O Pai Goriot Honore de Balzac
O Pai Goriot Honore de Balzac
O Pai Goriot Honore de Balzac
PAI GORIOT
HONORÉ DE BALZAC nasceu em Tours em 1799, filho de um funcionário público. Passou quase seis
anos interno em um colégio de Vendôme, depois se fixou em Paris, onde exerceu a função de estagiário em
um escritório de advocacia e, posteriormente, de escritor freelance . Entre 1820 e 1824, adotando diversos
pseudônimos, escreveu alguns romances, boa parte deles em colaboração, e, a seguir, tentou inutilmente a
sorte na atividade de editor, impressor e tipógrafo. Aos trinta anos, muito endividado, retomou a literatura
com grande empenho e escreveu o primeiro romance publicado em seu nome, A Bretanha . Nos vinte anos
seguintes, escreveu cerca de noventa romances e contos, entre os quais muitas obras-primas que receberam
o nome abrangente de A comédia humana . Como disse o próprio Balzac: “O que ele [Napoleão] não
conseguiu concluir com a espada, eu o realizarei com a pena”. Ele faleceu em 1850, alguns meses depois de
se casar com Evelina Hanska, a condessa polonesa com quem manteve relações durante dezoito anos.
ROSA FREIRE D’AGUIAR nasceu no Rio de Janeiro. Formou-se em jornalismo pela PUC do Rio de
Janeiro e nos anos 1970 e 1980 foi correspondente em Paris das revistas Manchete e IstoÉ e do Jornal da
República . Em 1986 retornou ao Brasil e desde então trabalha no mercado editorial. Traduziu do francês,
espanhol e italiano cerca de cem títulos nas áreas de literatura e ciências humanas, de autores como Céline,
Lévi-Strauss, Sabato, Balzac, Montaigne e Stendhal. É autora de Memória de tradutora (2004) e editora da
coleção Arquivos Celso Furtado (Contraponto/ Centro Celso Furtado), na qual já publicou cinco títulos.
Entre os prêmios que recebeu estão o da União Latina de Tradução Técnica e Científica (2001) por O
universo, os deuses, os homens , de Jean-Pierre Vernant, e o Jabuti (2009) por A elegância do ouriço , de
Muriel Barbery, ambos da Companhia das Letras. É presidente do Conselho Deliberativo do Centro
Internacional Celso Furtado.
HONORÉ
DE BALZAC
O pai Goriot
Tradução de
ROSA FREIRE D'AGUIAR
Sumário
HONORÉ DE BALZAC
— Oh! Oh! Bom dia, mamãe Vauquer — disse ao ver a hospedeira, que ele
pegou galantemente nos braços.
— Ande, pare com isso.
— Diga impertinente ! — ele retrucou. — Vamos, diga. Quer fazer o favor de
dizer? Pronto, vou pôr a mesa com a senhora. Ah! sou bonzinho, não sou?
… ao léu.
— Ah! Ah! Aqui temos uma ótima sopoirama — disse Poiret ao ver
Christophe entrar trazendo respeitosamente a sopa.
— Desculpe, senhor — disse a sra. Vauquer —, é uma sopa de repolho.
Todos os jovens caíram na gargalhada.
— Perdeu, Poiret!
— Poirrrrrette perdeu!
— Marquem dois pontos para mamãe Vauquer — disse Vautrin.
— Alguém prestou atenção no nevoeiro desta manhã? — perguntou o
empregado.
— Era — disse Bianchon — um nevoeiro frenético e inaudito, um nevoeiro
lúgubre, melancólico, verde, ofegante, um nevoeiro Goriot.
— Goriorama — disse o pintor —, porque ninguém via um palmo na frente do
nariz.
— Ei, lorde Gaoriote, estamo falano de vóis.
Sentado na ponta da mesa, perto da porta pela qual se servia, o pai Goriot
levantou a cabeça farejando um pedaço de pão que deixara debaixo do
guardanapo, por um velho hábito comercial que às vezes reaparecia.
— O que é? — gritou-lhe, áspera, a sra. Vauquer num tom que abafou o ruído
das colheres, dos pratos e das vozes —, será que não está achando bom o pão?
— Ao contrário, senhora — ele respondeu —, é feito com a farinha de
Étampes, primeira qualidade.
— Como é que percebe isso? — perguntou-lhe Eugène.
— Pela brancura, pelo gosto.
— Pelo gosto do nariz, já que o está cheirando — disse a sra. Vauquer. — O
senhor está ficando tão econômico que vai acabar dando um jeito de se alimentar
fungando o ar da cozinha.
— Então registre uma patente de invenção — gritou o empregado do museu
—, fará uma bela fortuna.
— Mas deixe-o, ele faz isso para nos convencer de que foi macarroneiro —
disse o pintor.
— Então o seu nariz é uma retorta? — perguntou ainda o empregado do
museu.
— Re quê? — perguntou Bianchon.
— Re-truque.
— Re-tranca.
— Re-traso.
— Re-treta.
— Re-trós.
— Re-boco.
— Re-clame.
— Re-tortarama.
Essas oito respostas partiram de todos os lados da sala com a rapidez de um
fogo de rastilho, e prestaram-se tanto mais ao riso porque o pai Goriot olhava
para os convivas com cara de bobo, como um homem que tenta compreender
uma língua estrangeira.
— Re? — perguntou a Vautrin, que estava perto dele.
— Revanchismo, meu velho! — disse Vautrin enfiando o chapéu do pai Goriot
com um tapa que lhe deu na cabeça e que o fez descer até os olhos.
O pobre velho, estupefato com esse ataque desabrido, ficou imóvel por um
instante. Christophe levou o prato do homenzinho, acreditando que ele terminara
a sopa; de modo que quando Goriot, depois de levantar o chapéu, pegou sua
colher, acabou batendo na mesa. Todos os convivas caíram na risada.
— O senhor — disse o velhote — é um impertinente, e caso se permita de
novo dar esses socos no meu chapéu…
— E daí, o que, papai? — disse Vautrin interrompendo-o.
— Pois então! Um dia pagará muito caro por isso…
— No inferno, não é? — disse o pintor —, naquele cantinho preto onde se
põem as crianças más!
— E aí, senhorita — disse Vautrin a Victorine —, não está comendo. Então o
papai se mostrou recalcitrante?
— Um horror — disse a sra. Couture.
— É preciso chamá-lo às falas — disse Vautrin.
— Mas — disse Rastignac, que estava pertinho de Bianchon —, essa senhorita
poderia mover uma ação sobre a questão dos alimentos, já que não come. Ei! Ei!
Mas vejam como o pai Goriot examina a srta. Victorine.
O velho esquecia de comer para contemplar a pobre moça, em cujos traços
explodia uma dor verdadeira, a dor da filha não reconhecida que ama o pai.
— Meu caro — disse Eugène baixinho —, nós nos enganamos sobre o pai
Goriot. Não é um imbecil nem um homem sem nervos. Aplique a ele seu sistema
de Gall e diga-me o que pensa. Eu o vi esta noite entortar um prato de vermeil,
como se fosse cera, e nesse momento a expressão de seu rosto trai sentimentos
extraordinários. Sua vida me parece misteriosa demais para não valer a pena ser
estudada. Sim, Bianchon, por mais que você ria, não estou brincando.
— Esse homem é um fato médico — disse Bianchon —, concordo; se quiser,
eu o disseco.
— Não, apalpe a cabeça dele.
— Ah! Bem, a estupidez dele talvez seja contagiosa.
No dia seguinte Rastignac se vestiu todo elegante e foi, lá pelas três da tarde, à
casa da sra. de Restaud, entregando-se no caminho a essas esperanças
irrefletidamente loucas que tornam a vida dos jovens tão bela de emoções: então
eles não calculam os obstáculos nem os perigos, veem em tudo o sucesso,
poetizam sua existência unicamente pelo jogo da imaginação e tornam-se
infelizes ou tristes pela ruína de projetos que só viviam em seus desejos
desenfreados; se não fossem ignorantes e tímidos, o mundo social seria
impossível. Eugène andava com mil precauções para não se enlamear, mas
andava pensando no que diria à sra. de Restaud, abastecia-se de espírito,
inventava as réplicas de uma conversa imaginária, preparava suas tiradas, suas
frases à Talleyrand, supondo pequenas circunstâncias favoráveis à declaração
sobre a qual baseava seu futuro. O estudante se enlameou, foi obrigado a mandar
engraxar as botas e escovar as calças no Palais-Royal. “Se eu fosse rico”, pensou
trocando uma moeda de trinta vinténs que pegara no caso de uma desgraça ,
“teria ido de carruagem, poderia ter pensado à vontade.” Finalmente, chegou à
Rue du Helder e perguntou pela condessa de Restaud. Com a fúria fria de um
homem certo de triunfar um dia, recebeu o olhar de desprezo das pessoas que o
tinham visto atravessar o pátio a pé, sem ter ouvido o barulho de um carro na
porta. Aquele olhar lhe foi mais sensível ainda porque já havia entendido sua
inferioridade ao entrar no pátio, onde bufava um belo cavalo ricamente atrelado
a um desses cabriolés elegantes que exibem o luxo de uma existência dissipadora
e subentendem o hábito de todas as felicidades parisienses. Ficou, por conta
própria, de mau humor. As gavetas abertas de seu cérebro e que ele esperava
encontrar cheias de espírito se fecharam, tornou-se um tolo. Esperando a
resposta da condessa, a quem um mordomo fora dizer o nome do visitante,
Eugène ficou num só pé diante de uma janela da antessala, apoiou o cotovelo
numa cremona e olhou mecanicamente para o pátio. Achava o tempo longo, teria
ido embora se não fosse dotado dessa tenacidade meridional que gera prodígios
quando caminha em linha reta.
— Senhor — disse o mordomo —, a senhora está em seu budoar e muito
ocupada, não me respondeu; mas, se quiser passar ao salão, já há alguém ali.
Admirando o tenebroso poder dessas pessoas que, com uma só palavra, acusam
ou julgam seus patrões, Rastignac abriu deliberadamente a porta pela qual saiu o
mordomo, a fim de, tudo indica, fazer esses insolentes criados acreditarem que
conhecia os moradores da casa; mas, muito atordoado, foi dar num cômodo onde
havia lamparinas, aparadores, um aparelho de aquecer toalhas para o banho, e
que desembocava num corredor escuro e numa escada camuflada. Os risos
abafados que ouviu na antessala levaram seu embaraço ao auge.
— Senhor, o salão é por aqui — disse-lhe o criado com esse falso respeito que
parece um escárnio a mais.
Eugène voltou atrás com tamanha precipitação que bateu numa banheira, mas
felizmente segurou o chapéu para evitar que caísse dentro do banho. Nesse
instante, abriu-se uma porta no fundo do longo corredor iluminado por uma
pequena lamparina, Rastignac ouviu ao mesmo tempo a voz da sra. de Restaud, a
do pai Goriot e o ruído de um beijo. Entrou na sala de jantar, cruzou-a, seguiu o
criado e entrou num primeiro salão onde ficou encostado defronte da janela,
percebendo que tinha vista para o pátio. Queria ver se aquele pai Goriot era
mesmo, realmente, o seu pai Goriot. Seu coração disparava, estranhamente,
lembrava-se das terríveis reflexões de Vautrin. O criado esperava Eugène à porta
do salão, mas de lá saiu de repente um elegante rapaz, que disse impaciente:
— Vou embora, Maurice. Diga à senhora condessa que a esperei mais de meia
hora.
Esse impertinente, que com certeza tinha o direito de sê-lo, cantarolou algum
trinado italiano dirigindo-se à janela onde estacionava Eugène, tanto para ver a
figura do estudante como para olhar o pátio.
— Mas o senhor conde melhor faria se esperasse mais um instante, a senhora
terminou — disse Maurice retornando à antessala.
Nesse momento o pai Goriot aparecia perto da porta-cocheira pela saída da
escadinha. O homem pegava seu guarda-chuva e se preparava para abri-lo, sem
prestar atenção na grande porta que estava aberta para dar passagem a um rapaz
condecorado que dirigia um tílburi. O pai Goriot apenas teve tempo de se jogar
para trás a fim de não ser esmagado. O tafetá do guarda-chuva assustara o
cavalo, que se desviou ligeiramente precipitando-se para a escadaria. Esse rapaz
virou a cabeça com uma expressão de raiva, olhou para o pai Goriot e lhe fez,
antes que ele saísse, uma saudação que retratava a consideração forçada
demonstrada aos agiotas de quem se precisa, ou esse respeito necessário exigido
por um homem corrupto, mas do qual mais tarde sentimos vergonha. O pai
Goriot respondeu com uma saudaçãozinha amistosa, cheia de bonomia. Esses
fatos ocorreram com a rapidez de um raio. Atento demais para perceber que não
estava sozinho, Eugène ouviu de repente a voz da condessa.
— Ah! Maxime, você estava indo embora — ela disse em tom de reprimenda,
ao qual se misturava um pouco de desprezo.
A condessa não prestara atenção na entrada do tílburi. Rastignac se virou
abrupto e viu a condessa sedutoramente vestida com um penhoar de caxemira
branco, laços cor-de-rosa, penteado displicente, como são o das mulheres de
Paris pela manhã; estava perfumada, com certeza tomara banho, e sua beleza,
por assim dizer amaciada, parecia mais voluptuosa; seus olhos estavam úmidos.
O olhar dos jovens sabe ver tudo: seus espíritos se unem aos esplendores da
mulher assim como uma planta aspira no ar substâncias que lhe são próprias,
Eugène sentiu então o frescor desabrochado das mãos daquela mulher sem
precisar tocá-las. Via, através da caxemira, as tonalidades rosadas do corpete que
o penhoar, ligeiramente entreaberto, deixava às vezes a nu, e sobre o qual seus
olhos se espalhavam. O recurso às barbatanas era inútil para a condessa, só a
cintura marcava seu corpo flexível, seu pescoço convidava ao amor, seus pés
eram bonitos dentro das pantufas. Quando Maxime pegou aquela mão para beijá-
la, Eugène então percebeu a presença de Maxime, e a condessa percebeu a de
Eugène.
— Ah!, é o sr. de Rastignac, estou muito contente em vê-lo — disse ela, com
um jeito a que sabem obedecer as pessoas inteligentes.
Maxime olhava alternadamente para Eugène e para a condessa de modo
bastante significativo para fazer o intruso dar no pé. “Ah, essa! Espero, minha
cara, que você vai me pôr esse engraçadinho porta afora!” Essa frase era uma
tradução clara e inteligível dos olhares do rapaz impertinentemente orgulhoso
que a condessa Anastasie chamara de Maxime, e cujo rosto ela consultava com
essa atenção submissa que expressa todos os segredos de uma mulher sem que
ela nem desconfie. Rastignac sentiu um ódio violento daquele rapaz. Primeiro,
os belos cabelos louros e bem frisados de Maxime lhe ensinaram como os seus
eram horríveis. Depois, Maxime tinha botas finas e limpas, ao passo que as suas,
apesar do cuidado que tomara ao andar, estavam marcadas por um leve rastro de
lama. Por fim, Maxime vestia uma sobrecasaca que lhe apertava elegantemente a
cintura e o fazia parecer uma mulher bonita, enquanto Eugène vestia, às duas e
meia, uma casaca preta. O espirituoso filho da Charente sentiu a superioridade
que a roupa dava àquele dândi, esbelto e alto, de olhos claros, tez pálida, um
desses homens capazes de arruinar os órfãos. Sem esperar a resposta de Eugène,
a sra. de Restaud bateu asas e voou para o outro salão, deixando flutuarem as
abas de seu penhoar que se enrolavam e desenrolavam de modo a lhe dar a
aparência de uma borboleta; e Maxime a seguiu. Eugène, furioso, seguiu
Maxime e a condessa. Esses três personagens se viram, portanto, em presença
um do outro, na altura da lareira, no meio do grande salão. O estudante bem
sabia que ia atrapalhar aquele odioso Maxime; mas arriscando-se a desagradar à
sra. de Restaud, quis incomodar o dândi. De repente, lembrando-se de ter visto
aquele rapaz no baile da sra. de Beauséant, adivinhou o que Maxime era para a
sra. de Restaud; e com essa audácia juvenil que faz cometerem-se grandes
besteiras ou obter grandes êxitos, pensou consigo mesmo: “Aí está meu rival,
vou triunfar contra ele”. Imprudente! Ignorava que o conde Maxime de Trailles
deixava-se insultar, atirava em primeiro lugar e matava o adversário. Eugène era
um caçador hábil, mas ainda não tinha conseguido derrubar vinte bonecos dos
vinte e dois existentes num tiro ao alvo. O jovem conde jogou-se numa bergère
ao lado da lareira, pegou as tenazes e remexeu o fogo com um gesto tão violento,
tão rabugento, que o belo rosto de Anastasie se entristeceu subitamente. A jovem
mulher virou-se para Eugène e lhe lançou um desses olhares friamente
interrogativos que dizem tão bem: “Por que não vai embora?”, que as pessoas
bem-educadas logo percebem o que querem dizer essas frases, que deveriam ser
chamadas frases de saída.
Eugène fez uma expressão agradável e disse:
— Senhora, eu estava apressado em vê-la para…
Parou de chofre. Uma porta se abriu. O senhor que dirigia o tílburi surgiu de
repente, sem chapéu, não cumprimentou a condessa, olhou preocupado para
Eugène, estendeu a mão a Maxime dizendo-lhe “Bom dia”, com uma expressão
fraterna que surpreendeu singularmente Eugène. Os rapazes da província
ignoram como é doce a vida a três.
— O sr. de Restaud — disse a condessa ao estudante, apontando-lhe seu
marido.
Eugène fez uma profunda reverência.
— Este — ela continuou, apresentando Eugène ao conde de Restaud — é o sr.
de Rastignac, parente da sra. viscondessa de Beauséant pelos Marcillac, e que
tive o prazer de encontrar em seu último baile.
Parente da sra. viscondessa de Beauséant pelos Marcillac! Essas palavras, que
a condessa pronunciou quase enfaticamente, por conta da espécie de orgulho que
sente uma dona de casa ao provar que só recebe em sua residência pessoas
distintas, tiveram um efeito mágico, o conde abandonou seu ar friamente
cerimonioso e cumprimentou o estudante.
— Muito prazer, senhor — disse —, em poder conhecê-lo.
O próprio conde Maxime de Trailles deu para Eugène um olhar inquieto e de
súbito abandonou seu jeito impertinente. Esse golpe de mágica, decorrente da
poderosa intervenção de um sobrenome, abriu trinta compartimentos no cérebro
do meridional e lhe devolveu o espírito que ele havia preparado. Uma luz súbita
o fez ver claro na atmosfera, para ele ainda tenebrosa, da alta sociedade
parisiense. Então, a Casa Vauquer e o pai Goriot ficaram bem longe de seu
pensamento.
— Eu acreditava que os Marcillac estavam extintos? — comentou o conde de
Restaud com Eugène.
— É, senhor — ele respondeu. — Meu tio-avô, o cavaleiro de Rastignac,
casou-se com a herdeira da família De Marcillac. Só teve uma filha, que se casou
com o marechal de Clarimbault, avó materno da sra. de Beauséant. Somos o
ramo caçula, ramo hoje mais pobre ainda porque meu tio-avô, vice-almirante,
perdeu tudo a serviço do rei. O governo revolucionário não quis admitir nossos
créditos na liquidação que fez da Companhia das Índias.
— O senhor seu tio-avô não comandava o Vengeur antes de 1789?
— Exatamente.
— Então ele conheceu meu avô, que comandava o Warwick .
Maxime deu ligeiramente de ombros ao olhar para a sra. de Restaud, com jeito
de lhe dizer: “Se ele se põe a falar de marinha com esse aí, estamos fritos”.
Anastasie compreendeu o olhar do sr. de Trailles. Com esse admirável poder que
as mulheres têm, ela começou a sorrir dizendo:
— Venha, Maxime; tenho algo a lhe pedir. Senhores, vamos deixá-los navegar
juntos pela mesma rota no Wa rwick e no Vengeur .
Levantou-se e fez um sinal cheio de irônica traição para Maxime, que pegou
com ela a rota do budoar. Mal esse casal morganático , bonita expressão alemã
que não tem equivalente em francês, chegara à porta, o conde interrompeu sua
conversa com Eugène.
— Anastasie! Mas fique, minha querida — exclamou com humor —, você
bem sabe que…
— Já volto, já volto — ela disse interrompendo-o —, só preciso de um
momento para dizer a Maxime o que quero que ele faça.
Voltou prontamente. Como todas as mulheres que, obrigadas a observar o
caráter dos maridos para poderem se comportar segundo suas fantasias, sabem
reconhecer até onde devem ir a fim de não perderem uma confiança preciosa, e
que então jamais se chocam com eles nas pequenas coisas da vida, a condessa
vira pelas inflexões de voz do conde que não haveria nenhuma segurança em
ficar no budoar. Esses contratempos se deviam a Eugène. Assim a condessa
mostrou com uma expressão e com um gesto cheios de desprezo o estudante a
Maxime, que disse, muito satírico, ao conde, à sua mulher e a Eugène:
— Escutem aqui, os senhores estão falando de negócios, não quero atrapalhá-
los; adeus.
E se foi.
— Mas fique, Maxime! — gritou o conde.
— Venha jantar — disse a condessa, que, deixando mais uma vez Eugène e o
conde, seguia Maxime pelo primeiro salão, onde ficaram juntos tempo suficiente
para crer que o sr. de Restaud mandaria Eugène embora.
Rastignac os ouvia sucessivamente caindo na risada, conversando, se calando;
mas o malicioso estudante mostrava-se espirituoso com o sr. de Restaud, o
lisonjeava ou o embarcava em discussões, a fim de rever a condessa e saber
quais eram suas relações com o pai Goriot. Aquela mulher, sem a menor dúvida
apaixonada por Maxime, aquela mulher, senhora de seu marido, ligada
secretamente ao velho macarroneiro, parecia-lhe um mistério total. Queria
penetrar nesse mistério, esperando assim poder reinar como soberano sobre a
mulher tão eminentemente parisiense.
— Anastasie — disse o conde chamando de novo a mulher.
— Vamos, meu pobre Maxime — ela disse ao rapaz —, é preciso se resignar.
Até à noite…
— Espero, Nasie — ele lhe disse ao ouvido —, que você barrará a entrada
desse mocinho cujos olhos se acenderam como brasas quando o seu penhoar se
entreabriu. Ele lhe faria declarações, a comprometeria, e você me forçaria a
matá-lo.
— Está louco, Maxime? — ela disse. — Esses estudantezinhos não são, ao
contrário, excelentes para-raios? Eu o farei, com certeza, tomar birra de Restaud.
Maxime caiu na risada e saiu, seguido pela condessa, que se pôs na janela para
vê-lo subir na carruagem, fazendo o cavalo patear e balançando seu chicote. Só
voltou quando o portão se fechou.
— Mas me diga, minha querida — gritou-lhe o conde quando ela entrou —, a
terra onde vive a família do cavalheiro não é longe de Verteuil, na beira do
Charente. O tio-avô dele e meu avô se conheciam.
— Que prazer saber que somos todos da mesma terra — disse a condessa,
distraída.
— Mais do que imagina — disse baixinho Eugène.
— Como? — ela retrucou com vivacidade.
— Mas — continuou o estudante — acabo de ver sair de sua casa um senhor
que mora porta a porta comigo, na mesma pensão, o pai Goriot.
Diante desse nome embelezado com a palavra “pai”, o conde, que estava
atiçando o fogo, jogou as tenazes no chão, como se lhe tivessem queimado as
mãos, e se levantou.
— O senhor poderia ter dito sr. Goriot! — exclamou.
A condessa, primeiro, empalideceu ao ver a impaciência do marido, depois
enrubesceu e ficou evidentemente embaraçada; respondeu com uma voz que quis
tornar natural, e com ar falsamente distante:
— É impossível conhecer alguém de quem mais gostamos… — Interrompeu-
se, olhou para seu piano como se despertasse nela alguma fantasia, e disse: —
Gosta de música?
— Muito — respondeu Eugène, agora vermelho e pasmo com a
constrangedora ideia de ter cometido uma rematada bobagem.
— Canta? — ela exclamou indo para o piano, tendo atacado intensamente
todas as teclas, remexendo-as desde o dó de baixo até o fá do alto. Rrrahh!!
— Não, senhora.
O conde de Restaud ia de um lado para o outro.
— É uma pena, privou-se de um grande instrumento de sucesso. Ca-a-ro , ca-
a-ro, ca-a-a-a-ro , non du-bita-re — cantou a condessa.
Ao pronunciar o nome do pai Goriot, Eugène dera um golpe de mágica, cujo
efeito no entanto era inverso ao que haviam provocado as palavras: parente da
sra. de Beauséant. Estava na situação de um homem introduzido de favor na casa
de um grande amante de curiosidades e que, tocando por desatenção num
armário cheio de figuras esculpidas, deixa caírem três ou quatro cabeças mal
coladas. Gostaria de se jogar num abismo. O rosto da sra. de Restaud estava
seco, frio, e seus olhos agora indiferentes fugiam daqueles do desastrado
estudante.
— A senhora — ele disse — tem o que conversar com o sr. de Restaud, queira
aceitar minhas homenagens e me permita…
— Sempre que vier — disse precipitadamente a condessa, parando Eugène
com um gesto — esteja certo de que dará, ao sr. de Restaud e a mim, o mais
intenso prazer.
Eugène saudou com reverência o casal e saiu, seguido pelo sr. de Restaud, que,
apesar de suas solicitações, o acompanhou até a antessala.
— Sempre que esse senhor se apresentar — disse o conde a Maurice —, nem a
senhora nem eu estaremos em casa.
Quando Eugène pôs o pé na escadaria, percebeu que chovia. “Ora”, pensou
com seus botões, “vim armar uma trapalhada, cuja causa e cujo alcance ignoro, e
para completar estragarei minha roupa e meu chapéu. Deveria ficar no meu
canto, dando duro no direito, só pensando em me tornar um rude magistrado.
Posso frequentar a sociedade quando, para aí manobrar adequadamente, se
precisa de um monte de cabriolés, botas engraxadas, apetrechos indispensáveis,
correntes de ouro, desde a manhã luvas de camurça brancas que custam seis
francos, e sempre luvas amarelas à noite? Velho esquisito esse pai Goriot, que
coisa!”
Quando se viu à porta da rua, o cocheiro de um carro de aluguel, que
provavelmente acabava de deixar uns recém-casados e não pedia nada melhor do
que roubar de seu patrão algumas corridas de contrabando, fez sinal para
Eugène, vendo-o sem guarda-chuva, de casaca preta, colete branco, luvas
amarelas e botas engraxadas. Eugène estava sob o impacto de uma dessas raivas
surdas que impelem um jovem a se enfiar cada vez mais no abismo em que
entrou, como se ali esperasse encontrar uma feliz saída. Aceitou, com um aceno
de cabeça, a oferta do cocheiro. Sem ter mais que vinte e dois vinténs no bolso,
subiu na carruagem onde alguns grãos de flores de laranjeira e canutilhos
demonstravam a passagem dos noivos.
— Para onde vai? — perguntou o cocheiro, que já não usava suas luvas
brancas.
“Santo Deus!”, pensou Eugène, “já que estou me afundando, que pelo menos
isso me sirva para alguma coisa!” — Vá ao palacete de Beauséant —
acrescentou em voz alta.
— Qual? — disse o cocheiro.
Palavra sublime que confundiu Eugène. Esse novato elegante não sabia que
havia dois palacetes de Beauséant, não imaginava como era rico em parentes que
não se preocupavam com ele.
— O do visconde de Beauséant, à Rue…
— De Grenelle — disse o cocheiro balançando a cabeça e o interrompendo. —
Sabe, ainda há o palacete do conde e do marquês de Beauséant, na Rue Saint-
Dominique — acrescentou levantando o estribo.
— Eu sei perfeitamente — respondeu Eugène em tom seco.
“Todos hoje estão zombando de mim!”, pensou jogando o chapéu sobre as
almofadas dianteiras. “Aí está uma escapada que vai me custar o resgate de um
rei. Mas pelo menos vou fazer uma visita à minha suposta prima de maneira
solidamente aristocrática. O pai Goriot já me custa ao menos dez francos, esse
velho celerado! Palavra de honra, vou contar minha aventura à sra. de
Beauséant, talvez a faça rir. Com certeza ela conhecerá o mistério das ligações
criminosas desse velho rato sem rabo com aquela linda mulher. É melhor
agradar minha prima do que me bater contra essa mulher imoral, que me dá a
sensação de ser bem dispendiosa. Se o nome da bela viscondessa é tão poderoso,
então qual deve ser o peso de sua pessoa? Dirijamo-nos ao alto escalão. Quando
se ataca uma coisa no céu, é preciso visar Deus!”
Essas palavras são a fórmula breve dos mil e um pensamentos entre os quais
ele pairava. Recuperou um pouco de calma e segurança ao ver cair a chuva.
Pensou que, se ia dissipar duas das preciosas moedas de cem vinténs que lhe
restavam, elas seriam felizmente empregadas na conservação de sua roupa, de
suas botas e de seu chapéu. Ouviu não sem um ímpeto de hilaridade o cocheiro
gritando: “A porta, por favor!”. Um porteiro vermelho e dourado fez grunhir as
dobradiças da porta do palacete, e Rastignac viu com doce satisfação seu carro
passando pelo pórtico, virando no pátio e parando sob a marquise da escadaria.
O cocheiro com um grosso capote azul bordado de vermelho foi desdobrar o
estribo. Descendo do carro, Eugène ouviu risos abafados que partiam do
peristilo. Três ou quatro criados já tinham gracejado a respeito daquele carro
vulgar de noiva. O riso deles esclareceu o estudante quando comparou aquela
carruagem com um dos mais elegantes cupês de Paris, atrelado com dois cavalos
fogosos que tinham rosas na orelha, mordiam o travão, e que um cocheiro
empoado e bem engravatado segurava pela rédea como se eles quisessem
escapar. Na Rue Chaussée d’Antin, a sra. de Restaud tinha no pátio o refinado
cabriolé do homem de vinte e seis anos. No Faubourg Saint-Germain, esperava-o
o luxo de um grande aristocrata, uma carruagem que trinta mil francos não
pagariam.
“Mas quem estará aí?”, pensou Eugène entendendo meio tardiamente que
devia haver em Paris bem poucas mulheres desimpedidas, e que a conquista de
uma dessas rainhas custava mais que sangue. “Diachos! minha prima com
certeza também terá seu Maxime.”
Subiu a escadaria desesperado. Quando o viram, a porta envidraçada se abriu;
encontrou os criados sérios como asnos sendo escovados. A festa à qual assistira
ocorrera nos grandes salões de recepção, situados no térreo do palacete de
Beauséant. Como não tivera tempo, entre o convite e o baile, de fazer uma visita
à prima, ainda não penetrara nos aposentos da sra. de Beauséant; assim, ia ver
pela primeira vez as maravilhas daquela elegância pessoal que trai a alma e os
costumes de uma mulher de distinção. Estudo tanto mais curioso na medida em
que o salão da sra. de Restaud lhe fornecia um termo de comparação. Às quatro
e meia a viscondessa estava visível. Cinco minutos mais cedo, não teria recebido
o primo. Eugène, que não sabia nada das diversas etiquetas parisienses, foi
conduzido por uma grande escadaria em tons brancos, cheia de flores, com
rampa dourada, tapete vermelho, até a sra. de Beauséant, cuja biografia verbal
ele ignorava, uma dessas histórias cambiantes que se contam todas as noites de
ouvido em ouvido nos salões de Paris.
A viscondessa era ligada, fazia três anos, a um dos mais célebres e mais ricos
senhores portugueses, o marquês d’Ajuda-Pinto. Era uma dessas ligações
inocentes que têm tantos atrativos para as pessoas assim ligadas, que elas não
conseguem suportar nenhum estranho. Assim, o visconde de Beauséant dera ele
mesmo o exemplo ao público, respeitando, bem ou mal, essa união morganática.
As pessoas que, nos primeiros dias dessa amizade, foram ver a viscondessa às
duas horas, ali encontraram o marquês d’Ajuda-Pinto. A sra. de Beauséant,
incapaz de fechar sua porta, o que teria sido muito inconveniente, recebia tão
friamente as visitas e contemplava com tanta aplicação a cornija de sua casa que
todos compreendiam como a embaraçavam. Quando se soube em Paris que se
incomodava a sra. de Beauséant indo vê-la entre duas e quatro horas, ela se viu
na solidão mais completa. Ia ao Bouffons ou ao Opéra em companhia do sr. de
Beauséant e do sr. d’Ajuda-Pinto; mas, como homem que sabe viver, o sr. de
Beauséant sempre deixava sua mulher e o português depois de instalá-los. O sr.
d’Ajuda devia se casar. Desposava uma srta. de Rochefide. Em toda a alta
sociedade uma só pessoa ainda ignorava esse casamento, essa pessoa era a sra.
de Beauséant. Algumas amigas suas tinham lhe falado vagamente; ela rira,
acreditando que as amigas queriam perturbar uma felicidade invejada. No
entanto, os proclamas iam correr. Embora ele tivesse ido lá para notificar o
casamento à viscondessa, o belo português ainda não ousara dizer uma mísera
palavra a respeito. Por quê? Nada, com certeza, é mais difícil do que notificar a
uma mulher um ultimatum desses. Certos homens se sentem mais à vontade, no
campo de batalha, na frente de um homem que lhes ameaça o coração com uma
espada do que na frente de uma mulher que, depois de ter declamado suas
elegias durante duas horas, faz-se de morta e pede os sais. Portanto, naquele
momento o sr. d’Ajuda-Pinto estava pisando em ovos e queria sair, pensando
que a sra. de Beauséant ficaria sabendo da notícia; ele lhe escreveria, seria mais
cômodo tratar desse galante assassinato por correspondência do que de viva voz.
Quando o criado da viscondessa anunciou o sr. Eugène de Rastignac, fez
estremecer de alegria o marquês d’Ajuda-Pinto. Saibam que uma mulher
apaixonada é ainda mais engenhosa em criar dúvidas do que hábil em variar o
prazer. Quando está prestes a ser deixada, adivinha mais depressa o sentido de
um gesto do que o corcel de Virgílio fareja os longínquos corpúsculos que lhe
anunciam o amor. Assim, tenham em conta que a sra. de Beauséant flagrou esse
estremecimento involuntário, leve, mas ingenuamente aterrador. Eugène
ignorava que nunca ninguém deve se apresentar em qualquer casa em Paris sem
que os amigos da casa lhe tenham contado a história do marido, da mulher ou
dos filhos, a fim de não cometer nenhuma dessas gafes a respeito das quais se
diz pitorescamente na Polônia: “Atrele cinco bois à sua carroça!”, sem dúvida
para tirá-lo do mau passo que vai fazê-lo se atolar. Se essas desgraças da
conversação ainda não têm nenhum nome na França, aqui certamente supõe-se
que elas são impossíveis, devido à enorme publicidade que as maledicências
alcançam. Depois de ter se atolado na casa da sra. de Restaud, que não lhe
deixara nem sequer o tempo de atrelar os cinco bois à sua carroça, só Eugène era
capaz de recomeçar seu ofício de boiadeiro, apresentando-se na casa da sra. de
Beauséant. Mas, se tinha horrivelmente atrapalhado a sra. de Restaud e o sr. de
Trailles, tirou de apuros o sr. d’Ajuda.
— Adeus — disse o português apressando-se em chegar à porta quando
Eugène entrou no salãozinho gracioso, cinza e rosa, em que o luxo parecia ser
apenas elegância.
— Mas até esta noite — disse a sra. de Beauséant virando a cabeça e dando
uma olhadela para o marquês. — Não vamos ao Bouffons?
— Não posso — ele disse pegando a maçaneta da porta.
A sra. de Beauséant se levantou, chamou-o para junto de si, sem prestar a
menor atenção em Eugène, que, em pé, atordoado com as cintilações de uma
riqueza maravilhosa, acreditava na realidade dos contos árabes, e não sabia onde
se meter ao ver-se em presença daquela mulher sem ser notado por ela. A
viscondessa levantara o indicador da mão direita e por um bonito gesto apontava
ao marquês um lugar na frente dela. Houve nesse gesto um tão violento
despotismo de paixão que o marquês largou a maçaneta da porta e se aproximou.
Eugène o olhou, não sem inveja.
“Aí está”, pensou, “o homem do cupê! Mas então é preciso ter cavalos
fogosos, librés e ouro a rodo para obter o olhar de uma mulher de Paris?” O
demônio do luxo o mordeu no coração, a febre do ganho o assaltou, a sede de
ouro secou-lhe a garganta. Ele tinha cento e trinta francos para o seu trimestre.
Seu pai, sua mãe, seus irmãos, suas irmãs, sua tia não gastavam, todos juntos,
duzentos francos por mês. Essa rápida comparação entre sua situação presente e
o objetivo a que era preciso chegar contribuiu para deixá-lo estupefato.
— Por que — disse a viscondessa rindo — não pode ir ao Italiens?
— Negócios! Janto com o embaixador da Inglaterra.
— Abandone-os.
Quando um homem engana, é invencivelmente obrigado a acumular desculpas
em cima de desculpas. O sr. d’Ajuda disse então, rindo:
— Você exige?
— Sim, sem dúvida.
— Era o que eu queria ouvir — respondeu lançando um desses olhares finos
que teriam tranquilizado qualquer outra mulher. Pegou a mão da viscondessa,
beijou-a e foi embora.
Eugène passou a mão nos cabelos e se contorceu para saudá-la, acreditando
que a sra. de Beauséant ia pensar nele; de repente ela se lança, precipita-se pela
galeria, acorre à janela e olha para o sr. d’Ajuda enquanto ele subia na
carruagem; presta atenção na ordem e ouve o empregado repetindo ao cocheiro:
“Para a casa do sr. de Rochefide”. Essas palavras foram o raio e o trovão para
aquela mulher, que retornou, às voltas com apreensões mortais. Na alta
sociedade, as mais terríveis catástrofes são apenas isso. A viscondessa entrou em
seu quarto, sentou-se à sua mesa, pegou um bonito papel.
Tendo em vista , escreveu, que janta com os Rochefide e não na embaixada
inglesa, deve-me uma explicação; espero-o.
Depois de arrumar umas letras desfiguradas pelo tremor convulso de sua mão,
pôs um C, que queria dizer Claire de Bourgogne, e tocou.
— Jacques — disse a seu criado de quarto, que veio logo —, você irá às sete e
meia à casa do sr. de Rochefide, perguntará pelo marquês d’Ajuda. Se o senhor
marquês estiver, lhe entregará este bilhete sem pedir resposta; se não estiver,
voltará e me devolverá a carta.
— A senhora condessa tem alguém que a espera em seu salão.
— Ah, é verdade! — ela disse empurrando a porta.
Eugène começava a se sentir incomodado, quando enfim viu a viscondessa,
que lhe disse num tom cuja emoção remexeu as fibras de seu coração:
— Desculpe, senhor, eu tinha um bilhete para escrever, agora sou toda sua.
Não sabia o que dizia, pois eis o que pensava: “Ah! ele quer se casar com a
srta. de Rochefide. Mas então é livre? Esta noite esse casamento será desfeito, ou
eu… Mas amanhã não se falará mais disso”.
— Minha prima… — respondeu Eugène.
— Hein? — disse a viscondessa dando-lhe um olhar cuja impertinência gelou
o estudante.
Eugène entendeu aquele hein. Fazia três horas que aprendia tantas coisas, que
se sentia pronto para o que desse e viesse.
— Senhora — recomeçou, enrubescendo. Hesitou, depois continuou: —
Desculpe; preciso de tanta proteção que um fiapo de parentesco não seria nada
mau.
A sra. de Beauséant sorriu, mas tristemente; já sentia a desgraça que ressoava
em seu ambiente.
— Se conhecesse a situação em que se encontra minha família — ele
prosseguiu —, iria gostar de fazer o papel de uma dessas fadas fabulosas que se
deliciavam em dissipar os obstáculos em torno de seus afilhados.
— Muito bem, meu primo — ela disse rindo —, em que lhe posso ser útil?
— Mas, e eu sei? Ligar-se à senhora por um laço de parentesco que se perde na
sombra já é toda uma fortuna. A senhora me perturbou, já não sei o que vinha
lhe dizer. É a única pessoa que conheço em Paris. Ah! Gostaria de consultá-la
pedindo que me aceite como um pobre menino que deseja grudar-se em sua saia,
e que seria capaz de morrer por si.
— Mataria alguém por mim?
— Mataria dois — disse Eugène.
— Menino! Sim, você é um menino — ela disse reprimindo umas lágrimas —,
amaria com sinceridade!
— Oh! — ele disse balançando a cabeça.
A viscondessa se interessou profundamente pelo estudante devido a essa
resposta ambiciosa. O meridional estava em seu primeiro cálculo. Entre o budoar
azul da sra. de Restaud e o salão rosa da sra. de Beauséant, fizera três anos desse
direito parisiense do qual não se fala, embora constitua uma alta jurisprudência
social que, bem aprendida e bem praticada, leva a tudo.
— Ah! lembrei-me — disse Eugène. — Eu tinha reparado na sra. de Restaud
durante o seu baile, fui à casa dela hoje de manhã.
— Deve tê-la incomodado bastante — disse sorrindo a sra. de Beauséant.
— É! Sim, sou um ignorante que porá contra si próprio o mundo inteiro, se a
senhora me recusar seu auxílio. Creio que é muito difícil encontrar em Paris uma
mulher jovem, bela, rica, elegante, que esteja livre, e preciso de uma que me
ensine o que vocês mulheres sabem tão bem explicar: a vida. Encontrarei em
toda parte um sr. de Trailles. Portanto, vinha vê-la para lhe pedir a chave de um
enigma e solicitar que me dissesse de que natureza foi a bobagem que cometi por
lá. Falei de um pai…
— A sra. duquesa de Langeais — disse Jacques, cortando a palavra do
estudante, que fez o gesto de um homem violentamente contrariado.
— Se quiser ter êxito — disse a viscondessa em voz baixa —, primeiro não
seja tão demonstrativo.
— Ah! Bom dia, minha cara — ela continuou levantando-se e indo ao encontro
da duquesa, cujas mãos apertou com a efusão carinhosa que poderia mostrar por
uma irmã e à qual a duquesa respondeu com os mais lindos afagos.
“Aí estão duas boas amigas”, pensou Rastignac. “Terei, a partir de então, duas
protetoras; essas duas mulheres devem ter as mesmas afeições, e esta com
certeza se interessará por mim.”
— A que feliz pensamento devo a felicidade de vê-la, minha querida
Antoinette? — perguntou a sra. de Beauséant.
— Mas vi o sr. d’Ajuda-Pinto entrando na casa do sr. de Rochefide e então
pensei que você estaria sozinha.
A sra. de Beauséant não apertou os lábios, não corou, seu olhar permaneceu o
mesmo, sua fronte pareceu se iluminar enquanto a duquesa proferia essas
palavras fatais.
— Se soubesse que estaria ocupada… — acrescentou a duquesa virando-se
para Eugène.
— O cavalheiro é o sr. Eugène de Rastignac, um de meus primos — disse a
viscondessa. — Tem notícias do general Montriveau? — prosseguiu. — Sérizy
me disse ontem que não o viam mais, ele esteve hoje em sua casa?
A duquesa, que diziam ter sido abandonada pelo sr. de Montriveau, por quem
estava perdidamente apaixonada, sentiu no coração a estocada dessa pergunta e
corou ao responder:
— Ele estava ontem no Elysée.
— De serviço — disse a sra. de Beauséant.
— Clara, com certeza você sabe — retomou a duquesa jogando torrentes de
malignidade em seu olhar — que amanhã os proclamas do sr. d’Ajuda-Pinto e da
srta. de Rochefide vão ser publicados?
Esse golpe era violento demais, a viscondessa empalideceu e respondeu rindo:
— Um desses rumores com que os bobos se divertem. Por que o sr. d’Ajuda
levaria para os Rochefide um dos mais belos nomes de Portugal? Os Rochefide
são gente enobrecida ontem.
— Mas Berthe reunirá, dizem, duzentas mil libras de renda.
— O sr. d’Ajuda é muito rico para fazer esses cálculos.
— Mas, minha cara, a srta. de Rochefide é um encanto.
— Ah!
— Em suma, ele janta lá hoje, as condições estão estabelecidas. Muito me
espanta você estar tão estranhamente pouco informada.
— Que tolice, afinal, o senhor fez? — perguntou a sra. de Beauséant. — Esta
pobre criança foi jogada tão recentemente na sociedade, que não entende nada,
minha cara Antoinette, do que dizemos. Seja boa com ele, voltemos a falar disso
amanhã. Amanhã, veja você, tudo provavelmente será oficial, e com toda certeza
você poderá ser oficiosa.
A duquesa desviou para Eugène um desses olhares impertinentes que
envolvem um homem dos pés à cabeça, o achatam e o reduzem a zero.
— Senhora, sem saber enfiei um punhal no coração da sra. de Restaud. Sem
saber, eis meu erro — disse o estudante, a quem seu espírito servira bastante
bem, e que descobrira os mordazes epigramas ocultos nas frases afetuosas
daquelas duas mulheres. — Continuamos a ver, e tememos talvez as pessoas que
conhecem o segredo do mal que nos fazem, ao passo que quem fere ignorando a
profundidade de sua ferida é olhado como um tolo, um canhestro que não sabe
tirar proveito de nada, e todos o desprezam.
A sra. de Beauséant deu para o estudante um desses olhares suaves em que as
almas grandiosas sabem pôr a um só tempo gratidão e dignidade. Esse olhar foi
como um bálsamo que acalmou a chaga que acabava de abrir no coração do
estudante a olhadela de leiloeiro público com que a duquesa o avaliara.
— Imagine que eu acabava — prosseguiu Eugène — de granjear a
benevolência do conde de Restaud; pois — disse, virando-se para a duquesa com
cara ao mesmo tempo humilde e maliciosa — é preciso lhe dizer, senhora, que
ainda não passo de um pobre-diabo de estudante, bem sozinho, bem pobre…
— Não diga isso, sr. de Rastignac. Nós, mulheres, jamais queremos o que
ninguém quer.
— Ora! — disse Eugène —, tenho apenas vinte e dois anos, é preciso saber
suportar as desgraças de sua idade. Aliás, estou me confessando; e é impossível
se pôr de joelhos num confessionário mais bonito: cometemos aqui pecados de
que nos acusamos no outro.
A duquesa assumiu uma expressão fria diante desse discurso antirreligioso,
cujo mau gosto ela proscreveu dizendo à viscondessa:
— Esse senhor está chegando…
A sra. de Beauséant começou a rir abertamente de seu primo e da duquesa.
— Ele está chegando, minha cara, e procura uma professora que lhe ensine o
bom gosto.
— Senhora duquesa — prosseguiu Eugène —, não é natural iniciar-se nos
segredos do que nos encanta? (“Vejamos”, pensou consigo mesmo, “tenho
certeza de que estou lhes dizendo frases de cabeleireiro.”)
— Mas a sra. de Restaud é, creio, aluna do sr. de Trailles — disse a duquesa.
— Eu não sabia de nada, senhora — continuou o estudante. — Assim, joguei-
me estouvadamente entre eles. Em suma, tinha me entendido bastante bem com
o marido, via-me tolerado durante algum tempo pela mulher, quando resolvi lhes
dizer que conhecia um homem que eu acabara de ver saindo por uma escada
oculta e que, no fundo de um corredor, beijara a condessa.
— Quem é? — disseram as duas mulheres.
— Um velho que vive à razão de dois luíses por mês, no fundo do Faubourg
Saint-Marceau, como eu, pobre estudante; um verdadeiro infeliz de quem todo
mundo caçoa, e que nós chamamos de pai Goriot.
— Mas como o senhor é uma criança — exclamou a viscondessa —, a sra. de
Restaud é uma srta. Goriot.
— A filha de um macarroneiro — prosseguiu a duquesa —, uma mulherzinha
que foi apresentada à corte no mesmo dia que a filha de um confeiteiro. Você
não se lembra, Clara? O rei começou a rir, e disse em latim uma pilhéria sobre a
farinha. Pessoas, mas como é mesmo? Pessoas…
— Ejusdem farinae 24 — disse Eugène.
— É isso — disse a duquesa.
— Ah! É o pai dela — retrucou o estudante, fazendo um gesto de horror.
— Isso mesmo; esse homem tem duas filhas por quem é quase louco, embora
uma e outra o tenham praticamente renegado.
— A segunda não é — disse a viscondessa olhando para a sra. de Langeais —
casada com um banqueiro cujo nome é alemão, um barão de Nucingen? Não se
chama Delphine? Não é uma loura que tem um camarote lateral no Opéra, que
também vai ao Bouffons e ri muito alto para se fazer notar?
A duquesa sorriu, dizendo:
— Mas minha cara, eu a admiro. Afinal, por que se ocupa tanto dessa gente?
Era preciso estar loucamente apaixonado, como estava Restaud, para ter se
enfarinhado com a srta. Anastasie. Ah! Vai acabar lhe acontecendo alguma
desgraça! Ela está nas mãos do sr. de Trailles, que a levará à perdição.
— Elas renegaram o pai — repetia Eugène.
— Pois é, sim, o pai delas, o pai, um pai — prosseguiu a viscondessa —, um
bom pai que deu, pelo que dizem, a cada uma quinhentos ou seiscentos mil
francos para fazer a felicidade delas, casando-as bem, e que só reservou para si
mesmo oito a dez mil libras de renda, acreditando que as filhas continuariam a
ser suas filhas, que ele criara na casa delas duas existências, duas casas nas quais
seria adorado, mimado. Em dois anos, seus genros o baniram de seu convívio
como o último dos miseráveis…
Algumas lágrimas rolaram dos olhos de Eugène, recentemente renovado pelas
puras e santas emoções da família, ainda sob o encanto das crenças jovens, e que
estava apenas em seu primeiro dia no campo de batalha da civilização parisiense.
As emoções verdadeiras são tão comunicativas, que por um instante aquelas três
pessoas se olharam em silêncio.
— Ai, meu Deus! — disse a sra. de Langeais —, sim, isso parece bem terrível,
e no entanto é o que vemos todos os dias. Não haveria uma causa para isso?
Diga, minha querida, algum dia já pensou no que é um genro? Um genro é um
homem para quem nós criaremos, você ou eu, uma querida criaturinha à qual
estaremos ligadas por mil laços, que será durante dezessete anos a alegria da
família, que é a sua alma branca, diria Lamartine, e que se tornará a sua peste.
Quando esse homem a tiver agarrado de nós, começará por empunhar seu amor
como um machado, a fim de cortar no coração e no mais íntimo desse anjo todos
os sentimentos pelos quais ela se ligava à família. Ontem, nossa filha era tudo
para nós, éramos tudo para ela; no dia seguinte, torna-se nossa inimiga. Não
vemos essa tragédia se consumando todos os dias? Aqui, a nora demonstra a pior
impertinência com o sogro, que tudo sacrificou por seu filho. Mais adiante, um
genro bota a sogra para fora de casa. Ouço perguntarem o que hoje há de
dramático na sociedade; mas o drama do genro é assustador, sem contar nossos
casamentos, que se tornaram coisas muitíssimo idiotas. Dou-me perfeitamente
conta do que aconteceu com esse velho macarroneiro. Creio me lembrar de que
esse Foriot…
— Goriot, senhora.
— Sim, esse Moriot foi presidente de sua seção 25 durante a revolução;
inteirou-se do segredo da famosa epidemia de fome e começou sua fortuna
vendendo, naquele tempo, farinha por dez vezes o que lhe custava. Ganhou tanto
quanto quis. O intendente de minha avó lhe vendeu quantidades imensas. Esse
Goriot provavelmente dividia tudo, como todas aquelas pessoas, com o Comitê
de Salvação Pública. Lembro-me de que o intendente dizia à minha avó que ela
podia ficar em absoluta segurança em Grandvilliers, porque seus grãos eram uma
excelente carta cívica. Pois bem, esse Loriot, que vendia trigo aos cortadores de
cabeças, teve uma única paixão. Adora, pelo que dizem, as filhas. Pendurou a
mais velha na casa de Restaud, enxertou a outra no barão de Nucingen, um rico
banqueiro que finge ser adepto do rei. Vocês compreendem que, na época do
Império, os dois genros não se escandalizaram muito por ter esse velho Noventa-
e-três 26 na casa deles; com Bonaparte ainda era tolerável. Mas, quando os
Bourbon retornaram, o homem incomodou o sr. de Restaud, e mais ainda o
banqueiro. As filhas, que talvez continuassem a gostar do pai, quiseram jogar
com um pau de dois bicos, o pai e o marido; recebiam o Goriot quando não
tinham ninguém; imaginavam pretextos para a ternura. “Papai, venha, estaremos
melhores, porque estaremos a sós!” etc. Eu, minha cara, creio que os sentimentos
verdadeiros têm olhos e uma inteligência: o coração desse pobre Noventa-e-três,
portanto, sangrou. Viu que as filhas se envergonhavam dele; que, se amavam os
maridos, ele prejudicava os genros. Portanto, era preciso se sacrificar.
Sacrificou-se, porque era pai: baniu-se por conta própria. Ao ver as filhas
contentes, compreendeu que tinha feito bem. Pai e filhas foram cúmplices desse
pequeno crime. Vemos isso por toda parte. Esse pai Goriot não teria sido uma
mancha de gordura no salão das filhas? Ali teria ficado constrangido, teria se
entediado. O que acontece com esse pai pode acontecer com a mais linda mulher
em relação ao homem que ela mais amar: se o aborrece com seu amor, ele se vai,
faz covardias para fugir dela. Todos os sentimentos estão aí. Nosso coração é um
tesouro, esvaziem-no de uma só vez e estarão arruinados. Não perdoamos um
sentimento que se mostrou por inteiro, assim como não perdoamos a um homem
por não ter um vintém. Esse pai dera tudo. Dera, por vinte anos, suas entranhas,
seu amor; dera sua fortuna em um dia. Uma vez o limão bem espremido, suas
filhas deixaram a casca no canto das ruas.
— O mundo é infame — disse a viscondessa desfiando seu xale sem erguer os
olhos, pois estava atingida no seu íntimo pelas palavras que a sra. de Langeais
lhe dissera ao contar essa história.
— Infame! Não — continuou a duquesa —, segue seu caminho, só isso. Se
lhes falo assim é para mostrar que não me deixo ludibriar pelo mundo. Penso
como você — disse apertando a mão da viscondessa. — O mundo é um lamaçal,
tentemos nos manter nas alturas.
Levantou-se, beijou a sra. de Beauséant na testa dizendo-lhe:
— Você está muito bonita agora, minha cara. Tem as cores mais bonitas que já
vi.
Em seguida, saiu, depois de ter inclinado ligeiramente a cabeça ao olhar para o
primo.
— O pai Goriot é sublime! — disse Eugène lembrando-se de tê-lo visto
entortando seu vermeil de noite.
A sra. de Beauséant não ouviu, estava pensativa. Passaram-se uns momentos
de silêncio, e o pobre estudante, por uma espécie de estupor envergonhado, não
ousava ir embora, nem ficar, nem falar.
— O mundo é infame e mau — disse enfim a viscondessa. — Logo que uma
desgraça nos acontece, sempre encontramos um amigo disposto a vir nos contá-
la e a nos dissecar o coração com um punhal fazendo-nos admirar o cabo. Logo
o sarcasmo, logo as zombarias! Ah! Hei de me defender. — Levantou a cabeça
como a grande dama que era, e fagulhas saíram de seus olhos orgulhosos. — Ah!
— disse, vendo Eugène —, o senhor está aí!
— Ainda — ele disse, num estado lastimável.
— Pois bem, sr. de Rastignac, trate este mundo como ele merece sê-lo. Quer
triunfar, vou ajudá-lo. Sondará como é profunda a corrupção feminina, avaliará a
amplidão da miserável vaidade dos homens. Embora eu tenha lido muito bem
esse livro do mundo, havia páginas que me eram, porém, desconhecidas. Agora
sei tudo. Quanto mais friamente calcular, mais longe irá. Bata sem piedade, e
será temido. Só aceite os homens e as mulheres como cavalos de aluguel que
deixará morrer em cada estalagem, assim chegará ao topo de seus desejos. Sabe,
aqui não será nada se não tiver uma mulher que se interesse pelo senhor. Ela
precisa ser jovem, rica, elegante. Mas, se tiver um sentimento verdadeiro,
esconda-o como um tesouro; jamais deixe que desconfiem dele, pois estaria
perdido. Não seria mais o carrasco, iria se tornar a vítima. Se algum dia amar,
guarde bem seu segredo! Não o revele antes de ter sabido muito bem a quem
abrirá o coração. Para reservar de antemão esse amor que ainda não existe,
aprenda a desconfiar deste mundo. Escute-me bem, Miguel… (Ela se enganava
ingenuamente de nome, sem se dar conta.) Existe alguma coisa de mais
assustador que o abandono do pai por suas duas filhas, que gostariam de vê-lo
morto? É a rivalidade de duas irmãs entre si. Restaud tem berço, a mulher dele
foi adotada, foi apresentada; mas a irmã não é mais sua irmã; essas duas
mulheres se renegam entre si como renegam o pai. Assim, a sra. de Nucingen
lamberia toda a lama que há entre a Rue Saint-Lazare e a Rue de Grenelle para
entrar em meu salão. Acreditou que De Marsay a faria alcançar seu objetivo, e
fez-se escrava de De Marsay, ela importuna De Marsay. De Marsay liga muito
pouco para ela. Se o senhor apresentá-la a mim, será seu Benjamim, ela o
adorará. Ame-a, se puder, depois, senão sirva-se dela. Eu a verei uma ou duas
vezes, em bailes de gala, quando houver muita gente; mas jamais a receberei
pela manhã. Eu a cumprimentarei, isso será suficiente. O senhor fechou-se a
porta da condessa por ter pronunciado o nome do pai Goriot. Sim, meu caro, se
for vinte vezes à casa da sra. de Restaud, vinte vezes a encontrará ausente. Foi
barrado. Pois bem, que o pai Goriot o introduza junto da sra. Delphine de
Nucingen. A bela sra. de Nucingen será para si um reclame. Seja o homem que
ela singulariza, as mulheres ficarão loucas pelo senhor. As rivais, as amigas, as
melhores amigas quererão arrancá-lo dela. Há mulheres que amam o homem já
escolhido por outra, assim como há pobres burguesas que, pegando nosso
chapéu, esperam ter nossas maneiras. O senhor acumulará sucessos. Em Paris, o
sucesso é tudo, é a chave do poder. Se as mulheres o acham com espírito,
talento, os homens acreditarão, se não decepcioná-los. Então, poderá querer
tudo, poderá pisar em toda parte. Então, saberá o que é a sociedade, uma reunião
de palermas e vigaristas. Não se ponha entre uns nem entre outros. Dou-lhe meu
sobrenome como um fio de Ariadne para entrar nesse labirinto. Não o
comprometa — ela disse curvando o pescoço e dando um olhar de rainha para o
estudante —, devolva-o limpo. Vá, deixe-me. Nós, mulheres, também temos
nossas batalhas a travar.
— Se precisasse de um homem de boa vontade para pôr fogo numa mina… —
disse Eugène interrompendo-a.
— E então? — ela disse.
Ele bateu no coração, sorriu para o sorriso da prima e saiu. Eram cinco horas.
Eugène estava com fome, temia não chegar a tempo para a hora do jantar. Esse
temor o fez sentir a felicidade de ser rapidamente arrastado por Paris. Esse
prazer puramente mecânico o deixou todo entregue aos pensamentos que o
assaltavam. Quando um rapaz de sua idade é atingido pelo desprezo, exalta-se,
enfurece, ameaça com os punhos a sociedade inteira, quer se vingar e também
duvida de si mesmo. Rastignac estava naquele momento arrasado por estas
palavras: “O senhor fechou-se a porta da condessa”. “Irei lá!”, pensou, “e se a
sra. de Beauséant estiver certa, se eu for barrado… eu… a sra. de Restaud me
encontrará em todos os salões aonde for. Aprenderei a manejar as armas, a atirar
com pistola, matarei o seu Maxime! — E o dinheiro?”, gritava-lhe a sua
consciência, “onde afinal o conseguirá?” De repente a riqueza exibida na casa da
condessa de Restaud brilhou diante de seus olhos. Ali vira o luxo pelo qual uma
srta. Goriot devia ser apaixonada, dourados, objetos de valor em evidência, o
luxo nada inteligente do arrivista, o desperdício da mulher sustentada. Essa
imagem fascinante foi repentinamente esmagada pelo grandioso palacete de
Beauséant. Sua imaginação, transportada para as elevadas regiões da sociedade
parisiense, lhe inspirou mil pensamentos maus no coração, ampliando-lhe a
mente e a consciência. Viu o mundo tal como ele é: as leis e a moral impotentes
para os ricos, e viu na fortuna a ultima ratio mundi . 27 “Vautrin tem razão, a
fortuna é a virtude!”, pensou consigo mesmo.
Chegando à Rue Neuve-Sainte-Geneviève, subiu depressa a seu quarto, desceu
para dar dez francos ao cocheiro e foi para a sala de jantar nauseabunda, onde
viu, como animais numa manjedoura, os dezoito hóspedes se saciando. O
espetáculo daquelas misérias e o aspecto da sala lhe foram horríveis. A transição
era demasiado brusca, o contraste, demasiado completo, para não desenvolver
exageradamente nele a sensação da ambição. De um lado, as frescas e
encantadoras imagens da natureza social mais elegante, figuras jovens, vivas,
emolduradas pelas maravilhas da arte e do luxo, cabeças apaixonadas cheias de
poesia; de outro, sinistros quadros rodeados de lama, e faces nas quais as paixões
deixaram apenas suas cordas e seus mecanismos. Os ensinamentos que a cólera
de uma mulher abandonada arrancara da sra. de Beauséant, suas ofertas
capciosas voltaram-lhe à memória, e a miséria os comentou. Rastignac resolveu
abrir duas trincheiras paralelas para chegar à fortuna, apoiar-se na ciência e no
amor, ser um sábio doutor e um homem na moda. Ainda era muito criança!
Essas duas linhas são tão assimptotas que jamais conseguem se juntar.
— Está bem sombrio, senhor marquês — disse-lhe Vautrin, que lhe lançou um
desses olhares pelos quais esse homem parecia se iniciar nos segredos mais
ocultos do coração.
— Não estou mais disposto a tolerar as brincadeiras dos que me chamam de
senhor marquês — ele respondeu. — Aqui, para ser verdadeiramente marquês, é
preciso ter cem mil libras de renda, e quando se vive na Casa Vauquer não se é
propriamente o favorito da Fortuna.
Vautrin olhou para Rastignac com ar paternal e de desprezo, como se tivesse
dito: “Pirralho!, dou cabo de você com uma dentada!”. Depois respondeu:
— Está de mau humor, porque talvez não tenha tido sucesso com a bela
condessa de Restaud.
— Ela me fechou a porta por ter lhe dito que seu pai comia na nossa mesa —
exclamou Rastignac.
Todos os convivas se entreolharam. O pai Goriot baixou os olhos e se virou
para enxugá-los.
— O senhor me jogou fumaça no olho — ele disse ao vizinho.
— A partir de agora quem humilhar o pai Goriot terá de me enfrentar —
respondeu Eugène olhando para o vizinho do ex-macarroneiro —, ele vale mais
que nós todos. Não falo das senhoras — disse virando-se para a srta. Taillefer.
Essa frase foi um desenlace, Eugène a proferira com uma expressão que impõe
silêncio aos convivas. Só Vautrin lhe disse, escarnecendo:
— Para se responsabilizar pelo pai Goriot e se estabelecer como editor
responsável por ele, é preciso saber manejar bem uma espada e atirar bem com a
pistola.
— Assim farei — disse Eugène.
— Então entrou hoje em campanha militar?
— Talvez — respondeu Rastignac. — Mas não devo satisfação de meus
negócios a ninguém, considerando que não procuro adivinhar o que os outros
fazem durante a noite.
Vautrin olhou atravessado para Rastignac.
— Garoto, quem não quer ser tapeado pelas marionetes tem de entrar para
valer na barraca, e não se contentar em olhar pelos buracos dos bastidores.
Chega de conversa — acrescentou vendo Eugène prestes a se descontrolar. —
Teremos nós dois uma conversinha quando quiser.
O jantar ficou sombrio e frio. O pai Goriot, absorto pela profunda dor que a
frase do estudante lhe causara, não entendeu que as disposições dos espíritos
estavam mudadas a seu respeito, e que um rapaz em condições de impor silêncio
à perseguição tomara sua defesa.
— Então o sr. Goriot — disse a sra. Vauquer baixinho — seria a essa altura o
pai de uma condessa?
— E de uma baronesa — retrucou-lhe Rastignac.
— Ele não tem mais o que fazer — disse Bianchon a Rastignac —, examinei a
cabeça dele: só tem uma protuberância, a da paternidade, será um Pai Eterno .
Eugène estava muito sério para achar graça na brincadeira de Bianchon. Queria
aproveitar os conselhos da sra. de Beauséant, e perguntava-se onde e como
conseguiria dinheiro. Ficou preocupado ao ver as savanas do mundo que se
estendiam diante de seus olhos, a um só tempo vazias e cheias; todos o deixaram
sozinho na sala quando o jantar terminou.
— Então viu minha filha? — perguntou-lhe Goriot num tom emocionado.
Despertado de sua meditação pelo homenzinho, Eugène pegou sua mão e,
contemplando-o com uma espécie de ternura, respondeu:
— O senhor é um homem bravo e digno. Conversaremos mais tarde sobre suas
filhas.
Levantou-se sem querer ouvir o pai Goriot, retirou-se para seu quarto, onde
escreveu à mãe a seguinte carta:
Minha querida mãe, veja se não tem um terceiro seio a me oferecer. Estou em
situação de fazer fortuna prontamente. Preciso de mil e duzentos francos, e
necessito-os custe o que custar. Não diga nada de meu pedido a meu pai,
talvez ele se opusesse, e se eu não tivesse esse dinheiro ficaria às voltas com
um desespero que me levaria a dar um tiro na cabeça. Vou lhe explicar meus
motivos assim que a vir, pois seria preciso lhe escrever volumes para fazê-la
entender a situação em que estou. Não joguei, minha boa mãe, não devo
nada; mas, se deseja conservar a vida que me deu, preciso encontrar essa
quantia. Enfim, vou à casa da viscondessa de Beauséant, que me tomou sob
sua proteção. Devo frequentar a sociedade, e não tenho um vintém para ter
luvas limpas. Saberei comer apenas pão, beber apenas água, se necessário
jejuarei; mas não posso dispensar ferramentas com as quais se prepara o
vinhedo aqui nesta terra. Trata-se para mim de abrir meu caminho ou
permanecer na lama. Sei todas as esperanças que depositaram em mim, e
quero realizá-las rapidamente. Minha boa mãe, venda algumas de suas
antigas joias, breve as substituirei. Conheço bastante a situação de nossa
família para saber apreciar esses sacrifícios, e você deve acreditar que não
lhe peço para fazê-los em vão, do contrário eu seria um monstro. Não veja
em meu pedido senão o grito de uma imperiosa necessidade. Nosso futuro
está inteiro nesse subsídio, com o qual devo iniciar a batalha; pois essa vida
de Paris é um combate perpétuo. Se, para completar a quantia, não houver
outros recursos senão vender as rendas de minha tia, diga-lhe que lhe
enviarei mais bonitas. Etc.
Escreveu a cada uma das irmãs pedindo-lhes suas economias, e, para arrancá-las
sem que falassem em família do sacrifício que não deixariam de fazer com
alegria, conquistou a delicadeza delas atacando as cordas da honra, que são tão
bem esticadas e ressoam tão forte nos jovens corações. Quando escreveu essas
cartas, sentiu porém uma trepidação involuntária: ele palpitava, estremecia. Esse
jovem ambicioso conhecia a nobreza imaculada dessas almas ocultas na solidão,
sabia das tristezas que causaria às duas irmãs, e também quais seriam suas
alegrias; com que prazer elas se entreteriam em segredo, no fundo do vinhedo,
sobre aquele irmão bem-amado. Sua consciência ergueu-se luminosa e mostrou-
lhe as duas avaliando em sigilo seu pequeno tesouro; viu-as, exibindo o gênio
malicioso das moças para lhe enviar às escondidas aquele dinheiro, ensaiando
uma primeira mentira para serem sublimes. “O coração de uma irmã é um
diamante de pureza, um abismo de ternura!”, pensou. Envergonhava-se de ter
escrito. Como seriam poderosos seus votos, como seria puro o ímpeto de suas
almas em direção ao céu! Com que volúpias não se sacrificariam? Por qual dor
seria atingida sua mãe, se não pudesse enviar toda a quantia! Esses belos
sentimentos, esses tenebrosos sacrifícios iam lhe servir de escada para chegar a
Delphine de Nucingen. Algumas lágrimas, últimos grãos de incenso jogados no
altar sagrado da família, lhe saíram dos olhos. Andou para lá e para cá, numa
agitação cheia de desespero. O pai Goriot, vendo-o assim por sua porta que
ficara entreaberta, entrou e lhe disse:
— O que há, senhor?
— Ah! meu bom vizinho, ainda sou filho e irmão, como o senhor é pai. Tem
razão de tremer pela condessa Anastasie, ela está com um sr. Maxime de
Trailles, que a perderá.
O pai Goriot se retirou balbuciando umas palavras cujo sentido Eugène não
captou. No dia seguinte, Rastignac foi levar suas cartas ao correio. Hesitou até o
último momento, mas as lançou na caixa pensando: “Vencerei!”. A palavra do
jogador, do grande capitão, palavra fatalista que perde mais homens do que
salva. Dias depois, Eugène foi à casa da sra. de Restaud e não foi recebido. Três
vezes retornou, mais três vezes encontrou a porta fechada, embora se
apresentasse em horas em que o conde Maxime de Trailles não estivesse. A
viscondessa estava certa. O estudante não estudou mais. Ia às aulas para
responder à chamada, e, quando comprovava sua presença, dava no pé. Fizera o
raciocínio que faz a maioria dos estudantes. Reservava seus estudos para quando
se tratasse de fazer os exames; resolvera acumular as matrículas de segundo e
terceiro ano, depois de aprender o direito seriamente e de uma só vez no último
momento. Assim, tinha quinze meses de folga para navegar pelo oceano de
Paris, para aí se entregar ao tráfico de mulheres ou pescar a fortuna. Durante
aquela semana, viu duas vezes a sra. de Beauséant, a cuja casa só ia quando de lá
saía a carruagem do marquês d’Ajuda. Por mais alguns dias essa ilustre mulher,
a mais poética figura do Faubourg Saint-Germain, continuou a ser vitoriosa e
conseguiu suspender o casamento da srta. de Rochefide com o marquês d’Ajuda-
Pinto. Mas esses últimos dias, que o medo de perder a felicidade transformou
nos mais ardentes de todos, iriam precipitar a catástrofe. O marquês d’Ajuda, de
comum acordo com os Rochefide, encarara essa desavença e essa reconciliação
como uma feliz circunstância: esperavam que a sra. de Beauséant se acostumasse
com a ideia daquele casamento e acabasse sacrificando suas manhãs a um futuro
previsto na vida dos homens. Apesar das mais sagradas promessas renovadas
todo dia, o sr. d’Ajuda representava, pois, o papel, e a viscondessa gostava de ser
enganada. “Em vez de pular nobremente pela janela, ela se deixava rolar pelas
escadas”, dizia a duquesa de Langeais, sua melhor amiga. No entanto, esses
últimos clarões brilharam bastante tempo para que a viscondessa permanecesse
em Paris e servisse a seu jovem parente, por quem tinha uma espécie de afeição
supersticiosa. Eugène mostrara-se com ela cheio de dedicação e sensibilidade
numa circunstância em que as mulheres não veem piedade nem consolo
verdadeiro em nenhum olhar. Se então um homem lhes diz palavras doces, ele
lhes diz por especulação.
No desejo de conhecer perfeitamente bem seu tabuleiro antes de tentar o
assalto à casa de Nucingen, Rastignac quis se informar sobre a vida pregressa do
pai Goriot e recolheu informações seguras, que podem se resumir ao que se
segue.
Jean-Joachim Goriot era, antes da Revolução, um simples operário
macarroneiro, hábil, econômico e bastante empreendedor para ter comprado o
negócio de seu patrão, que o acaso tornou vítima do primeiro levante de 1789.
Estabelecera-se na Rue de la Jussienne, perto da Halle-aux-blés, e tivera o
grande bom senso de aceitar a presidência de sua seção, a fim de fazer seu
comércio ser protegido pelas pessoas mais influentes dessa época perigosa. Essa
sabedoria fora a origem de sua fortuna, que começou durante a epidemia de
fome, falsa ou verdadeira, em seguida à qual os grãos alcançaram um altíssimo
preço em Paris. O povo se matava à porta dos padeiros, ao passo que certas
pessoas iam buscar sem tumulto massas da Itália nos armazéns. Durante aquele
ano, 28 o cidadão Goriot amealhou os capitais que mais tarde lhe serviram para
fazer seu comércio com toda a superioridade dada por um grande volume de
dinheiro a quem o possui. Aconteceu-lhe o que acontece com todos os homens
que têm uma capacidade apenas relativa. Sua mediocridade o salvou. Aliás, sua
fortuna só sendo conhecida quando já não havia perigo em ser rico, ele não
excitou a inveja de ninguém. O comércio dos grãos parecia ter absorvido toda a
sua inteligência. Que se tratasse de trigo, farinhas, limpadura, de reconhecer suas
qualidades, proveniências, de cuidar de sua conservação, prever as cotações,
profetizar a abundância ou a penúria das colheitas, conseguir os cereais baratos,
se abastecer na Sicília, na Ucrânia, não havia outro igual a Goriot. Ao vê-lo
conduzir seus negócios, explicar as leis sobre a exportação, sobre a importação
de grãos, estudar seu espírito, perceber seus defeitos, um homem o teria julgado
capaz de ser ministro de Estado. Paciente, ativo, enérgico, constante, rápido em
suas expedições, tinha um olho de águia, antecipava tudo, previa tudo, sabia
tudo, escondia tudo; diplomata para conceber, soldado para marchar. Saindo de
sua especialidade, de sua simples e obscura loja em cuja soleira ficava durante
suas horas de ociosidade, o ombro encostado no batente da porta, voltava a ser o
operário estúpido e grosseiro, o homem incapaz de compreender um raciocínio,
insensível a todos os prazeres do espírito, o homem que adormecia no
espetáculo, um desses Dolibans 29 parisienses, competentes apenas em bobagens.
Quase todas essas naturezas se parecem. Em quase todas vocês encontrariam um
sentimento sublime no coração. Dois sentimentos exclusivos tinham enchido o
coração do macarroneiro, absorvido todo o seu fluido, assim como o comércio
dos grãos empregava toda a inteligência de seu cérebro. Sua mulher, filha única
de um rico fazendeiro da Brie, foi para ele objeto de admiração religiosa, de um
amor sem limites. Goriot admirara nela uma natureza frágil e forte, sensível e
bonita, que contrastava vigorosamente com a sua. Se há um sentimento inato no
coração do homem, não é o orgulho da proteção exercida a todo instante em
favor de um ser fraco? Juntem a isso o amor, esse reconhecimento vivo de todas
as almas francas pelo princípio de seus prazeres, e terão compreendido uma
profusão de esquisitices morais. Depois de sete anos de felicidade sem nuvens,
Goriot, infelizmente para ele, perdeu a mulher: ela começava a exercer
influência sobre ele, fora da esfera dos sentimentos. Talvez ela tivesse cultivado
aquela natureza inerte, talvez tivesse jogado nela a percepção das coisas do
mundo e da vida. Nessa situação, o sentimento da paternidade se desenvolveu
em Goriot até as raias do desatino. Transferiu seus afetos traídos pela morte para
as duas filhas, que, primeiro, satisfizeram plenamente todos os seus sentimentos.
Por mais brilhantes que tivessem sido as propostas que lhe foram feitas por
negociantes ou fazendeiros zelosos de lhe darem suas filhas, quis permanecer
viúvo. Seu sogro, o único homem por quem tivera simpatia, pretendia saber
perfeitamente que Goriot jurara não cometer infidelidade à mulher, mesmo
morta. As pessoas da Halle, incapazes de entender aquela sublime loucura,
fizeram pilhéria e deram a Goriot um apelido grotesco. O primeiro deles que,
bebendo vinho no mercado, resolveu pronunciá-lo recebeu do macarroneiro um
soco no ombro que o despachou, a cabeça em primeiro lugar, para um
paralelepípedo da Rue Oblin. A dedicação impulsiva, o amor suscetível e
delicado que Goriot tinha pelas filhas eram tão conhecidos que, certo dia, um de
seus concorrentes, querendo que ele saísse do mercado para ficar dono do
negócio, disse-lhe que Delphine acabara de ser atropelada por um cabriolé. O
macarroneiro, pálido e assustado, logo saiu da Halle. Ficou doente vários dias,
por causa da reação dos sentimentos contrários em que lhe deixou esse alarme
falso. Se não tascou seu tapa mortal no ombro daquele homem, o expulsou da
Halle obrigando-o, numa circunstância crítica, a ir à falência. A educação das
duas filhas foi, naturalmente, irracional. Rico, com mais de sessenta mil libras de
renda, e só gastando mil e duzentos francos consigo, a felicidade de Goriot era
satisfazer as fantasias das filhas: os professores mais excepcionais foram
encarregados de dotá-las dos talentos que assinalavam uma boa educação;
tiveram uma dama de companhia; felizmente para elas, foi uma mulher de
espírito e de gosto; andavam a cavalo, tinham carro, viviam como teriam vivido
as amantes de um velho cavalheiro rico; bastava-lhes expressar os mais caros
desejos para ver o pai empenhando-se em realizá-los; ele só pedia uma carícia
em troca de suas oferendas. Goriot punha as filhas no nível dos anjos, e
necessariamente acima dele, o pobre homem! Gostava até do mal que lhe
faziam. Quando as filhas chegaram à idade de se casar, puderam escolher o
marido segundo seus gostos: cada uma devia ter como dote a metade da fortuna
do pai. Cortejada por sua beleza pelo conde de Restaud, Anastasie tinha
pendores aristocráticos que a levaram a sair da casa paterna para se lançar nas
altas esferas sociais. Delphine gostava de dinheiro: casou-se com Nucingen,
banqueiro de origem alemã que se tornou barão du Saint-Empire. Goriot
continuou a ser macarroneiro. Suas filhas e seus genros logo se chocaram ao vê-
lo continuar aquele comércio, embora fosse toda a sua vida. Depois de aguentar
por cinco anos as solicitações deles, aceitou retirar-se, com o produto de seu
patrimônio e os lucros dos últimos anos; capital que a sra. Vauquer, com quem
fora se instalar, estimara render de oito a dez mil libras de renda. Jogou-se
naquela pensão devido ao desespero que o agarrara ao ver as duas filhas
obrigadas pelos maridos a recusarem não só que morasse com elas como
também que ali fosse recebido ostensivamente.
Essas informações eram tudo o que sabia um certo sr. Muret sobre o pai
Goriot, cujo negócio ele comprara. As suposições que Rastignac ouvira a
duquesa de Langeais fazer estavam, assim, confirmadas. Aqui termina a
exposição dessa obscura mas pavorosa tragédia parisiense.
Pelo fim dessa primeira semana do mês de dezembro, Rastignac recebeu duas
cartas, uma da mãe, outra da irmã mais velha. Aquelas letras tão conhecidas o
fizeram tanto palpitar de alegria como tremer de terror. Os dois papéis frágeis
continham uma sentença de vida ou morte sobre suas esperanças. Se ele sentia
certo terror ao se lembrar da angústia dos pais, percebera muito bem a predileção
deles para não temer ter aspirado suas últimas gotas de sangue. A carta da mãe
era assim escrita:
Meu querido filho, envio-lhe o que me pediu. Faça bom uso deste dinheiro,
eu não conseguiria, quando se tratasse de salvar a sua vida, encontrar uma
segunda vez quantia tão considerável sem que seu pai fosse informado, o que
perturbaria a harmonia de nosso lar. Para obtê-la, seríamos obrigados a dar
garantias sobre nossa terra. É-me impossível julgar o mérito de projetos que
não conheço; mas, afinal, de que natureza são eles para levá-lo a ter receio de
me contá-los? Essa explicação não requeria volumes, basta-nos, a nós mães,
uma palavra, e essa palavra me teria evitado as angústias da incerteza. Eu não
saberia esconder de você a impressão dolorosa que sua carta me causou. Meu
querido filho, qual é então esse sentimento que o obrigou a jogar tamanho
pavor em meu coração? Você deve ter sofrido bastante ao me escrever, pois
sofri bastante ao lê-lo. Em que carreira se mete então? Sua vida, sua
felicidade estariam ligadas a aparentar o que não é, a ver um mundo que não
poderia frequentar sem fazer despesas de dinheiro que não consegue manter,
sem perder um tempo precioso para seus estudos? Meu bom Eugène, acredite
no coração de sua mãe, os caminhos tortuosos não levam a nada de
grandioso. A paciência e a resignação devem ser as virtudes dos jovens que
estão em sua posição. Não ralho com você, não gostaria de comunicar à
nossa oferta nenhuma amargura. Minhas palavras são as da mãe tão confiante
como previdente. Se sabe quais são suas obrigações, eu sei como seu coração
é puro, como suas intenções são excelentes. Assim, posso lhe dizer sem
receio: Vá, meu bem-amado, ande! Tremo porque sou sua mãe; mas cada um
de seus passos será ternamente acompanhado por nossos olhos e nossas
bênçãos. Seja prudente, querido filho. Deve ser bem-comportado como um
homem, o destino de cinco pessoas que lhe são caras repousa sobre sua
cabeça. Sim, todas as nossas fortunas estão em você, assim como sua
felicidade é a nossa. Nós todos rezamos a Deus para secundá-lo em suas
iniciativas. Sua tia Marcillac foi, nessa circunstância, de uma bondade
inaudita: chegou até a imaginar o que você me diz de suas luvas. Mas ela tem
um fraco pelo mais velho, como me disse alegremente. Meu Eugène, ame
muito sua tia, só lhe direi o que fez por você quando você vencer; do
contrário, o dinheiro dela queimaria os seus dedos. Vocês, filhos, não sabem
o que é sacrificar lembranças! Mas o que não sacrificaríamos? Ela me
encarrega de lhe dizer que o beija na testa, e gostaria de lhe comunicar por
esse beijo a força para você ser muito feliz. Essa boa e excelente mulher teria
lhe escrito se não sofresse de gota nos dedos. Seu pai vai bem. A colheita de
1819 ultrapassa nossas esperanças. Adeus, querido filho. Nada direi de suas
irmãs: Laura lhe escreveu. Deixo a ela o prazer de tagarelar sobre os
pequenos acontecimentos da família. Que o céu permita que você vença! Oh!
Sim, vença, meu Eugène, você me fez conhecer uma dor profunda demais
para que eu consiga suportá-la uma segunda vez. Eu soube o que era ser
pobre, desejando a fortuna para dá-la a meu filho. Bem, adeus. Não nos deixe
sem notícias, e receba aqui o beijo que sua mãe lhe envia.
Quando Eugène acabou de ler essa carta, estava em prantos, pensava no pai
Goriot entortando seu vermeil e o vendendo para ir pagar a letra de câmbio da
filha. “Sua mãe entortou as joias!”, ele pensava. “Sua tia com certeza chorou ao
vender algumas de suas relíquias! Com que direito você amaldiçoaria Anastasie?
Você acaba de imitar pelo egoísmo de seu futuro o que ela fez pelo amante!
Quem, ela ou você, vale mais?” O estudante sentiu-se com as entranhas roídas
por uma intolerável sensação de calor. Queria renunciar ao mundo, queria não
pegar aquele dinheiro. Sentiu os nobres e belos remorsos secretos cujo mérito é
raramente apreciado pelos homens quando julgam seus semelhantes, e quando
costumam fazer os anjos do céu absolverem o criminoso condenado pelos
juristas da Terra. Rastignac abriu a carta da irmã, cujas expressões
inocentemente graciosas lhe refrescaram o coração.
“Ah! sim”, pensou Eugène, “sim, a fortuna a qualquer preço! Tesouros não
pagariam essa dedicação. Gostaria de lhes levar todas as felicidades juntas. Mil
quinhentos e cinquenta francos!”, disse para si mesmo depois de uma pausa.
“Cada moeda deve dar resultado! Laure tem razão. Ah, essas mulheres! Só tenho
camisas de pano grosso. Pela felicidade de outro, uma moça se torna tão esperta
quanto um ladrão. Inocente para ela e previdente para mim, é como o anjo do
céu que perdoa as faltas da Terra sem compreendê-las.”
O mundo era dele! Já seu alfaiate tinha sido convocado, sondado, conquistado.
Ao ver o sr. de Trailles, Rastignac entendera a influência que os alfaiates
exercem na vida dos jovens. Infelizmente, não existe média entre esses dois
termos: um alfaiate é um inimigo mortal ou um amigo dado pela fatura! 30
Eugène encontrou no seu um homem que entendera a paternidade de seu
comércio, e que se considerava um traço de união entre o presente e o futuro dos
jovens. Assim, Rastignac, grato, fez a fortuna desse homem por uma dessas
tiradas com que, mais tarde, ele brilharia:
— Conheço — dizia — duas calças dele que fizeram casamentos de vinte mil
libras de renda.
Mil e quinhentos francos e roupas à vontade! Naquele momento o pobre
meridional não duvidou de mais nada, e desceu para o almoço com o ar
indefinível que dá a um rapaz a posse de uma quantia qualquer. No instante em
que o dinheiro desliza para o bolso de um estudante, ergue-se nele mesmo uma
coluna fantástica na qual se apoia. Anda melhor que antes, sente-se um ponto de
apoio para sua alavanca, tem o olhar pleno, direto, os movimentos ágeis; na
véspera, humilde e tímido, teria recebido golpes; no dia seguinte, os daria a um
primeiro-ministro. Passam-se nele fenômenos incríveis: quer tudo e pode tudo,
deseja a torto e a direito, é alegre, generoso, expansivo. Enfim, o pássaro outrora
sem asas reencontrou sua envergadura. O estudante sem dinheiro abocanha uma
gota de prazer assim como um cão que rouba um osso, depois de mil perigos,
quebra-o, chupa seu tutano e corre mais; mas o jovem que sacode em seu bolso
do colete umas fugazes moedas de ouro degusta seus prazeres, conta-as, balança-
se no céu, já não sabe o que significa a palavra “miséria”. Paris inteira lhe
pertence. Idade em que tudo é brilhante, em que tudo cintila e flameja! Idade de
força alegre que ninguém aproveita, nem o homem nem a mulher! Idade das
dívidas e dos profundos temores que decuplicam todos os prazeres! Quem não
frequentou a margem esquerda do Sena, entre a Rue Saint-Jacques e a Rue des
Saint-Pères, nada conhece da vida humana! “Ah! se as mulheres de Paris
soubessem”, pensava Rastignac devorando as peras cozidas, a um vintém cada,
servidas pela sra. Vauquer, “elas viriam ser amadas aqui!” Nesse momento, um
carteiro dos Transportes Reais se apresentou na sala de jantar, depois de ter
tocado à porta de postigo. Perguntou pelo sr. Eugène de Rastignac, a quem
entregou duas sacolas e um registro para assinar. Rastignac foi então vergastado
como por uma chicotada pelo olhar profundo que Vautrin lhe lançou.
— Terá como pagar as aulas de armas e as sessões de tiro — disse-lhe aquele
homem.
— Os galeões chegaram — disse-lhe a sra. Vauquer olhando para as sacolas.
A srta. Michonneau temeu jogar os olhos sobre o dinheiro, receando mostrar
sua cobiça.
— O senhor tem uma boa mãe — disse a sra. Couture.
— O cavalheiro tem uma boa mãe — repetiu Poiret.
— É, a mamãe se sangrou — disse Vautrin. — Agora pode fazer suas farras,
frequentar a sociedade, pescar dotes, dançar com condessas que têm flores de
pessegueiro no cabelo. Mas acredite em mim, rapaz, aprenda a atirar.
Vautrin fez o gesto de um homem que visa seu adversário. Rastignac quis dar
uma gorjeta ao carteiro e não encontrou nada no bolso. Vautrin vasculhou o seu
e jogou vinte vinténs para o homem.
— Você tem bom crédito — retrucou, olhando para o estudante.
Rastignac foi obrigado a agradecer, embora desde as palavras asperamente
trocadas, no dia em que voltara da casa da sra. de Beauséant, aquele homem lhe
fosse insuportável. Durante aqueles oito dias Eugène e Vautrin tinham ficado
silenciosamente em presença, e se observavam um ao outro. O estudante se
perguntava, em vão, por quê. Talvez as ideias se projetassem em razão direta da
força com que são concebidas, e fossem bater ali para onde o cérebro as envia,
por uma lei matemática comparável à que dirige as bombas ao saírem do
morteiro. Diversos são os efeitos disso. Se há naturezas ternas em que as ideias
se alojam e que elas destroem, há também naturezas vigorosamente guarnecidas,
crânios com bastiões de bronze contra os quais as vontades dos outros se
esmagam e caem como balas diante de uma muralha; e também há naturezas
frouxas e algodoadas em que as ideias alheias vão morrer como balas de canhão
que amortecem na terra mole das fortificações. Rastignac tinha uma dessas
cabeças cheias de pólvora que explodem ao menor choque. Era demasiado vivaz
e jovem para não ser acessível a essa projeção de ideias, a esse contágio dos
sentimentos de que tantos fenômenos estranhos nos atingem sem nos darmos
conta. Sua visão moral tinha o alcance lúcido de seus olhos de lince. Cada um de
seus duplos sentidos possuía essa extensão misteriosa, essa flexibilidade de ir e
voltar que nos maravilha nas pessoas superiores, esgrimistas hábeis em captar o
defeito de todas as couraças. Aliás, fazia um mês que se desenvolvera em
Eugène tantas qualidades quanto defeitos. Seus defeitos, a sociedade e a
realização de seus crescentes desejos os suscitaram. Entre suas qualidades estava
essa vivacidade meridional que faz ir direto à dificuldade para resolvê-la, e que
não permite a um homem de além-Loire permanecer numa incerteza qualquer;
qualidade que as pessoas do Norte chamam de defeito: para elas, se isso foi a
origem da fortuna de Murat, foi também a causa de sua morte. 31 Daí se deveria
concluir que, quando um meridional sabe unir a astúcia do Norte à audácia de
além-Loire, é completo e acaba sendo rei da Suécia. 32 Rastignac não podia,
portanto, ficar muito tempo sob o fogo das baterias de Vautrin sem saber se
aquele homem era seu amigo ou inimigo. De quando em quando, parecia-lhe que
aquele personagem singular penetrava em suas paixões e lia em seu coração, ao
passo que nele tudo era tão bem fechado que aparentava ter a profundidade
imóvel de uma esfinge que sabe e vê tudo mas nada diz. Sentindo-se com o
bolso bem recheado, ele se amotinou.
— Dê-me o prazer de esperar — disse a Vautrin, que se levantava para sair,
depois de ter saboreado os últimos goles de seu café.
— Por quê? — perguntou o quarentão pondo seu chapéu de abas largas e
pegando uma bengala de ferro com a qual costumava fazer círculos, como
homem que não temeria ser assaltado por quatro ladrões.
— Vou lhe pagar — continuou Rastignac, que prontamente abriu uma sacola e
contou cento e quarenta francos para a sra. Vauquer. — Boas contas fazem bons
amigos — disse à viúva. — Estamos quites até a São Silvestre. Troque-me estes
cem vinténs.
— Bons amigos fazem boas contas — repetiu Poiret olhando para Vautrin.
— Aqui estão vinte vinténs — disse Rastignac entregando uma moeda à
esfinge de peruca.
— Até parece que tem medo de me dever alguma coisa! — exclamou Vautrin,
afundando um olhar adivinhador na alma do rapaz, para quem deu um desses
sorrisos zombeteiros e diogênicos 33 com que Eugène estivera prestes a se zangar
cem vezes.
— Mas… é — respondeu o estudante, que segurava na mão as duas sacolas e
se levantara para subir até seu quarto.
Vautrin saía pela porta que dava para o salão, e o estudante se preparava para
sair por aquela que dava para o patamar da escada.
— Saiba, sr. marquês de Rastignacorama, que o que me diz não é exatamente
cortês — disse então Vautrin chicoteando a porta do salão e se dirigindo ao
estudante, que o olhou friamente.
Rastignac fechou a porta da sala de jantar, levando Vautrin para o pé da
escada, até o patamar que separava a sala de jantar da cozinha, onde havia uma
porta maciça que dava para o jardim e tendo ao alto uma vidraça comprida com
grades de ferro. Ali, o estudante disse na frente de Sylvie, que surgiu de sua
cozinha:
— Monsieur Vautrin, não sou marquês, e não me chamo Rastignacorama.
— Eles vão se duelar — disse a srta. Michonneau com uma expressão
indiferente.
— Duelar-se! — repetiu Poiret.
— Que nada — respondeu a sra. Vauquer acariciando sua pilha de escudos.
— Mas estão indo para debaixo das tílias — gritou a srta. Victorine
levantando-se para olhar o jardim. — Aquele pobre rapaz tem razão.
— Vamos subir, minha queridinha — disse a sra. Couture —, esses negócios
não nos dizem respeito.
Quando a sra. Couture e Victorine se levantaram, encontraram na porta a gorda
Sylvie, que lhes barrou a passagem.
— Mas que que há afinal? — ela perguntou. — O sr. Vautrin disse para o sr.
Eugène: “Vamos nos entender!”. Aí ele o pegou pelo braço e olhem lá eles
andando em cima das nossas alcachofras.
Nesse instante Vautrin apareceu.
— Mamãe Vauquer — disse sorrindo —, não se apavore com coisa nenhuma,
vou testar minhas pistolas debaixo das tílias.
— Ah! senhor — disse Victorine juntando as mãos —, por que quer matar o sr.
Eugène?
Vautrin deu dois passos atrás e contemplou Victorine.
— É outra história — exclamou num tom brincalhão que fez a pobre moça
enrubescer. — Esse rapaz aí é muito bonzinho, não é? — continuou. — A
senhorita está me dando uma ideia. Farei a felicidade de vocês dois, minha bela
menina.
A sra. Couture pegara sua pupila pelo braço e a arrastara dizendo-lhe ao
ouvido:
— Mas Victorine, esta manhã você está impossível.
— Não quero que disparem tiros de pistola na minha casa — disse a sra.
Vauquer. — Não vá assustar toda a vizinhança e trazer a polícia a esta hora!
— Que nada, calma, mamãe Vauquer — respondeu Vautrin. — Não, não,
tranquilinhos, nós iremos ao tiro. — Foi encontrar Rastignac, que pegou com
intimidade pelo braço: — Se eu lhe tivesse provado que a trinta e cinco passos
meto cinco vezes seguidas minha bala num ás de espadas — ele lhe disse —,
isso não tiraria a sua coragem. Parece-me um pouco raivoso, e se deixaria matar
como um imbecil.
— Está recuando — disse Eugène.
— Não me esquente a bílis — respondeu Vautrin. — Esta manhã não faz frio,
vamos nos sentar ali — disse mostrando as cadeiras pintadas de verde. — Lá
ninguém nos ouvirá. Temos que conversar. Você é um bom rapazote e não lhe
quero mal. Gosto de você, palavra de Enganad… (diachos!), palavra de Vautrin.
Vou lhe dizer por que gosto de você. Entretanto, conheço-o como se o tivesse
feito, e vou lhe provar. Ponha suas sacolas aí — continuou, mostrando-lhe a
mesa redonda.
Rastignac pôs seu dinheiro em cima da mesa e sentou-se, vítima de uma
curiosidade resultante, no mais alto grau, da mudança súbita operada nas
maneiras daquele homem que, depois de ter falado em matá-lo, posava de seu
protetor.
— Gostaria de saber quem eu sou, o que fiz ou o que faço — prosseguiu
Vautrin. — Você é muito curioso, meu filho. Bem, calma. Vai ouvir muitas
histórias! Conheci desgraças. Primeiro me ouça, e me responderá depois. Aqui
está minha vida pregressa em poucas palavras. Quem sou eu? Vautrin. Que faço?
O que me agrada. Passemos. Quer conhecer meu caráter? Sou bom com aqueles
que me fazem o bem ou cujo coração fala ao meu. Para esses tudo é permitido,
podem me dar pontapés nos ossos das pernas sem que eu lhes diga: “Tomem
cuidado!”. Mas, macacos me mordam! Sou malvado como o diabo com os que
me importunam ou com aqueles que não engulo. E é bom que fique sabendo que
me preocupo tanto em matar um homem como com isso! — disse lançando um
jato de cuspe. — Só que me esforço para matar com limpeza, quando é
absolutamente necessário. Sou o que chamam de artista. Li as Memórias de
Benvenuto Cellini, sim senhor, eu mesmo, e em italiano, para completar!
Aprendi com esse homem, que era um tremendo sujeito, a imitar a Providência
que nos mata a torto e a direito, e a amar o belo em qualquer lugar onde se
encontre. Aliás, não é uma bela partida a jogar essa de estar só contra todos os
homens e ter sorte? Refleti bastante sobre a constituição atual de sua desordem
social. Meu filho, o duelo é uma brincadeira de criança, uma bobagem. Quando,
de dois homens vivos, um deve desaparecer, é preciso ser imbecil para se
entregar ao acaso. O duelo? Cara ou coroa! É isso. Meto cinco balas seguidas
num ás de espadas reenfiando cada nova bala uma em cima da outra, e para
completar a trinta e cinco passos! Quando se é dotado desse talentozinho, pode-
se ter certeza de matar um homem. Pois bem, atirei num homem a vinte passos e
não acertei. O engraçadinho nunca na vida tinha manejado uma pistola. Veja! —
disse esse homem extraordinário desabotoando o colete e mostrando o peito
peludo como o dorso de um urso mas coberto por um pelame ruivo que causava
um certo nojo mesclado de pavor —, aquele pirralho me queimou o pelo —
acrescentou pondo o dedo de Rastignac num buraco que tinha no peito. — Mas
naquele tempo eu era uma criança, tinha a sua idade, vinte e um anos. Ainda
acreditava em alguma coisa, no amor de uma mulher, num monte de besteiras
nas quais você vai se enrolar. Nós teríamos nos duelado, não é verdade? Você
poderia ter me matado. Suponha que eu estivesse no chão, onde você estaria?
Teria de dar no pé, ir para a Suíça, comer o dinheiro do papai, que não o tem.
Vou lhe esclarecer, eu, a posição em que está; mas vou fazê-lo com a
superioridade de um homem que, depois de ter examinado as coisas deste
mundo, viu que só havia duas decisões a tomar: ou uma obediência estúpida ou a
revolta. Não obedeço a nada, está claro? Sabe de quanto precisa, no ritmo em
que está indo? Um milhão, e depressa; sem o quê, com nossa cabecinha,
poderíamos flanar entre as redes de Saint-Cloud, 34 para ver se existe um Ser
supremo. Esse milhão, eu vou lhe dar. — Fez uma pausa olhando para Eugène.
— Ah! Ah! Está fazendo uma cara melhor para o seu papaizinho Vautrin! Ao
ouvir essa palavra, ficou como uma mocinha a quem se diz: “Até à noite”, e que
se arruma toda lambendo-se como um gato que bebe leite. Ainda bem! Ora essa!
A nós dois! Eis a sua conta, rapaz. Temos, lá longe, papai, mamãe, tia-avó, duas
irmãs (dezoito e dezessete anos), dois irmãozinhos (quinze e dez anos), esta é a
lista de controle da tripulação. A tia educa suas irmãs. O cura vai ensinar latim
aos dois irmãos. A família come mais mingau de castanhas do que pão branco, o
papai economiza as calças, mamãe se dá apenas um vestido de inverno e um
vestido de verão, nossas irmãs fazem o que podem. Eu sei tudo, estive no Sul.
As coisas são assim na sua casa, se lhe enviam mil e duzentos francos por ano, e
se a sua terrinha só rende três mil francos. Temos uma cozinheira e um
empregado, é preciso manter o decoro, papai é barão. Quanto a nós, temos
ambição, temos os Beauséant como aliados e andamos a pé, queremos fortuna e
não temos um tostão, comemos os ensopadinhos da mamãe Vauquer e gostamos
dos belos jantares do Faubourg Saint-Germain, dormimos num catre e queremos
um palacete! Não critico as suas vontades. Ter ambição, meu benzinho, não é
dado a todos. Pergunte às mulheres quais homens procuram, são os ambiciosos.
Os ambiciosos têm os rins mais fortes, o sangue mais rico em ferro, o coração
mais quente que os outros homens. E a mulher fica tão feliz e tão bela nas horas
em que é forte, que ela prefere a todos os homens aquele cuja força é enorme,
ainda que se arriscando a ser quebrada por ele. Faço o inventário dos seus
desejos a fim de lhe formular a pergunta. Essa pergunta, ei-la. Temos uma fome
de lobo, nossos dentinhos são afiados, como faremos para abastecer a marmita?
Temos primeiro o Código para comer, não é divertido, e não ensina nada; mas é
preciso. Vá lá. Viramos advogados, para nos tornarmos presidente de um
tribunal do júri, mandar os pobres-diabos que valem mais que nós com um TF 35
no ombro, a fim de provar aos ricos que podem dormir em paz. Primeiro, dois
anos mofando em Paris, olhando, sem poder tocar, as gulodices que adoramos. É
cansativo desejar o tempo todo sem nunca se satisfazer. Se você fosse pálido e
da natureza dos moluscos, não teria nada a temer; mas temos o sangue febril dos
leões e um apetite para fazer vinte besteiras por dia. Portanto, sucumbirá a esse
suplício, o mais horrível que vimos no inferno do bom Deus. Admitamos que
seja comportado, que beba leite e faça elegias; generoso como é, terá de
começar, depois de muitos aborrecimentos e privações de deixar raivoso um cão,
por tornar-se o substituto de algum sujeitinho, num buraco de cidade onde o
governo lhe jogará mil francos de ordenado, assim como se joga uma sopa a um
dogue de açougueiro. Lata diante dos ladrões, defenda o rico, mande guilhotinar
pessoas bondosas. Que remédio! Se não tiver proteções, apodrecerá no seu
tribunal de província. Por volta dos trinta anos, será juiz com mil e duzentos
francos por ano, se ainda não tiver jogado fora sua toga. Quando chegar aos
quarenta, se casará com alguma filha de moleiro, rica, com cerca de seis mil
libras de renda. Obrigado. Tenha pistolões, e será procurador do rei aos trinta
anos, com mil escudos de ordenado, e se casará com a filha do prefeito. Se fizer
algumas dessas pequenas baixezas políticas, como ler numa cédula eleitoral
Villèle em vez de Manuel (dá rima, deixa a consciência em paz), será, aos
quarenta anos, procurador-geral, e poderá se tornar deputado. Repare, meu caro
menino, que teremos dado uns arranhões na nossa conscienciazinha, que teremos
tido vinte anos de aborrecimentos, de misérias secretas, e que nossas irmãs terão
ficado para titia. Tenho a honra de fazê-lo observar, além disso, que só há vinte
procuradores-gerais na França, e que vocês são vinte mil aspirantes ao posto,
entre os quais se encontram farsantes que venderiam a família para subir um
degrau. Se a profissão o repugna, vejamos outra coisa. O barão de Rastignac
quer ser advogado? Ah! beleza. É preciso penar por dez anos, gastar mil francos
por mês, ter uma biblioteca, um gabinete, frequentar a sociedade, beijar a toga de
um procurador para conseguir causas, varrer o tribunal com a língua. Se essa
profissão o levasse a bom porto, eu não diria não; mas encontre-me em Paris
cinco advogados que, aos cinquenta anos, ganham mais de cinquenta mil francos
por ano? Ora! mais do que me enfraquecer assim a alma, eu preferiria virar
corsário. Aliás, onde pegar os escudos? Nada disso é engraçado. Temos um
recurso no dote de uma mulher. Quer se casar? Será colocar uma pedra no
pescoço; além do mais, na hipótese de se casar por dinheiro, onde vão parar
nossos sentimentos de honra, nossa nobreza? Melhor começar hoje a sua revolta
contra as convenções humanas. Não seria nada deitar-se como uma serpente
diante de uma mulher, lamber os pés da mãe, fazer baixezas de dar nojo a uma
porca, bergh!, se ao menos encontrasse a felicidade. Mas será infeliz como as
pedras de esgoto com uma mulher que tiver desposado assim. Ainda mais vale
guerrear com os homens do que lutar com a mulher. É essa a encruzilhada da
vida, rapaz, escolha. Já escolheu: foi à casa de nossa prima de Beauséant, e lá
farejou o luxo. Foi à casa da sra. de Restaud, a filha do pai Goriot, e lá farejou a
parisiense. Naquele dia voltou com uma palavra escrita na testa, e que eu soube
ler muito bem: “Vencer!”. Vencer a qualquer preço. Bravo!, pensei, aí está um
rapaz que me cai bem. Precisou de dinheiro. Onde pegá-lo? Sangrou as irmãs.
Todos os irmãos ludibriam mais ou menos as irmãs. Os seus mil e quinhentos
francos arrancados, Deus sabe como!, numa terra onde se encontram mais
castanhas que moedas de cem vinténs, vão sumir como soldados na hora da
pilhagem! Depois, o que fará? Trabalhará? O trabalho, compreendido como o
compreende agora, dá, nos velhos dias, um apartamento na pensão de mamãe
Vauquer a uns sujeitos do naipe de Poiret. Uma rápida fortuna é o problema que
neste momento se propõem a resolver cinquenta mil jovens que se encontram,
todos, na sua situação. Você é uma unidade dessa soma. Considere os esforços
que tem de fazer e a sanha do combate. Terão de comer uns aos outros como
aranhas dentro de um pote, considerando que não há cinquenta mil bons cargos.
Sabe como se abre caminho aqui? Pelo brilho do gênio ou pela habilidade da
corrupção. É preciso entrar nessa massa de homens como uma bala de canhão,
ou aí se esgueirar como uma peste. A honestidade não serve para nada. As
pessoas se dobram sob o poder do gênio, odeiam-no, tentam caluniá-lo, porque
ele pega sem dividir; mas se dobram se ele persiste; em suma, o adoram de
joelhos quando não conseguiram enterrá-lo na lama. A corrupção é copiosa, o
talento é raro. Assim, a corrupção é a arma da mediocridade que abunda, e você
sentirá por toda parte sua pontada. Verá mulheres cujos maridos têm seis mil
francos de ordenado como única renda, e que gastam mais de dez mil francos
com suas toaletes. Verá empregados com mil e duzentos francos comprarem
terras. Verá mulheres se prostituirem para andar na carruagem do filho de um
par da França, que pode correr em Longchamp pela pista do meio. Você viu o
pobre idiota do pai Goriot obrigado a pagar a letra de câmbio endossada pela
filha, cujo marido tem cinquenta mil libras de renda. Desafio-o a dar dois passos
em Paris sem encontrar trapaças infernais. Eu apostaria minha cabeça por um pé
desta alface que você vai cair num vespeiro com a primeira mulher que lhe
agradar, se for rica, bonita e jovem. Todas estão presas às leis, em guerra com o
marido a respeito de tudo. Eu não acabaria nunca se tivesse de lhe explicar as
tramoias que se fazem por causa de amantes, de roupas, de filhos, pelo lar ou
pela vaidade, raramente por virtude, esteja certo. Assim, o homem honesto é o
inimigo comum. Mas o que pensa que é um homem honesto? Em Paris, o
homem honesto é aquele que se cala e se recusa a dividir. Não lhe falo desses
pobres hilotas que em toda parte fazem sua labuta sem jamais ser recompensados
por seus trabalhos, e que eu chamo de confraria dos chinelos do bom Deus. Sem
dúvida, aí está a virtude em toda a flor de sua idiotice, mas aí está a miséria.
Vejo daqui a careta dessa brava gente se Deus nos fizesse a brincadeira de mau
gosto de se ausentar do juízo final. Portanto, se quer a fortuna prontamente, é
preciso já ser rico ou parecê-lo. Para enriquecer, trata-se aqui de armar grandes
jogadas; do contrário, é afanar, e passe bem. Se nas cem profissões que puder
abraçar houver dez homens que vencerem depressa, o público os chamará de
ladrões. Tire suas conclusões. Eis a vida como ela é. Isso não é mais bonito que
a cozinha, fede da mesma maneira, e temos que sujar as mãos se quisermos nos
deliciar; saiba pelo menos limpar-se direito: aí está toda a moral de nossa época.
Se lhe falo assim do mundo, é porque ele me deu esse direito, eu o conheço.
Pensa que o recrimino? De jeito nenhum. Ele sempre foi assim. Os moralistas
jamais o mudarão. O homem é imperfeito. Às vezes é mais ou menos hipócrita, e
então os tolos dizem que tem ou não tem bons costumes. Não acuso os ricos em
favor do povo: o homem é o mesmo no alto, embaixo, no meio. Encontram-se
para cada milhão desse gado superior dez sujeitos que se põem acima de tudo,
até mesmo das leis: sou um deles. Você, se for um homem superior, ande em
linha reta e de cabeça erguida. Mas será preciso lutar contra a inveja, a calúnia, a
mediocridade, contra todo mundo. Napoleão encontrou um ministro da Guerra
que se chamava Aubry, e que quase o mandou para as colônias. Sonde-se! Veja
se poderá se levantar todas as manhãs com mais vontade do que tinha na
véspera. Nessa conjuntura, vou lhe fazer uma proposta que ninguém recusaria.
Ouça bem. Eu, sabe, tenho uma ideia. Minha ideia é ir viver a vida patriarcal no
meio de uma grande propriedade, cinquenta mil hectares, por exemplo, nos
Estados Unidos, no Sul. Quero virar fazendeiro, ter escravos, ganhar uns bons
milhõezinhos vendendo meus bois, meu fumo, minhas madeiras, vivendo como
um soberano, fazendo minhas vontades, levando uma vida inconcebível aqui,
onde a gente se esconde numa toca de gesso. Sou um grande poeta. Minhas
poesias, não as escrevo; consistem em ações e sentimentos. Possuo neste
momento cinquenta mil francos que me dariam apenas quarenta negros. Preciso
de duzentos mil francos, porque quero duzentos negros, a fim de satisfazer meu
gosto pela vida patriarcal. Negros, sabe?, são filhos já prontos com os quais
fazemos o que queremos, sem que um curioso procurador do rei chegue lhe
pedindo satisfação. Com esse capital negro, em dez anos terei três ou quatro
milhões. Se eu vencer, ninguém me perguntará: “Quem é você?”. Serei o sr.
Quatro-Milhões, cidadão dos Estados Unidos. Terei cinquenta anos, ainda não
estarei podre, me divertirei a meu modo. Em poucas palavras, se eu lhe
conseguir um dote de um milhão, você me dará duzentos mil francos? Vinte por
cento de comissão, hein!, é muito alto? Você se fará amar por sua mulherzinha.
Uma vez casado, manifestará inquietações, remorsos, bancará o triste durante
quinze dias. Uma noite, depois de algumas macaquices, declarará à sua mulher,
entre um beijo e outro, duzentos mil francos de dívidas, dizendo-lhe: “Meu
amor!”. Esse vaudeville é representado todos os dias pelos rapazes mais
distintos. Uma jovem mulher não recusa sua bolsa àquele que lhe toma o
coração. Pensa que perderá com isso? Não. Dará um jeito de ganhar novamente
seus duzentos mil francos num negócio. Com seu dinheiro e seu espírito,
amealhará uma fortuna tão considerável quanto puder desejá-la. Ergo , terá feito,
em seis meses, a sua felicidade, a de uma mulher adorável e a do seu papai
Vautrin, sem contar a de sua família, que sopra nos dedos, durante o inverno, por
falta de lenha. Não se espante com o que lhe proponho nem com o que lhe peço!
De sessenta belos casamentos que acontecem em Paris, há quarenta e sete que
dão lugar a combinações semelhantes. A Câmara dos Notários forçou o
cavalheiro…
— O que devo fazer? — disse avidamente Rastignac, interrompendo Vautrin.
— Quase nada — respondeu aquele homem, deixando escapar um gesto de
alegria parecido com a surda expressão de um pescador que sente o peixe na
ponta da linha. — Ouça-me bem! O coração de uma pobre moça infeliz e
miserável é a esponja mais ávida a se encher de amor, uma esponja seca que se
dilata assim que ali cai uma gota de sentimento. Cortejar uma jovem que se acha
em condições de solidão, desespero e pobreza sem que ela desconfie de sua
fortuna futura! valha-me!, é uma trinca e um par na mão, é saber os números
premiados na loteria, é jogar com as ações conhecendo as notícias. Você
construirá um casamento sobre pilotis, um casamento indestrutível. Milhões
virão para essa jovem, ela os jogará a seus pés, como se fossem pedras. “Tome,
meu bem-amado! Tome, Adolphe! Alfred! Tome, Eugène!”, dirá se Adolphe,
Alfred ou Eugène tiveram a boa inteligência de se sacrificar por ela. O que
entendo por sacrifícios é vender uma velha casaca a fim de ir ao Cadran-Bleu
comerem juntos uma torta de cogumelo; de lá, à noite, para o Ambigu-Comique;
é pôr seu relógio no prego para lhe dar um xale. Não lhe falo das garatujas do
amor nem das bobices a que as mulheres tanto se apegam, como por exemplo
espalhar gotas d’água no papel de carta como se fossem lágrimas quando
estamos longe delas: você tem cara de conhecer perfeitamente o jargão do
coração. Paris, veja, é como uma floresta do Novo Mundo, na qual se agitam
vinte espécies de tribos selvagens, os Illinois, os Hurões, que vivem do produto
dado pelas diferentes caças sociais; você é um caçador de milhões. Para pegá-
los, use armadilhas, alçapões, chamarizes. Há várias maneiras de caçar. Uns
caçam o dote; outros caçam o momento de liquidar as ações; estes pescam
consciências, aqueles vendem, pés e mãos atados, seu jornal. Quem volta com a
algibeira bem fornida é saudado, festejado, recebido na boa sociedade. Façamos
justiça a este solo hospitaleiro, você está lidando com a cidade mais
condescendente que existe no mundo. Se as orgulhosas aristocracias de todas as
capitais da Europa se recusam a admitir em suas fileiras um milionário infame,
Paris lhe abre os braços, corre às suas festas, come seus jantares e brinda à sua
infâmia.
— Mas onde encontrar uma moça? — perguntou Eugène.
— Ela é sua, está na sua frente!
— A srta. Victorine?
— Exato!
— Ei! Como?
— Ela já o ama, a sua pequena baronesa de Rastignac!
— Ela não tem um tostão — retrucou Eugène, espantado.
— Ah! Chegamos ao que interessa. Mais duas palavrinhas — disse Vautrin —
e tudo se esclarecerá. O pai Taillefer é um velho maroto que dizem ter
assassinado um de seus amigos durante a Revolução. É um de meus sujeitos que
têm independência em suas opiniões. É banqueiro, principal sócio da casa
Frédéric Taillefer e companhia. Tem um filho único, a quem quer deixar seus
bens, em prejuízo de Victorine. Não gosto dessas injustiças. Sou como dom
Quixote, gosto de tomar a defesa do fraco contra o forte. Se a vontade de Deus
fosse lhe retirar o filho, Taillefer pegaria de volta a filha; gostaria de um herdeiro
qualquer, uma dessas besteiras que está na natureza, e não pode mais ter filhos,
eu sei. Victorine é meiga e gentil, breve terá dobrado o pai, e o fará girar como
um pião da Alemanha, com a corda do sentimento! Ela será muito sensível ao
seu amor para esquecê-lo, e você se casará com ela. Encarrego-me do papel da
Providência, farei com que o bom Deus o queira. Tenho um amigo a quem me
mostrei dedicado, um coronel do Exército do Loire que acaba de se empregar na
guarda real. Ele ouve minhas opiniões e se fez ultramonarquista: não é um
desses imbecis que se aferram às próprias opiniões. Se ainda tenho um conselho
a lhe dar, meu anjo, é não se aferrar mais às suas opiniões do que às suas
palavras. Quando as pedirem, venda-as. Um homem que se gaba de nunca mudar
de opinião é um homem que se impõe andar sempre em linha reta, um bobo que
acredita na infalibilidade. Não há princípios, há apenas fatos; não há leis, há
apenas circunstâncias: o homem superior desposa os fatos e as circunstâncias
para conduzi-los. Se houvesse princípios e leis fixas, os povos não os mudariam
como mudamos de camisas. O homem não é obrigado a ser mais sensato que
toda uma nação. O homem que prestou menos serviços à França é um fetiche
venerado por ter sempre visto tudo vermelho, ele serve no máximo para ser
posto no Conservatório, entre as máquinas, com a etiqueta La Fayette; 36 ao
passo que o príncipe em quem todos atiram pedra, e que despreza bastante a
humanidade para lhe cuspir no rosto tantos juramentos quantos ela pedir,
impediu a divisão da França no Congresso de Viena; a ele devem-se coroas,
jogam-lhe lama. Ah! conheço os negócios! Sei dos segredos de muitos homens!
Basta. Terei uma opinião inquebrantável no dia em que tiver encontrado três
cabeças de acordo sobre o emprego de um princípio, e esperarei muito tempo!
Não se encontram nos tribunais três juízes que tenham a mesma opinião sobre
um artigo de lei. Volto ao meu homem. Ele reporia Jesus Cristo na cruz se eu lhe
pedisse. A uma só palavra de seu papai Vautrin ele vai procurar briga com
aquele engraçadinho que não manda nem mesmo cem vintens à sua pobre irmã,
e… — Aqui Vautrin se levantou, pôs-se em posição de defesa e fez o gesto de
um mestre de armas que riposta. — E debaixo da terra! — acrescentou.
— Que horror! — disse Eugène. — Está brincando, sr. Vautrin?
— Não, não, não, calma — prosseguiu aquele homem. — Não banque a
criança: no entanto, se isso pode diverti-lo, enfureça-se, arrebate-se! Diga que
sou um infame, um facínora, um malandro, um bandido, mas não me chame de
escroque, nem de espião! Ande, diga, solte sua saraivada de insultos! Eu o
perdoo, é tão natural na sua idade! Já fui assim! Só que reflita. Fará pior um dia
desses. Irá pavonear-se para alguma mulher bonita e receberá dinheiro. Já
pensou nisso? — disse Vautrin. — Pois como vencerá, se não cobrar por seu
amor? A virtude, meu caro estudante, não se cinde: ela é ou não é. Falam-nos de
fazer penitência por nossos erros. Mais um lindo sistema, esse em virtude do
qual ficamos quite de um crime com um ato de contrição! Seduzir uma mulher
para conseguir se colocar em determinado degrau da escada social, semear a
cizânia entre os filhos de uma família, em suma todas as infâmias que se
praticam por baixo do pano ou de outra forma com um objetivo de prazer ou
interesse pessoal, você acredita que sejam atos de fé, de esperança e de caridade?
Por que dois meses de prisão para o dândi que, numa noite, tira de uma criança a
metade de sua fortuna, e por que trabalhos forçados para um pobre-diabo que
rouba uma nota de mil francos com circunstâncias agravantes? Essas são as suas
leis. Não há um artigo que não leve ao absurdo. O homem de luvas e palavras
amarelas cometeu assassinatos em que não se derrama sangue, mas em que se dá
o sangue; o assassino abriu uma porta com um pé de cabra: duas coisas
tenebrosas! Entre o que lhe proponho e o que você fará um dia, a única diferença
é o sangue a menos. Acredita em algo fixo nesse mundo? Portanto, despreze os
homens, e veja as malhas por onde se pode passar na rede do Código. O segredo
das grandes fortunas sem causa aparente é um crime esquecido, porque foi
cometido com limpeza.
— Silêncio, senhor, não quero mais ouvir, pois me faria duvidar de mim
mesmo. Neste momento o sentimento é toda a minha ciência.
— Como quiser, belo menino. Eu o julgava mais forte — disse Vautrin —, não
lhe direi mais nada. Uma última palavra, porém. — Olhou fixamente para o
estudante. — Você conhece o meu segredo — disse-lhe.
— Um jovem que o recusa saberá perfeitamente esquecê-lo.
— Disse-o muito bem, isso me agrada. Um outro, veja bem, seria menos
escrupuloso. Lembre-se do que quero fazer por você. Dou-lhe quinze dias. É
pegar ou largar.
“Mas que cabeça fria tem esse homem!”, pensou Rastignac, vendo Vautrin ir
embora tranquilamente, com a bengala debaixo do braço. “Ele me disse
cruamente o que a sra. de Beauséant me dizia cheia de rodeios. Rasgou-me o
coração com garras de aço. Por que eu quero ir à casa da sra. de Nucingen?
Adivinhou meus motivos assim que os imaginei. Em poucas palavras, esse
bandido me disse mais coisas sobre a virtude do que me disseram os homens e
os livros. Se a virtude não sofre capitulação, quer dizer que roubei minhas
irmãs?”, pensou, jogando a sacola em cima da mesa. Sentou-se e ficou ali,
mergulhado numa atordoante meditação. “Ser fiel à virtude, sublime martírio!
Ora! Todo mundo acredita na virtude; mas quem é virtuoso? Os povos têm a
liberdade como ídolo; mas onde existe na terra um povo livre? Minha juventude
ainda é azul como um céu sem nuvem: querer ser grande ou rico não é decidir-se
a mentir, dobrar-se, rastejar-se, reerguer-se, bajular, dissimular? Não é consentir
fazer-se de criado daqueles que mentiram, dobraram-se, rastejaram-se? Antes de
ser cúmplice deles, é preciso servi-los. Pois bem, não. Quero trabalhar
nobremente, santamente; quero trabalhar dia e noite, só dever minha fortuna à
minha labuta. Será a mais lenta das fortunas, mas todo dia minha cabeça
repousará no travesseiro sem um pensamento ruim. O que há de mais belo do
que contemplar sua vida e achá-la pura como um lírio? Eu e a vida, somos como
um jovem e sua noiva. Vautrin me fez ver o que acontece depois de dez anos de
casamento. Diachos! Minha cabeça está se perdendo. Não quero pensar em nada,
o coração é um bom guia.”
Eugène foi tirado de seu devaneio pela voz da gorda Sylvie, que lhe anunciou
seu alfaiate, diante do qual se apresentou segurando as duas sacolas de dinheiro,
e não se zangou que fosse essa a circunstância. Depois que provou suas roupas
de noite, tornou a vestir a nova toalete matutina, que o metamorfoseava por
completo. “Até que valho tanto quanto o sr. de Trailles”, pensou. “Finalmente
estou com jeito de um fidalgo!”
— O senhor — disse o pai Goriot ao entrar no quarto de Eugène — me
perguntou se eu conhecia as casas aonde vai a sra. de Nucingen?
— É.
— Pois bem, na próxima segunda-feira ela vai ao baile do marechal de
Carigliano. Se puder estar lá, me dirá se minhas duas filhas se divertiram
bastante, como estavam vestidas, em suma, tudo.
— Como soube disso, meu bom pai Goriot? — perguntou Eugène fazendo-o
sentar-se perto de sua lareira.
— A camareira dela me disse. Sei tudo o que fazem por Thérèse e por
Constance — continuou com ar alegre. O velho parecia um amante ainda
bastante jovem para ficar feliz com um estratagema que o põe em contato com a
amante sem que ela possa desconfiar. — O senhor as verá! — disse expressando
com ingenuidade uma dolorosa inveja.
— Não sei — respondeu Eugène. — Vou à casa da sra. de Beauséant
perguntar-lhe se pode me apresentar à senhora do marechal.
Eugène pensava com uma espécie de alegria interior em aparecer na casa da
viscondessa vestido como agora sempre estaria. O que os moralistas chamam de
abismos do coração humano são unicamente os pensamentos ilusórios, os
movimentos involuntários do interesse pessoal. Essas peripécias, objeto de tantas
declamações, essas reviravoltas súbitas são cálculos feitos em benefício de
nossos prazeres. Vendo-se bem vestido, bem enluvado, bem calçado, Rastignac
esqueceu sua virtuosa decisão. A juventude não ousa se olhar no espelho da
consciência quando se inclina para o lado da injustiça, ao passo que a idade
madura ali já se viu: é onde jaz toda a diferença entre essas duas fases da vida.
Fazia alguns dias que os dois vizinhos, Eugène e o pai Goriot, tinham se tornado
bons amigos. Sua amizade secreta decorria das razões psicológicas que haviam
gerado sentimentos contrários entre Vautrin e o estudante. O ousado filósofo que
quiser verificar os efeitos de nossos sentimentos no mundo físico encontrará
certamente mais de uma prova de sua efetiva materialidade nas relações que eles
criam entre nós e os animais. Qual fisiognomonista está mais capacitado para
adivinhar o caráter do que um cachorro o está para saber se um desconhecido
gosta ou não gosta dele? Os átomos de aço , 37 expressão proverbial que todos
usam, são um desses fatos que ficam nas linguagens para desmentir as tolices
filosóficas que ocupam os que gostam de peneirar as peles das palavras
primitivas. Sentimo-nos amados. O sentimento se imprime em todas as coisas e
atravessa os espaços. Uma carta é uma alma, é um eco tão fiel da voz que fala,
que os espíritos delicados a incluem entre os mais ricos tesouros do amor. O pai
Goriot, cujo sentimento irrefletido se elevava ao sublime da natureza canina,
farejara a compaixão, a admirativa bondade, as simpatias juvenis que se haviam
comovido por ele no coração do estudante. No entanto, aquela união nascente
ainda não levara a nenhuma confidência. Se Eugène manifestara o desejo de ver
a sra. de Nucingen, não era porque contasse com o velhote para que o
introduzisse na casa dela; mas esperava que uma indiscrição pudesse ajudá-lo. O
pai Goriot só lhe falara das filhas a propósito do que ele se permitira dizer
publicamente delas no dia de suas duas visitas.
— Meu caro senhor — ele lhe dissera no dia seguinte —, como pôde acreditar
que a sra. de Restaud tenha lhe querido mal por ter pronunciado meu nome?
Minhas duas filhas gostam muito de mim. Sou um pai feliz. Só que meus dois
genros se comportaram mal comigo. Não quis que essas queridas criaturas
sofressem por minhas dissensões com seus maridos, e preferi vê-las escondido.
Esse mistério me dá mil prazeres que não compreendem os outros pais que
podem ver suas filhas quando querem. Eu, eu não posso, entende? Então, quando
faz tempo bom, vou ao Champs-Elysées, depois de ter perguntado às camareiras
se minhas filhas vão sair. Espero-as no caminho, meu coração dispara quando as
carruagens chegam, admiro-as em suas toaletes, elas me jogam, ao passar, um
sorrisinho que me doura a natureza como um raio que caísse de um belo sol. E
ali permaneço, elas devem retornar. Vejo-as de novo! O ar lhes fez bem, estão
rosadas. Ouço dizerem ao meu redor: “Olhem que bela mulher!”. Isso me alegra
o coração. Não é meu sangue? Gosto dos cavalos que as transportam, e gostaria
de ser o cãozinho que levam no colo. Vivo dos prazeres delas. Cada um tem seu
modo de amar, o meu, porém, não causa mal a ninguém, por que o mundo se
ocupa de mim? Sou feliz à minha maneira. Acaso é contra as leis ir ver minhas
filhas, à noite, quando saem de casa para irem ao baile? Que tristeza para mim se
chego tarde demais e me dizem: “A senhora já saiu”. Uma noite esperei até as
três da manhã para ver Nasie, que fazia dois dias que eu não via. Quase morri de
contentamento! Peço-lhe encarecidamente, não fale de mim senão para dizer o
quanto minhas filhas são boas. Elas querem me cobrir de presentes de toda
espécie; não permito, digo-lhes: “Mas guardem seu dinheiro! O que querem que
eu faça com isso? Não preciso de nada!”. De fato, meu caro senhor, que sou eu?
Um feio cadáver cuja alma está em todo lugar onde estão minhas filhas. Quando
tiver visto a sra. de Nucingen, me dirá qual das duas prefere — disse o
homenzinho depois de um instante de silêncio, vendo que Eugène se preparava
para sair e ir passear nas Tuileries, à espera da hora de se apresentar na casa da
sra. de Beauséant.
Esse passeio foi fatal para o estudante. Algumas mulheres repararam nele. Era
tão bonito, tão jovem, e com uma elegância de tão bom gosto! Vendo-se objeto
de uma atenção quase admirativa, não pensou mais nas irmãs nem na tia
espoliadas, nem em suas virtuosas repugnâncias. Vira passar acima de sua
cabeça aquele demônio que é tão fácil confundir com um anjo, aquele Satã de
asas furta-cores, que semeia rubis, joga flechas de ouro na fachada dos palácios,
purpureia as mulheres, reveste com um brilho estúpido os tronos, tão simples em
sua origem; escutara o deus dessa vaidade crepitante cujo brilho falso nos parece
um símbolo de poder. As palavras de Vautrin, por mais cínicas que fossem, se
alojaram em seu coração assim como na lembrança de uma virgem grava-se o
perfil ignóbil de uma velha vendedora de joias que lhe disse: “Ouro e amor aos
borbotões!”. Depois de ter flanado indolente, pelas cinco horas Eugène se
apresentou na casa da sra. de Beauséant e recebeu um desses golpes terríveis
contra os quais os jovens corações estão desarmados. Até então encontrara a
viscondessa cheia dessa amenidade polida, dessa graça melíflua dada pela
educação aristocrática, e que só está completa se vem do coração.
Quando entrou, a sra. de Beauséant fez um gesto seco e disse-lhe num tom
apressado:
— Sr. de Rastignac, é impossível vê-lo, pelo menos neste momento! Estou
tratando de negócios…
Para um observador, e Rastignac prontamente se tornara um deles, essa frase, o
gesto, o olhar, a inflexão de voz eram a história do caráter e dos hábitos da casta.
Percebeu a mão de ferro sob a luva de veludo; a personalidade, o egoísmo, sob
os bons modos; a madeira, sob o verniz. Entendeu enfim o EU O REI que começa
sob os penachos do trono e termina sob a cimeira do último gentil-homem.
Eugène se deixara com demasiada facilidade, baseado em suas palavras,
acreditar nas nobrezas da mulher. Como todos os infelizes, assinara de boa-fé o
delicioso pacto que deve ligar o benfeitor ao apadrinhado, e cujo primeiro artigo
consagra entre os grandes corações uma completa igualdade. A benevolência,
que junta dois seres num só, é uma paixão celeste também incompreendida, tão
rara quanto é o verdadeiro amor. Uma e outro são a prodigalidade das belas
almas. Rastignac queria chegar ao baile da duquesa de Carigliano, e engoliu
aquela borrasca.
— Senhora — disse com voz emocionada —, se não se tratasse de uma coisa
importante não teria vindo importuná-la; seja bastante gentil para me permitir
vê-la mais tarde, aguardarei.
— Muito bem! Venha jantar comigo — ela disse um pouco envergonhada com
a dureza que pusera em suas palavras; pois aquela mulher era realmente tão boa
quanto grande.
Embora tocado com essa reviravolta súbita, Eugène pensou, ao ir embora:
“Rasteje, suporte tudo. O que devem ser as outras se, num instante, a melhor das
mulheres apaga as promessas de sua amizade, deixa-o ali como um sapato
velho? Então é cada um por si? É verdade que sua casa não é uma loja, e que
estou errado em precisar dela. É necessário, como diz Vautrin, ser bala de
canhão”. As amargas reflexões do estudante logo foram dissipadas pelo prazer
que se prometia jantando na casa da viscondessa. Assim, por uma espécie de
fatalidade, os menores acontecimentos de sua vida conspiraram para empurrá-lo
na carreira em que, seguindo as observações da terrível esfinge da Casa
Vauquer, ele deveria, como num campo de batalha, matar para não ser morto,
enganar para não ser enganado; em que deveria deixar na cancela a sua
consciência, o seu coração, pôr uma máscara, escarnecer sem piedade dos
homens, e, como na Lacedemônia, agarrar sua sorte sem ser visto, para merecer
a coroa. Quando voltou à casa da viscondessa, encontrou-a cheia dessa bondade
graciosa que sempre lhe demonstrara. Os dois foram para uma sala de jantar
onde o visconde esperava a mulher e onde resplandecia esse luxo de mesa que,
durante a Restauração, foi levado, como todos sabem, ao mais alto grau. O sr. de
Beauséant, como tantas pessoas indiferentes, já não tinha outros prazeres além
dos da boa mesa; na verdade, em matéria de comilança, era da escola de Luís
XVIII e do duque d’Escars. 38 Portanto, sua mesa oferecia um duplo luxo, o do
continente e o do conteúdo. Nunca um espetáculo desses impressionara os olhos
de Eugène, que jantava pela primeira vez numa dessas casas onde as grandezas
sociais são hereditárias. A moda acabava de suprimir as ceias que outrora
encerravam os bailes do Império, quando os militares precisavam ganhar forças
para se preparar para todos os combates que os esperavam, tanto dentro como
fora. Eugène até então só assistira a bailes. O desembaraço que o distinguiu mais
tarde de modo tão eminente, e que ele já começava a demonstrar, o impediu de
se assombrar como um parvo. Mas ao ver aquela prataria lavrada e os mil
requintes de uma mesa suntuosa, ao admirar pela primeira vez um serviço feito
sem ruído, era difícil para um homem de ardorosa imaginação não preferir essa
vida constantemente elegante à vida de privações que pela manhã ele queria
abraçar. Seu pensamento o jogou de novo, por um instante, na sua pensão
burguesa; sentiu um horror tão profundo que jurou a si mesmo abandoná-la no
mês de janeiro, tanto para se instalar numa casa limpa como para fugir de
Vautrin, cuja mão larga sentia em seu ombro. Quando se chega a pensar nas mil
formas que a corrupção, falada ou muda, assume em Paris, um homem de bom
senso se pergunta por qual aberração o Estado aí instala escolas e reúne jovens,
como as mulheres bonitas aí são respeitadas, como o ouro exposto pelos
cambistas em vasilhas não desaparece magicamente. Mas quando se chega a
pensar que há poucos exemplos de crimes, até mesmo de delitos cometidos pelos
jovens, que respeito não devemos demonstrar por esses pacientes Tântalos que
combatem a si mesmos, e quase sempre são vitoriosos! Se ele fosse bem pintado
em sua luta com Paris, o pobre estudante forneceria um dos temas mais
dramáticos de nossa civilização moderna. A sra. de Beauséant olhava em vão
para Eugène a fim de convidá-lo a falar, mas ele não quis dizer nada na presença
do visconde.
— Esta noite vai me levar ao Italiens? — perguntou a viscondessa ao marido.
— Não pode duvidar do prazer que eu teria em obedecê-la — ele respondeu
com uma galanteria zombeteira que enganou o estudante —, mas devo ir
encontrar alguém no Variétés.
“Sua amante”, ela pensou.
— Então esta noite não tem D’Ajuda? — perguntou o visconde.
— Não — ela respondeu de mau humor.
— Pois bem, se precisar inevitavelmente de um braço, tome o do sr. de
Rastignac!
A viscondessa olhou sorrindo para Eugène.
— Será bem comprometedor para si — disse.
— O francês gosta do perigo porque nele encontra a glória , disse o sr. de
Chateaubriand — respondeu Rastignac inclinando-se.
Momentos depois foi levado, ao lado da sra. de Beauséant, num cupê rápido,
para o teatro da moda, e acreditou em alguma fantasmagoria quando entrou num
camarote de frente e viu-se alvo de todos os binóculos junto com a viscondessa,
cuja toalete era deliciosa. Ele ia de encantamento em encantamento.
— Tem algo para me falar — disse-lhe a sra. de Beauséant. — Ah! Veja, ali
está a sra. de Nucingen, a três camarotes do nosso. A irmã dela e o sr. de Trailles
estão do outro lado.
Ao dizer essas palavras a viscondessa olhava para o camarote onde devia estar
a srta. de Rochefide, e, não vendo ali o sr. d’Ajuda, seu rosto tomou um brilho
extraordinário.
— Ela é encantadora — disse Eugène depois de olhar para a sra. de Nucingen.
— Tem os cílios brancos.
— Sim, mas que linda cinturinha!
— Tem mãos grossas.
— Belos olhos!
— Tem o rosto comprido.
— Mas a forma longa tem distinção.
— Feliz dela que tenha essa distinção. Veja como pega e larga o lorgnon! O
Goriot transparece em todos os seus movimentos — disse a viscondessa, para
grande espanto de Eugène.
De fato, a sra. de Beauséant olhava de soslaio para a sala e parecia não prestar
atenção na sra. de Nucingen, de quem, no entanto, não perdia um gesto. A
plateia estava deliciosamente bela. Delphine de Nucingen não se sentia pouco
lisonjeada por ocupar exclusivamente o jovem, o belo, o elegante primo da sra.
de Beauséant, que só olhava para ela.
— Se continuar a cobri-la de olhares, provocará escândalo, sr. de Rastignac.
Não conseguirá nada atirando-se assim na cabeça das pessoas.
— Minha cara prima — disse Eugène —, já me protegeu bastante; se quiser
completar sua obra, não lhe peço mais do que me fazer um favor que lhe dará
pouco trabalho e me fará grande bem. Eis-me agarrado.
— Já?
— Já.
— E por essa mulher?
— Então minhas pretensões seriam ouvidas em outro lugar? — ele disse
lançando um olhar penetrante para a prima. — A sra. duquesa de Carigliano é
ligada à duquesa de Berry — recomeçou depois de uma pausa —, a senhora
deve ir vê-la, faça a bondade de me apresentá-la e de me levar ao baile que ela
oferece na segunda-feira. Lá encontrarei a sra. de Nucingen e terei minha
primeira escaramuça.
— Com prazer — ela disse. — Se já se sente atraído por ela, seus negócios
amorosos vão muito bem. Olhe De Marsay no camarote da princesa
Galathionne. A sra. de Nucingen está sofrendo horrores, está despeitada. Não há
melhor momento para se aproximar de uma mulher, mais ainda de uma mulher
de banqueiro. Todas essas damas da Chaussée d’Antin gostam de vingança.
— Mas o que faria num caso desses?
— Eu, eu sofreria calada.
Nesse instante o marquês d’Ajuda se apresentou no camarote da sra. de
Beauséant.
— Fiz mal os meus negócios a fim de vir encontrá-la — ele disse —, e
informo-lhe a respeito para que não seja um sacrifício.
Os esplendores do rosto da viscondessa ensinaram Eugène a reconhecer as
expressões de um verdadeiro amor, e a não confundi-las com os salamaleques do
coquetismo parisiense. Admirou a prima, ficou mudo e cedeu o lugar ao sr.
d’Ajuda, suspirando. “Que nobre, que sublime criatura é uma mulher que ama
assim!”, pensou. “E esse homem a trairia com uma boneca! Como é possível
traí-la?” Sentiu-se no centro de uma raiva de criança. Gostaria de se enrolar aos
pés da sra. de Beauséant, desejava o poder dos demônios a fim de levá-la para
seu coração, assim como uma águia leva da planície para seu ninho uma
cabritinha branca que ainda mama. Sentia-se humilhado por estar nesse grande
Museu da Beleza sem seu quadro, sem uma amante sua. “Ter uma amante é uma
posição quase régia”, pensava, “é o signo do poder!” E olhou para a sra. de
Nucingen como um homem insultado olha para seu adversário. A viscondessa se
virou para ele a fim de lhe dirigir com sua discrição mil agradecimentos, num
piscar de olhos. O primeiro ato terminara.
— Mas ela ficará encantada de ver o cavalheiro — disse o marquês.
O belo português se levantou e pegou o braço do estudante, que num piscar de
olhos se viu ao lado da sra. de Nucingen.
— Senhora baronesa — disse o marquês —, tenho a honra de apresentar-lhe o
cavalheiro Eugène de Rastignac, primo da viscondessa de Beauséant. A senhora
causou-lhe tão viva impressão, que quis completar sua felicidade aproximando-o
de seu ídolo.
Essas palavras foram ditas com um certo quê de troça que transmitia um
pensamento um pouco brutal, mas que, bem expressado, jamais desagrada a uma
mulher. A sra. de Nucingen sorriu e ofereceu a Eugène o lugar de seu marido,
que acabava de sair.
— Não ouso lhe propor ficar a meu lado, senhor — disse-lhe. — Quando se
tem a felicidade de estar ao lado da sra. de Beauséant, ali se permanece.
— Mas — Eugène lhe disse baixinho — parece-me, senhora, que se eu quiser
agradar à minha prima ficarei perto de si. Antes da chegada do senhor marquês,
falávamos da senhora e da distinção de toda a sua pessoa — disse em voz alta.
O sr. d’Ajuda se retirou.
— Realmente, senhor — disse a baronesa —, vai ficar comigo? Então
poderemos nos conhecer, a sra. de Restaud já havia me dado o mais intenso
desejo de vê-lo.
— Então ela é muito falsa, pois me barrou à sua porta.
— Como?
— Senhora, terei a consciência de lhe dizer a razão; mas exijo toda a sua
indulgência confiando-lhe um segredo desses. Sou vizinho do senhor seu pai.
Ignorava que a sra. de Restaud fosse filha dele. Cometi a imprudência de falar
disso muito inocentemente, e aborreci a senhora sua irmã e o marido dela. Nem
imagina como a sra. duquesa de Langeais e minha prima acharam de mau gosto
essa apostasia filial. Contei-lhes a cena, riram como loucas. Foi então que,
fazendo um paralelo entre a senhora e sua irmã, a sra. de Beauséant me falou a
seu respeito em ótimos termos e me disse o quanto era excelente para o meu
vizinho, o sr. Goriot. De fato, como não o amaria? Ele a adora tão
apaixonadamente que já estou com ciúme. Falamos de si de manhã por duas
horas. Depois, todo imbuído do que seu pai me contou, esta noite, jantando com
minha prima, eu lhe dizia que a senhora não podia ser tão bela quanto era
amorosa. Querendo na certa favorecer uma admiração tão ardente, a sra. de
Beauséant me trouxe aqui, dizendo-me com sua graça habitual que eu a veria.
— Como, senhor — disse a mulher do banqueiro —, eu já lhe devo gratidão?
Mais um pouco e vamos ser velhos amigos.
— Embora perto de si a amizade deva ser um sentimento pouco vulgar —
disse Rastignac —, não quero nunca ser seu amigo.
Essas tolices estereotipadas para uso dos iniciantes sempre parecem fascinantes
às mulheres, e só são pobres se lidas a frio. O gesto, o tom, o olhar de um rapaz
lhes dão valores incalculáveis. A sra. de Nucingen achou Rastignac um encanto.
Depois, como todas as mulheres, não podendo dizer nada sobre questões tão
vigorosamente formuladas como a do estudante, respondeu a outra coisa.
— Sim, minha irmã está errada pela maneira como se comporta com esse
pobre pai, que realmente foi um deus para nós. Foi preciso que o sr. de Nucingen
me ordenasse terminantemente que eu só visse meu pai de manhã para que eu
cedesse nesse ponto. Mas por muito tempo fiquei um bocado infeliz. Chorava.
Essas violências, vindas depois das brutalidades do casamento, foram uma das
razões que mais perturbaram minha vida conjugal. Sou, sem dúvida, a mulher de
Paris mais feliz aos olhos da sociedade, na realidade a mais infeliz. Vai me achar
louca por lhe falar assim. Mas conhece meu pai e, por essa razão, não me pode
ser um estranho.
— Jamais encontrará alguém — disse-lhe Eugène — que seja motivado por
um desejo mais profundo de lhe pertencer. O que todas vocês procuram? A
felicidade — ele recomeçou com uma voz que ia à alma. — Pois bem, se, para
uma mulher, a felicidade é ser amada, adorada, ter um amigo a quem possa
confiar seus desejos, suas fantasias, suas tristezas, suas alegrias; mostrar-se na
nudez de sua alma, com seus lindos defeitos e suas belas qualidades, sem temer
ser traída; creia-me, esse coração devotado, sempre ardente, só pode se encontrar
num homem jovem, cheio de ilusões, capaz de morrer a um só de seus sinais,
que ainda não sabe nada do mundo e não quer saber nada, porque a senhora
passa a ser o mundo para ele. Eu, veja, e vai rir de minha ingenuidade, chego do
fundo de uma província, inteiramente novo, só tendo conhecido belas almas, e
contava permanecer sem amor. Aconteceu-me ver minha prima, que me pôs
perto demais de seu coração; ela me fez adivinhar os mil tesouros da paixão;
sou, como Querubim, o amante de todas as mulheres, esperando que possa me
dedicar a alguma delas. Ao vê-la, quando entrei, senti-me transportado até a
senhora como por uma corrente. Já tinha pensado tanto em si! Mas não
imaginava que fosse tão bela como é na realidade. A sra. de Beauséant me
mandou não olhá-la tanto. Ela não sabe o que há de atraente em ver seus lindos
lábios vermelhos, sua pele branca, seus olhos tão suaves. Também estou lhe
dizendo loucuras, mas deixe-me dizê-las.
Nada agrada mais às mulheres do que ouvir essas doces palavras serem
proferidas. A devota mais severa as escuta, mesmo quando não deve responder.
Depois de ter assim começado, Rastignac desfiou seu rosário com uma voz
graciosamente surda; e a sra. de Nucingen encorajava Eugène com sorrisos,
olhando de vez em quando para De Marsay, que não saía do camarote da
princesa Galathionne. Rastignac ficou com a sra. de Nucingen até o momento
em que seu marido foi buscá-la para partirem.
— Senhora — disse-lhe Eugène —, terei o prazer de ir vê-la antes do baile da
duquesa de Carigliano.
— Chá que a senhorra se gompromete a recepê-lo — disse o barão, gordo
alsaciano cuja cara redonda anunciava uma perigosa sagacidade —, tenha
zerteza que zerá bem-findo!
“Meus negócios estão indo bem, pois ela não se intimidou ao me ouvir lhe
dizer: ‘Gostará de mim?’. Meu animal já está com a brida, agora é pular em cima
e governá-lo”, pensou Eugène indo cumprimentar a sra. de Beauséant, que se
levantava e se retirava com D’Ajuda. O pobre estudante não sabia que a
baronesa era distraída e esperava de De Marsay uma dessas cartas decisivas que
dilaceram a alma. Muito feliz com seu falso triunfo, Eugène acompanhou a
viscondessa até o peristilo, onde todos esperam seus carros.
— Seu primo já não parece o mesmo — disse o português rindo para a
viscondessa quando Eugène os deixou. — Vai explodir o banco. É ágil como
uma enguia, e creio que vai longe. Só você poderia ter-lhe escolhido a dedo uma
mulher no momento em que é preciso consolá-la.
— Mas — disse a sra. de Beauséant — é preciso saber se ela ainda ama aquele
que a abandona.
O estudante voltou a pé do Théâtre-Italien até a Rue Neuve-Sainte-Geneviève,
fazendo os mais doces projetos. Reparara muito bem na atenção com que a sra.
de Restaud o examinara, fosse no camarote da viscondessa, fosse no da sra. de
Nucingen, e presumiu que a porta da condessa não lhe ficaria mais fechada.
Assim, já quatro notáveis relações, pois contava agradar à esposa do marechal,
iam ser conquistadas no coração da alta sociedade parisiense. Sem explicar
demais os meios, adivinhava de antemão que, no jogo complicado dos interesses
desse mundo, devia se agarrar a uma engrenagem para se colocar no alto da
máquina, e sentia a força de travar a roda. “Se a sra. de Nucingen se interessar
por mim, vou lhe ensinar a governar seu marido. Esse marido faz negócios de
ouro, poderá me ajudar a amealhar de uma só vez uma fortuna.” Não pensava
isso cruamente, ainda não era político o suficiente para avaliar uma situação,
apreciá-la e calculá-la; essas ideias pairavam no horizonte na forma de nuvens
ligeiras, e embora não tivessem a dureza das de Vautrin, se fossem submetidas à
prova da consciência, não teriam resultado em nada de muito puro. Os homens
chegam, por uma série de transações do gênero, a essa moral relaxada professada
pela época atual, em que é mais raro que nunca encontrarmos esses homens
retangulares, essas belas vontades que jamais se dobram ao mal, para quem o
menor desvio da linha reta parece um crime: magníficas imagens da probidade
que nos valeram duas obras-primas, o Alceste de Molière e, mais recentemente,
Jenny Deans e seu pai, na obra de Walter Scott. 39 Talvez a obra oposta, a pintura
das sinuosidades em que um homem mundano, um ambicioso faz rolar sua
consciência, tentando caminhar ao lado do mal, a fim de chegar a seu objetivo
mantendo as aparências, não seria menos bonita nem menos dramática. Ao
chegar à porta da pensão, Rastignac estava apaixonado pela sra. de Nucingen,
que lhe parecera esbelta, fina como uma andorinha. A inebriante doçura de seus
olhos, o tecido delicado e sedoso de sua pele sob a qual ele imaginara ver correr
o sangue, o som encantador de sua voz, seus cabelos louros, ele se lembrava de
tudo; e talvez a caminhada, pondo seu sangue em movimento, ajudasse a essa
fascinação. O estudante bateu rudemente à porta do pai Goriot.
— Meu vizinho — disse —, vi a sra. Delphine.
— Onde?
— No Italiens.
— Ela se divertia bastante? Mas entre! — E o homenzinho, que se levantara de
camisa, abriu a porta e voltou a se deitar depressa. — Então me fale dela —
pediu.
Eugène, que entrava pela primeira vez no quarto do pai Goriot, não controlou
um gesto de perplexidade ao ver o tugúrio onde vivia o pai, depois de ter
admirado a toalete da filha. A janela não tinha cortinas; o papel colado nas
paredes soltava-se em vários lugares por causa da umidade e enrugava-se
deixando aparecer o gesso amarelado pela fumaça. O homem deitava-se sobre
uma cama ordinária, tinha apenas um cobertor fino e uma coberta acolchoada
feita com os bons retalhos dos velhos vestidos da sra. Vauquer. O chão
ladrilhado era úmido e cheio de pó. Defronte da janela via-se uma dessas velhas
cômodas de pau-rosa, bojudas, que têm puxadores de cobre torcido na forma de
sarmentos decorados com folhas ou flores; um velho móvel com tampo de
madeira sobre o qual havia um jarro de água dentro de uma bacia e todos os
utensílios necessários para fazer a barba. Num canto, os sapatos; na cabeceira da
cama, uma mesinha sem porta nem mármore; no canto da lareira, onde não havia
vestígio de fogo, achava-se a mesa quadrada, em nogueira, cujo tampo servira ao
pai Goriot para deformar sua tigela de vermeil. Uma escrivaninha ordinária
sobre a qual estava o chapéu do bom homem, uma poltrona escura de palha e
duas cadeiras completavam essa mobília miserável. A haste do cortinado, presa
no teto por um trapo, sustentava uma faixa de tecido vagabundo xadrez
vermelho e branco. O sótão do mais pobre moço de recados não era, com
certeza, tão mal mobiliado como o quarto do pai Goriot na pensão da sra.
Vauquer. O aspecto daquele quarto dava frio e apertava o coração, parecia a
mais triste cela de uma prisão. Ainda bem que Goriot não viu a expressão que se
estampou na fisionomia de Eugène quando este pousou a vela na mesa de
cabeceira. O homenzinho se virou para seu lado, continuando coberto até o
queixo.
— Pois então, quem prefere, a sra. de Restaud ou a sra. de Nucingen?
— Prefiro a sra. Delphine — respondeu o estudante — porque ela gosta mais
do senhor.
Diante dessas palavras ditas calorosamente, o bom homem tirou o braço da
cama e apertou a mão de Eugène.
— Obrigado, obrigado — respondeu o velho comovido. — Então o que lhe
disse de mim?
O estudante repetiu as palavras da baronesa, embelezando-as, e o velho o
ouviu como se ouvisse a palavra de Deus.
— Caro menino! É, é, ela gosta muito de mim. Mas não acredite no que lhe
disse de Anastasie. As duas irmãs têm ciúmes uma da outra, sabe?, é mais uma
prova da ternura delas. A sra. de Restaud também gosta muito de mim. Eu sei.
Um pai é com seus filhos como Deus é conosco, vai até o fundo dos corações, e
julga as intenções. As duas são igualmente amorosas. Oh! Se eu tivesse tido
bons genros, seria muito feliz. Com certeza não há felicidade completa neste
mundo. Se tivesse vivido com elas! Mas só de ouvir suas vozes, saber que estão
ali, vê-las andar, sair, como quando moravam comigo, isso faria meu coração dar
cambalhotas. Estavam bem vestidas?
— Estavam — disse Eugène. — Mas, sr. Goriot, como, tendo filhas tão
ricamente instaladas como estão as suas, pode ficar num pardieiro como este?
— De que me adiantaria estar em lugar melhor, palavra de honra? — disse
com ar aparentemente despreocupado. — Não posso lhe explicar essas coisas;
não sei dizer corretamente duas palavras seguidas. Tudo está aqui — acrescentou
batendo no coração. — Minha vida, a minha, está em minhas duas filhas. Se elas
se divertem, se estão felizes, elegantemente vestidas, se caminham em cima de
tapetes, o que importa com que tecido estou vestido, e como é o lugar onde me
deito? Não sinto frio se elas estão no calor, nunca me entedio se elas riem. Só
tenho as tristezas que são as delas. Quando for pai, quando disser para si mesmo,
ouvindo seus filhos balbuciarem: “Saíram de mim!”, quando sentir essas
criaturinhas ligadas a cada gota de seu sangue, do qual elas foram a fina flor,
pois é isso!, aí se sentirá ligado à pele delas, e acreditará estar sendo movido
pelos passos delas! A voz das duas me responde em qualquer canto. Um olhar
delas, quando é triste, me paralisa o sangue. Um dia saberá que somos muito
mais felizes com a felicidade dos filhos que com a nossa própria. Não consigo
lhe explicar isso: são movimentos interiores que espalham o contentamento por
todo lado. Enfim, eu vivo três vezes. Quer que lhe diga uma coisa curiosa? Pois
bem! Quando fui pai, compreendi Deus. Ele está inteiro em toda parte, já que a
criação saiu dele. Sou assim com minhas filhas, senhor. Só que gosto mais de
minhas filhas do que Deus gosta do mundo, porque o mundo não é tão belo
como Deus, e minhas filhas são mais belas que eu. Estão tão ligadas à minha
alma que eu tinha a intuição de que o senhor as veria esta noite. Meu Deus! Um
homem que tornasse minha pequena Delphine tão feliz como uma mulher é
quando é bem-amada! Pois eu lhe engraxaria as botas, faria as compras para ele.
Soube por sua camareira que aquele pequeno sr. de Marsay é um desalmado.
Tive vontade de lhe torcer o pescoço. Não amar uma joia de mulher, uma voz de
rouxinol, e bem-feita como um manequim! O que foi que ela enxergou para se
casar com aquele alsaciano casca-grossa? As duas precisavam de jovens bonitos
bem amáveis. Em suma, seguiram o próprio capricho.
O pai Goriot era sublime. Nunca Eugène pudera vê-lo iluminado com os fogos
de sua paixão paterna. Uma coisa digna de observação é o poder de infusão que
os sentimentos possuem. Por mais grosseira que seja uma criatura, assim que
exprime uma afeição forte e verdadeira, exala um fluido especial que modifica a
fisionomia, anima o gesto, colore a voz. Volta e meia o ser mais estúpido
alcança, sob o esforço da paixão, a mais alta eloquência na ideia, se não for na
linguagem, e parece mover-se numa esfera luminosa. Naquele momento, havia
na voz e no gesto do bom homem a força comunicativa que assinala o grande
ator. Mas nossos belos sentimentos não são as poesias da vontade?
— Pois é, talvez não fique aborrecido se souber — disse-lhe Eugène — que ela
provavelmente vai romper com esse De Marsay. Esse emperiquitado a deixou
para se ligar à princesa Galathionne. Quanto a mim, esta noite caí apaixonado
pela sra. Delphine.
— Ora, ora! — disse o pai Goriot.
— Sim. Não a desagradei. Conversamos sobre o amor durante uma hora, e
devo ir vê-la depois de amanhã, sábado.
— Ah!, como o apreciaria, meu caro, se agradasse a ela. O senhor é bom, não a
atormentaria. Se a traísse, eu lhe cortaria o pescoço, primeiro. Uma mulher não
tem dois amores, sabe? Meu Deus! Mas estou dizendo bobagens, sr. Eugène. Faz
frio aqui para o senhor. Meu Deus! Então a ouviu, o que ela lhe disse para mim?
“Nada”, pensou Eugène consigo mesmo.
— Disse-me — respondeu em voz alta — que lhe mandava um beijo de filha.
— Adeus, meu vizinho, durma bem, tenha lindos sonhos; os meus são todos
feitos com essas palavras. Que Deus o proteja em todos os seus desejos! Foi para
mim esta noite como um bom anjo, trazendo-me o ar de minha filha.
“Pobre homem”, pensou Eugène ao se deitar, “tem como tocar corações de
mármore. A filha pensou tanto nele como no sultão da Turquia.”
Desde essa conversa, o pai Goriot viu no vizinho um confidente inesperado,
um amigo. Estabelecera-se entre eles as únicas relações pelas quais aquele
velhote podia se ligar a algum outro homem. As paixões nunca fazem cálculos
falsos. O pai Goriot se via um pouco mais perto da filha Delphine, via-se mais
bem recebido por ela, se Eugène se tornasse estimado pela baronesa. Aliás,
confiara-lhe uma de suas dores. A sra. de Nucingen, a quem mil vezes por dia
desejava a felicidade, não conhecera as doçuras do amor. Sem dúvida, Eugène
era, para recorrer à sua expressão, um dos jovens mais gentis que ele jamais vira,
e parecia pressentir que lhe daria todos os prazeres de que ela fora privada. O
bom homem tomou-se, portanto, de uma amizade por seu vizinho que foi
crescendo, e sem a qual teria provavelmente sido impossível conhecer o
desfecho desta história.
Na manhã seguinte, na hora do almoço, a afetação com que o pai Goriot olhava
para Eugène, ao lado de quem se colocou, as poucas palavras que lhe disse e a
mudança de sua fisionomia, em geral parecida com uma máscara de gesso,
surpreenderam os hóspedes. Vautrin, que revia o estudante pela primeira vez
desde sua conversa, parecia querer ler em sua alma. Lembrando-se do projeto
daquele homem, Eugène, que à noite, antes de dormir, calculara o vasto campo
que se abria a seus olhares, pensou necessariamente no dote da srta. Taillefer e
não pôde se impedir de olhar para Victorine como o mais virtuoso rapaz olha
para uma rica herdeira. Por acaso, seus olhos se encontraram. A pobre moça não
deixou de achar Eugène encantador em seu novo traje. O olhar que trocaram foi
bastante significativo para que Rastignac não duvidasse ser para ela o objeto
desses desejos confusos que atingem todas as moças e que elas ligam ao
primeiro ser sedutor. Uma voz lhe gritava: “Oitocentos mil francos!”. Mas de
repente tornou a se jogar em suas lembranças da véspera, e pensou que sua
paixão simulada pela sra. de Nucingen era o antídoto de seus maus pensamentos
involuntários.
— Ontem apresentavam no Italiens O barbeiro de Sevilha , de Rossini. Eu
nunca tinha ouvido música tão deliciosa — disse. — Meu Deus! que felicidade
ter um camarote no Italiens.
O pai Goriot agarrou no voo essas palavras, como um cachorro agarra um
gesto de seu dono.
— Vocês têm a vida que pediram a Deus — disse a sra. Vauquer —, vocês,
homens, fazem tudo o que gostam.
— Como voltou? — perguntou Vautrin.
— A pé — respondeu Eugène.
— Eu — prosseguiu o tentador —, eu não gostaria de semiprazeres; gostaria
de ir lá na minha carruagem, no meu camarote, e voltar bem confortavelmente.
Tudo ou nada!, essa é a minha divisa.
— E que é boa — retrucou a sra. Vauquer.
— Talvez o senhor vá ver a sra. de Nucingen — Eugène disse baixinho a
Goriot. — Com toda certeza ela o receberá de braços abertos; quererá saber mil
pequenos detalhes a meu respeito. Soube que daria tudo no mundo para ser
recebida por minha prima, a sra. viscondessa de Beauséant. Não esqueça de lhe
dizer que a amo demais para não pensar em lhe conseguir essa satisfação.
Rastignac foi rapidamente para a Escola de Direito, queria ficar o mínimo
possível naquela odiosa casa. Perambulou durante quase o dia todo, às voltas
com aquela febre que conheceram os jovens afetados por esperanças muito
intensas. Os argumentos de Vautrin o faziam refletir na vida social, quando
encontrou seu amigo Bianchon no Jardin du Luxembourg.
— De onde tirou esse ar grave? — perguntou o estudante de medicina
pegando-lhe pelo braço para passearem defronte do palácio.
— Estou atormentado por más ideias.
— De que gênero? As ideias se curam.
— Como?
— Sucumbindo a elas.
— Você ri sem saber do que se trata. Leu Rousseau?
— Li.
— Lembra-se do trecho em que ele pergunta a seu leitor o que faria caso
pudesse enriquecer matando na China, só por sua vontade, um velho mandarim,
sem sair de Paris?
— Lembro.
— E então?
— Ora! Estou no meu trigésimo terceiro mandarim.
— Não brinque. Bem, se lhe fosse provado que a coisa é possível e que lhe
bastasse um aceno de cabeça, você o faria?
— Ele é muito velho, o mandarim? Mas, qual! Moço ou velho, paralítico ou
em forma, pensando bem... Diachos! Pois é, não.
— Você é um bom rapaz, Bianchon. Mas se amasse uma mulher a ponto de
por ela virar a alma pelo avesso, e se precisasse de dinheiro, de muito dinheiro
para sua roupa, para seu carro, para todas as suas fantasias, e então?
— Mas você me tira a razão e quer que eu raciocine.
— Pois é, Bianchon, estou louco, cure-me. Tenho duas irmãs que são anjos de
beleza, de candura, e quero que sejam felizes. Onde pegar duzentos mil francos
para o dote delas daqui a cinco anos? Há circunstâncias na vida, sabe, em que é
preciso jogar apostando alto e não gastar sua felicidade para ganhar uns vinténs.
— Mas você coloca a questão que se apresenta para qualquer pessoa no
ingresso da vida, e quer cortar o nó górdio com a espada. Para agir assim, meu
caro, é preciso ser Alexandre, do contrário se vai para os trabalhos forçados. Eu,
de meu lado, estou feliz com a vidinha que levarei na província, onde muito
simplesmente sucederei a meu pai. As afeições do homem se satisfazem no
menor círculo tão plenamente como numa imensa circunferência. Napoleão não
jantava duas vezes, e não podia ter mais amantes que as que tem um estudante de
medicina quando é residente no Capucins. Nossa felicidade, meu caro, sempre
caberá entre a planta dos pés e nosso occipital; e que custe um milhão por ano ou
cem luíses, sua percepção intrínseca é a mesma dentro de nós. Concluo pela vida
do chinês.
— Obrigado, você me fez bem, Bianchon! Sempre seremos amigos.
— Mas me diga — prosseguiu o estudante de medicina, saindo do curso de
Cuvier 40 no Jardin des Plantes —, acabo de avistar a Michonneau e o Poiret
conversando num banco com um senhor que vi durante os tumultos do ano
passado nos arredores da Câmara dos Deputados, e que me deu a impressão de
ser um homem da polícia disfarçado de honrado burguês vivendo de rendas.
Estudemos aquele casal: e lhe direi por quê. Adeus, vou responder à minha
chamada das quatro horas.
Quando Eugène voltou para a pensão, encontrou o pai Goriot esperando por
ele.
— Tome — disse o bom homem —, aqui está uma carta dela. Bela letra, hein!
Eugène quebrou o lacre da carta e leu.
Senhor, meu pai me disse que gostava de música italiana. Ficaria feliz se
quisesse me dar o prazer de aceitar um lugar em meu camarote. Teremos
sábado a Fodor e Pellegrini, portanto tenho certeza de que não me recusará.
O sr. de Nucingen une-se a mim para lhe pedir que venha jantar conosco sem
cerimônia. Se aceitar, o fará muito feliz por não ter de cumprir seu dever
conjugal me acompanhando. Não me responda, venha, e receba meus
cumprimentos.
D. DE N.
— Mostre-me — disse o homem a Eugène quando ele leu a carta. — Irá, não
é? — acrescentou depois de ter cheirado o papel. — Que cheiro bom! Os dedos
dela tocaram isso!
“Uma mulher não se joga assim em cima de um homem”, pensava o estudante.
“Quer se servir de mim para trazer De Marsay de volta. Só o despeito provoca
essas coisas.”
— Bem — disse o pai Goriot —, então, em que está pensando?
Eugène não conhecia o delírio de vaidade que assaltava certas mulheres nesses
momentos, e não sabia que, para abrir uma porta no Faubourg Saint-Germain, a
mulher de um banqueiro era capaz de todos os sacrifícios. Nessa época, a moda
começava a pôr acima de todas as mulheres aquelas que eram admitidas na
sociedade do Faubourg Saint-Germain, chamadas as damas do Petit Château, 41
entre as quais a sra. de Beauséant, sua amiga, a duquesa de Langeais, e a
duquesa de Maufrigneuse ocupavam o primeiro lugar. Só Rastignac ignorava o
furor que acometera as mulheres da Chaussée d’Antin para entrar no círculo
superior onde brilhavam as constelações de seu sexo. Mas sua desconfiança bem
que o serviu, pois lhe deu frieza, e o triste poder de impor condições em vez de
recebê-las.
— Sim, irei — respondeu.
Assim, a curiosidade o levava à casa da sra. de Nucingen, ao passo que, se essa
mulher o tivesse desprezado, é provável que tivesse sido levado pela paixão. No
entanto, não esperou sem uma espécie de impaciência o dia seguinte e a hora de
partir. Para um rapaz, existe em sua primeira aventura tantos encantos talvez
quanto os que se encontram num primeiro amor. A certeza de triunfar gera mil
felicidades que os homens não confessam, e que fazem todo o charme de certas
mulheres. O desejo nasce igualmente da dificuldade como da facilidade dos
triunfos. Todas as paixões dos homens são muito certamente excitadas ou
mantidas por uma ou outra dessas duas causas, que dividem o império amoroso.
É possível que essa divisão seja uma consequência da grande questão dos
temperamentos, que domina, diga o que se disser, a sociedade. Se os
melancólicos precisam do tônico das coqueterias, talvez as pessoas nervosas ou
sanguíneas fujam, se a resistência durar demais. Em outras palavras, a elegia é
tão essencialmente linfática como o ditirambo é biliar. 42 Fazendo sua toalete,
Eugène saboreou todas essas pequenas alegrias de que não ousam falar os
jovens, temerosos de que zombem deles, mas que titilam o amor-próprio.
Arrumava o cabelo pensando que o olhar de uma mulher bonita deslizaria sob
seus cachos pretos. Permitiu-se macaquices infantis assim como faria uma moça
se vestindo para o baile. Olhou com condescendência para sua cintura fina,
alisando a casaca. “Com certeza”, pensou, “é possível encontrar outros piores!”
Depois, desceu na hora em que todos os frequentadores da pensão estavam à
mesa e recebeu alegremente os hurras e as tolices que sua roupa elegante
suscitou. Um traço dos costumes peculiares das pensões burguesas é o assombro
que causa um traje bem cuidado. Ninguém ali veste roupa nova sem que alguém
faça um comentário.
— Poct, poct, poct, poct — fez Bianchon estalando a língua no palato, como
para estimular um cavalo.
— Jeito de duque e de par de França! — disse a sra. Vauquer.
— O cavalheiro sai em conquista? — observou a srta. Michonneau.
— Cocoricó! — gritou o pintor.
— Meus cumprimentos à senhora sua esposa — disse o empregado do museu.
— Tem uma esposa? — perguntou Poiret.
— Uma esposa com compartimentos, que boia na água, boa pele garantida,
com preços de vinte e quatro a quarenta, estampados xadrez na última moda,
podendo ser lavada, belo aspecto, metade linha, metade algodão, metade lã,
curando dor de dentes e outras doenças aprovadas pela Academia Real de
Medicina! Excelente, aliás, para as crianças! Melhor ainda contra as dores de
cabeça, as repleções e outras doenças do esôfago, dos olhos e dos ouvidos —
exclamou Vautrin com a loquacidade cômica e a pronúncia de um operador. 43
— Mas quanto é essa maravilha, os senhores me perguntarão? Dois vinténs!
Não. Absolutamente nada. É um resto das provisões compradas do Grão-
Mongol, e que todos os soberanos da Europa, inclusive o grrrrrrão-duque de
Bade, quiseram ver! Entrem, sempre em frente, e passem ao pequeno escritório.
Andem, música! Brum, lá-lá, trimm! lá-lá, bum-bum! O senhor da clarineta está
desafinando — ele prosseguiu com voz rouca —, vou bater nos seus dedos.
— Meu Deus! Como esse homem é agradável — disse a sra. Vauquer à sra.
Couture —, jamais me aborreceria com ele.
Em meio aos risos e às brincadeiras, cujo sinal foi esse discurso comicamente
proferido, Eugène conseguiu captar o olhar furtivo da srta. Taillefer, que se
inclinou para a sra. Couture, dizendo-lhe umas palavras ao ouvido.
— O cabriolé chegou — disse Sylvie.
— Mas onde ele vai jantar? — perguntou Bianchon.
— Na casa da sra. baronesa de Nucingen.
— A filha do sr. Goriot — respondeu o estudante.
Diante desse nome, os olhares se viraram para o antigo macarroneiro, que
contemplava Eugène com uma espécie de inveja.
Rastignac chegou à Rue Saint-Lazare, a uma dessas casas leves, de colunas
finas, pórticos mesquinhos, que constituem o bonito em Paris, uma verdadeira
casa de banqueiro, cheia de requintes caros, estuques, patamares de escada em
mosaico de mármore. Encontrou a sra. de Nucingen num salãozinho com
pinturas italianas cuja decoração parecia a dos cafés. A baronesa estava triste. Os
esforços que fez para esconder sua tristeza interessaram mais intensamente
Eugène na medida em que não tinham nada de fingido. Pensava em tornar uma
mulher alegre por sua presença, e a encontrava no desespero. Esse
desapontamento espicaçou seu amor-próprio.
— Tenho bem poucos direitos à sua confiança, senhora — disse depois de tê-la
alfinetado sobre sua preocupação —, mas se a incomodo conto com sua boa-fé, e
me diga francamente.
— Fique — ela disse —, eu me sentiria sozinha se fosse embora. Nucingen
janta fora, e não gostaria de me ver só, preciso de distração.
— Mas o que tem?
— O senhor é a última pessoa a quem eu diria — exclamou.
— Quero saber, senão devo ter algo a ver com esse segredo.
— Talvez! Mas não — retrucou —, são brigas conjugais que devem ser
sepultadas no fundo do coração. Eu não lhe dizia anteontem? Não sou feliz. As
correntes de ouro são as mais pesadas.
Quando uma mulher diz a um rapaz que é infeliz, se esse rapaz é inteligente,
bem-posto, se tem mil e quinhentos francos ociosos no bolso, deve pensar o que
pensava Eugène, e torna-se presunçoso.
— O que pode desejar? — ele respondeu. — É bela, amada, rica.
— Não falemos de mim — ela disse fazendo um sinistro gesto de cabeça. —
Jantaremos juntos, a sós, iremos ouvir a música mais deliciosa. Estou a seu
gosto? — continuou, levantando-se e mostrando o vestido de caxemira branca
com motivos persas, da mais alta elegância.
— Gostaria que fosse inteiramente minha — disse Eugène. — Está adorável.
— Teria uma triste propriedade — ela disse sorrindo com amargura. — Nada
aqui lhe anuncia a desgraça, e no entanto, apesar dessas aparências, estou no
desespero. Minhas tristezas me tiram o sono, vou ficar feia.
— Oh! Isso é impossível — disse o estudante. — Mas estou curioso para
conhecer esses sofrimentos que um amor dedicado não apagaria.
— Ah! Se eu os contasse, o senhor me fugiria — ela disse. — Ainda não me
ama senão por uma galanteria que é de praxe nos homens; mas, se me amasse,
cairia num desespero terrível. Está vendo que devo me calar. Por favor —
continuou —, falemos de outra coisa. Venha ver meus aposentos.
— Não, fiquemos aqui — respondeu Eugène, sentando-se numa conversadeira
à frente da lareira, ao lado da sra. de Nucingen, cuja mão ele pegou com
segurança.
Ela o deixou pegá-la e até a apoiou sobre a do rapaz com um desses gestos de
força concentrada que traem fortes emoções.
— Escute — disse-lhe Rastignac —, se sente tristezas, deve me contá-las.
Quero lhe provar que a amo por si mesma. Ou falará e me contará seus pesares
para que eu possa dissipá-los, ainda que seja preciso matar seis homens, ou sairei
para nunca mais voltar.
— Pois bem — ela exclamou, tomada por um pensamento de desespero que a
levou a bater na própria testa —, vou pô-lo à prova neste instante.
“Sim”, disse consigo mesma, “só resta esse meio.” Tocou a campainha.
— O carro do senhor está atrelado? — perguntou a seu criado de quarto.
— Está, senhora.
— Vou pegá-lo. Dê-lhe o meu e meus cavalos. Só sirva o jantar às sete horas.
Ande, venha — disse a Eugène, que pensou estar sonhando ao se ver dentro do
cupê do sr. de Nucingen, ao lado daquela mulher. — Para o Palais-Royal — ela
disse ao cocheiro —, perto do Théâtre-Français.
No caminho, pareceu agitada e negou-se a responder às mil perguntas de
Eugène, que não sabia o que pensar daquela resistência muda, compacta, obtusa.
“Num instante ela me escapa”, pensou.
Quando o carro parou, a baronesa olhou para o estudante de um jeito que
impôs silêncio a suas alucinantes palavras; pois ele se arrebatara.
— Gosta mesmo de mim? — perguntou.
— Gosto — ele respondeu escondendo a inquietação que o invadia.
— Não pensará nada de mal a meu respeito, apesar do que eu possa lhe pedir?
— Não.
— Está disposto a me obedecer?
— Cegamente.
— Foi algumas vezes jogar? — perguntou com voz trêmula.
— Nunca.
— Ah! Antes isso. Conhecerá a felicidade. Aqui está minha bolsa — ela disse.
— Mas pegue-a! Há cem francos, é tudo o que possui esta mulher tão feliz. Suba
a uma casa de jogo, não sei onde ficam, mas sei que há no Palais-Royal.
Arrisque os cem francos num jogo que se chama roleta, e perca tudo, ou traga-
me seis mil francos. Na sua volta lhe contarei minhas tristezas.
— Quero que o diabo me carregue se estou entendendo alguma coisa do que
vou fazer, mas vou obedecê-la — ele disse com uma alegria provocada por esse
pensamento: “Ela se compromete comigo, não me recusará nada”.
Eugène pega a linda bolsa, corre ao número NOVE , depois que um vendedor de
roupas lhe indicou a casa de jogo mais próxima. Sobe, deixa que peguem o seu
chapéu; mas entra e pergunta onde fica a roleta. Para espanto dos frequentadores,
o moço da sala o leva diante de uma mesa comprida. Eugène, seguido por todos
os espectadores, pergunta sem pejo onde deve pôr a aposta.
— Se puser um luís num único desses trinta e seis números, e ele sair, terá
trinta e seis luíses — diz-lhe um velho respeitável de cabelos brancos.
Eugène joga os cem francos no número de sua idade, vinte e um. Ouve-se um
grito de espanto sem que ele tenha tempo de se identificar. Ganhou sem
perceber.
— Mas retire seu dinheiro — diz-lhe o velho cavalheiro —, não se ganha duas
vezes desse jeito.
Eugène pega um rodo que o velho lhe estica, puxa para si os três mil e
seiscentos francos e, sempre sem entender nada do jogo, coloca-os sobre o
vermelho. Os jogadores o olham com inveja, vendo que continua a jogar. A roda
gira, ele ganha de novo, e a banca lhe joga novamente três mil e seiscentos
francos.
— Tem sete mil e duzentos francos seus — diz-lhe ao ouvido o velho. —
Acredite em mim, vá embora, deu vermelho oito vezes. Se for caridoso,
reconhecerá esse bom conselho aliviando a miséria de um antigo prefeito de
Napoleão que enfrenta as piores dificuldades.
Rastignac, atordoado, deixa que o homem de cabelos brancos lhe tome dez
luíses e desce com os sete mil francos, ainda sem entender nada do jogo, mas
estupefato com sua felicidade.
— Ah, essa! Para onde me levará agora? — disse mostrando os sete mil
francos à sra. de Nucingen quando a portinhola se fechou.
Delphine o apertou com um abraço alucinante e o beijou vivamente, mas sem
paixão.
— Salvou-me!
Lágrimas de alegria correram abundantes em suas faces.
— Vou lhe dizer tudo, meu amigo. Porque será meu amigo, não é? Está me
vendo rica, opulenta, nada me falta ou aparento não precisar de nada! Pois bem,
saiba que o sr. de Nucingen não me deixa dispor de um tostão: paga tudo na
casa, meus carros, meus camarotes; atribui-me para minhas toaletes uma quantia
insuficiente, reduz-me a uma miséria secreta por cálculo. Sou orgulhosa demais
para lhe implorar. Não seria eu a última das criaturas se comprasse seu dinheiro
pelo preço que ele quer me vendê-lo? Como eu, rica, com setecentos mil francos,
deixei-me espoliar? Por orgulho, por indignação. Somos tão jovens, tão
ingênuas, quando começamos a vida conjugal! A palavra com a qual eu
precisava pedir dinheiro a meu marido me dilacerava a boca; eu jamais ousava,
comia o dinheiro de minhas economias e aquele que meu pobre pai me dava;
depois, me endividei. O casamento é para mim a mais horrível decepção, não
posso lhe falar a respeito: que lhe baste saber que me jogaria pela janela se
tivesse de viver com Nucingen de outra maneira senão tendo cada um aposentos
separados. Quando foi preciso lhe declarar minhas dívidas de jovem mulher, as
joias, as fantasias (meu pobre pai tinha nos acostumado a não nos recusar nada),
sofri o martírio; mas, enfim, encontrei a coragem de lhe dizer. Não tinha uma
fortuna minha? Nucingen se enfureceu, disse-me que eu o arruinaria, horrores!
Eu gostaria de estar a trinta metros debaixo da terra. Como ele havia pegado meu
dote, pagou; mas estipulando dali em diante, para minhas despesas pessoais, uma
pensão à qual me resignei, a fim de ter paz. Desde então, quis responder ao
amor-próprio de alguém que o senhor conhece — ela disse. — Se fui enganada
por ele, serei malvista caso não faça justiça à nobreza de seu caráter. Mas, afinal,
ele me deixou, indignamente! Nunca se deve abandonar uma mulher a quem se
jogou, num dia de desespero, um monte de ouro! Sempre se deve amá-la! O
senhor, bela alma de vinte e um anos, jovem e puro, me perguntará como uma
mulher pode aceitar ouro de um homem? Meu Deus! Não é natural dividir tudo
com o ser a quem devemos nossa felicidade? Quando nos demos totalmente,
quem poderia se preocupar com uma parcela desse tudo? O dinheiro só se torna
alguma coisa quando o sentimento não existe mais. Não estamos ligados para
toda a vida? Quem de nós prevê uma separação acreditando ser bem-amada?
Vocês nos juram um amor eterno, como ter, então, interesses distintos? Não tem
ideia do que sofri hoje, quando Nucingen se recusou, terminantemente, a me dar
seis mil francos, ele que os dá todo mês à amante, uma corista do Opéra! Eu
queria me matar. As ideias mais loucas me passaram pela cabeça. Houve
momentos em que invejava a sorte de uma criada, de minha camareira. Ir
encontrar meu pai, loucura! Anastasie e eu o degolamos: meu pobre pai teria se
vendido se pudesse valer seis mil francos. Eu teria ido desesperá-lo em vão. O
senhor me salvou da vergonha e da morte, eu estava ébria de dor. Ah! senhor, eu
lhe devia essa explicação: fui bem insensatamente louca consigo. Quando me
deixou, e que o perdi de vista, queria fugir a pé… para onde? não sei. Eis a vida
de metade das mulheres de Paris: um luxo exterior, preocupações cruéis na alma.
Conheço pobres criaturas ainda mais infelizes que eu. Porém, há mulheres
obrigadas a pedir faturas falsas a seus fornecedores. Outras são forçadas a roubar
seus maridos: uns acreditam que caxemiras de cem luíses se vendem por
quinhentos francos, outros, que uma caxemira de quinhentos francos vale cem
luíses. Encontram-se pobres mulheres que fazem seus filhos jejuarem e se
metem em tramoias para ter um vestido. Eu sou pura quanto a essas odiosas
enganações. Eis minha última angústia. Se certas mulheres se vendem a seus
maridos para governá-los, eu ao menos sou livre! Poderia fazer Nucingen me
cobrir de ouro, e prefiro chorar com a cabeça encostada no peito de um homem
que eu possa estimar. Ah! Esta noite o sr. de Marsay não terá o direito de me
olhar como uma mulher a quem pagou. — Pôs o rosto entre as mãos, para não
mostrar as lágrimas a Eugène, que lhe descobriu o rosto para contemplá-la, ela
estava sublime assim. — Misturar o dinheiro com os sentimentos, não é
horrível? O senhor não poderá me amar — disse.
Essa mistura de bons sentimentos, que tornam as mulheres tão grandiosas, e
dos erros que a constituição atual da sociedade as força a cometer transtornava
Eugène, que dizia palavras meigas e de consolo ao admirar aquela linda mulher,
tão ingenuamente imprudente em seu grito de dor.
— O senhor não se servirá disso contra mim — ela disse —, prometa-me.
— Ah, senhora! Sou incapaz disso — ele disse.
Pegou-lhe a mão e a colocou sobre o peito, com um gesto cheio de gratidão e
gentileza.
— Graças a si eis-me novamente livre e alegre. Vivia oprimida por uma mão
de ferro. Agora quero viver simplesmente, não gastar nada. Vai me achar bem da
maneira como eu serei, não vai, meu amigo? Guarde isto — disse, pegando
apenas seis notas. — Tenho consciência de que lhe devo mil escudos, pois
considero que é metade para cada um.
Eugène se defendeu como uma virgem. Mas tendo a baronesa lhe dito: “Olho-o
como meu inimigo se não for meu cúmplice”, pegou o dinheiro.
— Será um capital para investir em caso de desgraça — ele lhe disse.
— Eis a expressão que eu temia — ela exclamou empalidecendo. — Se quiser
que eu seja alguma coisa para si, jure-me nunca tornar a jogar. Meu Deus! Eu,
corrompê-lo! Morreria de dor — disse.
Tinham chegado. O contraste entre aquela miséria e essa opulência atordoava o
estudante, em cujos ouvidos as sinistras palavras de Vautrin foram ecoar.
— Ponha-se aí — disse a baronesa entrando em seu quarto e mostrando uma
conversadeira perto da lareira —, vou escrever uma carta bem difícil!
Aconselhe-me.
— Não escreva — disse-lhe Eugène —, enrole as notas, ponha o endereço e
envie-as pela sua criada de quarto.
— Mas o senhor é um amor de homem — ela disse. — Ah! Eis o que é ter sido
bem-educado! Isso é Beauséant em estado puro — disse sorrindo.
“Ela é um encanto”, pensou Eugène, que se afeiçoava cada vez mais. Olhou
para aquele quarto onde transpirava a voluptuosa elegância de uma rica cortesã.
— Agrada-lhe? — ela disse tocando a campainha para a camareira. —
Thérèse, leve isso, pessoalmente, ao sr. de Marsay, e entregue a ele mesmo. Se
não o encontrar, traga-me a carta de volta.
Thérèse não saiu sem dar uma olhada maliciosa para Eugène. O jantar estava
servido. Rastignac deu o braço à sra. de Nucingen, que o levou para uma
deliciosa sala de jantar, onde encontrou o luxo de mesa que admirara na casa da
prima.
— Nos dias de Italiens — ela disse —, virá jantar comigo e me acompanhará.
— Eu me acostumaria a essa doce vida se ela tivesse de durar; mas sou um
pobre estudante que tem sua fortuna para fazer.
— Ela se fará — ela disse rindo. — Está vendo, tudo se arranja: eu não
esperava ser tão feliz.
Está na natureza das mulheres provar o impossível pelo possível e destruir os
fatos por pressentimentos. Quando a sra. de Nucingen e Rastignac entraram em
seu camarote no Bouffons, ela exibiu um ar de contentamento que a tornava tão
bela, que todos se permitiram essas caluniazinhas contra as quais as mulheres
não têm defesa, e que costumam fazer com que se acredite em desordens
inventadas à vontade. Quando se conhece Paris, não se acredita em nada do que
ali se diz, e não se diz nada do que ali se faz. Eugène pegou a mão da baronesa e
os dois se falaram por pressões mais ou menos intensas, comunicando-se as
sensações que lhes dava a música. Para eles, aquela noite foi inebriante. Saíram
juntos, e a sra. de Nucingen quis acompanhar Eugène até a Pont-Neuf, negando-
lhe, durante todo o caminho, um dos beijos que lhe prodigalizara tão
calorosamente no Palais-Royal. Eugène lhe recriminou essa inconsequência.
— À tarde era o reconhecimento por uma dedicação inesperada — ela
respondeu —, agora seria uma promessa.
— E não quer me fazer nenhuma, ingrata.
Ele se zangou. Fazendo um desses gestos de impaciência que maravilham um
amante, ela lhe deu a mão para beijar, que ele pegou com uma má vontade que a
encantou.
— Até segunda-feira, no baile — ela disse.
E indo embora a pé, sob um belo luar, Eugène caiu em sérias reflexões. Estava
ao mesmo tempo feliz e descontente: feliz com uma aventura cujo desfecho
provável lhe dava uma das mais lindas e mais elegantes mulheres de Paris,
objeto de seus desejos; descontente ao ver derrubados seus projetos de fortuna; e
foi então que sentiu a realidade dos pensamentos indecisos aos quais se entregara
na antevéspera. O insucesso sempre nos revela a força de nossas pretensões.
Quanto mais Eugène desfrutava da vida parisiense, menos queria continuar a ser
obscuro e pobre. Amarrotava sua nota de mil francos dentro do bolso, fazendo
mil raciocínios capciosos para se apropriar dela. Finalmente chegou à Rue
Neuve-Sainte-Geneviève, e quando estava no alto da escada viu luz. O pai
Goriot deixara sua porta aberta e a vela acesa, a fim de que o estudante não
esquecesse de lhe contar sua filha , segundo sua expressão. Eugène não lhe
escondeu nada.
— Mas — exclamou o pai Goriot num violento desespero de ciúme — elas
acreditam que estou arruinado: ainda tenho mil e trezentas libras de renda! Meu
Deus! A pobrezinha, por que não vinha aqui! Eu teria vendido meus títulos,
teríamos tirado do capital, e o resto eu teria transformado em renda vitalícia. Por
que não veio me contar que estava em apuros, meu bom vizinho? Como teve a
coragem de ir arriscar no jogo os pobres cem franquinhos dela? É de partir a
alma. É assim que são os genros! Oh! Se eu os pegasse, apertaria o pescoço
deles. Meu Deus! Chorar, ela chorou?
— A cabeça sobre meu colete — disse Eugène.
— Oh! Dê-me seu colete — disse o pai Goriot. — Como! Aqui houve lágrimas
de minha filha, de minha querida Delphine, que nunca chorava quando era
pequena! Oh! Comprarei outro para o senhor, não o use mais, deixe-o comigo.
Ela deve, segundo seu contrato, usufruir de seus bens. Ah! Vou encontrar
Derville, um advogado, já amanhã. Vou exigir o investimento de sua fortuna.
Conheço as leis, sou uma velha raposa, vou recuperar meus dentes.
— Tome, pai, aqui estão mil francos que ela quis me dar de nosso ganho.
Guarde-os, dentro do colete.
Goriot olhou para Eugène, estendeu-lhe a mão para pegar a dele, na qual
deixou cair uma lágrima.
— O senhor terá sucesso na vida — disse-lhe o velho. — Deus é justo, sabe?
Eu cá me conheço em probidade, e posso lhe garantir que há bem poucos
homens que se parecem consigo. Portanto, quer ser também meu querido filho?
Vá, durma. Pode dormir, ainda não é pai. Ela chorou, fico sabendo disso, eu, que
estava ali tranquilamente comendo como um imbecil, enquanto ela sofria; eu, eu
que venderia o Pai, o Filho e o Espírito Santo para lhes evitar uma lágrima, às
duas!
“Por minha fé!”, pensou Eugène ao se deitar, “creio que serei homem honesto
toda a minha vida. Há prazer em seguir as inspirações de sua consciência.”
Talvez apenas os que acreditam em Deus é que fazem o bem em segredo, e
Eugène acreditava em Deus. No dia seguinte, na hora do baile, Rastignac foi à
casa da sra. de Beauséant, que o levou para apresentá-lo à duquesa de
Carigliano. Recebeu a mais graciosa acolhida da esposa do marechal, em cuja
casa encontrou a sra. de Nucingen. Delphine se enfeitara com a intenção de
agradar a todos para melhor agradar a Eugène, de quem esperava
impacientemente um olhar, pensando esconder sua impaciência. Para quem sabe
adivinhar as emoções de uma mulher, esse momento é repleto de delícias. Quem
não se deliciou várias vezes em fazer esperarem sua opinião, em disfarçar com
faceirice seu prazer, em buscar confissões na inquietação causada, em desfrutar
dos temores que serão dissipados por um sorriso? Durante aquela festa, o
estudante avaliou de repente o alcance de sua situação, e compreendeu que tinha
uma bela posição na sociedade sendo primo declarado da sra. de Beauséant. A
conquista da sra. baronesa de Nucingen, que já lhe era atribuída, o punha tão
bem em relevo, que todos os jovens lhe lançavam olhares de inveja; flagrando
alguns, provou os primeiros prazeres da fatuidade. Passando de um salão a outro,
cruzando os grupos, ouviu elogiarem sua felicidade. Todas as mulheres lhe
previam sucessos. Delphine, temendo perdê-lo, prometeu não lhe recusar à noite
o beijo que tanto se impedira lhe dar na antevéspera. Nesse baile, Rastignac
recebeu vários convites. Foi apresentado por sua prima a algumas mulheres que,
todas, tinham pretensões à elegância, e cujas casas passavam por ser agradáveis;
viu-se lançado na maior e mais bela sociedade de Paris. Portanto, essa noite teve
para ele os encantos de uma brilhante estreia, e ele iria recordá-la até em seus
velhos dias, como uma moça se lembra do baile em que teve triunfos. No dia
seguinte, quando, almoçando, contou seus êxitos ao pai Goriot diante dos
pensionistas, Vautrin começou a sorrir de um jeito diabólico.
— E acredita — exclamou esse lógico feroz — que um rapaz na moda pode
morar na Rue Neuve-Sainte-Geneviève, na Casa Vauquer? Pensão infinitamente
respeitável em todos os aspectos, certamente, mas que é tudo menos fashionable
. É opulenta, é bela em sua abundância, é orgulhosa de ser o solar momentâneo
de um Rastignac; mas, afinal, fica na Rue Neuve-Sainte-Geneviève, e ignora o
luxo, porque é puramente patriarcalorama . Meu jovem amigo — Vautrin
prosseguiu com um ar paternalmente debochado —, se quiser ter boa estampa
em Paris, precisa de três cavalos e de um tílburi para a manhã, um cupê para a
noite, no total nove mil francos para o veículo. Seria indigno de seu destino se
não gastasse três mil francos com seu alfaiate, seiscentos francos com seu
perfumista, cem escudos com o boteiro, cem escudos com o chapeleiro. Quanto
à sua lavadeira, lhe custará mil francos. Os jovens na moda não podem deixar de
ser muito bons no quesito da roupa de baixo: não é o que mais frequentemente se
examina neles? O amor e a igreja querem belas toalhas em seus altares. Estamos
em catorze mil. Não lhe falo do que perderá no jogo, em apostas, em presentes; é
impossível não contar com dois mil francos de dinheiro miúdo. Levei essa vida,
conheço o que é preciso desembolsar. Acrescente a essas primeiras necessidades
trezentos luíses para a comida, mil francos para um teto. Vamos lá, meu filho, já
estamos nos vinte e cinco milzinhos por ano nos ombros, ou então caímos na
lama, deixamos que zombem de nós, e somos privados de nosso futuro, de
nossos sucessos, de nossas amantes! Esqueço o criado de quarto e o moço de
recados! É Christophe que levará suas cartas de amor? Vai escrevê-las no papel
que usa? Seria suicidar-se. Acredite num velho cheio de experiência! —
prosseguiu fazendo um rinforzando em sua voz de baixo. — Ou seja deportado
para uma virtuosa mansarda e case-se ali com o trabalho, ou pegue outro
caminho.
E Vautrin piscou o olho, de soslaio, para a srta. Taillefer, de modo a lembrar e
resumir nesse olhar os argumentos sedutores que semeara no coração do
estudante para corrompê-lo. Vários dias se passaram durante os quais Rastignac
levou a vida mais dissipada. Jantava quase todo dia com a sra. de Nucingen, que
acompanhava em sociedade. Voltava às três ou quatro horas da madrugada,
levantava-se ao meio-dia para fazer sua toalete, ia passear no bosque com
Delphine, quando estava tempo bom, prodigalizando assim seu tempo sem saber
seu preço, e aspirando todos os ensinamentos, todas as seduções do luxo com o
ardor de que é tomado o impaciente cálice de uma tamareira fêmea pelos grãos
fecundantes de seu himeneu. Apostava alto, perdia ou ganhava muito, e acabou
se habituando à vida exorbitante dos jovens de Paris. De seus primeiros ganhos,
devolveu mil e quinhentos francos à mãe e às irmãs, acompanhando a restituição
com lindos presentes. Embora tivesse anunciado querer largar a Casa Vauquer,
ainda estava lá nos últimos dias do mês de janeiro e não sabia como sair dali.
Quase todos os jovens são submetidos a uma lei aparentemente inexplicável,
mas cuja razão vem de sua própria juventude e da espécie de fúria com que se
precipitam no prazer. Ricos ou pobres, nunca têm dinheiro para as necessidades
da vida, ao passo que sempre o encontram para seus caprichos. Pródigos em tudo
o que se obtém a crédito, são avaros para tudo o que se paga no mesmo instante,
e parecem se vingar do que não têm, dissipando tudo o que podem ter. Assim,
para colocar a questão claramente, um estudante toma muito mais cuidado com
seu chapéu do que com sua casaca. A enormidade do ganho torna o alfaiate
essencialmente credor, ao passo que a modicidade da quantia faz do chapeleiro
um dos seres mais intratáveis entre aqueles com quem é obrigado a parlamentar.
Se o rapaz sentado no balcão de um teatro oferece ao binóculo das lindas
mulheres coletes assombrosos, é duvidoso que esteja calçando meias; o
vendedor de malhas é mais um desses carunchos que destroem seu bolso.
Rastignac estava nesse ponto. Sempre vazia para a sra. Vauquer, sempre cheia
para as exigências da vaidade, sua bolsa tinha reveses e êxitos lunáticos em
desacordo com os pagamentos mais naturais. A fim de sair da pensão fétida e
ignóbil onde se humilhavam periodicamente suas pretensões, não era preciso
pagar um mês à sua hospedeira e comprar móveis para seu apartamento de
dândi? Era o que continuava a ser impossível. Se, para conseguir o dinheiro
necessário ao jogo, Rastignac sabia comprar com seu joalheiro relógios e
correntes de ouro pagas muito caro com seus ganhos, e que levava à casa de
penhor, esse sombrio e discreto amigo da juventude, via-se sem imaginação e
sem audácia quando se tratava de pagar sua comida, sua moradia, ou de comprar
as ferramentas indispensáveis para a exploração da vida elegante. Uma
necessidade vulgar, dívidas contraídas pelas necessidades satisfeitas já não o
inspiravam. Como a maioria dos que conheceram essa vida incerta, esperava o
último instante para saldar empréstimos sagrados aos olhos dos burgueses, como
fazia Mirabeau, que só pagava seu pão quando se apresentava sob a forma
exasperante de uma letra de câmbio. Por essa época Rastignac perdera seu
dinheiro e se endividara. O estudante começava a entender que lhe seria
impossível continuar essa existência sem ter recursos fixos. Mas, embora
gemendo sob os prejuízos constrangedores de sua situação precária, sentia-se
incapaz de renunciar aos prazeres excessivos dessa vida, e queria continuá-la a
qualquer preço. Os acasos com que contara para sua fortuna tornavam-se
quiméricos, e os obstáculos reais cresciam. Iniciando-se nos segredos
domésticos do sr. e sra. de Nucingen, percebera que, para converter o amor em
instrumento de fortuna, teria de beber toda a vergonha e renunciar às nobres
ideias que são a absolvição dos erros da juventude. Desposara essa vida
exteriormente esplêndida, mas corroída por todas as tênias do remorso, e cujos
prazeres fugazes eram a duras penas expiados por persistentes angústias; nela se
enrolava ao fazer, como o Distraído de La Bruyère, uma cama na lama do fosso;
mas como o Distraído, até então só sujava suas roupas.
— Então matamos o mandarim? — disse-lhe um dia Bianchon, saindo da
mesa.
— Ainda não — ele respondeu —, mas está nos estertores.
O estudante de medicina tomou essa expressão como uma brincadeira, mas não
era. Eugène, que pela primeira vez depois de muito tempo jantara na pensão,
mostrou-se pensativo durante a refeição. Em vez de sair à sobremesa, ficou na
sala sentado perto da srta. Taillefer, para quem de vez em quando dava olhares
expressivos. Alguns hóspedes ainda estavam à mesa e comiam nozes, outros
andavam, continuando discussões iniciadas. Como quase todas as noites, cada
um falava segundo sua fantasia, segundo o grau de interesse que tinha pela
conversa ou segundo o maior ou menor peso que lhe causava a digestão. No
inverno, era raro que a sala de jantar ficasse inteiramente vazia antes das oito
horas, momento em que as quatro mulheres se viam sozinhas e se vingavam do
silêncio que seu sexo lhes impunha em meio àquela reunião masculina.
Impressionado com a preocupação que dominava Eugène, Vautrin permaneceu
na sala de jantar, embora de início parecesse apressado para sair, e manteve-se o
tempo todo de modo a não ser visto por Eugène, que deve ter acreditado que ele
saíra. Depois, em vez de acompanhar os pensionistas que eram os últimos a se ir,
estacionou sub-repticiamente no salão. Lera na alma do estudante e pressentia
um sintoma decisivo. Na verdade, Rastignac estava numa situação de
perplexidade que muitos jovens devem ter conhecido. Amorosa ou coquete, a
sra. de Nucingen fizera Rastignac passar por todas as angústias de uma paixão
verdadeira, exibindo-lhe os recursos da diplomacia feminina em uso em Paris.
Depois de ter se comprometido diante do público, mantendo perto de si o primo
da sra. de Beauséant, ela hesitava em lhe dar realmente os direitos de que ele
parecia usufruir. Fazia um mês que excitava tão bem os sentidos de Eugène, que
acabava atacando seu coração. Se nos primeiros momentos de sua ligação, o
estudante acreditara ser o senhor, a sra. de Nucingen se tornara a mais forte, com
a ajuda dessa manobra que em Eugène punha em marcha todos os sentimentos,
bons ou maus, dos dois ou três homens que existem num jovem de Paris. Seria,
nela, um cálculo? Não; as mulheres são sempre verdadeiras, mesmo em meio a
suas maiores falsidades, porque cedem a algum sentimento natural. Talvez
Delphine, depois de deixar o jovem ter de repente tanto domínio sobre ela, e de
ter lhe mostrado demasiada afeição, obedecesse a um sentimento de dignidade
que a fazia recuar em suas concessões ou divertir-se em suspendê-las. É tão
natural numa parisiense, no próprio instante em que a paixão a arrasta, hesitar
em sua queda, pôr à prova o coração daquele a quem vai entregar seu futuro!
Todas as esperanças da sra. de Nucingen tinham sido traídas uma primeira vez, e
sua fidelidade a um jovem egoísta acabava de ser ignorada. Podia estar
desconfiada, com muita razão. Talvez tivesse percebido nas maneiras de Eugène,
que seu rápido sucesso tornara fátuo, uma espécie de menosprezo causado pelas
bizarrices da situação de ambos. Sem dúvida desejava parecer imponente a um
homem daquela idade, e achar-se grande diante dele depois de ter sido tão
pequena diante daquele por quem fora abandonada. Não queria que Eugène a
imaginasse uma conquista fácil, justamente porque ele sabia que ela pertencera a
De Marsay. Enfim, depois de ter sofrido o degradante prazer de um verdadeiro
monstro, um libertino jovem, sentia tanta doçura em passear pelas regiões
floridas do amor que sem a menor dúvida era um encanto admirar todos os seus
aspectos, escutar longamente seu estremecimento e deixar-se por muito tempo
acariciar por brisas castas. O verdadeiro amor pagava pelo falso. Infelizmente,
esse contrassenso será frequente enquanto os homens não souberem quantas
flores ceifam na alma de uma jovem mulher os primeiros golpes da traição.
Fossem quais fossem suas razões, Delphine brincava com Rastignac e se divertia
em brincar com ele, talvez porque se soubesse amada e certa de fazer cessar as
tristezas de seu amante, segundo seu soberano bel-prazer de mulher. Por respeito
a si mesmo, Eugène não queria que seu primeiro combate terminasse com uma
derrota, e persistia em persegui-lo, como um caçador que quer a todo custo
matar uma perdiz em sua primeira festa de Saint-Hubert. Suas ansiedades, seu
amor-próprio ofendido, seus desesperos, falsos ou verdadeiros, o prendiam cada
vez mais àquela mulher. Toda Paris lhe atribuía a sra. de Nucingen, junto a quem
ele não estava mais adiantado do que no primeiro dia em que a vira. Ignorando
ainda que o coquetismo de uma mulher oferece às vezes mais benefícios que o
prazer dado por seu amor, caía em raivas tolas. Se a estação durante a qual uma
mulher disputa com o amor oferecia a Rastignac o butim de suas primícias, estas
se tornavam tão difíceis quanto eram verdes, azedinhas e deliciosas de saborear.
Às vezes, vendo-se sem um tostão, sem futuro, ele pensava, apesar da voz de sua
consciência, nas chances de fortuna cuja possibilidade um casamento com a srta.
Taillefer Vautrin lhe demonstrara. Ora, estava então num momento em que sua
miséria falava tão alto, que cedeu quase involuntariamente aos artifícios da
terrível esfinge cujos olhares costumavam fasciná-lo. Quando Poiret e a srta.
Michonneau subiram para seus quartos, Rastignac, pensando estar sozinho entre
a sra. Vauquer e a sra. Couture, que tricotava mangas de lã cochilando perto da
estufa, olhou para a srta. Taillefer de um jeito tão meigo que a fez baixar os
olhos.
— Andaria tendo desgostos, sr. Eugène? — perguntou-lhe Victorine depois de
um instante de silêncio.
— Qual homem não tem desgostos! — respondeu Rastignac. — Se nós,
jovens, tivéssemos certeza de ser amados, com uma dedicação que nos
recompensasse os sacrifícios que estamos sempre dispostos a fazer, talvez nunca
tivéssemos desgostos.
A srta. Taillefer lhe lançou, como única resposta, um olhar que não era
equívoco.
— A senhorita se sente segura de seu coração hoje; mas responderia que
jamais mudaria?
Um sorriso foi percorrer os lábios da pobre moça como um raio jorrando de
sua alma, e fez tão bem reluzir seu rosto que Eugène se assustou por ter
provocado uma explosão tão intensa de sentimento.
— Pois é! Se amanhã fosse rica e feliz, se uma imensa fortuna lhe caísse das
nuvens, ainda amaria o rapaz pobre que lhe teria agradado durante seus dias de
infortúnio?
Ela fez um lindo aceno de cabeça.
— Um rapaz bem infeliz?
Novo aceno.
— Mas que bobagens está dizendo aí? — exclamou a sra. Vauquer.
— Deixe-nos — respondeu Eugène —, nós nos entendemos.
— Então estaria havendo promessa de casamento entre o sr. cavalheiro Eugène
de Rastignac e a srta. Victorine Taillefer? — disse Vautrin com sua voz grossa,
mostrando-se de repente na porta da sala de jantar.
— Ah!, o senhor nos meteu medo — disseram ao mesmo tempo a sra. Couture
e a sra. Vauquer.
— Eu poderia fazer escolha pior — respondeu rindo Eugène, em quem a voz
de Vautrin causou a mais cruel emoção que ele jamais sentiu.
— Nada de brincadeiras de mau gosto, senhores! — disse a sra. Couture. —
Minha filha, vamos subir para nosso quarto.
A sra. Vauquer seguiu as duas pensionistas, a fim de economizar sua vela e sua
lareira, passando a noite com elas. Eugène se viu sozinho e frente a frente com
Vautrin.
— Eu tinha certeza que conseguiria — disse-lhe o homem, mantendo um
imperturbável sangue-frio. — Mas, ouça! Tenho delicadezas, como qualquer
outro. Não se decida neste momento, não está nos seus melhores dias. Tem
dívidas. Não quero que seja a paixão, o desespero, mas a razão que o determine a
vir até mim. Talvez precise de alguns milhares de escudos. Tome, deseja-os?
Esse demônio pegou no bolso uma carteira e tirou três notas, que fez cintilarem
diante dos olhos do estudante. Eugène estava na mais cruel situação. Devia ao
marquês d’Ajuda e ao conde de Trailles cem luíses apostados sob palavra. Não
os tinha, e não ousava passar a noite na casa da sra. de Restaud, onde era
esperado. Era uma dessas reuniões sem cerimônia, em que se comem docinhos,
em que se bebe chá, mas em que se podem perder seis mil francos no uíste.
— Senhor — disse-lhe Eugène, escondendo dificilmente um tremor convulso
—, depois do que me contou deve entender que para mim é impossível ter
obrigações consigo.
— Pois é, teria me dado pena falar de outra maneira — retrucou o tentador. —
Você é um belo rapaz, delicado, altivo como um leão e meigo como uma moça.
Seria uma bela presa para o diabo. Gosto dessa qualidade dos jovens. Mais duas
ou três reflexões sobre a alta política e verá o mundo como ele é. Representando
aí algumas pequenas cenas de virtude, o homem superior satisfaz todas as suas
fantasias sob grandes aplausos dos parvos da plateia. Dentro de poucos dias você
será nosso. Ah! se quisesse se tornar meu aluno eu o faria conseguir tudo. Não
formularia um desejo que não fosse satisfeito no mesmo instante, pouco importa
o que pudesse desejar: honra, fortuna, mulheres. Toda a civilização lhe seria
reduzida a uma ambrosia. Seria nosso filho mimado, nosso Benjamim,
exterminaríamos a todos por você, com prazer. Tudo o que lhe criasse obstáculo
seria eliminado. Se mantém escrúpulos, então é porque me toma por um
celerado? Pois bem, o sr. de Turenne, homem que tinha tanta probidade como
você ainda pensa ter, fazia, sem se imaginar comprometido, uns negocinhos com
bandidos. 44 Não quer ser agradecido a mim, hein? Não seja por isso —
continuou Vautrin deixando escapar um sorriso. — Pegue esses trapos e me
ponha aí em cima — disse tirando um selo —, aí, na transversal: Aceito pela
soma de três mil e quinhentos francos, pagável em um ano . E date! O juro é
bastante alto para lhe tirar qualquer escrúpulo; pode me chamar de judeu e se ver
livre de qualquer declaração de dívida. Permito-lhe desprezar-me ainda hoje,
certo de que mais tarde gostará de mim. Encontrará em mim esses imensos
abismos, esses vastos sentimentos concentrados que os estúpidos chamam
vícios; mas nunca me achará covarde nem ingrato. Enfim, não sou um peão nem
um bispo, mas uma torre, meu filho.
— Que homem é o senhor, afinal? — exclamou Eugène. — Foi criado para me
atormentar.
— Que nada, sou um bom homem que quer se sujar para que você esteja
protegido da lama até o resto de seus dias. Pergunta-se por que essa dedicação?
Pois bem, vou lhe dizer bem baixinho, um dia, no seu canal auditivo. Primeiro o
surpreendi mostrando-lhe o carrilhão da ordem social e o jogo da máquina; mas
o seu primeiro pavor passará como o do recruta no campo de batalha, e se
acostumará com a ideia de considerar os homens soldados decididos a morrer a
serviço dos que se autoconsagram reis. Os tempos mudaram muito. Outrora se
dizia a um pistoleiro: “Aqui estão cem escudos, mate-me o senhor fulano de tal”,
e se jantava tranquilamente depois de ter posto um homem na cova por tudo e
por nada. Hoje proponho lhe dar uma bela fortuna contra um aceno de cabeça
que não lhe compromete em nada, e você hesita. O século é muito mole.
Eugène assumiu a promissória e a trocou pelas notas de dinheiro.
— Muito bem, vejamos, falemos com a razão — continuou Vautrin. — Quero
partir daqui a alguns meses para a América, ir plantar meu fumo. Vou lhe enviar
os charutos da amizade. Se ficar rico, o ajudarei. Se não tiver filhos (caso
provável, não tenho a menor curiosidade de ser replantado aqui a partir de uma
muda), pois bem, vou lhe legar minha fortuna. Não é isso ser amigo de um
homem? Mas gosto de você. Tenho paixão de me dedicar a um outro. Já fiz isso.
Veja só, meu pequeno, vivo numa esfera mais elevada que a dos outros homens.
Considero as ações como meios, e vejo apenas o objetivo. O que é um homem
para mim? Isto! — disse estalando a unha do polegar num de seus dentes. Um
homem é tudo ou nada. É menos que nada quando se chama Poiret; podemos
esmagá-lo como um percevejo; é achatado e fede. Mas um homem é um deus
quando parece com você: não é mais uma máquina coberta de pele; e sim um
teatro no qual se excitam os mais belos sentimentos, e eu só vivo pelos
sentimentos. Um sentimento não é o mundo em um pensamento? Veja o pai
Goriot: suas duas filhas são para ele todo o universo, são o fio com que ele se
dirige na criação. Pois bem, para mim, que cavei bem a vida, só existe um
sentimento real, uma amizade de homem a homem. Pierre e Jaffier, é essa a
minha paixão. Sei de cor A salvação de Veneza . 45 Já viu pessoas destemidas o
suficiente para, quando um companheiro diz: “Vamos enterrar um corpo!”, irem
sem dar um pio nem aborrecê-lo com lição de moral? Mas você, você é um
homem superior, a gente pode lhe dizer tudo, você sabe compreender tudo. Não
chafurdará muito tempo nos pântanos onde vivem esses sapos que nos cercam
aqui. Pois então, estamos combinados. Você se casará. Puxemos cada um nossas
espadas! A minha é de ferro e não amolece nunca, rá, rá!
Vautrin saiu sem querer ouvir a resposta negativa do estudante, a fim de deixá-
lo à vontade. Parecia conhecer o segredo dessas pequenas resistências, desses
combates que os homens se atribuem, para si mesmos, e que lhes servem para
justificar suas ações repreensíveis.
“Que ele faça como quiser, com certeza não me casarei com a srta. Taillefer!”,
pensou Eugène.
Depois de ter sofrido o mal-estar de uma febre interior causado pela ideia de
um pacto feito com aquele homem por quem tinha horror, mas que a seu ver
crescia pelo próprio cinismo de suas ideias e pela audácia com que estreitava a
sociedade, Rastignac se vestiu, pediu um carro e foi à casa da sra. de Restaud.
Fazia alguns dias que essa mulher redobrara as atenções com um rapaz cujos
passos eram um progresso rumo ao cerne da alta sociedade, e cuja influência, um
dia, parecia se tornar temível. Ele pagou ao sr. de Trailles e ao sr. d’Ajuda, jogou
uíste uma parte da noite, e ganhou de novo o que tinha perdido. Supersticioso
como a maioria dos homens cujo caminho está para ser feito e que são mais ou
menos fatalistas, quis ver em sua felicidade uma recompensa do céu por sua
perseverança em permanecer no bom caminho. Na manhã seguinte, apressou-se
em perguntar a Vautrin se ainda estava com sua letra de câmbio. Diante de uma
resposta afirmativa, devolveu-lhe os três mil francos, manifestando um prazer
bastante natural.
— Vai tudo bem — disse-lhe Vautrin.
— Mas não sou seu cúmplice — disse Eugène.
— Eu sei, eu sei — respondeu Vautrin, interrompendo-o. — Continua a fazer
criancices. Detém-se nas aparências sem importância.
Dois dias depois, Poiret e a srta. Michonneau estavam sentados num banco, ao
sol, numa alameda solitária do Jardin des Plantes, e conversavam com o senhor
que parecia, com razão, suspeito para o estudante de medicina.
— Senhorita — dizia o sr. Gondureau —, não vejo de onde nascem seus
escrúpulos. Sua excelência o senhor ministro da Polícia Geral do reino…
— Ah! Sua excelência o senhor ministro da Polícia Geral do reino… — repetiu
Poiret.
— Sim, sua excelência cuida desse caso — disse Gondureau.
A quem não parecerá inverossímil que Poiret, antigo funcionário, talvez
homem de virtudes burguesas, embora destituído de ideias, continuasse a ouvir o
pretenso rentista da Rue de Buffon, no momento em que pronunciava a palavra
“polícia”, deixando assim ver a fisionomia de um agente da Rue de Jérusalem 46
atrás de sua máscara de homem honesto? No entanto, nada era mais natural.
Todos entenderão melhor a espécie peculiar a que pertencia Poiret na grande
família dos parvos, depois de uma ponderação já feita por certos observadores,
mas que até o presente não foi publicada. Ele é de uma nação plumígera,
comprimida no orçamento entre o primeiro grau de latitude que comporta os
salários de mil e duzentos francos — uma espécie de Groenlândia administrativa
— e o terceiro grau, onde começam os salários um pouco mais quentes, de três a
seis mil francos, região temperada, onde se aclimata a gratificação, onde ela
floresce apesar das dificuldades da cultura. Um dos traços característicos que
melhor trai a enfermiça estreiteza dessa raça subalterna é uma espécie de
respeito involuntário, mecânico, instintivo, por esse grande lama de todo
ministério, conhecido do funcionário por uma assinatura ilegível e pelo nome de
SUA EXCELÊNCIA, O SENHOR MINISTRO , cinco palavras que equivalem a Il Bondo
Cani do Califa de Bagdá 47 e que, para esse povo esmagado, representa um
poder sagrado, inapelável. Como o papa para os cristãos, o senhor ministro é
administrativamente infalível aos olhos do funcionário; o brilho que lança se
comunica a seus atos, a suas palavras, àquelas ditas em seu nome; ele tudo
acoberta com suas presepadas e legaliza as ações que ordena; seu nome de
excelência, que atesta a pureza de suas intenções e a santidade de suas vontades,
serve de passaporte para as ideias menos admissíveis. O que essa pobre gente
não faria em seu próprio interesse empenha-se em realizar assim que a expressão
“sua excelência” é proferida. As repartições têm sua obediência passiva, assim
como o exército tem a sua: sistema que abafa a consciência, aniquila um homem
e acaba, com o tempo, adaptando-o, como um parafuso ou uma porca, à máquina
governamental. Assim, o sr. Gondureau, que parecia ser especialista em homens,
distinguiu prontamente em Poiret um desses palermas burocráticos, e fez sair o
deus ex machina, a expressão talismânica de sua excelência, no momento em
que era necessário, assestando suas baterias, deslumbrando o Poiret, que lhe
parecia o macho da Michonneau, assim como a Michonneau lhe parecia a fêmea
do Poiret.
— A partir do momento em que sua excelência em pessoa, sua excelência o
senhor...! Ah, é muito diferente — disse Poiret.
— A senhora está ouvindo o cavalheiro, em cujo julgamento parece ter
confiança — prosseguiu o falso rentista, dirigindo-se à srta. Michonneau. —
Pois bem, sua excelência agora tem a mais completa certeza de que o suposto
Vautrin, alojado na Casa Vauquer, é um galé foragido da prisão de Toulon, onde
é conhecido pelo nome de Engana-a-Morte.
— Ah! Engana-a-Morte! — disse Poiret. — Ele é muito feliz, se merece esse
nome.
— Mas é claro — continuou o agente. — Esse apelido se deve à felicidade que
teve de nunca perder a vida nas façanhas extremamente audaciosas que
executou. Esse homem é perigoso, vejam bem! Tem qualidades que o tornam
extraordinário. Sua condenação é até mesmo uma coisa que lhe deu, em seu
ramo, uma honra infinita…
— Então é isso um homem de honra? — perguntou Poiret.
— À sua maneira. Aceitou assumir o crime de outro, uma falsificação
cometida por um rapaz belíssimo de quem gostava muito, um jovem italiano,
jogador inveterado, que desde então ingressou no serviço militar, onde aliás se
comportou perfeitamente bem.
— Mas, se sua excelência o ministro da Polícia tem certeza de que o sr.
Vautrin é Engana-a-Morte, por que então precisaria de mim? — perguntou a
srta. Michonneau.
— Ah, é! — disse Poiret —, se de fato o ministro, como nos deu a honra de
nos dizer, tem alguma certeza…
— Certeza não é a palavra; apenas se desconfia. Vocês vão entender a questão.
Jacques Collin, vulgo Engana-a-Morte, tem toda a confiança das três prisões de
galés que o escolheram para ser seu agente e seu banqueiro. Ganha muito em
cuidar de negócios desse tipo, que necessariamente exigem um homem de
marca.
— Ah! Ah! Entende o trocadilho, senhorita? — perguntou Poiret. — O
cavalheiro o chama de homem de marca porque ele foi marcado.
— O falso Vautrin — continuou o agente — recebe os capitais dos senhores
forçados, os investe, os guarda e os mantém à disposição dos que se evadem, ou
de suas famílias, quando eles assim dispõem por testamento, ou de suas amantes,
quando tiram dele para elas.
— De suas amantes? Quer dizer de suas mulheres? — observou Poiret.
— Não, senhor. O forçado em geral só tem esposas ilegítimas, a quem
chamamos de concubinas.
— Então todos vivem em estado de concubinagem?
— Consequentemente.
— Pois é — disse Poiret —, eis aí uns horrores que o senhor ministro não
deveria tolerar. Já que tem a honra de ver sua excelência, cabe ao senhor, que me
parece ter ideias filantrópicas, esclarecê-lo sobre a conduta imoral dessa gente,
que dá um péssimo exemplo para o resto da sociedade.
— Mas, senhor, o governo não os põe lá para oferecer um modelo de todas as
virtudes.
— É verdade. Porém, permita-me, senhor…
— Mas deixe afinal o senhor falar, meu benzinho — disse a srta. Michonneau.
— Compreenda, senhorita — prosseguiu Gondureau. — O governo pode ter
grande interesse em pôr a mão num caixa ilícito, que dizem elevar-se a um total
um bocado grande. Engana-a-Morte recebe valores consideráveis receptando não
só quantias possuídas por alguns de seus companheiros mas também as que
provêm da Sociedade dos Dez Mil…
— Dez mil ladrões! — exclamou Poiret, apavorado.
— Não, a Sociedade dos Dez Mil é uma associação de ladrões de escol, gente
que trabalha em alto nível e não se mete em negócio em que não há pelo menos
dez mil francos a ganhar. Essa sociedade se compõe de tudo o que existe de mais
distinto entre os nossos homens que vão direto para um tribunal do júri.
Conhecem o Código, e nunca se arriscam a pegar uma pena de morte quando são
apanhados. Collin é o homem de confiança deles, é o conselheiro. Com a ajuda
de seus imensos recursos, esse homem soube criar uma polícia sua, relações
muito extensas que ele envolve num mistério impenetrável. Embora há um ano o
tenhamos cercado de espiões, ainda não conseguimos enxergar claramente seu
jogo. Portanto, seu caixa e seus talentos servem constantemente para pagar o
vício, fazer reservas para o crime, e mantêm a salvo do perigo um exército de
sujeitos perigosos que estão em perpétuo estado de guerra com a sociedade.
Agarrar Engana-a-Morte e se apossar de seu banco será cortar o mal pela raiz.
Assim, essa expedição se tornou um negócio de Estado e de alta política, capaz
de honrar os que cooperarão para seu êxito. O senhor mesmo poderia voltar a ser
empregado na administração, tornar-se secretário de um delegado de polícia,
funções que não o impediriam de receber sua pensão de aposentadoria.
— Mas por que — disse a srta. Michonneau — Engana-a-Morte não vai
embora com a caixa?
— Oh! — disse o agente —, aonde ele for será seguido por um homem
encarregado de matá-lo, caso roube a prisão. Além disso, uma caixa não se
sequestra tão facilmente como se sequestra uma senhorita de boa família. Aliás,
Collin é um sujeito incapaz de fazer um lance desses, pois se acreditaria
desonrado.
— Tem razão — disse Poiret —, ele ficaria totalmente desonrado.
— Nada disso nos explica por que o senhor não vai, pura e simplesmente,
agarrá-lo — ponderou a srta. Michonneau.
— Pois bem, senhorita — vou responder… Mas — disse-lhe ao ouvido —
impeça o seu homem de me interromper ou jamais terminaremos. Esse velho aí
deve ter uma fortuna imensa para ser ouvido. Engana-a-Morte, vindo aqui, vestiu
a pele de um homem honesto, fez-se bom burguês de Paris, foi morar numa
pensão sem aparência; é esperto, convenhamos! Jamais o pegarão desprevenido.
Portanto, o sr. Vautrin é um homem considerado, que faz negócios
consideráveis.
— Naturalmente — disse Poiret para si mesmo.
— Se nos enganássemos prendendo um verdadeiro Vautrin, o ministro não
quer ter contra ele o comércio de Paris nem a opinião pública. O senhor chefe de
polícia está dubitativo, tem inimigos. Se houvesse erro, os que querem seu lugar
aproveitariam os mexericos e os escarcéus liberais para fazê-lo pular fora. Trata-
se aqui de proceder como no caso de Coignard, o falso conde de Sainte-Hélène;
48 se tivesse sido um verdadeiro conde de Saint-Hélène, estaríamos em maus
lençóis. Portanto, é preciso verificar!
— É, mas o senhor precisa de uma mulher bonita — disse com vivacidade a
srta. Michonneau.
— Engana-a-Morte não se deixaria abordar por uma mulher — disse o agente.
— Saiba de um segredo: ele não gosta de mulheres.
— Mas então não vejo em que eu seria útil numa verificação dessas, algo que
eu aceitaria fazer por dois mil francos.
— Nada mais fácil — disse o desconhecido. — Vou lhe entregar um frasco
contendo uma dose de licor preparado para provocar uma congestão que não tem
o menor perigo e simula uma apoplexia. Essa droga pode ser misturada
igualmente no vinho e no café. De imediato a senhorita transportará o seu
homem para uma cama e o despirá a fim de saber se ele não está morrendo.
Quando estiver sozinha, lhe dará um tapa no ombro, paf!, e verá as letras
aparecerem.
— Mas isso não é nada — disse Poiret.
— Pois então, aceita? — perguntou Gondureau à solteirona.
— Mas, meu caro senhor — disse a srta. Michonneau —, caso não existam
letras, eu teria os dois mil francos?
— Não.
— Então qual será o pagamento?
— Quinhentos francos.
— Fazer uma coisa dessas por tão pouco. O mal é o mesmo na consciência, e
tenho minha consciência para serenar, senhor.
— Afirmo-lhe — disse Poiret — que a senhorita tem muita consciência, além
de ser uma pessoa amabilíssima e muito engenhosa.
— Pois então — retrucou a srta. Michonneau —, dê-me três mil francos se for
Engana-a-Morte, e nada se for um burguês.
— Está bem — disse Gondureau —, mas com a condição de que o negócio
seja feito amanhã.
— Ainda não, meu caro senhor, preciso consultar meu confessor.
— Espertinha! — disse o agente se levantando. — Então até amanhã. E, se
tiver pressa de falar comigo, vá à pequena Rue Sainte-Anne, no fundo do pátio
da Sainte-Chapelle. Só há uma porta sob a cúpula. Pergunte pelo sr. Gondureau.
Bianchon, que voltava do curso de Cuvier, tivera a atenção fixada na expressão
um tanto original de “Engana-a-Morte” e ouviu o “Está bem” do famoso chefe
da polícia de segurança.
— Por que não termina logo isso, seriam trezentos francos de renda vitalícia —
disse Poiret à srta. Michonneau.
— Por quê? — ela perguntou. — Mas é preciso refletir. Se o sr. Vautrin fosse
esse Engana-a-Morte, talvez fosse mais vantagem se arranjar com ele. Porém,
lhe pedir dinheiro seria preveni-lo, e ele seria homem de dar no pé de graça .
Seria um fiasco abominável.
— Mesmo que fosse prevenido — prosseguiu Poiret —, esse senhor não nos
disse que ele estava sendo vigiado? Mas você, você perderia tudo.
— Aliás — pensou a srta. Michonneau —, não gosto nada desse homem! Só
sabe me dizer coisas desagradáveis.
— Mas — continuou Poiret — seria melhor que fizesse. Assim como disse
esse cavalheiro, que me parece muito correto, além de estar muito bem coberto,
é um ato de obediência às leis livrar a sociedade de um criminoso, por mais
virtuoso que seja. Quem fez voltará a fazer. E se lhe desse na veneta assassinar
todos nós? Mas, que diabo! Seríamos culpados por esses assassínios, sem contar
que seríamos as primeiras vítimas.
A preocupação da srta. Michonneau não lhe permitia ouvir as frases caindo
uma a uma da boca de Poiret, como gotas d’água que pingam da torneira mal
fechada de uma pia. Já que, quando começara a série de suas frases, a srta.
Michonneau não o parou, o velhote continuava a falar, parecendo um
mecanismo no qual tivessem dado corda. Depois de ter iniciado um primeiro
assunto, era levado por seus parênteses a tratar de outros totalmente opostos, sem
nada concluir. Chegando à Casa Vauquer, enfiara-se por uma série de trechos e
citações fugazes que o levaram a contar seu depoimento no caso do sr.
Ragoulleau e da sra. Morin, 49 em que ele comparecera na qualidade de
testemunha de defesa. Ao entrar, sua companheira não deixou de notar Eugène
de Rastignac envolvido com a srta. Taillefer numa conversa íntima cujo interesse
era tão palpitante que o casal não prestou a menor atenção na passagem dos dois
velhos hóspedes quando atravessaram a sala de jantar.
— Isso devia acabar assim — disse a srta. Michonneau a Poiret. — Há oito
dias se olhavam ternamente, a se arrancarem a alma.
— É — ele respondeu. — Assim ela foi condenada.
— Quem?
— A sra. Morin.
— Estou lhe falando da srta. Victorine — disse a srta. Michonneau ao entrar
sem perceber no quarto de Poiret — e você me responde com a sra. Morin.
Quem é essa mulher aí?
— Mas de que seria culpada a srta. Victorine? — perguntou Poiret.
— Ela é culpada de amar o sr. Eugène de Rastignac, e vai em frente sem saber
aonde isso a levará, pobre inocente!
Durante a manhã, Eugène fora reduzido ao desespero pela sra. de Nucingen.
Em seu foro íntimo, abandonara-se completamente a Vautrin, sem querer sondar
os motivos da amizade que lhe demonstrava aquele homem extraordinário nem o
futuro de uma união dessas. Só mesmo um milagre para tirá-lo do abismo onde
já pusera o pé fazia uma hora, trocando com a srta. Taillefer as mais doces
promessas. Victorine acreditava ouvir a voz de um anjo, os céus se abriam para
ela, a Casa Vauquer se enfeitava com as tonalidades fantásticas que os
decoradores dão aos palácios de teatro: ela amava, era amada, ao menos
acreditava ser! E que mulher não acreditaria da mesma forma, ao ver Rastignac,
ao ouvi-lo durante aquela hora roubada de todos os espiões da casa? Debatendo-
se contra sua consciência, sabendo que agia mal e querendo agir mal, dizendo-se
que redimiria esse pecado venial pela felicidade de uma mulher, ele se
embelezara com o próprio desespero e resplandecia com todos os fogos do
inverno que tinha no coração. Felizmente para ele, o milagre aconteceu: Vautrin
entrou muito alegre e leu a alma dos dois jovens que ele casara pelas
combinações de seu gênio infernal, mas cuja alegria perturbou de repente
cantando com seu vozeirão galhofeiro:
Esta última palavra provavelmente fazia alusão a alguma cena que ocorrera entre
eles, Eugène ficou enternecido. Suas armas estavam internamente esmaltadas no
ouro da caixa do relógio. Aquela joia tão longamente invejada, a corrente, a
chave, seu feitio, os desenhos respondiam a todos os seus desejos. O pai Goriot
estava radiante. Talvez tivesse prometido à filha lhe relatar os menores efeitos
em Eugène da surpresa causada pelo presente, pois ele era uma testemunha
dessas jovens emoções e não parecia o menos feliz. Já gostava de Rastignac
tanto por sua filha como por si mesmo.
— Vai vê-la esta noite, ela o espera. O gordo estúpido do alsaciano ceia na
casa de sua bailarina. Ah! Ah! ele ficou um tanto desconcertado quando meu
advogado lhe expôs sua situação. Não pretende amar minha filha até a adoração?
Que toque nela e eu o mato. A ideia de saber minha Delphine a… (ele suspirou)
me faria cometer um crime; mas não seria um homicídio, pois ele é uma cabeça
de bezerro em cima de um corpo de porco. Vocês me levarão consigo, não é?
— Sim, meu bom pai Goriot, bem sabe que gosto muito do senhor…
— Estou vendo, não tem vergonha de mim! Deixe-me lhe dar um beijo. (E
apertou o estudante nos braços.) O senhor a fará muito feliz, prometa-me! Irá lá
esta noite, não é?
— Ah, sim! Devo sair para uns negócios que é impossível adiar.
— Posso lhe ser útil em alguma coisa?
— Pensando bem, sim! Enquanto eu for à casa da sra. de Nuncingen, vá à do
sr. Taillefer pai, dizer-lhe para me conceder uma hora à noite a fim de lhe falar
de um negócio da maior importância.
— Então seria verdade, jovem? — disse o pai Goriot mudando de fisionomia.
— Estaria fazendo a corte à filha dele, como dizem esses imbecis lá embaixo?
Por todos os deuses! Não sabe o que é um tabefe à moda de Goriot. E se nos
enganasse, seria o caso para uns bons socos. Oh! não é possível.
— Juro-lhe que só amo uma mulher no mundo — disse o estudante —, e só sei
disso há pouco tempo.
— Ah, que felicidade! — disse o pai Goriot.
— Mas — prosseguiu o estudante — o filho de Taillefer se duela amanhã, e
ouvi dizer que ele seria morto.
— E o que tem a ver com isso? — perguntou Goriot.
— É preciso lhe dizer para impedir que o filho dele vá lá — exclamou Eugène.
Nesse momento, foi interrompido pela voz de Vautrin, que se fez ouvir na
soleira da porta, onde cantava:
— Meu Deus! Puxa vida, sra. Couture, esse homem aí me faria viver feliz e
contente. Vejamos — ela disse virando-se para o macarroneiro —, o pai Goriot
já se foi. Esse velho pão-duro nunca teve ideia de me levar para lugar ninhum .
Mas ele vai cair no chão, meu Deus! Ai, como é indecente para um homem de
idade perder a razão! A senhora vai me dizer que não se perde aquilo que não se
tem. Sylvie, suba com ele até o quarto.
Sylvie pegou o homenzinho por baixo do braço, o fez andar e o jogou todo
vestido, como um embrulho, atravessado em sua cama.
— Pobre rapaz — dizia a sra. Couture afastando os cabelos de Eugène que lhe
caíam nos olhos —, está como uma moça, não sabe o que é um excesso.
— Ah! Bem posso dizer que há trinta e um anos que tenho minha pensão —
disse a sra. Vauquer —, me passaram muitos jovens pelas mãos, como se diz;
mas nunca vi um tão gentil, tão distinto como o sr. Eugène. Como é bonito
quando dorme! Mas ponha a cabeça dele no seu ombro, sra. Couture. Nossa, ele
está caindo sobre o da srta. Victorine: existe um deus para as crianças. Mais um
pouco e ele rachava a cabeça no encosto da cadeira. Os dois juntos formariam
um casal bem bonito.
— Mas cale a boca, minha vizinha — exclamou a sra. Couture —, a senhora
diz cada coisa…
— Ora essa! — disse a sra. Vauquer, ele não está ouvindo. Vamos, Sylvie,
venha me vestir. Vou pôr meu grande espartilho.
— Ah, sei! Seu grande espartilho, depois de ter jantado, senhora — disse
Sylvie. – Não, procure alguém para apertá-la, não vou ser eu a sua assassina. A
senhora cometeria uma imprudência que lhe custaria a vida.
— Para mim tanto faz, preciso honrar o sr. Vautrin.
— Então gosta muito dos seus herdeiros?
— Vamos, Sylvie, nada de discussão — disse a viúva indo embora.
— Na idade dela — disse a cozinheira mostrando sua patroa para Victorine.
A sra. Couture e sua pupila, em cujo ombro dormia Eugène, ficaram sozinhas
na sala de jantar. Os roncos de Christophe ressoavam na casa silenciosa, e
realçavam o sono sereno de Eugène, que dormia tão graciosamente como uma
criança. Feliz de poder se permitir um desses atos de caridade pelos quais se
derramam todos os sentimentos da mulher, e que a fazia sentir sem pecado o
coração do rapaz batendo contra o seu, Victorine tinha na fisionomia algo
maternalmente protetor que a tornava orgulhosa. Através dos mil pensamentos
que se elevavam em seu coração, varava um tumultuado gesto de volúpia
excitado pela troca de um calor jovem e puro.
— Pobre menina querida! — disse a sra. Couture apertando sua mão.
A velha senhora admirava aquela figura cândida e sofredora, sobre a qual
descera a auréola da felicidade. Victorine parecia uma dessas pinturas ingênuas
da Idade Média nas quais todos os acessórios são negligenciados pelo artista,
que reservou a magia de um pincel calmo e altivo para o rosto de tom amarelo,
mas onde o céu parece se refletir com suas tonalidades douradas.
— E olhe que ele não bebeu mais que dois copos, mamãe — disse Victorine
passando os dedos pela cabeleira de Eugène.
— Mas se fosse um farrista, minha filha, teria suportado o vinho como todos
esses outros. Sua embriaguez lhe serve de elogio.
O barulho de um carro ecoou na rua.
— Mamãe — disse a mocinha —, o sr. Vautrin está aí. Pegue então o sr.
Eugène. Não gostaria de ser vista assim por esse homem, ele tem expressões que
sujam a alma, e olhares que encabulam uma mulher, como se lhe tirassem seu
vestido.
— Não — disse a sra. Couture —, você se engana! O sr. Vautrin é um homem
de bem, um pouco no gênero do finado sr. Couture, brusco mas bom, um
intratável bondoso.
Nesse momento Vautrin entrou bem de mansinho, e olhou para o quadro
formado por aquelas duas crianças que o clarão da lamparina parecia acariciar.
— Muito bem — disse cruzando os braços —, eis uma dessas cenas que teriam
inspirado belas páginas a esse bom Bernardin de Saint-Pierre, autor de Paul e
Virginie . A juventude é muito bonita, sra. Couture. Pobre menino, durma —
disse contemplando Eugène —, às vezes o bem chega quando se dorme. Senhora
— prosseguiu dirigindo-se à viúva —, o que me liga a este rapaz, o que me
comove é saber que a beleza de sua alma está em harmonia com a de seu rosto.
Veja, não é um querubim colocado no ombro de um anjo? Esse aí é digno de ser
amado! Se eu fosse mulher, gostaria de morrer (não, não ia ser tão bobo!), de
viver por ele. Admirando-os assim, senhora — disse baixinho inclinando-se para
o ouvido da viúva —, não posso me impedir de pensar que Deus os criou para
serem um do outro. A Providência tem caminhos bem ocultos, ela sonda os
flancos e os corações — exclamou em voz alta. — Vendo-os unidos, minhas
crianças, unidos por uma mesma pureza, por todos os sentimentos humanos,
digo-me que é impossível que um dia sejam separados no futuro. Deus é justo.
Mas — disse à moça — parece-me ter visto na senhorita linhas de prosperidade.
Dê-me sua mão, srta. Victorine? Conheço-me em quiromancia, muitas vezes li a
sorte. Ande, não tenha medo. Oh! que entrevejo? Palavra de honra, a senhorita
será em breve uma das mais ricas herdeiras de Paris. Encherá de felicidade
aquele que a ama. Seu pai a chama perto de si. Vai se casar com um homem com
título de nobreza, jovem, belo, que a adora.
Nesse momento, os passos pesados da faceira viúva que descia interromperam
as profecias de Vautrin.
— Olhem a mamãe Vauquerre bela como um astrrro, amarrada como uma
cenoura. Não estamos sufocando um pouquinho? — ele lhe disse pondo a mão
no alto da armação. — Os peitos estão bem apertados, mamãe. Se chorarmos,
haverá explosão; mas catarei os restos com o cuidado de um arqueólogo.
— Esse aí conhece a linguagem da galanteria francesa! — disse a viúva se
inclinando ao ouvido da sra. Couture.
— Adeus, crianças — prosseguiu Vautrin virando-se para Eugène e Victorine.
— Abençoo-os — disse impondo-lhes as mãos acima de suas cabeças. — Creia-
me, senhorita, é uma grande coisa os votos de um homem honrado, eles devem
trazer felicidade, Deus os escuta.
— Adeus, minha querida amiga — disse a sra. Vauquer para a sua pensionista.
— Acredita — ela acrescentou baixinho — que o sr. Vautrin tenha intenções
relativas à minha pessoa?
— Hum... hum...
— Ah! minha querida mãe — disse Victorine suspirando e olhando para suas
mãos, quando as duas mulheres ficaram sozinhas —, se esse bom sr. Vautrin
falasse a verdade!
— Mas para isso basta uma coisa — respondeu a velha senhora —, somente
que seu monstro de irmão caia de um cavalo.
— Ah, mamãe.
— Meu Deus, talvez seja pecado desejar mal a seu inimigo — prosseguiu a
viúva. — Pois bem, me penitenciarei. Na verdade, de bom grado levarei flores a
seu túmulo. Maldito coração! Ele não tem a coragem de falar em nome da mãe,
de cuja herança se apropria graças a intrigas, e em prejuízo seu. Minha prima
tinha uma bela fortuna. Para sua desgraça, nunca se levou em conta a parte dela
no contrato de casamento.
— Minha felicidade me seria sempre difícil de suportar se custasse a vida a
alguém — disse Victorine. — E se para eu ser feliz meu irmão tivesse de morrer,
preferiria ficar aqui para sempre.
— Meu Deus, como diz esse bom sr. Vautrin, que, você está vendo, é muito
religioso — prosseguiu a sra. Couture —; tive o prazer de saber que ele não é
incrédulo como os outros, que falam de Deus com menos respeito do que o
Diabo tem por ele. Pois bem, quem pode saber por que caminhos a Providência
se apraz em nos conduzir?
Auxiliadas por Sylvie, as duas mulheres acabaram transportando Eugène ao
seu quarto, o deitaram na cama, e a cozinheira tirou suas roupas para pô-lo à
vontade. Antes de sair, quando sua protetora estava de costas, Victorine deu um
beijo na testa de Eugène com toda a felicidade que devia lhe causar esse furto
criminoso. Olhou para o quarto, apanhou por assim dizer num só pensamento as
mil felicidades daquele dia, e fez com elas um quadro que contemplou muito
tempo, e adormeceu como a mais feliz criatura de Paris. O festejo em favor do
qual Vautrin fizera Eugène e o pai Goriot beberem vinho narcotizado decidiu a
perda desse homem. Bianchon, semiembriagado, esqueceu de interrogar a srta.
Michonneau sobre Engana-a-Morte. Se tivesse pronunciado esse nome,
certamente teria despertado a prudência de Vautrin, ou, para lhe dar seu nome
verdadeiro, de Jacques Collin, uma das celebridades da prisão dos forçados.
Além disso, o apelido de Vênus do Père-Lachaise decidiu a srta. Michonneau a
entregar o foragido no momento em que, confiante na generosidade de Collin,
avaliava se não era melhor preveni-lo e fazê-lo fugir durante a noite. Ela acabava
de sair, acompanhada por Poiret, para ir encontrar o famoso chefe da polícia de
segurança, na pequena Rue Sainte-Anne, pensando ainda estar tratando com um
funcionário superior chamado Gondureau. O diretor da polícia judiciária a
recebeu de braços abertos. Depois de uma conversa em que tudo foi acertado, a
srta. Michonneau pediu a poção com a qual devia fazer a verificação da
tatuagem. Pelo gesto de contentamento que fez o grande homem da pequena Rue
Sainte-Anne, procurando um frasco numa gaveta de sua mesa, a srta.
Michonneau adivinhou que havia nessa captura algo mais importante que a
detenção de um simples foragido. De tanto apertar os miolos, desconfiou que a
polícia esperava, segundo algumas revelações feitas pelos traidores da prisão,
chegar a tempo para pôr a mão em quantias consideráveis. Quando expressou
essas conjecturas àquela raposa, esta se pôs a sorrir e quis desviar as suspeitas da
solteirona.
— Engana-se — ele respondeu. — Collin é a sorbonne mais perigosa que
algum dia já se viu para os lados dos ladrões. É só isso. Os malandros sabem
muito bem; é a bandeira deles, seu suporte, seu Bonaparte, em suma; todos
gostam dele. Esse engraçadinho nunca nos deixará sua mufa ser executada na
Place de Grève. 56
A srta. Michonneau não entendia, Gondureau lhe explicou as duas palavras da
gíria que usara. “Sorbonne” e “mufa” são duas expressões enérgicas da
linguagem dos ladrões, que foram os primeiros a sentir a necessidade de
considerar a cabeça humana sob dois aspectos. A “sorbonne” é a cabeça do
homem vivo, seu consultor, seu pensamento. A “mufa” é uma palavra de
desprezo destinada a expressar como a cabeça se torna pouca coisa quando é
cortada.
— Collin está brincando com a gente — ele prosseguiu. — Quando
encontramos esses homens que são como barras de aço temperado à inglesa,
temos o recurso de matá-los se, durante a detenção, resolvem opor a menor
resistência. Contamos com algumas alternativas que cheguem às vias de fato
para matar Collin amanhã de manhã. Assim evitam-se o processo, as despesas de
guarda, a alimentação, e isso livra a sociedade. Os procedimentos, as intimações
das testemunhas, suas indenizações, a execução, tudo o que deve legalmente nos
livrar desses patifes custa mais que os mil escudos que a senhorita vai ganhar.
Há economia de tempo. Dando um bom golpe de baioneta na pança de Engana-
a-Morte, impediremos uma centena de crimes e evitaremos a corrupção de
cinquenta maus sujeitos que se manterão muito comportados nos arredores do
tribunal correcional. Isso é polícia bem-feita. Segundo os verdadeiros
filantropos, conduzir-se assim é prevenir os crimes.
— E é servir seu país — disse Poiret.
— Pois é — retrucou o chefe —, agora à tarde está dizendo coisas sensatas.
Sim, sem dúvida, servimos o país. O mundo também é muito injusto conosco.
Prestamos à sociedade grandes serviços ignorados. Enfim, cabe a um homem
superior pôr-se acima dos preconceitos, e a um cristão adotar as desgraças que o
bem arrasta consigo quando não é feito segundo as ideias preconcebidas. Paris é
Paris, sabe? Essas palavras explicam minha vida. Tenho a honra de
cumprimentá-la, senhorita. Amanhã estarei com minha gente no Jardin du Roi.
Mande Christophe à Rue de Buffon, à casa do sr. Gondureau, ali onde eu estava.
Cavalheiro, sou seu servidor. Se acaso alguma coisa lhe for roubada, recorra a
mim para encontrá-la, estou à sua disposição.
— Muito bem — disse Poiret à srta. Michonneau —, encontram-se imbecis
diante de quem a palavra “polícia” fica de pernas para o ar. Esse senhor é muito
amável, e o que lhe pede é simples como dar bom-dia.
O dia seguinte deveria se destacar entre os dias mais extraordinários da história
da Casa Vauquer. Até então o acontecimento mais notável daquela vida pacata
fora o aparecimento meteórico da falsa condessa de l’Ambermesnil. Mas tudo
iria empalidecer diante das peripécias daquele grande dia, que seria eternamente
assunto nas conversas da sra. Vauquer. Primeiro, Goriot e Eugène de Rastignac
dormiram até onze horas. A sra. Vauquer, voltando à meia-noite do Gaîté, ficou
até dez e meia na cama. O longo sono de Christophe, que terminara o vinho
oferecido por Vautrin, causou atrasos no serviço da casa. Poiret e a srta.
Michonneau não se queixaram de o almoço ter atrasado. Quanto a Victorine e à
sra. Couture, dormiram até tarde. Vautrin saiu antes das oito, e retornou no exato
momento em que o almoço foi servido. Portanto, ninguém reclamou quando, por
volta das onze e quinze, Sylvie e Christophe foram bater em todas as portas,
dizendo que o almoço esperava. Enquanto Sylvie e o criado se ausentaram, a
srta. Michonneau, sendo a primeira a descer, derramou o licor no copo de prata
que pertencia a Vautrin, e no qual o leite para o seu café estava aquecendo em
banho-maria, no meio de todos os outros. A solteirona contara com essa
particularidade da pensão para dar seu golpe. Não foi sem algumas dificuldades
que os sete pensionistas se viram reunidos. Quando Eugène, que se
espreguiçava, foi o último de todos a descer, um mensageiro lhe entregou uma
carta da sra. de Nucingen. Essa carta estava escrita assim:
Não tenho falsa vaidade nem raiva de você, meu amigo. Esperei-o até as duas
horas depois de meia-noite. Esperar um ser que se ama! Quem conheceu esse
suplício não o impõe a ninguém. Bem vejo que ama pela primeira vez. O que
aconteceu afinal? A inquietação me assaltou. Se eu não tivesse receado
entregar os segredos de meu coração, teria ido saber o que lhe acontecia de
feliz ou infeliz. Mas sair a essa hora, seja a pé, seja de carro, não era se
perder? Senti a desgraça de ser mulher. Tranquilize-me, explique-me por que
não veio, depois do que meu pai lhe disse. Ficarei zangada mas o perdoarei.
Está doente? Por que morar tão longe? Uma palavra, por favor! Até breve,
não é? Uma palavra me bastará, se está ocupado. Diga: “Estou chegando”, ou
“estou doente”. Se estivesse passando mal, meu pai teria vindo me dizer!
Então, o que aconteceu?…
— Vamos, ora, você está morrendo de vontade, trahit sua quemque voluptas —
disse Bianchon.
— Cada um segue a sua tradução livre e particular de Virgílio — disse o
repetidor. 59
Como a srta. Michonneau tinha feito o gesto de pegar o braço de Poiret, ao
olhá-lo, ele não conseguiu resistir a esse apelo e foi dar seu apoio à velha.
Aplausos irromperam, e houve uma explosão de risos.
— Bravo, Poiret!
— Esse velho Poiret!
— Apolo-Poiret!
— Marte-Poiret!
— Corajoso Poiret!
Nesse momento, um mensageiro entrou, entregou uma carta à sra. Vauquer,
que escorregou na cadeira, depois de lê-la.
— Mas só falta queimarem minha casa, os raios estão caindo. O Taillefer filho
morreu às três horas. Estou sendo um bocado castigada por ter desejado bem a
essas senhoras em prejuízo desse pobre rapaz. A sra. Couture e Victorine me
pedem de volta seus pertences, vão ficar na casa do pai dela. O sr. Taillefer
permite à filha manter a viúva Couture como dama de companhia. Quatro
apartamentos desocupados, cinco pensionistas a menos!
Sentou-se e pareceu prestes a chorar.
— A desgraça entrou em minha casa — exclamou.
As rodas de um carro que parava ecoaram de repente na rua.
— Mais alguma desgraceira — disse Sylvie.
Goriot mostrou de repente uma fisionomia brilhante e colorida de felicidade,
que podia fazer crer em sua regeneração.
— Goriot de fiacre — disseram os pensionistas —, o fim do mundo chegou!
O homem foi direto até Eugène, que permanecia pensativo num canto, e
pegou-o pelo braço:
— Venha — disse-lhe com ar alegre.
— Então não sabe o que está acontecendo? — perguntou-lhe Eugène. —
Vautrin era um forçado que acabam de prender, e o Taillefer filho morreu.
— Pois bem, e o que temos a ver com isso? — respondeu o pai Goriot. —
Janto com minha filha, na casa de vocês, está entendendo? Ela o espera, venha!
Puxou tão violentamente Rastignac pelo braço que o fez andar à força e
pareceu sequestrá-lo, como se fosse sua amante.
— Jantemos — gritou o pintor.
Nesse momento cada um pegou sua cadeira e sentou-se à mesa.
— Decididamente — disse a gorda Sylvie —, hoje só dá desgraça, meu
ensopado de carneiro grudou na panela. Arre! vocês vão comê-lo queimado,
azar!
A sra. Vauquer não teve coragem de dizer uma palavra ao ver apenas dez
pessoas em vez de dezoito em torno de sua mesa; mas todos tentaram consolá-la
e alegrá-la. Se primeiro os externos conversaram sobre Vautrin e os
acontecimentos do dia, logo obedeceram ao jeito sinuoso da conversa e se
puseram a falar de duelos, das galés, da justiça, das leis a refazer, das prisões.
Depois se encontraram a mil léguas de Jacques Collin, de Victorine e de seu
irmão. Embora fossem apenas dez, gritaram como vinte, e pareciam ser mais
numerosos que de costume; foi a única diferença que houve entre aquele jantar e
o da véspera. A despreocupação habitual desse mundo egoísta que, no dia
seguinte, deveria ter nos fatos cotidianos de Paris outra presa a devorar levou a
melhor, e a própria sra. Vauquer se deixou acalmar pela esperança, que se serviu
da voz da grossa Sylvie.
Esse dia deveria ser até de noite uma fantasmagoria para Eugène, que, apesar
da força de seu caráter e da bondade de seu espírito, não sabia como classificar
suas ideias quando se viu dentro do fiacre, ao lado do pai Goriot, cujos discursos
traíam uma alegria inabitual e ecoavam em seu ouvido, depois de tantas
emoções, como as palavras que ouvimos em sonho.
— Acabou-se o que aconteceu de manhã. Vamos nós três jantar juntos, juntos!
Entende? Faz quatro anos que não jantei com minha Delphine, minha pequena
Delphine. Vou tê-la para mim durante uma noite toda. Estamos na sua casa
desde hoje de manhã. Trabalhei como um operário, em mangas de camisa. Eu
ajudava a carregar os móveis. Ah! Ah! não sabe como ela é boazinha à mesa, vai
cuidar de mim: “Tome, papai, coma isto, está bom”. E então nem vou conseguir
comer. Oh! faz tanto tempo que não me vejo sossegado ao lado dela como
vamos estar!
— Mas — disse-lhe Eugène —, então hoje o mundo está de cabeça para baixo?
— De cabeça para baixo? — disse o pai Goriot. — Mas em nenhuma época o
mundo esteve tão bem. Só vejo rostos alegres nas ruas, pessoas que se dão
apertos de mão e que se beijam; pessoas felizes como se todas fossem jantar na
casa de suas filhas, papar um bom jantarzinho que ela encomendou na minha
frente ao chefe do Café des Anglais. Mas, para quê! Perto dela o fel seria doce
como o mel.
— Tenho a impressão de voltar à vida — disse Eugène.
— Mas ande logo, cocheiro — gritou o pai Goriot abrindo o vidro da frente. —
Ande mais depressa, lhe darei cem vinténs para beber se me levar em dez
minutos lá onde você sabe.
Ao ouvir essa promessa, o cocheiro atravessou Paris com a rapidez de um raio.
— Ele não está bom, esse cocheiro — dizia o pai Goriot.
— Mas aonde afinal está me levando? — perguntou-lhe Rastignac.
— À sua casa — disse o pai Goriot.
O carro parou na Rue d’Artois. O homenzinho desceu primeiro e jogou dez
francos para o cocheiro, com a prodigalidade de um viúvo que, no paroxismo de
seu prazer, não presta atenção em nada.
— Vamos subir — disse a Rastignac fazendo-o atravessar um pátio e levando-
o à porta de um apartamento situado no terceiro andar, nos fundos de um prédio
novo e de bela aparência. O pai Goriot não precisou tocar a campainha. Thérèse,
a camareira da sra. de Nucingen, lhes abriu a porta. Eugène viu-se num delicioso
apartamento de rapaz, composto de uma antessala, um salãozinho, um quarto de
dormir e um gabinete com vista para um jardim. No salãozinho, cuja mobília e
decoração podiam suportar a comparação com o que havia de mais bonito, de
mais gracioso, avistou, à luz das velas, Delphine, que se levantou de uma
conversadeira, ao lado da lareira, pôs a tela de proteção na frente do fogo e lhe
disse, com uma entonação e voz carregada de ternura:
— Então foi preciso ir buscá-lo, senhor que não entende nada.
Thérèse saiu. O estudante pegou Delphine em seus braços, apertou-a
intensamente e chorou de alegria. Esse último contraste entre o que ele via e o
que acabava de ver, num dia em que tantas irritações tinham cansado seu
coração e sua cabeça, foi determinante em Rastignac para um acesso de
sensibilidade nervosa.
— Eu bem sabia que ele a amava — disse baixinho o pai Goriot à filha
enquanto Eugène, abatido, jazia na conversadeira sem conseguir pronunciar uma
palavra nem se dar conta ainda da maneira como este último golpe de mágica
fora feito.
— Mas venha ver — disse-lhe a sra. de Nucingen pegando-o pela mão e
levando-o para um quarto cujos tapetes, móveis e mínimos detalhes lhe
lembraram, em proporções menores, o de Delphine.
— Falta uma cama — disse Rastignac.
— Sim, senhor — ela disse enrubescendo e apertando-lhe a mão.
Eugène olhou para ela e entendeu, jovem ainda, tudo o que havia de pudor
verdadeiro num coração de mulher apaixonada.
— A senhora é uma dessas criaturas que devemos adorar sempre — ele lhe
disse ao ouvido. — Sim, ouso lhe dizer, já que nos entendemos tão bem: quanto
mais profundo e sincero é o amor, mais deve ser velado, misterioso. Não
revelemos nosso segredo a ninguém.
— Oh! eu não serei ninguém — disse o pai Goriot resmungando.
— O senhor sabe que é nós , ora…
— Ah! era isso que eu queria. Vocês não vão prestar atenção em mim, não é?
Irei, voltarei como um bom espírito que está em toda parte, e que sabemos estar
ali sem vê-lo. Pois bem, Delphinette, Ninette, Dedel! Eu não estava certo ao lhe
dizer: “Tem um lindo apartamento na Rue d’Artois, vamos mobiliá-lo para
ele!”? Você não queria. Ah! Sou eu o autor da sua alegria, como sou o autor dos
seus dias. Os pais devem sempre dar para serem felizes. Dar sempre, é o que faz
com que sejamos pai.
— Como? — disse Eugène.
— Sim, ela não queria, temia que dissessem bobagens, como se o mundo
valesse a felicidade! Mas todas as mulheres sonham em fazer o que ela faz…
O pai Goriot falava sozinho, a sra. de Nucingen levara Rastignac para o
gabinete, onde o ruído de um beijo ecoou, por mais levemente que tenha sido
dado. Esse aposento estava no mesmo nível da elegância do apartamento, no
qual, aliás, nada faltava.
— Adivinhamos bem os seus desejos? — disse ela voltando para o salão a fim
de se pôr à mesa.
— Sim, bem demais — disse ele. — Infelizmente, sinto que esse luxo tão
completo, esses lindos sonhos realizados, todas as poesias de uma vida jovem,
elegante, são demais e não os mereço; mas não posso aceitá-los da senhora, e
ainda sou muito pobre para…
— Ah! Ah! já está me resistindo — ela disse com um arzinho de autoridade
zombeteiro, fazendo um desses lindos muxoxos que as mulheres fazem quando
querem escarnecer de algum escrúpulo para melhor dissipá-lo.
Eugène se questionara com muita solenidade durante aquele dia, e a prisão de
Vautrin, mostrando-lhe a profundidade do abismo em que ele quase rolara,
acabava de corroborar muito bem seus sentimentos nobres e sua delicadeza para
que cedesse a essa acariciante refutação de suas ideias generosas. Uma profunda
tristeza tomou conta dele.
— Como! — disse a sra. de Nucingen. — Recusaria? Sabe o que significa uma
recusa dessas? Duvida do futuro, não ousa ligar-se a mim! Então tem medo de
trair meu afeto? Se me ama, se eu… o amo, por que recua diante de obrigações
tão tênues? Se soubesse o prazer que tive em cuidar de todo esse apartamento de
rapaz, não hesitaria, e me pediria perdão. Eu tinha dinheiro que era seu, e o
empreguei bem, é só isso. O senhor imagina ser grande, e é pequeno. Pede bem
mais… (Ah! — disse ela captando um olhar de paixão em Eugène) e fica cheio
de dedos por umas bobagens. Se não me ama, oh!, sim, não aceite. Meu destino
está contido numa palavra. Fale! Mas, meu pai, dê então a ele algumas boas
razões — acrescentou virando-se para o pai, depois de uma pausa. — Será que
ele acredita que sou menos suscetível quanto à nossa honra?
O pai Goriot exibia o sorriso fixo de um teriaki 60 ao ver, ao ouvir aquela linda
rusga.
— Criança! Você está no começo da vida — ela recomeçou, pegando a mão de
Eugène — e encontra uma barreira intransponível diante de muitas pessoas, a
mão de uma mulher lhe abre caminho, e você recua! Mas vencerá, fará uma
brilhante fortuna, o sucesso está escrito em sua bela fronte. Não poderá então me
devolver o que lhe empresto hoje? Antigamente as damas não davam a seus
cavaleiros armaduras, espadas, capacetes, cotas de malha, cavalos, a fim de que
pudessem ir combater em nome delas nos torneios? Pois bem, Eugène, as coisas
que lhe ofereço são as armas da época, ferramentas necessárias a quem quer ser
alguma coisa. É bonito o sótão em que você se encontra, se se parece com o
quarto de papai. Mas afinal, então não vamos jantar? Quer me entristecer?
Responda então? — disse sacudindo sua mão. — Meu Deus, papai, decida-o
logo, ou vou sair e não o reverei nunca mais.
— Vou fazê-lo se decidir — disse o pai Goriot saindo de seu êxtase. — Meu
caro sr. Eugène, vai pedir dinheiro emprestado aos judeus, não vai?
— Não há outro jeito — ele disse.
— Bem, agora está amarrado — recomeçou o bom homem pegando uma
carteira ordinária de couro já bem gasto. — Fiz-me de judeu, paguei todas as
faturas, ei-las. O senhor não deve um centavo por tudo o que se encontra aqui.
Isso não perfaz uma grande quantia, no máximo cinco mil francos. Empresto-os!
Não vai me recusar, não sou uma mulher. Vai me fazer um reconhecimento de
dívida num pedaço de papel e me devolverá mais tarde.
Algumas lágrimas rolaram ao mesmo tempo dos olhos de Eugène e de
Delphine, que se fitaram com surpresa. Rastignac estendeu a mão ao bom
homem e a apertou.
— Pois é, ora essa! Vocês não são meus filhos? — disse Goriot.
— Mas, meu pobre pai — disse a sra. de Nucingen —, como foi então que o
senhor fez?
— Ah! chegamos ao ponto — ele respondeu. — Quando convenci você a
trazê-lo para perto, quando vi você comprando coisas como se fosse uma noiva,
pensei cá comigo: “Ela vai se ver em apuros!”. O advogado pretende que o
processo a mover contra o seu marido, para fazê-lo devolver sua fortuna, durará
mais de seis meses. Bem. Vendi minhas mil trezentas e cinquenta libras de renda
perpétua; consegui, com quinze mil francos, mil e duzentos francos de rendas
vitalícias bem hipotecadas, e paguei aos seus fornecedores com o resto do
capital, meus filhos. Quanto a mim, tenho lá em cima um quarto de cinquenta
escudos por ano, posso viver como um príncipe com quarenta soldos por dia, e
ainda me sobrará troco. Não gasto nada, quase não preciso de roupas. Faz quinze
dias que estou rindo comigo mesmo ao pensar: “Como eles vão ser felizes!”.
Pois bem, não estão felizes?
— Oh, papai, papai! — disse a sra. de Nucingen pulando sobre o pai, que a
recebeu em seu colo. Ela o cobriu de beijos, ele lhe acariciou as faces com seus
cabelos louros e derramou lágrimas sobre aquele belo rosto feliz, brilhante. —
Papai querido, o senhor é um bom pai! Não, não existem sob o céu dois pais
como o senhor. Eugène já gostava muito de si, como será agora?
— Mas, meus filhos — disse o pai Goriot, que fazia dez anos não sentia o
coração de sua filha bater contra o seu —, mas, Delphinette, então quer me
matar de alegria? Meu pobre coração está se partindo. Bem, sr. Eugène, já
estamos quites!
E o velho apertou a filha com um abraço tão selvagem, tão delirante que ela
disse:
— Ai, está me machucando!
— Estou machucando! — ele disse, empalidecendo. Olhou para ela com um ar
sobre-humano de dor. Para bem pintar a fisionomia desse Cristo da Paternidade,
seria preciso ir buscar comparações nas imagens que os príncipes da palheta
inventaram para pintar a paixão sofrida em benefício dos mundos pelo Salvador
dos homens. O pai Goriot beijou muito suavemente a cintura que seus dedos
tinham apertado demais. — Não, não, não a machuquei — continuou,
questionando-a com um sorriso —, foi você que me machucou com seu grito.
Isso custa mais caro — disse ao ouvido da filha, beijando-a com precaução —,
mas é preciso agarrá-lo, sem o que ele se zangaria.
Eugène estava petrificado pela inesgotável dedicação daquele homem, e o
contemplava expressando essa ingênua admiração que, na juventude, é o mesmo
que fé.
— Serei digno de tudo isto — exclamou.
— Ó, meu Eugène, é bonito o que acaba de dizer. — E a sra. de Nucingen
beijou o estudante na testa.
— Por você, ele recusou a srta. Taillefer e seus milhões — disse o pai Goriot.
— Sim, ela o amava, a pequena; e com o irmão morto, ei-la rica como Creso.
— Oh! Por que dizer isso? — exclamou Rastignac.
— Eugène — disse-lhe Delphine ao ouvido —, agora sinto um remorso por
esta noite. Ah! vou amá-lo! E para sempre.
— Eis o mais belo dia que tive desde o casamento de vocês — exclamou o pai
Goriot. — O bom Deus pode me fazer sofrer o quanto quiser, desde que não seja
por vocês, e pensarei: “Em fevereiro deste ano fui por um momento mais feliz
que os homens podem ser durante toda sua vida”. Olhe para mim, Fifine! —
disse à filha. — Ela é bem bonita, não é? Mas me diga, já encontrou muitas
mulheres que tenham as lindas cores e a covinha que ela tem? Não, não é
mesmo? Pois é, fui eu que fiz esse amor de mulher. De agora em diante, sendo
feliz por seu intermédio, ela se tornará mil vezes melhor. Posso ir para o inferno,
meu vizinho — disse —, se precisar da minha parte de paraíso eu lhe darei.
Vamos comer, vamos comer — prosseguiu, não sabendo mais o que estava
dizendo —, tudo isto é nosso.
— Esse pobre pai!
— Se soubesse, minha filha — ele disse levantando-se e indo até ela, pegando-
lhe a cabeça e beijando-a entre as tranças de seu cabelo —, como consegue me
fazer feliz por tão pouco! Venha me ver de vez em quando, estarei lá em cima,
você só terá de dar um passo. Prometa-me, diga!
— Prometo, pai querido.
— Diga de novo.
— Prometo, meu bom pai.
— Cale-se, eu a faria dizer cem vezes se eu me escutasse. Vamos jantar.
A noite inteira foi empregada em criancices, e o pai Goriot não foi quem se
mostrou o menos louco dos três. Deitava-se aos pés da filha para beijá-los;
olhava muito tempo para os olhos dela; esfregava a cabeça contra o vestido dela;
por fim, fazia loucuras como teria feito o amante mais jovem e mais carinhoso.
— Está vendo? — perguntou Delphine a Eugène —, quando meu pai está
conosco tenho de ser inteiramente dele. No entanto, às vezes será bem
constrangedor.
Eugène, que já sentira várias vezes ímpetos de ciúme, não podia censurar essas
palavras, que encerravam o princípio de todas as ingratidões.
— E quando o apartamento ficará pronto? — perguntou Eugène olhando em
torno do quarto. — Então teremos de nos separar esta noite?
— Sim, mas amanhã virá jantar comigo — ela disse com ar sutil. — Amanhã é
dia do Italiens.
— Quanto a mim, irei na plateia — disse o pai Goriot.
Era meia-noite. O carro da sra. de Nucingen estava esperando. O pai Goriot e o
estudante retornaram à Casa Vauquer conversando sobre Delphine com um
entusiasmo crescente que produziu um curioso combate de expressões entre
aquelas violentas paixões. Eugène não conseguia esconder de si mesmo que o
amor do pai, que nenhum interesse pessoal manchava, esmagava o seu pela
persistência e extensão. Para o pai, o ídolo era sempre belo e puro, e sua
adoração crescia tanto com todo o passado como com o futuro. Encontraram a
sra. Vauquer ao lado da estufa, entre Sylvie e Christophe. A velha proprietária
estava ali como Mário sobre as ruínas de Cartago. 61 Esperava os dois únicos
pensionistas que lhe restavam, consolando-se com Sylvie. Embora Lord Byron
tenha atribuído lamentações muito bonitas a Tasso, elas estão bem longe da
profunda verdade das que escapavam da sra. Vauquer.
— Então só serão três xícaras de café para preparar amanhã de manhã, Sylvie.
Ai, ai! Minha casa deserta, não é de partir o coração? O que é a vida sem meus
pensionistas? Rigorosamente nada. Eis minha casa desmobiliada de seus
homens. A vida está toda nos móveis. Que fiz eu ao céu para ter atraído todos
esses desastres? Nossas provisões de vagens e batatas são para vinte pessoas. A
polícia na minha pensão! Então só vamos comer batatas! Então vou demitir
Christophe!
O rapaz da Savoia, que dormia, acordou de repente e disse:
— Senhora?
— Pobre rapaz! É que nem um cão — disse Sylvie.
— Uma estação morta, todo mundo está alojado. De onde me cairão
pensionistas? Perderei a cabeça. E essa sibila da Michonneau que me raptou o
Poiret! O que é que afinal ela fazia para esse homem ter se ligado a ela e a
seguido como um totó?
— Ah, nossa! — disse Sylvie balançando a cabeça —, essas solteironas, essas
aí conhecem todas as espertezas.
— Esse pobre sr. Vautrin que eles transformaram num forçado — prosseguiu a
viúva —, pois é, Sylvie, é mais forte que eu, ainda não acredito. Um homem
alegre desse jeito, que tomava café com aguardente a quinze francos por mês, e
que pagava religiosamente!
— E que era generoso! — disse Christophe.
— Tem um erro aí — disse Sylvie.
— Que nada, ele mesmo confessou — continuou a sra. Vauquer. — E dizer
que todas essas coisas aí aconteceram na minha casa, num bairro onde não passa
nem um gato! Palavra de mulher honesta, estou sonhando! Pois, veja você,
vimos Luís XVI ter seu acidente, vimos o imperador cair, o vimos voltar e cair de
novo, tudo isso estava na ordem das coisas possíveis; ao passo que não há contra
as pensões burguesas essas probabilidades: é possível ficar sem rei, mas sempre
se tem que comer; e quando uma mulher honesta, De Conflans em solteira, serve
jantar com todas as boas coisas, a não ser que chegue o fim do mundo… Mas é
isso, é o fim do mundo.
— E pensar que a srta. Michonneau, que lhe causa todo esse problema, vai
receber, pelo que dizem, mil escudos de renda — exclamou Sylvie.
— Nem me fale nisso, ela não passa de uma facínora! — disse a sra. Vauquer.
— E vai ficar com a Buneaud, para completar! Mas é capaz de tudo, deve ter
feito horrores, em sua época matou, roubou. Devia ir para a prisão das galés no
lugar desse pobre querido homem…
Nesse instante Eugène e o pai Goriot tocaram a campainha.
— Ah! Eis meus dois fiéis — disse a viúva suspirando.
Os dois fiéis, que tinham apenas uma levíssima lembrança dos desastres da
pensão burguesa, anunciaram sem cerimônia à anfitriã que iam morar na
Chaussée d’Antin.
— Ah! Sylvie — disse a viúva —, este era meu último trunfo. Os senhores me
deram o golpe de misericórdia! Isso me atingiu no estômago. Estou com uma
bola aqui. É o tipo do dia que me põe mais dez anos na cabeça! Vou
enlouquecer, palavra de honra! Que fazer das vagens? Ah! bem, se eu ficar
sozinha aqui, você irá embora amanhã, Christophe. Adeus, senhores, boa noite.
— Mas o que ela tem? — perguntou Eugène a Sylvie.
— Virgem! É que todo mundo foi embora por causa dos negócios. Isso lhe
perturbou a cabeça. Arre, a estou ouvindo chorar. Vai fazer bem a ela abrir o
berreiro . Essa aí, é a primeira vez que esvazia os olhos desde que trabalho para
ela.
No dia seguinte a sra. Vauquer tinha, segundo sua expressão, escutado a voz
da razão . Se pareceu aflita como uma mulher que perdera todos os pensionistas,
e cuja vida estava transtornada, mantinha todo o bom senso e mostrou o que era
a verdadeira dor, uma dor profunda, a dor causada pelo interesse ofendido, pelos
hábitos desfeitos. Sem dúvida, o olhar que um apaixonado lança para os lugares
habitados por sua amante, ao deixá-los, não é mais triste do que foi o da sra.
Vauquer para sua mesa vazia. Eugène a consolou dizendo-lhe que Bianchon,
cuja residência terminava dali a alguns dias, iria com certeza substituí-lo; que o
empregado do museu várias vezes manifestara o desejo de ter o apartamento da
sra. Couture, e que em poucos dias ela teria refeito sua clientela.
— Deus o ouça, meu caro senhor! Mas a desgraça está aqui. Antes de dez dias
a morte chegará, o senhor vai ver — disse-lhe dando um olhar lúgubre para a
sala de jantar. — Quem ela pegará?
— Ainda bem que estamos de mudança — disse baixinho Eugène ao pai
Goriot.
— Senhora — disse Sylvie acorrendo assustada —, faz três dias que não vi
Mistigris.
— Ah! bem, se meu gato morreu, se nos deixou, eu…
A pobre viúva não terminou, juntou as mãos e jogou-se no encosto de sua
poltrona, prostrada por esse terrível prognóstico.
Por volta do meio-dia, hora em que os carteiros chegavam ao bairro do
Panthéon, Eugène recebeu uma carta elegantemente envelopada, lacrada com as
armas de Beauséant. Continha um convite dirigido ao sr. e à sra. de Nucingen
para o grande baile anunciado havia um mês, e que devia se realizar na casa da
viscondessa. A esse convite estava anexado um bilhetinho para Eugène:
“Mas”, pensou Eugène ao reler esse bilhete, “a sra. de Beauséant me diz muito
claramente que não quer saber do barão de Nucingen.” Foi prontamente à casa
de Delphine, feliz em poder lhe proporcionar uma alegria cuja recompensa
decerto receberia. A sra. de Nucingen estava no banho. Rastignac esperou no
budoar, às voltas com impaciências naturais num rapaz ardente e apressado em
tomar posse de uma amante, objeto de um ano de desejos. São emoções que não
se encontram duas vezes na vida dos jovens. A primeira mulher realmente
mulher a quem um homem se afeiçoa, isto é, aquela que se apresenta a ele no
esplendor dos complementos que a sociedade parisiense requer, essa aí nunca
tem rival. O amor em Paris em nada se parece com os outros amores. Ali nem os
homens nem as mulheres deixam-se enganar pelas demonstrações enfeitadas de
lugares-comuns que cada um estende por decência sobre seus afetos
supostamente desinteressados. Nessa terra, uma mulher não deve satisfazer
somente o coração e os sentidos, sabe perfeitamente que tem obrigações maiores
a cumprir com as mil vaidades que compõem a vida. Ali, sobretudo o amor é
essencialmente fanfarrão, insolente, esbanjador, charlatão e faustuoso. Se todas
as mulheres da corte de Luís XIV invejaram a sra. de La Vallière pelo ímpeto de
paixão que fez esse grande príncipe esquecer que cada um de seus punhos de
renda custava mil escudos quando ele os rasgou para facilitar ao duque de
Vermandois sua entrada no palco do mundo, 62 o que se pode pedir ao resto da
humanidade? Sejam jovens, ricos e com títulos de nobreza, sejam melhores
ainda se puderem; quanto mais grãos de incenso levarem para queimar perante o
ídolo, mais este lhes será favorável, se todavia tiverem um ídolo. O amor é uma
religião, e seu culto deve custar mais caro que o de todas as outras religiões; ele
passa prontamente, e passa como uma criança que quer marcar sua passagem por
devastações. O luxo do sentimento é a poesia das mansardas; sem essa riqueza,
ali o que seria do amor? Se há exceções a essas leis draconianas do código
parisiense, encontram-se na solidão, entre as almas que não se deixaram arrastar
pelas doutrinas sociais, que vivem perto de alguma fonte de águas claras,
fugidias mas incessantes; que, fiéis às suas sombras verdes, felizes por ouvirem a
linguagem do infinito, escrita para elas em todas as coisas e que elas encontram
em si mesmas, esperam pacientemente suas asas, lamentando as da terra. Mas
Rastignac, semelhante à maioria dos jovens que, de antemão, provaram suas
grandezas, queria se apresentar todo armado na liça da sociedade; sentira sua
febre, e talvez se sentisse com a força de dominá-la, mas sem conhecer os meios
nem o objetivo dessa ambição. Na falta de um amor puro e sagrado, que
preenche a vida, essa sede pelo poder pode se tornar uma bela coisa; basta
despojar-se de todo interesse pessoal e propor-se a grandeza de um país como
objeto. Mas o estudante ainda não chegara ao ponto de onde o homem é capaz de
contemplar o curso da vida e julgá-la. Até então, sequer sacudira por completo o
encanto das frescas e suaves ideias que envolvem como uma folhagem a
juventude das crianças criadas na província. Hesitara continuamente em cruzar o
rubicão parisiense. Apesar de suas ardentes curiosidades, sempre conservara
alguns preconceitos da vida feliz que o verdadeiro fidalgo leva dentro de seu
castelo. No entanto, seus derradeiros escrúpulos haviam desaparecido na
véspera, quando se viu em seu apartamento. Desfrutando das vantagens
materiais da fortuna, como desfrutava havia muito tempo das vantagens morais
dadas pelo berço, despojara-se de sua pele de homem de província e se instalara
suavemente numa situação de onde descobria um belo futuro. Assim, enquanto
esperava Delphine, indolentemente sentado naquele lindo budoar que se tornava
um pouco o seu, via-se tão longe do Rastignac chegado no ano anterior a Paris
que, espiando-o por um efeito de ótica moral, indagava se naquele momento se
assemelhava a si mesmo.
— A senhora está no quarto — Thérèse foi dizer a ele, o que o fez estremecer.
Encontrou Delphine deitada na conversadeira, ao lado da lareira, fresca,
repousada. Ao vê-la assim estendida sobre montes de musselina, era impossível
não compará-la com essas belas plantas da Índia cujo fruto vem dentro da flor.
— Pois é, aqui estamos — ela disse com emoção.
— Adivinhe o que lhe trago — disse Eugène, sentando-se perto dela e
pegando-lhe o braço para beijar sua mão.
A sra. de Nucingen fez um gesto de alegria ao ler o convite. Virou para Eugène
seus olhos rasos e jogou os braços em seu pescoço para atraí-lo para si, num
delírio de vaidosa satisfação.
— E é ao senhor (você — disse-lhe ao ouvido —, mas Thérèse está no meu
gabinete de toalete, sejamos prudentes!), é ao senhor que devo essa felicidade?
Sim, ouso chamar isso de felicidade. Obtido por seu intermédio, não é mais que
um triunfo de amor-próprio? Ninguém quis me apresentar a essa sociedade.
Talvez neste momento me ache pequena, frívola, leviana como uma parisiense;
mas pense, meu amigo, que estou disposta a tudo lhe sacrificar, e que, se desejo
mais ardentemente que nunca ir ao Faubourg Saint-Germain, é porque está lá.
— Não acha — disse Eugène — que a sra. de Beauséant tem jeito de nos dizer
que não espera ver o barão de Nucingen em seu baile?
— Mas claro — disse a baronesa devolvendo a carta a Eugène. — Essas
mulheres têm o gênio da impertinência. Mas pouco importa, irei. Minha irmã
deve estar lá, sei que prepara uma roupa deliciosa. Eugène — continuou
baixinho —, ela vai lá para dissipar pavorosas suspeitas. Não sabe os rumores
que correm a respeito? Nucingen veio me dizer de manhã que ontem se falava
dela no Círculo, sem o menor constrangimento. A que se agarra, meu Deus, a
honra das mulheres e das famílias! Senti-me atacada, ferida por causa de minha
pobre irmã. Segundo certas pessoas, o sr. de Trailles teria subscrito letras de
câmbio que se elevam a cem mil francos, quase todas vencidas, e pelas quais ele
iria ser processado. Diante desse extremo, minha irmã teria vendido seus
diamantes a um judeu, aqueles belos diamantes que você deve ter visto nela, e
que vêm da mãe da sra. de Restaud. Enfim, há dois dias só se fala disso.
Imagino, então, que Anastasie tenha mandado fazer um vestido de lamê e queira
atrair para si todos os olhares na casa da sra. de Beauséant, aparecendo em todo
o seu brilho e com seus diamantes. Mas não quero ficar abaixo dela. Ela sempre
procurou me esmagar, nunca foi boa para mim, que lhe fazia tantos favores, que
sempre tinha dinheiro para lhe dar quando ela não tinha. Mas deixemos a
sociedade, hoje quero ser muito feliz.
À uma da manhã Rastignac ainda estava na casa da sra. de Nucingen, que,
prodigalizando-o com o adeus dos amantes, esse adeus cheio de alegrias
vindouras, disse com uma expressão de melancolia:
— Sou tão medrosa, tão supersticiosa, dê a meus pressentimentos o nome que
quiser, pois tremo de medo de pagar minha felicidade com alguma catástrofe
terrível.
— Menina — disse Eugène.
— Ah! Eu é que sou a criança esta noite — ela disse rindo.
Eugène voltou para a Casa Vauquer com a certeza de abandoná-la no dia
seguinte, e portanto se entregou, no caminho, a esses lindos sonhos que fazem
todos os jovens quando ainda têm nos lábios o gosto da felicidade.
— E então? — perguntou-lhe o pai Goriot quando Rastignac passou defronte
de sua porta.
— E então? — respondeu Eugène —, amanhã lhe direi tudo.
— Tudo, não é? — gritou o homenzinho. — Vá dormir. Amanhã vamos
começar nossa vida feliz.
No dia seguinte, Goriot e Rastignac não esperavam mais nada além da boa
vontade de um mensageiro para partir da pensão burguesa, quando por volta de
meio-dia o barulho de uma carruagem que parou exatamente na porta da Casa
Vauquer ressoou na Rue Neuve-Sainte-Geneviève. A sra. de Nucingen desceu de
seu carro, perguntou se o pai ainda estava na pensão. Diante da resposta
afirmativa de Sylvie, subiu rapidamente a escada. Eugène estava em seu quarto
sem que seu vizinho soubesse. Ao almoçar, ele pedira ao pai Goriot para levar
seus pertences, dizendo-lhe que se encontrariam às quatro horas na Rue d’Artois.
Mas enquanto o homenzinho fora buscar uns carregadores, Eugène, tendo
prontamente respondido à chamada na escola, voltara sem que ninguém
percebesse, para acertar as contas com a sra. Vauquer, não querendo deixar essa
tarefa para Goriot, que em seu fanatismo com certeza teria pagado para ele. A
proprietária tinha saído. Eugène tornou a subir para o quarto a fim de ver se não
esquecera nada, e congratulou-se por ter tido esse pensamento ao ver na gaveta
de sua mesa o aceite em branco, subscrito a Vautrin, que ele jogara ali
displiscentemente no dia em que pagara o que devia. Não tendo lareira, ia rasgá-
lo em pedacinhos quando, reconhecendo a voz de Delphine, não quis fazer
nenhum barulho e parou para ouvi-la, pensando que ela não devia ter nenhum
segredo para ele. Depois, desde as primeiras palavras, achou a conversa entre pai
e filha muito interessante para não escutá-la.
— Ah! papai — ela disse —, Deus queira que o senhor tenha tido a ideia de
pedir contas de minha fortuna suficientemente a tempo para que eu não esteja
arruinada! Posso falar?
— Pode, a casa está vazia — disse o pai Goriot com voz alterada.
— Mas o que tem, meu pai? — continuou a sra. de Nucingen.
— Você acaba de me dar — respondeu o velho — uma machadada na cabeça.
Deus a perdoe, minha filha! Não sabe como a amo; se soubesse, não me teria
dito abruptamente essas coisas, sobretudo se nada é desesperador. O que afinal
aconteceu de tão premente para que tenha vindo me procurar aqui quando em
poucos instantes estaríamos na Rue d’Artois?
— Ei, meu pai, somos senhores de nosso primeiro movimento numa
catástrofe? Estou louca! Seu advogado nos fez descobrir um pouco mais cedo a
desgraça que provavelmente explodirá mais tarde. Sua velha experiência
comercial vai nos ser necessária, e vim correndo buscá-lo como quem se agarra a
um galho quando se afoga. Quando o sr. Derville viu Nucingen lhe opor mil
chicanas, ameaçou-o com um processo dizendo-lhe que a autorização do
presidente do tribunal seria prontamente obtida. Nucingen veio de manhã à
minha casa para me perguntar se eu queria sua ruína e a minha. Respondi-lhe
que não entendia nada disso, que tinha uma fortuna, que devia estar em posse de
minha fortuna, e que tudo o que tinha a ver com esse litígio se referia a meu
advogado, pois eu estava na ignorância total e na impossibilidade de entender
alguma coisa sobre o assunto. Não era o que o senhor me recomendara dizer?
— Bem — respondeu o pai Goriot.
— Pois é — continuou Delphine —, ele me pôs a par de seus negócios. Jogou
todos os seus capitais e os meus em empresas que estão começando, e nas quais
ainda foi preciso investir grandes quantias externas. Se eu o forçasse a me
prestar contas de meu dote, seria obrigado a decretar falência; ao passo que, se
eu quiser esperar um ano, compromete-se, dando sua palavra, a me devolver
uma fortuna dupla ou tripla da minha investindo meu capital em operações
territoriais ao fim das quais serei dona de todos os bens. Meu pai querido, ele era
sincero, me assustou. Pediu-me perdão por seu comportamento, me devolveu
minha liberdade, permitiu que me comportasse como bem entendesse, contanto
que o deixasse inteiramente livre para gerir os negócios em meu nome.
Prometeu-me, para me provar sua boa-fé, chamar o sr. Derville sempre que eu
quisesse, para julgar se os atos em virtude dos quais me instituiria proprietária
estariam convenientemente redigidos. Enfim, pôs-se em minhas mãos, de pés e
punhos atados. Pede-me ainda, durante dois anos, a condução da casa, e me
suplicou que nada gaste comigo além do que me concede. Provou-me que tudo o
que podia fazer era manter as aparências, que tinha despachado sua dançarina, e
que seria obrigado à mais estrita, porém mais severa, economia, a fim de chegar
ao término de suas especulações sem alterar seu crédito. Eu o maltratei, pus tudo
em dúvida a fim de pô-lo contra a parede e conhecer mais a história: mostrou-me
seus livros e por fim chorou. Nunca vi um homem num estado desses. Perdeu a
cabeça, falava em se matar, delirava. Deu-me pena.
— E você acredita nessas lorotas? — exclamou o pai Goriot. — É um ator!
Encontrei alemães nos negócios: essas pessoas aí são quase todas de boa-fé,
cheias de candura; mas quando, sob seu ar de franqueza e bonomia, começam a
ser espertas e charlatãs, são mais que as outras. Seu marido a está enganando.
Sente-se pressionado de perto, faz-se de morto, quer permanecer mais dono de
tudo sob o seu nome do que é sob o dele. Vai aproveitar essa circunstância para
se pôr ao abrigo dos acasos de seu comércio. É tão astuto quanto pérfido; é um
mau sujeito. Não, não, não irei para o Père-Lachaise deixando minhas filhas
desprovidas de tudo. Ainda me conheço um pouco nos negócios. Ele
comprometeu — disse — os fundos próprios nas empresas, pois bem, os
interesses dele são representados por valores, por reconhecimentos de dívidas,
por contratos! Que os mostre e salde as contas com você. Escolheremos as
melhores especulações, correremos os riscos, e teremos os títulos exequíveis em
nosso nome, de Delphine Goriot, casada em separação de bens com o barão de
Nucingen . Mas esse aí nos toma por imbecis? Pensa que consigo suportar por
dois dias a ideia de deixá-la sem fortuna, sem pão? Eu não suportaria nem um
dia, nem uma noite, nem duas horas! Se essa ideia fosse verdadeira, eu não
sobreviveria. Ei, afinal!, terei trabalhado durante quarenta anos de minha vida,
terei carregado sacas nas costas, terei suado em bicas, terei me privado toda a
minha vida por vocês, meus anjos, que me tornavam todo trabalho e todo fardo
leves, e hoje minha fortuna, minha vida iriam em fumaça? Isso me faria morrer
de raiva. Por tudo que há de mais sagrado na terra e no céu, vamos tirar isso a
limpo, verificar os livros, o cofre, as empresas! Não durmo, não me deito, não
como, até que me seja provado que sua fortuna está aí, inteira. Graças a Deus,
você é casada com separação de bens; terá o dr. Derville como advogado,
felizmente um homem honesto. Santo Deus! Guardará seu bom milhãozinho,
suas cinquenta mil libras de renda, até o fim de seus dias, ou eu armo um bafafá
em Paris, ah! ah! Mas eu me dirigiria às câmaras se os tribunais nos
prejudicassem. Saber que você está tranquila e feliz quanto a dinheiro, esse
pensamento aliviaria todos os meus males e acalmaria minhas tristezas. O
dinheiro é a vida. A moeda faz tudo. O que então nos está armando esse casca-
grossa do alsaciano? Delphine, não faça uma concessão de nem um quarto de
vintém a esse bestalhão, que a acorrentou e a tornou infeliz. Se precisa de você,
vamos cobri-lo de pauladas para valer, e o faremos andar na linha. Meu Deus,
minha cabeça está escaldante, sinto no crânio alguma coisa que me queima.
Minha Delphine na miséria! Oh, minha Fifine, você! Com os diabos! Onde estão
minhas luvas? Vamos sair, quero ir ver tudo, os livros, os negócios, o cofre, a
correspondência, neste instante. Só me acalmarei quando me for provado que
sua fortuna não corre mais riscos, e que eu a vir com meus olhos.
— Meu querido pai! Vá com cautela. Se pusesse a menor veleidade de
vingança nesse negócio, e se mostrasse intenções demasiado hostis, eu estaria
perdida. Ele o conhece, achou muito natural que, sob sua inspiração, eu me
inquietasse por minha fortuna; mas juro ao senhor, ele a tem entre as mãos, e
quis mantê-la. É homem de fugir com todos os capitais e de nos deixar aí, esse
celerado! Ele bem sabe que eu mesma não desonrarei o nome que carrego
processando-o. É ao mesmo tempo forte e fraco. Examinei tudo muito bem. Se o
encurralarmos, estou arruinada.
— Mas então é um patife?
— Pois bem, sim, meu pai — disse jogando-se numa cadeira, aos prantos. —
Eu não queria confessar-lhe para poupá-lo da tristeza de ter me casado com um
homem dessa espécie! Costumes secretos e consciência, a alma e o corpo, tudo
nele se harmoniza! É pavoroso: eu o odeio e o desprezo. Sim, não consigo mais
estimar esse vil Nucingen depois de tudo o que me disse. Um homem capaz de
se jogar nos arranjos comerciais que me contou não tem a menor delicadeza, e
meus temores vêm do que li perfeitamente em sua alma. Propôs-me claramente,
ele, meu marido, a liberdade; sabe o que isso significa, se eu quisesse ser, em
caso de desgraça, um instrumento em suas mãos, em suma, se quisesse lhe servir
de testa de ferro?
— Mas as leis estão aí! Mas há uma Place de Grève para os genros dessa
espécie — exclamou o pai Goriot —, mas eu mesmo o guilhotinaria se não
houvesse um carrasco.
— Não, meu pai, não há leis contra ele. Escute em duas palavras a linguagem
dele, destituída dos circunlóquios com que a envolvia: “Ou está tudo perdido,
você não tem um tostão, está arruinada, pois eu não escolheria como cúmplice
outra pessoa que não você; ou me deixará conduzir como quero minhas
empresas”. Está claro? Ainda está ligado a mim. Minha probidade de mulher o
tranquiliza; sabe que lhe deixarei sua fortuna e me contentarei com a minha. É
uma associação desonesta e de ladroagem à qual devo consentir sob pena de
ficar arruinada. Compra minha consciência e paga por ela deixando-me ser, à
vontade, a mulher de Eugène. “Permito-lhe cometer erros, deixe-me cometer
crimes arruinando a pobre gente!” Essa linguagem não é bastante clara? Sabe o
que ele chama “fazer operações”? Compra terrenos baldios em seu nome, depois
manda construir casas, por testas de ferro. Esses homens fecham os contratos
para as construções com todos os empreendedores, a quem pagam em títulos a
longo prazo, e aceitam, mediante uma pequena quantia, dar quitação a meu
marido, que então se torna dono das casas, enquanto esses homens se livram dos
empreendedores tapeados indo à falência. O nome da casa de Nucingen serviu
para deslumbrar os pobres construtores. Isso eu entendi. Entendi também que,
para comprovar, caso necessário, o pagamento de quantias enormes, Nucingen
enviou valores consideráveis a Amsterdam, a Londres, a Nápoles, a Viena.
Como os penhoraremos?
Eugène ouviu o som pesado dos joelhos do pai Goriot, que provavelmente caiu
nos ladrilhos do quarto.
— Meu Deus, o que lhe fiz? Minha filha entregue a esse miserável, ele exigirá
tudo dela, se quiser. Desculpe, minha filha! — gritou o velho.
— Sim, se estou num abismo, talvez seja um pouco culpa sua — disse
Delphine. — Temos tão pouco juízo quando nos casamos! Acaso conhecemos o
mundo, os negócios, os homens, os costumes? Os pais deveriam pensar por nós.
Pai querido, nada o recrimino, desculpe-me essas palavras. Nisso o erro é todo
meu. Não, não chore, papai — disse beijando a testa do pai.
— Não chore tampouco, minha pequena Delphine. Dê seus olhos, para que os
enxugue beijando-os. Ande! Vou recuperar minha cachola e desenrolar a meada
dos negócios que seu marido enrolou.
— Não, deixe-me fazer; saberei manobrá-lo. Ele me ama, pois então vou me
servir de minha influência sobre ele para levá-lo a investir prontamente alguns
capitais meus em propriedades. Talvez o faça comprar em meu nome Nucingen,
na Alsácia, ele gosta de lá. Venha só amanhã para examinar os livros, os
negócios dele. O sr. Derville não entende nada do que é comercial. Não, não
venha amanhã. Não quero me amofinar. O baile da sra. de Beauséant acontece
depois de amanhã, quero me cuidar para estar bela, descansada, e honrar meu
querido Eugène! Vamos então ver seu quarto!
Nesse instante um carro parou na Rue Neuve-Sainte-Geneviève, e ouviu-se na
escada a voz da sra. de Restaud, que dizia a Sylvie: “Meu pai está aí?”. Essa
circunstância, felizmente, salvou Eugène, que já meditava em se jogar na cama e
fingir estar dormindo.
— Ah, meu pai!, falaram-lhe de Anastasie? — disse Delphine ao reconhecer a
voz da irmã. — Parece que também lhe acontecem coisas singulares em seu
casamento.
— Como é mesmo? — disse o pai Goriot. — Então seria meu fim. Minha
pobre cabeça não aguentará uma dupla desgraça.
— Bom dia, papai — disse a condessa ao entrar. — Ah, ei-la aqui, Delphine.
A sra. de Restaud pareceu constrangida ao encontrar a irmã.
— Bom dia, Nasie — disse a baronesa. — Então acha minha presença
extraordinária? Vejo papai todo dia.
— Desde quando?
— Se viesse aqui, saberia.
— Não implique comigo, Delphine — disse a condessa num tom lamentável.
— Estou um bocado infeliz, estou perdida, meu pobre pai! Oh, desta vez, bem
perdida!
— O que você tem, Nasie? — exclamou o pai Goriot. — Conte-nos tudo,
minha filha.
Ela empalideceu.
— Vamos, Delphine, acuda-a, ora, seja boa com ela, gostarei ainda mais de
você, se conseguir!
— Minha pobre Nasie — disse a sra. de Nucingen sentando a irmã —, fale.
Veja em nós as duas únicas pessoas que sempre a amarão o bastante para
perdoar-lhe tudo. As afeições familiares são as mais seguras, sabe?
Ela a fez respirar uns sais, e a condessa voltou a si.
— Morrerei por causa disso — disse o pai Goriot. — Vejamos — continuou
remexendo seu fogo de torrões de turfa —, aproximem-se vocês duas. Estou com
frio. O que tem, Nasie? Diga logo, está me matando…
— Pois bem — disse a pobre mulher —, meu marido sabe tudo. Imagine, meu
pai, que há algum tempo, lembra-se daquela letra de câmbio de Maxime? Pois é,
não era a primeira. Eu já tinha pagado muitas. Pelo início de janeiro, o sr. de
Trailles me parecia muito triste. Não me dizia nada; mas é tão fácil ler no
coração de quem amamos, basta um nadinha: além disso, há os pressentimentos.
Por fim, estava mais amoroso, mais terno do que jamais o tinha visto, e eu me
sentia cada vez mais feliz. Pobre Maxime! Em seu pensamento, me dava adeus,
conforme me disse; queria dar um tiro nos miolos. Finalmente, tanto o
atormentei, tanto supliquei, fiquei duas horas ajoelhada diante dele. Disse-me
que devia cem mil francos! Oh, papai, cem mil francos! Fiquei louca. O senhor
não os tinha, eu havia devorado tudo.
— Não — disse o pai Goriot —, eu não poderia produzi-los, a não ser que
fosse roubá-los. Mas teria ido, Nasie! Irei!
Diante dessas palavras largadas de modo lúgubre, como um som de estertor de
um moribundo, e que indicava a agonia do sentimento paterno reduzido à
impotência, as duas irmãs fizeram uma pausa. Que egoísmo teria ficado frio a
esse grito de desespero que, semelhante a uma pedra lançada num abismo, lhe
revelava a profundeza?
— Encontrei-os dispondo daquilo que não me pertencia, meu pai — disse a
condessa, desfazendo-se em lágrimas.
Delphine ficou comovida e chorou pondo a cabeça sobre o pescoço da irmã.
— Então é tudo verdade — disse-lhe.
Anastasie baixou a cabeça, a sra. de Nucingen agarrou todo seu corpo, beijou-a
carinhosamente e, apertando o coração, disse-lhe:
— Aqui você será sempre amada sem ser julgada.
— Meus anjos — disse Goriot com uma voz fraca —, por que a união de vocês
se deve à infelicidade?
— Para salvar a vida de Maxime, em suma, para salvar toda a minha felicidade
— retomou a condessa encorajada por esses testemunhos de uma ternura cálida e
palpitante —, levei a esse agiota que vocês conhecem, um homem fabricado pelo
inferno, que nada é capaz de enternecer, esse sr. Gobseck, os diamantes de
família aos quais o sr. de Restaud é tão apegado, os dele, os meus, tudo, e os
vendi. Vendi! Entendem? Ele foi salvo! Mas eu, eu estou morta. Restaud soube
de tudo.
— Por quem? Como? Que eu o mato! — gritou o pai Goriot.
— Ontem, mandou me chamar a seu quarto. Fui… “Anastasie”, disse-me com
uma voz… (ah! bastou sua voz, adivinhei tudo), “Onde estão seus diamantes? —
Comigo. — Não”, disse me olhando, “estão aí, na minha cômoda.” E me
mostrou o estojo, que cobrira com seu lenço. “Sabe de onde vêm?”, perguntou.
Caí diante de seus joelhos… chorei, perguntei-lhe de que morte queria me ver
morrer.
— Você disse tudo isso! — exclamou o pai Goriot. — Pelo sagrado nome de
Deus, aquele que fizer mal a uma ou a outra, enquanto eu for vivo, pode ter
certeza de que o queimarei a fogo brando! Sim, o despedaçarei como…
O pai Goriot se calou, as palavras expiravam em sua garganta.
— Enfim, minha querida, ele me pediu alguma coisa mais difícil de fazer do
que morrer. Que o céu preserve qualquer mulher de ouvir o que ouvi!
— Assassinarei esse homem — disse o pai Goriot tranquilamente. — Mas ele
só tem uma vida, e me deve duas. Enfim, o que foi? — retrucou olhando para
Anastasie.
— Pois bem — prosseguiu a condessa, depois de uma pausa —, me olhou e
disse: “Anastasie, enterro tudo no silêncio, permaneceremos juntos, temos filhos.
Não matarei o sr. de Trailles, poderia não acertá-lo, e para me desfazer dele de
outra maneira poderia esbarrar na justiça humana. Matá-lo em seus braços seria
desonrar as crianças. Mas, para não ver morrerem os seus filhos nem o pai deles
nem eu, imponho-lhe duas condições. Responda: Tenho um filho meu?”. Eu
disse sim. “Qual?”, perguntou. — Ernest, nosso primogênito. — Bem —
respondeu. “Agora, jure-me obedecer-me, a partir de hoje, num único ponto.”
Jurei. “Você assinará a venda de seus bens quando eu lhe pedir.”
— Não assine — gritou o pai Goriot. — Jamais assine isso. Ah! Ah!, sr. de
Restaud, não sabe o que é tornar feliz uma mulher, ela vai buscar a felicidade lá
onde esta se encontrar, e o senhor a castiga com sua tola impotência?… Mas
estou aqui, alto lá! Esse aí vai me encontrar em seu caminho. Nasie, fique
sossegada. Ah, ele é afeiçoado a seu herdeiro! Bom, bom. Agarrarei seu filho,
que, raios me partam, é meu neto. Posso, afinal, ver esse pirralho? Meto-o na
minha aldeia, cuidarei dele, fique muito tranquila. Farei capitular esse monstro
aí, dizendo-lhe: “Agora, nós dois! Se quiser ter seu filho, devolva à minha filha
os bens dela, e deixe-a se comportar como bem entender”.
— Meu pai!
— Sim, seu pai! Ah! Sou um verdadeiro pai. Que esse grande nobre
engraçadinho não maltrate minhas filhas. Diachos! Não sei o que tenho nas
veias; tenho aí o sangue de um tigre, gostaria de devorar esses dois homens. Ó,
minhas crianças! Esta é então a vida de vocês? Mas é a minha morte. Então o
que será de vocês quando eu não estiver mais aqui? Os pais deveriam viver tanto
quanto os filhos. Meus Deus, como o teu mundo é mal-arranjado! E no entanto
tens um filho, pelo que nos dizem. Devias nos impedir de sofrermos em nossos
filhos. Pois é, meus queridos anjos! Só devo a presença de vocês às suas dores.
Vocês só me fazem conhecer as suas lágrimas. Bem, sim, me amam, estou
vendo. Venham, venham se queixar aqui! Meu coração é grande, pode tudo
receber. Sim, por mais que vocês o trespassem, os destroços ainda formarão um
coração de pai. Gostaria de pegar as suas penas, sofrer por vocês. Ah! Quando
eram pequenas, eram muito felizes…
— Nós só tivemos aqueles tempos de bom — disse Delphine. — Onde estão os
momentos em que degringolávamos do alto das sacas no grande sótão?
— Meu pai! Não é só isso — disse Anastasie ao ouvido de Goriot, que deu um
pulo. — Os diamantes não foram vendidos por cem mil francos. Maxime está
sendo processado. Não temos mais que doze mil francos para pagar. Ele me
prometeu se comportar, parar de jogar. Não me resta mais nada no mundo além
do amor dele, e por ele paguei muito caro para não morrer se me escapasse.
Sacrifiquei-lhe fortuna, honra, repouso, filhos. Oh! faça com que ao menos
Maxime fique livre, honrado, com que possa permanecer na sociedade, onde
saberá conseguir uma posição. Agora ele não me deve apenas a felicidade, temos
filhos que ficariam sem fortuna. Tudo estará perdido se ele for posto na Sainte-
Pélagie. 63
— Não os tenho, Nasie. Nada, mais nada, mais nada! É o fim do mundo. Oh! o
mundo vai desabar, é certo. Vá embora, salve-se antes! Ah! Ainda tenho minhas
argolas de prata, seis talheres, os primeiros que tive na vida. Enfim, não tenho
mais que mil e duzentos francos de renda vitalícia…
— Que fez então de suas rendas perpétuas?
— Vendia-as, reservando-me esse pouquinho de renda para minhas
necessidades. Eu precisava de doze mil francos para arrumar um apartamento
para Fifine.
— Sua casa, Delphine? — perguntou à irmã a sra. de Restaud.
— Oh! o que isso pode mudar! — retrucou o pai Goriot —, os doze mil
francos estão empregados.
— Adivinho — disse a condessa. — Para o sr. de Rastignac. Ah! minha pobre
Delphine, pare. Veja a que ponto cheguei.
— Minha querida, o sr. de Rastignac é um moço incapaz de arruinar sua
amante.
— Obrigada, Delphine. Na crise em que me encontro, esperava mais de você;
mas você nunca gostou de mim.
— Sim, ela gosta de você, Nasie — gritou o pai Goriot —, me dizia isso há
pouco. Falávamos de você, ela me afirmava que você era bela e que, quanto a
ela, era apenas bonita.
— Ela! — repetiu a condessa —, ela é de uma beleza fria.
— Ainda que fosse isso — disse Delphine corando —, como se comportou
comigo? Você me renegou, me fez fecharem as portas de todas as casas aonde
eu desejava ir, em suma, jamais perdeu a menor ocasião para me fazer sofrer. E
eu vim como você extorquir deste pobre pai, de mil em mil francos, sua fortuna
e reduzi-lo ao estado em que ele se encontra? Aí está a sua obra, minha irmã.
Quanto a mim, vi meu pai tanto quanto pude, não o pus no olho da rua, e não
vim lhe lamber as mãos quando precisava dele. Somente não sabia que ele havia
empregado esses doze mil francos para mim. Sou organizada!, você sabe. Aliás,
quando papai me deu presentes, nunca os mendiguei.
— Era mais feliz que eu: o sr. de Marsay era rico, você sabe algo a respeito.
Você sempre foi vil como o ouro. Adeus, não tenho nem irmã, nem…
— Cale-se, Nasie! — gritou o pai Goriot.
— Só uma irmã como você pode repetir aquilo em que nem a sociedade já não
acredita, você é um monstro — disse-lhe Delphine.
— Minhas filhas, minhas filhas, calem-se, ou me mato diante de vocês.
— Bem, Nasie, eu a perdoo — disse a sra. de Nucingen, continuando —, você
é uma pobre coitada. — Mas sou melhor que você. Dizer-me isso no momento
em que me sentia capaz de tudo para socorrê-la, até mesmo entrar no quarto de
meu marido, o que não faria nem por mim nem por… Isso é digno de todo o mal
que cometeu contra mim há nove anos.
— Minhas filhas, minhas filhas, beijem-se! — disse o pai. — Vocês são dois
anjos.
— Não, deixe-me — gritou a condessa, que Goriot pegara pelo braço e que se
livrou do abraço do pai. — Ela tem menos pena de mim do que teria meu
marido. Não se diria que é a imagem de todas as virtudes!
— Ainda prefiro ser vista como quem deve dinheiro ao sr. de Marsay do que
confessar que o sr. de Trailles me custa mais de duzentos mil francos —
respondeu a sra. de Nucingen.
— Delphine! — gritou a condessa dando um passo em sua direção.
— Eu lhe digo a verdade enquanto você me calunia — retrucou friamente a
baronesa.
— Delphine! Você é uma…
O pai Goriot se lançou, segurou a condessa e a impediu de falar cobrindo-lhe a
boca com a mão.
— Meu Deus! Meu pai, no que o senhor esteve remexendo hoje de manhã? —
perguntou-lhe Anastasie.
— Pois é, sim, estou errado — disse o pobre pai enxugando as mãos na calça.
— Mas não sabia que vocês viriam, estou me mudando.
Ele estava feliz por ter atraído uma crítica que desviava para si a raiva da filha.
— Ah! — prosseguiu, sentando-se — vocês me partiram o coração. Estou
morrendo, minhas filhas. Meu crânio está assando internamente como se tivesse
fogo. Então sejam boazinhas e amem-se! Vocês me matariam. Delphine, Nasie,
vamos, estavam certas, estavam erradas, as duas. Vejamos, Dedel — continuou
virando para a baronesa, olhos cheios de lágrimas —, ele precisa de doze mil
francos, vamos procurá-los. Não se olhem assim.
Pôs-se de joelhos diante de Delphine.
— Peça-lhe desculpas para me dar prazer — disse-lhe ao ouvido —, ela é a
mais infeliz, não é mesmo?
— Minha pobre Nasie — disse Delphine apavorada com a selvagem e
alucinada expressão que a dor imprimia no rosto do pai —, errei, beije-me…
— Ah! Vocês estão pondo um bálsamo no coração — gritou o pai Goriot. —
Mas onde encontrar doze mil francos? E se eu me propusesse como substituto?
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— Ah! Meu pai! — disseram as duas filhas, cercando-o —, não, não.
— Deus o recompensará por esse pensamento, nossa vida não bastaria!, não é,
Nasie? — continuou Delphine.
— E além disso, pobre pai, seria uma gota d’água — a condessa observou.
— Mas então nada podemos fazer com nosso próprio sangue? — gritou o
velho, desesperado. — Devoto-me àquele que a salvar, Nasie! Matarei um
homem por ele. Farei como Vautrin, irei para as galés! Eu… — Parou como se
tivesse sido fulminado. — Mais nada! — disse arrancando os cabelos. — Se
soubesse aonde ir para roubar, mas ainda assim é difícil encontrar um roubo para
fazer. E, além disso, seria preciso gente e tempo para assaltar o Banco de França.
Pois é, devo morrer, só me resta morrer. Sim, já não sirvo para nada, não sou
mais pai! Não. Ela me pede, ela precisa! E eu, miserável, não tenho nada. Ah!
você conseguiu rendas vitalícias, velho celerado, e tinha filhas! Mas então não as
ama? Morra, morra como um cão que é! Sim, estou mais baixo que um cão, um
cão não se comportaria assim! Oh, minha cabeça! Está fervendo!
— Mas papai — gritaram as duas jovens mulheres que o cercavam para
impedi-lo de bater a cabeça contra as paredes —, seja, afinal, sensato!
Ele soluçava. Eugène, apavorado, pegou a letra de câmbio subscrita em favor
de Vautrin, e cujo selo comportava uma quantia maior; corrigiu o algarismo,
transformou-a numa letra de câmbio regular de doze mil francos em nome de
Goriot e entrou.
— Aqui está todo o seu dinheiro, senhora — disse apresentando o papel. — Eu
estava dormindo, sua conversa me acordou, pude assim saber o que eu devia ao
sr. Goriot. Aqui está o título que poderá descontar, vou pagá-lo fielmente.
A condessa, imóvel, segurava o papel.
— Delphine — disse ela, pálida e trêmula de cólera, de fúria, de raiva —, eu
lhe perdoaria tudo, Deus é testemunha, mas isto! Como? Este senhor estava aí, e
você sabia! Teve a mesquinharia de se vingar deixando-me entregar a ele meus
segredos, minha vida, a de meus filhos, minha vergonha, minha honra! Saiba,
você não é mais nada para mim, odeio-a, vou lhe fazer todo o mal possível, eu…
— A raiva lhe cortou a palavra, e sua garganta secou.
— Mas é meu filho, nosso filho, seu irmão, seu salvador — gritava o pai
Goriot. — Beije-o, ora essa, Nasie! Veja, eu o beijo — continuou apertando
Eugène com uma espécie de furor. — Oh, meu filho! Serei mais que um pai para
você, quero ser uma família. Gostaria de ser Deus, vou jogar o universo a seus
pés. Mas beije-o, afinal, Nasie! Não é um homem, mas um anjo, um verdadeiro
anjo.
— Deixe-a, meu pai, ela está louca neste momento — disse Delphine.
— Louca! Louca! E você, o que está? — perguntou a sra. de Restaud.
— Minhas filhas, vou morrer se continuarem — gritou o velho caindo na cama
como que ferido por uma bala. “Elas me matam!”, pensou.
A condessa olhou para Eugène, que permanecia imóvel, perplexo com a
violência daquela cena:
— Senhor — ela lhe disse interrogando-o com o gesto, com a voz e o olhar,
sem prestar atenção no pai, cujo colete foi rapidamente desabotoado por
Delphine.
— Senhora, pagarei e me calarei — ele respondeu sem esperar a pergunta.
— Você matou nosso pai, Nasie! — disse Delphine mostrando à irmã, que
escapuliu, o velho desmaiado.
— De fato a perdoo — disse o bom homem abrindo os olhos —, sua situação é
terrível e transtornaria uma cabeça mais assentada. Console Nasie, seja meiga
com ela, prometa a seu pobre pai, que está morrendo — pediu a Delphine
apertando sua mão.
— Mas o que o senhor tem? — ela perguntou muito assustada.
— Nada, nada — respondeu o pai —, isso vai passar. Tenho alguma coisa que
me comprime a testa, uma enxaqueca. Pobre Nasie, que futuro!
Nesse momento a condessa voltou, jogou-se aos pés do pai:
— Perdão! — gritou.
— Ora — disse o pai Goriot —, você me faz ainda mais mal agora.
— Senhor — disse a condessa a Rastignac, com os olhos banhados de lágrimas
—, a dor me tornou injusta. — Será um irmão para mim? — prosseguiu
estendendo-lhe a mão.
— Nasie — disse-lhe Delphine apertando-a —, minha pequena Nasie,
esqueçamos tudo.
— Não — disse ela —, hei de me lembrar!
— Anjos — exclamou o pai Goriot —, vocês me tiram a cortina que eu tinha
sobre os olhos, suas vozes me reanimam. Então beijem-se de novo. Pois bem,
Nasie, esta letra de câmbio a salvará?
— Espero. Mas diga, papai, quer pôr sua assinatura nela?
— Ora, como sou tolo, esquecer isso! Mas é que passei mal, Nasie, não brigue
comigo. Mande me dizer que está fora de apuros. Não, eu irei. Mas não, não irei,
não posso mais ver seu marido, o mataria na hora. Quanto a alterar a natureza de
seus bens, lá estarei. Vá depressa, minha filha, e faça com que Maxime se
comporte direito.
Eugène estava perplexo.
— Essa pobre Anastasie sempre foi violenta — disse a sra. de Nucingen —,
mas tem bom coração.
— Ela voltou para o endosso — disse Eugène ao ouvido de Delphine.
— Acha?
— Eu gostaria de não acreditar. Desconfie dela — respondeu levantando os
olhos como para confiar a Deus pensamentos que não ousasse expressar.
— Sim, sempre foi um pouco artista, e meu pobre pai se deixa enganar por
seus dramas.
— Como vai, meu bom pai Goriot? — perguntou Rastignac ao velhote.
— Tenho vontade de dormir — ele respondeu.
Eugène ajudou Goriot a se deitar. Depois, quando o bom homem adormeceu
segurando a mão de Delphine, sua filha se retirou.
— Esta noite no Italiens — ela disse a Eugène —, você me dirá como ele vai.
Amanhã se mudará, cavalheiro. Vejamos seu quarto. Oh! Que horror! — ela
disse ao entrar. — Mas estava pior que meu pai. Eugène, você se comportou
bem. Gostaria ainda mais de você se isso fosse possível; mas, meu menino, se
quer fazer fortuna, não deve jogar assim doze mil francos pela janela. O conde
de Trailles é jogador. Minha irmã não quer enxergar isso. Ele teria ido buscar
seus doze mil francos ali onde sabe perder ou ganhar montes de ouro.
Um gemido os fez voltar ao quarto de Goriot, que encontraram aparentemente
adormecido; mas, quando os dois amantes se aproximaram, ouviram estas
palavras: “Elas não são felizes!”. Que ele dormisse ou estivesse acordado, o tom
dessa frase feriu tão profundamente o coração de sua filha que ela se aproximou
do catre sobre o qual jazia o pai e o beijou na fronte. Ele abriu os olhos dizendo:
— É Delphine!
— Pois é, como está? — ela perguntou.
— Bem — ele disse. — Não fique preocupada, vou sair. Andem, andem, meus
filhos, sejam felizes.
Eugène acompanhou Delphine à casa dela; mas, aflito com o estado em que
deixara Goriot, recusou-se a jantar com ela e voltou para a Casa Vauquer.
Encontrou o pai Goriot de pé e pronto para se sentar à mesa. Bianchon se
instalara de maneira a bem examinar o rosto do macarroneiro. Quando o viu
pegar seu pão e o cheirar para julgar a farinha com que era feito, o estudante,
tendo observado nesse movimento uma ausência total do que se poderia chamar
de consciência do ato, fez um gesto sinistro.
— Mas venha para perto de mim, senhor residente do Hospital Cochin — disse
Eugène.
Bianchon se transferiu para o lado dele com mais satisfação ainda porque ia
ficar perto do velho pensionista.
— O que ele tem? — perguntou Rastignac.
— A menos que me engane, está frito! Deve ter ocorrido alguma coisa de
extraordinário com ele, que me parece estar prestes a ter uma apoplexia serosa
iminente. Embora a parte inferior do rosto esteja bastante serena, as feições
superiores repuxam para a testa, involuntariamente, veja! Além disso, os olhos
se encontram no estado especial que denota a invasão do soro no cérebro. Não
aparentam estar cheios de uma poeira fina? Amanhã de manhã saberei mais.
— Haveria algum remédio?
— Nenhum. Talvez se possa retardar sua morte se encontrarmos os meios de
conseguir uma reação nas extremidades, nas pernas; mas, se amanhã de noite os
sintomas não desaparecerem, o pobre homem está perdido. Sabe qual
acontecimento causou a doença? Ele deve ter recebido um golpe violento sob o
qual seu estado de espírito terá sucumbido.
— Sim — disse Rastignac, lembrando-se de que as filhas tinham batido sem
sossego no coração do pai.
“Pelo menos”, pensava Eugène, “ela, Delphine, ama o pai!”
À noite, no Italiens, Rastignac tomou algumas precauções a fim de não alarmar
demais a sra. de Nucingen.
— Não se aflija — ela respondeu às primeiras palavras que Eugène lhe disse
—, meu pai é forte. Só que de manhã nós o sacudimos um pouco. Nossas
fortunas estão em jogo, imagina a extensão dessa desgraça? Eu não viveria se
seu afeto não me tornasse insensível ao que outrora eu veria como angústias
mortais. Hoje não há mais que um só temor, uma só infelicidade para mim:
perder o amor que me fez sentir o prazer de viver. Fora desse sentimento, tudo
me é indiferente, nada mais amo no mundo. Você é tudo para mim. Se sinto a
felicidade de ser rica, é para melhor agradá-lo. Sou, para minha vergonha, mais
amante que filha. Por quê? Não sei. Toda a minha vida está em você. Meu pai
me deu um coração, mas você o fez bater. O mundo inteiro pode me censurar,
que me importa!, se você, que não tem o direito de me querer mal, me absolve
por crimes a que me condenou um sentimento irresistível? Acredita que sou uma
filha desnaturada? Oh, não, é impossível não amar um pai tão bom como é o
nosso. Podia eu impedir que ele não visse enfim a continuação natural de nossos
deploráveis casamentos? Por que não os impediu? Não cabia a ele refletir por
nós? Hoje, eu sei, sofre tanto quanto nós; mas que podíamos fazer? Consolá-lo!
Não o consolaríamos de nada. Nossa resignação lhe causava mais dor que nossas
críticas e nossas queixas lhe causariam mal. Há situações na vida em que tudo é
amargura.
Eugène ficou mudo, transido de ternura pela expressão ingênua de um
sentimento verdadeiro. Se as parisienses costumam ser falsas, ébrias de vaidade,
individualistas, coquetes, frias, é certo que quando amam realmente sacrificam
mais sentimentos que as outras mulheres às suas paixões; engrandecem com
todas as suas mesquinharias e tornam-se sublimes. Além disso, Eugène estava
impressionado com o espírito profundo e judicioso que a mulher exibe para
julgar os sentimentos mais naturais, quando uma afeição privilegiada a separa
deles, afastando-a. A sra. de Nucingen se chocou com o silêncio que Eugène
mantinha.
— Mas em que está pensando? — perguntou.
— Ainda escuto o que me disse. Até aqui acreditei amá-la mais do que você
me amava.
Ela sorriu e se armou contra o prazer que sentiu, para deixar a conversação nos
limites impostos pelas conveniências. Nunca tinha ouvido as expressões
vibrantes de um amor jovem e sincero. Mais algumas palavras, e já não teria se
contido.
— Eugène — disse mudando de conversa —, então não sabe o que se passa?
Toda Paris estará amanhã na casa da sra. de Beauséant. Os Rochefide e o
marquês d’Ajuda se entenderam para que nada transpire; mas o rei assina
amanhã o contrato de casamento, e sua pobre prima ainda não sabe de nada. Ela
não poderá deixar de receber, e o marquês não comparecerá a seu baile. Só se
fala dessa aventura.
— E a sociedade ri de uma infâmia, e dela é cúmplice! Então não sabe que a
sra. de Beauséant morreria por causa disso?
— Não — disse Delphine sorrindo —, você não conhece as mulheres desse
tipo. Mas toda Paris irá à casa dela, e lá estarei! E devo-lhe essa felicidade.
— Mas — disse Rastignac — não é um desses boatos absurdos como os tantos
que fazem circular em Paris?
— Amanhã saberemos a verdade.
Eugène não voltou para a Casa Vauquer. Não conseguiu tomar a decisão de
não desfrutar de seu novo apartamento. Se, na véspera, fora forçado a deixar
Delphine a uma hora da madrugada, foi Delphine que o deixou por volta das
duas horas para voltar para casa. Ele dormiu no dia seguinte até bem tarde,
esperou até cerca de meio-dia pela sra. de Nucingen, que foi almoçar com ele.
Os jovens são tão ávidos por essas lindas alegrias que ele quase esquecera o pai
Goriot. Foi uma longa festa para que ele se habituasse com cada uma dessas
coisas elegantes que lhe pertenciam. A sra. de Nucingen estava ali, dando a tudo
um novo valor. No entanto, pelas quatro horas os dois amantes pensaram no pai
Goriot imaginando a felicidade que prometia a si mesmo ao ir morar naquela
casa. Eugène observou que era necessário transportar para lá o velhote, depressa,
se ele estivesse doente, e largou Delphine para correr à Casa Vauquer. Nem o pai
Goriot nem Bianchon estavam à mesa.
— Pois é — disse-lhe o pintor —, o pai Goriot está estropiado. Bianchon está
lá em cima com ele. O homem viu uma das filhas, a condessa de Restaurama.
Depois quis sair e sua doença piorou. A sociedade vai ficar privada de um de
seus belos ornamentos.
Rastignac lançou-se pela escada.
— Ei! sr. Eugène!
— Sr. Eugène! A senhora o chama — gritou Sylvie.
— O sr. Goriot — disse-lhe a viúva — e o senhor deviam sair no dia 15 de
fevereiro. Já há três dias o quinze passou, estamos no dezoito; será preciso me
pagar um mês inteiro para o senhor e para ele, mas, se quiser se responsabilizar
pelo pai Goriot, sua palavra me bastará.
— Por quê? Não tem confiança?
— Confiança! Se o homenzinho ficasse de miolo mole e morresse, suas filhas
não me dariam um tostão, e toda a roupa velha dele não vale dez francos. Hoje
de manhã levou seus últimos talheres, não sei por quê. Estava vestido como um
rapaz. Deus me perdoe, acho que tinha passado ruge, pareceu-me rejuvenescido.
— Eu respondo por tudo — disse Eugène, arrepiando-se de horror e
preocupando-se com uma catástrofe.
Subiu para o quarto do pai Goriot. O velho jazia em sua cama, e Bianchon
estava perto dele.
— Bom dia, pai — disse-lhe Eugène.
O homem lhe sorriu suavemente e respondeu revirando-lhe os olhos vidrosos:
— Como ela vai?
— Bem. E o senhor?
— Vou indo.
— Não o canse — disse Bianchon arrastando Eugène para um canto do quarto.
— E então? — perguntou Rastignac.
— Só se salva por um milagre. A congestão sanguínea ocorreu, ele está com
sinapismos; felizmente os sente, estão agindo.
— É possível transportá-lo?
— Impossível. É preciso deixá-lo aqui, evitar-lhe qualquer movimento físico e
qualquer emoção…
— Meu bom Bianchon — disse Eugène —, nós dois cuidaremos dele.
— Já mandei vir o médico-chefe de meu hospital.
— E aí?
— Ele se pronunciará amanhã à noite. Prometeu-me vir no final de seu
expediente. Infelizmente esse pobre velho cometeu hoje de manhã uma
imprudência sobre a qual não quer se explicar. É teimoso como uma mula.
Quando falo com ele, faz de conta que não ouve, e dorme para não me
responder; ou então, se está de olhos abertos, começa a gemer. Saiu de manhã,
andou a pé por Paris, não se sabe onde. Levou tudo o que possuía de valioso, foi
fazer algum tráfico esquisito que esgotou suas forças! Uma das filhas veio aqui.
— A condessa? — perguntou Eugène. — Uma morena alta, de olhar vivo e
bem-feita, lindo pé, cintura ágil?
— É.
— Deixe-me a sós um momento com ele — disse Rastignac. — Vou confessá-
lo, a mim dirá tudo.
— Enquanto isso vou jantar. Só tente não agitá-lo muito; ainda temos alguma
esperança.
— Fique tranquilo.
— Elas se divertirão bastante amanhã — disse o pai Goriot a Eugène quando
ficaram a sós. — Vão a um grande baile.
— Mas o que fez hoje de manhã, papai, para estar passando tão mal esta noite
e precisar ficar de cama?
— Nada.
— Anastasie veio? — perguntou Rastignac.
— Veio — respondeu o pai Goriot.
— Muito bem, não me esconda nada. O que mais ela lhe pediu?
— Ah! — prosseguiu reunindo forças para falar —, ela estava muito infeliz,
sabe, meu filho! Nasie não tem um tostão desde o caso dos diamantes. Tinha
encomendado para esse baile um vestido de lamê que deve lhe cair como uma
joia. Sua costureira, uma infame, não quis lhe fazer crédito, e sua camareira
pagou mil francos de sinal pela toalete. Pobre Nasie, chegar a esse ponto! Isso
me dilacerou o coração. Mas a camareira, vendo aquele Restaud perder toda a
confiança em Nasie, ficou com medo de perder seu dinheiro, e se entendeu com
a costureira para que só entregasse o vestido se os mil francos fossem
devolvidos. O baile é amanhã, o vestido está pronto, Nasie está desesperada. Ela
quis me pegar emprestados meus talheres para pô-los no prego. O marido quer
que vá a esse baile para mostrar a toda Paris os diamantes que dizem ter sido
vendidos por ela. Acaso ela pode dizer a esse monstro: “Devo mil francos,
pague-os”? Não. Eu entendi isso. Sua irmã, Delphine, irá com uma toalete
maravilhosa. Anastasie não deve ficar abaixo da irmã mais moça. E, além do
mais, está tão afogada em lágrimas, minha pobre filha! Fui tão humilhado por
não ter tido ontem doze mil francos que eu teria dado o resto de minha miserável
vida para redimir esse erro. Está entendendo? Tive a força de tudo suportar, mas
minha última falta de dinheiro me partiu o coração. Oh! Oh! Nem uma nem
duas, me aprumei, me emperiquitei; vendi por seiscentos francos talheres e
argolas, depois penhorei, por um ano, meu título de renda vitalícia por
quatrocentos francos pagos de uma vez, ao papai Gobseck. Ora bolas! Comerei
pão! Isso me bastava quando eu era moço, ainda pode bastar. Pelo menos ela terá
uma bela noite, a minha Nasie. Estará elegantíssima. Estou com a nota de mil
francos ali, debaixo de minha cabeceira. Ter sob minha cabeça o que dará prazer
à pobre Nasie é algo que me conforta. Ela poderá pôr no olho da rua sua
malvada Victoire. Onde já se viu domésticos não terem confiança em seus
patrões! Amanhã estarei bem, Nasie vem às dez horas. Não quero que me achem
doente, não iriam ao baile, ficariam cuidando de mim. Nasie me beijará amanhã
como a seu filho, suas carícias me curarão. Enfim, eu não teria gastado mil
francos no boticário? Prefiro dá-los ao meu Cura-Tudo, à minha Nasie. Vou
consolá-la na sua miséria, ao menos. Isso me absolve do erro de ter comprado
uma renda vitalícia. Ela está no fundo do poço, e já não sou forte o suficiente
para tirá-la de lá. Oh! vou me reinstalar no comércio. Irei a Odessa para comprar
grãos. Lá o trigo vale três vezes menos do que custa o nosso. Se a introdução dos
cereais in natura é proibida, as bravas pessoas que fazem as leis não sonharam
em proibir a fabricação dos produtos à base de trigo. He, he!… Descobri isso
hoje de manhã! Há belos negócios a fazer com os amidos.
“Ele está louco”, pensou Eugène olhando para o velho.
— Vamos, fique descansando, não fale…
Eugène desceu para jantar quando Bianchon subiu. Em seguida, os dois
passaram a noite cuidando do doente em revezamento, e se ocupando, um em ler
seus livros de medicina, o outro em escrever para a mãe e as irmãs. No dia
seguinte, os sintomas que se declararam foram, segundo Bianchon, de favorável
augúrio; mas exigiram cuidados contínuos de que só os dois estudantes eram
capazes, e em cujo relato é impossível comprometer a pudibunda fraseologia da
época. As sanguessugas aplicadas no corpo definhado do velho foram
acompanhadas de cataplasmas, banhos de pé, manobras médicas para as quais,
de resto, precisava-se da força e da dedicação dos dois rapazes. A sra. de
Restaud não apareceu; mandou buscar a quantia por um mensageiro.
— Achei que ela viria pessoalmente. Mas não é um mal, teria se inquietado —
disse o pai, parecendo feliz com essa circunstância.
Às sete horas da noite, Thérèse foi levar uma carta de Delphine.
Mas o que faz, meu amigo? Apenas amada, já serei negligenciada? Você me
mostrou, nessas confidências despejadas de coração a coração, uma alma
bela demais para não ser desses que permanecem sempre fiéis ao verem
quantos matizes têm os sentimentos. Como disse ao ouvir a prece de Moisés:
65 “Para uns é uma mesma nota, para outros é o infinito da música!”.
Aguardo um médico para saber se seu pai ainda deve viver. Está moribundo.
Irei levar-lhe a sentença, e temo que seja uma sentença de morte. Você verá
se poderá ir ao baile. Mil ternuras.
O médico chegou às oito e meia, e, sem dar uma opinião favorável, não pensou
que a morte fosse iminente. Anunciou melhoras e recaídas alternadas das quais
dependeriam a vida e a razão do velho.
— Seria melhor que morresse rapidamente — foram as últimas palavras do
médico.
Eugène confiou o pai Goriot aos cuidados de Bianchon e saiu para ir levar à
sra. de Nucingen as tristes notícias que, em seu espírito ainda imbuído dos
deveres de família, deveriam suspender toda alegria.
— Diga-lhe que se divirta assim mesmo — gritou-lhe o pai Goriot, que parecia
adormecido, mas se recostou no momento em que Rastignac saiu.
O rapaz se apresentou a Delphine desolado de dor, e encontrou-a penteada,
calçada, tendo apenas que pôr o vestido de baile. Mas, semelhantes às pinceladas
com que os pintores terminam seus quadros, os últimos preparativos exigiam
mais tempo que demandavam o próprio fundo da tela.
— O quê, não está vestido? — ela disse.
— Mas, senhora, seu pai…
— Ainda meu pai — ela exclamou interrompendo-o. — Mas não me ensinará
o que devo a meu pai. Conheço meu pai há muito tempo. Nem uma palavra,
Eugène. Só o escutarei quando tiver feito sua toalete. Thérèse preparou tudo em
seu apartamento; meu carro está pronto, pegue-o; e volte. Conversaremos sobre
meu pai na ida para o baile. É preciso partir cedo, se ficarmos presos na fila dos
carros, teremos muita sorte se entrarmos só às onze horas.
— Senhora!
— Ande! Nem uma palavra — ela disse correndo ao budoar para pegar um
colar.
— Mas vá logo, sr. Eugène, para a senhora não se zangar — disse Thérèse
empurrando o rapaz, apavorado com esse elegante parricídio.
Foi se vestir fazendo as mais tristes, as mais desanimadoras reflexões. Via o
mundo como um oceano de lama no qual um homem mergulhava até o pescoço
se ali molhasse o pé. “Aí só se cometem crimes mesquinhos!”, pensou. “Vautrin
é maior.” Ele vira as três grandes expressões da sociedade: a Obediência, a Luta
e a Revolta; a Família, a Sociedade e Vautrin. E não ousava tomar partido. A
Obediência era maçante, a Revolta, impossível, e a Luta, incerta. Seu
pensamento o levou para o seio de sua família. Lembrou-se das puras emoções
daquela vida calma, rememorou os dias passados em meio a seres por quem era
querido. Conformando-se às leis naturais do lar doméstico, aquelas queridas
criaturas ali encontravam uma felicidade plena, contínua, sem angústias. Apesar
de seus bons pensamentos, não se sentiu com coragem de ir confessar a fé das
almas puras para Delphine, ordenando-lhe a Virtude em nome do Amor. Sua
educação iniciada já dera seus frutos. Já amava egoisticamente. Seu tato lhe
permitira reconhecer a natureza do coração de Delphine. Pressentia que ela era
capaz de andar sobre o corpo do pai para ir ao baile, e ele não tinha a força de
representar o papel de um argumentador, nem a coragem de lhe desagradar, nem
a virtude de abandoná-la. “Ela jamais me perdoaria ter tido razão contra ela
nessa circunstância”, pensou. Depois, interpretou as palavras dos médicos,
gostou de pensar que o pai Goriot não estava tão perigosamente doente quanto
acreditava; por último, acumulou argumentos assassinos para justificar Delphine.
Ela não conhecia o estado em que o pai se encontrava. O próprio homenzinho a
mandaria para o baile se ela fosse vê-lo. Muitas vezes a lei social, implacável em
sua fórmula, condena ali onde o crime aparente é desculpado pelas inúmeras
modificações que a diferença dos caracteres, a diversidade dos interesses e das
situações introduzem no seio das famílias. Eugène queria se enganar, estava
disposto a sacrificar para sua amante o sacrifício da própria consciência. Fazia
dois dias que tudo mudara em sua vida. A mulher nela jogara suas desordens,
fizera a família empalidecer, tudo confiscara em seu proveito. Rastignac e
Delphine tinham se encontrado nas condições requeridas para sentirem um pelo
outro os mais profundos prazeres. A bem preparada paixão entre eles crescera
graças ao que mata as paixões, graças à fruição. Possuindo aquela mulher,
Eugène percebeu que até então apenas a desejara, e só a amou no dia seguinte da
felicidade: o amor talvez seja apenas o reconhecimento do prazer. Infame ou
sublime, adorava aquela mulher pelas volúpias que lhe levara como dote, e por
todas as que dela recebera; da mesma maneira, Delphine amava Rastignac tanto
quanto Tântalo teria amado o anjo que teria vindo satisfazer sua fome, ou matar
a sede de sua garganta ressecada.
— E então, como vai meu pai? — perguntou-lhe a sra. de Nucingen quando ele
estava de volta e em traje de baile.
— Extremamente mal — respondeu —, se quer me dar uma prova de sua
afeição, corramos vê-lo.
— Pois bem, sim — ela disse —, mas depois do baile. Meu bom Eugène, seja
gentil, não me dê lição de moral, venha.
Partiram. Eugène ficou calado durante parte do caminho.
— Mas o que tem? — ela perguntou.
— Estou ouvindo o estertor de seu pai — ele respondeu em tom do amuo. E
pôs-se a contar, com a calorosa eloquência da juventude, o ato feroz a que a sra.
de Restaud fora impelida pela vaidade, a crise mortal que a derradeira dedicação
do pai causara, e quanto custaria o vestido de lamê de Anastasie. Delphine
chorava.
“Vou estar feia”, pensou. Suas lágrimas secaram.
— Irei cuidar de meu pai, não abandonarei sua cabeceira — continuou.
— Ah! ei-la como a queria — exclamou Rastignac.
As lanternas de quinhentos carros iluminavam os arredores do palacete de
Beauséant. De cada lado da porta iluminada havia um guarda montado a cavalo.
A grande sociedade afluía tão abundantemente, e todos punham tanto empenho
em ver aquela grande mulher no momento de sua queda, que os salões, situados
no térreo do palacete, já estavam lotados quando a sra. de Nucingen e Rastignac
se apresentaram. Desde o momento em que toda a corte se precipitou à casa da
Grande Mademoiselle, cujo amante Luís XIV lhe arrancara, 66 nenhum desastre
amoroso foi mais rumoroso que o da sra. de Beauséant. Nessa circunstância, a
última filha da quase real casa de Bourgogne mostrou-se superior a seu mal, e
dominou até o último momento a sociedade cujas vaidades ela só aceitara para
pô-las a serviço do triunfo de sua paixão. As mais belas mulheres de Paris
animavam os salões com suas toaletes e seus sorrisos. Os homens mais distintos
da corte, os embaixadores, os ministros, as pessoas ilustres de todo tipo,
enfeitadas de cruzes, placas, cordões multicoloridos, espremiam-se em torno da
viscondessa. A orquestra fazia ecoarem os motivos de sua música sob os lambris
dourados daquele palácio, deserto para sua rainha. A sra. de Beauséant
mantinha-se de pé diante de seu primeiro salão para receber seus pretensos
amigos. Vestida de branco, sem nenhum enfeite em seus cabelos simplesmente
trançados, parecia calma e não exibia dor, nem orgulho, nem falsa alegria.
Ninguém podia ler em sua alma. Poderia se dizer uma Níobe de mármore. Seu
sorriso para os amigos íntimos foi por vezes escarnecedor; mas a todos pareceu
como sempre foi, e mostrou-se tão bem como era quando a felicidade a
ornamentava com seus raios, quando os mais insensíveis a admiraram, assim
como as jovens romanas aplaudiam o gladiador que sabia sorrir ao expirar. O
mundo parecia ter se enfeitado para dar adeus a uma de suas soberanas.
— Eu tremia de medo que não viesse — disse a Rastignac.
— Senhora — ele respondeu com voz emocionada, tomando essas palavras
como uma crítica —, vim para ser o último a ir embora.
— Bem — ela disse pegando sua mão. — Talvez seja aqui o único em quem
posso me fiar. Meu amigo, ame uma mulher que possa amar para sempre. Não
abandone nenhuma.
Pegou o braço de Rastignac e levou-o para um sofá no salão onde jogavam.
— Vá — disse-lhe — à casa do marquês. Jacques, meu criado de quarto, o
conduzirá e lhe entregará uma carta para ele, a quem peço minha
correspondência. Ele a entregará integralmente, prefiro acreditar nisso. Quando
estiver com minhas cartas, suba a meu quarto. Vão me prevenir.
Levantou-se para ir ao encontro da duquesa de Langeais, sua melhor amiga,
que também estava chegando. Rastignac partiu, mandou chamar o marquês
d’Ajuda no palacete de Rochefide, onde ele devia passar a noite, e onde o
encontrou. O marquês o levou à sua casa, entregou ao estudante uma caixa e lhe
disse:
— Estão todas aqui.
Pareceu querer falar com Eugène, fosse para questioná-lo sobre os
acontecimentos do baile e sobre a viscondessa, fosse para lhe confessar que
talvez já estivesse desesperado com o casamento, como ficou mais tarde; mas
um lampejo de orgulho brilhou em seus olhos, e ele teve a deplorável coragem
de manter segredo sobre seus mais nobres sentimentos.
— Não lhe diga nada de mim, meu caro Eugène.
Apertou a mão de Rastignac com um gesto afetuosamente triste, e lhe fez sinal
para partir. Eugène voltou ao palacete de Beauséant e foi introduzido no quarto
da viscondessa, onde viu os preparativos de uma partida. Sentou-se perto da
lareira, olhou a caixinha de cedro e caiu numa profunda melancolia. Para ele, a
sra. de Beauséant tinha as proporções das deusas da Ilíada.
— Ah, meu amigo! — disse a viscondessa ao entrar e apoiando a mão no
ombro de Rastignac.
Ele viu sua prima em lágrimas, os olhos erguidos, a mão trêmula, a outra
levantada. Ela pegou de repente a caixa, colocou-a no fogo e a viu queimar.
— Eles estão dançando! Vieram todos, rigorosamente, ao passo que a morte
virá mais tarde. Pssiu, meu amigo! — disse pondo um dedo sobre a boca de
Rastignac, prestes a falar. — Nunca mais verei Paris nem a sociedade. Às cinco
da manhã vou partir para ir me enterrar no fundo da Normandia. Desde as três da
tarde fui obrigada a fazer meus preparativos, assinar atos, ver os negócios; não
podia enviar ninguém à casa de…
Parou.
— Ele tinha certeza de que o encontrariam na casa de…
Parou de novo, prostrada de dor. Nesses momentos tudo é sofrimento, e certas
palavras são impossíveis de pronunciar.
— Finalmente — prosseguiu — eu contava com o senhor esta noite para este
último favor. Gostaria de lhe dar uma prova de minha amizade. Pensarei muitas
vezes em si, que me pareceu bom e nobre, jovem e cândido no meio deste
mundo em que essas qualidades são tão raras. Desejo que pense em mim de vez
em quando. Tome — disse dando uma olhadela ao redor —, aqui está a caixa
onde eu punha minhas luvas. Todas as vezes que a peguei antes de ir ao baile ou
ao espetáculo, senti-me bela, porque estava feliz, e só tocava nela para aí deixar
algum pensamento gracioso: há muito de mim aí dentro, há toda uma sra. de
Beauséant que não existe mais, aceite-a, providenciarei para que a levem à sua
casa, na Rue d’Artois. A sra. de Nucingen está muito bem esta noite, ame-a
bastante. Se não nos virmos mais, meu amigo, tenha certeza de que farei votos
para si, que foi bom comigo. Desçamos, não quero deixá-los crer que estou
chorando. Tenho a eternidade pela frente, ficarei sozinha e ninguém me pedirá
contas de minhas lágrimas. Um último olhar para este quarto.
Parou. Em seguida, depois de ter escondido um instante os olhos com a mão,
enxugou-os, banhou-os de água fresca e pegou o braço do estudante.
— Vamos! — disse.
Rastignac ainda não sentira emoção tão violenta como foi o contato com
aquela dor tão nobremente contida. Ao entrar no baile, Eugène deu uma volta
com a sra. de Beauséant, última e delicada atenção daquela mulher graciosa.
Logo avistou as duas irmãs, a sra. de Restaud e a sra. de Nucingen. A condessa
estava magnífica com todos os seus diamantes à mostra, que, para ela, sem
dúvida eram ardentes, pois usava-os pela última vez. Por mais poderosos que
fossem seu orgulho e seu amor, não sustentava muito bem os olhares do marido.
Esse espetáculo não era capaz de tornar menos tristes os pensamentos de
Rastignac. Se ele tinha revisto Vautrin no coronel italiano, 67 reviu então, sob os
diamantes das duas irmãs, o catre em que jazia o pai Goriot. Tendo sua atitude
melancólica enganado a viscondessa, ela lhe retirou seu braço.
— Vá! não quero lhe custar um prazer — ela disse.
Eugène foi logo reclamado por Delphine, feliz com o efeito que produzia, e
desejando pôr aos pés do estudante as homenagens que recolhia naquela
sociedade, pela qual esperava ser adotada.
— Como acha que está Nasie? — perguntou-lhe.
— Ela já gastou por conta, até a morte do pai — disse Rastignac.
Por volta das quatro da manhã, a multidão dos salões começava a clarear. Logo
a música não se fez mais ouvir. A duquesa de Langeais e Rastignac viram-se a
sós no grande salão. A viscondessa, pensando ali só encontrar o estudante,
dirigiu-se para lá depois de dar adeus ao sr. de Beauséant, que foi dormir lhe
repetindo:
— Está errada, minha cara, de ir se isolar assim, na sua idade! Fique conosco!
— Adivinhei suas intenções, Clara — disse a sra. de Langeais. — Está
partindo para não mais voltar; mas não partirá sem ter me ouvido e sem que nos
tenhamos entendido. — Pegou a amiga pelo braço, levou-a para o salão contíguo
e ali, olhando-a com lágrimas nos olhos, apertou-a nos braços e beijou-a nas
faces. — Não quero deixá-la friamente, minha cara, seria um remorso muito
pesado. Pode contar comigo como consigo mesma. Esta noite você foi
grandiosa, senti-me digna de si, e quero provar-lhe. Cometi erros consigo, nem
sempre me comportei bem, perdoe-me, minha cara: renego tudo o que pôde tê-la
ferido, gostaria de retomar minhas palavras. Uma mesma dor uniu nossas almas,
e não sei quem de nós será a mais infeliz. O sr. de Montriveau não estava aqui
esta noite, entende? Quem a viu durante este baile, Clara, jamais a esquecerá.
Quanto a mim, tento um último esforço. Se fracassar, irei para um convento!
Para onde vai?
— Para a Normandia, Courcelles, amar, rezar, até o dia em que Deus me retirar
deste mundo.
— Venha, sr. de Rastignac — disse a viscondessa com voz emocionada,
pensando que aquele rapaz estava esperando. O estudante se ajoelhou, pegou a
mão de sua prima e a beijou. — Antoinette, adeus! — prosseguiu a sra. de
Beauséant —, seja feliz. Quanto ao senhor, é feliz, é jovem, pode acreditar em
alguma coisa — disse ao estudante. — Quando partir deste mundo, terei tido,
como alguns moribundos privilegiados, religiosas e sinceras emoções ao meu
redor!
Rastignac foi embora por volta das cinco horas, depois de ter visto a sra. de
Beauséant em sua berlinda de viagem, depois de ter recebido seu derradeiro
adeus molhado de lágrimas que provavam que as pessoas mais elevadas não
estão excluídas da lei do coração e não vivem sem tristezas, como certos
cortesãos do povo gostariam de fazê-lo crer. Eugène voltou a pé para a Casa
Vauquer, com um tempo úmido e frio. Sua educação se concluía.
— Não salvaremos o pai Goriot — disse-lhe Bianchon quando Rastignac
entrou no quarto de seu vizinho.
— Meu amigo — disse-lhe Eugène depois de olhar para o velhinho
adormecido —, vá, persiga o destino modesto ao qual você limita seus desejos.
De meu lado, estou no inferno, e aí devo permanecer. Seja qual for o mal que lhe
contarem da sociedade, acredite! Não há Juvenal que consiga pintar o seu horror
coberto de ouro e pedrarias.
No dia seguinte, Rastignac foi acordado pelas duas da tarde por Bianchon, que,
obrigado a sair, lhe pediu para cuidar do pai Goriot, cujo estado piorara muito
durante a manhã.
— O homenzinho não tem dois dias, talvez não tenha seis horas de vida —
disse o estudante de medicina —, e no entanto não podemos parar de combater a
doença. Será preciso lhe ministrar cuidados caros. Nós é que iremos cuidar dele;
mas não tenho um tostão. Revirei os bolsos dele, remexi nos armários: zero
vezes zero. Interroguei-o num momento em que estava lúcido, disse-me não ter
um vintém com ele. Quanto você tem?
— Restam-me vinte francos — respondeu Rastignac —; mas irei apostá-los, e
ganharei.
— E se perder?
— Pedirei dinheiro a seus genros e a suas filhas.
— E se não lhe derem? — retrucou Bianchon. — O mais urgente neste
momento não é encontrar dinheiro, é necessário envolver o homem num
sinapismo fervendo, dos pés até o meio das coxas. Se ele gritar, ainda haverá
remédio. Você sabe como se faz. Aliás, Christophe o ajudará. Passarei no
boticário para me responsabilizar por todos os remédios que pegaremos com ele.
É triste que o pobre homem não possa ser transportado para nosso hospital, lá
estaria melhor. Vamos, venha para que eu o instale, e não o largue até que eu
volte.
Os dois rapazes entraram no quarto onde jazia o velho. Eugène ficou
apavorado com a mudança daquela face convulsa, branca e profundamente fraca.
— E então, papai? — disse-lhe inclinando-se sobre o catre.
Goriot levantou para Eugène olhos vazios e o fitou muito atentamente sem
reconhecê-lo. O estudante não aguentou essa cena, lágrimas umedeceram seus
olhos.
— Bianchon, não seria bom ter cortinas nas janelas?
— Não. As circunstâncias atmosféricas já não o afetam. Seria bom demais se
ele sentisse calor ou frio. No entanto, precisamos fogo para fazer as infusões e
preparar várias coisas. Vou lhe enviar feixes de gravetos que nos servirão até
termos lenha. Ontem e esta noite queimei a sua e todos os torrões de turfa do
pobre homem. Estava úmido, a água escorria pelas paredes. Mal pude secar o
quarto. Christophe o varreu, é realmente uma pocilga. Queimei zimbro, pois
estava fedendo muito.
— Meu Deus! — disse Rastignac. — Mas as filhas dele!
— Tome, se ele pedir algo para beber, dê-lhe isto — disse o residente
mostrando a Rastignac um grande jarro branco. — Se ouvi-lo gemer e se o
ventre estiver quente e duro, peça a Christophe para ajudá-lo a ministrar-lhe…
você sabe. Se por acaso ele tiver uma grande exaltação, se falar muito, se tiver,
em suma, um tantinho de demência, deixe-o estar. Não será um mau sinal. Mas
mande Christophe ao Hospital Cochin. Nosso médico, meu colega ou eu viremos
lhe aplicar as moxas. Fizemos de manhã, enquanto você dormia, uma grande
consulta com um aluno do dr. Gall, com um médico-chefe do Hôtel-Dieu e o
nosso. Esses senhores pensaram reconhecer curiosos sintomas, e vamos
acompanhar os avanços da doença a fim de esclarecer vários pontos científicos
bem importantes. Um desses senhores pretende que a pressão do sangue, caso se
desse mais sobre um órgão que sobre outro, poderia desenvolver fatos
particulares. Portanto, escute-o bem, caso ele fale, a fim de verificar a que
gênero de ideias pertenceriam seus discursos: se são efeitos de memória, de
penetração, de julgamento; se ele se ocupa de materialidades ou de sentimentos;
se calcula, se volta ao passado; enfim, ponha-se em condição de nos fazer um
relatório exato. É possível que a invasão ocorra em bloco, ele morrerá imbecil
como está neste momento. Tudo é muito esquisito nas doenças desse tipo! Se a
bomba estourasse por aqui — disse Bianchon mostrando o occipital do doente
—, há exemplos de fenômenos singulares: o cérebro recobre algumas de suas
faculdades, e a morte é mais lenta a se declarar. As serosidades podem se desviar
do cérebro, pegar caminhos cujo curso só se conhece pela autópsia. Há nos
Incurables um velho idiota em quem o derrame seguiu a coluna vertebral; sofre
terrivelmente, mas está vivo.
— Elas se divertiram bastante? — perguntou o pai Goriot, que reconheceu
Eugène.
— Oh! só pensa nas filhas — disse Bianchon. — Disse-me mais de cem vezes
esta noite: “Elas estão dançando! Ela está com seu vestido”. Chamava-as pelos
nomes. Ele me fazia chorar, que o diabo me carregue!, com suas entonações:
“Delphine!, minha pequena Delphine! Nasie!”. Palavra de honra — disse o
estudante de medicina —, era de se debulhar em lágrimas.
— Delphine — disse o velho —, ela está aí, não está? Eu bem que sabia. — E
seus olhos recuperaram uma atividade alucinada para olhar as paredes e a porta.
— Desço para dizer a Sylvie que prepare os sinapismos — gritou Bianchon —,
o momento é favorável.
Rastignac ficou sozinho ao lado do velho, sentado ao pé da cama, com os olhos
fixos naquela cabeça assustadora e dolorosa de ver.
“A sra. de Beauséant foge, este aqui morre”, ele pensou. “As belas almas não
podem ficar muito tempo neste mundo. De fato, como os grandes sentimentos se
aliariam a uma sociedade mesquinha, pequena, superficial?”
As imagens da festa à qual assistira se representaram em sua lembrança e
contrastaram com o espetáculo daquele leito de morte. Bianchon reapareceu de
repente.
— Ouça bem, Eugène, acabo de ver nosso médico-chefe, e voltei correndo. Se
se manifestarem sintomas de razão, se ele falar, deite-o sobre um longo
sinapismo, de maneira a envolvê-lo com mostarda desde a nuca até abaixo da
cintura, e mande nos chamar.
— Querido Bianchon — disse Eugène.
— Oh! Trata-se de um fato científico — prosseguiu o estudante de medicina
com todo o ardor do neófito.
— Ora — disse Eugène —, serei então o único a cuidar deste pobre velhinho,
por afeição.
— Se tivesse me visto hoje de manhã, não diria isso — retrucou Bianchon,
sem se ofender com o comentário. — Os médicos que praticam só veem a
doença; eu ainda vejo o doente, meu querido rapaz.
Foi embora, deixando Eugène a sós com o velho, e no temor de uma crise que
não demorou a se declarar.
— Ah, é você, meu querido filho — disse o pai Goriot reconhecendo Eugène.
— Sente-se melhor? — perguntou o estudante, pegando-lhe a mão.
— Sim, eu sentia a cabeça apertada como num torno, mas está se soltando. Viu
minhas filhas? Elas vão chegar logo, virão correndo assim que souberem que
estou doente, cuidaram tanto de mim na Rue de la Jussienne! Meu Deus!
Gostaria que meu quarto estivesse limpo para recebê-las. Há um rapaz que me
queimou todas as minhas turfas.
— Estou ouvindo Christophe — disse-lhe Eugène —, ele está subindo com a
lenha que esse rapaz lhe envia.
— Que bom! Mas como pagar a lenha? Não tenho um tostão, meu filho. Dei
tudo, tudo. Estou dependendo da caridade. Pelo menos o vestido de lamê era
bonito? (Ah! estou com dor!) Obrigado, Christophe. Deus o recompensará, meu
menino; não tenho mais nada.
— Vou lhe pagar bem, a você e a Sylvie — Eugène cochichou para o rapaz.
— Minhas filhas lhe disseram que viriam, não disseram, Christophe? Vá lá de
novo, lhe darei cem vinténs. Diga a elas que não me sinto bem, que gostaria de
beijá-las, de vê-las mais uma vez antes de morrer. Diga-lhes isso, mas sem
assustá-las demais.
Christophe partiu, a um sinal de Rastignac.
— Elas vão vir — prosseguiu o velhote. — Eu as conheço. Essa boa Delphine,
se eu morrer, que tristeza lhe causarei! Nasie também. Não gostaria de morrer,
para não fazê-las chorar. Morrer, meu bom Eugène, é não vê-las mais. Lá para
onde se vai vou me aborrecer um bocado. Para um pai, o inferno é ficar sem
filhos, e já fiz meu aprendizado desde que se casaram. Meu paraíso era na Rue
de la Jussienne. Mas me diga, se eu for para o paraíso, poderei voltar para a terra
como espírito, ao redor delas. Ouvi contar coisas assim. Serão verdadeiras?
Acredito vê-las neste momento, tais como eram na Rue de la Jussienne. Desciam
de manhã. “Bom dia, papai”, diziam. Eu as pegava no colo, lhes fazia mil
provocações, pregava-lhes peças. Elas me acariciavam, gentis. Almoçávamos
toda manhã, juntos, jantávamos, em suma, eu era pai, desfrutava de minhas
filhas. Quando estavam na Rue de la Jussienne, não argumentavam, não sabiam
nada do mundo, gostavam muito de mim. Meu Deus! Por que não continuaram
para sempre a ser pequenas? (Oh, estou sofrendo, a cabeça me repuxa.) Ah! Ah!
desculpe, minhas filhas! Estou sofrendo horrivelmente, e é preciso que seja dor
de verdade, pois vocês me tornaram um tanto resistente à dor. Meu Deus! Se
pelo menos tivesse as mãos delas nas minhas, não sentiria minha dor. Acha que
virão? Christophe é tão bobo! Eu deveria ter ido pessoalmente. Ele vai vê-las.
Mas ontem você esteve no baile. Então me diga como estavam? Elas não sabiam
nada da minha doença, não é mesmo? Não teriam dançado, pobrezinhas! Oh!
Não quero mais ficar doente. Ainda precisam muito de mim. As fortunas delas
estão comprometidas. E a que maridos estão entregues! Cure-me, cure-me! (Ai!
como estou sofrendo! Ai! Ai! Ai!) Tenho que me curar, sabe, porque elas
precisam de dinheiro, e sei onde ir ganhá-lo. Vou fazer amido em Odessa. Sou
esperto, ganharei milhões. (Oh! Estou sofrendo demais!)
Goriot ficou calado por um instante, parecendo fazer todos os esforços para
juntar suas forças e suportar a dor.
— Se estivessem aqui eu não me queixaria — disse. — Então, por que me
queixar?
Caiu num cochilo leve, que durou muito tempo. Christophe voltou. Rastignac,
que pensava que o pai Goriot dormia, deixou o rapaz lhe prestar contas de sua
missão em voz alta.
— Senhor — ele disse —, primeiro fui à casa da senhora condessa, com quem
me foi impossível falar, estava em altos negócios com o marido. Como insisti, o
sr. de Restaud veio pessoalmente e me disse assim: “O sr. Goriot está morrendo,
pois bem, é o que tem de melhor a fazer. Preciso da sra. de Restaud para concluir
negócios importantes, ela irá quando tudo estiver terminado”. Parecia estar
furioso, esse senhor aí. Eu ia sair quando a senhora entrou na antessala por uma
porta que eu não estava vendo e me disse: “Christophe, diga a meu pai que estou
em discussão com meu marido, não posso deixá-lo; trata-se de vida ou morte de
meus filhos; mas, assim que tudo terminar, irei”. Quanto à senhora baronesa,
outra história! Não a vi e não pude falar com ela. “Ah!”, me disse a camareira,
“a senhora voltou do baile às cinco e quinze, está dormindo; se a acordar antes
do meio-dia, ralhará comigo. Eu lhe direi que o pai piorou quando ela me
chamar. Sempre é hora de lhe dar uma má notícia.” Por mais que eu tivesse
pedido, ah, hã-hã! Pedi para falar com o senhor barão, tinha saído.
— Nenhuma das filhas virá — exclamou Rastignac. — Vou escrever às duas.
— Nenhuma — respondeu o velhote se erguendo. — Têm negócios, dormem,
não virão. Eu sabia. É preciso morrer para saber o que são os filhos. Ah, meu
amigo, não se case, não tenha filhos! Você lhes dá a vida, eles lhe dão a morte.
Você os faz entrar no mundo, eles daí o expulsam. Não, não virão! Sei disso há
dez anos. Eu me dizia isso às vezes, mas não ousava acreditar.
Uma lágrima rolou de cada um de seus olhos, da borda vermelha, sem cair.
— Ah, se eu fosse rico, se tivesse mantido minha fortuna, se não lhes tivesse
dado, estariam aqui, me lamberiam as faces com seus beijos! Eu moraria num
palacete, teria belos aposentos, domésticos, fogo para mim; e estariam em
prantos, com seus maridos, seus filhos. Eu teria tudo isso. Mas qual o quê. O
dinheiro compra tudo, até mesmo filhas. Oh! meu dinheiro, onde está? Se tivesse
tesouros para deixar, cuidariam de mim, me curariam; eu as escutaria, as veria.
Ah, meu querido filho, meu único filho, prefiro meu abandono e minha miséria!
Pelo menos, quando um pobre coitado é amado, está bem seguro de que o amam.
Sim, gostaria de ser rico, eu as veria. Pensando bem, quem sabe? As duas têm
coração de pedra. Eu tinha amor demais por elas para que o tivessem por mim.
Um pai deve ser sempre rico, deve manter os filhos em rédea curta como cavalos
manhosos. Eu ficava de joelhos diante delas. As miseráveis! Elas coroam
dignamente seu comportamento comigo há dez anos. Se soubesse como eram
cheias de atenções comigo nos primeiros tempos de seus casamentos! (Oh! estou
sofrendo um cruel martírio!) Eu acabava de dar a cada uma quase oitocentos mil
francos, não podiam, nem tampouco seus maridos, ser rudes comigo. Recebiam-
me: “Meu bom pai” aqui; “meu querido pai” ali. Meu lugar estava sempre posto
à mesa delas. Em suma, jantava com seus maridos, que me tratavam com
consideração. Eu ainda parecia ter alguma coisa. Por que isso? Eu não tinha dito
nada de meus negócios. Um homem que dá oitocentos mil francos às filhas era
um homem a ser cuidado. E desdobravam-se em atenções, mas era para meu
dinheiro. O mundo não é bonito. Eu vi isso! Levavam-me de carruagem ao
espetáculo, e eu ficava à vontade nas festas. Enfim, diziam-se minhas filhas e me
admitiam como pai delas. Ainda tenho minha perspicácia, sabe, e nada me
escapou. Tudo foi feito com essa habilidade e me trespassou o coração. Eu via
muito bem que eram fingimentos; mas o mal não tinha remédio. Na casa delas só
me sentia à vontade na mesa de baixo. Eu não sabia dizer nada. Assim, quando
algumas daquelas pessoas da sociedade perguntavam ao ouvido de meus genros:
“Quem é aquele senhor ali?”, diziam “É o pai dos escudos, é rico. — Ah,
diachos!”, e me olhavam com o respeito devido aos escudos. Mas, se às vezes eu
os constrangia um pouco, compensava muito bem meus defeitos! Aliás, quem
afinal é perfeito? (Minha cabeça está uma chaga!) Sofro neste momento o que é
preciso sofrer para morrer, meu querido sr. Eugène, pois bem, isso não é nada
em comparação com a dor que me causou o primeiro olhar pelo qual Anastasie
me fez compreender que eu acabava de dizer uma besteira que a humilhava; seu
olhar me cortou todas as veias. Eu gostaria de saber tudo, mas o que soube muito
bem é que estava sobrando nesta terra. No dia seguinte fui à casa de Delphine
para me consolar, e eis que ali faço uma besteira que a deixou furiosa. Fiquei
como louco. Passei oito dias não mais sabendo o que devia fazer. Não ousei ir
vê-las, de medo de suas reprimendas. E eis-me no olho da rua das casas de
minhas filhas. Ó, meu Deus! Já que conheces as misérias, os sofrimentos que
tolerei; já que contaste as punhaladas que recebi, neste tempo que me
envelheceu, me mudou, me matou, me embranqueceu, por que então estás me
fazendo sofrer hoje? Expiei muito bem o pecado de amá-las demais. Vingaram-
se muito bem de meu afeto, torturaram-me como carrascos. Pois bem, os pais
são tão tolos! Amava-as tanto que voltei lá, assim como um jogador volta ao
jogo. Minhas filhas eram meu vício; eram minhas amantes, em suma, tudo! As
duas precisavam de alguma coisa, de joias; suas camareiras me diziam, e eu lhes
dava, para ser bem recebido! Mas mesmo assim me deram umas liçõezinhas
sobre minha maneira de me comportar em sociedade. Oh! Não esperavam o dia
seguinte. Começaram a sentir vergonha de mim. Eis o que é bem educar os
filhos. Na minha idade eu não podia, porém, ir à escola. (Estou sofrendo
horrivelmente, meu Deus! Os médicos! Os médicos! Se me abrissem a cabeça,
sofreria menos.) Minhas filhas, minhas filhas, Anastasie, Delphine! Quero vê-
las. Mande buscá-las pelos guardas, à força! A justiça está comigo, tudo está do
meu lado, a natureza, o código civil. Eu protesto. A pátria sucumbirá se os pais
forem pisoteados. Isso está claro. A sociedade e o mundo funcionam graças à
paternidade, tudo desaba se os filhos não amam os pais. Oh! vê-las, ouvi-las, não
importa o que me dirão, contanto que eu escute suas vozes, isso acalmará minhas
dores, Delphine sobretudo. Mas diga a elas, quando estiverem aqui, para não me
olharem friamente como olham. Ah! meu bom amigo, sr. Eugène, não sabe o
que é encontrar o ouro do olhar mudado de repente em chumbo cinza. Desde o
dia em que os olhos delas pararam de brilhar para mim, sempre estive no inverno
aqui; nunca mais tive senão tristezas a devorar, e devorei-as! Vivi para ser
humilhado, insultado. Amo-as tanto, que engolia todas as afrontas com que me
vendiam uma pobre fruiçãozinha vergonhosa. Um pai esconder-se para ver suas
filhas! Dei-lhes minha vida, não me darão uma hora hoje! Tenho sede, tenho
fome, o coração me queima, não virão refrescar minha agonia, pois estou
morrendo, sinto. Mas então não sabem o que é andar sobre o cadáver do próprio
pai! Há um Deus nos céus, ele nos vinga, a nós pais, sem que desejemos. Oh!
elas virão! Venham, minhas queridas, venham me beijar ainda, um derradeiro
beijo, o viático de seu pai, que pedirá a Deus por vocês, que lhe dirá que foram
boas filhas, que as defenderá! Afinal de contas, vocês são inocentes. Elas são
inocentes, meu amigo. Diga-o a todo mundo, que não as inquietem por minha
causa. Tudo é culpa minha, habituei a me pisotearem. Gostava disso. Ninguém
tem nada com isso, nem a justiça humana, nem a justiça divina. Deus seria
injusto se as condenasse por minha causa. Eu não soube me conduzir, fiz a
besteira de abdicar de meus direitos. Teria me aviltado por elas! O que quer? O
mais belo caráter, as melhores almas teriam sucumbido à corrupção dessa
facilidade paterna. Sou um miserável, sou punido com justiça. Só eu é que causei
as desordens de minhas filhas, mimei-as. Hoje querem o prazer, como
antigamente queriam balas. Sempre lhes permiti satisfazerem suas fantasias de
mocinhas. Aos quinze anos, tinham carruagem! Nada lhes resistiu. Só eu sou
culpado, mas culpado por amor. As vozes delas me abriam o coração. Ouço-as,
estão vindo. Oh, sim, virão! Reza a lei que se venha ver o pai morrer, a lei está
do meu lado. Além do mais, isso custará apenas uma corrida. Pagarei. Escreva-
lhes que tenho milhões para lhes deixar! Palavra de honra. Irei fazer massas
italianas em Odessa. Conheço o modo de fazer. No meu projeto há milhões a
ganhar. Ninguém pensou nisso. Não se estragarão no transporte, como o trigo ou
como a farinha. Eh, eh, o amido? Haverá milhões aí! Não minta, diga-lhes
milhões e, mesmo que venham por avareza, prefiro ser enganado, mas as verei.
Quero minhas filhas! Eu as fiz! Elas são minhas! — disse erguendo-se,
mostrando a Eugène uma cabeça de cabelos brancos esparsos e que ameaçava
com tudo o que podia expressar ameaça.
— Vamos — disse-lhe Eugène —, deite-se de novo, meu bom pai Goriot, vou
escrever a elas. Assim que Bianchon voltar irei lá, se não vierem.
— Se não vierem? — repetiu o velhote soluçando. — Mas terei morrido,
morrido de um acesso de raiva, de raiva! A raiva está me invadindo! Neste
momento, vejo minha vida inteira. Sou um palerma! Elas não me amam, nunca
me amaram! Isso está claro. Se não vieram, não virão mais. Quanto mais
demorarem, menos se decidirão a me dar essa alegria. Conheço-as. Nunca
souberam adivinhar nada de minhas tristezas, de minhas dores, de minhas
necessidades, tampouco adivinharão minha morte; não conhecem o segredo de
minha ternura. Sim, estou vendo, para elas o hábito de abrir minhas entranhas
tirava o valor de tudo o que eu fazia. Teriam pedido para me furar os olhos, eu
lhes teria dito: “Furem-nos!”. Sou muito tolo. Acreditam que todos os pais são
como o delas. É preciso sempre se valorizar. Os filhos delas me vingarão. Mas é
interesse delas virem aqui. Portanto, previna-as que estão comprometendo a
própria agonia. Cometem todos os crimes num só. Mas vá logo, diga-lhes então
que não vir é um parricídio! Já cometeram o suficiente, sem precisar acrescentar
esse aí. Grite então como eu: “Ei, Nasie! Ei, Delphine! Venham ver seu pai, que
foi tão bom para vocês e está sofrendo!”. Nada, ninguém. Então morrerei como
um cão? Eis minha recompensa, o abandono. São infames, umas celeradas;
abomino-as, amaldiçoo-as; hei de me levantar, à noite, de meu caixão para
amaldiçoá-las de novo, pois, enfim, meus amigos, estou errado? Elas se
conduzem muito mal! Hein? O que estou dizendo? Não me avisou que Delphine
está aqui? É a melhor das duas. Você é meu filho, Eugène! Ame-a, seja um pai
para ela. A outra é muito infeliz. E as fortunas delas! Ai, meu Deus! Estou
expirando, sofrendo um pouco demais! Corte-me a cabeça, deixe-me somente o
coração.
— Christophe, vá buscar Bianchon — exclamou Eugène apavorado com o
aspecto que tomavam as queixas e os gritos do velho — e traga-me um cabriolé.
— Vou buscar suas filhas, meu bom pai Goriot, vou trazê-las.
— À força, à força! Chame a guarda, a infantaria, tudo! tudo — ele disse
dando para Eugène um último olhar em que brilhou a razão. — Diga ao governo,
ao procurador do rei, que me tragam as duas, eu quero!
— Mas o senhor as amaldiçoou.
— Quem foi que disse isso? — respondeu o velho, estupefato. — Sabe muito
bem que as amo, as adoro! Fico curado se puder vê-las… Ande, meu bom
vizinho, meu querido filho, vá, você é bom; gostaria de lhe agradecer, mas não
tenho nada a lhe dar além das bênçãos de um moribundo. Ah! gostaria ao menos
de ver Delphine para lhe dizer que salde minha dívida consigo. Se a outra não
puder, traga-me essa aí. Diga-lhe que não a amará mais se ela não quiser vir. Ela
o ama tanto que virá. Algo para beber, as entranhas me queimam! Ponha-me
alguma coisa sobre a cabeça. A mão de minhas filhas, isso aí me salvaria, eu
sinto… Meu Deus! quem refará as fortunas delas se eu me for? Quero ir a
Odessa por elas, a Odessa, fazer massas.
— Beba isto — disse Eugène levantando o moribundo e pegando-o com seu
braço esquerdo enquanto com o outro segurava uma xícara cheia de chá.
— Você deve amar seu pai e sua mãe! — disse o velhinho apertando com as
mãos enfraquecidas a mão de Eugène. — Compreende que vou morrer sem vê-
las, as minhas filhas? Ter sempre sede e não beber, eis como vivi por dez anos…
Meus dois genros mataram minhas filhas. Sim, não tive mais filhas depois que se
casaram. Pais, digam às câmaras para fazerem uma lei sobre o casamento!
Enfim, não casem suas filhas se as amarem. O genro é um celerado que estraga
tudo numa filha, tudo conspurca. Chega de casamentos! É o que nos tira nossas
filhas, e deixamos de tê-las quando estamos morrendo. Façam uma lei sobre a
morte dos pais. Isso é pavoroso! Vingança! São meus genros que as impedem de
vir. Matem-nos! Morte a Restaud, morte ao alsaciano, são meus assassinos! A
morte ou minhas filhas! Ah! acabou, estou morrendo sem elas! Elas! Nasie,
Fifine, vamos, venham logo! O papai de vocês está indo…
— Meu bom pai Goriot, acalme-se, vejamos, fique tranquilo, não se agite, não
pense.
— Não vê-las, é esta a agonia!
— Vai vê-las!
— Verdade! — exclamou o velho, perdido. — Oh! revê-las! Vou revê-las,
ouvir suas vozes. Morrerei feliz. Pois bem! Sim, já não peço para viver, não
fazia mais questão, meus sofrimentos estavam aumentando. Mas vê-las, tocar
nos vestidos delas, ah!, só nos vestidos é muito pouco; mas que eu cheire alguma
coisa delas! Pegue-me os cabelos… belos…
Sua cabeça caiu sobre o travesseiro como se recebesse uma bordoada. Suas
mãos se agitaram sobre a coberta como para pegar os cabelos das filhas.
— Abençoo-as — disse fazendo um esforço —, abençoo.
Caiu, de repente. Neste instante Bianchon entrou.
— Encontrei Christophe — ele disse —, vai lhe trazer um carro.
Depois, olhou para o doente, levantou-lhe à força as pálpebras, e os dois
estudantes viram um olho sem calor e baço.
— Não voltará a si — disse Bianchon —, não creio. — Pegou o pulso,
apalpou-o, pôs a mão no coração do homenzinho.
— A máquina continua a bater; mas na sua situação é uma desgraça, seria
melhor que morresse!
— Pois é — disse Rastignac.
— Mas o que você tem? Está pálido como a morte.
— Meu amigo, acabo de ouvir gritos e queixumes. Há um Deus! Oh, sim! Há
um Deus, e ele nos fez um mundo melhor, ou nossa terra é um disparate. Se isso
não fosse tão trágico, eu me desfaria em lágrimas, mas estou com o coração e o
estômago terrivelmente apertados.
— Sabe, precisaremos de muitas coisas; onde pegar o dinheiro?
Rastignac tirou seu relógio.
— Tome, ponha-o logo no prego. Não quero parar no caminho, pois temo
perder um minuto que seja, e espero Christophe. Não tenho um tostão, e terei de
pagar meu cocheiro na volta.
Rastignac se desabalou pela escada e partiu para ir à Rue du Helder, à casa da
sra. de Restaud. No caminho, sua imaginação, chocada com o horrível
espetáculo de que fora testemunha, aqueceu sua indignação. Quando chegou à
antessala e perguntou pela sra. de Restaud, responderam-lhe que não podia
atender.
— Mas — ele disse ao mordomo —, venho da parte de seu pai, que está
morrendo.
— Senhor, temos as ordens mais severas do senhor conde…
— Se o sr. de Restaud está, diga-lhe em que circunstância se encontra seu
sogro e previna-o de que preciso lhe falar neste instante.
Eugène esperou por muito tempo.
“Talvez ele esteja morrendo neste momento”, pensou.
O mordomo o introduziu no primeiro salão, onde o sr. de Restaud recebeu de
pé o estudante, sem mandá-lo sentar, diante de uma lareira em que não havia
fogo.
— Senhor conde — disse-lhe Rastignac —, o senhor seu sogro expira neste
momento numa espelunca infame, sem um tostão para comprar lenha; está
realmente à morte e pede para ver a filha…
— O senhor — respondeu-lhe com frieza o conde de Restaud — deve ter
percebido que tenho muito pouca ternura pelo sr. Goriot. Ele comprometeu com
seu caráter a sra. de Restaud, fez a desgraça de minha vida, vejo nele o inimigo
de meu sossego. Que morra, que viva, tudo me é perfeitamente indiferente. Eis
meus sentimentos a seu respeito. O mundo poderá me criticar, desprezo a
opinião pública. Tenho agora coisas mais importantes a fazer que me ocupar do
que pensarão de mim os néscios ou os indiferentes. Quanto à sra. de Restaud,
não está em condições de sair. Aliás, não quero que saia de sua casa. Diga ao pai
dela que assim que tiver cumprido seus deveres comigo, com meu filho, irá vê-
lo. Se ama o pai, pode se liberar em alguns instantes…
— Senhor conde, não me cabe julgar seu comportamento, o senhor é o chefe
de sua mulher; mas posso contar com sua lealdade? Pois bem! Prometa-me
somente lhe dizer que o pai dela não tem um dia de vida, e já a amaldiçoou ao
não vê-la à sua cabeceira!
— Diga-lhe isso o senhor mesmo — respondeu o sr. de Restaud, chocado com
sentimentos de indignação que o tom de Eugène traía.
Conduzido pelo conde, Rastignac entrou no salão onde a condessa
habitualmente ficava: encontrou-a afogada em lágrimas, e afundada numa
bergère como uma mulher que quisesse morrer. Ela lhe deu pena. Antes de olhar
para Rastignac, ela dirigiu ao marido olhares temerosos que anunciavam uma
prostração completa de suas forças esmagadas por uma tirania moral e física. O
conde balançou a cabeça, ela se imaginou estimulada a falar.
— Ouvi tudo, senhor. Diga a meu pai que, se conhecesse a situação em que
estou, ele me perdoaria. Eu não contava com esse suplício, está acima de minhas
forças, senhor, mas resistirei até o fim — disse ao marido. — Sou mãe. Diga a
meu pai que sou irrepreensível com ele, apesar das aparências — gritou para o
estudante, desesperada.
Eugène cumprimentou os esposos, adivinhando a terrível crise em que a
mulher estava, e se retirou, pasmo. O tom do sr. de Restaud lhe demonstrara a
inutilidade de sua iniciativa, e compreendeu que Anastasie já não era livre.
Correu à casa da sra. de Nucingen e a encontrou na cama.
— Estou doente, meu pobre amigo — ela lhe disse. — Peguei frio ao sair do
baile, temo estar com pneumonia, estou esperando o médico…
— Ainda que tivesse a morte nos lábios — disse-lhe Eugène interrompendo-a
—, é preciso se arrastar para junto de seu pai. Ele a chama! Se pudesse ouvir o
mais leve de seus gritos, não se sentiria mais doente.
— Eugène, meu pai talvez não esteja tão doente como você diz; mas ficaria
desesperada de cometer o menor erro aos seus olhos, e me conduzirei como você
quiser. Ele, eu sei, morreria de tristeza se minha doença se tornasse mortal por
causa dessa saída. Pois bem, irei assim que meu médico vier. Ah! Por que está
sem o seu relógio? — disse, não vendo mais a corrente. Eugène enrubesceu. —
Eugène! Eugène, se já a vendeu, perdeu… oh! isso seria muito ruim!
O estudante se inclinou sobre a cama de Delphine e disse-lhe ao ouvido:
— Quer saber? Pois então saiba! Seu pai não tem com o que comprar a
mortalha em que o colocarão esta noite. Seu relógio está penhorado, eu não
possuía mais nada.
Delphine pulou de repente para fora da cama, correu à escrivaninha, pegou sua
bolsa, entregou-a a Rastignac. Tocou a campainha e exclamou:
— Vou lá, vou lá, Eugène. Deixe que eu me vista; eu seria um monstro! Vá,
chegarei antes de você! Thérèse — gritou para a camareira —, diga ao sr. de
Nucingen que suba para falar comigo agora mesmo.
Eugène, feliz de poder anunciar ao moribundo a presença de uma de suas
filhas, chegou quase alegre à Rue Neuve-Sainte-Geneviève. Remexeu na bolsa
para poder pagar imediatamente o cocheiro. A bolsa daquela jovem mulher, tão
rica, tão elegante, continha setenta francos. Chegando ao alto da escada,
encontrou o pai Goriot segurado por Bianchon e sendo operado pelo cirurgião do
hospital, diante dos olhos do médico. Queimavam-lhe as costas com moxas,
último remédio da ciência, remédio inútil.
— Sente-as? — indagou o médico.
O pai Goriot, tendo entrevisto o estudante, respondeu:
— Elas vêm, não é?
— Ele pode se safar — disse o cirurgião —, está falando.
— Vêm — respondeu Eugène —, Delphine está chegando.
— Pois é! — disse Bianchon —, ele falava das filhas, pelas quais grita como
um homem empalado grita por água, segundo dizem...
— Pare — disse o médico ao cirurgião —, não há mais nada a fazer, não o
salvaremos.
Bianchon e o cirurgião recolocaram o moribundo estendido sobre o catre
infecto.
— Mas seria preciso trocar sua roupa de cama — disse o médico. — Embora
não haja nenhuma esperança, é preciso respeitar sua natureza humana. Voltarei,
Bianchon — ele disse ao estudante. — Se ele ainda se queixar, ponha-lhe ópio
sobre o diafragma.
O cirurgião e o médico saíram.
— Vamos, Eugène, coragem, meu filho! — disse Bianchon a Rastignac
quando ficaram a sós —, trata-se de lhe pôr uma camisa branca e fazer a cama.
Vá dizer a Sylvie para subir uns lençóis e vir nos ajudar.
Eugène desceu e encontrou a sra. Vauquer ocupada em pôr a mesa com Sylvie.
Às primeiras palavras que Rastignac lhe disse, a viúva foi até ele, assumindo o
jeito azedamente meloso de uma comerciante desconfiada que não gostaria de
perder seu dinheiro nem de aborrecer o freguês.
— Meu caro sr. Eugène — ela respondeu —, sabe bem como eu que o pai
Goriot não tem mais um tostão. Dar lençóis a um homem que está esticando a
canela é perdê-los, tanto mais que será preciso sacrificar um para a mortalha.
Assim, o senhor já me deve cento e quarenta e quatro francos, ponha mais
quarenta francos de lençóis e algumas outras coisinhas, a vela que Sylvie lhe
dará, tudo isso soma ao menos duzentos francos, que uma pobre viúva como eu
não está em condição de perder. Nossa mãe! Seja justo, sr. Eugène, já perdi
bastante nesses cinco dias em que a urucubaca se alojou na minha casa. Teria
dado dez escudos para que esse homenzinho aí tivesse ido embora nestes dias,
como o senhor dizia. Isso choca meus pensionistas. Por uma coisinha à toa eu o
mandaria levar ao hospital. Enfim, ponha-se no meu lugar. Meu estabelecimento
acima de tudo, é minha vida, a minha.
Eugène tornou a subir, rapidamente, para o quarto do pai Goriot.
— Bianchon, o dinheiro do relógio?
— Está ali em cima da mesa, restam trezentos e sessenta e poucos francos. Do
que me deram paguei tudo o que devíamos. O recibo da casa de penhor está
debaixo do dinheiro.
— Tome, senhora — disse Rastignac depois de despencar pela escada,
horrorizado —, liquide as nossas contas. O sr. Goriot não tem muito tempo a
ficar na sua pensão, e eu…
— Sim, ele sairá daqui de pés juntos, pobre velho — ela disse contando
duzentos francos, com um ar meio alegre, meio melancólico.
— Terminemos — disse Rastignac.
— Sylvie, dê os lençóis e vá ajudar esses senhores lá em cima.
— O senhor não se esquecerá de Sylvie — disse a sra. Vauquer ao ouvido de
Eugène —, já são duas noites em que ela está de vigília.
Assim que Eugène virou as costas, a velha correu até sua cozinheira:
— Pegue os lençóis virados do avesso, número sete. Por Deus, são bastante
bons para um morto — disse-lhe ao ouvido.
Eugène, que já subira alguns degraus da escada, não ouviu as palavras da velha
hospedeira.
— Vamos — disse-lhe Bianchon — vestir-lhe a camisa. Segure-o reto.
Eugène se pôs na cabeceira da cama e segurou o moribundo, de quem
Bianchon tirou a camisa, e o velho fez um gesto como para guardar alguma coisa
sobre o peito, e deu gritos queixosos e desarticulados, à maneira dos animais que
têm uma grande dor a manifestar.
— Oh! Oh! — disse Bianchon —, ele quer uma correntinha de cabelos com
um medalhão que nós lhe retiramos há pouco para pôr as moxas. Pobre homem!
Temos de colocá-la de novo. Está em cima da lareira.
Eugène foi pegar uma corrente trançada com cabelos louro-acinzentados,
provavelmente os da sra. Goriot. Leu de um lado do medalhão: Anastasie; e do
outro: Delphine. Imagem de seu coração que repousava sempre sobre seu
coração. Os cachos contidos ali dentro eram de tal finura que deviam ter sido
cortados durante a primeira infância das duas filhas. Quando o medalhão
encostou em seu peito, o velho fez um hã prolongado que anunciava uma
satisfação terrível de ver. Era um dos derradeiros ecos de sua sensibilidade, que
parecia se retirar para o centro desconhecido de onde partem e para onde se
dirigem nossas simpatias. Seu rosto convulsionado ficou com uma expressão de
alegria doentia. Os dois estudantes, impressionados com aquele terrível brilho de
uma força de sentimento que sobrevivia ao pensamento, soltaram, cada um,
lágrimas quentes sobre o agonizante, que deu um grito agudo de prazer.
— Nasie! Fifine! — disse.
— Ele ainda vive — disse Bianchon.
— Para que isso lhe serve? — disse Sylvie.
— Para sofrer — respondeu Rastignac.
Depois de fazer ao amigo um sinal para lhe dizer que o imitasse, Bianchon se
ajoelhou para passar os braços sob as pernas do doente, enquanto Rastignac fazia
o mesmo do outro lado da cama a fim de passar as mãos sob as costas. Sylvie
estava ali, pronta para retirar os lençóis, quando o moribundo fosse levantado, e
substituí-los pelos que ela trazia. Enganado talvez pelas lágrimas, Goriot usou
suas derradeiras forças para estender as mãos, encontrou de cada lado da cama as
cabeças dos estudantes, agarrou-os violentamente pelos cabelos e ouviu-se um
som fraco:
— Ah! meus anjos!
Duas palavras, dois murmúrios acentuados pela alma que levantou voo depois
dessas palavras.
— Pobre homem querido — disse Sylvie enternecida com essa exclamação em
que se pintava um sentimento supremo que a mais horrível, a mais involuntária
das mentiras exaltava uma derradeira vez.
O último suspiro desse pai devia ser um suspiro de alegria. Esse suspiro foi a
expressão de toda sua vida, ele mais uma vez se enganava. O pai Goriot foi
piedosamente recolocado sobre seu catre. A partir desse momento, sua
fisionomia manteve a dolorosa marca do combate que se travava entre a morte e
a vida numa máquina que não tinha mais essa espécie de consciência cerebral de
que resulta a sensação do prazer e da dor para o ser humano. Para a destruição,
não era mais que uma questão de tempo.
— Ele vai ficar assim algumas horas, e morrerá sem que se perceba, sequer
terá os estertores. O cérebro deve estar completamente invadido.
Nesse instante ouviram na escada os passos de uma jovem mulher ofegante.
— Ela está chegando tarde demais — disse Rastignac.
Não era Delphine, mas Thérèse, sua camareira.
— Sr. Eugène — ela disse —, armou-se uma cena violenta entre o senhor e a
senhora, a respeito do dinheiro que essa pobre senhora pedia para o pai. Ela
desmaiou, o médico chegou, foi preciso sangrá-la, ela gritava: “Meu pai está
morrendo, quero ver papai!”. Em suma, gritos de partir a alma.
— Chega, Thérèse. Mesmo que viesse, agora seria supérfluo. O sr. Goriot já
perdeu a consciência.
— Pobre querido senhor, está tão mal assim! — disse Thérèse.
— Os senhores não precisam mais de mim, tenho que ir ver o meu jantar, são
quatro e meia — disse Sylvie, que quase deu um encontrão no alto da escada
com a sra. de Restaud.
Foi uma aparição grave e terrível essa da condessa. Olhou para o leito de
morte, mal iluminado por uma única vela, e derramou lágrimas ao perceber a
máscara de seu pai na qual ainda palpitavam os derradeiros estremecimentos da
vida. Bianchon se retirou, por discrição.
— Não escapei cedo o suficiente — disse a condessa a Rastignac.
O estudante fez um sinal afirmativo de cabeça, cheio de tristeza. A sra. de
Restaud pegou a mão do pai e a beijou.
— Perdoe-me, meu pai! O senhor dizia que minha voz lhe lembrava um
túmulo; pois bem, volte um momento à vida para abençoar sua filha arrependida.
Escute-me. Isso é um pavor! Sua bênção é a única que agora posso receber aqui.
Todos me odeiam, só o senhor me ama. Meus próprios filhos me odiarão. Leve-
me consigo, eu o amarei, cuidarei de si. Ele não está mais ouvindo, estou louca.
Caiu de joelhos e contemplou aquele destroço com uma expressão de delírio.
— Nada falta à minha desgraça — disse olhando para Eugène. — O sr. de
Trailles foi embora, deixando aqui dívidas enormes, e soube que ele me
enganava. Meu marido nunca me perdoará, e deixei-o como senhor de minha
fortuna. Perdi todas as minhas ilusões. Ai de mim! Por quem traí o único coração
(apontou para o pai) pelo qual era adorada! Conheci-o mal, rejeitei-o, causei-lhe
mil sofrimentos, infame que sou!
— Ele sabia disso — disse Rastignac.
Nesse instante o pai Goriot abriu os olhos, mas pelo efeito de uma convulsão.
O gesto que revelava a esperança da condessa não foi menos horrível de ver do
que o olho do moribundo.
— Estaria me ouvindo? — gritou a condessa. — Não — disse para si mesma,
sentando-se ao lado da cama.
Como a sra. de Restaud manifestou o desejo de velar pelo pai, Eugène desceu
para comer alguma coisa. Os pensionistas já estavam reunidos.
— E então — disse-lhe o pintor —, parece que vamos ter um pequeno
mortorama lá em cima?
— Charles — disse Eugène —, parece-me que deveria brincar com algum
assunto menos lúgubre.
— Então não podemos mais rir aqui? — retrucou o pintor. — O que tem isso
de mais, já que Bianchon diz que o velho perdeu a consciência?
— Pois bem — prosseguiu o empregado do museu —, ele morrerá como terá
vivido.
— Meu pai morreu — gritou a condessa.
Diante desse grito terrível, Sylvie, Rastignac e Bianchon subiram e
encontraram a sra. de Restaud desfalecida. Depois de fazê-la voltar a si,
transportaram-na para o fiacre que a esperava. Eugène a entregou aos cuidados
de Thérèse, ordenando-lhe que a levasse para a casa da sra. de Nucingen.
— Ah! ele está mesmo morto — disse Bianchon ao descer.
— Vamos, senhores, à mesa — disse a sra. Vauquer —, a sopa vai esfriar.
Os dois estudantes se puseram lado a lado.
— Que é preciso fazer agora? — perguntou Eugène a Bianchon.
— Eu fechei os olhos dele, e o arrumei de forma adequada. Quando o médico
da prefeitura tiver atestado o óbito que iremos declarar, vamos envolvê-lo dentro
de uma mortalha e o enterraremos. O que quer que aconteça com ele?
— Ele não vai mais farejar seu pão assim — disse um pensionista imitando a
careta do velho.
— Santo Deus, senhores — disse o repetidor —, mas deixem o pai Goriot, e
não nos façam mais engoli-lo, pois faz uma hora que ele é servido neste jantar.
Um dos privilégios da bela cidade de Paris é que é possível nascer aqui, viver
aqui, morrer aqui sem que ninguém preste atenção em você. Aproveitemos,
portanto, as vantagens da civilização. Há sessenta mortos hoje, querem se
condoer dessas hecatombes parisienses? Que o pai Goriot tenha batido as botas,
melhor para ele! Se o adoram, vão velá-lo e nos deixem, nós aqui, comer em
paz.
— Oh!, sim — disse a viúva —, melhor para ele que tenha morrido! Parece
que o pobre homem teve muitos desgostos na vida.
Foi a única oração fúnebre de um ser que, para Eugène, representava a
Paternidade. Os quinze pensionistas começaram a conversar como de costume.
Quando Eugène e Bianchon acabaram de comer, o barulho dos garfos e colheres,
os risos da conversa, as diversas expressões daqueles rostos glutões e
indiferentes, sua despreocupação, tudo os gelou de horror. Saíram para buscar
um padre que velasse e rezasse durante a noite ao lado do morto. Precisaram
calcular os últimos deveres a cumprir com o velhote a partir do pouco dinheiro
de que poderiam dispor. Lá pelas nove da noite o corpo foi posto sobre um
suporte, amarrado, entre duas velas, naquele quarto nu, e um padre foi se sentar
perto dele. Antes de se deitar, Rastignac, tendo pedido informações ao
eclesiástico sobre o preço do ofício religioso e do cortejo fúnebre, escreveu um
bilhete ao barão de Nucingen e ao conde de Restaud solicitando-lhes que
enviassem seus funcionários para prover a todas as despesas do enterro.
Despachou-lhes Christophe, depois se deitou e dormiu, moído de cansaço. Na
manhã seguinte Bianchon e Rastignac foram obrigados a ir declarar
pessoalmente o óbito, que pelo meio-dia foi atestado. Duas horas depois nenhum
dos dois genros enviara dinheiro, ninguém se apresentara em nome deles, e
Rastignac já fora obrigado a pagar as despesas do padre. Tendo Sylvie pedido
dez francos para enrolar o homenzinho na mortalha e costurá-la, Eugène e
Bianchon calcularam que, se os parentes do morto não quisessem se envolver em
nada, eles mal teriam como assumir as despesas. Portanto, o estudante de
medicina se encarregou de pôr ele mesmo o cadáver num caixão de pobre, que
mandou vir de seu hospital, onde o conseguiu por um preço mais em conta.
— Pregue uma peça nesses engraçadinhos aí — ele disse a Eugène. — Vá
comprar um lote, por cinco anos, no Père-Lachaise, e encomende um ofício
religioso de terceira classe na igreja e na funerária. Se os genros e as filhas se
recusarem a reembolsá-lo, você mandará gravar na sepultura: “Aqui jaz o sr.
Goriot, pai da condessa de Restaud e da baronesa de Nucingen, enterrado às
custas de dois estudantes”.
Eugène só seguiu o conselho do amigo depois de ter ido em vão à casa do sr. e
da sra. de Nucingen e à do sr. e da sra. de Restaud. Não foi mais longe que a
porta. Os dois porteiros tinham ordens severas.
— O senhor e a senhora — disseram — não estão recebendo ninguém; o pai da
senhora morreu, e eles estão afundados na dor mais profunda.
Eugène tinha bastante experiência do mundo parisiense para saber que não
devia insistir. Seu coração se apertou estranhamente quando se viu na
impossibilidade de chegar perto de Delphine.
“Venda uma joia”, escreveu-lhe no aposento do porteiro, “para que seu pai seja
decentemente levado à última morada.”
Lacrou esse bilhete e pediu ao porteiro do barão que o entregasse a Thérèse,
para sua patroa; mas o porteiro o entregou ao barão de Nucingen, que o jogou no
fogo. Depois de ter tomado todas as providências, Eugène voltou lá pelas três
para a pensão burguesa, e não conseguiu segurar uma lágrima quando avistou
naquela porta secundária o caixão mal e mal coberto por um pano preto, posto
sobre duas cadeiras naquela rua deserta. Um aspersório ordinário, no qual ainda
ninguém tocara, estava mergulhado num prato de cobre prateado cheio de água
benta. A porta nem sequer estava coberta de preto. Era a morte dos pobres, que
não tem fausto, nem acompanhantes, nem amigos, nem parentes. Bianchon,
obrigado a ficar no hospital, escrevera um bilhete a Rastignac para lhe prestar
contas do que providenciara quanto à igreja. O residente lhe comunicava que
uma missa era caríssima, que era preciso se contentar com o ofício mais barato
das vésperas, e que ele enviara Christophe à funerária, com um bilhete. No
momento em que Eugène acabava de ler o rabisco de Bianchon, viu entre as
mãos da sra. Vauquer o medalhão rodeado de ouro em que estavam os cabelos
das duas filhas.
— Como a senhora ousou pegar isso? — perguntou-lhe.
— Por Deus! Tinha que enterrá-lo com isso? — respondeu Sylvie. — É de
ouro.
— Com certeza! — prosseguiu Eugène indignado —, que ao menos ele leve
consigo a única coisa que pode representar suas duas filhas.
Quando o rabecão chegou, Eugène fez levantarem o caixão, o despregou e
colocou religiosamente sobre o peito do velho uma imagem que se referia a um
tempo em que Delphine e Anastasie eram jovens, virgens e puras, e não
argumentavam , como ele dissera entre seus gritos de agonizante. Só Rastignac e
Christophe acompanharam, com dois papa-defuntos, o carro que levava o pobre
homem à Saint-Étienne-du-Mont, igreja perto da Rue Neuve-Sainte-Geneviève.
Lá chegando, o corpo ficou exposto numa pequena capela baixa e escura, em
torno da qual o estudante procurou em vão as duas filhas do pai Goriot ou seus
maridos. Ele estava sozinho, com Christophe, que se imaginava obrigado a
prestar os derradeiros serviços a um homem que o fizera ganhar algumas boas
gorjetas. Esperando os dois padres, o menino do coro e o sacristão, Rastignac
apertou a mão de Christophe, sem conseguir pronunciar uma palavra.
— Sim, sr. Eugène — disse Christophe —, era um bravo e honrado homem,
que nunca disse uma palavra mais alta que outro, que não prejudicava ninguém e
nunca fez nenhum mal.
Os dois padres, o menino do coro e o sacristão chegaram e deram tudo o que se
pode dar por setenta francos numa época em que a religião não é rica o bastante
para rezar de graça. Os clérigos cantaram um salmo, o Libera , o De profundis .
O ofício durou vinte minutos. Só havia um carro de luto para um padre e um
menino do coro, que aceitaram levar com eles Eugène e Christophe.
— Não há séquito — disse o padre —, poderemos ir depressa, a fim de não
demorarmos, já são cinco e meia.
Contudo, quando o corpo foi posto no rabecão, duas carruagens armoriadas,
mas vazias, a do conde de Restaud e a do barão de Nucingen, se apresentaram e
seguiram o cortejo até o Père-Lachaise. Às seis horas, o corpo do pai Goriot
desceu à sua cova, em torno da qual estavam os empregados de suas filhas, que
desapareceram junto com o clero, tão logo foi dita a curta oração em intenção do
bom homem em troca do dinheiro que o estudante pôde pagar. Quando os dois
coveiros jogaram algumas pás de terra sobre o caixão para escondê-lo,
levantaram-se e um deles, dirigindo-se a Rastignac, pediu-lhe a gorjeta. Eugène
revirou seu bolso e não encontrou nada, foi obrigado a pedir emprestado vinte
vinténs a Christophe. Esse fato, tão insignificante em si mesmo, determinou em
Rastignac um acesso de horrível tristeza. O dia caía, um crepúsculo úmido
irritava os nervos, ele olhou para a sepultura e ali enterrou sua última lágrima de
rapaz, essa lágrima arrancada pelas santas emoções de um coração puro, uma
dessas lágrimas que, da terra onde caem, tornam a jorrar rumo ao céu. Cruzou os
braços, contemplou as nuvens, e ao vê-lo assim Christophe o deixou.
Ao ficar sozinho, Rastignac deu uns passos até o alto do cemitério e viu Paris
tortuosamente deitada ao longo das duas margens do Sena, onde as luzes
começavam a brilhar. Seus olhos se prenderam quase avidamente entre a coluna
da Place Vendôme e a cúpula dos Invalides, ali onde vivia aquela bela sociedade
em que ele quisera penetrar. Lançou sobre essa colmeia zunindo um olhar que
parecia de antemão extrair-lhe o mel, e disse estas palavras grandiosas:
— Agora, somos nós dois!
E como primeiro ato do desafio que lançou à Sociedade, Rastignac foi jantar
na casa da sra. de Nucingen.
1797 Bernard-François Balzac, de uma família de camponeses do Tarn, diretor de mantimentos de uma
divisão militar de Tours, casa-se aos cinquenta anos com Anne-Charlotte-Laure Sallambier, dezoito
anos, de uma família de ricos comerciantes de tecidos de Paris.
1799 20 DE MAIO Nascimento de Honoré Balzac em Tours, segundo filho do casal. Seus irmãos são Laure
(1800), Laurence (1802) e Henri-François (1807), filho adulterino da sra. Balzac com Jean de
Margonne, castelão de Saché.
Napoleão Bonaparte derruba o Diretório e se torna primeiro cônsul da França.
1803 Depois de quatro anos vivendo com a ama de leite, Honoré volta para a família.
1804 Matriculado no pensionato Le Guay, em Tours, de onde sairá em 1807.
Napoleão Bonaparte sagra-se imperador e começa a conquista da Europa.
1807 Interno no Colégio de Vendôme, dos oratorianos, onde fica até 1813. Em seis anos só recebe duas
visitas da mãe.
1814 A família se muda para Paris, instalando-se no Marais.
Napoleão abdica e se torna rei de Elba. Primeira restauração, com a ascensão de Luís XVIII ao trono.
1815 Estudos secundários em Paris, no Instituto Lepître e no Instituto Ganzer.
Napoleão regressa triunfante a Paris, governa cem dias e é derrotado em Waterloo. Luís XVIII volta a
ocupar o trono da França.
1816 Matricula-se na faculdade de direito da Sorbonne. Estágio no escritório do advogado Guillonnet-
Merville, até março de 1818.
1818 Estágio com o tabelião Victor Passez, amigo da família. Reúne notas para um tratado sobre A
imortalidade da alma .
1819 Recebido no bacharelato de direito. O pai se aposenta e a família se muda para Villeparisis. Balzac vai
morar sozinho numa mansarda da Rue Lesdiguières, 9, perto da Bastilha, decidido a ser escritor.
Escreve Cromwell , tragédia em versos em cinco atos, que será mal recebida pelo acadêmico
Andrieux, amigo da família.
1820 Trabalha no romance medieval Agathise , no estilo de Walter Scott.
1822 Começa a escrever com pseudônimos. A herdeira de Birague , Jean-Louis , Clotilde de Lusignan ou le
beau Juif , Le centenaire , são assinados por Lord R’Hoone [Honoré]. O vigário das Ardennes ,
assinado por Horace de Saint-Aubin, é recolhido por imoralidade. Inicia a ligação com Laure de
Berny, vinte e dois anos mais velha, e que terá grande papel na sua formação.
1823 O Teatro de la Gaîté recusa seu melodrama Le Nègre.
1824 Muda-se para a Rue de Tournon, 2. Atividade jornalística em Feuilleton littéraire e La Lorgnette .
Continua a publicar com pseudônimo.
Morte de Luís XVIII , substituído pelo rei Carlos X .
1825 Primeiros trabalhos como editor, reeditando as obras completas de La Fontaine e de Molière. Início da
ligação com Laure Junot, duquesa d’Abrantes, quinze anos mais velha. Pensa numa grande História
da França pitoresca .
1826 Obtém a patente de impressor e se endivida para comprar uma tipografia na Rue des Marais-Saint-
Germain, 17, atual Rue Visconti.
1827 Para expandir a Tipografia H. Balzac, compra uma fundição de tipos gráficos, com a ajuda financeira
de Laure de Berny. Conhece Victor Hugo.
1828 O sócio André Barbier sai do negócio. Vende a fundição a um filho de Laure de Berny, que dispensa o
reembolso. Muda-se para a Rue Cassini, 1, perto do Observatório.
16 DE AGOSTO Liquidação da tipografia, que lhe deixa 60 mil francos de dívidas (cerca de 200 mil
euros), sendo 50 mil com a família.
1829 Introduzido pela duquesa d’Abrantes, frequenta os salons da aristocracia. Início da amizade e da
correspondência com Zulma Carraud. Morte do pai.
Fisiologia do casamento ; O último Chouan ou a Bretanha em 1800, primeiro romance assinado
Honoré Balzac.
1830 Intensa atividade jornalística, em Le feuilleton des journaux politiques , Revue de Paris , Revue des
Deux-Mondes , La mode.
MAIO-SETEMBRO Temporada com Laure de Berny na Touraine.
O elixir de longa vida ; Sarrasine ; Uma paixão no deserto ; Gobseck.
Revolução de Julho. Abdicação de Carlos X . Monarquia de Julho. Luís Filipe no trono da França.
1831 Vida mundana. Incorpora definitivamente a partícula de , indicativa de nobreza, a seu sobrenome.
Temporada em Angoulême com os Carraud.
Pele de onagro , sucesso imediato; A estalagem vermelha .
1832 FEVEREIRO Recebe a primeira carta de Eveline Hanska (1803-82), condessa polonesa que se assina
A estrangeira , e com quem se casará dezoito anos depois. Temporadas em Angoulême, com Zulma
Carraud, e em Aix-les-Bains, com a marquesa de Castries. Junta-se ao partido legitimista
(ultraconservador).
O coronel Chabert , início de Contos jocosos ; Novos contos filosóficos.
1833 Terceira e última temporada com os Carraud, em Angoulême. Ligação secreta com Maria du Fresnay
(1809-92), com quem terá uma filha no ano seguinte.
25 DE SETEMBRO Primeiro encontro com Madame Hanska, em Neuchâtel. Contrato para a
publicação da coleção Estudos de costumes no século XIX , em doze volumes. Natal com Madame
Hanska, em Genebra.
História intelectual de Louis Lambert ; Ferragus ; O médico rural; Eugénie Grandet.
1834 Tomos X e XI de Estudos de costumes no século XIX ; A duquesa de Langeais ; A procura do
absoluto ; início de Serafita .
SETEMBRO Começa a escrever no castelo de Saché a primeira e segunda parte de O pai Goriot ,
romance a partir do qual vão reaparecer sistematicamente seus personagens.
14 DE DEZEMBRO Publicada na Revue de Paris a primeira das quatro partes do romance. As três
seguintes sairão em 28 de dezembro desse ano, 18 de janeiro e 1o de fevereiro de 1835.
1835 Ligação com a condessa Guidoboni-Visconti. Instala-se na Rue des Batailles, 13, em Chaillot. Três
semanas em Viena com Madame Hanska, que ele só tornará a ver oito anos depois; é recebido por
Metternich. Sócio majoritário e diretor de Chronique de Paris , revista política e literária que só dura
seis meses.
Tomos I a XII de Estudos de costumes ; O lírio no vale na Revue de Paris .
11 DE MARÇO Publicação em livraria de O pai Goriot , que figurará em A comédia humana , de
acordo com o Catálogo de 1845, como um título de “Cenas da vida privada”.
1836 Nascimento de Lionel-Richard Lowell, suposto filho com a condessa Guidoboni-Visconti. Morte de
Laure de Berny. Liquidação da revista Chronique de Paris. Perseguido por credores e oficiais de
justiça, viaja à Itália e depois vive escondido em Chaillot.
A missa do ateu ; início de O gabinete das antiguidades.
1837 Compra a Villa des Jardies, em Sèvres, origem de novas e pesadas dívidas. Esconde-se na casa da
condessa Guidoboni-Visconti, que paga suas dívidas e lhe evita a prisão. Seu tílburi é confiscado pela
justiça. Exibição de seu retrato, com roupa de monge, por Louis Boulanger.
César Birotteau ; tomos VII e VIII de Estudos de costumes , contendo a primeira parte de Ilusões
perdidas .
1838 FEVEREIRO-MARÇO Temporada em Nohant, na casa de George Sand. Viagem à Sardenha, onde
espera enriquecer especulando com as minas de prata. Instala-se em Les Jardies. Inscreve-se na recém-
criada Société des gens de lettres.
A Casa Nucingen ; A Torpedo.
1839 16 DE AGOSTO Presidente da Société des gens de lettres. Campanhas pela proteção da propriedade
literária e dos direitos autorais.
2 DE DEZEMBRO Candidatura à Academia Francesa, retirando-a depois em favor de Victor Hugo,
que não é eleito.
Um grande homem de província em Paris , segunda parte de Ilusões perdidas ; Uma filha de Ève , em
folhetim.
1840 9 DE JANEIRO Cede a Victor Hugo a presidência da Société des gens de lettres.
14 DE MARÇO Criação de Vautrin no Teatro de la Porte-Saint-Martin; a peça é proibida no dia
seguinte.
25 DE JULHO Lança a Revue parisienne , mensal, que só terá três números.
SETEMBRO Les Jardies é penhorada. Muda-se com a mãe e Louise Breugniet, governanta e amante,
para a Rue Basse, 19 (atual Rue Raynouard), em Passy, onde hoje é a Maison de Balzac. O contrato de
aluguel é feito em nome de Louise.
1841 2 DE OUTUBRO Assina com os livreiros Furne, Hetzel, Dubochet e Paulin o contrato para a
publicação de suas obras completas sob o título geral, imaginado no ano anterior, de A comédia
humana . Os dezessete volumes, revistos pelo autor (edição Furne corrigida), são publicados de 1842 a
1848, e completados postumamente, em 1855, por mais três.
NOVEMBRO Morte de Wenceslas Hanski, marido de Madame Hanska, com quem Balzac retoma a
correspondência.
Um caso tenebroso ; Ursule Mirouet ; Memórias de duas jovens esposas.
1842 19 DE MARÇO Criação no Teatro de l’Odéon de Ressources de Quinola , que tem apenas dezenove
representações.
JULHO Escreve o prólogo de A comédia humana , em que compara os tipos humanos com as espécies
animais. Retrato feito por um daguerreotipista.
Os dois irmãos ; início de Esplendores e misérias das cortesãs , no jornal Le Parisien.
1843 JULHO-OUTUBRO Em São Petersburgo, com Madame Hanska.
26 DE SETEMBRO Criação de Paméla Giraud no Teatro de la Gaîté, que tem apenas 28
representações. David d’Angers termina o busto de Balzac.
Ilusões perdidas , edição completa publicada no tomo VIII de A comédia humana (v. IV de Cenas da
vida de província ).
1844 Faz o “Catálogo das obras que comporão A comédia humana ”, em que ainda figuram quarenta obras
a escrever. Problemas de saúde. Coleciona móveis e pinturas.
Modeste Mignon , em folhetim no Journal des débats ; David Séchard, a terceira parte de Ilusões
perdidas, em edição separada.
1845 Cavaleiro da Legião de Honra. Viagem a Alemanha, França, Holanda, Bélgica e Itália, com Madame
Hanska, sua filha Anne e o futuro genro.
1846 Viagem de Roma a Frankfurt com Madame Hanska. Testemunha de casamento de Anne Hanska com
o conde Georges Mniszech, em Wiesbaden.
AGOSTO Conclusão de A comédia humana, com a venda dos volumes que faltavam.
28 DE SETEMBRO Compra a prestação da casa da Rue Fortunée, atual Rue Balzac.
NOVEMBRO Madame Hanska dá à luz um menino natimorto, que se chamaria Victor-Honoré.
Desespero de Balzac.
Esplendores e misérias das cortesãs (terceira parte) em L’époque ; A prima Bette em Le
Constitutionnel .
1847 Madame Hanska, em Paris, exige que Balzac se separe da governanta.
15 DE ABRIL Instalam-se na Rue Fortunée. Balzac lega a Madame Hanska todos os seus bens e os
manuscritos, por ele corrigidos, de A comédia humana.
SETEMBRO Temporada de cinco meses no castelo de Wierzschownia, na Ucrânia, com Madame
Hanska.
1848 15 DE FEVEREIRO Volta para Paris. Presencia o saque às Tuileries, durante a revolução de fevereiro
de 1848, que lhe causa medo e aversão. Cogita em se candidatar nas eleições legislativas. Pensa em
adaptar seus romances para o teatro.
25 DE MAIO Criação de A madrasta no Teatro Historique, com apenas seis apresentações. Primeiros
sintomas da doença cardíaca.
SETEMBRO Volta para Wierzchownia, onde fica até abril de 1850.
Revolução de fevereiro. Segunda República. Luís Bonaparte é eleito presidente.
1849 11 DE JANEIRO Nova candidatura à Academia Francesa, quando só consegue quatro votos, entre
eles os de Victor Hugo e Lamartine. Passa todo o ano na Ucrânia.
1850 14 DE MARÇO Casamento em Berditchev, Ucrânia, com Madame Hanska, que abriu mão, segundo
decisão do czar, de seus bens pessoais para poder se casar com um estrangeiro. Doente, Balzac volta
com ela para Paris.
18 DE AGOSTO, 23H 30 Morte de Balzac, na casa da Rue Fortunée. Victor Hugo, que o visitara
nesse dia, faz o elogio fúnebre no cemitério do Père-Lachaise, três dias depois, lembrando o caráter
“revolucionário” de sua obra.
1882 Morte de Madame Hanska.
Outras leituras
ALLEN, R. F. “Le Sens de l’honnêteté dans Le Père Goriot ”, Cahiers de Lexicologie , 1986, no 48, p. 111-
5.
BACKVALL, H. “Quelques particularités de prononciation dans Le Père Goriot ”, Moderna Sprak , 1972,
no 66, p. 162-75.
BANIOL, R. Un roman d’apprentissage du XIX è siècle, “Le Père Goriot”, 1986, Paris, Belin.
BERRONG, R. M. “ Vautrin and Same-Sex Desire in Le Père Goriot ”. Nineteenth-Century French Studies
, outono 2002-inverno 2003, no 31 (1-2), p. 53-65.
BRUNEL, P. “Le Sublime et le grotesque chez Balzac: l’Exemple du Père Goriot ”, L’Année balzacienne ,
2001, no 2, p. 31-56.
CHEN, W-L. “ Le Père Goriot , autodestructeur”. NTU Studies in Language and Literature , Dec 2002, no
11, p. 45-69.
DATTA, É. “Le Père Goriot , alchimiste”, L’Année balzacienne , 1988, no 9, p. 335-45.
FORTASSIER, R. “Balzac et le démon du double dans Le Père Goriot ”, L’Année balzacienne , 1986, no 7,
p. 155-67.
GUICHARDET, J. “Un Jeu de l’oie maléfique: l’espace parisien du Père Goriot ”, L’Année balzacienne ,
1986, no 7, p. 169-89.
ION, A. “Le Père Goriot dans l’espace culturel”, L’Année balzacienne , 1986, no 7, p. 379-92.
LICHTLÉ, M. “La Vie posthume du Père Goriot en France”, L’Année balzacienne , 1987, no 8, p. 131-65.
O PAI GORIOT
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
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Edição baseada em Honoré de Balzac, Le Père Goriot . La Comédie humaine III . Paris: Gallimard, 1999.
Bibliothèque de la Pléiade.
TÍTULO ORIGINAL
Le Père Goriot
PREPARAÇÃO
Maria Fernanda Alvares
REVISÃO
Carmen T. S. Costa
Thaís Totino Richter
ISBN 978-85-438-0278-7