A Nova Era Com Um Jeitinho Brasileiro O
A Nova Era Com Um Jeitinho Brasileiro O
A Nova Era Com Um Jeitinho Brasileiro O
Amurabi Oliveira1
Resumo: A Nova Era tem sido um fenômeno de difícil apreensão, devido mesmo a
heterogeneidade de práticas e valores que ela abarca (Hervieu-Léger, 2008; Amaral,
2000; Magnani, 1999), incluindo aí aquelas que não são necessariamente religiosas.
Amaral (1999; 2000) argumenta que a Nova Era caracteriza-se pela retirada dos
mais diversos elementos de seus contextos originais, arranjando-os e rearranjando-os
de forma performática. Em sua origem, encontramos a convergência de diversos
discursos e práticas, em especial, uma busca pela convergência entre oriente e
ocidente. Ao ganhar visibilidade no Brasil, a Nova Era ganha também contornos
próprios, não apenas reproduzindo o que é produzido no contexto europeu e
americano, como também articulando com elementos presentes nas religiosidades
populares, em especial com o catolicismo, o espiritismo kardecista e a as religiões
afro-brasileiras, debate este que ainda produz opiniões divergentes em meio a
especialistas. Buscamos aqui destacar a singularidade que toma a Nova Era no
Brasil, tomando o Vale do Amanhecer como um caso emblemático, em que esta
articulação do discurso originário da Nova Era com a religiosidade popular brasileira
se dá de forma mais clara.
Palavras-chave: Antropologia da Religião; Nova Era; Vale do Amanhecer;
Sincretismo Religioso.
Abstract: The New Age has been a difficult phenomenon to grasp, because even
the heterogeneity of the pratices and values that it embraces (Hervieu-Léger, 2008;
Amaral, 2000; Magnani, 1999) procedures, including those that are not necessarily
religious. Amaral (1999; 2000) argues that the New Age is characterized by the
removal of the most diverse elements of their original contexts, arranging them
and rearranging them in a performative way. In its origin, we find the convergence
1
Doutor em Sociologia, professor da Universidade Federal de Alagoas, atuando no Progra-
ma de Pós-Graduação em Sociologia.
Souza (1986), com base em Bastide (1985), chama a atenção para o fato
que, com a mudança para as Américas, muitos orixás deixaram de ser cultu-
ados, tendo em vista o novo contexto social no qual os africanos escravizados
se inseriam sendo assim, deixava de fazer sentido cultuar deuses relativos
às colheitas, se estas só implicariam em mais trabalho, e em benefícios para
aqueles que os oprimiam, ou mesmo os deuses da fertilidade, considerando
que só trariam mais crianças a serem escravizadas. Em contrapartida, deuses
da vingança, como Exu, da guerra, como Ogum, ou da justiça, como Xangô,
passaram a ser cultuados mais fortemente, este último inclusive passa a ser
tomado como sinônimo do próprio culto, ou do local de culto, como em
Alagoas e em Pernambuco (Bastide, 2001).
O elemento indígena também esteve presente, seja através dos movi-
mentos de caráter messiânico chamados de santidades, que existiram com
certa força no início do Brasil Colônia (Souza, 1986; Andrade, 2002), seja
através de outras reminiscências que se articularam aos elementos católicos
e africanos, seja através de seus cultos e cosmovisões mantidos mesmo com
o processo de colonização3.
Elementos outros também estiveram presentes desde os momentos
iniciais, Freyre (2005) chama a atenção da existência dos elementos orientais
3
Já no século XX podemos perceber o reavivamento de alguns elementos presentes nos
sistemas de crença indígenas, ainda que alguns se apresentem mais no nível da perfor-
mance, como é o caso dos caboclos na umbanda, bem como a utilização ritualística da
Ahyuasca por religiões como o Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha.
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Ainda que não neguemos que os mesmos se encontravam presentes, ainda que em me-
nor grau, com um especial destaque para as referências ao espiritismo kerdecista, e às
referências aos povos indígenas.
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No caso específico de Nina Rodrigues, devemos destacar que o autor não se utiliza no
decorrer de sua obra do termo sincretismo, ainda que ele discorra sobre o fenômeno
utilizando-se de expressões equivalentes, como fusão e dualidade de crenças, justaposição
procura espiritual dos errantes da Nova Era vem contribuindo, assim, para a
construção de uma religiosidade aberta à apropriação de técnicas espirituais
e modelos religiosos os mais diversos, tendendo, portanto, a ser sincrética
e vaga.” (Amaral, 1999, p. 71). A autora nos traz ainda que, o sincretismo
existente no universo da Nova Era traz algumas características próprias, quais
sejam:
Trazemos aqui tal colocação como algo que vai à contramão de alguns autores
já consagrados na discussão da temática. Amaral (2003) nega que possa haver
qualquer indigenização na Nova Era brasileira, pois segundo a autora “[...]
tais incorporações ‘nacionais’ não fogem à lógica da transitividade da religião
no mundo contemporâneo, especialmente desta cultura religiosa errante da
qual estamos tratando.” (Amaral, 2003, p. 47). Já Magnani (2000; 2006),
destaca como há poucas referências a elementos da religiosidade brasileira
no universo da Nova Era aqui experenciado, segundo o autor:
[...] cabe assinalar que as referências são geralmente aos povos andinos, a
índios do território norte-americano e ao xamanismo ‘clássico’ do norte da
Ásia. Apesar da rica tradição dos cultos afro-brasileiros, elementos rituais e
cosmológicos da religião dos orixás, com poucas exceções, não são incorporados
pela Nova Era. No que se refere às culturas indígenas, a aproximação é maior,
principalmente de alguns povos e também com a doutrina do Santo Daime,
em suas diferentes derivações. (Magnani, 2000, p. 39)
Mais tarde, no final da década de 1960 e começo da seguinte, teve início junto
às classes médias do Sudeste a recuperação das raízes de nossa civilização,
reflexo de um movimento cultural muito mais amplo, denominado
contracultura. Forte revitalização das origens culturais brasileiras, sobretudo as
africanas preservadas nos velhos templos dirigidos pelas mães e pais-de-santo,
alimentou a renovação das artes e redefiniu sentidos de antigos valores estéticos,
filosóficos e religiosos. Abriu-se para o Brasil como um todo, uma espécie de
baú cultural pleno de ingredientes originais para novas criações e inventos,
segredos guardados nos velhos candomblés da Bahia. (Prandi, 2005, p. 130).
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Os dados tomados neste artigo são frutos de pesquisas de Campo realizada nas cidades
de Campina Grande – PB, Olinda, São Lourenço e Recife – PE, Maceió – AL, e Brasília
– DF, em nível de mestrado e de doutorado.
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Nome dado aos migrantes que trabalharam durante a construção de Brasília.
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Para os adeptos, a figura do Pai Seta Branca é entidade que hierarquicamente vem logo
abaixo de Jesus, ou melhor, é o seu “Sétimo Raio” e Tia Neiva é o “Sétimo Raio” do Pai
Seta Branca. Para Mello (1999), sua figura chega mesmo a ser confundida com Jesus
Cristo por vezes.
depois agregou-se a este grupo uma pessoa que será decisiva no processo
de constituição do Vale, Mário Sassi, terceiro e último companheiro de Tia
Neiva e que veio a se tornar o principal sistematizador da doutrina do Vale
do Amanhecer. Ele teria chegado ao Vale em decorrência de problemas espi-
rituais que o teriam levado à depressão e ao alcoolismo (Gonçalves, 1999).
No que se refere ao templo propriamente dito, houve problemas judi-
ciais que acarretaram a perda do terreno no qual o grupo de Tia Neiva
estava alojado, fazendo-se necessária mais uma mudança de local. O grupo
se muda para os arredores de Planaltina, Cidade Satélite de Brasília, onde
finalmente se concretiza a instalação da comunidade. É neste local que a
doutrina ganha entre os adeptos o nome de Vale do Amanhecer, fazendo
uma referencia à auba avistada daquele local. Houve ainda um processo de
desaproriação deste terreno devido à construção de uma usina hidrelétrica
que abasteceria Brasília. Entretanto, devido à adesão de novos membros e
consequente aumento populacional houve a concessão do terreno a Neiva,
que passou a determinar por meio de venda de lotes quem deveria ou não
viver no Vale.
Tia Neiva morre em 1985, aparentemente, em decorrência de turbecu-
lose. Para os adeptos, tal doença tinha uma explicação espiritual, decorreria
de uma dívida cármica teria ocorrido após o seu treinamento com o monge
tibetano. Antes de sua morte, Neiva havia deixado preparada a sua sucessão,
cabendo a quatro trinos10 o comando do Vale a partir deste momento estes
trinos são Mário Sassi (Trino Tumuchy), seu filho, Gilberto Chaves Zelaya
(Trino Ajarã), os adeptos Nestor Sabatovicz Trino Arakém) e Michel Hanna
(Trino Sumanã). Às duas filhas de Tia Neiva couberam alguns poucos en-
cargos secundários na doutrina.
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A atual estrutura hierárquica existente no VDA foi definida por Tia Neiva, ainda em
vida (Reis, 2008). No nível máximo da hierarquia do movimento encontra-se o Conselho
dos Trinos, que são responsáveis pela manutenção doutrinária do VDA, e pelas atividades
burocráticas da doutrina, devendo se destacar o fato que, tal conselho foi incapaz de
manter a liderança carismática exercida por Tia Neiva (OLIVEIRA, 2002). Este Conse-
lho de Trinos foi formado, inicialmente, pelos filhos homens de Tia Neiva, Mário Sassi
(falecido em 1995) e Nester Sabatovicz (falecido em 2004), de modo que, atualmente
apenas os filhos de Tia Neiva compõem este conselho.
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No Vale do Amanhecer existem dois tipos de médiuns: Doutrinador, aquele responsável
pela recepção dos médiuns e frequentadores (chamados de pacientes), como também
pelo diálogo com as entidades, e Apará, responsável pela incorporação tanto dos espíritos
de luz, que ajudarão no trabalho mediúnico, como dos cobradores que são entidades
espirituais que, normalmente, foram prejudicadas em vidas passadas pelo paciente, ou
seja, por aquele que sofre com a atuação dos cobradores.
Os pretos velhos são espíritos dos antigos escravos negros que pela sua
humildade tornaram-se participantes da ‘Lei da Umbanda’. Quando eles
descem, o corpo do neófito se curva, retorcendo-se como o de um velho
esmagado pelo peso dos anos. (...) Falam com uma voz rouca, mas suave,
cheia de afeição, o que transmite uma sensação de segurança e familiaridade
àqueles que vêm consultá-los. (Ortiz, 1999, p. 73)
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Na linguagem utilizada pelos adeptos do Vale do Amanhecer são chamados de jaguar
os homens, de modo geral, que podem ser príncipes ou magos, de acordo com a falange
espiritual, e de ninfa as mulheres, que se filiam também a uma falange espiritual, dentre
as 19 possíveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho realizamos apontamentos em torno da ques-
tão da Nova Era no Brasil, considerando seu caráter singular ao se articular
com elementos diversos daqueles presentes em sua configuração original,
não que com isso o fenômeno tome aqui contornos completamente distintos
daqueles existentes em outras temporalidades e em outros espaços, não à
toa nos utilizamos ainda da categoria Nova Era para classificar tais práti-
cas, no entanto, damos relevo às peculiaridades assumidas neste momento
histórico no Brasil dentro deste universo simbólico, destacando que não
se trata aqui de uma simples transposição automática de um movimento
religioso e intelectual.
Suas transformações, longe de serem frutos apenas de mudanças no
campo religioso de forma autônoma, representam uma mudança no plano
macrossocial que abarca o âmbito político, étnico, econômico etc, de modo
que apenas as ferramentas analíticas propostas pelos autores que se conso-
lidaram neste campo de estudos não nos são suficientes para compreender
o fenômeno, ainda que sejam indispensáveis.
Entendemos que as práticas neste universo buscam viabilizar a abertura
para outras possibilidades de arranjos e rearranjos, que se articulam de forma
a construir uma realidade simbolicamente capaz de gerar sentido para os
sujeitos envolvidos, que tanto podem estar comprometidos apenas consi-
go centrando-se na multiplicidade de experiência apenas, como também
podem voltar-se para um compromisso com a coletividade focando na
profundidade das experiências. Ao contrário da literatura recorrente acerca
do universo da Nova Era, encontramos no Vale uma prática religiosa essen-
cialmente comunitária, o caráter iniciático mostra-se como condição sine
qua non para o desenvolvimento mediúnico, e mesmo para o caminho do
autoconhecimento.
Podemos afirmar, portanto, que ainda que neste campo a “religiosidade
do self” ganhe destaque, há espaços voltados para os movimentos iniciáticos,
com seus complexos graus hierárquicos e com seu profundo movimento de
ressocialização dos adeptos.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Leila Marrach Basto de. Estrutura e Dinâmica dos Novos
Movimentos Religiosos. In: SOUZA, Beatriz Muniz de; SÁ MARTINO,
Luís Mauro (Orgs.). Sociologia da religião e mudança social. São Paulo: Paulus,
2004.
AMARAL, Leila. Carnaval da alma: Comunidade, essência e sincretismo
na Nova Era. Petrópolis: Vozes, 2000.
______. Sincretismo em Movimento – O Estilo Nova Era de lidar com
o sagrado. In: CAROZZI, María Julia (Org.). A Nova Era no Mercosul.
Petrópolis: Vozes, 1999.
______. Um Espírito sem lar: sobre uma dimensão nova era da religiosidade
contemporânea. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). Circuitos Infinitos:
Comparações e religiões no Brasil, Argentina, Portugal, França e Grã-
Bretanha. São Paulo: Attar, 2003.