A Obra de Francisco Varela Como Uma Teoria de Aprendizagem
A Obra de Francisco Varela Como Uma Teoria de Aprendizagem
A Obra de Francisco Varela Como Uma Teoria de Aprendizagem
8 2017
Francisco Varela's Work as a Learning Theory: A Teaching Experience with a Student with
Learning Deficit
Resumo
Neste trabalho, são apresentados elementos da obra do neurocientista chileno Francisco Varela que
têm potencialidade para contribuir com o escopo das teorias de ensino-aprendizagem da área de
Ensino de Ciências. É reportada uma experiência de ensino em que o processo de aprendizagem de
um estudante com déficit de aprendizagem é analisado sob o ponto de vista da obra de Varela.
Abstract
In this paper, it is exposed some aspects of the work of the Chilean neuroscientist Francisco Varela
which potentially can contribute with the teaching-learning theories as a whole in science teaching.
A learning experience is reported by analyzing the cognition process of a student with poor learning
capacity under the Varela point of view.
Introdução
A obra do médico, biólogo e neurocientista chileno Francisco Varela apresenta elementos que
tratam de processos de aprendizagem por parte do ser humano que são inéditos, quando comparada
com teorias de aprendizagem propriamente ditas, reconhecidas como tal pela comunidade de
pesquisadores em ensino de ciências. A proposta desse trabalho é fazer um levantamento desses
elementos visando contribuir para a estruturação futura de princípios sobre os processos de ensino-
aprendizagem.
1
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
Nascido em 1942 e falecido em 2001, vítima de hepatite C, Francisco Varela, ao longo de sua
carreira, adquiriu fama e respeito pelos resultados de suas pesquisas e articulações teóricas. Foi autor
de um respeitável número de artigos e livros publicados, tendo sido diretor de um dos centros da
Universidade de Paris.
Neste trabalho, serão analisados elementos de três de suas obras: De Máquinas e Seres Vivos
(1980), A Árvore do Conhecimento (1987) e The Embodied Mind (não traduzido para o português)
(1991), sendo os dois primeiros em co-autoria com Humberto Maturana. Adicionalmente, será feita
uma análise de uma experiência de ensino com um jovem com déficit de aprendizagem, do ponto de
vista da obra de Varela.
Nessa obra são definidos alguns importantes conceitos que foram incorporados na área de
Ensino de Ciências no Brasil, sobretudo no que diz respeito à Epistomologia de Humberto Maturana,
um tema já bem estabelecido na área (Moreira, 2004; Barcelos, 2006). Talvez o mais importante
desses conceitos seja o de autopoiese. Não nos deteremos aqui na definição desse termo, já bastante
conhecido na área, mas destacamos o propósito geral da obra: a distinção entre seres vivos e
máquinas.
O argumento de Maturana e Varela é que o paradigma de que os seres vivos são como
máquinas não se sustenta, havendo diferenças fundamentais entre ambos. Contudo, mais importante
que isso é que a distinguibilidade entre seres vivos e máquinas acaba inevitavelmente invadindo a
esfera da cognição, “invasão” essa que é o ponto nevrálgico da utilização das teorias dos dois
pesquisadores na área de Ensino de Ciências.
Embora os autores não explicitem completamente nessa obra, pois talvez não fosse o seu
objetivo, mas ela, como um todo, acaba definindo a aprendizagem como um conjunto de processos
análogos aos processos biológicos. Assim, poderíamos resumir o todo dessa obra, de maneira
simplória, como:
Aprender = Viver
A Árvore do Conhecimento
O sentido dessa identidade entre o aprender e o viver talvez esteja mais esclarecida, ao longo
da obra dos dois pensadores em A Árvore do Conhecimento. Segundo Maturana e Varela “todo fazer
é um conhecer e todo conhecer é um fazer”. O fazer se refere aos processos dinâmicos que
caracterizam e constituem o vivo. Assim, se todo fazer é um conhecer, tudo o que é vivo se constitui
como um ou mais processos de aprendizagem. Assim, uma mera célula, ao longo do período de sua
existência, essencialmente aprende, assim como um animal dito irracional e o ser humano e,
conforme é mais explícito na obra de Varela independente de Maturana, conforme visto a seguir, a
aprendizagem não se resume a processos cerebrais.
2
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
Contudo, os seres vivos não são sistemas isolados, mas sistemas em interação com o meio,
algo que também caracteriza essencialmente o fazer. Dessa forma, os autores têm que se servir de
conceitos da Teoria da Complexidade, a teoria que trata de sistemas abertos, em interação com o meio
e, portanto, fora do equilíbrio (Nicolis and Prigogine, 1989). Um dos principais conceitos trazidos
dessa teoria é o de acoplamento estrutural.
Como os autores estão trabalhando na perspectiva de que aprender = viver, tal fato tem
implicações sobre o processo de aprendizagem. Segundo os autores (Op. Cit.), há duas tendências no
que diz respeito ao entendimento do papel dos seres humanos no mundo: o Representacionismo, no
3
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
qual somos representação do mundo e o Solipsismo, no qual somos determinados apenas pela nossa
estrutura interna. Em termos populares, na primeira perspectiva, somos apenas fruto do meio e, na
segunda, apenas de nossa carga genética. Os autores criticam a crença exclusiva em cada uma das
duas perspectivas. Em contraposição ao Representacionismo, eles citam os experimentos com globos
oculares em sapos. Num desses experimentos, retira-se o globo ocular de um jovem sapo, sem destruir
os nervos ópticos e costura-se novamente o olho em posição invertida. O resultado é que, quando o
sapo vê uma mosca, ele projeta a língua numa direção invertida. Ou seja, a ação do sapo é influenciada
pela sua estrutura interna. Em contraposição ao Solipsismo, os autores citam o famoso caso das
crianças indianas que foram criadas por lobos. Mesmo quando as crianças voltaram ao convívio
humano, elas ainda passaram a se comportar como lobas, revelando a importância da influência do
meio. Assim sendo, nenhuma das duas perspectivas, tomadas individualmente, pode descrever o
processo da aprendizagem, que seria fruto do acoplamento estrutural do indivíduo com o meio.
O processo de aprendizagem, portanto, se dá por uma terceira via, que não pode ser reduzida
nem ao Solipsismo puro, nem ao Representacionismo. Essa via é chamada de “acoplamento de
terceira ordem” por parte dos autores:
O que a biologia nos mostra (...) é que a unicidade do ser humano, seu patrimônio exclusivo,
está num acoplamento estrutural social em que a linguagem tem um duplo papel. Por um lado,
gerar as regularidades próprias do acoplamento estrutural social humano, que inclui, entre
outros, o fenômeno das identidades pessoais de cada um. De outra parte, constituir a dinâmica
recursiva do acoplamento estrutural social, que produz a reflexividade que conduz ao ato de
ver sob uma perspectiva mais ampla. Trata-se do ato de sair do que até esse momento era
invisível ou inamovível, o que permite ver que como seres humanos só temos o mundo que
criamos com os outros. (Ibid).
A mente incorporada
A palavra “incorporada”, segundo Varela e colaboradores (Varela et al., 1999), significa que
a aprendizagem não pode ser resumida a um mero processo cerebral. O termo significa que tanto
cérebro quanto corpo como um todo devem ser considerados. A interação do indivíduo com o meio
4
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
e com seus semelhantes não se dá pelo estabelecimento de elos mentais, mas pela ação de todo o
aparelho neurofisiológico dos indivíduos.
É bom lembrar que uma das especialidades de Francisco Varela é a neurofisiologia, assim,
suas afirmações se baseiam em experimentos concretos envolvendo o funcionamento do sistema
neurofisiológico do ser humano. Ele e seus colaboradores citam, por exemplo, casos que podem ser
caracterizados como aprendizagem e que não têm o cérebro como protagonista central, como no caso
da aprendizagem de que o fogo queima, ou que devemos levar as mãos à frente quando caímos. Os
experimentos com pessoas ligadas a eletrodos, nessas situações, demonstram que a resposta do
organismo se dá antes que a informação da queda ou da presença da chama chegue ao cérebro.
Contudo, a construção da linha de argumentação desse autor em The Embodied Mind, se dá
justamente através da descrição de algumas características da mente e da consciência humana.
Nesse aspecto, a teoria de Francisco Varela, se ela puder ser chamada assim, tem implicações
concernentes à área da psicologia. Segundo esse autor e seus colaboradores, ao longo da história da
psicologia, os seus construtores se basearam na perspectiva da existência de drives, ou elementos que
direcionam as atitudes humanas. Freud defendia que o sexo era o principal drive da psique humana.
Adler, que é a vontade de poder. Já Jung defende o ponto de vista que é o Processo de Individuação.
Contudo, Varela se baseia em teorias de psicólogos modernos, tais como Greenberg e Mitchell. A
teoria desses autores (Object Related Theory), estabelece como principal drive da espécie humana a
necessidade de se estabelecer relações sociais (Greenberg and Mitchell, 1983).
5
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
É nesse contexto que o sofrimento ocorre porque em nossa psique não há propriamente um
self, uma identidade, mas sim um aglomerado de experiências fragmentárias associadas numa
estrutura fractal, ou seja, com forma complexa.
Contudo, é nesse contexto que aprendizagem ocorre. É nesse contexto que a aprendizagem
surge, tal qual uma forma definida no meio do caos. Tal qual a própria forma humana, que surge da
associação aparentemente aleatória de átomos e moléculas a partir do óvulo fecundado. Então, para
descrever o processo de como a aprendizagem ocorre, de como um conceito é construído a partir de
uma miríade de fragmentos agregados de experiências, é que os autores se utilizam de elementos da
Teoria da Complexidade.
Enação
Para ilustrar esse processo, Varela e colaboradores citam algumas situações experimentais
realizados por pesquisadores da área de neurofisiologia. Na primeira, gatos foram criados no escuro,
em condições de luminosidade controlada. Nessas condições, um grupo de gatos era colocado numa
sala para se mover livremente, mas cada um deles era atrelado a uma gaiola com rodas, no interior da
qual havia outro gato. Assim, ambos os gatos estavam submetidos às mesmas condições visuais, ou
seja, podiam ver a mesma coisa, contudo, apenas um deles podia se mover por vontade própria, o
outro estava sujeito a uma observação passiva do ambiente. Após várias vezes em que os animais
6
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
eram submetidos a essa situação, ambos eram soltos no ambiente. Constatou-se que apenas os que se
moveram podiam se deslocar de maneira normal. Aqueles que estiveram presos nas gaiolas, se
chocavam contra objetos e se atrapalhavam ao andar. No outro experimento, pesquisadores adaptaram
uma câmara tátil para ser usada por seres humanos cegos. A câmara convertia imagens que captava
em toques físicos na pele do paciente, em padrões pré-definidos. Um grupo de cegos podia mover a
câmara por sua própria vontade, estando ela acoplada as suas cabeças ou aos braços. O segundo grupo
não tinha a liberdade de mover as câmeras. Os membros do primeiro grupo, após algumas horas de
utilização do dispositivo, conseguiram “ver” o que estava ao seu redor, ou seja, identificar objetos e
o entorno através das sensações táteis, enquanto que os membros do segundo grupo não o
conseguiram.
Bill (nome fictício) é um aluno do Ensino Fundamental de uma escola pública do interior do
Mato Grosso que, devido a complicações no parto, ficou com múltiplas deficiências, de ordem motora
(membros inferiores e superiores), baixa visão e alto grau de déficit de aprendizagem.
A experiência de ensino descrita aqui foi realizada num único dia, numa sala relativamente
confortável da escola, num encontro entre Bill e uma das autoras deste trabalho, em torno de uma
mesa. O objetivo do encontro era a aprendizagem do conceito e operação matemática da raiz
quadrada. Para isso, foi confeccionado um material concreto, feito de madeira (Figura 1), que
consistia de cem peças, cada uma indicando um número diferente. A título de descrição do encontro,
passamos, em seguida, à reprodução das notas de campo da pesquisadora:
Ele entrou na sala um pouco receoso e cismado, mas depois relaxou e ficou mais tranquilo.
A experiência foi iniciada explicando para ele o conceito de raiz quadrada, pois, em encontros
anteriores, o mesmo não soube definir esse conceito. Então foi mencionado que a frase raiz quadrada
7
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
vem do latim radix quadratum, que surgiu em 1202 em livro intitulado “Ábaco de Leonardo de Pisa”
e que essa frase significa "o lado do quadrado". Assim, toda vez que ele ouvir falar em raiz quadrada,
está referindo-se a medida do lado de uma figura plana quadrada, que no cotidiano poderia ser:
uma sala, o assento de um tamborete, um quadro...então ele disse (apoiando as duas mãos sobre), a
mesa. Como a mesa que estávamos ocupando tem formado retangular e não quadrado, tive que
retomar e explicar para ele, que poderia ser a mesa se ela fosse um pouco menor, se caso ela tivesse
os lados iguais, a medida dos lados iguais. Então ele disse “se tivesse quatro cadeiras né?”. Pensei
um pouco e concordei, afirmando que não podia ser mesa redonda. Na verdade, nem todas mesas
que tem quatro cadeiras são quadradas, mas como percebi que ele entendeu esse conceito, concordei.
Em seguida posicionei os blocos sobre a mesa de modo a formar um quadrado de lado 10. Apresentei
a ferramenta a ele e, enquanto arrumava a sequência numérica dos blocos (do quadrado), disse o
nome e como foi feito. Nesse momento ele pegou algumas peças e ficou a olhar curiosamente. Então,
como o quadrado estava pronto, expliquei para ele que esse material poderia ajudá-lo nos cálculos
tanto de raiz quadrada, quanto na multiplicação de números inteiros. Ele apenas sorriu timidamente.
Então comecei a demonstrar a ele que aquele quadrado tinha dez peças (blocos) de cada
lado, ele se pôs a contar. Esperei-o terminar e voltei a explicar que se multiplicasse os lados do
quadrado 10 X 10, daria a quantidade de peças que tinha sobre a mesa, ou seja, 100 peças. Assim se
me perguntasse qual seria a raiz quadrada de 100, seria o mesmo que perguntar qual a medida do
lado de um quadrado com a área de 100. Depois disso, diminuí o quadrado, tirando algumas peças,
e demonstrei um quadrado com 81 peças, questionando sobre a quantidade de peças que tinha em
cada lado. Ele se pôs a contar, e nesse momento desfez acidentalmente o quadrado. Ele usava luva,
devido à baixa temperatura na sala em função do ar condicionado, e se atrapalhou um pouco,
espalhando e derrubando as peças da mesa e desmanchando o quadrado.
Refiz e ele voltou a contar e logo em seguida respondeu: nove. Então reforcei: qual o valor
da raiz quadrada de 81? E ele novamente repetiu: nove.
E assim fui colocando todos os quadrados possíveis com os 100 blocos: 1,4, 9, 16, 25, 36, 49,
64 e 81. Expliquei para ele que esses números são chamados “quadrados perfeitos”, isso porque
com essa quantidade de peças, é possível construir um quadrado. Após isso solicitei que o aluno
construísse um quadrado usando 11 peças. Ele tentou construir, mas logo conseguiu perceber que
era impossível, pois sobrava ou faltava peça. Então expliquei que, com alguns números (algumas
quantidades de blocos), não é possível construir um quadrado. Somente é possível com os números
“quadrados perfeitos”.
8
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
Dessa forma, apresentei a lista 1 de atividades monitoradas e pedi que solucionasse. Essa
lista consistia na determinação da raiz quadrada de alguns números. Solicitei que fizesse a leitura
em voz alta e questionei sobre seu entendimento do enunciado. A atividade culminava no
preenchimento de uma cruzadinha. O aluno teve mais dificuldades em escrever os resultados devido
a sua coordenação motora fina não ser bem desenvolvida. Conforme ele lia as questões, para achar
o resultado, ia montando os quadrados contando as laterais, os lados.
Na raiz quadrada de 100, ele demorou mais para achar o resultado. Acredito que
deve ser pela quantidade de peças, então necessitou do meu auxilio, pois estava ficando um tanto
angustiado por não conseguir. O encorajei e propus que realizássemos junto aquela tarefa. Ele,
então, conseguiu concluir a atividade.
A segunda lista versou sobre uma série de questões onde ele deveria desenhar os
blocos, ou seja, manipular mentalmente os objetos de forma a completar quadrados de tamanhos
diferentes (Figura 3). Limitado apenas por suas dificuldades em desenhar, Bill conseguiu completar
satisfatoriamente a tarefa.
9
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
Durante a realização das atividades pude perceber que apesar desse conteúdo já ter sido
trabalhado, o aluno desconhecia o procedimento envolvido nos cálculos, o que nos permite concluir
que o ensino anteriormente desenvolvido durante o seu histórico na escola não foi eficiente para uma
aprendizagem significativa.
Durante uma entrevista que realizei anteriormente com o aluno ficou perceptível que sua
socialização no âmbito escolar é mínima, apesar da monitora relatar que há interação do aluno com
o resto da turma. Durante as aulas, foi observado que a monitora de alunos com necessidades
especiais acabava fazendo as atividades para Bill, sendo que as aulas conduzidas pelos professores
não se diferenciavam de uma aula normal, ou seja, não levava em conta que, dentre os alunos, havia
um indivíduo com particulares dificuldades de aprendizagem.
A despeito disso, conforme demonstra essa experiência, acreditamos que o aluno tem
capacidade de aprendizado, e os testes aplicados reforçam e demonstraram isso.
Do ponto de vista da teoria de Francisco Varela, há alguns pontos importantes a acrescentar
com relação à atividade de Bill utilizando os cubos de madeira. Se fizermos uma comparação entre a
Teoria dos Estágios do Desenvolvimento Cognitivo de Piaget e a hipótese da Enação de Varela,
encontraremos algumas diferenças fundamentais. Enquanto que, para Piaget a manipulação concreta
dos objetos é base da aprendizagem e, portanto, deve se constituir numa etapa anterior com relação
do desenvolvimento cognitivo, para Varela a manipulação do objeto de aprendizagem sempre está
presente. Para o neurobiólogo, o sistema neuroperceptivo humano – do ponto de vista físico, ou seja,
do ponto de visto da atividade elétrica transmitida através do sistema neurológico – reage sempre da
mesma maneira durante a aprendizagem: reage como se estivesse manipulando um objeto (VARELA
et al., 1999). Isso é válido independentemente da natureza do objeto. Dito de outra forma, o sujeito
deve ter a oportunidade de manipular o objeto mesmo que ele tenha uma natureza completamente
abstrata. Somente dessa maneira ele conseguirá garantir uma ação guiada perceptualmente (nas
palavras de Varela). Objetos abstrados podem ser manipulados mentalmente. E, de qualquer forma,
não pode haver aprendizagem sem a manipulação do objeto de aprendizagem por parte do aluno, pois
aprendizagem é enação, envolve a ação sobre o objeto. Assim, Varela contradiz Piaget no aspecto
que o concreto não é simplesmente a base do desenvolvimento cognitivo. As pessoas têm sempre que
manipular os objetos para assimilá-los (como temos a necessidade de pegar os objetos em uma loja
para “vê-los”), mesmo que eles não tenham materialidade. Assim, mesmo na aprendizagem de objetos
puramente abstratos, a enação é necessária.
A operação raiz quadrada é um objeto abstrato, embora, como foi feito neste trabalho, ela
pode ser traduzida em termos concretos. Entretanto, aqui o sujeito da pesquisa (Bill) possui limitações
motoras. O interessante é que, mesmo possuindo limitações motoras no sentido de pegar os objetos
concretos, Bill quis usar luvas durante o experimento, pois estava muito frio na sala, pois essa contava
com um ar condicionado forte. Obviamente, as luvas limitaram ainda mais sua capacidade de
manipular os blocos de madeira. Do ponto de vista de Piaget, essa condição introduziria sérias
limitações no processo de aprendizagem. Contudo, nossos resultados mostram que Bill assimilou
efetivamente a operação matemática da raiz quadrada a despeito de sua limitação motora (amplificada
pelo uso das luvas). É claro que ele derrubou os cubos em alguns momentos e não conseguiu fazer
belos desenhos durante o teste escrito, mas isso não o impediu de aprender.
10
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
Se for possível que o aprendiz guie, ele mesmo, a sua percepção em torno do objeto de
aprendizagem, não importa se ele tem limitações motoras, ou visuais, ou auditivas, será possível
ensinar honestamente, como diria Brunner (Moreira, 1999), qualquer coisa a qualquer portador de
necessidades especiais.
A operação raiz quadrada é um objeto abstrato, embora, como foi feito neste trabalho, ela
pode ser traduzida em termos concretos. Entretanto, aqui o sujeito da pesquisa (Bill) possui limitações
motoras. O interessante é que, mesmo possuindo limitações motoras no sentido de pegar os objetos
concretos, Bill quis usar luvas durante o experimento, pois estava muito frio na sala, já que essa
contava com um ar condicionado forte. Obviamente, as luvas limitaram ainda mais sua capacidade
de manipular os blocos de madeira. Do ponto de vista de Piaget, essa condição introduziria sérias
limitações no processo de aprendizagem. Contudo, nossos resultados mostram que Bill assimilou
efetivamente a operação matemática da raiz quadrada a despeito de sua limitação motora (amplificada
pelo uso das luvas). É claro que ele derrubou os cubos em alguns momentos e não conseguiu fazer
belos desenhos durante o teste escrito, mas isso não o impediu de aprender.
dificuldade na manipulação, mas sim que ela ocorra a partir do próprio aprendiz. A Enação, que
viabiliza a aprendizagem, acontece quando o sujeito efetivamente guia a sua própria percepção sobre
o objeto, manipulando-o, quer seja puramente mentalmente ou mentalmente e concretamente,
aspectos esses que são, fundamentalmente, inseparáveis.
Se for possível que o aprendiz guie, ele mesmo, a sua percepção em torno do objeto de
aprendizagem, não importa se ele tem limitações motoras, ou visuais, ou auditivas, será possível
ensinar honestamente, como diria Brunner, qualquer coisa a qualquer portador de necessidades
especiais.
Considerações finais
Neste trabalho, procurou-se expor alguns elementos da obra de Francisco Varela que podem
contribuir para a área de Ensino de Ciências. Alguns desses elementos são concordantes com algumas
teorias de aprendizagem construtivistas já bem sedimentadas, com a dependência da aprendizagem
com as construções cognitivas prévias do aprendiz. Contudo, há outros elementos que focam o
processo de ensino-aprendizagem sob um novo ângulo, tais como a visão da aprendizagem como um
processo de enação, a utilização de conceitos que a ciência tem utilizado recentemente no estudo de
processos complexos, como acoplamento estrutural, auto-organização e emergência, e, também,
implicações éticas. Conforme apontado em algumas obras (Maturana e Varela, 2005; Varela et al.,
1999), nosso conhecimento é construído num meio em que outros seres humanos têm um papel
relevante. Sendo a mente incorporada um sistema essencialmente social, a melhor aprendizagem
acontecerá sob a circunstância em que respeitamos os demais seres humanos, e, com eles, construímos
uma estrutura cognitiva mais relevante para a sociedade.
Referências
Barcelos, V. (2006) – Por uma ecologia da aprendizagem humana – o amor como princípio
epistemológico em Humberto Ramesín Maturana - Revista Educação (PUCRS), ano XXIX, n.3 (60),
p.581-597.
Greenberg, J.R. and S.R.Mitchell (1983) – Object Relations in Psychoanalytic Theory – Harvard
University Press, Cambridge.
Lovelock, J. (1995) – The Ages of Gaia – W.W.Norton and Company - New York.
Maturana, H. e F.Varela (1997) – De Máquinas e Seres Vivos – Artes Médicas, Porto Alegre.
Maturana, H. e F.Varela (2005) – A Árvore do Conhecimento – Palas Athena, S.Paulo, 5ª. Ed.
Moreira, M.A. (2004) – A Epistemologia de Maturana – Ciência & Educação, Vol.10, N.3.
12
Experiências em Ensino de Ciências V.12, No.8 2017
Nicolis, G. and I.Prigogine (1989) – Exploring Complexity – W.H. Freeman and Company, New
York.
Varela, F., E. Thompson and E. Rosch (1999) – The Embodied Mind – MIT Press, Cambridge.
13