Artecomoconhecimento Rita Demarchi

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Arte como conhecimento, patrimônio e identidade cultural

Rita de Cássia Demarchi

Ao abraçar o campo de ensino e aprendizagem de arte é tomado como ponto de partida o

princípio de que a arte é uma rica área de conhecimento.

O universo artístico em suas diversas linguagens - sonoras, visuais, cênicas, corporais – é

um campo profundo de conhecimento, revelador da atuação, reflexão e sensibilidade

humana ao longo da história, nas diversas culturas. A arte perpassa e interage com

diferentes esferas das sociedades, sejam elas institucionalizadas, eruditas, populares,

marginalizadas...

Nota-se que as manifestações artísticas podem ser encontradas tanto nas grandes e

pequenas cidades, na zona rural, nos museus, teatros e salas de concerto, como no

cotidiano, na TV e internet, nas escolas, nos muros e praças, dentro das casas e dentro de

cada um de nós, formando nosso patrimônio cultural.

Músicas dos mais diversos tipos, histórias passadas de geração em geração festas Juninas e

do Divino, quadros famosos como os de Tarsila do Amaral e Volpi, uma singela escultura de

barro de Mestre Vitalino, monumentos em praça pública, grafite, livretos de cordel,

espetáculos de ópera e filmes são exemplos de bens patrimoniais que expressam e

valorizam a identidade cultural dos indivíduos e grupos sociais que os produzem e os

apreciam.

Não é difícil notar que a cultura brasileira tem a diversidade como marca.
A valorização do patrimônio cultural, da diversidade e das identidades é um tema

relevante e muito discutido na atualidade. Nesse sentido, ações como o resgate das

experiências, das raízes culturais e da memória, bem como o seu estudo e divulgação,

abrangem a cultura popular e os grupos menos favorecidos.

É inegável o valor social das manifestações artísticas. Além disso, por serem formas ricas de

construção e expressão, convocam a percepção, a memória, a imaginação, o

estabelecimento de relações, o manuseio de materiais e a materialização de ideias e

projetos. Dessa forma, desenvolve-se a potencialidade de acionar de maneira especial, a

sensibilidade e o desenvolvimento cognitivo que fundamentalmente interessam a todos nós,

educadores.

Todos podemos ter acesso às manifestações do patrimônio cultural e artístico, que podem

ser exploradas por meio de inúmeros pontos que envolvam a experimentação prática, a

apreciação e a sua compreensão. No Brasil, importantes autores e publicações abordaram

esse nas últimas décadas, no esforço de democratizar o acesso da população à arte como

conhecimento, em sua profundidade.

A premissa de “Arte como conhecimento” e a idéia de “arte como diversidade e identidade

cultural” estão em consonância com a LBD-Lei de Diretrizes e Bases da Educação, com os

PCNs-Parâmetros Curriculares Nacionais-Arte, com a Proposta Curricular do Estado e

também com autores-chave das áreas de Educação e Ensino de Arte.


ARTE COMO “FERRAMENTA”

A arte, em si mesma, é um conteúdo e também é uma “ferramenta”, um meio de

aproximar e valorizar diferentes indivíduos, grupos e culturas. Ou seja, um meio que

promove a expressão e troca de saberes, experiências de vida e pontos de vista. O

trabalho com arte pode aproximar as pessoas, sejam colegas de equipe, alunos e outras

pessoas da comunidade.

Ao valorizar a sensibilidade, a memória e o lúdico, torna-se possível lançar um olhar

mais cuidadoso para o cotidiano, ressignificar a própria experiência e a do outro, dar espaço

para o criativo, surpreendente e diferente, resgatar modos de pensar, agir e se relacionar

que se pensavam esquecidos.

Tomemos a música como exemplo: ao se trabalhar com o repertório musical dos alunos e

promover a sua valorização e ampliação, é abordado um importante conteúdo educacional e

cultural em si. Nesse caso, a música se configura como uma vertente expressiva, criativa,

prazerosa e se converte em um canal para a preservação da memória, socialização e

integração, compreensão das identidades e dos grupos, entre outros aspectos.

Outra questão interessante é que a arte é uma área que se interliga com outras áreas do

conhecimento, podendo render bons projetos interdisciplinares. Esse caráter interdisciplinar

permite criar relações entre diferentes linguagens artísticas e também entre essas

linguagens e tantas outras áreas, como alfabetização, Matemática, Ciências, História, etc.

A discussão sobre a arte gera infinitas questões e estudos, mas para sintetizar o aspecto da

arte enquanto conteúdo e ferramenta, podemos considerá-la um meio pelo qual é possível
acessar, de maneira sensível, uma compreensão mais aprofundada do mundo, do outro e de

nós mesmos.

DIÁLOGO ENTRE AS ÁREAS DA PEDAGOGIA, PSICOLOGIA E ENSINO DE ARTE

Um ponto importante e característico das bases metodológicas da Associação Arte Despertar

se refere ao fato de que a equipe integra profissionais com diferentes formações e focos,

mas que dialogam entre si.

No Projeto Formação de Educadores com Arte houve a participação das arte-educadoras de

música e dos profissionais da Pedagogia e da Psicologia, atuando independentemente com

conteúdos pertinentes a cada área. Também houve a atuação em conjunto, com a Psicologia

e Pedagogia dando suporte à arte-educação em si.

Se a arte é uma área de conhecimento, cabe aos profissionais de Pedagogia pensar em

como os indivíduos de diversas faixas etárias se colocam em relação ao grupo, como

interagem, aprendem e sistematizam a sua experiência; e isso vale tanto para a equipe de

educadores da Associação, quanto para os públicos envolvidos.

Os profissionais de Psicologia buscam a compreensão e valorização das potencialidades e

particularidades dos indivíduos envolvidos, suporte e orientação para a atuação dos

educadores, tanto da Associação arte Despertar como dos Núcleos da Santa Casa, nas

diversas situações.
No Projeto Formação de Educadores com Arte, uma proposta marcante das áreas de

Pedagogia e Psicologia buscou o resgate da trajetória dos educadores, com destaque para os

momentos:

“Minha história como aluno”: Como eu via os professores? Como eu me via como aluno?

Relembrar quando criança, quais os interesses e processos de aprendizagem e relações

marcantes com seus professores.

”Minha vida como educador”: Como eu me percebo como educador? Como eu vejo o aluno?

Relembrar o percurso profissional, os processos de formação e refletir sobre os interesses

profissionais.

As questões acima desvelam faces da identidade de cada um, entrelaçam a vida pessoal e

profissional, e possibilitam uma análise sensível e crítica sobre o passado e o presente.

O foco de todo projeto e instituição educacional é o aluno. Contudo, como educadores,

necessitamos de momentos de pausa e reflexão para olharmos para nossas próprias

experiências e processos, formadores de nosso repertório. Compreender a maneira como

somos e atuamos abre portas também, para uma melhor compreensão e atuação junto às

equipes e às crianças.

A área de Ensino de Arte é responsável por refletir sobre as especificidades das linguagens

artísticas, sobre a qualidade conceitual e prática das propostas, seu processo e a produção

gerada. No caso do trabalho junto ao Núcleo Educacional da Santa Casa de Diadema, o foco

principal foi a linguagem musical, que em vários momentos, dialogou com as outras

linguagens, como as artes plásticas, expressão corporal e contação de histórias.


Os arte-educadores na área de música foram essenciais no projeto como um todo, e no

planejamento das atividades junto a vocês, equipe parceira. Em seguida, discutiremos mais

sobre o papel e atuação dos educadores.

O PAPEL DO EDUCADOR

O educador tem um papel fundamental nos projetos da Associação Arte Despertar.

É um profissional com formação artística que se propõe a ampliar seu repertório cultural e

artístico e suas maneiras de atuar. É um investigador que se propõe a pesquisar e

aprofundar os conceitos teóricos e a prática, referentes às metodologias de ensino e às

linguagens da arte, suas relações com a cultura, suas particularidades, seus códigos,

materiais e formas de construção e expressão.

A dimensão investigativa é alimentada por pesquisas individuais, cursos de formação e pela

análise crítica de seu próprio trabalho. Há os momentos de troca junto à equipe, nos quais

são discutidos o planejamento das propostas e as problematizações decorrentes, a

socialização das experiências e a avaliação do processo.

Não se trata de alguém que tem por objetivo realizar apresentações artísticas, mas trata-se

de um mediador, de um facilitador que atua na aproximação entre as pessoas atendidas

nas instituições e o universo cultural e artístico. Nesse sentido, cabe a ele valorizar o

repertório e identidade de cada indivíduo, criando situações que convoquem a sua

participação ativa. Aspectos novos são agregados, a fim de promover o enriquecimento e

ampliação cultural. Dessa forma, os envolvidos reconhecem suas potencialidades como

produtores e fruidores de conhecimento.


Em situações como os cursos e propostas de capacitação, o educador atua também como

um formador, trabalhando com profissionais de diferentes áreas e funções. No caso de

vocês, educadores da educação infantil e complementar, procurou-se fornecer subsídios que

possibilitassem a autonomia profissional para continuar os processos de formação ao longo

da vida.

Como você, educador, vê essas dimensões do trabalho dos educadores da Associação Arte

Despertar?

Sabemos que não há sentido em “copiar” metodologias, mas você pode se inspirar nesses

papéis de investigador, mediador e formador?

FOCO NAS NECESSIDADES E IDENTIDADE CULTURAL DO GRUPO

Uma característica importante do trabalho da Associação Arte Despertar é que a cada

projeto, busca-se inicialmente compreender o contexto, as especificidades da instituição,

dos profissionais, do público, sua cultura, demandas e necessidades. Para tanto, a

observação cuidadosa da realidade antecede as intervenções.

No trabalho junto a vocês, Núcleo Educacional da Santa Casa de Diadema, durante os mês

de agosto procurou-se realizar um diagnóstico cuidadoso a fim de compreender as suas

demandas e expectativas.

A observação atenta dos espaços, das propostas realizadas e muitas conversas

possibilitaram compreender as relações: dos educadores entre si, entre os educadores e as

crianças, e entre os educadores e a coordenação. Foi possível mapear necessidades,


desejos, pontos altos e dificuldades, que indicaram os objetivos e os caminhos a serem

trilhados.

Longe de querer impor um método pronto e idealizado, consideramos fundamental que as

propostas nascessem da realidade enfrentada no dia a dia e fossem construídas

singularmente, em conjunto. Dessa forma, as propostas seriam mais adequadas, mais

sólidas e, consequentemente, “autossustentáveis”.

O foco se deu na formação profissional dos educadores e um dos pontos relevantes foi

a ampliação cultural em música. Para tanto, tomou-se como base as coordenadas:

escuta, construção de objetos, movimento, repertório. Contudo, não se perdeu de

vista que as crianças eram a principal razão de ser do projeto como um todo.

O trabalho com música possibilitou que, ao mesmo tempo em que os educadores

resgatassem e valorizassem suas próprias raízes e identidade cultural, também

pensassem na importância e em maneiras de possibilitar o mesmo para os alunos,

resgatando as origens e tradições da comunidade. Verificou-se, ao final do projeto,

que sempre foi dada atenção especial para com o repertório musical trazido pelas crianças e

adolescentes.

Dessa maneira, partindo da valorização de elementos trazidos pela comunidade, foram

elaboradas intervenções que buscaram enriquecer e transformar tanto os indivíduos

envolvidos diretamente, profissionais e alunos, quanto indiretamente, a comunidade.


O PROCESSO COMO ATUAÇÃO REFLEXIVA

A equipe da Associação Arte Despertar busca atuar de maneira reflexiva em todas as etapas,

desde a observação nas instituições, o planejamento e elaboração das propostas, até a

atuação direta junto ao público e às avaliações, que acompanham todo o processo. As

reuniões têm esse propósito.

A reflexão sobre a própria prática é uma das mais ricas fontes de transformação

para um educador. Da mesma forma, buscou-se gerar essa atitude reflexiva junto a

vocês, a fim de compreender seus próprios processos de aprendizagem e construção de

repertório, assim como, estender para a elaboração de propostas junto aos grupos de alunos

de diferentes faixas etárias.

Para tanto, além da relação direta, quase particular e imediata entre os profissionais da

Associação e da instituição parceira, foram realizados também os “Encontros gerais”,

momentos de integração das duas equipes como um todo e aprofundamento dos

conteúdos das três áreas: Psicologia, Pedagogia e Arte.

Nos Encontros gerais foram lançadas propostas de acolhimento e entrosamento entre os

participantes, com a presença de novos contratados do Núcleo. As vivências e provocações

tiveram como objetivo instigar os profissionais a refletir sobre suas posturas e atitudes, a

fim de gerar mudanças e mais confiança na forma de agir com as crianças.

Outros objetivos importantes foram, com suporte da Pedagogia e Psicologia, sensibilizar e

fundamentar o trabalho com música e artes plásticas, discutir pontos essenciais das

linguagens sonora, visual e corporal, assim como as propostas junto aos aprendizes. Um
exemplo marcante dos conteúdos e vivências abordados nos Encontros gerais se referiu às

fases de desenvolvimento do desenho infantil e à experimentação com argila, material que

anteriormente não era explorado nas propostas dos Núcleos.

Ao se trabalhar com a voz, com o corpo, com materiais diversos e com a leitura de obra de

arte, foi ativada a dimensão lúdica da arte, que abriu possibilidades de expressão e de

reflexão a partir das vivências presentes e anteriores.

Qualquer que seja a estratégia adotada, há sempre a intenção de que ela não se esgote em

si mesma, mas que integre organicamente o trabalho como um todo.

AÇÕES QUE PROMOVEM A PARTICIPAÇÃO E AUTONOMIA

“Formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de


destrezas(...)
Paulo Freire

Inspirados por Paulo Freire, sabemos que a construção da autonomia no sujeito é uma das

bases dos processos educacionais democráticos e emancipadores. Nessa perspectiva,

torna-se possível ao individuo intervir de fato na realidade, transformando-a.

Inseridas nesse contexto, as propostas advindas da parceria entre a Associação Arte

Despertar e vocês foram elaboradas com o objetivo de favorecer a participação ativa e a

construção da autonomia dos sujeitos envolvidos - profissionais, crianças, famílias,

membros da comunidade.
O resgate e valorização da identidade, assim como o enriquecimento cultural e artístico

formam um repertório emancipador, e espera-se que os indivíduos façam uso dele ao longo

de suas vidas, em processo de transformação contínua.

Ao longo do projeto foram criados, em parceria, materiais facilitadores dessas ações junto às

crianças, frutos das discussões e da análise reflexiva da prática educativa.

No presente material de apoio que chega até você, fazem parte discussões teóricas,

investigações, objetivos, ações educativas, músicas, maneiras de se produzir objetos

sonoros e trabalhar com instrumentos musicais.

Você pode e deve transformar e adaptar as propostas de acordo com suas

necessidades ao longo de sua trajetória!

Dessa forma, espera-se que o trabalho com arte e cultura se sustente na instituição após a

saída da equipe da Associação. Espera-se que, ao final deste processo, vocês tenham sido

tocados significativamente e se percebam como sujeitos atuantes, capazes de reverberar

essas experiências ao longo da vida.


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Referências bibliográficas

ARANTES, A. A. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1990.


BARBOSA, A. M. (org). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez,
2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MARTINS, M. C.; PICOSQUE, G.; GUERRA, M. T. Didática no Ensino da Arte: a língua do mundo:
poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998.
SANTOS, J. L. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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Rita de Cassia Demarchi

Doutoranda no Programa Educação, Arte e História da Cultura na Universidade


Presbiteriana Mackenzie/São Paulo e professora de disciplinas práticas e teóricas em Arte
no Centro de Comunicação e Letras na mesma instituição. Mestre em Artes
Visuais /UNESP. Especialização Ensino, Arte e Cultura/ USP. Participa do Grupo de Pesquisa
em Mediação Cultural. Experiência com formação de educadores no nível superior. Na
Associação Arte Despertar atuou como educadora em projetos com arte nos hospitais e
com formação de educadores.
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Texto elaborado para o material multimídia do Projeto Formação de Educadores em Arte em 2010

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