Psicologia Escolar - Que Fazer É Esse

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Conselho Federal de Psicologia

PARTE II
A Psicologia
diante dos
desafios da
educação
inclusiva

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Psicologia escolar: que fazer é este?

Inclusão como contexto de


transição de desenvolvimento:
um olhar da Psicologia Escolar
Maria Cláudia Santos Lopes de Oliveira16
Sueli de Souza Dias17

INTRODUÇÃO
A Psicologia Escolar tem se constituído como um elo de grande
importância na busca de qualidade da educação brasileira. Se, ori-
ginalmente, a atuação de psicólogos na escola tomava emprestadas
teorias e técnicas de outras áreas, como base para a compreensão e
a intervenção voltadas às queixas escolares, atualmente esta subá-
rea da psicologia tem identidade própria. É marcada por um mode-
lo interventivo interdisciplinar, orientado à prevenção e à promoção
do desenvolvimento, no qual se acolhem as vivências sociais e co-
munitárias como parte de fundamental importância nos processos
de ensino e aprendizagem dos estudantes, nos diferentes níveis e

16 Psicóloga. Doutora em Educação. Pesquisadora dos processos de


desenvolvimento e transições juvenis, com ênfase no contexto socioe-
ducativo. Consultora em ações de formação de atores do sistema so-
cioeducativo, em parcerias entre SDH/PR e Universidade de Brasília.
Professora do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvi-
mento da Universidade de Brasília (UnB). Coordenadora do Grupo de
Ação e Intervenção com Adolescentes (GAIA) e do Laboratório de Psi-
cologia Cultural (LABMIS). E-mail: [email protected]
17 Psicóloga com graduação e licenciatura pelo Centro de Ensino
Unificado de Brasília (CEUB). Mestrado em Psicologia na área de con-
centração Desenvolvimento Humano no Contexto sociocultural pela
Universidade de Brasília (UnB). Doutora em Processos de Desenvolvi-
mento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília (UnB). Estágio de
Doutorado na Universidad Autónoma de Madrid (UAM) - Espanha. Tem
como principais temas de interesse: desenvolvimento e aprendizagem
em contextos inclusivos; formação de professores; diversidade; desen-
volvimento humano na perspectiva da psicologia cultural. Atua como
professora/psicóloga da Secretaria de Estado de Educação do Distrito
Federal (SEDF), atuando em Equipe Especializada de Apoio à Aprendi-
zagem em escolas inclusivas do campo. E-mail: suelidiass@gmail,com

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modalidades de educação. Nesse sentido, acompanhando os avan-


ços tecnológicos e sociais que perpassam a escola, na atualidade, o
psicólogo escolar é convocado a contribuir com uma pluralidade de
questões éticas, políticas e econômicas, inter-relacionadas ao desa-
fio de construir uma escola democrática e inclusiva, capaz de aco-
lher e desenvolver as potencialidades de todos.
Neste capítulo, apresentamos um estudo longitudinal que inves-
tigou trajetórias de desenvolvimento acadêmico de adultos com de-
ficiência intelectual e discutimos as implicações de seus resultados
para a prática em Psicologia Escolar. Começamos por explorar as
condições históricas de inserção da Psicologia no contexto da educa-
ção brasileira. Na sequência, apresentamos um modelo abstrato de
compreensão do desenvolvimento humano, baseado nos processos
de rupturas e transições, em lugar de estágios normativos. Conside-
rando as contribuições do estudo empírico sobre desenvolvimento
de pessoas com deficiência intelectual, discutimos implicações para
a Psicologia Escolar, considerando a atuação de psicólogos em con-
textos educacionais inclusivos e repercussões éticas e sociais da in-
clusão, para além do espaço escolar.

Psicologia e sua inserção no contexto


educacional brasileiro
Psicologia e Educação são áreas interdependentes, no Brasil. A Psi-
cologia, como campo autônomo de conhecimentos e de práticas pro-
fissionais, entrou em nosso país na década de 1930, a partir de neces-
sidades surgidas nas escolas. A criação dos Serviços de Orientação
Infantil, nas Diretorias de Educação do Rio de Janeiro e de São Paulo
(ANTUNES, 2008), instalados nas escolas normais, tinha a finalidade
de atender crianças com dificuldades escolares e sua principal forma
de abordagem se dava por meio da adaptação, à língua portuguesa,
de testes psicológicos que foram desenvolvidos, originalmente, no ex-
terior. Da mesma forma, observa-se que a inserção da Psicologia nas
escolas brasileiras era nutrida sobretudo por concepções oriundas da
Psicologia clínica e característica esta que fomentou a ideia de que as
queixas escolares são uma das expressões decorrentes de condições
patológicas, presentes até os dias atuais.
Nas décadas de 60 e 70, a principal temática que mobilizava a
relação da Psicologia com a Educação continuava a ser a necessida-
de de explicação das dificuldades na aprendizagem, caracterizada a
partir de scores obtidos pela criança nos testes de QI. Entretanto, as

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Psicologia escolar: que fazer é este?

vias adotadas na explicação do problema se diversificaram: déficit


cultural; desestruturação familiar; carências alimentares decorren-
tes da situação social18, entre outras (KRAMER, 1982; PATTO, 1997;
SOUZA, 2007). Uma tendência comum entre elas, contudo, consistia
em poupar a escola da responsabilidade, frente às dificuldades de
aprendizagem de alguns estudantes, e imputar, exclusivamente, a
eles e às famílias a situação de opressão social da qual eram vítimas
e que poderia levar ao fracasso na escola.
Somente na década de 80 algumas vozes mais enfáticas come-
çam a questionar e criticar os direcionamentos dados, com a partici-
pação da Psicologia, aos problemas relacionados à aprendizagem es-
colar. No geral, o conhecimento psicológico continuava a ser utilizado
na escola de modo ideologicamente enviesado, com fim classificató-
rio e tendo a psicometria como principal instrumento de avaliação do
desempenho escolar de estudantes. Os testes de inteligência eram o
principal instrumento de trabalho do psicólogo escolar, utilizado qua-
se sempre de forma descontextualizada das realidades socioculturais
e descomprometidos com ações propositivas que modificassem o
contexto escolar em sua relação de interdependência com o entorno
social. Nessa direção, compreende-se que a Psicologia foi utilizada
como instrumento de seleção e adaptação de estudantes, legitiman-
do ações que, em última análise, mostravam-se discriminatórias e ex-
cludentes. A prática psicológica em contextos educativos coadunava
com um modelo de sociedade pouco comprometida com a elimina-
ção das desigualdades sociais (CHAGAS, 2010), e ratificava “um proje-
to de controle social, subjugado ideologicamente aos interesses hege-
mônicos da classe detentora do poder, a partir da organização socioe-
conômica capitalista” (MARINHO-ARAÚJO; ALMEIDA, 2008, p. 14).
Não se deve desconsiderar, durante os anos 80, a existência de psi-
cólogos que, individualmente ou em grupos profissionais, engajavam-
se na luta por uma visão mais emancipadora e crítica do ser humano
e de sociedade, com impacto no fazer psicológico na escola. Entretan-
to, consideramos que foi apenas nos anos 90 que novas perspectivas
educacionais emergiram com força renovada, a fim de impulsionar a

18 Ressalta-se que a “situação social”, aqui mencionada, não era pro-


blematizada de forma crítica, como contexto de relações desiguais de
poderes; a ausência de uma tal problematização abria espaço para pre-
conceitos e estereótipos diversos, imputados aos estudantes e suas fa-
mílias, especialmente os oriundos de classes populares.

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reflexão sobre concepções e atitudes relativas a dificuldades escola-


res e ao direito universal à educação.
A emergência de novas teorias é expressão e motor de novas onto-
logias e epistemologias. As teorias sócio-históricas, feministas e cons-
trucionistas, entre outras, que se disseminam nos anos 90, no Brasil,
colocam em xeque paradigmas dominantes e levam à crescente mo-
bilização dos atores, provocando expressivas mudanças na relação
Psicologia/Educação. Vários foram os temas em que essas mudanças
se fizeram notar (questões étnicas, religiosas, de gênero, entre outras),
mas neste trabalho o interesse volta-se àquelas que foram impulsiona-
das pela ética da diversidade e pela concepção de trajetórias plurais
de desenvolvimento, que substitui o paradigma normativo e prescriti-
vo no enfoque do desenvolvimento humano. Abordamos aqui o efei-
to dessas mudanças para a educação de pessoas com deficiências.
Eventos internacionais se destacaram, nessa direção, conclamando
educadores e responsáveis por políticas públicas a se posicionarem
em relação à proposta de universalização de uma educação de quali-
dade, independentemente da condição de desenvolvimento do estu-
dante19. Os psicólogos escolares não puderam se furtar do debate e a
compreender a educação “a partir de uma perspectiva dialética e con-
traditória, em que os conflitos e rupturas fornecem férteis espaços de
transformação” (MARINHO-ARAÚJO; ALMEIDA, 2008, p. 16).
Dessa forma, chegamos aos anos 2000 munidos de uma nova vi-
são, na qual o estudante era reconhecido como sujeito em desenvol-
vimento e de aprendizagens não normalizadoras. O foco no indivíduo
cedeu lugar ao interesse na subjetividade, esta constituída na e pela
cultura, sendo marcada pela interdependência criativa de história so-
cial da comunidade e vivências subjetivas. Os últimos anos estão mar-
cados por novas tensões culturais e pela necessidade extrema de apri-
moramento de formas de lidar com a diversidade, no sentido mais
abrangente do termo. Nesse cenário, a atuação significativa do psicó-
logo escolar deve incorporar os diferentes contextos nos quais os estu-
dantes participam. Acreditamos que ações da Psicologia Escolar que

19 Conferência Mundial de Educação para todos (1990, Jomtien, Tailân-


dia), da qual emergiu a “Declaração Mundial sobre Educação para Todos:
satisfação das necessidades básicas de aprendizagem” (UNESCO, 1998).
Conferência mundial sobre necessidades educativas especiais: acesso e
qualidade (1994, Salamanca, Espanha), tendo como principal produto a
“Declaração de Salamanca: sobre princípios, políticas e práticas na área
das necessidades educativas especiais” (UNESCO, 1994).

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Psicologia escolar: que fazer é este?

promovam a emancipação dos sujeitos levam à inclusão social, para


além dos muros da escola. Favorecem, dessa forma, a mobilização de
recursos subjetivos para a participação, a cidadania e mudança social
possibilitam transições de desenvolvimento subjetivo.

Contextos de transição e desenvolvimento humano


Transição é um termo utilizado, na vida cotidiana, de forma ambí-
gua, uma metáfora que representa movimento e significa a mudança for-
tuita desde um lugar, uma condição específica ou uma situação norma-
tiva para outra. Como exemplos desse tipo de compreensão podemos
citar: a ascensão de um nível de escolarização para outro; a mudança
no status profissional por meio de uma promoção funcional; o tornar-se
pai ou mãe; a aposentadoria, e outras circunstâncias afins (Dias, 2014).
Com significado distinto, mais específico, este termo foi adotado
como conceito explicativo de processos de desenvolvimento humano,
na psicologia do desenvolvimento semiótico-cultural (ZITTOUN, 2009).
Esta abordagem interessa-se pela relação dinâmica entre sujeito, tem-
po e cultura e compreende a dinâmica das transições não apenas en-
quanto sequência de eventos subjetivos. Interessa-se, sobretudo, pela
inter-relação do desenvolvimento pessoal com as circunstâncias so-
ciais e os processos adjacentes a esse trânsito. O conceito de transi-
ção refere-se ao conjunto de mudanças simultâneas que são catalisa-
das por rupturas e percebidas pela própria pessoa como possibilitando
transformações significativas e duradouras no seu sistema subjetivo.
A ocorrência de transições é antecedida por eventos de ruptura,
tanto internos como externos à pessoa. Estes eventos são considera-
dos marcos importantíssimos para o desenvolvimento, corresponden-
do a uma variedade de situações surpreendentes, dramáticas, ines-
peradas, potencialmente desorganizadoras e críticas, que impactam
o sistema do self em dado momento da linha biográfica da pessoa,
potencializando ou catalisando reposicionamentos da pessoa, frente
à realidade e a si mesma. Nessa medida, rupturas significam “uma
chamada para novas ideias, novas soluções, ou novos caminhos de
ação ou pensamentos” (ZITTOUN, 2009, p. 5).
Da forma como a concebemos, as transições de desenvolvimento
são processos mais dinâmicos do que os que estão atrelados aos even-
tos normativos relacionados ao corpo (por exemplo, o ingresso na lin-
guagem simbólica, a puberdade, etc.), ou às experiências psicossociais
(entrada na escola, no mundo do trabalho, etc). Relacionam-se, outros-
sim, aos processos inovadores, que proporcionam transformação, pos-

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sibilitando a emergência de novos valores, formas de pensar e agir no


mundo. Três aspectos estão intrinsecamente relacionados aos proces-
sos de transição: a (re)definição de identidade, a mudança global de
percepção e o reconhecimento da internalização dessas aprendizagens
nas autorrepresentações da pessoa. Em outras palavras, o critério para
definir o desenvolvimento é dado pela pessoa, na negociação com os
outros. Todos esses aspectos, constituídos em meio a dinâmicas de con-
tinuidade e descontinuidade temporal da pessoa, permitem que o ser
humano construa reorientações de rota e formas criativas de respon-
der às demandas do cotidiano. Em síntese, representam o complexo
de possibilidades em meio ao qual se dá o desenvolvimento humano.
Conforme discutido por Vigotski (2001; 2003), desenvolvimento hu-
mano “pressupõe uma relação intrínseca de mútua constituição entre
os aspectos orgânicos e aqueles da ordem da cultura, que possibilitam
transformações das funções psicológicas e favorecem a emergência das
funções superiores, essencialmente humanas” (Dias, 2014, p.62). Nessa
abordagem, desenvolvimento não deve ser desvinculado das condições
concretas da vida social, e sim, compreendido à luz das dinâmicas con-
textuais que definem o frame no qual os sujeitos estão inseridos.
Ao discutir processos de internalização e externalização Valsiner
(2012) reconhece o papel ativo dos sujeitos, que tanto são afetados
como afetam as dinâmicas sociais e culturais. Nessa perspectiva, o
desenvolvimento humano resulta em diferentes trajetórias de desen-
volvimento e à possibilidade de construção de novos posicionamentos
em relação às pessoas com deficiência intelectual. Constituídos como
processos bidirecionais internalização/externalização são mecanis-
mos que permitem intercâmbios construtivos entre cultura pessoal
e social, fertilizando o desenvolvimento de funções superiores. Esses
mecanismos culturais permitem ao sujeito decisões próprias, resistên-
cias e atuações que, em determinadas circunstâncias, podem seguir
contrariamente ao que indicam históricas sugestões sociais. Desse
movimento surgem importantes processos de mudanças pessoais e
sociais, como o que tem acontecido em meio ao paradigma inclusivo.

Educação de pessoas com deficiência intelectual em


contextos inclusivos: desafios e conquistas
A partir de lutas sociais por garantias de direitos, observamos nes-
tas duas décadas do século XXI, a democratização progressiva do
acesso de pessoas com deficiência à escola inclusiva. Fatores tais
como novos dispositivos legais, mudanças nos sistemas de valores so-

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Psicologia escolar: que fazer é este?

ciais e mais resultados de pesquisas disponíveis contribuíram para


ampliar o direito à educação e ao trabalho, permitindo que este gru-
po conquistasse maior autonomia e participação social (Fernandes,
2016). Os ganhos, no entanto, não se dão de forma linear e abrangente.
Por exemplo, em relação às pessoas com deficiência intelectual os
problemas e desafios são especialmente inquietantes. Por muito tempo,
a deficiência intelectual foi considerada uma condição estanque, que
impedia o desenvolvimento e limitava a pessoa a um repertório simplifi-
cado de habilidades relacionadas meramente às tarefas práticas. Era en-
volvida por uma cortina de fumaça, que tornava obscura sua caracteriza-
ção, considerando a fronteira mal definida entre deficiência intelectual,
atrasos de desenvolvimento mental e dificuldades escolares menores,
por um lado; entre a deficiência intelectual e a alienação mental carac-
terística de alguns tipos de doenças mentais, por outro; entre caracterís-
ticas e potencial de aprendizagem de pessoas com síndromes genéticas
e com outras deficiências não passíveis de enquadramento como tais,
por fim. Em suma, as representações dominantes, no senso comum,
a associavam deficiência intelectual à incapacidade de aprendizagem
e à cristalização no desenvolvimento psicológico (DIAS, 2004; 2014).
A inclusão, em sua dimensão educacional e social, coloca-se na
atualidade como um novo marco paradigmático, que contribui para
ressignificações necessárias em relação à deficiência intelectual. Já
se têm evidências acumuladas para sustentar que a inserção no con-
texto educativo formal e formas mais abrangentes de acesso a infor-
mações e experiências, em meio às diferentes mediações semióticas
da atividade humana que a escola favorece, levam a transformações
nos modos de funcionamento psíquico da pessoa com deficiência in-
telectual (DIAS, 2014; DIAS & LOPES DE OLIVEIRA, 2014). Assim, múl-
tiplas estratégias passaram a ser adotadas no espaço escolar, no intui-
to de potencializar habilidades e competências de pessoas com defi-
ciência intelectual, que tem alcançado patamares antes insondados
de desenvolvimento, inserção social e cidadania.

Desenvolvimento educacional de
pessoas com deficiência intelectual:
contribuições de um estudo empírico
O paradigma da inclusão educacional potencializa diferentes alter-
nativas pedagógicas e interativas que valorizam habilidades e potencia-
lidades de estudantes com diagnóstico de deficiência. A experiência in-
clusiva fortalece o senso de si do estudante, possibilitando a emergência

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de novos posicionamentos como sujeitos de aprendizagem e cidadãos.


Ao catalisar processos de rupturas e transições de desenvolvimento, a in-
clusão impulsiona diferentes trajetórias, potencializando histórias de su-
cesso escolar. A Educação Básica, em suas diferentes etapas, tem por ob-
jetivo promover, além do domínio da leitura, escrita e cálculo, também
a preparação básica para a Educação Superior, o trabalho e a cidadania,
a partir de uma “formação ética, desenvolvimento da autonomia intelec-
tual e do pensamento crítico e a compreensão dos fundamentos cien-
tífico-tecnológicos dos processos produtivos” (PORTAL BRASIL, 2016).
Considerando essas premissas básicas da educação e na busca por
compreender e discutir processos de desenvolvimento de pessoas adul-
tas com diagnóstico de deficiência intelectual foi realizada uma pesqui-
sa de caráter longitudinal com seis adultos egressos do Ensino Médio
em escolas públicas inclusivas de diferentes regiões administrativas do
Distrito Federal20 (DIAS, 2004; 2014; DIAS, LOPES DE OLIVEIRA, 2014). Os
resultados da pesquisa apontaram que: o processo de avanço na esco-
larização contribuiu efetivamente para a ressignificação das autoima-
gens, e para a relação dos sujeitos com o diagnóstico de deficiência in-
telectual; o maior número de anos de escolarização contribuiu para a
autonomia e maior independência nas relações e atividades cotidianas;
levou à antecipação de perspectivas de futuro, sejam relacionadas ao
ingresso no Ensino Superior, sejam relativas à permanência e ascensão,
na esfera do trabalho. Na segunda etapa da pesquisa, todos os partici-
pantes, à exceção de um, eram trabalhadores e dois deles cursavam
nível superior, sendo um em curso de Educação Física e outro, em Pe-
dagogia. Alguns exemplos, com excertos de narrativas dos participantes
ilustram a importância de uma escola inclusiva de qualidade nas traje-
tórias de pessoas com diagnóstico de deficiência intelectual:

Afonso21: Ah, eu sou uma pessoa normal porque eu já estudei na


escola pública, já estou trabalhando, já como normal, né…
Elma: O que mais quero é formar na faculdade. Estou ten-
tando [..] E eu trabalhando oito horas, não interessa, eu vou

20 O processo de construção das informações se deu em duas etapas


com intervalo de nove anos. Na primeira quatro dos participantes cursa-
vam Ensino Médio. Na segunda, todos eles já haviam concluído esse nível
de escolarização. Dois sujeitos participaram apenas do segundo mo-
mento da pesquisa. Detalhamento das pesquisas em Dias (2004; 2014).
21 Todos os nomes são fictícios.

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Psicologia escolar: que fazer é este?

continuar na faculdade. Vai ser difícil? Vai. Mas as coisas não


são fáceis, e eu vou enfrentar isso aí.
Felipe: Eu acho especial em mim, que é o seguinte: eu geral-
mente eu demoro muito para refletir os meus erros, mas quan-
do eu reflito o meu erro, eu sempre proponho a mudança.
Rodrigo Sena: eu espero poder ter uma vida bem-sucedida. Po-
der quem sabe fazer uma faculdade [..]. Eu portador de ne-
cessidades especiais já consegui terminar o ensino médio.
Para mim já foi um grande avanço, muito importante, já que os
médicos nunca falaram de [que eu pudesse] conseguir concluir.
Vinícius: Como o mundo passa, nós mudamos de coisas da
vida. Posso estar morando lá fora do país, em outro lugar no
mundo, ninguém sabe como pode acontecer, mesmo comigo
ou mesmo o destino. Sabe... a coisa que acontece!
Álvaro: Superação, assim… […] E acho que foi isso! E ter
concluído o Ensino Médio, que hoje não é mais muita coi-
sa… Mas que, né, já é uma coisa que muitos tentaram e não
conseguiram… Nem sair do Fundamental. [...] E até no meu
serviço mesmo tem gente que não sabe ler, não sabe nada,
não sabe escrever, não tem curso. Eu já tenho curso [Ensino
Médio]. Já fiz o curso de vigilante, depois já tenho o cur-
so de transporte de valores também. [...] Prestei vestibular,
passei, mas só que não deu. Não tinha como pagar, na época.
Eu fiz [o vestibular] para ciência da computação.

Identificamos nas narrativas um conjunto de significados que de-


safiam as tradicionais concepções sobre deficiência intelectual. Con-
siderando que a ontogênese é um processo bidirecional, percebemos
a descrição de capacidades, potencialidades e méritos pessoais asso-
ciados ao contexto da escola e a seus mecanismos inclusivos, respon-
sáveis por avanços na escolarização e inclusão social, no sentido am-
plo, para além dos muros da escola. Consideramos que a conclusão
da Educação Básica contribuiu no desenho das diferentes trajetórias
desses sujeitos, seja no aspecto profissional, das relações afetivas e
sociais, ou nas perspectivas e acesso ao Ensino Superior.

Considerações finais: perspectivas


para a psicologia escolar

A Psicologia Escolar vem ampliando seu escopo de inserção insti-

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tucional, deixando progressivamente de cobrir apenas o trabalho em


escolas para incluir esferas mais abrangentes de atuação institucional
em contextos diversos. Com a ampliação da pesquisa na área e a ofer-
ta de um corpus de ideias produzido a partir de práxis inerentes ao
campo, a Psicologia Escolar tende a se converter em um paradigma
abrangente, capaz de fomentar a compreensão e a intervenções signi-
ficativas em cenários socioinstitucionais diversos.
Ao mesmo tempo, é possível reconhecer que houve significativa
ampliação de experiências em educação inclusiva, no Brasil, nas úl-
timas décadas, não apenas em relação à educação básica. Número
crescente de pessoas com deficiências, inclusive intelectual, chega
aos níveis mais elevados de ensino e ao mundo do trabalho, criando
assim novos nichos de reflexão e atuação para o psicólogo escolar.
Nesse sentido, na parte final do capítulo, exploramos alguns desa-
fios e implicações das novas realidades educacionais inclusivas para a
prática do psicólogo escolar. Compreendemos que, frente à inclusão,
cabe intervir de diferentes formas: (i) potencializar a discussão teórica
sobre o tema, que deve traduzir-se em práticas pedagógicas cotidia-
nas alinhadas com as necessidades dos sujeitos e da escola inclusiva;
(ii) desenvolver novas metodologias de intervenção institucional, com
professores, coordenadores e estudantes, metodologias que visem à
permanência e ao sucesso acadêmico das pessoas com deficiências e
previnam a discriminação e o preconceito. Da mesma forma, (iii) an-
tevemos novas oportunidades de atuação, em termos de orientação
profissional inclusiva, ao estabelecer a ponte entre a escola e a vida
dos sujeitos, após a conclusão do ensino médio.
Os psicólogos escolares, em atuação sistemática e conjunta com
os diversos atores no contexto escolar, precisam a cada dia aprofundar
o conhecimento sobre a forma como os estudantes com deficiência
têm, cotidianamente, transformado as ferramentas culturais disponí-
veis em distintas instâncias sociais (escola, família, trabalho, espaço
de convívio comunitário e de lazer) em recursos simbólicos para o
próprio desenvolvimento (Rogoff, 2005).
O psicólogo escolar deve ainda estar atento aos programas de en-
sino e de aprendizagem, cuidando para que sejam geradores de novas
competências, não apenas acadêmicas. Os contextos formativos de-
vem favorecer que o sujeito estabeleça interações adequadas à exe-
cução de atividades educacionais, laborais ou de outras ordens (DIAS
& LOPES DE OLIVEIRA, 2012). O novo foco da Psicologia Escolar não
incide na escolarização, como um fim si mesma, mas nas possibilida-
des que a permanência na carreira escolar e as aprendizagens consis-

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Psicologia escolar: que fazer é este?

tentes podem suscitar em termos do desenvolvimento global da pes-


soa. Atuando desse modo, a psicologia ultrapassa definitivamente o
papel meramente classificatório que teve no passado e chega a uma
posição dinâmica, comprometida com a emancipação, a autonomia
e a cidadania dos estudantes. Da mesma forma, reconhece as tran-
sições de desenvolvimento que são mediadas pelas aprendizagens,
com a proposição intencional de estratégias de empoderamento do
estudante com deficiência, de forma que as novas conquistas possam
exceder a escola e alcançar outros contextos.
Junto com esses aspectos mais amplos da atuação profissional,
o novo paradigma da Psicologia Escolar tem por foco a proteção da
pessoa com deficiência e deve estar atento às implicações éticas, no
campo social e subjetivo, de distintas facetas de seu trabalho. O pri-
meiro ponto que destacamos aqui refere-se às controvérsias em torno
do diagnóstico de deficiência intelectual. O contexto escolar demanda
dos psicólogos a geração de laudos e diagnósticos, necessários inclusi-
ve para fazer valer os direitos da pessoa com deficiência. No entanto, os
resultados do estudo acima referido apontam que o diagnóstico tanto
pode ser uma conquista positiva, que auxilia o sujeito em frentes como
a obtenção de benefícios sociais, cotas de emprego, etc, como leva a
estigmas que podem acompanhar o sujeito ao longo de sua vida, levan-
do à baixa autoestima e a trajetórias desenvolvimentais aquém de suas
potencialidades (Dias, 2004; DIAS & LOPES DE OLIVEIRA, 2013). Assim,
o diagnóstico deve ser enfocado criticamente, no ambiente escolar, de
forma a considerar as dificuldades, mas não se restringir a elas, com-
prometendo-se com o desenvolvimento de habilidades.
Importante ainda que o psicólogo escolar desenvolva estratégias
junto aos estudantes que contemplem uma visão prospectiva de suas
trajetórias. Suas ações no cotidiano da Educação Básica, especial-
mente no Ensino Médio, devem considerar as demandas que emer-
gem na contemporaneidade, provocadas pela “aceleração da produ-
ção de conhecimentos, a ampliação do acesso às informações, os no-
vos meios de comunicação, as alterações do mundo do trabalho, e
as mudanças de interesse dos adolescentes e jovens, sujeitos dessa
etapa educacional” (BRASIL, 2013, p. 146).
As condições e possibilidades pós-escolares é um tema a ser discuti-
do com os estudantes e com os docentes. Dinâmicas, oficinas vivenciais
e ações dramáticas que levem ao jogo de papéis e à reflexão crítica de
temáticas próprias da juventude e da adultez são exemplos concretos
de atividades, que associadas a outras pertinentes ao fazer institucional
do psicólogo, podem ser desenvolvidos no contexto da escola inclusiva.

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Com o progressivo e crescente acesso de estudantes com deficiên-


cia nas universidades, há a necessidade de serviços de apoio pedagó-
gico que se convertem em nichos de atuação do psicólogo escolar. O
estudo citado (DIAS, 2014) e outras pesquisas recentes (FERNANDES,
2015) apontam para os desafios que são enfrentados por estudantes
com deficiência no ambiente universitário: escassez de apoios dispo-
nibilizados, visando a eliminação ou minimização das barreiras físi-
cas; descrédito social que se impõe a priore ao estudante, apenas por
sua condição de pessoa com deficiência, o que se agrava quando a
deficiência é intelectual. Em suma, essa nova configuração da Educa-
ção Superior requer da Psicologia Escolar a tomada de novos posicio-
namentos que colaborem para interações e aprendizagens relevantes.
Assim, a deficiência intelectual não pode mais ser vista como con-
dição impeditiva à aprendizagem e ao desenvolvimento humano. Os
meios disponibilizados aliados às mediações para acesso às diferentes
ferramentas culturais impulsionam o desenvolvimento e transformam
a pessoa em direção a formas mais sofisticadas e criativas de inser-
ção social. Pessoas com deficiência têm demonstrado significativos
desempenhos em diferentes campos da vida social, surpreendo com
trajetórias de vida qualitativamente diferenciadas do que nos demons-
tra o nosso passado sobre a história das deficiências.
Concluímos ressaltando enfaticamente a necessidade e a impor-
tância da atuação do psicólogo escolar nos diversos espaços educati-
vos nos quais estejam incluídas pessoas com deficiências, sejam eles
espaços formais de escolarização ou aqueles destinados à formação
continuada ou capacitação profissional. O olhar prospectivo e atuali-
zado desse profissional sobre a aprendizagem e o desenvolvimento
humano em situação de deficiência e sua atuação interdisciplinar con-
tribuirão significativamente para processos de inclusão cada vez mais
eficazes na sociedade brasileira.

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Psicologia escolar: que fazer é este?

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