Ciência Política
Ciência Política
Ciência Política
Política
Indaial – 2020
2a Edição
Elaboração:
Prof. Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner
Prof. Dr. Sandro Luiz Bazzanella
B364c
ISBN 978-65-5663-176-9
ISBN Digital 978-65-5663-177-6
Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Olá, acadêmico! Seja bem-vindo ao Livro Didático de Ciência Política. Para
melhor compreensão do conteúdo, distribuímos nosso estudo em três unidades. Cada
unidade contém três tópicos que, em conjunto contemplam uma abordagem sobre
temas, conceitos e autores elementares a uma compreensão inicial sobre o significado
e a importância dessa ciência.
Esperamos que este livro didático inspire a atenção que a Ciência Política
merece, para o bem da formação profissional e cidadã. Bons estudos!
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para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira,
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LEMBRETE
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REFERÊNCIAS.....................................................................................................................169
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 245
UNIDADE 1 -
POLÍTICA: TEORIA
E CONCEITOS
ELEMENTARES
DA POLÍTICA
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará
autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.
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CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 1!
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UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
POLÍTICA, ESTADO E PODER
1 INTRODUÇÃO
A Ciência Política tem seus próprios objetos de investigação, o que é condição
básica de qualquer ciência. Nessa perspectiva, este primeiro tópico da Unidade 1 do
Livro Didático Ciência Política traz uma exposição de fenômenos, conceitos e autores
cuja apreensão introdutória é elementar aos nossos estudos. Trata-se de uma exposição
introdutória, que apresenta os primeiros e fundamentais conceitos da Ciência Política.
São, por assim dizer, as ideias fundantes, os principais fenômenos a originarem os
estudos desta ciência social.
2 POLÍTICA
O conceito de política se origina do grego politikós, que significa tudo que tem
a ver com a polis, que significa cidade. Nessa direção, a política está essencialmente
vinculada às coisas públicas, às coisas relacionadas à comunidade dos homens. Tem
a ver com cidadão, cidadania, com o que é civil, social, coletivo e próprio da ordem
social que é estabelecida pelos homens e mulheres para que vivam em agregação. Isso
vai do município à nação e até mesmo para além desses limites. E, é preciso que se
saiba que quanto mais intensa e, portanto, cívica for a vida dos homens e mulheres em
comunidade, tanto maiores serão as chances de uma vida marcada por oportunidades
de realizações pessoais.
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O termo política foi difundido desde a essencial contribuição do filósofo grego
Aristóteles que, por meio de sua notável obra intitulada “Política”, o definiu pela primeira
vez na história da civilização ocidental. Este livro foi o primeiro tratado sobre o assunto,
isto é, sobre a natureza da atividade política, do poder e das leis. É a primeira obra
a tratar da origem e necessidade do Estado, de suas funções, suas divisões, seus
necessários equilíbrios e as formas de governo. Nessa perspectiva, Aristóteles tratou
da arte de governar a polis, a partir de seus conflitos e necessidades. Muitas vezes o
fez de maneira descritiva, mostrando como a política é, outras vezes, o fez de modo
prescritivo, escrevendo como a política deveria ser.
NOTA
O termo consociatio publica provém do latim, que significa consórcio
público ou associação pública. Esse era o tratamento conferido ao
que entendemos hoje por Estado. O filósofo político alemão Johannes
Althusius (1563-1638) usa o termo no original para se referir às coisas
do Estado, em sua obra “Política”. Para saber mais informações, acesse o
link a seguir: https://bit.ly/3sDYS8E.
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exclusivo do exercício de poder, do uso da violência e de domínio sobre um determinado
território. Trata-se, por extensão, de manter a ordem, de legislar e executar, distribuir
parte das riquezas segundo critérios de justiça social, de assegurar a liberdade, a
propriedade e a vida. Além disso, devemos ainda considerar que o papel do Estado (aqui
compreendido como o Executivo, o Legislativo e o judiciário) implica conquistar, manter
e defender seu território e proteger o seu povo.
INTERESSANTE
O conceito de tipo ideal é um recurso metodológico de investigação da
realidade a partir de uma ideia, isto é, uma concepção ideal do objeto
a ser estudado. Quem definiu isso foi o sociólogo alemão Max Weber,
sugerindo ao pesquidador que pré-estabelece um tipo puro, a partir do
qual faria seus estudos sobre a realidade. Assim, ao estudar, por exemplo,
as instituições políticas de uma dada nação, deve o pesquisador definir
previamente o que são instituições políticas. Ao tentar compreender, por
exemplo, descentralização do poder de um governo nacional ou estadual,
deve pré-definir o que entende por governo descentralizado. É isso.
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condição humana, evoluindo, desenvolvendo-nos. É nessa linha que compreendemos
a recomendação do sociólogo estadunidense Talcot Parsons, que as sociedades
evoluem através da linguagem e das leis. Por assim dizer, o desígnio humano de realizar
a aspiração republicana.
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Obviamente, a democracia indireta, caracterizada pela representação, demonstra
seus limites. Um sistema de representação ao extremo do formalismo e da autonomização,
como dissemos antes, cria um descolamento indesejável, do ponto de vista democrático,
entre representante e representado. Isso acontece nos regimes semidemocráticos, onde o
limite da participação dos representados está no ato de eleições aos Executivo e Legislativo.
A partir dessa delegação, regimes restritivos abrem poucos espaços participação. Essa
situação difere em regimes democráticos abertos e menos centralizados, em que a
mediação entre representado e representante tem instâncias intermediárias de participação
e pressão. Mas a autonomização da política é inevitável.
NOTA
A ideia do bom governo ou governo ideal, para Platão, era o governo
aristocrático, mas que assim o fosse pelo mérito e não pela
hereditariedade, como nas monarquias. Tal governo aristocrático
seria composto pelos melhores e mais sábios e é dessa formulação
que surge a ideia do “rei filósofo”, ou seja, a defesa de que governos
deveriam ser sempre compostos por homens de saber notoriamente
reconhecido. Se esse fosse o critério, os governantes poderiam ser
inclusive escolhidos pelo povo.
Com Machiavel, a política torna-se autônoma, orientada por leis próprias. Já não
vale mais a ideia do rei bom, benevolente e caridoso, submetido aos ditames da Igreja.
O que interessa é que o rei seja eficiente, justo quando necessário, mas, sobretudo
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capaz de manter a ordem, guardar com força o seu território e garantir a proteção e a
obediência dos súditos. É nessa perspectiva que deve ser compreendida a máxima de
que “os fins justiticam os meios”. Nao se trata dos fins privados. Trata-se dos fins últimos
da política, quais sejam, a manutenção do poder do governante, do Estado, acima de
tudo, em nome da nação e seus interesses estratégicos. E quaisquer que sejam os meios
utilizados, se justificam, desde que tais fins sejam garantidos. Com todas as variáveis
que a história produziu, continua sendo assim até hoje, expresso nos comportamentos
dos agentes políticos e nas leis.
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Entendemos por sistema político o complexo ordenamento jurídico e estrutural,
composto pelas leis, normas e órgãos que compõem o Estado, isto é, um governo. Por
extensão, sua definição abrange as formas de comportamento políticas reais e prescritas,
a organização formal-legal e o funcionamento real dos governos, nas suas divisões e
níveis. Ainda mais amplamente definido, o sistema político é visto como um conjunto de
“processos de interação” ou como um subsistema do sistema social que interage com
outros subsistemas não políticos, como o sistema econômico, por exemplo. Isso aponta
para a importância também dos processos sociopolíticos informais e enfatiza o estudo
do desenvolvimento político.
INTERESSANTE
Referente ao tema, acesse no link a seguir, sobre a matéria realizada pelo
Jornal Estadão – Grupos de renovação política ganham força e incomodam
partidos. Link: https://bit.ly/36o7MQl.
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3 ESTADO
Por muito tempo, a Ciência política foi identificada como a Ciência do Estado,
termo que vem do alemão Staatwissenschaft. O ponto de partida para uma compreensão
científica do Estado tem sido a divisão dos três poderes, tão magistralmente proposta
pelo eminente filósofo francês, o Barão de Montesquieu (1689-1755). Nesse aspecto, é
preciso lembrar que a Ciência Política é essencialmente uma ciência contemporânea,
assim como a divisão dos três poderes. Estuda-se o Estado moderno desde a sua
conformação inicial, mais ou menos no século XIV. Não obstante, o que se produz
de análise pretensamente científica sobre o Estado, parte essencialmente dessa
conformação contemporânea.
NOTA
Lembremo-nos de que, do ponto de vista historiográfico, considera-se
contemporâneo o que é pertinente ao curso da história ocidental desde
a Revolução Francesa, em 1789.
De modo geral, o que entendemos por Estado tem a ver com o ordenamento
político e jurídico que surge lentamente, aqui e ali, no contexto da Europa do século
XIV. As primeiras conformações aparecem em Portugal, Espanha, França e Inglaterra.
Emergem das fissuras do sistema feudal e pela força das circunstâncias impostas pelo
capitalismo mercantil. Nessa perspectiva, o elemento molecular do Estado é a progressiva
concentração de poder, justamente em função das necessidades circunstanciais.
Essa centralização do poder sob o controle do governante é a base do principio da 1)
territorialidade e da 2) obrigação para com o contrato social (contratualismo político).
IMPORTANTE
[...] Os autores contratualistas: John Locke, Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau
usavam a existência dos contratos sociais como uma forma de entender de que maneira
e diante de quais circunstâncias, o Estado Civil passou a regulamentar a vida em sociedade.
O contrato social pode ser implícito ou explícito e marca a passagem do estado natural
para o estado em que acontece a vida social e política.
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John Locke
[...] Locke acreditava que o homem seria uma criatura naturalmente racional e social (com)
inclinação para o bem, empatia e senso de amor. Os homens seriam, também, naturalmente
livres, iguais e racionais, regidos sempre pela razão.
No entanto, o homem natural, embora fosse racional, não era constantemente bom, tendo
também sentimentos de raiva, vingança, ímpeto de destruição e egoísmo. Por conta dessas
características humanas, os atritos entre os indivíduos surgiriam a partir dos conflitos de
interesses.
Assim, seria um direito natural de todo ser humano punir outros de seu convívio que
desobedecessem às leis naturais. Para que os seres humanos pudessem viver livres, de
forma organizada e com punições pré-estabelecidas, deveriam abrir mão de alguns direitos,
como os de fazer julgamentos e de praticar punições, transferindo-os para o Estado.
Thomas Hobbes
Hobbes, por sua vez, acreditava que o homem era naturalmente mau, cruel
e egoísta. Para Hobbes, "o homem é o lobo do homem", ou seja, estava
sempre disposto a ser cruel e sacrificar o outro em benefício próprio.
Os problemas do homem, em seu estado natural, aconteceriam, pois,
a maldade do ser humano faria com que os homens vivessem em um
estado constante de guerras, ameaças e destruição.
FONTE: <https://querobolsa.com.br/enem/sociologia/contratualismo>.
Acesso em: 16 dez. 2019.
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Por guerra ou ameaça, compreendamos que o Estado moderno é resultado histórico
da conquista do mais forte senhor feudal sobre os outros. Disso resulta o acordo que legitima
a liderança do monarca, dono do mais forte exército, que submete os outros à sua vontade.
Estabelece os limites do seu território e a identificação de seu povo. Suas duas maiores tarefas
implicam a defesa desse território e na segurança de seu povo, base do contrato social. E o
toque de acabamento dessa conformação política e jurídica está assentado justamente no
estabelecimento da lei. E a característica fundante desse estabelecimento vai se conformar
historicamente na impessoalidade do exercício de quem comanda.
Por extensão disso, vale apresentar uma classificação de tipo ideal, a partir
da qual possamos saber do que estamos falando, quando usamos a palavra Estado.
As definiçoes conceituais são, na verdade, imprescindíveis à nossa comunicação,
sem o que, a construção coletiva fica comprometida. Parece haver consenso entre os
teóricos da política quanto a algumas características essenciais na composição desse
ordenamento jurídico. Assim, para caracterizarmos o Estado moderno enquanto tal
adjetivo lhe sirva, é necessário que contenha, ao menos, seis características essenciais:
NOTA
O contrato social significa simbolicamente o acordo entre o governante
e os governados. Embora o nome seja uma metáfora criada por filósofos
políticos entre os séculos XVII e XVIII, representa a síntese explicativa
do surgimento do Estado Moderno. É baseado na ideia de que os
homens, em coletividade, admitem outorgar a um ente distinto o poder
de governá-los em troca da garantia aos direitos naturais básicos dos
serem humanos. Os três principais filósofos contratualistas foram John
Locke, Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau.
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3.1 PRECEDENTES GREGOS E ROMANOS
A história do estado ocidental começa na Grécia antiga. Platão e Aristóteles
escreveram sobre a polis, ou cidade-estado, como uma forma ideal de associação, na
qual as necessidades religiosas, culturais, políticas e econômicas de toda a comunidade
poderiam ser satisfeitas. Essa cidade-estado, caracterizada principalmente por sua
autossuficiência, era vista por Aristóteles como o meio de desenvolver a moralidade no
caráter humano.
Na ótica de Jean Bodin, o poder não seria suficiente por si só para criar um
soberano. Este teria de fazer por merecê-lo, obedecendo à moralidade para ser durável e
ter continuidade. A principal preocupação era garantir a estabilidade nas sucessões dos
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reis, sem quebrar a linhagem sanguínea. A teoria de Bodin foi a precursora da doutrina
do "direito divino dos reis", segundo o qual a monarquia era a própria expressão da
vontade divina na terra e os reis seriam descendentes diretos do Deus. Nesse aspecto,
em particular, é que a teoria do filósofo político francês é diferente da de Machiavel que,
por sua vez, não dava ênfase ao direito divino.
NOTA
Um exemplo de atitude amoral encontramos na descrição que o
dramaturgo inglês William Shakespeare fez da breve vida do Rei Ricardo
II, da Inglaterra do século XIV. Em um dos episódios dramáticos, o Rei
teria mandado matar o próprio filho por lesar o erário público. Do
ponto de vista da moral religiosa, sua atidute é condenável, porém, do
ponto de vista da ética política, o rei deu um exemplo radical e eficiente
do que poderia acontecer a qualquer um que desrespeitasse a lei.
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3.3 HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Nas perspectivas dos contratualistas Thomas Hobbes, John Locke e Jean
Jacques Rousseau, o Estado seria o próprio reflexo da natureza humana na manifestação
de suas mais fundamentais necessidades. Se durante toda a Idade Média o mundo
era justificado a partir de uma concepção religiosa sem influência humana, na Idade
Moderna, sobretudo o poder passa a ser explicado a partir da dimensão humana. A
política já não era mais vista como uma esfera refletida da vontade de Deus. O poder
é analisado como o resultado de um jogo de interesses, regras e finalidades que eram
humanas. Assim, a política não é mais vista como uma fatalidade, mas como resultado
da capacidade humana.
O Estado, por sua vez, é o resultado histórico, na esfera mundana, daquilo que os
homens coletivamente conseguiram compor. De maneira geral, reflete as necessidades
e desejos humanos, sendo resultado das lutas pelo poder e dos consensos mínimos em
relação à ordem necessária em sociedade. Os seres humanos vivem coletivamente por
decisão humana, cientes de que essa condição é melhor do que viver isoladamente. Não
obstante, para viverem em sociedade, precisam estabelecer regras, sendo esta a origem
mais reomota do Estado. Na medida em que os agrupamentos humanos crescem e as
economias se desenvolvem, os conjuntos de regras ficam mais complexos, resultando
historicamente no que entendemos como o Estado.
Para Locke, a condição humana não é assim tão malévola e egoísta. Todavia,
também para ele o Estado é o resultado da percepção sobre as vantagens de viver
coletivamente e de modo minimamente organizado. Trata-se, por extensão, da
constituição política de uma imperiosa necessidade de proteção dos direitos naturais dos
homens. Estes seriam direitos inerentes à condição humana. Inspirador do liberalismo
clássico, Locke afirmou que o Estado seria a materialização mais acabada do contrato
social. Através deste, os indivíduos concordam em não infringir os "direitos naturais" uns
dos outros à vida, liberdade e propriedade, em troca do qual cada homem assegura sua
própria "esfera de liberdade".
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deve ser outra senão a vontade dos indivíduos em coletividade. Influenciado por Platão,
Rousseau reconheceu o Estado como o ambiente para o desenvolvimento moral da
humanidade. Seu pressuposto geral é o de que o homem é bom por natureza, mas a
Sociedade corrompe essa natureza boa. Para restabelecê-la, é preciso que o Estado
garanta as condições para tanto, estimulando os homens a buscarem o bem-estar
social. Como o resultado da busca individual gera conflitos, um estado saudável e sem
corrupção) só pode existir quando o bem comum é reconhecido como a meta oficial a
ser alcançada e garantida.
3.4 HEGEL
Para o filósofo alemão George W. F. Hegel, somente o Estado, como um ente soberano
e reflexo dos interesses mais gerais e prioritários, seria capaz de garantir a liberdade, princípio
fundamental da vida humana. Evidentemente associada à segurança, a liberdade seria
fundamental porque é a condição essencial para viver e desenvolver-se. Só poderia ela ser
garantida através de leis que garantissem a soberania dos indivíduos, entendida não somente
na sua perspectiva individual, mas coletiva, como um direito, expressão maior da razão
humana. Nesse sentido, o Estado, com todo o ordenamento jurídico, burocrático e policial,
seria (deveria ser) a expressão máxima da evolução da humanidade.
Que fique claro: para o filósofo alemão, a liberdade não é a capacidade, tampouco
o direito, de cada um fazer o que bem entender de sua vida. Muito mais que isso, é
um desejo universal pelo bem-estar. Quando os homens agem como agentes morais,
agindo racionalmente, os conflitos cessam e os objetivos passam a coincidir. Ao se
subordinarem, por livre entendimento, às leis do Estado, os indivíduos passam a estar
habilitados a realizar a síntese entre os valores familiares e as necessidades econômicas.
Para Hegel, o Estado é o resultado do armazenamento das ações morais ao longo da
história, onde são filtradas e solidificam o desenvolvimento humano. É no Estado que a
liberdade de escolhas se cristaliza, permitindo a união das vontades racionais.
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Nessa perspectiva, o filósofo alemão vê no Estado a representação resumida e
ordenada do direito à liberdade humana. Diferentemente dos contratualistas Rousseau
e Locke, Hegel não afirma diretamente que a liberdade é um direito natural. Mais do que
isso, a liberdade é o resultado da razão humana, depurada, através da qual homens
e mulheres tornam-se capazes de entender seu verdadeiro sentido: a expressão da
vontade individual em concordância com a vontade coletiva. O Estado seria a síntese
da ação moral, onde a liberdade de escolha é orientada para a universalidade, isto é, à
unidade das vontades. Através do ordenamento jurídico, as partes da constituintes da
sociedade seriam reunidas e assentadas para a saúde do corpo social.
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simples: O Estado é o produto histórico do ordenamento jurídico e policial das classes
dominantes ao longo do tempo. Sua maior incumbência seria proteger a propriedade
privada e garantir a acumulação de riquezas de quem está no poder. A acumulação
seria o resultado da exploração da classe dominante sobre a classe trabalhadora. Então,
o Estado é, por definição, contra os interesses dos trabalhadores. Sendo, na origem,
uma instituição de opressão, deveria ser extinto. O que se seguiria depois seria uma
sociedade sem classes, baseada não na aplicação das leis, mas na justa distribuição dos
bens produzidos e sem propriedade privada.
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governos são responsáveis pela sobrevivência de seus membros, garantindo
subsistência àqueles que não a possuem. Uma excelente análise foi feita pelo
sociólogo polonês Adam Przeworski (1940 - ), em seu livro “Capitalismo e social-
democracia”.
• O Estado mínimo expressa a ideia de que quanto menor for a intervenção do Estado
na vida privada das pessoas e na economia, tanto melhor. Para os liberais ortodoxos,
o Estado deveria apenas cuidar do básico, ou seja, garantir o direito à propriedade
privada, cuidar da segurança dos indivíduos e da educação aos que mais necessitam,
deixando o restante com a iniciativa privada e a sociedade organizada. Uma
compreensão sobre o assunto pode ser iniciada com a leitura do pensador liberal
austríaco Ludwig von Mises (1881-1973), em “A mentalidade anticapicalista”.
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direitos fundamentais dos indivíduos. E a qualidade dos serviços dependerá de um duplo
esforço da sociedade, qual seja, o esforço econômico e a atenção à política. Podemos
admitir, como sugeriu certo filósofo, que a política não nos levará ao céu, mas é somente
através dela que nos livraremos do pior dos infernos.
4 PODER
Definimos o conceito de poder como o resultado da ação capaz de exercer
influência sobre o outro ou os outros, a fim de conseguir realizar e fazer prevalecer o
interesse de quem busca obtê-lo. Se falarmos em termos de poder político, podemos
defini-lo como o exercício da influência legítima de um agente sobre outro ou outros.
Há inúmeras formas de um agente exercer poder sobre outros, fazendo-os alterar
seus comportamentos em função do interesse e mando de quem o exerce. No caso da
ordem política, é a autoridade legítima que se expressa, seja pelo uso da força, seja pela
ameaça de seu uso em nome da lei.
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sobre outro é antes de tudo uma violência. O que torna esse uso minimamente aceitável
é quando a força é usada em defesa contra a violência alheia. E é exatamente essa
reação que, ao longo da história humana, vai revestir o uso da violência de moralidade. É
a constituição da autoridade, em nome da ordem, que legitimará o uso da força.
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Como conceito central no estudo de sociedades, nações e organizações,
o fenômeno do poder é estudado em muitos campos do conhecimento. A origem e
natureza da autoridade e sua legitimidade é o principal assunto de filósofos políticos e
cientistas políticos. Investiga-se sobre as circunstâncias que legitimam a ação do Estado
em obrigar seus indivíduos a agirem em certa direção. Todavia, desde John Locke (1632-
1704), também se investigam as condições em que cidadãos podem, legitimamente,
desobedecer ao poder do Estado.
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4.2 AUTORIDADE COMO QUESTÃO SOCIOLÓGICA
Para o sociólogo, a legitimidade que distingue entre poder coercitivo e autoridade
repousa não em algum fundamento normativo teórico, mas em uma convenção social
de fato (convenção social real, significando que legitimidade não é se o comportamento
de um ator satisfaz alguma norma ética ideal, mas se encaixa nas normas sociais
comuns às pessoas reais da sociedade). A sociedade confere a certos atores o direito de
influenciar os outros e esperar sua obediência. Um membro da comunidade que impede
outros na rua e vasculha seus bens contra sua vontade é um vigilante ou um ladrão
armado, exercendo poder coercitivo. Um policial que pratica o mesmo comportamento
de acordo com os procedimentos legais, validados por convenção social, está exercendo
autoridade.
Grande parte da autoridade citada nas organizações repousa sobre uma fonte
racional-legal de autoridade. Nos negócios, por exemplo, é a combinação da posição de
um gerente em relação às estruturas estatutárias e racionais que constitui o direito de
esperar obediência dos subordinados. Os acionistas compartilham um tipo de autoridade
semelhante em suas negociações com a corporação por meio de mecanismos de
governança.
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comandados por uma autoridade. Fariam, inclusive, coisas como choques elétricos
dolorosos remotamente a uma pessoa invisível (que, desconhecida pelo sujeito, na
verdade não recebia tais choques). Ele atribuiu essa disposição, em grande parte, à
divisão do trabalho que caracteriza a sociedade moderna e afasta os indivíduos das
consequências de suas próprias ações.
ATENÇÃO
A leitura a seguir é uma oportunidade de começar a entender o
significado da ideia-força do “contrato social”, que representa as
abstrações feitas pelos contratualistas para explicar o surgimento
do poder institucional, isso é, o Estado. Trata-se de uma resenha
do websiter Daniel Lage, sobre o livro “Contrato social”, do filósofo
oitocentista franco-suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778).
Não há uma única definição sobre o “contrato social”. De todo
modo, os contratualistas justificam a existência do Estado e sua
legitimidade a partir dessa ideia-força. De leitura em leitura,
nossa compreensão se expande e percebemos a grandeza e a
atualidade das ideias dos filósofos políticos modernos. Nessa
perspectiva, Rousseau, Hobbes e Locke, entre tantos outros, são de
leitura imprescindível para compreendermos a ordem e a desordem
da política de nossos dias. São fundamentais para que saibamos o que
pensar e fazer, como cidadãos, para que a política sempre se renove.
Nesse sentido, vale lembrar o que escreveu Machiavel (1996) “se a
política não nos leva ao céu, nos livra, contudo, do pior dos infernos”.
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Reflexões sobre a leitura de “O Contrato Social” de Jean-Jacques Rousseau
Daniel Lage
A experiência da leitura de “O Contrato Social” foi de contato com uma
teoria política que está localizada na fronteira entre o romantismo e o realismo. Pois
ora se ergue fortes argumentos em favor da democracia direta e irrestrita como
única possibilidade de efetivação da liberdade, e ora essa mesma liberdade é posta
a longas léguas das possibilidades políticas ao homem em sociedade. Em outras
palavras, a sensação foi de que há um pêndulo argumentativo na teoria de Rousseau
que vai da radicalidade da crítica e do objetivo a se alcançar através da política,
e a volta a dura realidade das possibilidades colocadas ao homem, sobretudo, o
homem burguês que nada investe a não ser pelo lucro e o proveito próprio. Esse
movimento, creio eu, já pode ser encontrado na famosa frase com que o autor abre
o Capítulo I do Livro I: “o homem nasce livre e em toda parte é posto a ferros”. Num
primeiro momento, a liberdade existe, aliás é inata, contudo, estamos postos a ferro
e constrangidos pela sociedade.
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se não mudarem sua maneira de ser. Sendo um contratualista, Rousseau utiliza a
lógica do contrato para entender os movimentos da sociedade. Assim, a questão
que os homens se colocam é expressa da seguinte maneira, como uma necessidade
objetiva, é preciso:
“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força
comum a pessoa e os bens de cada associado, pela qual cada um, ao unir-se a todos,
obedeça somente a si mesmo e continue tão livre quanto antes”.
A única saída para que a liberdade não fique constrangida pelas vontades
particulares é o pacto através do qual os homens se submetem à “vontade
geral”. Quando esses criam o Estado é justamente para sair da miséria criada pela
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sobreposição da vontade particular à vida, e elevar-se a uma condição moral superior.
Para Rousseau, e para o horror dos burgueses, é na esfera pública que a liberdade
deve estar garantida; o homem que caminha pela sua cidade quando bem quer,
conversando e refletindo sobre filosofia e literatura com seus iguais, e se preparando
para a próxima assembleia, pensando as leis do país, esse é um homem livre. A
espera privada, por sua vez, não pode dar ao homem a verdadeira liberdade, pois ela
é individual e está garantida sem nenhum esforço, não é um problema verdadeiro,
afinal, sentir-se livre na esfera privada não acrescenta em nada ao bem comum,
motivo fundamental da associação entre os homens.
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Essa questão é cara para nossa atualidade pois vivemos numa democracia
representativa, e seguindo esse pressuposto rousseauniano a democracia só é
efetiva se ela é extremamente participativa. Para o autor, creio que ele diria, o que
vivemos no Brasil e na maioria absoluta das democracias modernas é uma forma de
governo próxima da aristocracia eletiva, e o grau de liberdade é baixo, pois apenas
votamos nos que realmente governam e não governamos. Aliás o dito comum que
chama a atenção do cidadão que só é livre na hora do voto é de autoria do filósofo
já em meados de 1760: “o povo inglês pensa ser livre; está muito enganado, pois só
o é durante a eleição dos membros do parlamente; tão logo estes são eleitos, ele é
escravo, é nada”.
Vale dizer que o único papel do corpo político no qual a vontade particular
e a vontade geral estão imbricados de maneira a ser aceito é o do legislador. Esse
que escreve e elabora as leis, deve ser escolhido pelo povo por ser um homem
valoroso e de aptidões individuais excepcionais. O próprio Rousseau foi legislador,
e fez a constituição da Ilha de Córsega, local, diz ele, “onde reina a democracia e
um Estado de cidadãos valorosos, o único lugar que promete grandes avanços ao
mundo ocidental”. Julgamento que se confirmou parcialmente correto, pois foi da
Córsega que veio Napoleão, o Príncipe modernizador de toda a Europa, décadas
após a morte do filósofo.
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Por fim, Rousseau é um pioneiro em muitas elaborações que fazem parte da
vida política atual. Uma delas, e das mais importantes, é a defesa do Estado laico.
Afirma o autor que o Estado deve ser tolerante com as religiões que forem também
tolerantes com o conjunto de crenças diferentes entre si no seio do Povo. Avançando
o sinal, para Rousseau a religião é uma questão da esfera privada e não tem nada
que ver com o Estado. Por conta dessa elaboração, ao final do Livro IV de “O Contrato
Social”, o filósofo pagou caro, pois foi expulso de vários países, inclusive de sua terra
natal. Mesmo que ainda, na mesma parte, advirta que um Estado Religioso cujos
cidadãos através de sua crença amem seus deveres, as leis e a vontade geral, seja
um Estado virtuoso; e se esse Estado garantir através da religião esse dogma, está
garantida a liberdade. Rousseau foi perseguido pelas suas ideias e atividades políticas.
E certamente o romântico e o realista sempre andaram juntos.
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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
30
AUTOATIVIDADE
1 O conceito de “Contrato Social” é, talvez, a mais emblemática representação do
Estado. O Estado é, por assim dizer, a síntese histórica das disputas de poder e da
necessidade de regramento no convívio social. O filósofo contratualista franco-suiço
Jean Jacques Rousseau (1712-1778) foi autor de “Contrato Social”, onde expõe sua
concepção do Estado Moderno. Mas também Hobbes e Locke usaram a expressão
em suas obras, afirmando que o Estado civil é o necessssário resultado do contrato
social.
31
32
UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
FORMAS CLÁSSICAS DE GOVERNO:
MONARQUIA, ARISTOCRACIA E
DEMOCRACIA
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, neste tópico, você estudará três regimes políticos, que são:
Monarquia, Aristocracia e Democracia. Ao longo desse estudo, será possível
compreender a questão determinante na organização e estabelecimento de um regime
de governo reside na forma como se equalizam as relações de poder constitutivas de
um tecido social. Ou seja, toda e qualquer sociedade humana é constituída por grupos
de interesse que disputam as relações de poder. Assim, a constituição de um regime de
política significa o estabelecimento da hegemonia de determinados grupos na condução
dos interesses públicos.
33
estruturas burocráticas dos Estados nacionais. O mesmo fenômeno, salvaguardadas as
diferenças encontramos em relação à democracia, nascida entre os gregos antigos na
forma da democracia participativa direta e, que atualmente se apresenta na forma de
democracia de massas na forma representativa.
2 MONARQUIA
O ser humano é por excelência um ser social. Essa premissa é válida para as
mais diferentes espécies de seres vivos que coabitam na biosfera. Mas, especificamente
para a espécie homo sapiens (aquele que sabe que sabe) esta condição é determinante.
Ou seja, o humano reconhece sua própria condição na relação com outro humano. A
forma como nós nos compreendemos em nossa individualidade no mundo depende
das multiplicidades de relações que se estabelecem ao longo de nossas vidas, desde
os primeiros momentos de vida no seio familiar e posteriormente pela interação que se
estabelece nos mais diversos momentos e espaços sociais.
34
equalizar a força, a potência individual, bem como na constituição do espaço público
como garantia do humano. “Potência” (Macht) significa toda oportunidade de impor a
sua própria vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências,
pouco importando em que repouse tal oportunidade” (LEBRUN, 1984, p. 12).
35
Ainda, nesta direção, se o que justificava a ascensão de uma família ao poder,
transformando-se em família real era a extensão da família, suas posses materiais e, por
extensão seu poder de influência na corte, havia também na conformação do poder real
o reconhecimento por parte dos súditos de aspectos de divindade no monarca. Entre
as experiências histórias mais marcantes encontramos tal condição no Egito antigo.
O faraó era considerado uma divindade, um deus. Esse aspecto continua presente
de forma atenuada na monarquia inglesa atualmente, na medida em que a rainha da
Inglaterra é a chefe da Igreja Anglicana.
36
Dessas variáveis constitutivas das diferentes formas de monarquia se depreende
que a existencial de reis e de eleições não são incompatíveis. Sob tais pressupostos,
nas sociedades ocidentais, sobretudo a partir dos séculos XVI e XVII, presenciamos
movimentos que propuseram a eliminação da monarquia ou mesma a limitação do
poder das famílias reais. Caso emblemático e representativo é a família real inglesa.
No século XVII, a monarquia foi abolida, vindo a ser restaurada posteriormente com a
limitação dos poderes do rei em benefício do aumento do poder do parlamento na figura
do Primeiro Ministro.
37
Sob tais pressupostos, as monarquias parlamentares, ou constitucionais são
majoritárias no Ocidente e se caracterizam pelo fato de que os reis reinam, mas não
governam. As principais monarquias constitucionais se localizam no Reino Unido, na
Espanha, na Suécia, ou seja, o poder real é limitado. Sua existência se deve a inúmeras
razões, mas, sobretudo duas são centrais: manutenção da tradição constitutiva do ethos
desses povos, bem como a conveniência no que concerne no equilíbrio e nas relações
de poder. Nesse sentido, que a monarquia no Reino Unido assume no imaginário popular
a condição de unidade e continuidade do Estado diante da multiplicidade de partidos e
de políticos que se alternam no poder. Noutra perspectiva, na Espanha a monarquia foi
central na reconstituição da democracia durante a década de 70 do século XX. Nessa
direção, a monarquia na Espanha goza de apreço, pois é a garantia da liberdade e da
alternância no poder.
38
INTERESSANTE
Revolução Francesa: a Revolução Francesa foi um processo revolucionário que, na
interpretação clássica, entende-se de 1789 a 1799, e foi caracterizada por suas várias
reviravoltas, golpes de Estado e períodos distintos. Assim como o próprio movimento
revolucionário, também são díspares e controversas as avaliações que são feitas sobre a
Revolução, que recebeu diversas alcunhas: “esplêndida aurora” (Georg Wilhelm Friedrich
Hegel), “equivalente aos mitos e epopeias da Grécia antiga” (Thomas Carlyle), “a maior
catástrofe que caiu sobre a raça humana” (Goldwin Smith), “mãe de todos nós” (Albert
Soboul) ou “centro estratégico da história moderna” (Alfred Cobban). Para a leitura completa
do texto, acesse o link: https://bit.ly/3oRB6Vy.
40
Porém, entre outras iniciativas, os deputados da Corte Constituinte Portuguesa
exigiam a retorno do Brasil a condição de colônia de exploração. Diante das pressões
das cortes para a descolonização, Dom Pedro de Alcântara, que com o retorno da
Família Real à Portugal, havia permanecido no Brasil na condição de Príncipe Regente
e proclamou a independência em 7 de setembro de 1822. Após a independência, Dom
Pedro I foi o primeiro monarca que assumiu o poder, governando o Brasil de outubro de
1822 a 7 de abril de 1831. Em seu reinado proclamou a primeira constituição brasileira em
1824 ficando em vigência até 1889.
41
Há indicativos suficientes para constatarmos que na atualidade governos
monárquicos se apresentam de forma efetiva no imaginário de indivíduos e de
sociedades. Condição compreensível se levarmos em consideração, que essa forma de
governo remonta à trajetória da humanidade e a tempos imemoriais. As crônicas e as
histórias referentes às mais diferentes monarquias se constituíram e se apresentaram
ao longo dos tempos sob os véus da opulência da força no exercício do poder. É sob tais
pressupostos que se constata a manutenção de inúmeras monarquias no continente
europeu, no continente africano, no oriente médio e mesmo no continente asiático.
3 ARISTOCRACIA
Ao estudarmos um sistema político e as formas de governo por ele engendradas,
é preciso ter como princípio orientador a dinâmica política em torno das quais se
estabelecem as relações de poder. Nessa direção, talvez se possa afirmar que o critério
por excelência na especificação e na compreensão dos regimes de políticos reside na
imagem em que as relações de poder são percebidas ou vivenciadas em determinados
contextos societários.
42
Porém, Platão reconhece que de possíveis vícios da aristocracia podem nascer formas
estranhas, equivocadas de governo, entre elas, a timocracia, ou também conhecida
como timarquia, que se caracteriza pelo governo da ambição exercido por homens que
cultivam a arrogância e desprezam a cultura, os bons costumes, mas que, no entanto,
agem cotidianamente com o intuito de agradar a todo tipo de homens e cidadãos. É um
governante havido por elogios, honrarias e menções públicas.
43
Também em alguns momentos políticos da Roma antiga a forma aristocrática de poder
também se manifestou, bem como na Inglaterra dos tempos modernos, demonstrando
que a aristocracia tem uma significativa presença no governo das relações de poder
desde tempos imemoriais aos dias de hoje.
44
advindos da Revolução Francesa, a manutenção de privilégios e distinções raciais que
justificariam origem nobre ou de sangue perdeu sentido e a conformação de governos
majoritariamente aristocráticos perderam espaço para os governos constituídos no
âmbito dos Estados Democráticos de Direito.
IMPORTANTE
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)
45
• Art. 5º A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela
lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.
• Art. 6º A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de
concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve
ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são
iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos
públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas
virtudes e dos seus talentos.
• Art. 7º Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela
lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam
ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão
convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário
torna-se culpado de resistência.
• Art. 8º A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e
ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes
do delito e legalmente aplicada.
• Art. 9º Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar
indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser
severamente reprimido pela lei.
• Art. 10º Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas,
desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
• Art. 11º A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do
homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo,
todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.
• Art. 12º A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública.
Esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular
daqueles a quem é confiada.
• Art. 13º Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é
indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de
acordo com suas possibilidades.
• Art. 14º Todos os cidadãos têm direito de verificar, por si ou pelos seus representantes,
da necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu
emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração.
• Art. 15º A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua
administração.
• Art. 16º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem
estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.
• Art. 17º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser
privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob
condição de justa e prévia indenização.
46
Entre as principais fragilidades de governos aristocráticos, apresenta-se o fato
óbvio de que os intitulados nobres, ou eleitos socialmente os melhores nem sempre se
mostram à altura dos desafios e da liderança política necessária exigida pelas relações de
poder. Essa condição reside na inconsistência dos critérios e requisitos para determinar
quem realmente são os melhores, que via de regra se estabelece a partir do prestígio
social angariado a partir de diversas formas, ou por comprometimento e feitos em prol
da comunidade ou pelo fato de representar no imaginário social o comprometimento
com determinadas causas, sejam elas sociais, ambientais, econômicas ou culturais, por
apresentar-se também como um líder no meio militar, meio empresarial e meio popular.
Mas, o fato determinante em que residem os limites dos critérios que definem
a condição aristocrática é o fato de que não há garantia na definição e na escolha de
quem são os melhores mecânicos, professores, médicos, enfermeiros simplesmente
em função de seu estatuto profissional. Ademais no que concerne ao governo da
cidade, ao exercício da liderança política marcadamente caracterizada pelas exigências
de constante negociação nas relações de poder preservando os interesses públicos a
questão dos critérios de excelência que indivíduos necessitam alcançar para a condução
do governo é de outra ordem e grau de exigência.
47
Outro paradoxo que se apresenta a partir do argumento acima é o aumento
exponencial da burocracia estatal que passa a se apresentar como uma variável
aristocrática no exercício do governo. O sociólogo alemão Max Weber foi um dos
pesquisadores que no final do século XIX e início do século XX, se debruçou sobre a
questão da burocracia demonstrando que o avanço da racionalidade aristocrática/
burocrática no âmbito do Estado e das sociedades modernas sequestra a política do
uso comum e cotidiano por parte dos indivíduos/cidadão remetendo ou submetendo
decisões políticas de interesse geral aos imperativos técnico-administrativos, que em
fundo último implica a redutibilidade da esfera da política, do debate público em torno
dos interesses e das prerrogativas coletivas e sociais.
4 DEMOCRACIA
Se a monarquia o poder soberano pertence ao rei ou a rainha, na democracia o
poder soberano pertence a maioria, ao povo. A própria etimologia da palavra indica tal
condição. “A democracia, no sentido etimológico da palavra significa o “governo do povo”,
o ‘governo da maioria” (ROSENFIELD, 1985, p. 7). Portanto, não se trata do governo de
um só (monarquia), ou governo de alguns (aristocracia), mas do governo dos cidadãos na
forma ateniense da Grécia Antiga, ou do governo das massas constituídas por indivíduos
portadores de cidadania no âmbito dos Estados modernos e, atentos à opinião pública.
Desde suas origens na Grécia Antiga (Atenas século V a.C.) aos dias atuais,
a democracia como forma de governo das relações de poder constitutivas de toda
e qualquer sociedade humana apresenta-se controversa. Mesmo que a crítica à
democracia na Grécia Antiga tenha se apresentado em diversos pensadores, entre eles
Píndaro, Heródoto, Tucídides, Eurípides é com Sócrates que ela alcança intensidade,
influenciando decisivamente seu discípulo Platão.
48
Em seus diálogos em praça pública, Sócrates insiste com seus interlocutores no
reconhecimento da unidade indissolúvel entre o pensar e o agir. A excelência (areté) da
prática em suas dimensões ética, estética e política estava subordinada aos pressupostos
cognitivos alcançados pelo saber, ou pela busca incansável do conhecimento
(episteme). Para Sócrates toda e qualquer atividade humana para alcançar um grau
de excelência exige conhecimento do bem que pode resultar da ação que se pretende
realizar. Ou seja, não há virtude sem conhecimento. A ação moral requer conhecimento
e saber suficiente para sua execução. Assim, o alcance da coragem, da justiça, do bem
requer conhecimento para sua efetivação. Destas considerações depreende-se que o
exercício da política como arte da negociação tendo em vista a afirmação do espaço
público como locus por excelência da garantia do bem público e da felicidade requer
conhecimento e sabedoria por parte dos cidadãos.
49
Também para Aristóteles (2006) a democracia não se afigura entre as melhores
formas de governo. Para o filósofo estagirita três eram a formas adequadas de governo: a
monarquia (governo de um só), a aristocracia (governo dos melhores) e a politeia (governo
do povo). Porém, essas formas de governo estão sujeitas à degeneração derivados dos
interesses privados de grupos que passam a controlar o poder alterando o escopo do
governo na mediação das relações e poder colocando em risco os interesses da polis na
busca do bem comum. Essas formas de degeneradas de governo são respectivamente
a tirania, a oligarquia e a democracia.
50
Os argumentos relacionados até o presente momento demonstram que a
democracia como regime de governo, mesmo em suas origens gregas não gozava de
apreço. É preciso ter presente que a sociedade Ateniense do século III e a século II
a.C. das quais participam Sócrates, Platão e Aristóteles vivem o declínio da democracia
ocasionado pela decadência econômica advinda de derrotas militares atenienses
e perda do poder de influência sobre as demais cidades-estados gregas. Ou seja,
naquele contexto, Platão é membro da aristocracia ateniense decadente, bem como
Aristóteles, mesmo na condição de estrangeiro, gozava de uma condição aristocrática.
Sob tais pressupostos pode-se conjecturar que a crítica que tais pensadores dirigem
à democracia advém da profunda crise econômica e política em que se encontrava
Atenas e, cujos desdobramentos a conduzem à conformação de governos tirânicos.
51
Talvez se possa afirmar que de forma invariável as crises da democracia no
Ocidente conduziram à forma de governo autoritárias, cujas consequências, sobretudo,
nas primeiras décadas do século XX, se apresentam traumáticas a partir da instauração
de um estado de exceção permanente, bem como perpetuaram os horrores dos campos
de concentração.
52
de Dracon mantinha antigos vícios jurídicos, bem como a lei de talião, a lei da vingança,
permitindo a permanência de arbitrariedades e a violência como razão determinante
na resolução de conflitos. Tratava-se, portanto, de uma justiça seletiva que preservava
injustiças advindas de litígios entre os diversos grupos constitutivos da pólis.
No século VI a.C., mais precisamente em 594 a.C. foi eleito arconte Sólon.
Homem culto e com vasto conhecimento de outras culturas e povos e, que apesar
de sua condição aristocrática conduziu adequadamente as demandas populares
promulgando leis que primaram pela razoabilidade, conferindo a cada um o que lhe era
de direito, preservando os interesses da pólis. Uma das marcas do governo de Sólon foi a
anistia dos crimes políticos e a revogação do código draconiana. Nesta direção instituiu
um sistema judiciário baseado na argumentação a partir das causas e consequências
sociais de determinados delitos, ou situações de violência.
53
Assim, a democracia ateniense é o resultado desse conjunto de reformas de
Estado que deram oportunidades aos cidadãos, o exercício da liberdade política a
partir do reconhecimento da instância máxima das leis com condição de resolução nos
conflitos de interesses. Os atenienses compreenderam que não basta a promulgação
de leis adequadas para conformar uma ordem social justa, mas, sobretudo, o empenho
de cada cidadão na observância dessas leis, bem como em sua proteção e manutenção.
Tal condição demonstra que, desde suas origens, a democracia como regime de
governo de equalização das relações de poder, apresenta-se frágil, senão insustentável
em contextos em que os interesses privados advindos da necessidade de preservar
privilégios econômicos se apresentam como demanda individual, social, de um povo ou
de um Estado.
54
Sob tais demandas e pressupostos nascem os Estados de direito que se
apresentam inicialmente na forma de monarquias absolutistas que passam a legislar
sobre o direito de propriedade, sobre as práticas comerciais (mercantilismo) controlando
e vigiando as práticas econômicas e sociais no âmbito de seus territórios nacionais.
Evidentemente, os nascentes Estados nacionais, na forma de monarquias absolutistas,
mantiveram em suas estruturas de relações de poder heranças medievais, entre elas a
preservação de títulos e privilégios à nobreza. Assim, a nobreza passa a conformar um
extenso estamento patrimonialista necessário à manutenção de Estados absolutistas
governados por monarquias de caráter hereditário.
55
IMPORTANTE
O que é Iluminismo?
Iluminismo foi um movimento intelectual que surgiu no século XVIII na Europa, em especial
na França.
O momento histórico do Iluminismo também é chamado de Época das Luzes e isso porque,
com esse movimento, houve muitas transformações na cultura europeia. O teocentrismo deu
lugar ao antropocentrismo e as monarquias foram ameaçadas. O movimento influenciou os
Pactos Coloniais e o fim do Antigo Regime em diferentes países, além de ter exercido papel
primordial na Revolução Francesa.
Dizer que o movimento Iluminista foi antropocentrista é dizer que foi focado no Homem.
Origem do Iluminismo
56
A afirmação dos Estados Constitucionais, ou democráticos de direito implicaram entre
outras questões a afirmação do sufrágio universal como forma de legitimar o exercício
do poder executivo e, sobretudo, como forma dos cidadãos se fazerem representar no
âmbito do poder legislativo.
Assim, como a democracia grega antiga entrou em declínio por conta das
contradições políticas sociais de Atenas, do século III a.C., verifica-se que as democracias
representativas contemporâneas sofrem o mesmo estigma, ou seja, tudo indica que a
democracia como forma de equalização das relações de poder ou mesmo de confronto
entre os grupos populares e setores das elites das diversas sociedades tende no
decorrer das contradições e sobretudo de crises econômicas e sociais ferir de morte
a democracia. E neste diapasão que se pode compreender a crise das democracias
liberais de mercado de meados do século XIX, que conduzem ao poder em diversos
57
estados europeus governos fascistas e totalitários que desencadearam os dois maiores
conflitos mundiais do século XX, a Primeira e a Segunda-Guerra Mundial. Ou seja, sob
o discurso de defesa da democracia, governos totalitários desestruturam instituições,
retiram direitos individuais e civis, abandonando milhões de seres humanos à própria
sorte, ou mesmo justificando todo tipo de atrocidades infringidas a estes seres humanos.
INTERESSANTE
Acadêmico, acesse o conteúdo completo do artigo que possui como
temática central o conceito de democracia nas filosofias políticas de
Slavoj Žižek e Giorgio Agamben, através do link: na indicação da fonte
dos autores Felipe Onisto e Sandro Luiz Bazzanella. Disponível em:
https://bit.ly/3BvWtkd.
58
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
• O ser humano é por excelência um ser social. Essa premissa também é válida para as
mais diferentes espécies de seres vivos que coabitam na biosfera.
• O poder é resultante da força de que dispõe cada ser humano na superação dos
imperativos da necessidade e, na relação com outros seres humanos que impõem
limites às possibilidades do reconhecimento de si e do mundo. A força da canalização
da potência é a sua determinação.
• Desde suas origens na Grécia Antiga (Atenas século V a.C.) aos dias atuais, a
democracia como forma de governo das relações de poder constitutivas de toda e
qualquer sociedade humana apresenta-se controversa.
59
• A democracia como regime de governo, mesmo em suas origens gregas não gozava
de apreço. A sociedade ateniense do século III e a século II a.C., da qual participa
Sócrates, Platão e Aristóteles, vive o declínio da democracia, ocasionado pela
decadência econômica advinda de derrotas militares atenienses e perda do poder de
influência sobre as demais cidades-estados gregas.
• É preciso ter presente a diferença entre a democracia grega, marcada pela participação
direta dos cidadãos atenienses e a democracia representativa das sociedades
ocidentais modernas, caracterizadas como sociedades de massas em que o trabalho
e a vida individual assumem importância significativa, bem como o espaço do político
passa a ser atribuição exclusiva do Estado.
• Etimologicamente, aristocracia deriva do grego antigo dos temos aristoi, que significa
“melhor” e, kratos, que pode significar “poder” ou “governo”. Aristocracia é a forma de
governo do melhor ou que reúne com os melhores.
60
AUTOATIVIDADE
1 Salvaguardadas as diferenças entre a democracia grega antiga (participativa) e a
democracia moderna (representativa), constata-se que a democracia como forma
de governo, de equalização das relações, pode sofrer de um estigma diante de
crises políticas e econômicas. Que estigma é este e quais são suas consequências?
Argumente.
3 Assim como a democracia participativa direta dos antigos atenienses entrou em crise,
também as democracias representativas modernas entram em crise periodicamente.
Qual é o aspecto em comum entre democracia antiga e moderna que se pode
identificar na origem destas crises?
61
62
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
FORMAS MODERNAS DE GOVERNO:
DE MACHIAVEL A MONTESQUIEU E
TOCQUEVILLE
1 INTRODUÇÃO
Neste terceiro tópico, nós apresentaremos as contribuições de três autores
fundamentais, não somente à teoria política moderna, mas especificamente à Ciência
Política. Suas obras não se resumem apenas no pensamento político do Ocidente,
constituído por muitos autores e alguns essenciais à nossa compreensão. Os autores
citados precisam ser conhecidos desde os fundamentos da reflexão científica da política,
ao seu modo em que cada um deles procurou olhar para a política de um ponto de vista
que tornou esse olhar mais objetivo. Isso significa que as coisas do Estado e as disputas
do poder foram compreendidas levando em consideração o homem e as coisas como
elas são e não como deveriam ser.
63
Montesquieu, demonstra a lição tantas vezes negada, sendo sua negação a causa do
insucesso das nações. A lei é imprescindivelmente superior à vontade pessoal e deve
refletir de forma clara os interesses gerais dos indivíduos em comunidade, sobrepondo
o interesse coletivo ao pessoal. Por si só, isso leva ao ponto final e definitivo estágio da
ordem política: por mais que se possa e se deva questioná-la, como Tocqueville o fez,
a resposta deve ser sempre democrática. E essa resposta, Tocqueville não a justificou
moralmente, mas a demonstrou empiricamente em sua eficácia.
2 MACHIAVEL
Niccolò Machiavelli, nasceu em 3 de maio de 1469, em Florença na província
da Itália, onde também faleceu em 21 de junho de 1527. Pensador renascentista, foi
secretário governamental em sua cidade-estado, aproveitando toda a experiência de
vida pública para refletir sobre as coisas dos governos. Passou a maior parte da sua
vida refletindo e escrevendo sobre os assuntos do governante, suas relações com os
governados, sobre a racionalidade da ação do estadista e os interesses estratégicos de
uma república.
IMPORTANTE
“O Renascimento começou na Itália, no século XIV e difundiu-se
por toda a Europa, durante os séculos XV e XVI. Foi um período da
história europeia marcado por um renovado interesse pelo passado
greco-romano clássico, especialmente pela sua arte.
64
para abastecer Florença. Tinha em sua casa uma generosa biblioteca e obrigava seu
filho a estudar horas por dia, sobretudo em relação às leis. Aprendeu a ler em latim e
em grego, o que lhe forneceu um precioso acesso a escritos que foram conformando
sua formação intelectual humanista (renascentista) e o preparando para o exercício
profissional futuro e nas coisas do governo.
NOTA
Cidade-estado era uma “cidade autônoma que, na Antiguidade,
funcionava como o mais importante centro político, cultural e
financeiro, com poder absoluto sobre as demais cidades. Estado
absoluto e independente formado por uma cidade central e suas
áreas vizinhas. Cidade independente cujo governo é exercido por
seus membros ou cidadãos livres”.
FONTE: https://www.dicio.com.br/cidade-estado/.
65
DICA
“A Inquisição foi criada na Idade Média (século XIII) e era dirigida pela
Igreja Católica Romana. Ela era composta por tribunais que julgavam
todos aqueles considerados uma ameaça às doutrinas (conjunto
de leis) desta instituição. Todos os suspeitos eram perseguidos e
julgados, e aqueles que eram condenados, cumpriam as penas que
podiam variar desde prisão temporária ou perpétua até a morte
na fogueira, onde os condenados eram queimados vivos em plena
praça pública”.
NOTA
Chancelaria é a gestão administrativa destinada ao desenvolvimento da
política externa dos países. Tem a ver com autorizar, reconhecer governos
e atos de outras nações.
66
DICA
“Tito Lívio (em latim Titus Livius) foi um importante historiador romano
que viveu na época da Roma Antiga. Nasceu por volta do ano 59 a.C.,
na cidade de Pádua (atual Itália). Faleceu por volta do ano 17 d.C. na
mesma cidade em que nasceu”. O título do livro de Machiavel, “Cartas
a Tito Lívio”, remete a uma situação imaginária, em que Machiavel
estaria escrevendo a um historiador que admirava, numa Roma
igualmente por ele admirada, anterior ao nascimento de Cristo.
67
2.2 ESCRITOS
Quanto aos escritos de Nicollò Machiavel, são o resultado de uma obstinação
vocacional, por assim dizer sociológica e politológica. Ele mesmo dizia que as palavras
eram seu alimento e sem elas passaria fome. Na mesma época em que redigiu “O
príncipe” (1513), escrevia também os “Discursos para Tito Lívio”. Ambas as obras só
foram publicadas depois da morte do autor, entre 1531 e 1532. São livros que servem
de conselhos sobre como chegar ao poder, como se manter no poder e como preservar
as repúblicas. Muito mais do que exímios compêndios de sugestões pessoais, seus
livros revelam uma profunda preocupação em manter a unidade nacional e promover o
fortalecimento e o desenvolvimento de seu país.
NOTA
Obras notáveis de Machiavel:
• "O príncipe"
• “Discursos sobre os dez primeiros livros de Livy”
• "A arte da guerra"
• “A vida de Castruccio Castracani de Lucca”
• Histórias florentinas
• “A caminho de lidar com os súditos rebeldes dos Valdichiana”
• Mandrake
2.2.1 O príncipe
FIGURA 12 – CAPA DO PRINCIPAL LIVRO DE MACHIAVEL
68
Na literatura politilógica do Ocidente, a obra é classificada no gênero da
tradição de “Espelho para presidentes”, em que tais livros são manuais de conselhos
aos governantes, que, alegoricamente, se veriam refletidos neles. Nesse sentido, esse
gênero de livros surge ainda no século quinto a.C., com o livro Ciropedia, escrito pelo
historiador grego Xenofonte (431-350 a.C.) e continuam na Idade Média. Antes de
Machiavel, esses manuais eram muito lisonjeiros e aconselhavam que os príncipes se
guiassem por orientações estéticas e morais muitas vezes ineficientes.
NOTA
A perspectiva amoral encontramos, por exemplo, nos escritos do
historiador alemão Friedrich Meinecke (1862-1954) e do filósofo alemão
Ernst Cassirer (1874-1945). Machiavel praticamente inaugura essa forma
de interpretação na filosofia e prenuncia o método científico que séculos
depois distinguirá a Filosofia Política da Ciência Política. Trata-se de explicar
ações na política segundo as necessidades da política e não da moral. Elas
são condenáveis do ponto de vista da moral não por serem imorais (contra
a moral), mas por serem amorais (isentas de julgamento moral).
Percebamos como Machiavel vê, por exemplo, a distinção entre principados que
são herdados e os que são conquistados. O autor sugere que, quanto mais fácil as coisas
vêm para o príncipe, mais facilmente se vão, enquanto o reino que se adquire por meio
da conquista é mais fácil de preservar. A causa disso é que o medo de um novo príncipe
é mais forte que o amor por um príncipe hereditário. A vantagem de um novo príncipe
69
está no "pavor de punição", enquanto o príncipe que espera fidelidade de seus súditos
se desapontará. Nesse sentido, a imposição do poder pela ameaça, para Machiavel,
é mais eficiente do que a manifestação da benevolência. O príncipe descobrirá que
“cada um quer morrer por ele quando a morte está a distância”, mas, quando o príncipe
precisa de seus súditos, geralmente se recusam a servir como prometido. Assim, todo
príncipe, seja novo ou velho, deve se considerar um novo príncipe e aprender a confiar
nas "próprias armas".
O novo príncipe depende da sua própria virtude. Mas não se trata da virtude
pacífica, cuja definição encontramos na Bíblia. Trata-se da virtude no sentido de merecer
o que tem, através da astúcia, da disposição pessoal, da busca da sabedoria, do estado
de alerta, do senso de oportunidade e autoconfiança. Além disso, muita coragem e
determinação em agir segundo as circunstâncias e com objetivos bem definidos. É o
que se espera do príncipe, isto é, que tenha conhecimentos da arte da guerra e persiga
não somente a paz, mas a glória, a fim de ter o respeito dos súditos e deixar seu nome
para a posteridade.
70
virtude matar os cidadãos, trair os amigos, ficar sem fé, sem misericórdia e sem religião"
(MACHIAVEL, 1996, p. 64). A virtude teria, sobretudo, a função de reduzir o poder da
fortuna sobre os assuntos humanos, porque tende a tornar os homens vulneráveis e
pouco preparados para as dificuldades, impedindo que confiem em si mesmos.
71
A razão disso é que, tanto para o governante, quanto para o governado, os
meios são importantes, mas o que interessa mais a ambos os lados são os resultados.
Ainda que os meios utilizados pelo governante demonstrem suas boas intenções, isso
não garante o bom resultado. Pensemos contemporaneamente na perspectiva de
Machiavel: um governo pode não agradar a muitos pelas suas opiniões e pelos seus
gestos. Pode até cometer pequenos erros, mas tende a ter a aprovação da maioria se
conseguir melhorar a economia, a segurança e preservar a liberdade dos indivíduos. No
entanto, se falhar gravemente num desses pontos, perderá o apoio da maioria e abrirá
um vácuo que logo será ocupado por quem, ao povo, parecer mais virtuoso e confiável.
Ao invés de dizer como a política deveria ser, como fizeram seus precedentes,
esse pensador renascentista italiano passou a descrever a política como ela realmente
é. O pensador florentino não se preocupou em moralizar a política, como fizeram seus
precedentes. Separou a política da moral, demonstrando que a primeira funciona numa
lógica diferente da segunda por especificidades. Demonstrou que a sobreposição da
moral religiosa acima da política com frequência arruína as chances do bom governo.
Isso porque separa o religioso, o que vale é a intenção e para o político o que vale é o
resultado.
Mas não devemos confundir Machiavel com um herege, ateu e imoral. Isso fica
lá para o senso comum. Para nós, neste presente livro didático, importam os conceitos
e a análise da teoria política moderna, inerentes à Ciência Política. Esta ciência deve ao
pensador florentino o seu despertar, ainda que esta somente tenha surgido somente no
século XIX como tal. O que nós, estudantes das coisas da política, devemos a Machiavel
é sua forma de pensar cientificamente a política, isto é: procurar entender as coisas
como elas são e não como deveriam ser.
72
Assim, os interesses legítimos de uma nação e mais os interesses egoísticos,
se impõe em meio às disputas pelo poder. Machiavel fez perceber que não adianta um
governante lutar, disputar o poder e tentar preservá-lo, agindo apenas moralmente.
Mesmo em nome dos interesses de seu povo e da paz, um governante precisa usar suas
virtudes como a astúcia e a frieza, para não falar na crueldade em últimos casos. Boas
intenções são insuficientes, porque ele não poderá esperar isso de seus adversários.
Um governante deve ser justo, sempre que possível, mas deve usar de todos os meios
necessários para garantir o fim último da política: o poder.
3 MONTESQUIEU
Charles-Louis de Secondat, o Barão de La Brède et de Montesquieu, nasceu em
18 de janeiro de 1689, em Château La Brède, perto de Bordeaux na província da França
e faleceu em Paris, em 10 de fevereiro de 1755. Filósofo e político prestou extraordinária
contribuição intelectual à teoria política. Suas contribuições são notáveis na Filosofia
Política, na Ciência Política, no Direito, na Geografia, na Sociologia, na Antropologia e
na Economia. O esforço honesto e a genialidade analítica estão impressa em uma das
obras mais importantes do pensamento político ocidental, por ter contribuído para a
formatação do Estado moderno. Estamos falando de “O Espírito das Leis”.
73
em casa e depois no Collège de Juilly, perto de Paris e na diocese de Meaux.
Foi muito frequentado pelas famílias proeminentes de Bordéus, educados por
padres de sólida formação filosófica e iluminista.
74
3.3 A MATURIDADE INTELECTUAL
Montesquieu viajou bastante, conhecendo países e aproveitou a vida. Entre
1729 e 1731, conheceu a Alemanha, a Itália, a Holanda e a Inglaterra. Quando retornou à
França, resolveu finalmente dedicar-se à carreira intelectual. Nos dois anos seguintes,
isolou-se em sua propriedade, em La Bréde, e passou a escrever, permanecendo por
dois anos. Disso resultam um tratado sobre “A monarquia universal”, de 1734, além de um
ensaio sobre a “Constituição inglesa”, só publicado em 1748, juntamente com o notável
livro “Reflexões sobre as causas da grandeza e declinação dos romanos”, publicado
isoladamente em 1734. A reedição desta obra, em 1748, em conjunto com “Constituição
inglesa”, foi publicada desse modo em função da opinião de Voltaire, que afirmava que
os ingleses adoravam comparar-se aos romanos (SHACKETON, s.d., s.p.).
DICA
Voltaire, (1694-1778) foi um filósofo e escritor francês, um dos grandes
representantes do Movimento Iluminista na França. Foi também ensaísta,
poeta, dramaturgo e historiador. Voltaire, Montesquieu e Rousseau
foram os três nomes mais significativos do Iluminismo francês. Leia mais
informações em: https://www.ebiografia.com/voltaire/.
Mas a aspiração literária de Montesquieu foi além. Tinha a ideia fixa de promover
uma grande análise das instituições políticas e produzir um tratado. Por instituições,
entendam-se as leis. Por tratado, entenda-se uma abrangente análise e uma proposição
sobre o melhor funcionamento das leis e do Estado. Então, dedicou-se a fazê-lo, depois
de um intervalo de descanso. Em 1736, voltou ao autoexílio em sua propriedade e
começou a escrever o que viria a ser sua obra-prima, embora, com o tempo, tenha
voltado à vida social e visitado Paris com muita frequência.
Dez anos depois do início de sua empreitada, entregou a primeira versão de “Do
espírito das leis” a uma editora suíça. Lá, foram solicitadas correções e Montesquieu
não somente as fez como escreveu novos capítulos, até que a obra foi publicada pela
primeira vez no ano de 1748. Era um compêndio que reunia 31 temas em 1.086 páginas.
“O espírito das leis” foi logo reconhecido como um livro indispensável, rapidamente
difundido nos ambientes intelectuais dos principais países europeus. É considerado
uma das maiores obras de teoria política e história do direito até hoje. O pensador
francês fez uma retrospectiva de tudo que de mais importante havia sido escrito até
então e promoveu uma síntese, formulando algo totalmente inovador.
75
classificação, segundo a qual a república se caracteriza com base na força, a monarquia
com base na honra e o despotismo com base no medo. Essa nova perspectiva analítica
procurava demonstrar que a classificação não diz respeito à localização do poder
político, isto é, se reside no governo de um só, de poucos ou de muitos. Diferentemente,
a categorização das formas de poder se daria pela forma de condução do poder.
NOTA
A classificação tradicional apresenta a monarquia como o governo de
um só, a aristocracia como o governo de poucos e a democracia como o
governo da maioria.
Assim, o sexto capítulo do livro XI de “Espírito das Leis”, sobre a Constituição da In-
glaterra, tornou-se famoso, pelos debates e contribuições subsequentes à teoria política mo-
derna. Mais que isso, foi a análise de Montesquieu que mais tarde inspirou dois documentos
igualmente históricos na cultura política do Ocidente, quais sejam, a Declaração dos Direitos
do Homem e da Constituição dos Estados Unidos. O autor vai aos fundamentos que originam
as leis que garantem as liberdades de opinião, de credo e de expressão.
Um pouco antes, no Capítulo III, o teórico francês define o que é liberdade e inicia
por negar que ela seja sinônimo de situação onde todos fazem o que bem entendem.
Criticando a ignorância dos opositores da democracia, Montesquieu demonstra como
funciona o ambiente político inglês, à época, definindo assim a liberdade: “... numa
sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se
deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve querer. [...] A liberdade
é o direito de fazer tudo o que as leis permitem. Se um cidadão pudesse fazer tudo o que
elas proíbem, não teria mais liberdade” (MONTESQUIEU, 1996, p. 200).
77
DICA
O institucionalismo é uma corrente teórica na Ciência Política, na
Economia e no Direito que estuda a importância das instituições na vida
dos indivíduos. Investiga-se o poder de influência que exercem na ordem
social, tanto quanto se estudam os fatores de ordem social que interferem
no funcionamento das instituições. Por instituições, compreendam-se as
leis em geral. Não menos importante é compreender que, na linguagem
das ciências humanas, devemos observar a diferença entre as instituições
formais, que são as leis jurídicas, e as instituições informais, que derivam
dos costumes.
IMPORTANTE
“Os Discursos a Tito Lívio” configuram a segunda obra mais conhecida de Nicollò Machiavel.
Trata-se não somente de um conjunto de conselhos ao governante, mas uma expressão das
preocupações cívicas, patrióticas e, portanto, do pensamento republicano inerente às reflexões
de Machiavel. O pensador florentino é até hoje peça-chave à compreensão de toda a tradição
do republicanismo ocidental, cujas remanescências encontram-se no humanismo cívico.
“No último capítulo de O príncipe, Machiavel escreve uma apaixonada "exortação para tomar
a Itália e libertá-la dos bárbaros" – aparentemente França e Espanha, que haviam invadido
a península desunida. Ele pede um redentor, mencionando os milagres que ocorreram
quando Moisés levou os israelitas à terra prometida e termina com uma citação de um
poema patriótico de Petrarca (1304-74).
78
O capítulo final levou muitos a uma terceira interpretação de Machiavel como patriota e não
como cientista desinteressado. Como o príncipe, os Discursos sobre Livy admitem várias
interpretações. Uma visão, elaborada separadamente em obras dos teóricos políticos J.G.A
Pocock e Quentin Skinner, na década de 1970, enfatizam o republicanismo da obra e localizam
Machiavel em uma tradição republicana que começa com Aristóteles (384-322 a.C.) e continua
através da organização das cidades-estados medievais, a renovação da filosofia política clássica
no humanismo renascentista e o estabelecimento da república americana contemporânea.
4 TOCQUEVILLE
Alexis de Tocqueville nasceu em 29 de julho de 1805, em Paris, e faleceu em
16 de abril de 1859. Foi estadista, filósofo político e historiador que, por suas importantes
observações sobre a política e a cultura, inspirou a Sociologia e da Ciência Política, ciências
que surgiram após a sua morte. Sua obra mais conhecida é também um dos maiores clás-
sicos de todos os tempos, intitulado “Democracia na América, em dois volumes (1835-1840).
Nesse livro, aparece uma descrição muito original sobre a organização social e política dos
Estados Unidos da América, no início do século XIX. De ideias liberais e democráticas, de-
monstrou de modo original as relações entre cultura e instituições políticas.
79
FIGURA 15 - O JOVEM ALEXIS DE TOCQUEVILLE, AUTOR DE “DEMOCRACIA NA AMÉRICA”
80
4.1 OBRA
Em suas duas principais obras, a mencionada “Democracia na América” e
o igualmente brilhante livro “O Antigo Regime e a Revolução”, o pensador francês
faz uma excelente apreciação sobre a organização social e política moderna e
seus vínculos com a religião cristã. Especificamente, o ponto de convergência
que une o cristianismo à democracia está na ideia de igualdade entre os homens.
Essa brilhante vinculação causal lhe confere notável originalidade e ajudará a
impulsionar o surgimento das Ciências Sociais, notadamente da Sociologia e da
Ciência Política, como já dissemos. A relação entre religião e democracia inspirou,
por exemplo, o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) que, um século depois
fez a brilhante relação entre religião e desenvolvimento econômico.
NOTA
Jurista e economista, o pensador alemão Max Weber foi também um dos
fundadores da Sociologia. Entre suas obras estão “Economia e Sociedade”,
“Ciência e política: duas vocações” e “Ética protestante e o espírito do
capitalismo”. No último livro mencionado, Weber faz uma surpreendente
relação entre a religião e o desenvolvimento econômico, de modo
paralelo ao que Alexis de Tocqueville fez um século antes entre religião e
desenvolvimento das instituições políticas.
81
O entendimento de Tocqueville sobre a democracia está relacionado à ideia
do autogoverno, isto é, da capacidade comunitária de organizar a vida coletiva. Não
obstante, sua percepção sobre a democracia estadunidense vai além. Tocqueville
entende a democracia não apenas como autogoverno, mas como um modo de vida
abrangente. Em seus escritos, ele explica os efeitos da democracia nos hábitos teóricos
e práticos no cotidiano do povo americano. Ao observar atentamente o dia a dia da
Sociedade estadunidense, o autor percebe como a necessidade de auto-organização
comunitária produz efeitos originais. Em face da distância de um poder central, homens
e mulheres letrados, leitores da Bíblia, conseguem pôr em prática, às duras penas,
preceitos e objetivos que até então, eram só conhecidos nas teorias políticas.
Mas, acima de tudo, Tocqueville chama à atenção de seus leitores para questões
de liberdade intelectual e política. Observa que em qualquer comunidade estadunidense
existem um ou mais jornais. Chama-lhe a atenção o fato de não serem jornais muito
bem elaborados e de maior teor intelectual. O que lhe chama à atenção é o fato de
que os habitantes estadunidenses são leitores aficionados, valorizando a condição de
alfabetizados. Vê, nesse fato, um extraordinário exemplo de senso de autonomia por parte
dos indivíduos, fator fundamental à construção de uma Sociedade e uma nação fortes.
82
à educação estão os pilares da prosperidade. Para reforçar essa ideia, Tocquevile faz
questão de observar como as famílias estadunidenses, em geral, valorizam o papel das
mulheres. O fato de a elas ser reservado o papel de educação e instrução dos filhos, nota
Tocqueville, redobraria as possibilidades de desenvolvimento.
NOTA
A colonização dos EUA inaugura a experiência de uma república
federativa, referência para outras nações, o que inclui o Brasil. Trata-se
de edificar um Estado comprometido com “a coisa pública” e dividido
em unidades federativas com relativa autonomia e compromisso com a
unidade do país através de uma Constituição federal. Essa experiência
histórica forjou leis, normas e regras concordantes com as aspirações
gerais da sociedade estadunidense.
83
A outra advertência está relacionada ao efeito do próprio crescimento
das democracias, que Tocquevile antevia ao observar o desenvolvimento da
nação norte-americana. Admitia que o ambiente cultural e, principalmente, o
desenvolvimento institucional democrático geraria rápido crescimento do País.
Esse crescimento tenderia a levar as pessoas a se individualizar e se concentrar
cada vez mais nas coisas da economia, deixando as coisas da política ao
Estado centralizado. O desejado bem-estar material, somado à comodidade da
proteção leviatânica do Estado centralizado, ameaçaria a própria democracia,
causando a displicência do homem comum com as preocupações republicanas.
Para Tocqueville, o grandioso destino dos EUA dependia de vigilância constante
a essa tendência. Impressionante a atualidade de Tocqueville!
DICA
Um dos maiores clássicos do pensamento político de todos os tempos:
84
O que mais incomodava Tocqueville era a crescente apatia política e
aquiescência de seus concidadãos nesse crescente paternalismo. Seus capítulos sobre
o individualismo e a centralização em “Democracia na América” continham o gérmen
do que viria em “O antigo regime e a revolução”, isso é, um novo aviso com base nessas
observações. Ele argumentou que o despotismo não acentuado e de paternalismo
leviatânico que a França vivia, seria invisivelmente destrutivo à democracia. Tocqueville
reivindicava uma Sociedade atenta e ativa, tal qual ele via na América do Norte.
IMPORTANTE
O despotismo é uma forma de governo, na qual, o poder está
concentrado na figura de uma pessoa, que exerce o poder de
modo absoluto, sem paralelo. Por ser absoluto, é sinônimo de
absolutismo, comum entre os monarcas que governavam sem
parlamento. Por sinal, o que distingue o Estado moderno de
formas anteriores da ordem política é justamente a limitação do
poder absolutista e despótico, através da instauração de leis e da
posterior divisão dos poderes, sugerida por Montesquieu.
85
Para Tocqueville, a Revolução Francesa centraliza ainda mais a administração
da coisa pública. Se o regime monárquico, anterior à revolução, era absolutamente
contrário às liberdades individuais e coletivas, a Revolução Francesa declarava a defesa
geral da liberdade. No entanto, instaurado o novo regime republicano, as decisões e
atitudes subsequentes dos governos logo impuseram progressivas restrições. A
grande promessa era a igualdade de condições a todos. No entanto, os excessos e
as precipitações, o espírito de vingança e a sede de poder e controle, tanto quanto a
desconfiança interpessoal, resultaram em medidas restritivas e injustas. Nesse sentido
“o ódio ao antigo regime excedeu todos os outros ódios [...] e o medo de seu retorno
excedeu todos os outros medos” (TOCQUEVILE, 1997, p. 15).
IMPORTANTE
“O filósofo irlandês Edmund Burke (1729-1797) notabilizou-se pelo
seu ensaio “Reflections On the Revolution In France” (Reflexões sobre a
Revolução na França), publicado em 1790, no qual, desferiu duras
críticas à revolução que havia se desencadeado na França em 1789 e,
até então, prosseguia. Desde a época da publicação do referido ensaio,
Burke foi alvo tanto de detrações quanto de elogios. É considerado, hoje,
um dos países do conservadorismo político moderno”. Leia mais em:
https://bit.ly/3sZXa1z.
Todo modo, Tocqueville era um pensador liberal. Mesmo sua origem aristocrática
não fez dele um defensor da monarquia. Ao contrário, era um entusiasta da democracia,
como deixa absolutamente explicitado em “Democracia na América”. E, em “O antigo
regime...”, cabe-lhe demonstrar os equívocos da monarquia tanto quanto denunciar
as contradições da democracia francesa, que pareceu a ele mais um continuísmo de
antigos vícios do que instaurador de novas virtudes. Não escolheu nem um regime,
tampouco defendeu o outro. Foi crítico, comprometido com sua percepção das coisas,
sem compromisso com o engajamento parcial e interesseiro.
86
Para Alexis de Tocqueville, o importante era trazer à tona a necessária
controvérsia, o debate intenso e honesto, sem compromissos reacionário ou
revolucionário. Entender as coisas como elas são, na concepção moderna da ciência, foi
seu método, o método científico. Mas não se tratava do posicionamento radicalmente
imparcial e amoral (isento de moral) do qual fora acusado muitas vezes Machiavel. Não
fora essencialmente a favor ou contra qualquer revolução. Seu compromisso era com a
verdade, sua predisposição à mudança e sua convicção era democrática.
87
LEITURA
COMPLEMENTAR
MACHIAVEL E A AUTONOMIA DA POLÍTICA
88
(2008). Isso significaria a retomada do humanismo cívico, o que pressupõe a construção
de um diálogo político entre uma burguesia em ascensão desejosa por poder e uma
realeza detentora da coroa. É preciso lembrar que a formação do Estado moderno
se deu pela convergência de interesses entre reis e a burguesia, marcando-se um
momento importante para o desenvolvimento das práticas comerciais e do capitalismo
na Europa. Assim, Machiavel assistia em seu tempo um maior questionamento do poder
absoluto dos reis ou de alguma dinastia, como os Médici em Florência, uma vez que
nascia uma elite burguesa com seus próprios interesses, com a exacerbação da ideia de
liberdade individual. Questionava-se o poder teocêntrico e desejava-se a existência de
um príncipe que, detentor das qualidades necessárias, isto é, da virtú, poderia garantir a
estabilidade e defesa de sua cidade contra outras vizinhas.
Dessa forma, considerando esse cenário, Machiavel produziu sua obra com
vistas à questão da legitimidade e exercício do poder pelo governante, pelo príncipe. A
legitimação do poder seria algo fundamental para a questão da conquista e preservação
do Estado, cabendo ao bom rei (ou bom príncipe) ser dotado de virtú e fortuna, sabendo
como bem articulá-las. Enquanto a virtú dizia respeito às habilidades ou virtudes
necessárias ao governante, a fortuna tratava-se da sorte, do acaso, da condição dada
pelas circunstâncias da vida.
Para Machiavel “... quando um príncipe deixa tudo por conta da sorte, ele se
arruína logo que ela muda. Feliz é o príncipe que ajusta seu modo de proceder aos
tempos, e é infeliz aquele cujo proceder não se ajusta aos tempos” (MACHIAVEL,
2002, p. 264). Conforme afirma Francisco Welffort (2001) sobre Machiavel, “a atividade
política, tal como arquitetara, era uma prática do homem livre de freios extraterrenos,
do homem sujeito da história. Esta prática exigia virtú, o domínio sobre a fortuna”
(WELFFORT, 2001, p. 21).
Contudo, a forma como a virtú seria colocada em prática em nome do bom governo
deveria passar ao largo dos valores cristãos, da moral social vigente, dada a incompatibilidade
entre esses valores e a política segundo Machiavel. Para Machiavel, “não cabe nesta imagem
a ideia da virtude cristã que prega uma bondade angelical alcançada pela libertação das
tentações terrenas, sempre à espera de recompensas no céu. Ao contrário, o poder, a honra
e a glória, típicas tentações mundanas, são bens perseguidos e valorizados. O homem de
virtú pode consegui-los e por eles luta” (WELFFORT, 2006, p. 22). Assim, essa interpretação
Machiaveliana da esfera política foi que permitiu surgir ideia de que “os fins justificam os
meios”, embora não se possa atribuir literalmente essa frase a Machiavel. Além disso, fez
surgir no imaginário e no senso comum a ideia de que Machiavel seria alguém articuloso
e sem escrúpulo, dando origem à expressão “maquiavélico” para designar algo ou alguém
dotado de certa maldade, frio e calculista.
Machiavel não era imoral (embora seu livro tenha sido proibido pela Igreja), mas
colocava a ação política (construída pela soma da virtú e da fortuna) em primeiro plano, como
uma área de ação autônoma levando a um rompimento com a moral social. A conduta moral
89
e a ideia de virtude como valor para bem viver na sociedade não poderiam ser limitadores
da prática política. O que se deve pensar é que o objetivo maior da política seria manter
a estabilidade social e do governo a todo custo, uma vez que o contexto europeu era de
guerras e disputas. Nas palavras de Welffort (2001), Machiavel é incisivo: há vícios que são
virtudes, não devendo temer o príncipe que deseje se manter no poder, nem esconder seus
defeitos, se isso for indispensável para salvar o Estado. “Um príncipe não deve, portanto,
importar-se por ser considerado cruel se isso for necessário para manter os seus súditos
unidos e com fé. Com raras exceções, um príncipe tido como cruel é mais piedoso do que os
que por muita clemência deixam acontecer desordens que podem resultar em assassinatos
e rapinagem, porque essas consequências prejudicam todo um povo, ao passo que as
execuções que provêm desse príncipe ofendem apenas alguns indivíduos” (MACHIAVEL,
2002, p. 208). Dessa forma, a soberania do príncipe dependeria de sua prudência e coragem
para romper com a conduta social vigente, a qual seria incapaz de mudar a natureza dos
defeitos humanos.
90
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:
91
AUTOATIVIDADE
1 O pensador renascentista Nicolau Machiavel é considerado o fundador da Ciência
Política, por sua forma inovadora de abordar as questões relacionadas ao Estado,
às disputas e à manutenção do poder por parte do governante. É considerada
moderna porque, ao invés de colocar a moral religiosa e teocêntrica no centro ou
como ponto de partida, ele resolve pensar antropocentricamente, isto é, a partir do
humano, de suas imperfeiçoes e necessidades.
92
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Crise de legitimidade. Tradução Moisés Sbardelotto. IHU – UNISINOS.
Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2015/04/20/agamben-crise-
delegitimidade/. Acesso em: 18 jun. 2016.
AGAMBEN, G. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução Davi Pessoa Carneiro.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
AGAMBEN, G. Note liminaire surle concept de démocratie. In: Démocratie dans quel
état? La Fabrique 2009. English translation Columbia University Press 2011.
ARISTÓTELES. A política. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
BOBBIO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos. Rio,
Elsevier, 2000.
93
FIORI, J. L. Estado de bem-estar social e crise. In: Instituto de Estudos Avançados
da Universidade de São Paulo – USP. Disponível em: http://www.iea.usp.br/
publicacoes/textos/fioribemestarsocial.pdf. Acesso em: 14 nov. 2019
LEBRUN, G. O que é poder. Tradução Renato Janine Ribeiro. Silvia Lara Ribeiro. São
Paulo: Abril Cultural: Brasiliense, 1984.
PLATÃO. A república. Tradução Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins
Fontes, 2104.
WOLFF, R. P. In defence of anarchism. New York, Harper, 1970. Disponível em: https://
theanarchistlibrary.org/library/robert-paul-wolff-in-defense-of-anarchism.pdf. Acesso
em: 15 nov. 2019.
94
ANOTAÇÕES
95
96
UNIDADE 2 —
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará
autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
97
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!
Acesse o
QR Code abaixo:
98
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
ORIGEM, OBJETO E MÉTODO
1 INTRODUÇÃO
A Ciência Política estuda evidentemente as coisas da política, tendo-as como
conjunto temático de investigação prioritário. Isso quer dizer que investiga as coisas
relacionadas à organização, aos acordos e disputas do poder formal e informal. Tem a ver
com a ordem política, o sistema político, as coisas do Estado, os três poderes constitucionais
e outros poderes sociais que ali interferem. Tem a ver com o conjunto de instituições
formais (legais) ou informais (culturais), com os partidos políticos e outras organizações
de união, força e representação. Tem a ver com representação de interesses, públicos,
setoriais e privados, com participação social, civismo, associação, cooperação, diálogo e
negociação, enfim, tem a ver com os comportamentos dos agentes políticos, que a rigor
todos somos, em busca da satisfação de suas aspirações e convivência coletiva. São as
coisas da “polis” as coisas do poder, o “diamante” da política.
Embora seja sua especialidade, as coisas da política não são sua exclusividade.
Outras ciências ou áreas do conhecimento estudam as coisas da política. Filosofia,
Sociologia, Antropologia, Economia, Geografia e História, além do Direito, é claro,
estudam os objetos da política. Num universo cognitivo interdisciplinar e, por isso
mesmo, em expansão, engenheiros, matemáticos, médicos, cientistas da computação,
físicos e biólogos estudam coisas da política, relacionando-as ou comparando-as
com fenômenos pertencentes as suas especificidades. Nessa perspectiva, áreas de
conhecimento, profissões e disciplinas vão se tornando mais e mais híbridas. Isso não
muda o fato sacramentado de que cada ciência continua tendo um campo investigativo
que lhe é de maior responsabilidade do que de outras, acontecendo o mesmo com a
Ciência Política.
99
Nessa perspectiva, a busca do entendimento das coisas requer a devida
separação entre o método científico e nosso ímpeto moral e ético. É o princípio da
investigação científica, válido para as coisas da natureza, como para as coisas da
sociedade, incluindo a políticas. Nesses termos, exige a separação entre ciência e
política, como sugeriu o sociólogo alemão Max Weber, em seu livro “Ciência e política:
duas vocações”. Nesta obra, o autor recomenda a isenção política ao estudar e ensinar
política. Qualquer coisa além disso é uma presunção dogmática e pode levar a graves
equívocos. Quando Weber escreveu esse livro, originalmente uma conferência em uma
universidade, estava criticando as atitudes de seus pares professores que insistiam em
fazer política em sala de aula. Ele reconhecia a inevitável paixão que a política causa e a
impossibilidade de sermos imparciais. Mas asseverava que na busca do entendimento
das coisas da política, as paixões mais prejudicam do que ajudam.
IMPORTANTE
CIÊNCIA E POLÍTICA: duas vocações
O propósito de Max Weber neste livro é fazer a distinção entre o que é a prática científica
e o que é o fazer política. O significado dessa empreitada é dizer ao público universitário
que a Universidade é lugar de fazer ciência e não política. Mas não se trata de uma postura
reacionária do autor. Trata-se da manifestação de seu incômodo com o fato de que o
engajamento político, proposto por parte dos docentes universitários na Alemanha de sua
época (da direita à esquerda) comprometerem o método científico nas ciências sociais. Ao
declinarem da imparcialidade no ato de interpretar a realidade política e sugerir como as
coisas deveriam ser e não como de fato são, docentes abriam mão, segundo Weber, da
ciência, para fazer proselitismo.
100
Para um comprometimento científico, ao professor recomenda-se o desencantamento do
mundo – isto é, demonstrando que a realização das coisas para o destino dos homens depende
exclusivamente do esforço humano, sem qualquer recorrência a forças extra-humanas. As
explicações sobre a realidade, inclusive política, devem ser estritamente racionais. Nenhum
apelo ao irracional, isto é, à magia, à religião e à paixão por valores e ideais, será exitoso.
Todavia, Weber faz uma ressalva importante: todo esforço científico, portanto, racional,
deriva do irracional, isto é, de uma paixão por aquilo que vamos estudar e tentar
compreender racionalmente. A preferência estética e ou emocional pelo objetivo de nosso
interesse investigativo é uma condição muito importante, a bem da verdade, igualmente
recomendável.
Do mesmo modo que se recomenda a razão como único método de compreensão das
coisas, sugere-se a paixão, o interesse, pelo assunto que escolhemos investigar. Seja o
Estado, os partidos políticos, as ideologias, os regimes, os poderes e suas relações, as leis
e os costumes (instituições formais e informais), estudar racionalmente aquilo que nos
interessa: eis a fórmula científica, na qual o irracional e o racional se encontram.
O que fazemos depois com o que apreendemos sobre a política é outra coisa.
É claro que estudarmos para uma profissão e para o nosso intelecto, com o objetivo de
usar o conhecimento a nosso favor, inclusive do ponto de vista ético e moral. Fazemos
escolhas pessoais, éticas, morais e utilitaristas com o conhecimento adquirido e isso é
absolutamente legítimo. O conhecimento que a Filosofia Política e a Ciência Política nos
oferecem é usado por agentes políticos, por intelectuais e profissionais, seja do Direito,
do Serviço Social, da Economia ou qualquer outra área profissional. Pode ser usado
para o bem ou para o mal, resultante de escolhas éticas ou antiéticas de governantes,
legisladores, juristas ou advogados etc. Isso vale para qualquer um de nós, podendo
nos engajar em boas causas, lutar pelo que é justo, protestar contra as leis ou querer
101
mudar o mundo, não importa. É quando agimos por interesses, paixões e valores, seja
como for. É quando agimos. Mas, enquanto estudamos a realidade, querendo entendê-
la, devemos nos esforçar por compreender gostando ou não do que vemos.
É assim que a Ciência Política pode realmente nos ajudar a fazer do conhecimento
o uso que nos convier. Reconheça-se, que seja muito difícil estudar os comportamentos
humanos nas disputas pelo poder e no estabelecimento e cumprimento das regras
de convivência. Em política com frequência há distinções entre a palavra e a ação e
isso não deve ser ignorado, nem ocultado ao contrário. Isso serve para o estudo das
instituições políticas e para as leis em geral, que revelam, mas podem ocultar intenções
e devemos perseguir os seus significados e efeitos. Com muito esforço intelectual,
e levando isso em consideração, cientistas políticos conseguem, como em qualquer
ciência, estabelecer regras de entendimento, conceitos e leis interpretativas que geram
teorias. Esse conhecimento pode aprimorar a confecção de leis e melhorar as decisões
governamentais e pessoais. É assim que esperamos que o acadêmico entenda a
utilidade da Ciência política.
102
Feito isso, esses precursores da Ciência Política passaram a se distanciar,
progressivamente, da Filosofia Política, do Direito e da História para se debruçarem
sobre os problemas da organização e funcionamento do Estado moderno em sua época,
a segunda metade do século XIX. Interessavam-se em compreender os fenômenos
especificamente políticos, notadamente os assuntos de Estado, as rotinas das
decisões, as forças em jogo e os resultados dos jogos de poder, incluindo as relações
entre os poderes, os efeitos das leis e os problemas da burocracia estatal. Passaram
a compreender que os problemas e insuficiências do funcionamento do Estado não
estavam restritos ao heroísmo e liderança de grandes líderes. Tratava-se tanto quanto
de uma racionalidade cotidiana, de características da burocracia, de profissionalismo,
entre outros fatores que vão além de boas intenções e sugestões.
NOTA
“Pós-guerra” é a denominação atribuída a períodos que se seguem a uma
guerra. Normalmente, o período reflete as problemáticas causadas pela
guerra, como crises sociais e econômicas, e as consequências políticas e
geográficas do conflito bélico. Na historiografia mais contemporânea, o
pós-guerra quase sempre se refere ao período entre 1945 e 1955, ou seja,
após a Segunda Guerra Mundial.
103
demonstrável da realidade. É assim que separamos o rigor científico do senso comum.
Nesse sentido, com o objetivo de distinguir a Ciência política de outras áreas do
conhecimento humano, a politóloga italiana Donatella Della Porta (2003) apresenta a
seguinte explanação:
NOTA
O método empírico tem a ver com a verificação experimental do
objeto estudado. Assim, a pesquisa científica é um procedimento em
que o pesquisador verifica in loco o fenômeno que está investigando.
Nas ciências sociais, o método empírico é chamado de pesquisa de
campo, sendo realizado por meio de entrevistas, pesquisas de opinião
e pesquisa documental.
2.1 O PODER
Embora vimos o conceito de poder na primeira unidade deste livro didático, é
importante retomar o tema, não apenas por ser o objeto principal da Ciência política, mas
por seus desdobramentos interpretativos. Nessa direção, cabe dizer que a perspectiva
estritamente científica que começa a se intensificar em meados do século XX, concentra-
104
se nos fenômenos de disputa pelo poder. Antes, ainda havia abordagens de cunho legal
sobre a política, valorizando a importância das leis como o fator explicativo maior para o
funcionamento da ordem política. As abordagens norte-americanas na Ciência política
se contrapuseram a essa perspectiva tipicamente europeia. Nessa direção, a Escola
de Chicago, promovendo a interdisciplinaridade entre economia e política passou a
centrar seus esforços no funcionamento real das coisas, levando em consideração os
comportamentos dos agentes políticos e suas motivações.
NOTA
A Escola de Chicago é uma denominação que, na Sociologia, se refere a
um grupo de cientistas sociais que, a partir da década de 1950, produziu
inúmeros trabalhos de pesquisa de campo na área da Sociologia e
da Ciência política. Além da tradição na pesquisa empírica, promoveu
importante aproximação interdisciplinar entre política e economia para
o estudo dos comportamentos dos indivíduos na esfera política. Dentre
os principais nomes da Escola de Chicago, destacam-se: Florian Znaniecki,
Robert E. Park, William I. Thomas, Louis Wirth e Robert McKenzie, entre
muitos outros.
105
Vários são os dispositivos, isto é, os recursos possíveis ao exercício do poder.
Como lembra Della Porta (2003), o primeiro dos dispositivos do poder é a força. Nessa
ótica, percebemos que em geral nosso modo de vida na polis, isto é, em sociedade, é
amplamente regulado por leis, normas e regras constitucionalmente respaldadas (nem
sempre), que limitam nossa liberdade de ação e de satisfação das nossas vontades
pessoais. Isso vai desde as obrigações com a propriedade, passa pelo lazer e pelo
trabalho, como na convivência diária em sociedade. Nossa desobediência nos custa
reprovações e punições. O poder que o sistema de vida político tem de nos ameaçar
e meter medo é ilimitado. Vai desde a ameaça física, passando pelas pressões morais,
até as psicológicas. E os instrumentos não são apenas legais e normativos em geral,
mas dependem dos recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados, no que os drones
serão os maiores exemplos.
106
evoluiu sob as pressões da sociedade, pelo mecanismo das eleições, conjugado ao
aumento da informação, das liberdades civis e do aumento da instrução. Uma coisa leva
a outra e o produto político concreto tem sido o Estado de bem-estar e de direitos. Isso
foi conduzindo o interesse da Ciência Política, cada vez mais a investigar a distribuição
do poder na sociedade.
107
legislativo, no executivo e no judiciário). Por extensão, “compra”, financia, patrocina e
direciona os meios de comunicação (jornais, rádios, revistas, televisão, redes sociais,
escolas, universidades etc.), interferindo na formação da opinião pública. Pesquisadores
como o sociólogo estadunidense Floyd Hunter, autor de “Community Power Structure”
(apud STONE, 1988), demonstraram como o poder dos negócios interfere nos assuntos
cívicos de cidades típicas dos EUA.
Mas duas coisas devem ser observadas. A primeira diz respeito à valorização da
pesquisa empírica, o que distingue a ciência de outras formas de conhecimento. Sim,
porque uma coisa é deduzir que assim seja e que seja assim até hoje. É absolutamente
normal que sejamos induzidos a pensar, imaginar e deduzir, segundo a nossa
capacidade de raciocínio e entendimento lógico das coisas. Assim formulamos nossos
108
pensamentos sobre as coisas da política e deduzimos, mesmo sem comprovação. Outra
coisa, no entanto, é demonstrar que certas coisas acontecem, através dos resultados
de pesquisas empíricas e explicar como exatamente isso acontece, a fim não apenas
de saber disso, mas de saber como as coisas funcionam no sistema e quem as opera.
Esse é o trabalho da Ciência Política, não se reduzindo a deduções bem argumentadas
ou a achismos vulgares. O método científico é imprescindível, para que não tenhamos
dúvidas e fiquemos no “disse, me disse”. É, sobretudo, para que encaremos as coisas
com realismo e tenhamos atitudes realistas sobre a realidade. A ciência nos “finca os
pés no chão” e nos permite não apenas melhor entendimento, mas, diante da sapiência,
fazer as melhores escolhas.
Mas, com o tempo, Dahl demonstra, que o poder político adquire uma aura
de autonomia em relação aos outros poderes. Progressivamente, o poder político se
destaca e passa a residir na habilidade de governantes, legisladores, entre outros,
de estabelecer acordos, consensos e redes de cooperação e compromisso entre os
109
inúmeros grupos sociais. No caso particular de New Haven, Dahl observa isso por
ocasião das discussões e decisões tomadas no processo de reconstrução do plano
de saneamento da cidade. Durante muito tempo, a projeto não andava por interesses
díspares, mas, com o tempo, pelo esforço de alguns agentes-chave com capacidade de
diálogo, o projeto começa a ter movimento, através do estabelecimento de ampla rede
de apoio ao presidente do legislativo municipal. Robert Dahl consegue demonstrar, em
detalhes, como o principal líder do processo conseguiu comprometer a todos com o
projeto, negociando tais apoios em troca de garantias a cada grupo. Isso deixou claro
o quanto o poder estava disperso socialmente.
NOTA
Poliarquia, literalmente, quer dizer poder de muitos. Conceitualmente, é
um termo sugerido pelo cientista político estadunidense Robert Dahl, e diz
respeito a um regime em que existe um “elevado grau de institucionalização
da competição pelo poder, isto é, de existência de regras claras, públicas e
obedecidas, associadas à extensa participação política”.
110
segundo Dahl (Apud BOBBIO, 1991), que o poder não reside simplesmente no cargo ou
no status de quem o ocupa, tampouco se resume ao poder econômico. Isso acontece,
notadamente, em ambientes democráticos, em que o poder é dissipado e relacional,
isto é, está distribuído entre muitos agentes e depende da capacidade de estabelecer
relações para concretizar objetivos.
111
Do outro lado, está a escola pluralista, que surge no início da segunda
metade do século XX, passada a Segunda Guerra Mundial. E nasce nos Estados
Unidos da América, uma nação que, desde o seu surgimento, está caracterizada por
significativa desconcentração do poder. Por intermédio da historiografia e por estudos
remanescentes da sociologia, como em “Democracia na América”, de Tocqueville,
sabemos que o Estado norte-americano é o resultado de um processo chamado
“bottom up”, ou seja, de baixo para cima. Nesse sentido, precisamos reconhecer que a
sociedade estadunidense participou, desde o início da constituição da ordem política
de seu País. Constituída dessa maneira, a população dos EUA soube preservar, através
de garantias constitucionais, grande autonomia federativa e individual. Isso significa
uma sociedade com alto capital social, facilitando a emergência de lideranças com
mais facilidade, desconcentrando o poder.
NOTA
Capital social é um conceito que diz a respeito às normas informais,
hábitos e relações de cooperação e confiança entre indivíduos numa
comunidade. A ideia será tratada na Unidade 3 deste livro didático.
112
país é melhor? Não é somente a economia que explica. Por que a média instrucional, a
desigualdade social, os índices e as condições de saúde ou o nível tecnológico, ou ainda,
de expressão das liberdades, é maior ou menor, aqui e ali? Vários são os fatores. Com
isso, não há a menor dúvida: em relação a todos, o fator político é sempre importante.
Mais que isso, é preciso dizer: as melhores condições estão quase invariavelmente em
que o poder é mais desconcentrado.
O poder político também conflita com o poder econômico privado, que o faz na
defesa de direitos trabalhistas, defendendo e garantindo reajustes salariais. Também
o faz investindo em políticas compensatórias aos segmentos mais necessitados,
113
promovendo transferências de rendas e garantindo a legalidade de movimentos
grevistas, entre outras formas de assistência e proteção. Toda essa forma de resistência
ao poder econômico privado depende de um sistema jurídico e de um aparato jurídico.
Depende igualmente de um aparato burocrático no Executivo e no Legislativo, cujo
custo a sociedade aceita manter em troca da eficiência do serviço público em toda a
sua complexidade. Isso tudo comporta uma volumosa estrutura legal e operacional de
proteção e garantias legais, que chamamos de Estado de bem-estar social e de direitos.
O que a sociedade está sempre a se perguntar é até que ponto isso se justifica
e até que ponto isso onera o esforço da sociedade. É que essas relações se intensificam
e se tornam bastante interessantes de serem mantidas, não apenas pelas nobres
intenções de resultados incertos, mas pelas vantagens pessoais a agentes públicos
e privados. No caso brasileiro, que não é exceção, a influência do poder econômico
por meio da proteção a empresas nacionais não foi compensatória para o interesse
público. Tome-se o exemplo da Operação policial “Lava-jato”, que demonstrou uma
grande rede de corrupção, envolvendo empresas privadas e públicas. Os desvios
financeiros serviram para financiar campanhas milionárias e literalmente fazer crescer
ilegalmente o patrimônio particular de muitos agentes estatais e privados. Através
dos financiamentos, as empresas e favorecimento em obras públicas, esses “players”
da economia ou tiveram juros subsidiados pela sociedade ou superfaturaram obras
públicas cujos excedentes financiaram campanhas eleitorais ilegais e ou foram parar
em bolsos de particulares.
NOTA
Operação Lava Jato: é reconhecida como a maior operação policial contra a corrupção no
Brasil. No site da Polícia Federal, apresenta a seguinte informação:
“No dia 17 de março de 2014, a Polícia Federal deflagrou a operação que viria a ser
conhecida como Lava Jato, unificando quatro investigações que apuravam a prática de
crimes financeiros e desvio de recursos públicos.
114
As operações receberam os nomes de Dolce Vita, Bidone, Casablanca e
Lava Jato. Enquanto as três primeiras correspondem a títulos de filmes
clássicos, escolhidos de acordo com o perfil individual de cada doleiro,
o nome Lava Jato faz referência a uma rede de lavanderias e um posto
de combustíveis de Brasília que era utilizado por uma das organizações
criminosas investigadas inicialmente para movimentar dinheiro ilícito”.
Isso leva uma pessoa honesta a se questionar: até que ponto o Estado deve
ajudar, intervir e a oferecer proteção em nome do interesse estratégico nacional? É
que, juntamente com o suposto interesse público de incentivar e fortalecer segmentos
produtivos, há o perigo, quase certo, de interesses escusos interferindo. É um
fator humano, que deve ser levado em conta. Mais do que levado em conta, deve
ser considerado um risco imanente e permanente, que só pode ser razoavelmente
combatido por meio de instituições fortes e regras claras. Essas instituições – leia-se
leis, normas e regras – devem pressupor sempre o risco certo da interferência negativa
do poder econômico no poder político. Certamente, a elaboração de leis, normas e regras
claras depende de inteligência e honestidade. Por sua vez, esses necessários atributos
republicanos dependem de muita clareza da sociedade, resultado de um permanente
processo dialógico e de muita difusão da informação. Nesse sentido, o poder das ideias
é fundamental.
115
liguem a sociedade aos que governam. Em outros termos, não há como governar de
modo razoável sem o apoio da sociedade, ou ao menos uma parte importante dela, que
precisa ser convencida das boas intenções e ações dos governantes. Intelectuais são
necessários, entre tudo, à formação de um pensamento de integração social, nacional ou
local. Nessa direção, o Estado, como instituição maior, no plano nacional ou subnacional
(estadual ou municipal) precisa ser visto como o ente agregador e protetor da vontade
geral da sociedade. Precisa ser capaz de produzir sentimentos de pertencimento
comunitário entre os cidadãos, que deve se sentir integrantes de um corpo político
solidário, caracterizado por uma identidade coletiva e pelo compartilhamento de valores
e desejos comuns.
Por vezes, há governos que têm intenções razoavelmente republicanas e que
procuram, evidentemente, colocar em prática aquilo que consideram mais importante
ao interesse da vontade geral da nação ou do município, que seja. Em sistemas
democráticos, não raras vezes, o poder executivo tem certas dificuldades de materializar
suas intenções, por confrontos com o poder legislativo. Coisas dos jogos de poder e
achar que tudo pode ser muito diferente na política, é ignorar, ao menos cinco lições da
história, que são:
Nessa perspectiva, o papel dos intelectuais e seu poder ideológico tem sido
fundamentais na constituição das sociedades. São eles os principais emissores e
difusores de valores, explicações e narrativas que fazem a sociedade perceber a
importância da vida comunitária. E não importa se essa comunidade tem as dimensões
de um pequeno município ou de uma nação. Não há grupo humano sem liderança
ideológica, seja ela religiosa, educacional, moral, legal ou científica (considerando,
inclusive, que essas formas são relativamente distintas, mas andam juntas com muita
frequência). O poder de difundir boas e grandes ideias, informações e opiniões é
constante desde as sociedades primitivas e tem função de despertar, chocar e agregar
para evoluir. E se isso vale para uma pequena comunidade, pensemos na importância
que o poder ideológico tem a uma nação e, evidentemente, ao Estado.
116
belezas e vantagens de viver em comunidade, num município, num estado ou num país.
São fundamentais à constituição do pensamento crítico, para a percepção dos erros
e das possibilidades de reformas, de correções e avanços. Ao mesmo tempo, são os
responsáveis por reproduzirem os melhores sentimentos de um povo, o que inclui a
autoestima, o orgulho de ser e de pertencer. Enquanto indivíduos produzem seus feitos,
geração em geração, sedimentando a cultura de uma sociedade, o intelectual tem o
papel de decifrar, conferir significado, crítica e brilho às ações. O poder ideológico exerce
um papel indispensável que alguns governos sabem bem usar, enquanto outros não
compreendem bem sua utilidade política e civilizatória.
Por fim, o jogo político está sempre aberto e o poder ideológico é sempre um
elemento indispensável a quem deseja conquistar o poder, tanto quanto a quem necessita
mantê-lo. E a presença do poder ideológico nesse enredo de disputas e entrelaçamentos
entre o poder político e o econômico, a Ciência política tem uma tarefa igualmente
permanente. Precisa considerar a hipótese das elites, tanto quanto a dispersão do poder,
identificando seus agentes, mecanismos e circunstâncias que preenchem essa trama
cotidiana. Precisa levar em consideração as necessidades republicanas, associadas ou
dissociadas dos interesses econômicos, além dos corporativos. Além disso, deve prestar
atenção no conjunto de instituições formais (leis, regras e normas e seus operadores) e
informais (valores e costumes arraigados na Sociedade) e descobrir como esses fatores
jurídicos, politológicos e sociológicos se manifestam, direta ou indiretamente nas ações
117
dos agentes políticos e nas reações dos indivíduos em comunidade. Isso faz da Ciência
Política uma ciência, com método e objeto. E atribui a esta ciência e seus respectivos
cientistas a enorme responsabilidade de abrir a “caixa preta” da política, para o benefício
da clarividência, tão necessária ao desenvolvimento das sociedades.
Embora todos falem sobre política todos os dias, alguns fazem disso uma
profissão e uma área de estudo. Qual a diferença entre eles e a maioria de nós?
Todos fazem e quase todos falam sobre política todos os dias, mas um
grupo específico de profissionais se dedica ao assunto na qualidade de cientistas.
Além da paixão pelo tema, eles também obedecem a critérios técnicos para analisar
fenômenos que a maioria de nós comenta sem apego a métodos reconhecidos pela
academia.
JAIRO NICOLAU: A ciência política é uma disciplina que se define pelo tema,
mais do que por um método. Por isso, provavelmente, ela é a mais pluralista, entre as
disciplinas de ciências sociais.
118
A imprensa acredita que a opinião de cientistas políticos tem uma aura de
“cientificidade”, o que, na maioria dos casos, não tem procedência. Se um jornalista
me pergunta, por exemplo, qual é o efeito do apoio do [vereador Andrea] Matarazzo
à campanha da [candidata à prefeita de São Paulo] Marta [Suplicy] e eu respondo, é
que tem algo errado. A resposta é quase sempre uma mera opinião. Mas os jornalistas
acham que vinda de um cientista político a opinião parece ser mais científica. O ideal
é que os cientistas políticos fossem convidados a falar de temas que eles pesquisam
e têm dados. Mas não acontece sempre.
Cada subárea da ciência política tem suas teorias e seus métodos e técnicas
de investigação, que o cientista político deve conhecer e dominar. Daí viria outra
característica esperada do bom cientista político: capacidade de estudar seu
objeto de forma rigorosa, com base em teorias sólidas e abordagens empíricas bem
desenhadas.
Em síntese, pode-se dizer que o bom cientista político tem grande familiaridade
com seu objeto de pesquisa, investiga esse objeto de forma teoricamente informada e
metodologicamente rigorosa, e publica os resultados de sua investigação em lugares
sérios, mediante análise prévia dos pares. Isso garantiria a qualidade dos aportes que
faz aos debates sobre questões políticas.
119
Acredito que a boa ciência política deve se inspirar nos procedimentos
de outras disciplinas empíricas: coleta criteriosa de dados, uso de estatística e de
métodos comparativos, disponibilidade de dados para reprodução e detalhada
discussão conceitual.
WAGNER PRALON MANCUSO: Neste caso, acho que a grande lição vem
de Max Weber. Weber escreveu sobre a ciência como vocação. Segundo ele, para o
cientista vocacionado, o momento da ‘paixão’ é o momento da escolha do objeto de
pesquisa, do problema a ser investigado.
120
‘papers’. Ele também é um cidadão, um eleitor. Como cidadão e eleitor, pode e deve
expressar seus pontos de vista e suas preferências nas redes sociais, em entrevistas,
em artigos opinativos publicados na mídia, em debates públicos etc. Às vezes essas
manifestações não têm o mesmo rigor de um trabalho publicado no Scielo [plataforma
que disponibiliza trabalhos acadêmicos]. Mas espera-se que a tarimba adquirida ao
longo de anos e anos de estudo ajude o cientista político a exprimir suas posições,
pelo menos, de forma embasada e coerente.
121
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
• A Ciência Política surgiu com esta denominação ao final do século XIX, emergindo
do interior da Filosofia Política, mais especificamente da Filosofia do Direito. Além
disso, deve parte de usa origem à História. E, pelas convenções que são próprias
às ciências, a Ciência Política acabou por compor o tripé do que denominamos de
Ciências Sociais, quais sejam, a Sociologia, a Antropologia e a própria Ciência Política.
• A definição clássica do poder nos remete à ideia de fazer o outro ou os outros agirem
de acordo com a nossa vontade.
122
• Com isso, podemos afirmar que o poder se desconcentra, historicamente, até certo
ponto, nas sociedades democráticas e constitucionais. Podemos sempre lembrar
que o Estado é o maior detentor do poder, porque, como faz lembrar mais uma vez o
sociólogo Max Weber, é o Estado que tem o monopólio exclusivo do uso da força.
123
AUTOATIVIDADE
1 O conceito de ideologia é um conceito estritamente moderno. O termo surgiu para
designar as pretensões de fundamentação de uma ciência das ideias, mas foi logo
associado ao exercício do poder e, bem como as instituições partidárias. Assim, um
dos recursos de exercício do poder é o ideológico. Disserte sobre a importância do
conceito de ideologia na definição de poder.
124
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
SISTEMA POLÍTICO, RACIONALIDADE E
INSTITUIÇÕES
1 INTRODUÇÃO
Neste segundo tópico, apresentamos uma abordagem sobre o entendimento
acerca do sistema político. Há maneiras de fazê-lo, afinal, nas Ciências Sociais, os temas
são tratados a partir de mais de um ponto de vista. No entanto, como sugere o próprio
nome, trataremos o sistema político pela perspectiva da teoria sistêmica, o que significa
que a política é literalmente tratada como um sistema. Até mesmo os críticos da teoria
sistêmica nas ciências sociais concordam com ela nesse ponto. Conquanto outras
teorias apontem insuficiências, há concordância quanto ao fato de que o ambiente
político possa ser introdutoriamente compreendido como um conjunto interdependente
de fatores, ações e instituições cuja racionalidade assim se expressa.
2 SISTEMA POLÍTICO
Quando falamos em poder e política, precisamos imediatamente reconhecer
a existência, isto é, o protagonismo coletivo de inúmeros agentes que fazem parte
do jogo do poder, tentando interferir nos processos decisórios. O funcionamento
das decisões e de todo o ambiente político envolve desde o mais jovem eleitor até
o presidente da República. E, se quisermos dizê-lo, essa rede é ainda mais extensa,
atingindo a consideração de todos na sociedade. Mas isso é genérico demais, embora
125
não seja inverídico. Então, se quisermos falar de sistema político, temos que fazer
uma delimitação, a fim de que o termo seja aceitável e compreensível. Para tanto,
precisaremos considerar todo o conjunto de instituições e órgãos correspondentes no
interior da ampla esfera estatal-governamental. Embora, temos que ser um pouco mais
abrangentes, levando em conta o conjunto não pequeno de agentes que não estão
ligados à esfera governamental, mas estão no espectro das relações governamentais.
Na sequência, esse objeto alterado tende a afetar, por mínimo que seja, todo o
sistema. Além disso, os sistemas obedecem a certas funções, sendo a principal delas o
fato de que tudo que acontece dentro da lógica do sistema está orientado a assegurar
126
a sobrevivência do sistema. Como já dissemos, essa interpretação tem uma forte
analogia com o funcionamento dos organismos vivos e das máquinas, notadamente dos
computadores, se pensarmos nos sistemas informacionais tão intensamente presentes
em nossas vidas.
IMPORTANTE
Cibernética
127
FIGURA 3 – LIVRO DE D. EASTON - TRADUZIDO PARA O PORTUGUÊS EM 1970.
É dessa forma, que o sistema político interage com toda a sociedade. Para que o
seu funcionamento aconteça, o sistema político precisa receber as demandas sociais o
tempo todo, selecioná-las e obter o necessário apoio para responder da melhor maneira.
128
Nisso, o processo de filtragem requer uma engrenagem complexa. Não esqueçamos
que essas demandas advêm da sociedade como “atribuições autoritárias de valores”.
Nesse sentido, a sociedade exige que o sistema responda e justifica suas exigências
com base em valores morais de toda ordem (religião, bons costumes, família, trabalho,
bem-estar merecido, cultura, educação, lazer etc.). Essas exigências dão origem a
decisões institucionais que se transformam em leis e políticas.
129
demandas sociais passam ou são barradas, sempre em relação ao que é viável ou não,
segundo tais padrões. Importa lembrar que, quaisquer que sejam as demandas, mesmo
as mais republicanas e de forte pressão social, tudo é processado e decidido levando
em consideração a preservação do sistema político.
2) O regime político, compreendido como uma rede de valores do que pode ser aceito
no sistema político, em termos éticos e morais, igualmente compartilhados entre os
agentes políticos.
130
Nessa perspectiva, precisamos entender que o sistema político é constituído
e preservado por um conjunto de ações padronizadas, orientadas por valores que
conduzem os comportamentos a um centro de convergência. O motivo dessa
convergência é a autopreservação do sistema, o que também podemos entender como
fisiologismo corporativo. Não obstante, esses valores não podem ser fundamentalmente
divergentes dos valores pactuados pela sociedade em geral, ou seja, o ambiente onde o
sistema político está inserido. É claro que os interesses corporativos do sistema político
se chocam muitas vezes com os interesses republicanos da sociedade. Mas tal situação
tem um lastro de tolerância e os atores do sistema político precisam ter o cuidado de não
ultrapassar esses limites. E, por mais frequente que sejam os momentos em que esses
limites sejam perigosamente transpostos, a sociedade reconhece que o sistema político
tem o importante papel social de regulador dos conflitos, evitando a conflagração social.
Por exemplo, lembremos a crise política no Brasil entre 2015 e 2016. Erros na
condução da política econômica se somaram ao caso de corrupção que desencadeou
a operação Lava Jato, no interior da qual os dois principais no poder estiveram no
epicentro do escândalo. A consequência mais dramática do processo foi o impedimento
legal da ex-presidente da República, Dilma Rousseff, de continuar exercendo o mandato
ao qual foi reeleita. Não obstante, cabe igualmente lembrar que o processo seguiu os
ritos legais às vistas da sociedade. Não foram poucas as críticas ao processo e denúncias
de “golpe”, o que é natural e até certo ponto tão inevitável quanto necessário. Afinal,
mais que o interesse republicano, o que estava em jogo era a perda de poder de parte
dos integrantes do sistema político que, nesses momentos, tentam se preservar nele.
E, procedentes ou não, as críticas são tão importantes quanto as justificativas, para a
formulação da opinião pública.
Por fim, cabe lembrar que o motivo jurídico apresentado não é a motivação
fundamental de um processo de derrubada de um governante. O desvio contábil que
foi utilizado como justificativa para a punição legal foi um paliativo com precedentes
131
em governos anteriores, que também o cometeram e não foram punidos por isso. A
diferença fundamental é que os governantes anteriores tinham o apoio suficiente dentro
do sistema político e este apoio estava respaldado pelo apoio fora do sistema, isto é, na
sociedade. Nesse sentido, a motivação de fundo é sempre a disputa pelo poder, que
apenas se justifica em nome da justiça e do interesse republicano. O interesse pelo poder
no interior do sistema político é o interesse vital. Todavia, não quer dizer que o interesse
republicano não esteja presente. A pedra de toque que determinou o impedimento foi o
apoio da maioria da sociedade, descontente com a economia, sem o que os agentes do
sistema político que impulsionaram o processo não teriam se movido a tal ponto.
Esta última lição, dita há cinco séculos pelo “pai” da Ciência Política é, com
frequência ignorada, por inúmeros analistas da cena política. Porque, no fim das contas,
o que importa nisso tudo é o resultado mais impactante e no menor tempo possível,
a fim de que os efeitos das decisões se manifestem e tenham resultados nas vidas
das pessoas. Porquanto se possam apresentar objeções de ordem moral, sempre de
necessária publicidade para a avaliação da opinião pública, não são as boas intenções
que estão na ponta dos objetivos de quem decide se apoia ou não as decisões do
sistema político. Como também nos terá orientado Max Weber, na política vale a ética
da responsabilidade pelos fins últimos e não a ética das convicções morais. Que sejam
importantes, pouco há a objetar, mas não são determinantes. Nessa perspectiva, a
posição moral dos que defenderam o direito de quem foi eleito, ignorou a insatisfação
posterior dos que elegeram. Nesse sentido, as necessidades econômicas de curto prazo
dos eleitores são mais prementes que as necessidades morais de longo prazo.
132
legalmente respaldadas e assimiladas pelo corporativismo do sistema político, tornam-
se parte das decisões públicas, tornando-se leis e diretrizes e ações na forma de políticas
públicas devidamente filtradas e apoiadas pela Sociedade. Em outros termos, o sistema
político gerou respostas às demandas sociais. Nesse momento, a teoria sistêmica da
Ciência política dá a essas respostas o nome de saídas, ou outputs.
Isso é o sistema político: uma caixa preta, que é também uma caixa de ressonância
às demandas sociais, que são ouvidas, assimiladas e filtradas. Depois, as demandas de
maior pressão são encaixadas com as necessidades de autopreservação do sistema
político. Transformam-se em leis e políticas públicas, em resposta à sociedade. Seja no
exemplo emblemático do impeachment presidencial ou outro qualquer, há um processo
de inputs e outputs. Ou seja, há um fluxo de entradas e saídas, demandas e respostas
do ambiente maior para o sistema político e, deste, de volta à sociedade. As decisões
no interior da “caixa preta” tendem a ser: o cálculo racional do melhor ajustamento
entre a vontade geral da Sociedade e os interesses corporativos de autopreservação
do sistema. E os agentes do sistema político sabem que os resultados precisam ser
eficazes para a retroalimentação do apoio social ao sistema. É o imperativo da escolha
racional, calculada e corporativa, para a sobrevivência do sistema político.
IMPORTANTE
O impedimento da ex-presidente da República, Dilma Rousseff, em 2016, seguiu um
rito jurídico amparado na Constituição Federal. Todavia, para os críticos
e oponentes ao processo, o que houve foi um “golpe” e tal celeuma é
interminável. O impedimento da ex-presidente foi decidido em plenário do
Congresso Nacional, através do voto aberto de cada um dos 513 deputados
federais. A justificativa jurídica foi constituída com base na denúncia
de “pedalada fiscal”. Trata-se de um apelido para o procedimento em
que o governo promove manobras contábeis para maquiar as contas
públicas, conferindo uma aparência de normalidade e encobrindo
furos fiscais. No caso, atrasam-se os repasses de pagamentos de
dívidas que o governo tem com bancos, permitindo contabilizar as
contas públicas de um ano fiscal sem os registros dessas dívidas. O
objetivo é dar a impressão de um déficit público menor ou até um superávit
das contas, configurando uma maquiagem contábil.
133
dos indivíduos. É o que chamamos de individualismo metodológico nas ciências sociais,
particularmente importante na Ciência Política, mas também na economia, na sociologia
e no direito. Na análise sistêmica, a sociedade e o sistema político são entendidos como
um todo orgânico de sistemas e subsistemas, com funções orientadas à preservação
do todo. Conquanto esse método seja conveniente, é complementarmente importante
compreender as motivações dos indivíduos, a partir das quais eles orientam suas ações.
Não o fazem somente para a preservação do sistema ou subsistema, mas para os seus
interesses também. É o que Max Weber chamaria de ação racional orientada para os fins.
IMPORTANTE
O conceito de ação social é clássico e constituinte da sociologia e, por extensão, de toda
a análise das ciências sociais. Segundo o seu formulador, o sociólogo alemão Max Weber
(1991) ela acontece quando cada um de nós age levando em consideração a ação ou a
reação dos outros, com o fim de decidir como devemos agir. Isso demonstra o quanto
somos seres sociais, cujas ações não são simplesmente pessoais, mas sociais. Segundo
Weber (1991) há quatro tipos característicos de ação social:
134
• agimos por tradição, segundo os costumes;
• agimos por afetividade, porque gostamos e queremos a aprovação de outros;
• agimos por valores, isto é, usamos noções de certo e errado; e
• agimos por finalidades, isto é, segundo interesses.
Na política, o tipo de ação predominante tende a ser a ação racional por finalidades
racionais que, embora influenciados pelos outros três tipos de ação, predominam
sobre essas. Isso parece ter sido inspirado na premissa fundamental de
Machiavel, que separa a moral da política. Segundo o renascentista italiano,
em política, os fins justificam os meios, ou seja, mesmo que os meios sejam
importantes, prevalecem os fins últimos e racionais na ação do agente
político. E o fim é a preservação do poder. Foi assim que Weber definiu o
termo ética de responsabilidades, em oposição à ética das convicções. Percebeu
isso observando os comportamentos individuais na política e na economia.
Também o sociólogo brasileiro Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da
República, é partícipe dessa premissa: enquanto na religião e no campo moral,
em geral, agimos por convicções, na política, se age pensando nos resultados.
Pela ética das convicções, poderemos ser perdoados por nossos erros, se agimos
bem-intencionados (vale a intenção). Pela ética das responsabilidades, seremos
responsabilizados pelos resultados das nossas ações.
Para Anthony Downs (1999), a lógica da ação dos indivíduos é a mesma da ação
racional com vistas aos fins de Weber, admitindo-se que os indivíduos fazem cálculo
sobre suas decisões sempre. Assim como consumidores e eleitores tem preferências,
interesses e necessidades que os levam a decidir suas escolhas eleitorais. Na outra
ponta, estão os políticos em busca de votos e de apoio necessário para se elegerem.
Na economia, empresas buscam o lucro o tempo todo e o contrário seria irracional.
Nas eleições, os candidatos têm como único e óbvio interesse o de se elegerem ou
de se manterem no poder. Maquiavelicamente, a tendência é de que façam tudo para
alcançar esse objetivo. É claro que há limites morais e éticos que impedem a maioria de
se matarem uns aos outros. Mas é absolutamente lógico que transponham pequenas
barreiras morais e éticas, e até mesmo legais, caso seus cálculos lhes permitam deduzir
racionalmente, que isso valerá à pena.
135
Nas democracias, os partidos políticos têm muitas características, definições
e objetivos. Todavia, do ponto de vista da escolha racional, são compreendidos como
agremiações que congregam indivíduos cujo interesse maior é o de alcançarem o poder
e de nele permanecerem. Nesse sentido, partidos têm o mesmo modus operandi que
empresas em relação a consumidores. Empresas oferecem qualquer produto, desde
que o consumidor os compre e isso lhes garanta lucro. Assim, partidos formulariam
programas e políticas, não com o principal objetivo de atender ao interesse público,
promover o desenvolvimento e ajudar as pessoas. Formulam programas e políticas
com o propósito de alcançarem os votos necessários para conquistar o poder e nele
se manterem (DOWNS, 1999). Essa é a premissa exclusiva da teoria da escolha racional.
Na outra ponta, está o “cobiçado” eleitor que, todavia, também age motivado
por seus interesses próprios. É claro que esses interesses podem ser convergentes
com o interesse geral ou local, seja dos compatriotas ou dos vizinhos. Mas tende a
ser um interesse que pragmaticamente melhore a sua vida. Assim como no mercado
econômico, em que o consumidor tende a exercer a sua soberania, também no mercado
eleitoral o interesse do eleitor reina. E, do ponto de vista do mercado eleitoral, o eleitor
é o “foco” do político, tratado como um “consumidor político”, significando o meio pelo
qual o político pode obter seus fins desejados. O eleitor expressará as suas vontades
e o político se esforçarão em atendê-las. Na interpretação radicalmente economicista
de Downs (1999, p. 119), “as ações republicanas em benefício da sociedade seriam
“incidentais”, isto é, aconteceriam como efeito possível e conveniente, mas não por
objetivo principal”.
136
o cumprimento delas, ainda assim, é maior que a capacidade orçamentária de atendê-
los. O que acontece, por causa disso, é que gastam mais do que os recursos disponíveis,
gerando a dívida pública. Observando nas eleições, políticos eleitos pressionam os caixas
dos governos e governantes abusam da capacidade de endividamento, gerando déficits
no longo prazo. Buchanan sugere que, a rigor, o Estado não passa de uma “organização
de interesses de seus ocupantes” (BUCHANAN apud BRESSER PEREIRA, 2009, p. 12).
137
Nesse sentido, surge a perigosa tendência de uma inversão de funções no
sistema republicano. Se na democracia, a lógica é de que o Estado sirva a sociedade, a
expansão das estruturas governamentais, nos três poderes sobrecarrega a sociedade
produtiva na tarefa de servir ao Estado.
Assim, o eleitor deseja sempre um conjunto de coisas que possa estar o mais
próximo da maximização do seu bem-estar. Ele “negociará” seu voto procurando
comprometer seus candidatos e escolherá aqueles que acredita tenham a melhor
chance de materializar, de algum modo, suas expectativas. Já o político que deseja o
seu voto, este fará tudo o que for possível para alcançar o poder e nele permanecer.
Todos os outros objetivos, voltados ao interesse público, virão depois do principal. Tal
é escolha racional, na visão de Downs, de Buchanan e de outros teóricos e adeptos da
rational choice theory, bem como da public choice theory. Nessa direção, a escolha
do agente político, seja o eleito, seja o eleitor, será, antes de tudo, uma escolha
egoísta. Depois disso, poderá ser uma escolha moral, ética e republicana, preservado
o interesse individual.
138
Por esse ângulo, a política é vista sem paixões. É preciso perceber que aqui
a ideia da cientificidade chega ao seu ápice na análise política. Podemos dizer que o
realismo político, que teve início com o pensador florentino Nicolau Machiavel, alcança
aqui seu caráter mais explícito. É claro que isso tende a incomodar moralmente
qualquer jovem estudante, predisposto a ver na Ciência Política um instrumento de
aperfeiçoamento e evolução da realidade. Mas é preciso encarar o individualismo
metodológico como um meio importante de compreender as coisas como elas
são. Só então, compreendidas como elas são é que podemos melhor nos atualizar
dos conhecimentos científicos para melhorar o mundo, em busca da realização de
nossas utopias coletivas. Esse é o individualismo metodológico, que pressupõe o
entendimento da política pela ação racional com objetivos que passam pelo egoísmo,
pelo individualismo, pelo interesse pessoal.
139
seus interesses e fossem, no máximo, guiados pelos interesses egoístas dos eleitores,
o bem comum não seria possível. O economista político brasileiro Luiz Carlos Bresser
Pereira (2009), por exemplo, afirma que “o processo civilizatório não seria possível pelo
mero egoísmo”. Isso nos leva à discussão sobre a importância elementar das instituições
políticas, isto é, as palavras, ainda que a propensão fosse sempre egoísta, o conjunto
de princípios, leis, regras e valores funcionariam como filtros, impedindo que o egoísmo
prevaleça. Nessa perspectiva, as instituições devem ser elaboradas evitando que os
interesses alheios aos republicanos se sobreponham.
140
oferecem “cachos de crenças e normas” (DELLA PORTA, 2003, p. 40), como se fossem leis
em forma de frutos que abastecem os indivíduos. Isso não quer dizer que esses significados
e intenções estejam democraticamente distribuídos, isto é, que respondam equanimemente
ao interesse e entendimento de todos. Isso não acontece o tempo todo. Muitas vezes, como
sugerimos, escondem os interesses de quem tem mais poder e os protege. Mas, mesmo os
poderosos se encontram submetidos a “cachos de crenças e normas” que convergem para
os interesses de todos os indivíduos. Segurança, paz, propriedade privada, família e outras
tantas coisas entram nesse imenso pomar. E é essa conjunção moral, segundo os críticos
do individualismo metodológico, que se impõe na constituição social.
Mas nada acontece da noite para o dia e o trabalho é árduo. Além disso, boas
reformas institucionais serão evidentemente republicanas e isso depende da vigilância da
sociedade, isto é, de sua participação através das formas de participação, acompanhamento
e influência da opinião pública sobre as decisões que acontecem no interior da caixa preta.
Como já vimos, e com isso concordamos, no interior do sistema político, há sempre um
conjunto de interesses de autopreservação do sistema. Esse objetivo está evidentemente
ligado à maximização do interesse próprio. Mas o interesse próprio pode ser suplantado
pelo interesse público, ou até mesmo preservado parcialmente, desde que o interesse
público seja alcançado. Nesse sentido, a história do desenvolvimento institucional das
nações, tem demonstrado que quanto maior a informação da sociedade, seu poder de
pressão e participação, melhores serão as instituições.
141
Mas, além disso, uma resposta aparentemente positiva do subsistema político
às demandas do sistema geral, que é a sociedade, pode conter interesses corporativos.
Se muitas demandas empresariais são entendidas como legítimas do ponto de vista
da saúde econômica, como pagar menos impostos, podem ser consideradas ilegais
do ponto de vista institucional-legal. E os agentes responsáveis pela feitura das leis
podem tê-las feito com interesses corporativos, criando relações de dependência
promíscua. Tudo em nome da moral e do interesse público. Da mesma forma, as leis
que inibem o financiamento privado das campanhas eleitorais foram feitas em nome
do interesse público, mas aumentaram em muito as estruturas do poder judiciário,
com cargos, salários e poder, às custas de impostos dos contribuintes, convencidos
de que essa seria a melhor decisão.
Pois bem, a discussão não termina aqui. Há muito “pano pra manga” e o que
devemos lembrar é: o sistema político é constituído por um conjunto de agentes, órgãos e
interesses que produzem decisões em resposta às demandas da sociedade. A tendência
de maximização do interesse próprio existe no interior do sistema como fora dele, isto
é, na sociedade. Apesar disso, essa sociedade é composta de indivíduos que orientam e
filtram suas decisões, julgamentos e ações por valores morais e concepções éticas que
convergem com o interesse público. Esses “cachos de crenças e normas” interferem
nos processos decisórios no interior da caixa preta. Quanto mais forte a moral coletiva
voltada ao interesse público, e quanto mais informação, pressão e participação social,
melhores serão as instituições do ponto de vista republicano. Então, podemos lembrar
convenientemente a principal máxima de Montesquieu: boas instituições produzem
bons homens e bons homens são necessários para produzirem boas instituições.
INTERESSANTE
Política: por onde começar a apreender?
Sempre que se fala de política, a primeira coisa que vem à nossa mente é voto e eleições,
uma vez que, na democracia, o ponto alto da participação do cidadão comum na vida
política é a eleição. Mas, na realidade, política é um assunto amplo e que está para além do
voto, pois trata de questões como a diplomacia, guerra, finanças do governo… Além disso,
é também uma parte significativa da vida de todos os cidadãos impactados por decisões
tomadas nessa seara, por isso é uma boa ideia compreendê-la. Vamos lá?!
Toda democracia opera com um certo grau de apatia, como nos apontou o economista
estadunidense Anthony Downs – que possui especialização em políticas públicas e
administração pública – na sua renomada obra Uma Teoria Econômica da Democracia. No
livro, o autor aponta a falta de vontade em se envolver com a política como uma forma de
se posicionar sobre o assunto. Nesse sentido, Downs realizou uma valorização positiva da
apatia política baseado na teoria da escolha racional (racional choice).
142
A apatia política do brasileiro tem algumas causas, como os escândalos de corrupção, a
influência negativa da mídia na formação de opinião sobre política e o pensamento de que
“eu não posso ou não sou capaz de resolver nada!”… Dessas, a mais relevante, segundo o
sociólogo Sérgio Abranches, seria a indignação da população brasileira com os sucessivos
escândalos de corrupção e a crise política que atingiu o país desde 2013. Recentemente,
episódios atingiram o presidente (Michel Temer) e essa indignação, em vez de se canalizar
em um “grito de basta” suficientemente forte para promover mudanças, vem se traduzindo
em “desolação, apatia, conformismo”.
143
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
144
AUTOATIVIDADE
1 Na Ciência Política, a teoria do sistema tem uma presença notável nas abordagens
teóricas explicativas do funcionamento das coisas da política. Literalmente,
o ambiente político é compreendido e apresentado como um sistema menor,
dentro de um sistema maior, em interdependência externa e interdependência
(interna). Ao sistema político dá-se, inclusive, um nome alegórico para explicar
seu funcionamento, por analogia ao mundo real da política. Portanto, responda:
se o sistema político é um subsistema, qual é o sistema maior dentro do qual está
e como funciona esta relação intersistêmica, que nome se dá alegoricamente ao
sistema político e como ele funciona?
145
146
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
PARTIDOS POLÍTICOS, REPRESENTAÇÃO
E PARTICIPAÇÃO
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, você estudará os partidos políticos em sua condição representativa
e participativa nas democracias ocidentais representativas. Compreender as
democracias de massas em sua condição representativa, requer o conhecimento
das diversas instituições políticas que justificam e legitima a representatividade
popular, o poder constituinte. Nestas condições, os partidos políticos desempenham
papel determinante. Evidentemente não se apresentam como as únicas instituições
representativas, mas entre elas uma das mais importantes, mesmo reconhecendo que
na atualidade seja uma das instituições com menor credibilidade no cenário social e
político brasileiro.
2 O QUE É POLÍTICA?
Nosso objetivo, neste tópico, é compreender aspectos históricos e ideológicos
constitutivos dos partidos políticos, porém, antes de adentrarmos na descrição dessas
instituições que se circunscrevem nas esferas representativas das sociedades modernas
é preciso retomar a própria noção de política. Afinal, o que é política? Na atualidade,
este questionamento antes de se apresentar desnecessário, requer atenção em função
da banalização a que foi e é submetido no cotidiano. Por outro lado, a necessidade
de definição também se apresenta na medida em que muitas situações partimos de
preconcepções, de usos superficiais de um conceito desconsiderando os equívocos
provenientes desta condição.
147
Etimologicamente a palavra política deriva do grego antigo “polis” que designa
“cidade-comunidade”. A cidade-comunidade é o locus por excelência da vida social,
das relações entre os homens em função da constituição e manutenção de um espaço
público que acolha e preserve o bem comum. O bem comum é constituído de tudo
aquilo que serve a vida da coletividade, que contribui para a vida do cidadão possa
cumprir sua finalidade alcançando o bem viver e, por extensão preserve e desenvolva
a polis. Os gregos antigos estão entre os povos que compreenderam tal condição,
como demonstra Vernant (1986, p. 34): “[...] o sistema da polis é primeiramente uma
extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos do poder.
Torna-se o instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade no Estado, o
meio de comando e de domínio sobre outrem”.
148
a política serve para se atingir o poder, tanto quanto é atividade por excelência para o
exercício do poder. Ou dito de outra forma, é por meio da negociação estabelecida na
esfera da política, que se pode alcançar o poder, mas a permanência no exercício do
poder, que demanda a capacidade política na manutenção deste poder.
149
A doutrina contém os princípios ideológicos básicos e as concepções
fundamentais sobre a pessoa humana e sobre a sociedade, e fornece
os critérios básicos ou postulados éticos pelos quais se deve orientar
a ação. O programa contém a proposta de sociedade de atuação
concreta sobre o processo histórico. Explica-se através de metas
concretas ou reivindicações e com vistas à realização da doutrina
(BRUM, 1988, p. 20).
150
Ainda no que concerne a definição de partido político uma de suas características
é o fato de contemplar em sua condição a existência de tendência. Uma tendência é um
setor organizado no interior do partido que mantém divergências teóricas ou práticas
em relação à direção majoritária. Ou em sentido inverso, uma tendência constitui-se em
um conjunto de filiados que se alinham na defesa de uma mesma linha de pensamento.
Assim, entre as inúmeras tendências que podem compor um partido político há o
predomínio de uma tendência que se apresenta como majoritária, porém, há que se
considerar que uma tendência partidária, em função de suas concepções teóricas
e práticas, apresenta-se com significativas diferenças em relação ao conjunto das
demais tendências que compõem o partido e podem promover uma divisão partidária,
desconsiderando certas situações, se contrapondo à orientação majoritária do partido.
IMPORTANTE
O termo ideologia aparece pela primeira vez, em 1801 no livro de Destutt de Tracy.
Elements d’Ideologie (Elementos de Ideologia). Juntamente com o médico Cabanis, com
De Gérando e Volney, Desttut de Tracy pretendia elaborar uma ciência da gênese das
ideias, tratando-as como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano,
enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. Elabora uma teoria sobre as faculdades
sensíveis, responsáveis pela formação de todas as nossas ideias: querer (vontade), julgar
(razão), sentir (percepção) e recordar (memória).
4 UM POUCO DE HISTÓRIA
O surgimento e o desenvolvimento dos partidos políticos estão diretamente
vinculados à afirmação do Estado moderno e, mais especificamente, ao surgimento
das democracias liberais. Na passagem do século XVIII para o século XIX constitui-
se, sobretudo, na Europa o Estado Liberal Democrático pautado no princípio da
representatividade, a partir da legitimação via processo eleitoral dos poderes legislativo
151
e executivo. Neste contexto, também é característico do Estado Liberal Democrático
a existência e o direito à oposição seja via organizações e movimentos sociais, mas,
sobretudo, pelos partidos políticos.
IMPORTANTE
A Revolução de 1848: no ano de 1830, os franceses extinguiram os anseios da restauração
monárquica ao expulsarem a dinastia Bourbon do poder. Em seu lugar, com o expresso
apoio da burguesia nacional, Luís Filipe de Orleans assumiu o governo com o claro intuito
de firmar os avanços liberais na Constituição Francesa. Nesse sentido, buscou a ampliação
do Poder Legislativo e anulou qualquer ato de censura aos meios de comunicação e
realizou a separação entre Igreja e Estado.
Contudo, mesmo com tais avanços, vários grupos políticos se voltaram com seu governo assim
que o voto censitário fora preservado. Republicanos, socialistas e bonapartistas se aproveitavam
do fim da censura para realizarem grandes banquetes públicos durante os quais discutiam
as reformas a serem empreendidas no país. Conhecida como a “política dos banquetes”, essa
manifestação acabou ganhando força entre amplos setores da população francesa.
Visando desintegrar o movimento, o Rei Luís Filipe e o ministro Guizot resolveram lançar
essas reuniões à ilegalidade e não ceder a qualquer reivindicação política. Contudo, a
insensibilidade do governo acabou sendo estopim para que um grande movimento
popular se formasse em fevereiro de 1848. Naquele mesmo momento, a obra “Manifesto
Comunista”, de Marx e Engels, ofereciam um grande aporte ideológico para aquela luta
contra a hegemonia burguesa. Com o apoio de membros da própria Guarda Nacional, os
revolucionários forçaram a demissão do ministro Guizot e a fuga do rei para a Inglaterra. A
partir desse momento, a França se transformara em uma República. Imediatamente, a pena
de morte e o sufrágio universal foram instalados no país. Contudo, em seguida, a reação
dos conservadores resultou na formação de uma Assembleia Constituinte de natureza
predominantemente moderada.
152
Inicialmente, pode-se inferir que a gênese dos partidos políticos vincula-se aos
grupos parlamentares e aos comitês eleitorais, pois na medida em que as assembleias
políticas desenvolveram suas atribuições alcançando independência, os membros
destas assembleias constataram a necessidade de organizarem orientando a ação
política, sobretudo na média em que o direito de voto foi ampliado tornando-se urgente
constituir a organização partidária com o intuito de orientar o eleitor em relação aos
candidatos, suas propostas políticas e, por extensão seu voto.
Nesta direção, inúmeros foram e, ainda são os agrupamentos sociais que deram
e podem dar origem a um partido político. Os sindicatos, os movimentos sociais de
diversas categorias de trabalhadores, deram origem a inúmeros partidos políticos de
orientação socialista, ou sindical. Agrupamentos de intelectuais, associações estudantis
e universitárias também estão na gênese de partidos de orientação progressista, ou
socialdemocrata. Agrupamentos de empresários, de produtores rurais estão na gênese
de partidos de orientação liberal e conservadora.
153
IMPORTANTE
Partidos Políticos: entre 1966 e 1979, o Brasil tinha apenas dois partidos legais, a Aliança
Renovadora Nacional (ARENA), de apoio ao governo, e o Movimento Democrático Brasileiro
(MDB), de oposição consentida. Outros, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB),
continuaram a existir na clandestinidade. Já nos últimos anos da ditadura, o governo fez
uma reforma partidária, para dividir a oposição, ao mesmo tempo em que tentava manter
unido o partido do regime.
[...]
Além das organizações ilegais e clandestinas de esquerda, o MDB foi um importante canal
de expressão das insatisfações da sociedade civil durante as eleições legislativas, que
foram mantidas até como forma de legitimação por parte dos militares. Nos primeiros
anos, a Arena, o partido do governo, alcançou enorme maioria na Câmara e no Senado
e nas assembleias estaduais. Os governadores, depois de 1965 eleitos indiretamente,
também eram quase todos da Arena.
Em 1970, a Arena teve uma vitória eleitoral esmagadora, tornando o exercício de oposição
extremamente difícil, motivo pelo qual alguns membros do MDB chegaram a cogitar a
autoextinção do partido.
Entre 1970 e 1974, o partido se encolheu diante do apoio social, ativo ou passivo, ao governo
militar em tempos de milagre econômico e repressão. Mas, em 1974, mais conectado com
grupos sociais e intelectuais de oposição, o MDB surpreendeu o governo militar com uma
vitória nas eleições legislativas, fazendo com que o regime temesse perder o controle do
jogo político sucessório. Daí até a reforma partidária de 1979, o MDB conseguiu se firmar
como uma frente de oposição, ora mais liberal conservadora, ora mais à esquerda, apesar
das manobras legais do governo para controlar o partido.
Nas eleições de 1974, portanto, houve uma surpreendente vitória da oposição, elegendo
16 senadores em 22 vagas em disputa, que mudou toda a história. A sociedade,
aparentemente tutelada, seduzida pelo “milagre econômico” e aderente à ditadura, deu
uma resposta contundente nas urnas, abalando a estratégia dos militares de consolidar o
regime autoritário. Além disso, ao longo da campanha, o MDB soube se aliar a outros atores
da oposição política e cultural, como os intelectuais, os movimentos sociais e sindicais.
Ao apoiar o MDB, o PCB, que recusara a luta armada e insistia nas formas legais de
enfrentamento, contribuiu para essa vitória, caracterizando uma aliança entre um partido
de esquerda ilegal e a oposição legal. Os comunistas pagaram caro por isso. A partir de
então, a repressão sobre o partido foi ainda mais brutal. No começo de 1975, o governo
lançou uma grande ofensiva repressiva contra os pecebistas, prendendo vários dirigentes,
com muitos deles entrando para a lista dos desaparecidos políticos e mortos sob tortura.
Além disso, nas eleições de 1976, o governo promulgou uma lei que proibia a campanha
eleitoral na televisão e no rádio calcada em debates e discursos protagonizados pelos
candidatos. Em vez disso, eles só apareciam em fotos na TV e sua apresentação se limitava
aos currículos e ao número de candidatura. Essa lei ficou conhecida como “Lei Falcão”, em
referência ao ministro da Justiça, Armando Falcão, famoso por ser a “face dura da abertura”.
154
Mesmo assim, a oposição legal avançava, sobretudo nas grandes cidades, e catalisava o
apoio de amplos contingentes da população. Percebendo que o MDB se avantajava a cada
eleição, o governo promoveu uma reforma nos partidos.
Esse quadro foi completado pela criação do Partido dos Trabalhadores (PT),
anunciado em agosto de 1979 e fundado em fevereiro de 1980. Reunindo
parte da esquerda não comunista, sindicalistas e movimentos de bases, e
apoiado amplamente por intelectuais socialistas e radicais em geral, o PT em
princípio poderia assustar o regime.
155
5 AS FUNÇÕES DOS PARTIDOS POLÍTICOS
A partir do conjunto de argumentos arrolados até o presente momento desta
exposição de depreende que partidos políticos são instituições constitutivas da
sociedade civil organizada no âmbito dos Estados de direito organizados em torno de
regimes democráticos representativos e possuem funções vitais para a justificação e
legitimidade da representação política nas esferas do poder legislativo e executivo.
Sob tais pressupostos suas funções, que variam de acordo com o contexto
histórico, social e político são imprescindíveis, o que significa levar em consideração que
as funções dos partidos em sua origem diferem das funções assumidas ou atribuídas
aos partidos políticos na atualidade. Os mais diversos autores atribuem aos partidos
atualmente três funções basilares, o que não exclui outras funções que se apresentam
como demandas emergenciais.
Essa função é vital para o partido político tanto quando para a sociedade e a
opinião pública na medida em que os partidos políticos são uma das poucas instituições
sociais que têm condições de “[...] envolver um significativo número de indivíduos em
torno de uma ação política controlada e permanente, fortalecendo ou criando novas
atitudes e crenças políticas” (PETERSEN, 1988, p. 93).
156
A terceira função, decorrente das duas funções anteriores é o enquadramento
dos candidatos eleitos. Ao exercerem seu direito de voto, os eleitores se identificam
com o discurso e as propostas de determinados candidatos vinculados a determinados
partidos e suas visões ideológicas. Nesta perspectiva torna-se crucial ao partido
político, que os eleitos pelo voto popular se mantenham no exercício do cargo vinculado
às plataformas políticas e ideológicas do partido. A desvinculação do candidato eleito do
partido acarreta prejuízos organizacionais ao partido, mas, sobretudo a sua credibilidade
junto ao eleitorado. Tal condição prejudica a compreensão da importância das diferenças
ideológicas que constituem o espectro político-partidário e por extensão prejudica a
própria sociedade na medida em que difunde o descrédito sobre a instituição “Partido
Político” de função insofismável em democracias representativas.
6 TIPOS DE PARTIDOS
Os tipos de partido referem-se à forma de organização interna dos partidos políticos
que majoritariamente assumem duas formas: partidos de quadro e partidos de massas.
157
A fórmula do partido de massas é inventada pelos movimentos
socialistas do final do século XIX e começo do século XX. É copiada
em seguida pelos partidos comunistas, pelos partidos fascistas e por
certo pelos partidos democratas-cristãos. A generalização da fórmula
do partido de massas corresponde ao alargamento da democracia
que se abre a toda a população.
158
era inevitável. Tratava-se de impedir este avanço. A saída liberal foi o estímulo à criação
do tipo fascista de partido que tinha como objetivo primordial impedir o avanço das
esquerdas por meio de partidos e organizações internacionais.
Assim, o tipo fascista exige o total engajamento de seus filiados para além das
demandas partidárias, formando verdadeiras milicas sob espírito corporativo e militar.
Sua ideologia se caracteriza pela defesa da família e dos valores tradicionais, pelo
cultivo do sentimento patriótico, bem como pela intolerância em relação aos direitos
de minorias ou grupos sociais caracterizados naquele contexto como sub-raças e que
deveriam ser extirpadas do tecido social. Em relação à organização partidária, esses
partidos apresentam rígidos, centralizados e hierarquizados.
7 OS SISTEMAS PARTIDÁRIOS
No que se refere aos sistemas partidários é possível compará-los na medida
em que períodos significativos, as suas estruturas internas, bem como suas doutrinas
apresentam regularidade permitindo a descrição dos mais diversos sistemas partidários
nacionais num determinado período. A importância do estudo e análise dos diversos
sistemas partidários se constitui na possibilidade de verificação de semelhanças e
diferenças, o que permite a caracterização.
159
compõem as bases de sustentação do governo e de seu partido apresentam um custo
político significativo na forma de cargos em primeiro e segundo escalão, bem como
comprometem a linha ideológica do partido que elegeu o mandatário. Outro aspecto
a ser considerado é que as maiorias resultantes de extensas coalizões se apresentam
menos homogênea, menos coerentes e por decorrências menos estáveis. Em contextos
desta natureza os processos eleitorais assumem particularidades que podem conduzir
ao desvirtuamento do debate em torno das questões públicas relevantes.
No que concerne aos estudos sobre partidos únicos é preciso ter presente as
diferenças entre partidos únicos fascistas e nazistas, de partidos únicos comunistas. As
práticas políticas destes dois sistemas partidários são significativamente diferentes. No
caso dos partidos fascista e nazista, eram movidos por cultivo da personalidade de um
líder que incorporava do ponto de vista estético, bem como da ação política, práticas
populistas e messiânicas. Ou seja, o partido, sobretudo, o culto ao seu líder máximo
se circunscreve a partir de ações específicas que contemplam os interesses pontuais
de uma população massificada. No ritual do poder exercício de forma messiânica e
populista a eleição de um inimigo comum da nação é condição central para manter
mobilizada massa de seguidores do líder. Práticas de intolerância com certos setores
sociais, o exercício desproporcional da força em circunstâncias específicas, bem
como discursos de ordem conservadora em relação a valores e costumes e, discursos
agressivos em relação ao suposto inimigo comum fortalecem a imagem do líder que
sabe o que é adequado à nação como um todo. As experiências políticas dos partidos
nazista e fascista conduziram à constituição de estados totalitários.
160
8 BREVE TRAJETÓRIA DO SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO
O que caracteriza o sistema partidário brasileiro é sua instabilidade, o que
faz com que o país não disponha de partidos cuja existência seja marcada pela
longevidade, como é comum em diversos países, sobretudo, desenvolvidos. Em função
das instabilidades políticas e econômicas cíclicas, partidos são aniquilados e novos
partidos se constituem. Durante o longo período colonial, não havia a possibilidade de
constituição de partidos políticos formais, por motivo senão único, pelo menos óbvio:
o Brasil era uma colônia de exploração e não havia interesse por parte de Portugal em
fomentar atividade político-partidária na colônia. Os primeiros partidos políticos formais
que surgiram no Ocidente remontam as primeiras décadas do século XIX.
No segundo reinado com Dom Pedro II no poder, dois são os partidos que se
apresentam no debate político: 1) Saquaremas: que defendiam um regime imperial forte
e centralizador; 2) Liberais: que defendiam um regime político mais descentralizado
conferindo maior autonomia às províncias.
161
No período de 1930 a 1945 chamado também de era Vargas ou de Estado Novo,
temos os seguintes partidos na cena nacional: 1) Ação Integralista Nacional, inspirada
nas ideias fascistas. 2) Aliança Nacional Libertadora, liderada por Luís Carlos Prestes,
defendia um programa de mudanças sociais, políticas e econômicas.
Durante o período militar de 1964 a 1984, o país sob a ditadura militar passa ser
bipartidário. 1) Aliança Renovadora Nacional (ARENA) partido governista; 2) Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) composto por lideranças políticas como forma consentida
de oposição pelos governos militares.
162
IMPORTANTE
PARTIDOS REGISTRADOS NO TSE
Nº DA
Nº SIGLA NOME DEFERIMENTO PRES. NACIONAL
LEGENDA
MOVIMENTO LUIZ FELIPE
1 MDB DEMOCRÁTICO 30.6.1981 BALEIA TENUTO 15
BRASILEIRO ROSSI
ROBERTO
PARTIDO TRABALHISTA JEFFERSON
2 PTB 3.11.1981 14
BRASILEIRO MONTEIRO
FRANCISCO
PARTIDO DEMOCRÁTICO
3 PDT 10.11.1981 CARLOS LUPI 12
TRABALHISTA
PARTIDO DOS GLEISI HELENA
4 PT 11.2.1982 13
TRABALHADORES HOFFMANN
ANTÔNIO CARLOS
5 DEM DEMOCRATAS 11.9.1986 MAGALHÃES 25
NETO
LUCIANA
PARTIDO COMUNISTA DO
6 PCdoB 23.6.1988 BARBOSA DE 65
BRASIL
OLIVEIRA SANTOS
CARLOS ROBERTO
PARTIDO SOCIALISTA
7 PSB 1°.7.1988 SIQUEIRA DE 40
BRASILEIRO
BARROS
BRUNO
PARTIDO DA SOCIAL
8 PSDB 24.8.1989 CAVALCANTI DE 45
DEMOCRACIA BRASILEIRA
ARAÚJO
PARTIDO TRABALHISTA DANIEL S.
9 PTC 22.2.1990 36
CRISTÃO TOURINHO
EVERALDO DIAS
10 PSC PARTIDO SOCIAL CRISTÃO 29.3.1990 20
PEREIRA
ANTONIO
PARTIDO DA
11 PMN 25.10.1990 CARLOS BOSCO 33
MOBILIZAÇÃO NACIONAL
MASSAROLLO
ROBERTO JOÃO
12 CIDADANIA CIDADANIA 19.3.1992 23
PEREIRA FREIRE
JOSÉ LUIZ DE
13 PV PARTIDO VERDE 30.9.1993 43
FRANÇA PENNA
LUIS HENRIQUE
14 AVANTE AVANTE 11.10.1994 DE OLIVEIRA 70
RESENDE
CIRO NOGUEIRA
15 PP PROGRESSISTAS 16.11.1995 11
LIMA FILHO
PARTIDO SOCIALISTA
JOSÉ MARIA DE
16 PSTU DOS TRABALHADORES 19.12.1995 16
ALMEIDA
UNIFICADO
PARTIDO COMUNISTA EDMILSON SILVA
17 PCB 9.5.1996 21
BRASILEIRO COSTA*
PARTIDO RENOVADOR JOSÉ LEVY FIDELIX
18 PRTB 18.2.1997 28
TRABALHISTA BRASILEIRO DA CRUZ
163
JOSÉ MARIA
19 DC DEMOCRACIA CRISTÃ 5.8.1997 27
EYMAEL
PARTIDO DA CAUSA RUI COSTA
20 PCO 30.9.1997 29
OPERÁRIA PIMENTA
RENATA
21 PODE PODEMOS 2.10.1997 HELLMEISTER DE 19
ABREU
LUCIANO CALDAS
22 PSL PARTIDO SOCIAL LIBERAL 2.6.1998 17
BIVAR
MARCOS
23 REPUBLICANOS REPUBLICANOS 25.8.2005 10
ANTONIO PEREIRA
PARTIDO SOCIALISMO E JULIANO
24 PSOL 15.9.2005 50
LIBERDADE MEDEIROS
JOSÉ TADEU
25 PL PARTIDO LIBERAL 19.12.2006 22
CANDELÁRIA
PARTIDO SOCIAL
26 PSD 27.9.2011 GILBERTO KASSAB 55
DEMOCRÁTICO
ADILSON
27 PATRIOTA PATRIOTA 19.6.2012 BARROSO 51
OLIVEIRA
PARTIDO REPUBLICANO EURÍPEDES G.DE
28 PROS 24.9.2013 90
DA ORDEM SOCIAL MACEDO JÚNIOR
PAULO PEREIRA
29 SOLIDARIEDADE SOLIDARIEDADE 24.9.2013 77
DA SILVA
JOÃO DIONÍSIO
FILGUEIRA
30 NOVO PARTIDO NOVO 15.9.2015 30
BARRETO
AMOÊDO
PEDRO IVO DE
31 REDE REDE SUSTENTABILIDADE 22.9.2015 18
SOUZA BATISTA
PARTIDO DA MULHER SUÊD HAIDAR
32 PMB 29.9.2015 35
BRASILEIRA NOGUEIRA
LEONARDO
33 UP UNIDADE POPULAR 10.12.2019 PERICLES VIEIRA 80
ROQUE
164
LEITURA
COMPLEMENTAR
REFORMA POLÍTICA – PULVERIZAÇÃO DE PARTIDOS DIFICULTA COALIZÃO SÉRIA,
DIZ MINISTRO ADMAR GONZAGA
Apesar de ter sua essência mantida, a Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95,
que completou 20 anos no sábado) ainda recebe muitas críticas e, atualmente, é um
dos alvos da reforma política debatida no Congresso Nacional.
Para o ministro do Tribunal Superior Eleitoral Admar Gonzaga, a lei, que já sofreu
várias alterações por meio de emendas, ainda conserva a sua essência: “O corpo da
norma está consolidado, não tendo sido alterado substancialmente”. Ele explicou que a
Lei dos Partidos Políticos pôs fim à tradição de edição de normas às vésperas de cada
eleição, o que, segundo ele, trazia alguns casuísmos que não eram bem-vindos ao
processo eleitoral.
• Pulverização de partidos
165
O formato horizontal das coligações partidárias que é adotado no Brasil também
é alvo de críticas. Para Admar Gonzaga, ao aglutinar ideologias frequentemente
conflitantes numa “sopa de letrinhas” que confunde o eleitor, não se alcança a
representatividade que é buscada no processo eleitoral. Ele crê que esse é outro tópico
que precisa ser revisto na reforma política.
• Sanção presidencial
Admar Gonzaga acredita que as alterações são, em sua maioria, positivas para
o processo eleitoral no Brasil, mas acrescenta que ainda há a necessidade de uma
reforma política mais profunda. “Algumas questões foram bem tratadas, e eu creio
que serão positivas. Outras, como a cláusula de desempenho de partidos políticos e a
horizontalidade das coligações, deveriam ter sido melhor enfrentadas e não passaram”,
declarou. Com informações da Assessoria de Imprensa do TSE.
166
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
• A política é uma atividade vital para os seres humanos. Na condição de um ser social,
que tem significativas dificuldades de viver sozinho, o ser humano necessita dos
outros para constituir sentido e finalidade as suas ações no contexto de mundo em
que está inserido.
• As funções dos partidos políticos, que variam de acordo com o contexto histórico,
social e político, o que significa levar em consideração que as funções dos partidos
em sua origem diferem das funções assumidas ou atribuídas aos partidos políticos
na atualidade.
• O que caracteriza o sistema partidário brasileiro é sua instabilidade, o que faz com
que o país não disponha de partidos cuja existência, seja marcada pela longevidade,
como é comum em diversos países, sobretudo, desenvolvidos.
167
AUTOATIVIDADE
1 Quanto às funções dos partidos políticos, variam de acordo com o contexto histórico
social e político, o que significa levar em consideração que as funções dos partidos
em sua origem, diferem das funções assumidas ou atribuídas aos partidos políticos
na atualidade. Os mais diversos autores atribuem aos partidos atualmente em três
funções basilares, o que não exclui as outras funções que se apresentam como
demandas emergenciais. Disserte sobre a formação da opinião pública como uma
das funções basilares de um partido político.
168
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A política. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
CHAUÍ, M. O que é ideologia? São Paulo: Editora Brasiliense, 1991 (Coleção Primeiros
Passos).
DOWNS, A. Uma teoria econômica da democracia. São Paulo, Ed. USP, 1999.
MAAR, L. W. O que é política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993 (Coleção Primeiros
Passos).
170
UNIDADE 3 —
CONCEITOS E TENDÊNCIAS
CONTEMPORÂNEOS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará
autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
171
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!
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172
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
IGUALDADE, LIBERDADE E JUSTIÇA
1 INTRODUÇÃO
Pensar sobre a liberdade, igualdade e justiça poderá parecer ato corriqueiro no
dia a dia. A todo tempo estamos submetidos a situações em que podemos nos questionar
o caráter de justiça de uma determinada ação. Podemos questionar os limites e como
é entendida a liberdade por um grupo específico em algum lugar do mundo. Podemos
notar como a igualdade é requerida por alguns grupos em relação a outros.
2 A INTERPRETAÇÃO ANTIGA
Nos subtítulos a seguir, nós veremos como os temas de igualdade, liberdade e
justiça foram compreendidos na Grécia Antiga por dois dos maiores filósofos de todos
os tempos: Platão e Aristóteles. É importante compreendermos que vários assuntos que
até hoje são temas de inúmeras discussões, dentro e fora da academia, vêm sendo
debatidos e pensados há no mínimo dois mil anos pelos gregos antigos. Ao falarmos de
justiça, por exemplo, não há como desconsiderar a discussão realizada em A República,
de Platão. Deste modo, é imprescindível que o acadêmico entre em contato com
algumas noções da tradição filosófica que permeiam este tópico. Como já anunciado,
iniciaremos pela Grécia Antiga.
173
FIGURA 1 – O FILÓSOFO PLATÃO
Tendo entendido então a justiça como uma das formas mais puras que podemos
conhecer, passamos a ver como Platão lida com o tema ao longo de A República.
Logo no Livro I surgem algumas possibilidades de definição de justiça por parte dos
interlocutores de Sócrates, aqui usado como personagem. Dentre as principais, citamos
a possibilidade de a justiça ser, segundo o interlocutor Céfalo, não mentir e restituir o
que se deve a alguém. Tal ideia é refutada por Sócrates:
174
Em seguida, Polemarco define justiça como oferecer aos amigos o bem, e aos
inimigos o mal, isto é, oferecer a cada um o que lhe é devido. Sócrates então questiona
se não é possível que alguém se engane quanto ao caráter dos amigos e dos inimigos,
julgando como bom alguém mau, e mau alguém bom. Ainda assim, caso alguém se
proponha a fazer o bem para os amigos de fato bons e mal para os inimigos de fato
maus, isso não parece ser um papel da justiça. Isto porque uma virtude, como é a
justiça, não é utilizada para gerar um dano e, portanto, seria um erro utilizar a virtude da
justiça para causar um mal, como fica claro no seguinte trecho do debate entre Sócrates
e Polemarco, no qual Sócrates questiona:
175
mesmo e por suas consequências. Além disso, e ponto crucial, é que no Livro II, Platão
trata da questão da justiça circunstanciada na cidade e logo encontra a necessidade
de cada indivíduo possuir uma função própria para que cada função seja exercida com
excelência. Desta forma, os personagens passam a designar os papéis e atribuições do
guerreiro no Livro II, e de demais classes presentes na cidade ao longo do Livro III.
É no Livro III que Platão apresenta o Mito Fundacional, que divide as classes
da cidade de acordo com o metal que o deus criador deu a cada cidadão no momento
da geração. Desta forma, cada metal representa certa aptidão da alma, sendo o
ouro presente nos governantes, a prata nos auxiliares e o bronze, ferro ou cobre nos
agricultores e artesãos. Platão ainda ressalta que alguém vindo de família de um metal
pode nascer com predominância de outro e, consequentemente, acabará exercendo
a função de acordo com a disposição de sua alma. Em seguida, esboça quais são as
funções de cada grupo social, ou seja, dos governantes, auxiliares e trabalhadores.
176
Podemos também, falar sucintamente da igualdade. Ela parece se dar
justamente por aceitar que os indivíduos não são iguais. Quando citamos o
Mito Fundacional, em que cada indivíduo teria a predominância de um metal e,
consequentemente, de uma função social, esse parece ser um traço que iguala os
indivíduos: cada um possui uma função, pertence a um grupo social e para Platão, isso
não representa uma injustiça, pelo contrário, como mostramos na citação anterior, é
justo que cada um cumpra sua função.
177
2.2 ARISTÓTELES E A QUESTÃO DA LIBERDADE
178
Tratando da liberdade, em outra obra, Ética a Nicômaco, Livro III, Aristóteles
nos fala sobre ações voluntárias e involuntárias. Classificá-las depende da ocasião
em que o agente atua. As ações involuntárias, em resumo, são aquelas cuja origem
é externa ao agente ou se dão por compulsão ou ignorância. Aqui, queremos nos ater
às ações voluntárias, que dependem da vontade do agente. Aristóteles usa o exemplo
de um navio em meio a uma tempestade para ressaltar o caráter da ação voluntária.
Escolher atirar os pertences ao mar para poder salvar a própria vida e dos demais é uma
ação voluntária, ainda que a circunstância a tivesse feito agir:
3 A INTERPRETAÇÃO MODERNA
Daremos um passo de quase dois mil anos desde os filósofos da Grécia Antiga
e passaremos à Filosofia Moderna. A Filosofia Moderna, aqui, em especial, a filosofia
política moderna, cujo início é ensaiado em Maquiavel (1469 – 1527), é caracterizada
pela inquirição sobre aspectos da sociedade em relação aos governos, como os modos
de legitimação de um governo ou ainda, o modo como os governos devem lidar com as
liberdades individuais, com a propriedade privada, e assim por diante. Deste modo, o
próximo subtópico concentra-se em John Stuart Mill, conhecido principalmente como
um dos grandes nomes do Utilitarismo. Aqui, utilizaremos a obra Sobre a Liberdade para
tratar, como já se pode imaginar, da concepção de liberdade em Mill.
179
3.1 LIBERDADE EM JOHN STUART MILL
Passamos agora à filosofia política moderna para falar de liberdade. John Stuart
Mill (1806-1873) foi um dos maiores nomes da filosofia inglesa do século XIX. Foi um
dos defensores do utilitarismo e do próprio liberalismo. Aqui utilizaremos a obra Sobre
a Liberdade para abordar a concepção de Mill sobre a liberdade no âmbito social, no
âmbito do indivíduo e quais os limites da interferência social na liberdade alheia.
Em sua defesa da liberdade, Mill (1991) destaca alguns aspectos a partir dos
quais deve se efetivar a liberdade. São estes, no âmbito da consciência, a liberdade de
pensamento, sentimento, opinião e expressão; a liberdade de agir (enquanto não viole o
outro, e isso veremos adiante). Agir de acordo com o que queremos e buscar as coisas
que nos agradam. Além dessas, a liberdade de ligar-se a companhias desejadas, desde
que estas também o desejem e desde que esta ligação não se dê com o intuito de gerar
um dano.
Ainda, é apontada uma disposição no homem, a que Mill (1991) denomina como
uma capacidade de corrigir os erros. Opiniões errôneas, portanto, podem ser corrigidas
por meio da discussão e/ou por meio da experiência. Aqui se mostra a importância
da discussão. Não só como meio de retificação em caso de erro, mas como meio de
180
conhecer as ideias que se opõe a ela. Para isso, novamente, é necessário que haja
liberdade de pensamento e expressão. Na verdade, não só para corrigir ou retificar uma
ideia. Mill defende que duas visões podem se complementar a partir de uma discussão.
Ora, se os homens não pensam de maneira idêntica uns aos outros, por que
deveriam viver de maneira idêntica? A diversidade de pensamentos e demandas internas
requer uma diversidade de modos de agir e viver. Mas Mill (1991, p. 119) reconhece: “Há na
presente orientação da opinião pública uma característica particularmente adequada a
torna-la intolerante para com qualquer manifestação mais viva de individualidade” e,
seguindo esta lógica, alerta que a ausência da diversidade faz com que passemos a ter
dificuldades em concebê-la.
O quarto capítulo tem como tema dos limites da autoridade da sociedade sobre
o indivíduo. Sendo o próprio indivíduo o mais interessado em sua própria vida, cabe a
ele, a sua espontaneidade, as decisões sobre ela. Entretanto, ele deixa claro que em
questões que envolvem as relações interpessoais deve haver normas de conduta.
A quem nos desagrada, devemos manter distância, e não buscar interferir na vida
desta pessoa, pois as ações dela acarretam consequências e, portanto, o que podemos
fazer é tentar orientá-la na direção que lhe causará menos mal. Mas se não quisermos ser
solidários, então que a deixemos a sua sorte. Entretanto, Mill reconhece a necessidade
da intervenção de terceiros em uma conduta que esteja causando mal à sociedade. Em
contraposição ao caso de alguém que esteja causando mal a si próprio, ele diz:
181
Muito diverso será o caso, se ela infringir as normas necessárias
à proteção dos seus semelhantes individual ou coletivamente. As
más consequências de seus atos não recaem, então sobre ela,
mas sobre os outros, e a sociedade, como protetora de todos os
seus membros, tem direito a represália: deve fazê-la sofrer pela
falta, com o propósito expresso de puni-la, cuidando de agir com
severidade (MILL, 1991, p. 122).
Portanto, ainda que defenda a liberdade como necessária à vida, Mill reconhece
que questões envolvendo malefícios à sociedade devem ser tratadas não sob a
perspectiva de liberdade absoluta, mas sob a perspectiva da lei. Um indivíduo tem a
liberdade de agir conforme entender e arcar com as consequências da ação, sejam
legais, ou, quando não alcançam o estatuto de serem tratadas sob a égide da lei, morais.
Mill (1991) ainda reconhece que a interferência de terceiros, às vezes, está ligada
ao julgamento destes a partir de seus próprios interesses, e não sob o interesse de
quem realiza algum ato. Portanto, certa ou errada, a opinião de uma maioria sobre uma
minoria é circunstanciada nos interesses de quem julga e não de quem é julgado.
4 A INTERPRETAÇÃO CONTEMPORÂNEA
Do ponto de vista da Filosofia Contemporânea, a questão da liberdade, da
igualdade e da justiça passam a ser tratadas a partir de pressupostos não considerados,
por exemplo, na Grécia Antiga. Isto porque cada época apresenta sua particularidade
e, à filosofia política contemporânea coube considerar, por exemplo, a existência e
consolidação do Estado como entidade soberana; os diferentes tipos de regimes de
governo em voga mundo afora; a consolidação do capitalismo em quase todos os países
182
do mundo. Para pensar os conceitos tratados neste tópico, à luz da filosofia política
contemporânea, citaremos nos subtópicos a seguir John Rawls e Ronald Dworkin,
importantes nomes do liberalismo contemporâneo.
A situação que conduz a estabelecer a ideia de justiça deve se dar sob o que
Rawls chama de véu da ignorância. Isto é, para que um acordo social se dê da maneira
mais justa possível, é necessário que as partes conheçam o menos possível sobre
suas condições sociais, classe, interesses. Ou seja, ainda que conheçam a si mesmas,
não saberiam onde se localizam na esfera social, pois, desta forma, diminuem-se as
possibilidades de buscarem acordos que favoreçam apenas a si mesmas. Esta posição
contribuiria para que se encontrasse e acordasse princípios de justiça, visto que ambas
as partes se encontrariam na mesma situação quanto aos seus direitos, a de igualdade.
183
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente
sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um
sistema semelhante de liberdade para as outras. Segundo: as
desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal
modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas
para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições
e cargos acessíveis a todos (RAWLS, 1997, p. 64).
Isso é, quanto ao primeiro princípio, ele diz respeito às liberdades sociais. São, as
principais, a liberdade de expressão, liberdade política, de pensamento, de associação,
liberdade à integridade (contra a opressão), direito de propriedade e proteção de
acordo com o estado de direito. Quanto ao segundo princípio, ele diz respeito à renda
e distribuição de riqueza. Aqui, Rawls (1997) destaca que a distribuição não precisa ser
igual caso a desigualdade gere benefícios a todos.
184
4.2 IGUALDADE EM RONALD DWORKIN
Como vimos, Rawls nos oferece uma teoria da justiça baseada na igualdade de
liberdade. Aqui, veremos uma teoria da igualdade baseada na igualdade de recursos. Ela
é defendida pelo filósofo americano Ronald Dworkin (1931-2013). Em sua obra, A Virtude
Soberana, ele busca defender a igualdade de recursos.
Para isso, num primeiro momento ele busca refletir sobre a igualdade de bem-
estar, que propõe que sejam oferecidos recursos às pessoas até que o bem-estar da
população seja igual, ou o mais igual possível. A primeira questão que ele coloca a
esta teoria é que diferentes pessoas necessitam diferentes coisas para atingir o bem-
estar. Os exemplos que ele utiliza são o de um deficiente, que necessita mais gastos
e materiais para ter seu bem-estar garantido, e o de uma pessoa que prefere tomar
champanhe, enquanto outra prefere cerveja. Neste sentido, existem alguns impeditivos
para que se alcance o bem-estar comum. Pode ocorrer que não se alcance a igualdade
de bem-estar, pois alguns grupos necessitam de mais recursos, sejam no sentido de
suas preferências pessoais, ou no sentido de necessidades. Além disso, ele reconhece
que há também uma dificuldade de definir com exatidão o que é o bem-estar para todos.
Deste modo, Rodrigues (2020, p. 3) afirma: “Assim, a tese de Dworkin (2005) refuta a
igualdade baseada no bem-estar, a uma por não se poder identificar bases confiáveis
para a definição do que seja o bem-estar de cada indivíduo; a duas pela dificuldade de
compensação daqueles em que o déficit de bem-estar advém dos expenses tastes”.
É notável a crítica feita ao utilitarismo, que considera uma ação moral pelo
caráter de aumentar a felicidade ou diminuir a dor do maior número de pessoas. Nesse
sentido, portanto, não é possível que o único critério da ação seja o bem-estar comum,
vistas as dificuldades citadas acima.
185
É em sua obra A Virtude Soberana que Dworkin faz essa análise, bem como
propõe a ideia de igualdade de recursos disponíveis. Tais recursos dizem tanto respeito
a riquezas quanto a qualidades. Ele reconhece o papel de dois itens fundamentais
no processo de garantir a igualdade de recursos: o princípio da responsabilidade do
indivíduo, ao defender que cada um é responsável por suas escolhas quando possui a
liberdade de deliberar o que é melhor em sua vida; e o princípio da igual importância,
que reconhece que diferentes pessoas possuem diferentes demandas, mas considera
a necessidade de tratá-las de modo igual sob certos aspectos.
Como forma de trazer para a realidade sua teoria, Dworkin imagina uma
situação. A de um leilão em uma ilha deserta, onde cada participante inicia com a
mesma quantidade de conchas (que serão utilizadas para o pagamento). Seguindo a
lógica de um leilão, e considerando que todos possuem meios para adquirir os bens que
lhes interessam, o ideal é que ao fim do leilão cada um possua os bens que mais convêm
com seus respectivos modos de vida. Lembremos as diferentes necessidades que as
pessoas possuem. Destacamos:
E o caso das pessoas que possuem demandas superiores de recursos que não
surgiram por meio de suas escolhas, mas por situações do acaso ou infortúnios? Dworkin
aqui traz a ideia de “Seguro”. As pessoas poderiam adquirir o seguro para que, caso se
efetivassem situações se infortúnios e, maiores demandas, não saíssem prejudicadas
por necessitar estes recursos a mais.
186
A busca pela reflexão sobre a justiça, sobre a igualdade, a liberdade, bem
como sobre outros diversos conceitos, é de extrema importância para refletirmos
não só as questões mais diretas que envolvem estes conceitos, mas questões que
caminharam com a humanidade pelo menos nos últimos 2500 anos. O que é, afinal,
a justiça? Somos livres? O que é, então a liberdade? Parece que ainda há muito o que
ser discutido e pensado.
Creio ser possível dizer que a Justiça está para o direito como o horizonte
está para cada um de nós. Quanto mais caminhamos em direção ao horizonte – dez
passos, cem passos, mil passos, - mais ele se afasta de nós, na mesma proporção.
Nem por isso o horizonte deixa de ser importante porque é ele que nos permite
caminhar. Pois também o Direito, na permanente busca da Justiça, está sempre
caminhando, em constante evolução.
187
• A criação do direito não é obra exclusiva do legislador
É aqui que se revela o talento criativo dos grandes e verdadeiros juristas. São
aqueles que, tendo sensibilidade para perceberem os anseios da justiça, empenham-
se em ajustar o Direito a essas exigências antes mesmo do legislador, idealizando
novas fórmulas jurídicas. Buscam a realização da Justiça quando ainda não é ela
encontrada na lei. São os verdadeiros artífices do Direito.
188
• A finalidade da justiça é a transformação social
189
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
• Aristóteles, no Livro III da obra Ética a Nicômaco, discorre sobre ações voluntárias e
involuntárias e a liberdade, para o filósofo, parece se dar no sentido de alguém poder
deliberar por si mesmo sobre determinada ação.
• Em Atenas eram considerados cidadãos apenas homens, com mais de 21 anos, com
naturalidade ateniense e cujos pais fossem atenienses. Além disso, a escravidão era
permitida. A igualdade entre os homens, portanto, não se dá no sentido da igualdade
de direitos.
• John Stuart Mill, em sua obra Sobre a Liberdade defende que o cidadão possua
liberdade de pensamento, associação, ação, expressão e sentimento, mas destaca
que ela não deve ser utilizada para causar um mal à sociedade.
• John Rawls possui uma teoria da justiça em que defende a justiça como equidade.
Defende que as pessoas envolvidas em algum acordo social devem, primeiramente,
estar em posições iguais, ou como ele diz, “sob o véu da ignorância” e, nestes acordos,
dois princípios centrais devem ser observados e respeitados.
190
AUTOATIVIDADE
1 Na Grécia Antiga permitia-se a escravidão que era, inclusive, algo normal no cotidiano
da polis. Aristóteles oferece argumentos para justificar a escravidão. Quais seriam?
191
192
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
BUROCRACIA, CORPORATIVISMO E
PATRIMONIALISMO
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico veremos questões ligadas a três modos de organização do Estado.
A burocracia, o corporativismo e o patrimonialismo. Esses são conceitos-chave para
compreendermos as relações governamentais que permeiam a estrutura do Estado.
2 BUROCRACIA
Nos sobram definições acerca do significado de burocracia, embora literalmente
seja único o seu significado: do francês “bureau” (escritório ou escrivaninha) e do grego
“kratos”, gerando o sufixo “cracia”, que significa “poder”, define-se como “poder do
escritório”, portanto, o poder é racionalmente organizado e exercido por meio de um
conjunto sistemático de procedimentos, baseados em princípios, leis, regras e normas.
É o poder das regras, racionalmente ordenadas para determinados fins. Em outras
palavras, é a forma específica de ordenação das coisas definida pela divisão do trabalho
especializado, em que cada operador exerce funções específicas ligadas à complexidade
do todo, cuja finalidade é o bom funcionamento desse todo. A divisão especializada
do trabalho é exercida com administração profissional, controle hierárquico, cadeia
de comando e coordenação a partir da autoridade legal constituída. Distingue-se das
organizações informais.
193
O tipo ideal de burocracia é a da gestão impessoal e racional-legal, isso é
fundamentado em leis e baseado em regras. A rigor, significa o contrário da gestão
orientada por intuição, voluntarismo, parentesco e amizade, desconsiderando a
autoridade patrimonial ou carismática. A organização burocrática pode ser encontrada
em instituições públicas e privadas, mas uma vez definidos os objetivos da organização,
públicos ou privados, estabelecem-se princípios e leis gerais, em seguida, regras de
procedimentos a respeitar os objetivos e princípios e orientadas por essas leis gerais.
Trata-se da estratégia da maior eficiência possível a fim de obter a melhor eficácia.
Através da burocracia, tudo tende a ser feito de forma respaldada por essas leis,
tornando o processo formal, em tese, o mais impessoal e justo. Tudo passa a depender
de uma autorização, uma declaração, um carimbo e uma assinatura.
194
A burocracia nasceu e se desenvolveu com propósitos racionais absolutamente
justificáveis, baseados na eficiência e eficácia. Tornou-se fundamental na economia
como na justiça, na educação e, acima de tudo, na conformação do Estado moderno.
195
FIGURA 7 - RETRATO DA RESTAURAÇÃO MEIJI, ESFORÇO DE INTEGRAÇÃO E MODERNIZAÇÃO DO JAPÃO
(1868-1912), O QUE INCLUI A INSTAURAÇÃO DE UMA BUROCRACIA PROFISSIONAL
196
Muitos dos problemas identificados nos países em desenvolvimento, é claro,
afetam até os países mais ricos, embora geralmente em menor grau. A extensão em
que a burocracia atua de acordo com a caracterização weberiana (isto é, racional-
legal e impessoal) está relacionada às circunstâncias externas que governam suas
capacidades. Nessa perspectiva, quando esses recursos necessários à manutenção de
uma estrutura administrativa eficiente estão ausentes ou quando há pouca base para
o domínio da autoridade racional-legal, as coisas não funcionam. Incapaz de agir de
maneiras responsável e responsiva e baseada em regras claras, a burocracia estatal
torna-se um problema ao invés de solução. Além disso, quando os salários são baixos e
os recursos educacionais são limitados, os funcionários responsáveis pela operação do
maquinário administrativo podem ter habilidades inadequadas e tornar-se suscetíveis
à corrupção e evasão.
IMPORTANTE
O tipo ideal de burocracia, na concepção do sociólogo alemão Max Weber (1999,
p. 198), diz respeito ao estabelecimento de competências fixas para cada função,
cuja execução é orientada exclusivamente a partir de regras racionais e impessoais,
objetivadas a fins últimos previamente estabelecidos.
Isso não impede que o termo burocracia tenha conotação social pejorativa. As
impressões sociais estão relacionadas a regras e regulamentos excessivos, falta de
sensibilidade para com as situações dos indivíduos, controle centralizado, ausência
de expostas que satisfaçam os cidadãos e ausência de responsabilização. Em termos
vulgares, é o que muitas vezes chamamos de “burrocracia”. Isso deixa cidadãos furiosos
e impotentes diante da “monstruosidade” da impessoalidade racional-legal. Nesse
198
sentido, ao invés da eficácia pronunciada, a burocracia é entendida como obstáculo à
satisfação dos cidadãos. É quando as pronunciadas vantagens da impessoalidade e da
igualdade de tratamento causam o paradoxo de produzir patologias.
199
2.4 A NECESSIDADE DE COMANDO E O PARADOXO DESSA
NECESSIDADE
A autoridade burocrática é hierarquicamente organizada, com responsabilidades
assumidas no topo e delegadas com a devida discriminação de funções e ordem, de
cima para baixo. Devido ao acima mencionado risco real de fragmentação e insulamento
burocrático produzido pelos nichos jurisdicionais (órgãos, setores e outras divisões
burocráticas) a capacidade de coordenar e controlar a multiplicidade de unidades é
essencial. A autoridade é a ligação que une as unidades com tendência à fragmentação,
impedindo que essas unidades exerçam seus interesses corporativos de maneira
incontrolável e alheia ao interesse geral. Trata-se de um verdadeiro paradoxo, qual seja,
o de que, para que a burocracia funcione, não basta que haja bons princípios e boas leis.
O funcionamento das regras depende não apenas do conhecimento especializado dos
burocratas. Embora este fator seja essencial, é preciso que haja mecanismos de comando
e controle que façam com que esse conhecimento não seja usado majoritariamente
para o interesse dos próprios burocratas ao invés de servir aos interesses gerais.
2.5 CONTINUIDADE
A continuidade é outro elemento-chave da organização burocrática. A autoridade
racional-legal exige regras e procedimentos uniformes para documentos escritos e para
comportamentos oficiais. O armazenamento de informações burocráticas através de
seus registros fornece a memória organizacional, permitindo procedimentos operacionais
recorrentes, gerando aprendizado, aperfeiçoamento e previsibilidade. A capacidade de
utilizar procedimentos padronizados torna as organizações mais eficientes, diminuindo
os custos associados a qualquer transação. Arquivos organizacionais registram
procedimentos, comportamento antecedente e registros de pessoal. Eles também
permitem que uma organização seja contínua e, portanto, independentemente de
qualquer liderança específica, ou seja, tende à formalidade e à impessoalidade do poder.
200
De modo geral, a continuidade é essencial, vital para a capacidade de uma
organização manter sua identidade e até sua cultura organizacional. Sem seus
registros, seria impossível manter transações baseadas em legalidade e justificar os
procedimentos de funcionários, setores e órgãos a favor do interesse geral, sem a
interferência espúria de maus governantes e legisladores. A continuidade é, em grande
medida, favorável ao interesse geral da sociedade e das organizações. Quando boas leis
e boas regras constrangem maus atos e estimulam boas decisões de governantes, isso
é naturalmente bom. Quando essas leis e regras, impedem que sucessivos governantes
mudem de rotas seguras para o improviso e com objetivos de apagar o que antecessores
fizeram de útil, isso é de interesse da sociedade e das organizações. Evita-se um dos
piores males da política: justamente, a chamada “solução de continuidade”.
2.6 REGRAS
As regras são a matéria orgânica das organizações burocráticas, a força vital da
organização burocrática e fornecem uma base racional e contínua para procedimentos
e operações. Os arquivos de uma organização contêm uma visão geral das regras
acumuladas. As decisões burocráticas e, acima de tudo, os procedimentos são baseados
em regras e precedentes codificados. Embora a maioria das pessoas não goste de regras
que as inibem, a existência de regras é característica da autoridade legal-racional, o
que garante que as decisões não sejam arbitrárias, que os procedimentos padrão não
sejam facilmente contornados e que a ordem seja mantida. As regras são a essência da
burocracia, mas também são uma vergonha para os líderes que querem fazer as coisas
acontecerem imediatamente.
2.7 PROFISSIONALIZAÇÃO
A profissionalização é absolutamente indispensável ao funcionamento da
burocracia. É essencial que haja um quadro de funcionários atuando na malha burocrática
constituída de leis e suas regras consequentes, e a dedicação do corpo funcional
201
deve ser exclusiva às suas responsabilidades administrativas e legais. No governo, a
profissionalização é exercida pelo corpo funcional cujas funções e posições devem ser
alcançadas pelo mérito, como critério de rito de passagem. A administração pública,
constituída de um corpo permanente e estável de funcionários a serviço da Sociedade,
pode ser entendido como um governo permanente. Em outras palavras, trata-se de
um organismo independente dos políticos transitórios, que ganham e perdem eleições,
entram e saem, servindo o público (e aos seus interesses) por tempo delimitado e na
dependência dos eleitores que, no caso das democracias, decidem quem representará
suas demandas mais importantes a serem apresentadas ao corpo burocrático estatal,
que por sua vez deve viabilizá-las.
2.8 SUMARIZAÇÃO
Na Ciência Política, a burocracia é compreendida a partir de seu aspecto
funcional e crítico. O aspecto funcional nos diz o que ela representa, para que serve
e demonstra a importância que tem nas nossas vidas. O aspecto crítico nos instiga a
reconhecer seus problemas, compreender a origem desses problemas e revelá-los, a
fim de que a sociedade saiba como enfrentá-los, se quiser enfrentá-los. Sob o aspecto
funcional, sabemos que a burocracia faz parte da racionalização da sociedade, algo
exigido pelo sistema econômico, mas também, pela complexidade da vida social nas
sociedades de massa. Seria impossível viver em sociedade sem um sistema racional-
legal de governo. Isso implica um sistema executivo, que executa leis. Evidentemente,
implica um sistema jurídico, que é o guardião e o intérprete das leis. E implica um sistema
legislativo que, em nome da sociedade, deve interpretar as demandas da sociedade e
transformá-las em leis. Em tese, é isso.
Seria, igualmente, impossível viver sem leis que regulassem as relações sociais
e pessoais nos diversos momentos da vida de cada um. As sociedades sempre têm
certo grau de autonomia e capacidade de auto-organização, o que na linguagem
202
sociológica denominamos de capital social. Significa capacidade de cooperação,
solidariedade, diálogo, confiança e respeito ao próximo. Mas, os conflitos de interesses
que surgem o tempo todo nas sociedades de massa, requerem leis e a garantia de
seu cumprimento, para os objetivos gerais da Sociedade. Isso vale para qualquer
organização, governamental ou não, com seus interesses públicos ou privados. Para
que tais objetivos sejam alcançados e mantidos, um conjunto de leis e regras se faz
necessário. E para que as leis sejam materializadas e preservadas, as regras têm de
ser cumpridas. Por sua vez, o cumprimento dessas regras exige que pessoas com
conhecimentos especializados as procedam da maneira correta.
IMPARCIALIDADE RACIONALIDADE
FORMALIDADE
3 CORPORATIVISMO
Originalmente, a definição de corporativismo diz respeito à prática de
organizar a sociedade em "corporações" profissionais subordinadas aos interesses do
Estado. Nessa direção, tanto trabalhadores quanto empregadores se organizam em
corporações profissionais e industriais, funcionando como órgãos de representação
política e controlando em boa medida as pessoas e atividades dentro de sua jurisdição.
Nesse sentido, o corporativismo significa a associação de agentes de uma mesma
categoria profissional ou empresarial, cujos interesses de manutenção de seus direitos
e prerrogativas são representados assim, coletivamente, perante o Estado.
203
Por definição, podemos afirmar que o corporativismo é um fenômeno
constituído por um tipo de associação de agentes que tem interesses em comum e
coletivamente se organiza para defendê-los. É uma composição semelhante à dos
sindicatos, empresariais, trabalhistas ou de profissionais autônomos. Essencialmente,
caracteriza-se pela lógica da associação e da cooperação solidária, por interesses
comuns entre os integrantes na defesa. Mas, associações e sindicatos são iniciativas
livres e, principalmente, desatreladas do Estado ou de qualquer autoridade maior. São,
portanto, independentes. Diferente disso são as corporações que, originalmente, foram
criadas a partir de estímulos do Estado, de um tipo de Estado ou governo específico: o
Estado autoritário e, mais especificamente, fascista na sua origem.
204
entender que, ao longo do tempo, o corpo burocrático de qualquer governo irá “cobrar o
seu preço”. É inegável que o poder político de organização corporativa esteja assentado
no saber técnico, racional-legal e mesmo científico da coisa pública. E o principal mote
dessa força corporativa está justamente na profissionalização.
205
burocráticas. Torna-as mais resistentes às instruções de pressões externas, seja de
governantes e seus escalões diretos, seja de parlamentares ou da sociedade organizada
em geral. Isso pode ser bom ao interesse público na medida em que a resistência
burocrática não se dobra a interesses alheios à sociedade. É aquela história de um
“favorzinho pessoal ao compadre do fulano, prefeito, deputado, vereador”, que pode
ser evitado com ética e profissionalismo. Nesse sentido republicano, uma burocracia
profissional se mostra útil na autoafirmação de suas características fundantes, isto é, a
legalidade e a impessoalidade.
O “espírito de corpo” dos burocratas vem daí. Quando usamos esta expressão, é
isso que quer dizer corporativismo, ou seja, a tendência de fazer prevalecer os interesses
do corpo de indivíduos que pertencem a um mesmo grupo. Esse corporativismo pode
muito bem ser empresarial, sindical, intelectual ou de outra ordem. Muitas relações
promíscuas com o Estado existem a partir desses. Aqui, pelas especificidades da
Ciência Política, nos referimos ao corporativismo do setor público. Isto é, referimo-
nos ao protecionismo do “corpo profissional burocrático”, subdividido e fortalecido em
centenas de categorias profissionais. Esses “corpos”, imbuídos de forte sentimento de
coesão e pertencimento, demonstram um empenho vital na defesa de seus interesses
“corporativos”. A justificação do corporativismo sempre é feita em nome do interesse
geral e de valores morais inquestionáveis. Mas, assim como muitas das regras que são
criadas, também as justificativas escondem o interesse corporativo.
206
custas dos recursos retirados da sociedade, muitas das ações, regras e procedimentos
que se justificam em nome do interesse público, são também de interesse corporativo e,
a rigor, nem sempre precisariam existir no todo ou na dimensão que existem.
4 PATRIMONIALISMO
Por fim, à abordagem temática da burocracia e do corporativismo correspondente,
é importante associar uma explicação sobre o fenômeno do patrimonialismo. Como
conceito na Ciência Política, é bastante útil conhecer sua relação conceitual e prática
na conformação do Estado burocrático e corporativista. Não necessariamente como um
elemento do Estado moderno, mas de um resquício da constituição política antiliberal e
antirrepublicana que resistiu aos tempos, mais em algumas nações que em outras. Suas
implicações são bastante úteis para refletir sobre a política, as elites e a conformação do
Estado brasileiro e outros casos latino-americanos. Nessa direção, o conceito inspirou o
mais notável estudo sobre o fenômeno no Brasil, do jurista Raymundo Faoro, publicado
no livro “Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro”.
207
FIGURA 9 – O REI LUÍS XV (1638-1715), DA FRANÇA
208
desenvolvido, o fenômeno persiste de forma camuflada. Obviamente não há o mínimo
respaldo legal para o exercício do poder estatal com base no patrimônio pessoal, de
quem quer que seja. Mas a realidade está permeada por brechas, não necessariamente
jurídicas, mas factuais.
209
Nesse contexto de uma sociedade incipiente e submetida aos interesses do
senhor das terras “coronel” patrimonialista a submeter a administração aos seus
interesses privados exclusivamente, a administração pública só o é no nome. De
fato, é uma administração patrimonialista, cujo exclusivo interesse é a manutenção e
ampliação do patrimônio privado.
210
presidência da República, gira em torno de 23 mil postos. É um número notavelmente
desproporcional a outros países de importância econômica e política no cenário
internacional. O nome popular que se dá a essa prática é “apadrinhamento”, algo que
grande parte da população considera “ruim”, mas faz parte da cultura política. Na
perspectiva da Ciência Política, isso tem um nome científico: patrimonialismo e não é
apenas ruim, mas comprometedor ao desenvolvimento de qualquer nação. É nocivo
pelo mal exemplo e pelo custo econômico, porque é injusto e retira recursos preciosos
da sociedade produtiva para entregá-los a quem nada produz.
INTERESSANTE
A matéria da Revista Exame a seguir, postada no blog do Instituto Milennium, é um exemplo,
entre muitos, de como o patrimonialismo sobreviveu aos tempos no Brasil.
211
público irresponsável e o patrimonialismo, que frequentemente estão associados. Seus
ímpetos precisam ser controlados permanentemente, a fim de que o contrato social (no
sentido dos contratualistas) seja preservado. Os meios de assegurá-lo requerem que a
parte organizada da sociedade esteja sempre alerta.
Por essa razão de ordem geral, é fundamental que parte do esforço interpretativo
da Ciência Política também esteja voltado ao esforço de compreender o Estado como
fonte interpretativa e real dos problemas nacionais. Nessa perspectiva, a questão do
gasto público do Estado constitui um assunto de primeira grandeza e fenômenos
conceituais como o patrimonialismo e o corporativismo tem muito a esclarecer,
no que precisam ser insistentemente estudados. É imperativo o desafio analítico e
político de decodificar a malha burocrática que retroalimenta as estruturas do Estado
patrimonialista, centralizador e extrativista. Por extensão, cabe identificar os agentes
constituintes do estamento burocrático, além das condições racionais-legais, dos
fundamentos jurídicos e até mesmo as justificativas filosóficas que determinam suas
garantias, vantagens pecuniárias e seu poder decisório.
212
INTERESSANTE
A OMISSÃO BUROCRÁTICA
Os ministros da Nova Zelândia decidiram cortar 20% de seus vencimentos para auxiliar
no combate à COVID-19, sinalizando para os demais servidores públicos o caminho a
seguir. No Brasil, o grosso da carga tributária suportada pelo sofrido povo brasileiro é
destinado aos detentores do poder (políticos e burocratas), a ponto de o peso de benesses
concedidas a tais cidadãos elevar o peso dos tributos a nível superior, segundo a OCDE,
em levantamento de dois anos atrás, ao de Estados Unidos, Japão, Suíça, Coreia do Sul,
México, China e a maioria dos países com assento na ONU.
Para poder manter uma esclerosada máquina burocrática, que cria inúmeras obrigações
inúteis sobre o cidadão, que ao descumpri-las entram na mira do Ministério Público, o
Brasil é obrigado a endividar-se no mercado, tendo a mais alta dívida entre os países
emergentes democráticos. O FMI já admite que a dívida interna do Brasil, por seus critérios,
mais elásticos que os nossos, já atingiu 90% do PIB e chegará a 98%, no fim de 2020.
Ora, no momento em que se prevê que o desemprego dobrará, que as empresas lutam
para sobreviver ao pagamento de empréstimos e empregados, em que a manutenção
de emprego só é possível com acordos redutores de salários, não se compreende que a
mastodôntica máquina burocrática dos três Poderes das três esferas da Federação não
dê demonstração de patriotismo, aceitando a redução de seus subsídios ou vencimentos.
O Estado de S. Paulo publicou, em 2015, que o governo federal mantinha 115 mil servidores
não concursados, ante 4 mil no governo Obama (EUA) e 600 no de Merkel (Alemanha). Alvin
Toffler, no livro A Terceira Onda, afirma que os burocratas, quando se integram ao poder, são
mais permanentes que os políticos, pois sua função é, quase sempre, criar obrigações sobre a
sociedade e, dessa forma, tornar-se imprescindíveis. Em suma, se os políticos são temporários,
dependendo sempre de eleições, os burocratas são permanentes. Se tivéssemos apenas uma
redução de 10% na sua remuneração, por seis meses, o governo poderia utilizar tais recursos
para combater com mais eficácia a pandemia que assola o mundo.
213
auxiliarem os eleitos a chegar ao poder, recebendo o prêmio de seu apoio –, mas técnicos
concursados, se o exemplo viesse deles, dariam excepcional contribuição para que a
Nação, abalada, readquirisse fé nas instituições – às vezes tisnada por inúteis desavenças
entre autoridades, num momento em que todas deveriam estar juntas e unidas nas duras
batalhas que ainda teremos pela frente.
Quanto mais insensíveis forem, mais o governo terá dificuldade de lançar títulos no
mercado, pois para sustentar a pantagruélica máquina burocrática dos beneficiários da
República, com receitas reduzidas e despesas aumentadas, será impossível determinar os
juros ideais a prevalecerem em títulos de médio e longo prazos, o que elimina a atração
pela compra de papéis governamentais, em médio e longo prazos.
Estamos numa guerra sem data para terminar e sem cenário estável para a recuperação
mundial, pelo menos razoavelmente previsível. Que o exemplo de patriotismo, e não de
mesquinhos apegos às benesses que usufruem, seja dado por todos os servidores públicos
brasileiros, o que também serviria de modelo para outras nações em idêntica batalha.
214
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
• As corporações atuaram durante regimes fascistas, como o da Itália. Por não ser um
tipo de organização dependente do poder Legislativo ou Judiciário, por ser organizada
por si própria, os governos fascistas buscavam alianças com estas organizações.
215
AUTOATIVIDADE
1 O corporativismo estatal é uma importante característica a ser compreendida
na configuração da ordem política de qualquer sociedade. Seus impactos na vida
republicana são consideráveis porque a defesa autointeressada se choca, com
alguma frequência, com o interesse geral. Considerando isso, responda como se
caracteriza o corporativismo estatal?
216
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
CRISE E REFORMA DO ESTADO:
REPUBLICANISMO, DESCENTRALIZAÇÃO
E UMA PERGUNTA: QUEM FAZ AS LEIS
E PARA QUÊ?
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico procuramos trabalhar algumas noções, iniciando pela noção de
republicanismo, tratada desde os tempos da Grécia Antiga. Nesse sentido, buscamos
a noção do republicanismo cívico para tratar o atual período. Estando fortemente
ligado com os movimentos do liberalismo, nos traz também a necessidade de refletir
a liberdade.
2 REPUBLICANISMO
O conceito de "republicanismo" é um dos mais importantes entre todo o
conhecimento que compõe a Ciência Política. Isso tem a ver com o seu significado
literal, oriundo do substantivo “república”, que significa “coisa pública”. Tem a ver, por
extensão, com a própria utopia da política Ocidental, em permanente construção, isto
é, tornar a vida em sociedade como o resultado cotidiano e igualmente permanente
de uma expressão da legítima vontade dos indivíduos. Fazer com que a ordem política
institucional seja realmente tratada como patrimônio de todos e gerida em benefício
dos justos. Essa trajetória civilizatória em busca da materialização da república começa
com os gregos, há cerca de 2.500 anos, passa pela civilização romana, atravessa os
tempos, evolui, porém, continua. No século XXI, experimentamos importantes desafios
217
republicanos, marcados pela afirmação constante da democracia e pela tentativa de
fazer o sistema político evoluir na direção de um renovado republicanismo através dos
movimentos de descentralização do poder.
218
DICA
Republicanos cívicos: é a denominação dada aos autores modernos
do passado ou aos contemporâneos – Lembra-se: a modernidade inicia
no século XV. Os republicanos cívicos os encontramos principalmente
na História Política, na Filosofia e na Ciência Política, mas também na
Sociologia, na Antropologia e na Economia. Eles estudam as formas de
participação cívica dos cidadãos na política, encontrando nesse fator
a explicação do desenvolvimento das instituições políticas ocidentais
ao longo dos séculos. Machiavel já enaltecia o civismo dos florentinos
como causa das virtudes e do desenvolvimento de Florença.
Contemporaneamente, o civismo está bastante associado aos estudos
sobre instituições políticas, desenvolvimento regional, capital social e
processos de descentralização político-administrativos.
DICA
Liberalismo: quando mencionamos o liberalismo, assim como outros termos muito
utilizados no vocabulário das ciências sociais, precisamos distinguir o significado conceitual
das conotações pejorativas.
219
negativa); ou, o liberalismo seria a solução para o Estado ineficiente e corrupto. Melhor
seria o Estado mínimo, deixando que cada um cuidasse de suas vidas e, no fim das contas,
tudo se ajeitaria melhor.
Observação: nada, nem mesmo a mais pejorativa das ideias sobre qualquer coisa, deve ser
desprezada ou menosprezada pela ciência. A ciência não julga. Investiga, analisa e interpreta.
Quem julga somos nós como cidadãos.
Por sua vez, a concepção "positiva" de liberdade tem a ver com a ideia de
que um agente, individual ou coletivo, é positivamente livre ao ter controle sobre sua
decisão. Naturalmente, há variações interpretativas. Mas ser positivamente livre é ser
capaz de agir de acordo com o que queremos fazer e não de nos negarmos a fazer o
que queiram que façamos. Por exemplo, numa mesma situação, querer votar e fazê-lo
é uma liberdade positiva, enquanto não ser obrigado a votar é uma liberdade negativa.
E deve estar claro, a nós, que “negativo” não significa algo ruim. Apenas significa que,
assim como precisamos da liberdade de afirmar, também precisamos da liberdade
de negar. Berlin identifica a liberdade positiva principalmente em filósofos como
Spinoza, Rousseau e Hegel. Embora tenha encontrado algum apoio entre os filósofos
hegelianos ingleses como Thomas H. Green, aqueles que defendem a concepção
positiva de liberdade geralmente têm sido minoria, como é o caso da maioria dos
filósofos de língua inglesa hoje.
220
exemplo, ou o nosso empregador, ou o nosso vizinho, não podem nos obrigar a fazer
coisas que não queremos. A pergunta que fica é: se o significado contido e absorvido
na perspectiva de liberdade negativa – como não interferência nas nossas escolhas
– realmente expressa o tipo ideal político (republicano) que mais nos interessa. Os
republicanos civis contemporâneos argumentam que não.
221
parte do nosso Estado democrático e de direitos. Mas essas são, em geral, liberdades
civis (direitos), de ordem individual, de ordem privada. Do pondo de vista republicano,
o que nos importa é a compreensão das liberdades (direitos) políticas. E essa, em
geral, tem a ver com a concepção “positiva” de liberdade, isto é, com o direito de fazer,
não de ficar inerte. De toda maneira, o republicanismo inclui as duas concepções de
liberdade, considerando, o que comporta a ideia de ver-se livre da dominação, com a
qual concordam autores como John Pocock, Phillip Pettit e Quentin Skinner.
IMPORTANTE
Um importante exemplo de política comparada é através da leitura do artigo intitulado
Capital Social e Desenvolvimento na Região Metropolitana de Porto Alegre: Comparando
Novo Hamburgo e São Leopoldo. Segue o resumo do artigo:
“Este artigo analisa a relação existente entre o capital social e o desenvolvimento local a
partir do estudo de dois municípios do estado do Rio Grande do Sul, Novo Hamburgo e
São Leopoldo, municípios estes situados na região metropolitana de Porto Alegre. Nossa
hipótese de trabalho sugere que o capital social existente nestas localidades se constitui em
uma variável importante que pode explicar em parte o desenvolvimento destas cidades. A
metodologia utiliza os resultados de duas pesquisas quantitativas, tipo surveys domiciliares,
aplicadas em ambos os municípios, com amostras probabilísticas, totalizando
1213 questionários, com erro amostral de 4% e confiança de 95%, bem
como pesquisa documental aos sites das referidas prefeituras, IBGE, TCE
e FEE. O estudo demonstrou que a confiança que as pessoas nutrem
umas nas outras, bem como as formas de participação, solidariedade e
cooperação estão correlacionadas positivamente com os índices
de desenvolvimento local, em outras palavras, com indicadores de
longevidade, renda, escolaridade, acesso a bens públicos, entre
outros que compuseram nosso Índice de Desenvolvimento Local”.
222
2.3 QUEM FAZ AS LEIS E PARA QUEM?
Esse esforço científico ou filosófico de autores sobre o republicanismo é
importante por várias razões. Do ponto de vista histórico, conseguimos notar o
processo evolutivo das sociedades. Nos permite compreender que decisões e ações
políticas refletidas com base na liberdade e na participação direta e indireta da
sociedade geram efeitos positivos. Geram desenvolvimento e servem de exemplo
entre as sociedades, os diversos grupos sociais e os indivíduos. Permitem a percepção
sobre a importância civilizatória de instituições políticas, cuja qualidade, depende
de conhecimento e espírito público. Com isso, se quer dizer que as leis devem ser
republicanas, atendendo ao interesse da coisa pública. Significa que nem sempre
as leis são exclusivamente de interesse público. Com bastante frequência, elas
beneficiam não a todos, mas a determinados segmentos da sociedade, notadamente,
os segmentos corporativamente organizados.
223
de uma cidade e de uma nação. Não obstante, insista-se, os indivíduos precisam querer
a liberdade, não meramente individual e negativa, mas a liberdade política e positiva.
Trata-se da liberdade de escolher, opinar e, de algum modo, de participar dos processos
decisórios republicanos. Numa palavra, a política depende do interesse dos indivíduos
que são invariavelmente afetados por ela. Se são afetados, precisam antes interferir
nela, para que esteja o mais próximo possível de seus anseios mais justos.
INTERESSANTE
Contribuições de Pocock, Pettit e Skinner ao conceito de republicanismo
John Pocock
Phillip Pettit
224
“pai” da Ciência Política, Machiavell, entre os séculos XV e XVI. A grande contribuição deste
autor ao conceito de republicanismo está em afirmar que a liberdade só existe na medida
em que indivíduos encarnam a condição de cidadão. O que isso significa, para o autor, é
que só é livre aquele que desfruta do desejo e da coragem de conquistar sua liberdade,
não se dobrando às interferências de qualquer poder, vindo ele do Estado e suas instâncias
ou de outros indivíduos. É importante lembrar: Pettit não nega a autoridade e interferência
do Estado. Esta deve ser concebida somente quando representar legitimamente a vontade
dos indivíduos em coletividade (está implícita a ideia do contrato social). Do contrário, será
uma interferência arbitrária, não representará o acordo possível pelo “contrato social”
entre os cidadãos, que aceitam a interferência do Estado quando para o bem coletivo e
proteção individuais.
Quentin Skinner
225
propomos o entendimento sobre a evolução e a lapidação do republicanismo, que
conduz à percepção sobre os movimentos de descentralização como tendência do
Estado para o século XXI.
Ora, essas dificuldades podemos bem admiti-las diante de certas situações. Por
exemplo, quando nos defrontamos com os atuais desequilíbrios regionais no interior
de um país, podemos perceber as dificuldades do Estado contemporâneo manifestar
seu poder hegemônico. Primeiramente, porque a forma mais recente de manifestação
desses desequilíbrios tem a ver com a globalização desencadeada na última década do
século XX. Do ponto de vista do poder político, a principal característica desse processo
é a sobreposição e influência de interesses econômicos privados sobre os desígnios do
Estado nação. Em outras palavras, essa sobreposição significou, mais do que nunca, em
perda de soberania.
226
expresso por segmentos sociais. Não se ignore o quanto a “mão” do Estado é necessária
ante a grandeza dos problemas, principalmente esses relacionados à segurança e
assistência social. Nessa seara, alguns cenários são claramente hobbesianos.
227
o pressuposto hobbesiano é influente nas concepções da ordem política moderna,
considere-se, por exemplo que essa ideia do sacrifício da liberdade estava apresentada
a condição de justificação do Estado soberano, ente superior único capaz de garantir
ordem social.
Não deve causar surpresa que essa concepção continue implícita à cultura
política ocidental, mesmo no interior de ambientes institucionalmente democráticos,
durante o século XX. A rigor, como admitimos anteriormente, são inúmeras as situações
sociais, relacionadas à segurança e à cidadania, a solicitarem a presença soberana do
Estado, sem a qual não haveria o que fazer.
Disse Rousseau (1712-78), desde que o primeiro ser humano resolveu cercar um
pedaço de terra e afirmá-lo como sua posse, ali estaria a origem de todo o conflito social
e de todo o mal humano. Em sociedade, o desejo de posse das coisas levaria os homens
a disputas e conflitos. É a ideia central que encontramos no Discurso sobre a origem e
os fundamentos da desigualdade entre os homens, publicado originalmente em 1754
(ROUSSEAU, 1997). Por consequência disso, o Estado se justifica se somente garantir
as condições do restabelecimento da natureza humana do “bom selvagem”. Assim,
228
enquanto o principal direito no Leviatã de Hobbes é a garantia à vida, no pensamento de
Rousseau será o restabelecimento da igualdade entre os homens. Esta seria a expressão
da vontade geral e “condição natural” que garantiria inclusive a liberdade, a precedência
da igualdade em relação à liberdade.
IMPORTANTE
Veja-se como as ideias são poderosas, justificam decisões e ações e produzem
consequências importantes. Valor central na obra de Hobbes, a segurança é a principal
justificativa das experiências autoritárias e totalitárias. Era exatamente essa a posição de
Golbery do Couto e Silva (1911-1987), artífice intelectual do regime militar brasileiro, ao
defender uma intervenção autoritária no Brasil da década de sessenta e
justificar posteriormente a intervenção militar de 1964. Mas essa posição
já a encontramos nas palavras do cientista político estadunidense Samuel
Huntington (1927-2008), não por acaso consultor em três governos
militares brasileiros. Huntington, como seu leitor Golbery, sustentava
que pelas peculiaridades históricas do Brasil, justificava-se uma
suspensão temporária das liberdades em nome da segurança
que permitisse a constituição gradual de ambiente favorável ao
reestabelecimento das liberdades civis. É uma ideia inspirada no
pensamento de Hobbes, sugerindo que são incapazes de manter
a estabilidade em sociedade, por sua natureza egoística. Por causa
dessa natureza, só o Estado autoritário poderia manter a segurança e
resguardar certa liberdade e convívio pacífico entre os homens.
229
Há um importante consenso internacional acerca dessa premissa, conquanto
nada autorize a falar em consolidação desse ideal, ante os desafios mundiais no
combate às desigualdades e à falta de liberdade. Não obstante, útil é lembrar que o
último quartel do século XX foi palco da insurgência neoliberal de uma “nova direita”,
por meio do combate aos direitos instituídos pelo welfare state. A sugestão desses
críticos do intervencionismo de bem-estar foi na direção de um capitalismo anárquico
neodarwiniana. Diante de renovado cenário competitivo promovido pela globalização,
e do esgotamento concomitante do welfare state, a melhor resposta estaria na menor
intervenção do Estado. Assim, ao estatismo meio hobbesiano, meio rousseauniano,
sucederia uma proposta de Estado mínimo nos termos de um reducionismo liberal de
cunho economicista.
230
Ora, esse interesse da maioria, expressando a vontade geral é, em suma, a
epígrafe da democracia moderna. Nesses termos, o contrato de Rousseau foi inspirador
às variações interpretativas e desdobramentos práticos na constituição de inúmeros
Estados democráticos, a começar pela França. Nesse sentido, sua obra é frequentemente
apresentada em oposição ao Leviatã de Hobbes. Afinal, se o contrato social deste
sugere a outorga dos indivíduos ao Estado soberano, Rousseau sugere essa outorga à
coletividade soberana, à qual as decisões do Estado devem estar submetidas. Enquanto
Hobbes é o inspirador do absolutismo, Rousseau é o da democracia.
231
Nesse sentido, o Estado assume, em nome da vontade geral e da concepção
antropológica do “bom selvagem”, uma tarefa gigantesca. Por isso, pode-se dizer
que o Estado, ao tomar a si tarefas que ele poderia compactuar com a sociedade, a
despolitiza. Isso é possível perceber, por exemplo, no excesso de “judicialização” da
sociedade contemporânea, substituindo o diálogo, a política comunitária, e reforçando
o poder corporativista de certas profissões, como as do advogado e do assistente social.
Essa tendência parece se manifestar nos sistemas prisionais, em que certos tipos de
criminosos seriam beneficiados por leis inspiradas nessa concepção do “bom selvagem”.
Na radicalização dessa perspectiva, criminosos são entendidos como vítimas e não
contraventores da sociedade. Eles próprios tendem a assumir, de modo oportunista,
esse discurso. Portanto, retira-se a responsabilidade do indivíduo, imputando-a fatores
externos, significando isso uma espécie de desumanização.
Diante da imensidão dos problemas, cada vez que se diz: “O Estado tem que
fazer”, foge-se da pergunta sobre “quais os limites desse Estado bem-feitor?” Em meio
a esse quadro de unitarismo estatal, o centralismo absolutista hobbesiano é substituído
pelo centralismo democrático de Rousseau. Com isso, ou os indivíduos se tornam
voluntariamente reféns de uma espécie assombrosa de totalitarismo da vontade geral,
ou o Estado se ramifica na sociedade, por meio de novas instâncias intermediárias,
locais e regionais. Nessa direção, não se trataria mais da “proteção atomizada dos
indivíduos isolados e abstratos” garantida pela soberania do Estado centralizado, mas
da consideração “das pessoas reais e situadas na pluralidade comunitária, contexto no
qual imprimem significado às suas vidas” (AMARAL, 1999, p. 128).
232
poder para uma difusão territorial em novas unidades intermediárias, como também no
fortalecimento das unidades federativas. Na filosofia política moderna, essa superação
do centralismo absolutista de Hobbes e do centralismo democrático de Rousseau,
podemos encontrá-la no liberalismo de John Locke. A tendência descentralizadora do
Estado contemporâneo encontra, nos textos do filósofo inglês, um aporte discursivo
importante, embora não exclusivo. Não se encontra ali a alienação dos indivíduos a um
ente exterior único, seja ele o Estado, seja a coletividade. Ao contrário, os indivíduos são
portadores de direitos intransferíveis, sendo estes a vida, liberdade e propriedade.
NOTA
No Brasil, registram-se várias experiências de descentralização
política e ou administrativa nas últimas três décadas, inspiradas na
Constituição Federal. Apesar de aparecem na mídia e na bibliografia
da ciência política, reivindicações ou indicações sobre a necessidade
de um pacto federativo entre União, Estados e municípios, na direção
de maior autonomia das instâncias federativas subnacionais.
233
Nessa perspectiva antropológica, o indivíduo não é simplesmente o ser
atomizado e portador de direitos. Ele é o agente desses direitos, única condição de
garanti-los. Agora sim, estamos falando do sujeito político, condição resultante de sua
liberdade compactuada na comunidade. Esse é o sentido moderno do republicanismo
cívico, contexto no qual os indivíduos em comunidade, são também responsáveis pela
política, e não apenas reflexo passivo do Estado. Ao Estado, modo geral, é incumbência
garantir essa liberdade auto refletida. Sua tarefa agora já não parece tão grande. A
concepção antropológica de Locke confere ao homem a tarefa geral de cuidar da sua
vida, das suas posses e administrar a sua liberdade em coletividade. Quando temos
qualquer referência ou fazemos menção ao liberalismo, precisamos entender que esse
é o âmago do liberalismo político: a vida livre e corresponsável em comunidade.
Nesse âmbito, continua o autor, “não é legitima qualquer interferência por parte
do Estado” (AMARAL, 1999, p. 141). Desta feita, corresponde aos municípios e as regiões
um poder semelhante ao núcleo de direitos e liberdades naturais dos indivíduos. Por
consequência, a descentralização do poder e sua regionalização aproximam o Estado
das comunidades regionais. Nesse processo, a criação de entidades intermediárias ajuda
na governança por meio da instituição de funções auxiliares. Entre outras vantagens,
essa aproximação tende a combater vícios favorecidos pela centralização, como é o
caso do patrimonialismo. E, ao contrário do que pregam os defensores mais centralistas
do Estado, amplia laços de confiança entre governo e sociedade, fortalecendo e
legitimando o poder político estatal ao invés de enfraquecê-lo.
234
Assim, o regionalismo e a descentralização apontam para a própria afirmação do
federalismo como tendência de uma mudança histórica no republicanismo do Estado
Contemporâneo. Incentivar e atribuir poder político e administrativo às regiões significa
potencializar a cultura, as formas de identidade, o diálogo, a solidariedade e a cooperação,
com desdobramentos positivos ao desenvolvimento regional. Segundo Amaral (1999),
essa tendência representaria a própria “reação ao positivismo da Modernidade”. Nessa
perspectiva das instâncias intermediárias de governança, a descentralização e a
regionalização significam algo diferente da relação que os contratualistas Hobbes e
Rousseau sugerem entre o Estado e os indivíduos.
DICA
O Positivismo é uma corrente de pensamento surgida no século XIX, a partir do
pensamento do pai” da Sociologia, o filósofo francês Augusto Comte (1798-1857).
Pressupõe a possibilidade de estudar a sociedade do mesmo modo que a natureza, isto é,
cientificamente. Noutras palavras, Comte defendia a tese de que “é possível entender as
coisas como realmente são”, desde que o método de investigação seja científico.
Nesse sentido, a modernidade transforma tudo e, nos séculos XIX e XX, o positivismo é o
ideário que mais expressa o otimismo em relação às transformações sociais. E, do ponto de
vista político e social, o positivismo da modernidade significa a valorização da cidade, no
lugar do campo, do capitalismo e sua individualização das tarefas ante o trabalho coletivo
na agricultura e nas oficinas de artesãos.
6 CONCLUSÃO
A crise do Estado moderno é permanente por uma simples razão, entre tudo o
mais que se possa dizer: porque o Estado moderno carrega a utopia do “mundo melhor”.
A crise é uma expressão das insatisfações e das esperanças do ser humano. Enquanto
235
homens e mulheres viveram sob o regime da força e da conformidade ideológica mantida
pela religião, o mundo pareceu mais aceitável. O advento do Estado moderno é produto
da modernidade, isso é, da libertação da razão humana na presunção de compreender e
transformar o mundo à sua volta. Desde então, nossas manifestações de insatisfação e
esperança expressam essa presunção. Como seres modernos, representamos a libertação
da mente humana para aspirar por dias melhores, combater o infortúnio e realizar sonhos,
individuais e coletivos. E o Estado moderno expressa essa dupla vontade de realização.
Essa é a resposta mais genérica referente a crise do Estado.
Nessa perspectiva de realização, os indivíduos têm pressionado o Estado a
representá-los, reivindicando e lutando por mais liberdade, mais igualdade e mais justiça,
com tudo que se possa considerar ao largo desses grandes valores republicanos. Em
nome da própria legitimidade “contratual”, o Estado deve responder a isso com alguma
eficácia. Em contrapartida, entre os maiores obstáculos visíveis a essas aspirações,
indivíduos se defrontam com os efeitos antirrepublicanos da burocracia estatal,
como o patrimonialismo e o corporativismo, incluindo a corrupção. São elementos
antirrepublicanos paradoxalmente instalados no Estado, a instituição maior da qual se
esperam respostas republicanas. De modo geral, o que a história política tem demonstrado
é que as respostas mais eficientes por parte do Estado dependem das formas de
manifestação republicana dos próprios demandantes.
INTERESSANTE
Virtude cívica e corrupção
Uma das importantes relações factuais e analíticas na Ciência Política é feita por autores
entre corrupção e republicanismo cívico. A corrupção significa toda forma de interferência
do interesse pessoal e ou corporativo sobre o patrimônio público. Enquanto isso, o civismo
é o contrário, isso é, a sobreposição do interesse público sobre os interesses particulares.
Phillip Pettit (1999), aponta dois aspectos relacionados ao civismo. Segundo o autor, existe
o perigo de corrupção realizada pela burocracia pública. E existe, por outro lado, o perigo
de que o cidadão, se é que se pode assim chamá-lo, de ser o agente corruptor, tentando
subornar o servidor público por algum benefício particular.
Os autores do republicanismo cívico admitem que ambas as situações existem com frequência,
mas rejeitam certa premissa dos institucionalistas da escolha racional de que todo servidor e
cidadão devem ser tratado como um agente propício à corrupção (PETTIT, 1999).
A disposição de cada um de fazer a sua parte, seria compensadora do ponto de vista da vida
em comunidade, racionalizando o uso do patrimônio público e trazendo compensações
materiais e morais, aumentando a autoestima coletiva e o senso de identidade e
pertencimento. Mas concordam autores como os já mencionados Skinner, Pettit e Pocock,
que a educação cívica é fundamental inclusive no processo escolar.
236
É, portanto, a disposição da própria ordem política, através do Estado e suas instâncias
diretamente responsáveis, que o civismo deve ser estimulado. Por meio de valores,
conceitos e ideias-força nos currículos escolares, o processo educacional
pode ser incrementado.
Por ser uma política pública, com princípios, leis, normas e regras, a
Educação formal pode ser o ponto de partida para um processo de
educação cívica, cujos resultados futuros tendem a estar vinculados
ao aperfeiçoamento institucional-legal, capaz de incentivar o
civismo e combater os males republicanos, a corrupção entre eles.
237
da representação, como a distritalização do voto e demonstram o aperfeiçoamento
institucional republicano, aproximando os cidadãos eleitores aos seus representantes
eleitos, dinamizando as instituições políticas formais.
NOTA
Voto distrital: é crescente no Brasil e em outras democracias o tema da distritalização do
voto. O voto distrital significa a divisão do número total de eleitores de um território em
distritos. Nessa situação, o eleitor vota apenas em candidatos de seu distrito eleitoral para
os cargos ao legislativo, isto é, vereadores, deputados e senadores.
Assim, podemos imaginar uma unidade federativa (um estado, no caso de sistemas
republicanos federativamente descentralizados): digamos que haja ali um milhão de
eleitores. Faz-se uma divisão geográfica em, por exemplo, dez regiões, em que cada uma
concentra 100 mil eleitores.
Digamos que haja 20 vagas para o legislativo estadual, ou ainda, que haja 20 vagas para
eleger deputados federais. Nessas circunstâncias, cada distrito elegerá dois candidatos ao
legislativo estadual e dois ao federal, nem mais e nem menos.
Os eleitores votarão apenas em candidatos do seu distrito eleitoral, que coincide com a sua
região geográfica. Nessa situação, o eleitor não pode votar em um candidato a deputado de
outra região, isto é, outro distrito eleitoral. Vota somente em candidato que tenha domicílio
eleitoral em alguma cidade que pode ser a sua ou alguma próxima.
239
IMPORTANTE
Relação dos 25 países mais prósperos, por ordem de classificação, segundo o Instituto
Legatum (2015).
É importante observar que a classificação pode variar, ano a ano, em função do número
de variáveis que acompanham o IDH. Do mesmo modo, é importante levar em conta que,
entre essas variáveis, são contabilizados critérios que demonstram graus de liberdade
e de capital social, que mencionamos como critérios republicanos fundamentais ao
desenvolvimento político.
240
LEITURA
COMPLEMENTAR
O PODER JÁ NÃO É MAIS O QUE ERA
Iker Seisdedos
O poder, como a energia, não se cria nem se destrói... Mas irremediavelmente ele
se dissemina entre uma multidão de agentes, de micropoderes em cujas mãos acaba
degradado. Essa degradação e o seu efeito sobre a marcha do mundo no século XXI,
são os temas centrais de O Fim do Poder (LeYa), novo ensaio de Moisés Naím, prestigioso
analista internacional e colunista do EL PAÍS. Esse foi também o tema central da
conferência proferida ontem à noite pelo pensador na sede madrilenha da Fundação
Rafael del Pino.
“O poder é cada vez mais fácil de obter, mais difícil de usar e mais fácil de
perder”, repetiu o ex-ministro venezuelano e ex-diretor-executivo do Banco Mundial
em várias ocasiões durante sua fala. Sua exposição, diante de um auditório lotado,
foi marcada pelo mesmo afã do livro, que aposta em “limitar a opinião” e confiar em
dados e revelações sem armadilhas para sustentar seus alicerces intelectuais. Pareceu
pertinente, portanto, que a palestra começasse com uma enxurrada de exemplos, que
Moisés Naím apresentou como “uma pequena brincadeira”.
O que têm em comum o papa Bento XVI, “o primeiro a renunciar em 700 anos”,
a impossibilidade de Obama em cumprir suas ameaças contra a Síria, a venda do jornal
The Washington Post à nova hegemonia da Amazon por 250 milhões de dólares ou a
declaração da falência do gigante fotográfico Kodak mais ou menos no mesmo momento
em que o Instagram, com sua intangibilidade e seus “13 empregados”, mudava de mãos
por 1 bilhão de dólares? Todas são patentes demonstrações, segundo Naím, de que “o
poder já não é mais o que era”.
“É um fato que está em plena mudança: dos EUA e da Europa à Ásia, dos palácios
presidenciais às praças públicas, do imobilismo das grandes companhias ao frescor das
start-ups. Essas mudanças são muito importantes, mas não basta determinar esses
movimentos de A para B. É importante levar em conta que o poder que chega a B é menor
do que o que A possuía”. Naím, que dirigiu durante 14 anos a influente revista Foreign
Policy, admitiu que sua tarefa é “intimidadora” (também se ouviu o adjetivo “polêmico”).
Não tanto pela sombra da caudalosa literatura anterior sobre o tema, mas porque o ensaio,
que quando foi lançado em inglês mereceu comentários elogiosos até de Bill Clinton
(“Mudará sua maneira de ler as notícias, sua maneira de pensar na política e sua maneira
de olhar o mundo”), defende “teses que vão contra a narrativa dominante”.
241
“Sei que afirmar que o poder está se tornando mais frágil e vulnerável contradiz
a percepção mais difundida de que vivemos em uma época na qual o poder está cada
vez mais concentrado e de que seus detentores estão mais fortes e mais firmes do que
nunca”, admite Naím no livro, antes de se lançar a uma estimulante refutação, da qual
ontem ofereceu um resumo por temas: da força militar, um Gulliver do qual crescem
anões como os drones (o recurso ao herói de Swift também apareceu ontem à noite),
à política e sua incontrolável descentralização, passando pelo mundo empresarial
e as religiões, onde se dão fenômenos inéditos como a sangria de fiéis sofrida
pelo catolicismo na América Latina em favor de novos cultos, com seu dinamismo
“semelhante ao de uma start-up”.
242
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
• O conceito de liberdade negativa diz respeito à liberdade do indivíduo não ser coagido
pelas forças do Estado a agir de determinada forma. Neste sentido, ele exerce sua
liberdade quando o Estado não interfere em suas ações.
• A concepção de liberdade positiva está ligada a ideia de o indivíduo ser livre para
controlar suas decisões.
• A liberdade como não dominação está ligada à ideia de liberdade coletiva. Liberdade
de ação, pensamento, decisão, expressão etc.
• Hobbes oferece uma justificativa para o Estado centralizado. Ele toma o contrato
social estabelecido entre indivíduos cientes de sua incapacidade de organização por
si mesmos, recorrem ao Estado para determinar normas e restringir liberdades para
que os indivíduos tenham direito à vida e à segurança.
243
AUTOATIVIDADE
1 Como os pensadores chamados neorrepublicanos ou republicanos cívicos encaram
o republicanismo?
244
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ANOTAÇÕES
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