torturar, matar tantos dissidentes e fazer desaparecer
seus corpos.4
Em O Corpo interminável, desde o título, a estranheza de
corpos desaparecidos, que se corporificam fantasmaticamente
na escrita insistentemente, faz ressurgir cenas traumáticas.
Como diz Jaime Ginzburg, no ensaio já referido, da experiência
do trauma não pode ser retirada a estranheza, sob pena de
banalização do horror. (Cf. GINZBURG, 2017, p. 442). À estranha
condição do desaparecido, um não-corpo tem no espaço literário
lugar privilegiado de enunciação.
Tal estranheza é acentuada no romance nas várias
encenações de sessões de tortura, em que mulheres relatam as
sevícias sofridas.

[...]só lembro quando cheguei, as outras mulheres na cela, os gritos,


a dor, o meu corpo, eu saía do meu corpo nas horas insuportáveis, é
uma técnica indiana, eu saía do meu corpo, me olhava de longe, aquela
moça na vara, aquela moça afogada, aquela moça pendurada, aquela
moça roxa, eu via de longe, anos e anos [...] (LAGE, 2019, Pos. 1925)
4 “O corpo passa a ser fundamental para a ação do regime. Se a sala de tortura
tem como resto de sua produção um corpo violado e se o assassinato
político produz o corpo sem vida, o desaparecimento de opositores fabrica
a ausência do corpo. No caso do desaparecido político, sabe‑se da existência
de um corpo (desaparecido) e de uma localidade (desconhecida).” (TELES.
In: TELES e SAFATLE, 2010, p.305)

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Marilena Chauí, entre outros, expõe o papel do teatro e da
farsa nas situações de tortura:

Impressiona não só o jogo de gato e rato entre torturador e torturado,


não só a produção de falsos por parte do torturador, mas a própria
situação como teatral. Em muitos relatos, os torturados dizem ter
o sentimento de estar num palco, não só porque havia a plateia de
torturadores e companheiros, mas também pelo sentimento de
irrealidade causado pelo aparato técnico-científico da tortura, que só
pode intimidar quando exibido como espetáculo (seja pela descrição
prévia de seu uso pelo torturador, seja pela visão de companheiros
torturados). (CHAUI, p. 134-135)

Chauí fala, ainda, da estranheza dessa encenação por


ela ser clandestina, com atores sem nome, nem lugar, todos
transformados em ninguém, reiterando a situação da tortura
como negação da política.
Como performance, o corpo grávido ou dando à luz
permeia a narrativa de Claudia Lage. Como um corpo torturado
interminavelmente é evocado pelo personagem que o torna
presente na cena explícita da escrita, ora a ele se “incorporando”,
ora dele se distanciando como observador.

[...] sinto todos os estremecimentos que ela sente, os choques que


queimam a sua pele me queimam também, as pancadas ferem a nós
dois num único golpe, quase escrevo, o corpo da minha mãe também
é o meu, escrevo, é com esse corpo que inicio a vida, é nesse corpo
que conheço a brutalidade. Me pergunto como ela conseguiu, entre
espasmos e contorções, me manter aquecido, alimentado, limpo,
como as vitaminas continuaram a ser produzidas, como os sistemas
se organizaram, os órgãos se formaram, enquanto fora acontecia tudo
contra, tudo para eu não acontecer. Eu ouvia os seus gritos, enquanto

184 Escritas do corpo ausente


ela implorava, silenciava, até quase morto o seu corpo, e apesar da
quase morte, em seu ventre o meu corpo ganhava forma, contorno,
olhos, boca, dedos, coração, sexo, começava a existir. (LAGE, 2019,
Pos. 1609)

Repetida, em diferença, a cena traumática do nascimento,


estranhamente, se dá do ponto de vista de um observador
inominado que compartilha a sensação da mulher no momento
do parto:

Ouviu o choro cortando a cela, entre as paredes imundas, o choro


do seu bebê. Antes de desmaiar, estendeu os braços, mas eles
despencaram. Ouviu o próprio grito. Fechavam a sua barriga, a
sangue frio, a sangue quente. Os braços inertes, a agulha entrando e
saindo da pele. A sua pele era um tecido qualquer. Ainda vislumbrou
o pequeno corpo avermelhado, antes da dor invadir os seus nervos.
Ainda ouviu o choro se afastando, ecoando entre corredores e alas,
antes de desmaiar. Antes dos olhos fecharem, ainda tentou, mais uma
vez, estender os braços. (LAGE, 2019, Pos. 941)

E a repetição melancólica da cena traumática imaginada


pelo narrador:

Uma pessoa sem corredores escuros e fedorentos em seu início, ou


nem eram escuros os corredores e nem havia o mau cheiro, talvez
tenha sido uma sala limpa e asséptica de um hospital, ou talvez não
houvesse assepsia nem hospital nem médico, talvez não houvesse
nada, apenas uma mulher e a sua barriga imensa, e uma criança
dentro dela, e o sangue e a vagina rasgada e o nascimento. (…) A
criança arrancada da mãe não chegou a ser aninhada em seus braços.
Não houve acalanto. Não houve o mútuo reconhecimento pelo cheiro,
nem a emoção de encontrar fora do corpo uma parte de si. A criança
foi arrancada. (LAGE, 2019, Pos. 301)

Maria Zilda Ferreira Cury 185


Nos dois exemplos, os termos utilizados potencializam
a violência contra os corpos: criança arrancada, sangue, vagina
rasgada, choro cortando a cela. O corpo torturado, no entanto,
também se encena a si mesmo, no romance, como lugar de
resistência à loucura intentada pela tortura:

Você vai enlouquecer, eles disseram antes de ir embora. Quem vai te


acordar dos pesadelos, quem vai dizer que já passou? Eles não sabem,
mas eu me abraço todas as manhãs, não é a minha mente, é o meu
corpo que fala comigo. (LAGE, 2019, Pos. 1030)

Esse corpo que resiste é também metáfora do corpo da


escrita literária que se assume como espaço de elocução de vozes
violentamente silenciadas.
O Corpo interminável, cruzamento de narrativas lacunares
mas sempre em aberto, expõe a violência do período ditatorial.
A literatura do trauma evidencia, assim, sua importância mesmo
admitindo a precariedade da linguagem para o registro do horror,
ou antes, até mesmo pela consciência dessa precariedade diante
da aporia do desejo de “dizer o outro”, de expressar a morte e
ausência do corpo.

186 Escritas do corpo ausente


Referências

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Maria Zilda Ferreira Cury 187


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