A Inclusão Como Direito Humano Emergente
A Inclusão Como Direito Humano Emergente
A Inclusão Como Direito Humano Emergente
David Rodrigues
1. Introdução
O reconhecimento dos Direitos do Homem (DH) é um assunto com uma longa, ainda que
recente, história. Quando se contempla o panorama histórico na perspetiva da dignidade da
pessoa enquanto ser humano, não podemos deixar de ter uma visão muito pessimista e
negativa. Em todas as civilizações, sempre existiram enormes e maioritárias massas
populacionais que sofreram os maiores vilipêndios, vexames e atentados à sua dignidade
humana. Não é preciso dar muitos exemplos mas basta olharmos para “o povo” muitas vezes
vendido com as terras em que trabalhava, a escravatura, o estatuto das mulheres e
arbitrariedade do exercício da justiça. Não é pois uma história de que a humanidade se possa
orgulhar, esta dos direitos humanos para toda a população.
Não é nossa intenção fazer aqui uma história das conquistas sociais que conduziram ao
reconhecimento gradual e setorial dos DH. Mas, numa rápida síntese, cabe mencionar o fértil
período de 12 anos (1779 – 1791) em que, são proclamados 4 documentos fundamentais
sobre os DH: em 1776, a Declaração da Independência dos Estados Unidos em se afirma o
“direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade”, em 1787, no preâmbulo da Constituição
dos Estados Unidos em que se definem os direitos básicos dos cidadãos, em 1789, a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que em França, estabeleceu a famosa trilogia
da Revolução Francesa: Igualdade, Fraternidade e Liberdade e, finalmente, em 1791, a Lei dos
Direitos dos Estados Unidos que formalmente limita os direitos do Estado e protege os direitos
dos cidadãos.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) é adotada pelas Nações Unidas em 10
de Dezembro de 1948. Muito se tem escrito sobre as motivações da proclamação desta
Declaração. Parece insofismável que a barbárie e a dimensão da tragédia da Segunda Guerra
Mundial, impeliu as Nações Unidas – organização fundada 3 anos antes, em 1945 – a adotar
um documento que fosse uma carta de garantia para que a barbárie e a tragédia
recentemente ocorrida, não se voltasse a passar. Para isso, seria essencial afirmar e defender
os Direitos Humanos contra toda a ditadura e prepotência e dar aos cidadãos uma base ética e
concreta para se poderem defender das múltiplas possíveis violações dos seus direitos.
A DUDH não é criada a partir do nada. Ela é claramente inspirada em documentos anteriores
nomeadamente nos documentos produzidos no final do século XVIII a que fizemos referência.
Por exemplo, no primeiro artigo da DUDH “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em
espírito de fraternidade”, é óbvia a preocupação de respeitar a trilogia da Revolução Francesa
ao citar a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade.
Neste artigo vamos analisar algumas das implicações e ligações que a DUDH podem ter para a
Inclusão e sobretudo procurar justificar a necessidade de contemplar a Inclusão como um
novo Direito Humano.
2. OS DH hoje
A importância dos DH é hoje inquestionável. Por vezes a sua evocação tão sistemática e
alargada sugere que os DH acabaram por se converter efetivamente em universais enquanto
código de conduta e de ética humana. Sendo evocados e referenciados por todos os países do
mundo, os DH acabam por ter um impacto mais universal que as religiões ou então, acabaram
eles próprios po se converter numa religião laica, isto é sem divindade e sem culto.
Não é pois de estranhar que os DH sejam eles próprios usados como um elemento de
justificação de posições antagónicas. Cabe recordar como durante a chamada “Guerra Fria” o
“bloco soviético” e o “bloco ocidental” se acusavam mutuamente de graves infrações aos
direitos humanos interpretando diferentemente o que eram os erros próprios e as violações
“dos outros”.
Quando pensamos no panorama atual sobre os DH podemos verificar várias ordens de aspetos
positivos: o primeiro respeita à sua referência universal e ao impacto que têm em todas as
áreas de atividade. O referencial dos DH é usado em todos os países do mundo e em domínios
como a Educação, Saúde, Cidadania, Liberdades, etc. ; em segundo lugar os DH permitiram
concretizar um conjunto de aspirações e de metas concretas que informam as leis
fundamentais de cada Estado; e finalmente os DH constituíram-se – honrando a razão da sua
origem – como uma promessa de Paz e de redução dos conflitos humanos: os DH procuram
substituir a eficácia da força pela força da ética.
Mas nem tudo são boas notícias: os DH enfrentam também problemas que lhes diminuem o
impacto e as possibilidades da sua concretização. Apontaríamos três destas dificuldades: os DH
apesar de terem aspiração a serem universais são frequentemente criticados pelo sua
inspiração “ocidental” e “cristã”. Muitas destas críticas partem de outras culturas que
questionam a universalidade dos DH procurando acentuar que estes Direitos não se
encontram adaptados a outras culturas. Estas críticas apesar de evocarem – e bem - a origem
“ocidental” de linguagem e valores dos DH, não avançam muito na explicitação do que seriam
direitos humanos conformes a outras culturas. Por exemplo: quando se defende que as
mulheres não devem ter o mesmo estatuto de cidadania dos homens, será que esta perspetiva
é generalizada mesmo dentro desta cultura ou não passa de uma forma de dominação e
opressão? Quando se afirma que a “tradição” se deve sobrepor aos DH, não será necessário
analisar quanto de opressão e de violência simbólica existe em práticas tradicionais que,
respeitando a tradição, desrespeitam as pessoas?
Um terceiro fato e que nos parece ter um importância fundamental é que passados mais de 65
anos da sua proclamação os DH estão (muito) longe de uma aplicação universal. Daríamos só
três exemplos: dados publicados por organizações internacionais – nomeadamente a Amnistia
Internacional e a UNESCO – mostram que ainda existem no Mundo 25 milhões de pessoas com
estatuto semelhante ao de escravos, 75 milhões de crianças não têm acesso à escola e a
pobreza – e com ela todo o cortejo de privações – é real para dois terços da Humanidade. Se a
isto se juntar por exemplo a ocorrência de tortura (recentemente identificada mesmo em
países da União Europeia) e ausência ou restrição de liberdades políticas, ficamos com um
panorama quase dantesco sobre a efetividade e realidade dos DH no mundo. Na verdade, os
problemas com o cumprimento dos DH são praticamente tão universais com a adoção dos
Direitos.
Estas dificuldades reforçam a ideia que os DH são um grande referencial que, como todas as
grandes utopias da humanidade, serve de farol para guiar as ações e as opções. O facto de os
DH assumirem ainda um caráter tão utópico, não lhes retira a pertinência. Na verdade,
vivemos rodeados de utopias (por exemplo a democracia tal como pensamos que deveria
funcionar constituiu uma grande utopia) e a função da utopia como afirmou R. Galeano “é
fazer-nos caminhar” ainda que sem a alcançar: “nós damos um passo e a utopia dá dez”.
Os DH tal como se apresentam hoje são fruto de uma intensa e profícua reflexão oriunda
sobretudo da filosofia do Direito. Os DH constituem-se como uma Magna Carta a partir da
qual todo o edifício legislativo se organiza. Tem-se realçado o carater indissociável e
interdependente dos DH, características que sublinham que os DH devem ser encarados na
sua totalidade e relação uns com os outros.
Hoje podemos identificar várias gerações dos DH: a chamada 1ª geração (assegurando a
Liberdade) agrupa os DH individuais, civis e políticos, a 2ª Geração (assegurando a Igualdade)
os sociais económicos e culturais e fala-se presentemente numa 3ª geração de DH que
garantiria a Fraternidade , isto é os direitos inerentes a viver em sociedades solidárias e
humanamente avançadas como sejam o direito à Paz, ao Desenvolvimento, à Sustentabilidade,
etc.
1.Todas as pessoas têm direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a
correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino
técnico e profissional deve ser generalizado; o aceso aos estudos superiores deve estar aberto a
todos em plena igualdade, em função do seu mérito.
2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos
do homem e das liberdades fundamentais. Esta deve promover a compreensão, tolerância e
amizade entre as nações, grupos religiosos ou raciais e deve promover as atividades das
Nações Unidas para a manutenção da paz.
3. Os pais têm o direito primário de escolher o tipo de educação que deve ser dada aos filhos.
A questão que emerge deste ponto é muito simples: Como é que se pode cumprir este
desiderato de promover a compreensão, tolerância e amizade” sem que seja posta no terreno
uma filosofia e uma prática inclusiva?
O terceiro exemplo refere-se à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(proclamada pelas Nações Unidas em 2006). Cabe lembrar que esta histórica Convenção deve
ser considerada e evocada como Lei Nacional dado que foi ratificada pelos diplomas 56 e
57/2009 da Assembleia da República e promulgada pelo Presidente da República nos decretos
71 e 72/ 2009. Esta Convenção, no seu artigo 24º postula que “Os Estados Partes reconhecem
o direito das pessoas com deficiência à educação. Com vista ao exercício deste direito sem
discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes asseguram um
sistema de educação inclusiva a todos os níveis e uma aprendizagem ao longo da vida (…)”
Finalmente referiríamos a abundante e relevante legislação que tem sido produzida pela União
Europeia nomeadamente a Carta Social Europeia (nos seus artigos 15 e 17) e o Plano de Plano
de Ação sobre Deficiência do Conselho da Europa (Linha de Ação 4). O Conselho da Europa
elaborou uma recomendação que foi submetida e aprovada no Comité de Ministros,
CM/Rec,2013,2) e onde se assegura “a completa inclusão de crianças e jovens com deficiências
na sociedade”. É ainda afirmado que “A Educação deve ser vista como a base da inclusão das
crianças e jovens com deficiência na sociedade”.
Cabe ainda lembrar que, presente este carater permanentemente evolutivo dos DH, um
grande conjunto de organizações não governamentais e de outras de outras índoles,
desenvolveu esforços no sentido de criar uma Declaração Universal dos Direitos Humanos
Emergentes (DUDHE). Após uma reunião efetuada em Barcelona em 2004, esta carta foi
aprovada em Monterrey em 2007. No preambulo desta DUDHE é afirmado que a intenção
desta Declaração não é a ser uma alternativa à DUDH mas sim a de a “tentar atualizar e
complementar a partir de uma nova perspetiva – a da cidadania participativa”. Nos princípios
que esta Declaração procura consagrar e que considera estarem sub-representados na DUDH
contam-se: a segurança, não discriminação, inclusão social, coerência, horizontalidade,
interdependência e multiculturalidade, participação política, género, revindicação e
responsabilidade partilhada.
Vemos assim que existem múltiplos exemplos de Declarações e Convenções internacionais que
ao se referirem ao direito à Educação, se referem igualmente à Inclusão como uma
característica inalienável de uma educação plena e completa.
A UNESCO, apresenta uma definição de Inclusão que nos pode clarificar o seu âmbito:
“Processo de encarar e responder à diversidade de necessidades de todos os alunos através de
uma maior participação na aprendizagem, culturas e comunidades e de reduzir a exclusão
dentro (e provocada) pela educação. Implica mudanças e modificações no contexto, modelos,
estruturas e estratégias”.
Assim a construção de uma Educação que não falte ao seu compromisso com a Inclusão
implica: a) uma escola em que todos os alunos aprendam, b) que os alunos aprendam numa
cultura de respeito e de não discriminação pelo que cada um é, sabe e pode como ponto de
partida, c) uma escola que construa a aprendizagem com os alunos (não confundir construir a
aprendizagem com construir conteúdos…)
Uma boa forma de entender a Inclusão é pensar no que seria (no que é) uma educação que
abdique ou menospreze a Inclusão. Conforme o conceito apresentado acima, a Inclusão
relaciona-se com a resposta à diversidade inerente a todos os alunos e ainda à participação em
ambientes diversos e heterogéneos de aprendizagem de cultura e comunitários.
Sabemos que sem uma interação rica e diversa, o desenvolvimento humano fica gravemente
comprometido. Uma interação rica é essencial para o processo de desenvolvimento humano. E
os seres humanos estão preparados, recetivos e dependentes desta interação. Sabemos até
por descobertas recentes que as crianças têm desde muito jovens a capacidade de
desenvolver empatia com os outros e de, muito precocemente, atribuir sentido e significado às
ações dos outros. Sabemos ainda – através da revolucionária descoberta dos “neurónios –
espelho” que a criança está apetrechada do ponto de vista neuro psicológico com uma
capacidade de imitação e de aprendizagem através do outro e que esta aprendizagem se ativa
pela simples observação da ação de outrem. Assim é certo que os seres humanos, todos eles,
se encontram preparados sob o ponto de vista do seu equipamento neurológico para aprender
com os outros e para entender e se situar em ambientes humanos ricos e complexos.
Por isso, tem todo o sentido ser persistente na convicção que é preciso o fortalecimento da
escola pública. Quando falamos em fortalecimento, queremos dizer que a escola se deve cada
vez mais assumir como capaz de educar com qualidade, equidade e excelência todos os alunos
que lhe foram confiados. Para isso, a escola tem de procurar condições propícias e possíveis
para este desiderato. Uma escola sem condições para responder à diversidade tem má
qualidade para todos os alunos. Precisamos pois de uma escola que tenha turmas menos
numerosas, com dimensões menos mega e mais humanas, com mais agentes educativos, com
mais professores, com mais estruturas humanos e organizacionais de apoio, com mais
recursos, etc.
É claro que se a escola for “emagrecida” nos recursos necessários para ensinar todos os
alunos, torna-se uma escola obsoleta, uma escola que seria talvez capaz de responder aos
desafios elitistas e restritivos de há cinquenta anos atrás, mas que se torna incapaz de
responder às necessidades das famílias, dos alunos e da sociedade de hoje. Uma escola sem
esta possibilidade de ter recursos para ensinar todos os alunos é uma escola que tem que
recusar a inclusão não porque a inclusão é impossível, mas sim porque o estrangulamento de
recursos tornou impossível a inclusão.
Ora uma escola que não ensine todos os alunos infringe o princípio do artigo 26º da DUDH que
diz que “Todas as pessoas têm direito à educação (…)“. Uma escola que não adote uma
política inclusiva não pode ensinar todos os alunos (a não ser que, de forma antidemocrática,
condicione e restrinja o acesso dos alunos da comunidade) e sobretudo não os pode educar
oferecendo-lhes todas as oportunidades que a inclusão permite: a de construir identidades,
conhecimentos, interações e modelos existenciais.
Cabe talvez lançar duas questões sobre o papel atual dos Estados como provedores e
zeladores da provisão dos DH:
b) Não será completamente irrealista pensar que é possível assegurar os DH sem promover
uma sociedade inclusiva?
5. Notas Conclusivas
1. Não parece ser possível, e menos ainda racional, pensar que se pode assegurar o Direito à
Educação sem assumir uma filosofia e práticas inclusivas.
2. Fazer com que a escola pública funcione no limite inferior (ou abaixo) das necessárias
respostas educativas de qualidade para TODOS é um atentado aos DH na medida em que
inviabiliza o apoio (diferenciação) que é a condição de florescimento da Inclusão.
3. A Inclusão deve pois, estar embutida nos DH em geral e no Direito à Educação em particular.
(…)