Memoria e Sociedade, Lembrança de Velhos

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BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.

MEMÓRIA E SOCIEDADE

Prefácio: Uma psicologia do oprimido (João Alexandre Barbosa)

● “Narrar também é sofrer quando aquele que registra a narrativa não opera a
ruptura entre sujeito e objeto” (p. XIII)
● “O tempo da memória não se concretiza a não ser quando encontra a
resistência de um espaço que se habitou com a existência sofrida do trabalho” (p. XV).
Tempo de lembrar traduz-se pelo tempo de trabalhar. Um e outro se entrelaçam,
e é onde a memória do trabalho alcança na narração a sua qualidade épica.

Apresentação: Os trabalhos da memória (Marilena de Souza Chauí)

● Por que temos que lutar pelos velhos, pergunta e responde Chauí: pois são
fontes de onde jorra a cultura, ponto onde o passado se conserva e o presente se
prepara...
● É o velho que detém a função social do lembrar, mas a sociedade capitalista
vem mutilando-o, destruindo nele o cumprimento desse dever. “[...] a sociedade
capitalista desarma o velho mobilizando mecanismos pelos quais oprime a velhice,
destrói os apoios da memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa”
(p. XVIII)
● A memória oprimida do velho perde lugar na sociedade moderno, por dois
motivos, assinala Chauí: a) destruiu-se os suportes materiais de memória, arrancando os
mastros e apagando os rastros: arrimos aos quais a memória se apoiava, sendo o velho
reduzido à monotonia da repetição. B) Uma ação mais daninha e sinistra “a história
oficial celebrativa cujo triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos
vencidos” (p. XIX)
De onde se configura o poder da história oficial, com os seus traços de
estereotipias que a tudo mancha e rechaça. No que pese à ideologia das classes
dominantes, e “dessa maneira, as lembranças pessoais e grupais são invadidas por outra
‘história’, por uma outra memória que rouba das primeiras o sentido, a transparência e a
verdade” (p. XIX)

● A figura laboriosa do velho trabalhando para lembrar, numa acepção que se


desdobra na tríade (memória-trabalho-velhice), diz Chauí que Eclea reconduz “a
memória à dimensão de um trabalho sobre o tempo e no tempo, dando ao trabalho da
velhice uma dimensão própria [...]” (p. XX)
● Lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir
do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição” (p. XX)

“Da voz ao texto, realiza-se o trabalho do pesquisador-escritor” (p. XXI)

● Pergunta pertinente, em relação à arte narrativa, e que Chauí lança mão


através do questionamento de Ecléa: “Por que decaiu a arte de contar história? Talvez
porque tenha decaído a arte de trocar experiências” (p. XXVII)

● O modo de lembrar é individual tanto quanto social: “o grupo transmite, retém


e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente
individualizando a memória comunitária e, no que lembra e no como lembra, faz com
que fique o que signifique” (p. XXX)

Introdução:

● Bosi introduz dizendo que faz um estudo sobre memória de velhos que tem em
comum a idade superior a setenta anos e o espaço da cidade de São Paulo. É um registro
que alcança a memória pessoal, que também é memória social, familiar e grupal.
● Diz que o interesse está no que foi lembrado, pelos interlocutores, respeitando
neles sua condição de sujeitos.
● Toma como ponto de aproximação a noção de observador-participante, que de
algum modo está vinculado à situação em que o projeto se delimita. Para tal, aborda a
compreensão de comunidade de destino (Jacques Loew), que “significa sofrer de
maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga condição, o destino dos
sujeitos observados” (p. 2).
● Bosi aborda a condição da memória como trabalho, como mecanismo laboral
que atua no refazimento do passado: “se as lembranças às vezes afloram ou emergem
quase sempre são uma tarefa, uma paciente reconstituição. Há no sujeito plena
consciência de que está realizando uma tarefa” (p. 3)
● A autora também alça luz sobre o estatuto fragmentário da memória: “a
memória é um cabedal infinito do que só registramos um fragmento” (p. 3)

Capítulo 1:
Memória-sonho e memória-trabalho
● A autora se debruça sobre a obra de Bérgson “Matérie et memoire”, onde os
debates entre tempo e memória se constitui como centro do debate que procura travar a
respeito do que interessa, sendo a rica fenomenologia da lembrança proposta pelo
filósofo, bem como algumas distinções de caráter analítico, em relação aos seus
entrevistados, que ela denomina de estofo social da memória. (p. 6)
● A auto-análise voltada para a experiência da percepção é assim abordada: “o
que percebo em mim quando vejo as imagens do presente ou evoco as do passado?
Percebo, em todos os casos, que cada imagem formada em mim está mediada pela
imagem, sempre presente, do meu corpo” (P. 6)
● As idéias de Bérgson estão granuladas na dicotomia percepção/ação, sendo
que a ação está para o tempo, enquanto a percepção está ligada ao espaço e assume o
estatuto de representação. (p. 6-7)

O “cone” da memória
● Nesse esquema, a memória possui uma função decisiva, pois é ela, que no
processo psicológico total, permite a relação do corpo presente com o passado e, ao
mesmo tempo, interfere no processo atual das representações.
“Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se
com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas,
ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao
mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora” (p. 9)
● Não se pode falar, então, de percepção pura: este seria antes um conceito-
limite do que uma experiência corrente.
As duas memórias
● Bérgson distingue memória-hábito: esquemas de comportamento guardados
pelo corpo que se vale deles automaticamente, daquelas lembranças isoladas, singulares,
que se constituem autênticas reconstituições do passado;
● A memória-hábito, diz Bosi, na esteira de Bérgson, trata-se de um exercício
que, retomado até a fixação, transforma-se em um hábito, em um serviço para a vida
cotidiana. (p. 11). Faz parte de todo o nosso adestramento cultural.

Memória e inconsciente
● Para Bérgson, antes de emergir para o consciente, a memória já existe
completa, latente, em potencial no inconsciente. (p. 14)
● Importa ressaltar sobre o pensamento de Bérgson, diz Bosi, “o seu princípio
central da memória como conservação do passado; este sobrevive, quer chamado pelo
presente sob a forma da lembrança, quer em si mesmo, em estado inconsciente” (p. 15)

Halbwachs, ou a reconstrução do passado


● Nas formas de imagens-lembrança o passado se conserva no presente. (p. 15)
● Um tratamento social à memória, na esteira das relações dos sujeitos que
lembram é dado por Halbwachs, diz Bosi. Para tanto, o teórico se baseia na noção de
fato social de Durkheim, que se refere ao pensar e sentir exteriores ao indivíduo e
dotados de um poder coercitivo pelo qual se lhes impõe (p. 17)
● A memória é abordada pela ótica social, das relações do homem com aquilo
que o cerca: as instituições, a família, a Igreja, etc. “Se lembramos, é porque os outros, a
situação presente, nos fazem lembrar” (p. 17)
● “Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é
sonho, é trabalho” (p. 17)
“A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à
nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.
[...] O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as
imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista” (p. 17)
● A experiência da releitura, que se concebe numa “nova leitura”, “já não
‘revive’ [a leitura anterior], mas ‘re-faz’ a experiência da primeira” (p. 20)
● Essa experiência impossível de reviver o passado tal qual é também o
paradoxo do historiador: “não lhe resta senão reconstruir, no que lhe for possível, a
fisionomia dos acontecimentos” (p. 21)

A memória dos velhos


● Para o adulto ativo, a memória é fuga, lazer, contemplação, por isso, nos
momentos de descanso ele procura a evasão, não há preocupação em recordar. (p. 23)
● Já para o velho, ao recordar ele está se ocupando conscientemente e
ativamente de seu passado, da substância mesma de sua vida.
● Bosi diz que há um momento na vida que o homem maduro deixa de ser
membro ativo da sociedade. “Neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto,
uma função própria: a de lembrar. A de ser memória da família, do grupo, da
instituição, da sociedade” (p. 23)

Memória, contexto e convenção


● Conceito de convencionalização que, “para Rivers, é o processo pelo qual
imagens e idéias, recebidas de fora por um certo grupo indígena, acabam assumindo
uma forma de expressão ajustada às técnicas e convenções verbais já estabelecidas há
longo tempo nesse grupo” (p. 25).
Por essa abordagem, descreve a autora em suas investigações (tiradas das
análises de Bartlett) que “existe uma relação entre o ato de lembrar e o relevo
(existencial e social) do fato recordado para o sujeito que o recorda” (p. 26)

Capítulo 2: Tempo de lembrar: memória e socialização

● Nessa seção, a autora trata do lugar do velho na sociedade (industrial), em que


ele, despojado de uma função social, vive na sombra do sociedade, sofrendo a
degradação senil, segregado do mundo ativo.
● Contudo, há dimensões da aculturação que só alcança a plenitude com os
velhos: “o reviver do que se perdeu, de histórias, tradições, o reviver dos que já partiram
e participam então de nossas conversas e esperanças; enfim, o poder que os velhos têm
de tornar presentes na família os que se ausentaram, pois delas ainda ficou alguma coisa
em nosso hábito de sorrir, de andar” (p. 32)
A velhice na sociedade industrial
● Diz a autora, que a sociedade rejeita o velho, não oferece nenhuma
sobrevivência à sua obra. (p. 36)
O velho não possui espaço na sociedade industrial. Relegado à margem, sofre
com a sua condição de senilidade, e como Sartre diz, a velhice é um irrealizável. (p. 37)

A memória como função social

● Guardião da tradição, nas sociedades antigas, voltado para a ação de reviver o


passado, o ancião “desempenha uma função para a qual está maduro, a religiosa função
de unir o começo ao fim, de tranqüilizar as águas revoltas de presente alargando suas
margens” (p. 40)
● Diz Bosi, que a conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência
profunda, pois a riqueza e a diversidade de um mundo que não conhecemos pode chegar
através de sua memória. Semelhante a uma obra de arte, as memórias de um velho “para
quem sabe ouvi-la é desalienadora, pois contrasta a riqueza e a potencialidade do
homem-criador de cultura com a mísera figura do consumidor atual” (p. 41)

História de velhos

● A autora questiona por que decaiu a arte de narrar. E diz que “talvez porque
tenha decaído a arte de trocar experiências. A experiência que passa de boca em boca e
que o mundo da técnica desorienta. A Guerra, a Burocracia, a Tecnologia desmentem
cada dia o bom senso do cidadão: ele se espanta com sua magia negra, mas cala-se
porque lhe é difícil explicar um Todo irracional” (p. 42)
● Na sociedade da informação o que prevalece é a opinião. Não há mais espaço
para conselhos, a sabedoria perde as forças.
“A arte da narração não está confinada nos livros, seu veio épico é oral. O
narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que o
escutam” (p. 43).
● A arte de narrar vai decaindo com o triunfo da informação.
Para a autora, morre a arte da narrativa quando morre a retenção da legenda. Diz
que também perdeu-se a faculdade de escutar, dispersou-se o grupo dos escutadores. (p.
46)
“Hoje, a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza,
ordena o tempo, localiza cronologicamente.” (p. 48)

O narrador “é um artesão que torna visível o que está dentro das coisas” (p. 49)

Capítulo 4: A substância social da memória


Memória e interação
● A autora suscita o engendramento da memória social, da memória que ganha
corpo quando coletivamente partilhada. Cita para tanto, um conto de Graciliano Ramos,
e diz sobre um objeto que cintila uma memória que “vai ganhando à medida que outras
pessoas dele têm conhecimento e se comunicam com a criança, reafirmando sua
presença” (p. 330)
● “Somos, de nossas recordações, apenas uma testemunha, que às vezes não crê
em seus próprios olhos e que faz apelo constante ao outro para que confirme a nossa
visão” (p. 331)
● Os laços de convivência social (familiar, escolar, profissional) que dão
consistência latente a uma memória coletiva. “Ela entretém a memória de seus
membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo” (p. 332)
● A autora salienta que por muito que se deva à memória coletiva é o indivíduo
que recorda. (p. 333)
● Cita Halbwachs, para quem a memória individual é um ponto de vista sobre a
memória coletiva. Cada ponto de vista de cada pessoa que refaz um acontecimento
comum a ambos torna a evocação múltipla e profunda, onde se alicerçam as visões
diversificadas. (p. 335)

Tempo e memória
● Para a recordação do velho, o tempo de criança é longo, saudoso, repleto de
detalhes. Já a juventude é um tempo que começa a se comprimir; e quando chega na
velhice só resta a monotonia, um ou outro acontecimento. Tudo se torna mais trivial.
● Já o tempo social, comum a todos, em cada compartimento da vida (família,
escola, escritório...) é vivido diferentemente por cada grupo, transcorrendo não com a
mesma exatidão. (p. 339)
Lembranças de família
● A autora trata das lembranças que vigoram como herança no baú relicário
legado pela família.
“Muitas lembranças, que relatamos como nossas, mergulham num passado
anterior ao nosso nascimento e nos foram contadas tantas vezes que as incorporamos ao
nosso cabedal. Entre elas, contam-se os feitos dos avós, mas também nossos, de que
acabamos ‘nos lembrando’. Na verdade, nossas primeiras lembranças não são nossas,
estão ao alcance de nossa mão no relicário transparente da família” (p. 346)
“Se, como dizem, a comunidade diferencia o indivíduo, nenhuma comunidade
consegue como a família valorizar tanto a diferença de pessoa a pessoa” (p. 346)

Os espaços da memória

A casa, dentro e fora


● A casa, diz Bosi, é uma presença constante nas autobiografias.
Objetos
● Diante da mobilidade que faz parte da vida, há algo que desejamos que
permaneçam imóveis: o conjunto de objetos de nos rodeiam. (p. 360)
● Autora fala em “espoliação das lembranças” que se refere a um dos cruéis
exercícios de opressão econômica sobre o sujeito, provocando o desenraizamento: uma
condição desagregadora da memória, cuja causa é o predomínio das relações de
dinheiro sobre outros vínculos sociais. (p. 362)
Diz ela: “Ter um passado, eis outro direito da pessoa que deriva de seu
enraizamento. Entre as famílias mais pobres a mobilidade extrema impede a
sedimentação do passado, perde-se a crônica da família e do indivíduo em seu percurso
errante” (p. 362)
As pedras da cidade
● Diz Bosi que nos adaptamos longamente ao nosso meio, e então é preciso que
algo dele permaneça para que reconheçamos nossos esforços e sejamos recompensados
com estabilidade e equilíbrio. (p. 366)
● As pedras podem não resistir ao curso da mudança, mas, os grupos resistirão à
perda da memória.
“À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, une-se a rebeldia da
memória que as repõe em seu lugar antigo” (p. 371)
Memória política
● “Na memória política, os juízos de valor intervém com mais insistência. O
sujeito não se contenta em narrar como testemunha histórica ‘neutra’. Ele quer também
julgar, marcando bem o lado em que estava naquela altura da História, e reafirmando
sua posição ou matizando-a” (p. 371)

Memória trabalho

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