Texto Principal - Trovadorismo - Clarice Zamonaro Cortez
Texto Principal - Trovadorismo - Clarice Zamonaro Cortez
Texto Principal - Trovadorismo - Clarice Zamonaro Cortez
cantigas trovadorescas
- líricas e satíricas
Cantigas de portugueses
São como barcos no mar
Vão de uma alma para outra
Com riscos de naufragar
Fer11audo Pessoa
Estas qualidades inatas dos galegos e dos lusitanos do norte vêm acusadas
pelos conhecedores da região: desde antes de Cristo, com Diodoro Sículo;
Esttabão Silio Itálico, S. Jerônimo, S. Maninho Dtuniense, o próprio Santo
LITERATURA Agostinho, referem-se às virtudes artísticas destes povos, especialmente para
PORTUGUESA a dança e a poesia.[ ...]
Ora, a penetração e o conhecimento da poesia provençal nestas plagas só têm
o condão de disciplinar à vocação poética dos galego-portugueses, transmitin-
do-lhes a sugestão de um mecenatismo oficial, um paradigma de vida galante
propício para o florescimento da poesia e um conjunto de nom1as para a ela-
boração poética.
~............ _
L
•
•E l Pertenceu à Ordem dos Dominicanos, considerado o mais sábio dos santos. Estudou e en-
·T sinou questões filosóficas e teológicas. Seu maior mérito foi a síntese do crisrianismo com a
<!{.
@ visão aristotélica do mundo. Autor de duas "Summae", sistematizou o conhecimento teológico
s e filosófico de sua época: são elas a "Summa Theologiae" e a "Summa Contra Gentiles", dentre
outras obras importantes.
2 Pertenceu à Ordem dos Dominicanos, dedicou-se a estudos nos quais introduziu a observação
da natureza e a experimentação como fundamentos do conhecimento natural. Bacon promoveu
uma defesa de seus pontos de vista, publicando a obra Speculum astronomiae, dentre outras.
• Novas classes sociais foram criadas, como o proletariado, acompanhado de Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricas e
novas formas de trabalho e outras concepções religiosas. satíricos
posição de servos, sempre lhes pedindo um favor. A mulher solteira (a donzela) não
atingira essa plenitude moral (e também física) e dependia do pai para tudo.
Os trovadores foram mais longe: denunciaram abertamente nas suas canções a
incompatibilidade entre o amor e o casamento e, assim, essa poesia, aparentemente
inofensiva, pôs pela primeira vez em julgamento um problema social, que tem pre-
ocupado a consciência da Europa moderna. Aparentemente imoral, a negação do
casamento explica-se justamente porque o amor conjugal se apresenta ao espírito
do trovador como um negócio, sem liberdade, diferentemente do conceito do amor
cortês8 , cuja tendência era a plenitude e o infinito. Atitudes que hoje nos afigurariam
estranhas e até imorais, eram consideradas naturais ao tempo.
Essa concepção audaciosa, pela qual a mulher era livre para dispor de seus bens
e dar o seu amor a quem quisesse, configurava uma tendência revolucionária, que
brigava francamente com a doutrina oficial da Igreja. O Cristianismo, através do culto
à Maria, também elevou a condição social da mulher, fazendo-a, teoricamente, igual
ao homem.
O amor trovadoresco é, portanto, um fingimento, um produto da inteligência e
da imaginação do que propriamente da sensibilidade: amour courtois9, como dizem
os franceses, mas que apresenta, por vezes, os tormentos do grande e verdadeiro
amor. Os termos cuidar e cossirar (considerar) traduzem bem o trabalho interior e o
enlevo do poeta na adoração da sua dona. Fingia-se enamorado pela dona ou senhor,
mas amava a sua amiga (namorada) - esse dualismo é uma das mais fones caracterís-
ticas do homem medieval. Todas essas características também serão encontradas no
lirismo trovadoresco galaico-português.
A POESIA LÍRICA
No estudo da poesia lírica a questão da hegemonia e da importância do galego-
português deve ser lembrada. O período histórico compreende entre os fins do século
XII, com o provável aparecimento dos primeiros documentos escritos, não literários,
e 1434, ano que Fernão Lopes foi nomeado pelo rei D. Duarte cronista-mor do reino.
Todas as produções literárias devem ser vistas e integradas num contexto peninsular.
8 Surgiu nas cortes, em fins do século XI, na França meridional. Conceito europeu de mitos
e etiquetas para enaltecer o amor, gerando vários gêneros de literatura medieval, incluindo o
romance. Espécie de contradição enrre o desejo erótico e a reala.ação espiritual.
9 Amor intelectualizado. Disciplina nobre e idealii.adora.
LITERATURA Assim, o galego-português, língua falada aquém e além do rio Minho até a fronteira
PORTUGUESA
do rio Tejo, foi o idioma usado por toda a Península e deu expressão a uma lírica de
amor surpreendente pela forma apaixonada e saudosa do homem pormguês, como
demonstram os versos repletos de lirismo escritos por D. Sancho I:
~............ _
E desvenda a meus ofüos todo o teu encanto.
L
•
•E
·T
<!{.
@
s 10 Ai, triste de mim, como vivo/ preocupada com o meu namorado/ que se encontra ausente!
O meu namorado demora-se muita na Guarda! Tradução livre.
11 D esde o século XVIII, a cidade de Bordeaux é rica em história, cultura, artes, música e le-
gendários vinhos. Desde a Idade Media, a cidade ficou conhecida como um vibrante centro de
comércio, indústria e negócios.
Esse mesmo sentimento transborda nos textos, mais tarde, nas cantigas medievais. Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricas e
Escrever textos com tal temática era uma atitude ousada que desafiava o clero e os satíricos
valores tradicionais. Essa arte era desacreditada, por ser arte popular, de caráter sub-
jetivo e individualista. Daí as questões que permanecem até os dias atuais:
Como apareceram essas composições? Que interferências teria havido?
Para respondê-las, abordaremos as teses explicativas, de forma resumida.
Tese arábica
De acordo com Lapa (1973) os estudos arabísticos revelaram na cultura dos ára-
bes certas afinidades com alguns caracteres da civilização cristã medieval. A poesia
trovadoresca podia ter sido influenciada pela poesia arábico-andaluza, que tinha dois
tipos de composição estrófica: a moashaha, muaxaha ou muaxá era uma criação de
Mocaddam, que viveu entre os anos de 840 e 920 e o zéjel, de caráter mais simples
e popular.
Na primeira modalidade a forma estrófica apresentava-se com o esquema aa/bba/
aa ccca/aa/dda/aa [... ] e terminava, geralmente, por uma catja, conjunto de versos à
maneira da cantiga de amor e que resumia toda a canção, segundo Lapa (1973, p. 46):
12 Vai-se o meu coração de mim/ Ai, Senhora, se me retornará?/ A minha dor é tão triste, meu
querido/ Sinto-me doente, quando retornará? - Tradução livre.
LITERATURA Tese latino-medieval
PORTUGUESA
As origens do trovadorismo devem ser buscadas no latim medieval e na sua mé-
trica, segundo Lapa (1973, p. 66), o que comprova que o lirismo trovadoresco possui
caráter literário, fruto da cultura latina: "[ ... ] natural seria procurar na literatura que
exprimia essa civilização dos séculos XI e XII, a literatura latino-medieval, as origens
da poesia trovadoresca".
Entende-se, assim, que a tradição da cultura clássica não se perdeu na Idade Mé-
dia. Pelo contrário, houve uma continuidade entre os dois mundos (o clássico e o
medieval). E se o latim aparece modificado nas composições poéticas, prova que era
vivido e sentido, filtrado por outros homens, possuidores de outra alma e uma nova
cultura.
Historicamente, a grande imagem de Roma estava sempre presente ao homem
medieval, que se esforçava na imitação das suas instituições e do seu trabalho anís-
tico. Nas universidades existentes nessa época, em toda a Europa, foram criadas ca-
deiras de latim medieval. Ainda hoje, várias universidades, as alemãs, principalmente,
são centros ricos de erudição e pesquisa médio-latinística.
Tese Litúrgica
Essa terceira tese complementa a anterior. Defendida por Lapa (1973, p.78) , que
afirma ser na liturgia que o estudioso deve ir buscar as origens da poesia trovadores-
ca. De acordo com o crítico, a cantiga de amigo parece ser uma perfeita imitação do
canto antifônico~ da Igreja. Há uma hipótese que estranha o fato de os trovadores
buscarem (ou se inspirarem) no ritmo e na música dos cantos religiosos, porque
faziam uso de uma linguagem profana e amorosa. A tese litúrgica, assim chamada,
porque pretende derivar o lirismo trovadoresco das formas da poesia da igreja cris-
tã. Devemos considerar, conn1do que a Igreja era um espaço do canto e da música
instrumental. Cerimônias de enterros e outras manifestações profanas realizavam-se
no espaço sagrado das igrejas, onde se comia, bebia e falava-se em voz alta, a ponto
de os reis começarem a condenar essas práticas, nas ordenações, e os clérigos, nos
próprios atos litúrgicos.
~............ _ A tese em questão estabelece, assim, uma ponte de ligação entre a poesia culta da
L
• Igreja e os meios populares de cultura, familiarizados com as cerimônias litúrgicas e
•E
·T muito influenciados por elas. Houve, assim, uma modalidade da tese latino-medieval
<!{.
@
s
elementos populares.
De acordo com Lapa (1973, p. 82) vários temas encontrados nas cantigas trovado-
rescas são provenientes de rituais litúrgicos, principalmente, nos festejos da Ressur-
reição, da Páscoa. Do mesmo modo, as formas rítmicas também explicam e justificam
as origens do lirismo romântico. por elas. Houve, assim, uma modalidade da tese
latino-medieval e uma outra com a teoria folclórica, configurando que no decorrer do
processo de assimilação e transformação desse lirismo pelo povo, a música religiosa
já continha elementos populares.
De acordo com Lapa (1973, p. 82) vários temas encontrados nas cantigas trovado-
rescas são provenientes de rituais litúrgicos, principalmente, nos festejos da Ressur-
reição, da Páscoa. Do mesmo modo, as formas rítnúcas também explicam e justificam
as origens do lirismo romântico.
Tese Folclórica
Semelhante à tese arábica, essa quarta tese é um produto do Romantismo, porque
se baseia na ideia romântica da criação popular. Exemplo disso é a influência das
festas da primavera ou festas de Maio, em honra a Vênus, que ocorreram na antigui-
dade Clássica e que influenciaram a lírica provençal. Gaston Paris, em 1891 e 1892
formalizou essa tese, ao analisar o livro "As origens da poesia lírica na França da Idade
Média", de Alfred Jeanroy e comprovou que as cantigas de amor trazem vestígios da
festa pagã do mês de maio, quando jovens buscavam flores e ramos para enfeitar car-
ros e adornarem-se, cantando e dançando em roda, celebrando o amor e a primavera.
Tais canções, segundo Lapa (1973, p. 56) , teriam "imprimido à poesia cortês oca-
ráter libertino do seu amor, e os festivos refrões da Priniavera ter-se-iam como cristali-
zado no começo da canção". Essa tese, portanto, explica o caráter popular do lirismo
galego-português, pelas suas concepções filológicas e pelos resíduos românticos da
ideia de "povo ignorante, mas criador" (LAPA, 1973, p. 57) .
Tese etnográfica
Essa tese defende a idéia de que as cantigas trovadorescas devem ser estudadas
sob a perspectiva geral e pluridimensional, a partir de um entrelaçar das várias in-
fluências e teses que discutem sua origem. Audrey Bell, em sua obra Da Poesia Me-
dieval Portuguesa (1947), afirma que a cadência paralelística das cantigas de amigo
galego-portuguesas se deve ao ritmo que a jovem imprimia aos trabalhos caseiros,
embalando o irmão mais jovem, fiando o linho ou lavando a roupa na fonte. Esse
LITERATURA ritmo teria influenciado as cantigas de amigo, porque a donzela trabalhava cantando,
PORTUGUESA
como ainda ocorre hoje, nos trabalhos do campo.
Do mesmo modo, Menendez y Pelayo14 defende a tese etnográfica, questionando
sobre as raízes desse lirismo, justificando-o com o seu fundo étnico comum aos povos
da Península Ibérica ou de algum povo característico da Galiza. O lirismo galego-
português possui um caráter mais popular do que o provençal, apresentando certo
fundo de melancolia vaga, misteriosa e de devaneio. Segundo a crítica, tais caracterís-
ticas podem ser consideradas um complexo fenômeno trovadoresco.
Nesse sentido, uma tese só não bastaria para explicá-lo e para se entender o seu apa-
recimento. Para tanto, deve-se inserir o lirismo galego-português no contexto de uma so-
ciedade teocrática, que poderia sentir-se prejudicada por um ideal que canalizava a fervo-
rosa religiosidade medieval para um verdadeiro culto prestado à mulher, revelado numa
série de cantares profanos em que o amor é cantado de uma fonna, às vezes, patética.
A origem desses cantares trovadorescos deve ser vista num entrelaçar de várias
influências e de várias teses, numa conjunn1ra, ou melhor, numa perspectiva geral e
pluridin1ensional.
De acordo com Lapa (1973) um fato pode ser considerado certo:
~............ _
O feudalismo foi um meio muito eficaz contra os invasores árabes, a que ficavam
L
• expostas às populações mais pobres e indefesas. A cristandade não estava só amea-
•E çada pelos mouros, porque também os eslavos e dinamarqueses representavam tam-
·T
<!{. bém uma ameaça. O cavaleiro annado e o castelo fortificado do senhor feudal eram
@
s
14 Marcelino Menendez Y Pelayo (1856-1912) foi polígrafo, crítico literário e erudito espa-
nhol. Recolheu toda poesia espanhola da Idade Média ao Renascimento.
os principais meios de defesa. A cavalaria surge como uma bênção, não deLxando, Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricos e
porém, de ser guerreira e combativa, ao proteger a pátria dos infiéis. Desse contexto, satíricos
surge uma poesia épica, que canta e exalta a coragem e a luta desses heróis - são as
canções de gestau.
No none da França floresce uma literatura de exaltação nacional e mística. Os
trovadores cantam e irnonalizam os feitos heróicos de cavaleiros que panem para
defender a pátria e a causa de Cristo, criando epopéias onde celebram a coragem, a
honra, a determinação, o heroísmo desses homens bravos que ficaram imonalizados
na alma dos povos. Exemplo disso é a Canção de Rolando (La Chanson de Roland),
poema épico escrito em francês antigo, no século XI, muito influente na época, ins-
pirando a composição de outras obras sobre o tema (a chamada "Matéria de França")
por toda a Europa.
O poema narra o fim heróico do conde Rolando, sobrinho de Carlos Magno, que
morre junto a seus homens na batalha de Roncesvales contra os árabes. A base histó-
rica do poema é uma batalha real, travada entre a retaguarda do exército de Carlos
Magno, sob o comando de Rolando, que abandonava a Península Ibérica e um grupo
de espanhois bascos que a chacinou. Embora histórico, o acontecimento é retratado
sem fidelidade histórica: os autores do massacre passaram de bascos a muçulmanos,
e tanto essa alteração como o tom geral do poema explica-se pelo contexto das Cru-
zadas e da Reconquista Cristã da Península, que se viveu no século XI.
Um trecho da Canção de Rolando exemplifica o tom épico, heróico e majestoso,
que percorre todo o poema:
15 D o francês, chamons de geste, ou canções de feitos heróicos. São poemas épicos que datam
dos fins do século XI e início do século XII e narram
16 A Canção de Rolando. Tradução Lígia Vassalo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
LITERATURA A guerra, porém, começa a esmorecer e outros interesses renascem e no sul des-
PORTUGUESA
ponta um novo ideal amoroso. Uma elite de nobres e clérigos procura nas letras
outras distrações que tivessem mais a ver com as suas almas sensíveis e líricas. No
século XI desperta o espírito cortês, cria-se um universo novo de sonho e fantasia,
que faz nascer uma literamra popular, que se tornou artística e penetrou nas cortes
senhoriais e reais.
Esse lirismo é divulgado em toda a Europa: é o renascer dessas canções líricas nas
populações românicas, incluindo-se Pom1gal. O cavaleiro já não combate mais pelo
seu Deus e nem pelo seu senhor, mas pela sua dama. Nasce, então, a arte dos trova-
dores, sutil e apaixonada. A arte do amor cortês, o amor puro que leva à virmde, à
perfeição, à razão de existir. Impõe deveres, num rimai à maneira da estrnmra feudal:
assim como o vassalo deve vassalagem e obediência ao seu senhor, do mesmo modo,
o trovador deve obediência à sua dama - ela é a suserana e ele o seu vassalo.
O amor vive da admiração recíproca. Ele admira na senhora as virmdes morais, a
dignidade e a fidelidade, um amor quase idólatra, saudoso, tormrado de um fatalismo
passional. Tudo contribuiu para o surgimento desse hino amoroso: o clima ameno,
a terra fértil, o contato sempre com o mediterrâneo e a sua abermra para todas as
civilizações que por lá passavam. As pessoas eram alegres, a paisagem verdejante com
horizontes a perder de vista.
A mulher, por sua vez, começa a ser reabilitada pelo cristianismo. No regime feu-
dal, vai ser exaltada, endeusada, principalmente no sul da Provença. Diferentemente
o que ocorreu na Grécia e em Roma, no paganismo, quando era desprezada e consi-
derada como um animal.
O trovador vê no amor de sua dona uma fonte de enobrecimento da alma. É atra-
vés da beleza feminina (considerada um testemunho de Deus na terra) que o amante
atinge o amor supremo. Para não atingirem a honra da mulher, os trovadores usavam
de uma linguagem muitas vezes hermética, a que chamavam "trobar clus", ou seja,
fazer versos fechados. Para se aproximarem de sua dama, à maneira do vassalo para
com o seu senhor, o trovador tinha que seguir certo rimai:
1) Suspirante oufrenhedor: atitude de suspirar;
~ . . . . ...... _ 2) Suplicante ou precador: atimde de pronunciar algumas palavras à senhora,
L
• pedindo-lhe atenção para a sua pessoa e correspondência ao seu amor.
•E
·T 3) Namorado ou entendedor: fase em que podia olhar para ela e a correspondên-
<!{.
@ cia era quase completa.
s
4) Amante ou drudo: o último estágio do rimai, quando o trovador era corres-
pondido, não só espiritualmente, mas também fisicamente. Na cantiga de amor
portuguesa, era raro chegar a esse grau, porque se o marido descobrisse, uma
desgraça poderia ocorrer. Portanto, o amor deveria ser a arte pela arte, puro, Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricas e
platônico. satíricos
Nesse sentido, mesmo o trovador provençal não deveria nunca revelar o nome da
senhora e sim, respeitar o senha{ (o pseudônimo) para não ferir a honra e o nome
da mui11er amada. Sendo assim, além do ritual, ele deveria respeitar os seguintes
aspectos: Ser humilde e paciente (a vassalagem amorosa); prestar obediência e sujei-
ção absoluta à sua senhora; prometer servi-la e honrá-la até a morte; não esquecer
o senha[, requisito essencial no código de amor cortês e ter em atenção a mesura
(virtude suprema), a mais preciosa das qualidades.
Quanto à estética desses cantares, a mulher era sempre a mais bela de todas e por
ela o trovador tudo desprezava, aspirando até a morte. As palavras /remosa (bela, for-
mosa), prez (caráter, dignidade) e talhada (belo corpo, bela aparência) fazem parte
dos versos das cantigas provençais e, consequentemente, das galego-portuguesas.
A invocação à natureza leva o trovador a falar nas frores de Maio (flores de maio) e
no tempo da /rol (no tempo da flor), na primavera e nas aves como mensageiras da
paixão, para refletir ou contrastar com o estado de alma enamorada. Vale lembrar que
esta corrente provençal influenciou a lírica peninsular.
O LIRISMO GALEGO-PORTUGUÊS
Ao esn1dar-se a literatura trovadoresca, é comum estabelecer os limites cronoló-
gicos, tanto na datação dos primeiros documentos, como também na determinação
de suas últimas expressões. Todavia, no que se refere à poesia galego-pom1guesa,
estabelecer datas para o surgimento e o fim deste lirismo é um problema destacado
por vários críticos, em que há divergências significativas, ao mesmo tempo em que
revelam as opções metodológicas de cada estudo. Logo, devido a essas diferentes
perspectivas, é preferível apontar algumas datas a estabelecer limites precisos.
De acordo com Vieira (1992, p. 27), o prin1eiro texto que se pode datar com "certa
segurança" é o sirventês político de Johan Soarez de Pávia contra o rei de Navarra,
Ora faz ost'o senhor de Navarra, para a qual se aceita como provável a data de 1196.
Este trovador era um nobre pom1guês, feudatário do rei de Aragão e Catalunha, que
teria vivido, por volta de 1196, na corte de Barcelona. Acredita-se ainda que tivesse
escrito mais seis cantigas de amor, antes de 1196, mas que estão ausentes no códice.
Do mesmo modo, a famosa Cantiga de Guarvaia (também conhecida como "Can-
tiga da Ribeirinha") tem sido considerada como a mais antiga composição. Nesta pers-
pectiva, os estudos de Carolina Michaelis (apud VIEIRA, 1992, p. 27), admitindo a au-
toria do trovador Pai Soares de Taveirós, propõem que o poema tenha sido composto
LITERATURA antes de 1200, talvez em 1198, ou mesmo 1189. Por sua vez, como discorre Vieira
PORTUGUESA
(1992, p. 27), Pizzomsso17, (1963) opta por atribuir a autoria desta cantiga a Martim
Soares, devido sua localização no grupo de poemas no Cancioneiro da Ajuda e por
questões formais internas. Logo, esse exemplar teria sido composto alguns anos mais
tarde, porque a atividade desse poeta se situa, provavelmente, entre 1230 e 1270.
Segundo Tavani (1988, p. 41) , a maior parte do patrimônio poético galego-portu-
guês pertence ao século XIII e à primeira metade do século XIV. Apenas um texto pode
ser situado no século XII, como é o caso da cantiga de escárnio já mencionada por
Vieira (1992). Assim, com datas aproximadamente delimitadas, a dificuldade reside
na gênese dos tipos de cantigas presentes nos Cancioneiros das Bibliotecas da Ajuda,
Nacional de Lisboa e do Vaticano, em que se distinguem três gêneros principais - can-
tigas de amor, cantiga de amigo e cantigas de escárnio e maldizer - , e também gê-
neros menores, como a pastore/a, o pranto a alba, entre outros pouco representados.
Neste âmbito, a cantiga de amor, de inspiração provençal, seria uma das manifes-
tações periféricas da canso (canção) occitânica, pois reproduz bastante fielmente essa
ideologia, apesar de o substrato social ser completamente diferente. As cantigas de
escárnio e 1naldize,- formam, por outro lado, um gênero pouco homogêneo, mas que
se vincula também aos gêneros provençais correspondentes. Enquanto que a cantiga
de amigo é urna cantiga de mulher, porém, bastante diferente das outras canções
de mulher da poesia medieval em língua vulgar. Isso fez com que, devido sua "origi-
nalidade" no que se refere à personagem, ao ambientes e seu aspecto dialogado, se
formulasse uma tese que atribui uma origem popular à cantiga de amigo.
Segundo Lapa (1973), esta distinção não é arbitrária, o que faz com que esses
gêneros interpenetrem-se na literatura galego-portuguesa, levando a encontrar nas
primeiras cantigas de amo,- resquícios da repetição paralelística e nas cantigas de
amigo algo que lembre a doutrina do amor cortês. Para este crítico, estes dois gêne-
ros têm ainda natureza totalmente diversa. Portanto, considera que é falso o processo
seguido por alguns romanistas ao forjar uma genealogia dos gêneros, considerando
a cantiga de amor o ponto de partida da cantiga de amigo. Do mesmo modo, re-
conhece um "pálido eco" do lirismo provençal no galego-português; enquanto que
17 Obra citada: PIZZORUSSO , V B., Le Poesie di Martin Soares. Bologna: [s.n.], 1963. p.
25-28; 59-64.
deste lirismo18: uma que denuncia o influxo estrangeiro de além Pireneus, em que Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricas e
sofre influência da poesia trovadoresca provençal, constituída em sua totalidade nas satíricos
cantigas de amor; e outra com raízes na terra, o elemento autóctone que manifesta
caráter popular e feminino, representada, essencialmente, pela cantiga de amigo
paralelística. Nesse sentido, verifica-se que alguns têm se inclinado para uma ou ou-
tra linha interpretativa, conforme a intenção seja de enfatizar as características que a
lírica galego-portuguesa compartilha com o lirismo provençal ou ainda marcar a sua
individualidade, por meio do caráter específico das cantigas de amigo, vistas como
manifestações de uma identidade nacional. Para tanto, busca-se neste estudo traçar
um percurso pela vertente autóctone e pelo lirismo provençal, rendo em vista suas
implicações para o trovadorismo galego-português.
AS CANTIGAS DE AMOR
Definição
De origem provençal, essas cantigas refletem um estilo de vida diferente: cons-
tin1em um retrato da vida feudal da corte, expressando um meio culto, refinado e
muito comprometido com o convencionalismo da vida palaciana e a cultura clássica.
O trovador apresenta a confissão de sua experiência passional diante de uma mu-
lher inacessível aos seus sentimentos e apelos amorosos, porque pertencia à classe
social superior e era casada. O sentimento amoroso posiciona-se no plano da espiri-
tualidade e de contemplação platônica, mas, segundo Moisés (1977, p. 25):
18 Lapa (1973), Vieira (1992), Tavani (1988, 2002), Lopes e Saraiva (1996).
LITERATURA Classificação e Estrutura
PORTUGUESA
As cantigas de amor recebem a seguinte classificação:
• Cantigas de mestria (ou maestria) consideradas as mais perfeitas. Os versos
possuem sete a dez sílabas métricas e o número de estrofes raramente passava
de três ou quatro.
• Canti2as de refrão (ou estribilho): no final de cada estrofe, repetia-se um ou
mais versos, tornando-a mais espontânea, natural, lírica e menos artificial.
19 E, pois Deus assim o quis, / Mas os meus olhos por alguém.../ choram e cegam, quando não
veem alguém. Tradução livre.
Temática das cantigas de amor Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricos e
O trovador vê o amor cortês como uma força espiritual e mística em oposição satíricos
ao amor erótico. A mesura, o respeito pela senhora, leva-o a esquecer-se dele pró-
prio. Sendo assim, ele se humilha, apaga-se, temendo fazer mal à sua dona. É o
amor puro, desinteressado, cuja finalidade é aperfeiçoar-se moralmente. É o amor-
adoração que se satisfaz numa idolatração, veneração pela sua senhora. Só assim, ele
cresceria em espiritualidade e em grandeza de alma.
Na maior parte das vezes, porém, o trovador sofre com a não correspondência
amorosa da senhora, levando-o ao desejo de morrer por amor. Dirige-se, nesse
caso, à senhora nwna apóstrofe plena de carga afetiva, atitude de humildade e súpli-
ca, num queixume, espécie de grito de dor o desconcerto de sua alma o desejo de
morrer. É o gosto de viver triste, o comprazimento na dor, características constantes
na estética das cantigas de amor. Mesmo a saudade da mulher amada poderia levar o
trovador à morte, como nos versos de Bernal de Bonaval: '14 dona que eu amo e tenho
por senhor / amostrade-me-a, Deus, se vos en prazer for, / se non dade-rni a morte!"
E Deus está sempre presente na alma do trovador como o único que pode ajudá-
lo na sua dor de amor, fnno da extrema religiosidade existente e do platonismo, que
molda as almas, num amor espiritual.
O tema da separação também é comum nas cantigas de amor. A separação, tema
recorrente nas cantigas leva o trovador à loucura. Nesse caso, ele confessa que não
poderá viver sem ela, na certeza de ensandecer, como comprovam os versos de João
Garcia de Guilhade:
L
• ai, mha senhor, assi moir' eu!
•E
·T
<!{.
@ Como home que ensandeceu,
s
AS CANTIGAS DE AMIGO
O emissor nas Cantigas de Amigo é a mulher, por isso dizemos que o "eu-lírico" é
feminino. Na verdade, também nas Cantigas de Amigo o autor é um homem, mas que
se faz passar pela mulher que namora ou pela qual tem interesse. A mulher continua
sendo como na cantiga de amor, o agente e o tema da poesia lírica trovadoresca.
Nessas cantigas, a mulher, geralmente penencente a uma camada social mais popu-
lar e menos culta, lamenta a ausência do "amigo 21" que está longe ou não se apresen-
tou no tempo esperado ou para o encontro combinado entre dois. O tom é de confi-
~............ _ dência à mãe ou as amigas ou a algum elemento da namreza (ramo, flor, árvore, lago,
L
• um pássaro, entre outros) . Em muitas composições, a água (ondas, mar, lago, fonte)
•E
·T assume uma fone conotação erótica, metaforicamente, uma vez que o relacionamento
<!{.
@ entre os namorados era ou deveria vir a ser íntimo.
s
21 A palavra amigo pode ser traduzida por namorado, sempre está ausente, por ter ido combater
os mouros nas trincheiras (no ferido ou fossado).
Quase sempre, as Cantigas de Amigo apresentam uma elaboração estética diferen- Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricas e
te, em consequência de sua origem popular. Seus compositores não são nobres im- satíricos
ponantes, suas letras, têm menor riqueza vocabular e costumeiramente utilizam para-
lelismos e/ou refrões , bem como outros recursos que auxiliam no "prolongamento"
da canção, com a estruturação musical tornando-se mais acessível ao autor. Analisadas
sob o ponto de vista temático, as Cantigas de Amigo apresentam razoável variedade
graças às diferenças sin1ações descritas ou abordadas.
Quanto a um possível valor histórico, documental, também o saldo é significativa-
mente positivo, pelo registro de vivências cotidianas, de usos e relações caracterizado-
ras, ao menos em parte, da sociedade da época. Outros aspectos, ainda, a contribuir
para o aumento desse valor documental, é a existência de vários modelos de cantigas
relacionados com sin1ações ou acontecimentos, como a alva ou alba (matutina), bai-
/ia (para a dança), romaria (fato religioso), marinha (referência ao mar), mal-maridada
(crise conjugal), pastoreia (relativa ao campo, pastoreio), serena (noturna), barcarola
(paisagem marítima).
Dentre as variedades temáticas, as bailias exemplificarão a nossa leitura.
O canto e a dança, desde o paganismo, ligavam-se aos atos do culto e das diversões
populares. As mulheres, especialmente, solteiras, acompanhadas ou não de instm-
mentos ou apenas com o auxilio da própria voz, cantavam e dançavam em dias festivos.
Na Galiza, especialmente, na cidade de Santiago de Compostela (centro de devoção
do mundo inteiro), depois da descoberta do corpo de Sant'Iago, em honra do santo
eram entoados cantos, numa atitude de intensa fé, a princípio em latim, depois mes-
clados com outras palavras, chegando ao romanço. É atribuída a influência dos cantos
austeros e solenes, os quais, mais tarde, fizeram parte da poética galego-porn1guesa e
da dança. Essas manifestações ocorriam sofriam a influência da igreja compostelana, as
quais, transigindo com as revelações de caráter religioso, ficaram gravadas na memória
do povo, transformando-as em cenas populares.
Na Idade Média, as mulheres reuniam-se nos adros das igrejas, ou em lugares públi-
cos, organizavam bailes de roda, cantando versos amorosos em coro. A Igreja, apesar
de inúmeros esforços, não conseguiu acabar com as danças profanas, preferindo as-
similá-las nos cultos, permitindo que os cantos em honra aos santos fossem entoados
pelas mulheres, principalmente depois da descoberta do corpo de São Tiago, fato que
tornou a cidade de Compostela o maior centro de devoção de todo o mundo. Deste
modo, as mulheres passaram a desempenhar um importante papel como intérpretes
no canto e na dança, em festividades religiosas ou profanas.
Nunes (1928, p. 125) registra que
LITERATURA [...] é de se presumir que nesse cortejo feminino figurassem as mais distintas
PORTUGUESA pelo nascimento e, sobretudo, pela habilidade em cantar e bailar. E já então
algumas haveria de certo que, exímias nas duas anes, fizessem disto profissão,
exercendo o seu ofício em público, cantando e bailando ao som do pandeiro.
Jazia d-rei em lisboa ua noite na cama e nom füe vünha sono pêra dormir e
fez levantar os moços e quantos dormiam no paaço e mandou chamar Joham
Mateus e Lourenço Pallos que trouxessem as trombas de prata e fez acender
tochas e meteo-se pella villa em dança com os outros. As gentes que domliam
saíam aas janelas veer que festa era aquella ou porque se fazia; e quando virom
daquella guisa d-rei, tomarom prazer de o veer assi ledo. E andou d-rei assi
gram parte da noite e tornou-se ao paaço em dança ... (CRÔNICAS, s.d., p. 48).
~............ _
1189, a Cantiga da Ribeirinha, aproxima-se da formação da nacionalidade portuguesa
L
• reconhecida pelo Papa Alexandre Ill, em 1179, desvinculando o Condado Portucalen-
•E se (MATTOSO, 1933, p. 54) dos domínios do reino de Castela. Esse acontecimento
·T
<!{. histórico representa a compreensão da proximidade cultural, ou o acesso cultural
@
s entre os reinos do Ocidente com a Provença.
De acordo com Nunes (1928), as bailias são originárias da Provença e vêm acom-
panhadas de movimentos coreográficos. São composições paralelísticas, de inspiração
tradicional e folclórica, cuja estrutura pressupõe a existência de um grupo de moças Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricas e
em diferentes funções: uma delas, dotada de melhor voz, a cantadeira, entoa as satíricos
~............ _ o Ocidente e a célebre tela de Botticelli vincula-se aos cortejos de maio em Florença.
L
• Há registro, na poesia italiana, de um coro de jovens andando pelas ruas da cidade,
•E
·T agitando ramos floridos ao vento e conduzindo um carro que leva o Amor, o deus da
<!{.
@ festa. Esse Amor tinha o caráter de ligar-se às estações do ano, participando do grande
s
ciclo da vida e da morte, além de praticar o jogo da sedução, enquanto ele estivesse
presente.
A Igreja primitiva condenava esses cortejos de maio, mas não conseguia desviar
das multidões o gosto pela representação e pela chegada da estação mais bela do ano, Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricas e
concordando em colocar no interior do templo, algumas representações concorren- satíricos
tes. Do mesmo modo, a poesia antiga faz referências a canteiros floridos, ao tema
das rosas e à sua fragilidade, comparada com a efemeridade da juventude. A cena
que nos oferece Airas Nunes na canúga Bailemos nós já todas três, ai amigas, é um
quadro representativo da natureza e da vida social aliada às situações sentimentais
da donzela:
Três meninas numa dança de roda sob árvores floridas, repetindo-se o rito, que
atualiza o mito. Explorando a simbologia de algumas palavras da cantiga, temos apre-
sença da aveleira florida. Na tradição clássica, as suas raízes possuíam um significado
nústico pelo seu forte poder de fertilização; acreditava-se na sorte que poderia trazer
aos apaixonados. A beleza do quadro lírico se completa com a beleza das meninas (e
quen for velida, como nós, velídas,/ e quen for louçana, como nós, [ouçanas) que,
no estribilho, repetem o convite às amigas e às irmanas sob a influência do encanta-
mento dos ramos floridos, celebrando o Amor.
A graciosa cena reitera o costume já mencionado - com a presença ou não dos
rapazes, eram as meninas que organizavam o baile. De mãos dadas entre si, enquanto
fazem a roda, vão cantando versos, geralmente quadras seguidas de refrão, cujo canto
acompanham com movimentos lentos ou mais agitados do corpo, confonne o ritmo
da cantiga. No texto em questão, o convite é feito pelas amigas entre si, velidas, lou-
çanas e desejosas de conquistar e amar o amigo. O convite é reiterado nas demais
estrofes (Bailemos nós já todas três, ai irmanas,) para que a dança seja praticada
sob os ramos floridos das avelaneiras (so aqueste ramo destas avelanas; so aqueste
ramos frolido bailemos) ,
Nas bailias, quando a menina não aparece sozinha, o número das amigas, ge-
ralmente, chega a três, dançando juntas sob as aveleiras em flor. Tanto na narrativa
mitológica quanto na pintura, simbolicamente, esse número lembra as Três Graças,
as três irmãs, filhas de Júpiter e Vênus, que representam a alegria, a beleza e a moci-
dade. Tal como no texto poético, graça, formosura e amor lembram a célebre tela de
Botticelli A Primavera.
As cantigas de bailadas propiciavam certa liberdade à menina, que se encontrava
distante da vigilância proibitiva da mãe, e dessa forma, entusiasmava-se com a idéia
LITERATURA de poder ver ou rever o amigo. Na cantiga de D. Dinis Ma madre velída,/ vou-m'a la
PORTUGUESA
bailia/ do amor, a donzela comunica à mãe sua intenção de ir ao baile, na casa do
amigo: Vou-m'a la bailada/ que fazem en casa/ do amor; Que Jazem en casa / do
que eu muit' amava,! do amor. Lá poderia exibir sua beleza (Do que eu ben queria;
/ chamar-m' am garrida / do amor), mesmo sem a aprovação da mãe. Depreende-se
que a idéia de liberdade estava acima da autoridade materna, uma vez que o verbo
ir, no presente (vou-rn' a la bailía / [... ] Vou-m' a la bailada), demonstra a firme
decisão de panicipar dos bailes.
Na cantiga - Bailad'oj', aí filha, que prazer vejades,/ ant'o voss'amígo, que vós
muit'amades, de autoria de Airas Nunes de Santiago, a menina é intimada pela mãe a
dançar para o amigo, contradizendo as leis morais ligadas ao matriarcado medieval e
surpreendendo a filha. Embora houvesse cena liberdade no relacionamento entre mãe
e filha, era comum a mãe impedir a filha de ver o amigo, quanto mais dançar para ele.
No diálogo em questão, há uma clara insistência da mãe para que a moça demons-
tre a sua ane coreográfica ao namorado, repetindo-se na forma de um paralelismo
semântico, ao longo das quadras: - Bailad'oj, aí filha, que prazer vejades,/-Rogo-vos,
ai filha, por Deus, que baílades/ -Por Deus, ai mha filha, fazed'a bailada/ -Bailade
oj', ai filha, por Sancta Maria. O clima já não é de alegria como na cantiga anterior,
porque a mãe roga por Deus e por Maria que a menina dance. O tom da resposta é
de submissão, concordando "desta vez" (d'aquesta vergada), porém, argumentando
com a mãe que "pouco vos interessa que ele viva" (de viver e/ pouco tomades perfia).
A natureza está representada na romãzeira, na terceira quadra da cantiga, segundo
verso: ant'o voss'arnigo de so a mi/granada. A romã simboliza fecundidade, abun-
dância e apelo sexual, que, desde os povos mais antigos, incorpora o amor e o casa-
mento. Na Antiguidade Clássica era conhecida como originária do sangue de Dionísio
(deus da fertilidade). Afrodite e Hera consideravam-na fruto sagrado, tornando-se o
símbolo do casamento. Presente também na pinn1ra, na tela Proserpina (1874), de
Rossetti (pintor italiano pré-rafaelita). Outros artistas também a interpretaram como
o súnbolo da ressurreição de Cristo.
Retomando a cantiga de Airas Nunes, a presença da romãzeira sugere sedução e
~............ _ conquista do amigo, reiterada nas expressões prazer vejades (v. 1), que ben pare-
L
• cedes (v. 8) e fazed'a bailada (v. 13), revelando a preocupação da mãe com a vida
•E
·T amorosa da filha: ant'o voss'amigo, que vós muit'amades (v. 2). Completa-se, assim,
<!{.
@ o quadro lírico em que a dança e a natureza unem-se e harmonizam-se diante do
s
amor da menina que deseja se casar.
Verdadeiros quadros líricos, as bailias apresentam sugestões da natureza e da vida
social aliadas às situações sentimentais.
A POESIA SATÍRICA: CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MALDIZER Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricas e
Analisadas do ponto de vista linguístico, histórico-social e ainda literário, as satíricos
cantigas do gênero satírico têm valor inapreciável. Até 1896, era o capín1lo menos
estudado da poesia trovadoresca, por duas razões fundamentais: as palavras eram
menos legíveis e muitas dessas composições contêm expressões de baixo calão, obs-
cenidades que dificilmente poderiam ser publicadas, por razões de decoro, muito
discutíveis, aliás. Vencendo estes obstáculos, foi à professora Carolina Michaelis de
Vasconcelos, que iniciou investigações para esclarecer as dificuldades sobre esse
gênero poético.
A ilustre pesquisadora e filóloga sacrificaram, por amor à ciência, o seu pudor
de mulher, para descer à "cloaca moral, que é tantas vezes o encarno galego-portu-
guês". Há duas hipóteses quanto à origem dessas cantigas:
• Originárias de PortUgal ou
• Derivadas do sirventês - poema cantado no Sul da França.
Vi cotefes orpelados
estar mui espantados,
e gentes trosquiados
corriam-nos a redor
tinham-nos mal afincados
que perdiam na cor.
Há outras cantigas em que o trovador, numa critica direta, retrata esse medo dos
cristãos, a descoberto, mostrando a covardia de certos cavaleiros que, ao verem os
mouros, fugiam do campo de batalha como desenores.
~............ _
L
•
•E
·T
<!{.
@
s 22 " ... por palavras cobertas que tenham dois entendimentos (sentidos) para que não o entenda
prontamente". Ou seja, a crítica era feita indiretamente.
23 " ... são aquelas que os trovadores fazem mais descobertamente: nelas entram palavras que
querem dizer mal e não têm outro entendimento senão aquele que querem dizer rasteiramente".
Ou seja, a crítica era feita diretamente.
b) Sátira social e moral: Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricas e
• crítica contra as mulheres; satíricos
Repare-se que ele andava bem sem o amor e, de repente, tudo mudou para mal;
antes podia dormir, podia "fazer as prol" (andar à vontade), mas n1do acabou. Perdeu
todo o seu poder, já nada está em suas mãos, "mais lo poder, já non é meu" (mas o
poder já não é meu) - o amor havia lhe pregado uma peça, fê-lo apaixonar-se por
outra senhora (senhor).
Depreende-se que a arte trovadoresca era mais aristocrática. Não podemos nos
esquecer que a culntra era do mundo do clero; os nobres poderiam ter acesso a ela,
mas nunca aos plebeus. Os jograis eram os aedos ou rapsodos do trovador: andavam
LITERATURA de terra em terra, por cortes de reis, castelos de fidalgos, conventos abastados, por
PORTUGUESA
ruas e ruelas, praças, feiras e romarias, tocando na cítara ou no violão, cantando e
divulgando a obra dos trovadores. Quando se aventuravam a "trovar" era motivo de
escândalo; eram ridicularizados, insultados, chegando a provocar a ira de seus pa-
trões ou a expulsão da corte.
Da mesma forma, o mundo em desconcerto está expresso nas cantigas que refle-
tem sobre a moral e os cosnunes da época. Há ironias sobre o fato de dizer a verdade,
ou sobre a pouca sorte dos bons e verdadeiros que são injustiçados, chegando-se à
conclusão de que a sorte favorece quem mente (o "mentireiro"), ou ainda refletem
sobre as mudanças da vida para pior, cl1egando à conclusão que mais vale morrer,
porque não vê mais prazer em nada. Esse tema será retomado mais tarde pelo poeta
Luís de Camões.
Finalmente, as reflexões e críticas recaíram sobre a nobreza decadente, espe-
cialmente os infanções. Desde os fins do século XII, os trovadores queixavam-se da
transformação social e do empobrecimento da nobreza, em virmde das guerras e das
ostentações exageradas. Os nobres viviam na penúria e muitos não tinham mais o
que comer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A maioria dos manuais de história da literamra, geralmente, não trata do perí-
odo poético que vai de 1350 a 1450, a que se convencionou chamar de "Período
Galego-Castelhano", período de transição, muito limitado, considerado um prolon-
gamento e, ao mesmo tempo, o início da decadência da grande escola trovadoresca
galego-portuguesa.
Após a morte de D. Dinis, o rei trovador, em 1325, a poesia portuguesa arrasta
ainda uma vida confusa, até que se extingue em meados do século XIV. O gênio lite-
rário do povo galego-português abranda e quase termina, exatamente, no momento
em que se afirma a intensa vitalidade da nação porn1guesa.
Por que a poesia teria sido "deserdada", justamente no momento em que adquiri-
ra fortes razões para ficar e continuar?
~............ _ Explica-se este fato, por três motivos distintos:
L
• • Decadência e fim do mecenatismo dos reis D. Afonso X e D. Dinis - reis
•E
·T porn1gueses que mantinham os jograis, segréis e menestréis na Corte. Essa
<!{.
@ proteção durou cento e cinqüenta anos; mortos os mecenas, o entusiasmo e o
s
desejo de competir sofreram uma queda efetiva.
• Mudança de vida comum - Porn1gal começou a expandir-se e a revelar um
vigoroso espírito mercantil. A ane era palaciana e não condizia com a nova
realidade. Portanto, o novo sentido para a vida, voltado para uma realidade Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricos e
concreta não favorecia o trabalho da imaginação. Era a imposição do cálculo satíricos
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 1977.
~............ _ PIZZORUSSO, V. Bertolucci. Cantigas de Santa Maria. ln: LANCIANI, Giulia; TAVANI,
L
• Giuseppe. Dicionário de Literatura galego-portuguesa. 2. ed. Tradução de José C.
•E
·T Barreiros e Artur Guerra. Lisboa: Caminho, 1993.
<!{.
@
s
_ _ _. Le poesie di Martin Soares. Bologna: [s.n.], 1963. p. 25-28; 59-64.
SPINA, Segismundo. Presença ela Literatura Portuguesa: era medieval. 6. ed. São Época medieval: cantigas
trovadorescos - líricos e
Paulo; Rio de Janeiro: DIFEL, 1961. satíricos
Proposta de Atividade
,.
• ..
Para você refletir e testar todas as infonnaçôes acima, sugerimos os seguintes textos para
exercitar a leitura e análise:
TEXTO 1
Ben sabia eu, mia senhor,
que, pois m'eu de vós partisse,
que nunc'aveeria sabor
de ren, pois vos eu non visse,
porque vós sodes a melhor
dona de que nunca oísse
omenfalar,
ca o vosso boõ semelhar
sei que par
nunca lh'ome pod'achar.
VOCABUIÁRIO: partisse: afastasse; mmc'aveerta sabor/de ren: nunca nada me daria pra-
zer; oísse: ouvisse; omem: homem, alguém; boõ semelbar: beleza; boa aparência; o: pronome
que se refere ao verso seguinte; seedefis: sede certa, sede firme; Paris: Páris - príncipe troiano
que raptou Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, originando a guerra de Tróia (Lê-se
Paris, palavra aguda, para rimar comfis); Trtstan: herói de tuna lenda céltica (lenda de Tristão
e Isolda) com que se Introduziu na literatura um novo tema: a fataUdade da paixão; am: o
mesmo que bão, têm; seeram: serão, existirão; ende: daí; per ren: de modo nenhum; partir:
deixar de; ca: que; motreret: morrerei; non et vós: não tenho vós.
TEXTO 2
L
• e lhls secastes as fontes en que bevian:
leda m'and'eu.
•E
·T
<!{.
@ Vós lhl toll1estes os ramos en que pousavan
s e lhis secastes as fontes use banhavan:
leda m'and'eu (!\'uno Fernandes Torneol- CV 242)
TEXTO 3
VOCABUIÁRIO: dona Jea: dona, senhora feia; louv', en: louve, elogie no; trobar: trovar,
fazer versos, trovas; mais ora: mas agora; ttn cantar: uma cantiga; um canto; loaret toda vta:
louvarei para sempre, inteiramente; sandia: louca; loaçon: louvação; louvor.
ROTEIRO DE LEITURA:
a) Traduzir os textos para o português atual.
b) Analisar quanto ao taU10 (a fom1a, o perfil da cantiga, a metrificação dos versos, as rin1as).
c) Quanto ao tema e assunto.
d) Quanto às características das cantigas.
e) Classificar quanto ao assunto, justificar e exemplificar com os versos do texto.
f) Elaborar um parágrafo conclusivo/interpretativo.