Sobre Kianda e Afins
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Sobre Kianda e Afins
UERJ
FAPERJ
Esses são, assim, os primeiros habitantes de Angola dos quais descende a nação.
Por advirem dos primeiros seres sobrenaturais, garantem ao povo angolano as
características do “reino da brancura”, ou seja, aquele em que se origina o bem e a
felicidade eterna.
No que se refere ainda à pesquisa desse antropólgo, aprendemos que diversas
narrativas orais apontam que, além do casal primordial, Nzàmbi criou, igualmente, seres
denominados gênios da natureza, que são dotados de componentes humanos e divinos.
Dentre eles, destacamos as Kiandas forças da natureza que mesclam traços humanos,
que variam entre o masculino e o feminino. Esses seres podem ser designados em
idioma quimbundu, no singular, de kyàndà, kitúta ou kíxìmbí, a depender do local onde
façam suas aparições e sejam reconhecidos. Desse modo, a kituta ou kíxímbì é
encontrada nos rios, nas nascentes, nos lagos, nas lagoas e nos poços, ao passo que a
Kianda habita esses mesmos lugares, além do mar oceânico. Semelhante ambigüidade
se dá com relação ao seu sexo, que não é definido, podendo, portanto, serem
identificadas tanto como homens e mulheres. Grosso modo, podemos afirmar com base
no material fornecido por Coelho que a classificação Kyàndà é dada na região do rio
Kwanzà que banha a cidade de Luanda e avança em direção ao interior do país. À
medida que o rio segue seu rumo, a denominação Kitútá fica mais evidente. Kixìmbí é o
termo antigo, atualmente pouco usado, mas que tem idêntico significado. Há que se notar,
todavia, que a etimologia da palavra remete ao verbo Kwàndà que indica ação de “mover,
levar de um lado ao outro, sonhar, imaginar, fantasiar”, já que a vida se dá pelo sonho, no
mundo luminoso onde vivem os seres sobrenaturais que originaram o povo quimbundu.
Apesar de vários relatos sobre a aparição desses seres não há traço corporal
específico que permita unificar sua aparência. Isso justifica a afirmação feita
anteriormente sobre a diversidade do seu sexo e suas formas. No entanto, todos os
depoimentos afirmam serem esses seres míticos cercados por “um clarão, cintilação de
luz, a cor branca, remoinhas das águas ou do ar”.
Por estarem ligadas à fecundidade feminina, as Kiandas nutrem especial atenção
pelas crianças, sendo atribuído a elas o nascimento de gêmeos ou ainda a presença de
sinais que, identificados pelos líderes religiosos das comunidades quimbundas, lhes
outorgarão poderes espirituais. É comum atribuir ainda a elas o desaparecimento de
crianças que, transformadas em um de seus filhos, são levadas a morar no interior das
lagoas, rios e mares. Por isso, é freqüente sua associação dessas a Iemanjá. No entanto,
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as deusas angolanas nada têm a ver a divindade iorubá. Uma das diferenças marcantes é
que esta não apresenta ligações com gêmeos e crianças.
De acordo com o imaginário cultural africano, contudo, as crianças e idosos ocupam
lados complementares do ciclo de vida no mundo visível. Uma particularidade das
crenças quimbundas é o fato de crianças com deficiências físicas serem portadoras de
dons especiais a serem usados em benefício de seu povo. Os jingongos, gêmeos, em
língua quimbundu, são considerados também gênios da natureza, abençoados pela
Kianda, que vêm à terra nortear a sociedade com relação ao seu devir. Tradicionalmente,
ao nascerem gêmeos em uma família de origem quimbundu, os nomes adotados serão,
respectivamente, Kakulu, que quer dizer “o mais velho, o mais antigo” (palavra cuja
etimologia remete a kulu, que significa “universo, terra, começo, o mundo original”) e, por
fim, kabasa, que é o nome recebido pelo segundo dos gêmeos.
São também estes os nomes por que são conhecidas as duas filhas do casal Nzuwa
e Madiya, personagens de um outro texto oral recolhido por Virgílio Ferreira, que explica a
origem do mundo em para os povos quimbundu em conexão à mitologia das águas, cujo
relato é o seguinte:
Há muito tempo sem terem filhos, certo dia, a senhora Madiya teve em sonho a
revelação de que teria duas filhas gêmeas. Incumbiu, pois, seu marido, Nzuwa, de
providenciar duas panelinhas de barro e dois balaios para que as meninas, mais tarde,
brincassem. Na noite do nascimento das meninas, Madiya sonhou outra vez e, dessa
feita, foi-lhe avisado para que vigiasse constantemente as filhas a fim de que elas jamais
se aproximassem do rio Kwanza, às margens do qual moravam.
Uma ocasião, no entanto, Kakulu, a mais velha, decide tirar água do rio com seu
balaio, mas a corrente o leva. Chorando, a menina entra na água e, cantando, pede que
seu balaio lhe seja devolvido. Kabasa, vendo a irmã desviar-se, mergulha com seu balaio
atrás, o qual também lhe é tirado das mãos pelas águas do Kwanza. A mãe, vendo-as ir
rio adentro, grita-lhes que retornem à terra firme, à terra das abóboras e das bananeiras,
prometendo-lhes comprar outros balaios. As meninas, no entanto, não ouvem seu clamor.
Os balaios são levados cada vez mais distantes pelas ondas e as gêmeas desaparecem
no fundo do mar, apesar de suas cantigas ainda serem ouvidas. A mãe, que pulara no rio,
retrocede e grita pelo marido que também se esquiva quando a água lhe chega ao
pescoço. À noite, a mesma voz que lhe anunciara as crianças e lhe mandara deixá-las
longe do rio lhes aparece em sonho, dizendo: “quiseste filhos, dei-tos. As crianças foram
para debaixo d’água, mas receaste ir até lá. Ora, tanto morrias no fundo do rio, como em
Através destes exemplos, o narrador evidencia a falência dos valores morais e éticos
que vigoram em Angola em que a corrupção passa a ser a mola-mestra no cotidiano do
país desmoronado pelo conflito bélico e que não consegue se reerguer, uma vez que a
minoria que o governa abandonou os princípios utópicos, optando por uma adaptação
destes aos interesses pessoais da nova elite.
Ao relacionarmos esses fatos ficcionais ao discurso histórico que Pepetela utiliza em
sua trama narrativa, nos deparamos com a afirmação de Duby e Lardreau (1980, p. 217)
que revelam que “há fissuras no tecido, mas essas fissuras não são sempre, em sua
totalidade, acidentais, não são todas provocadas por uma degradação, por uma usura do
tempo; lacunas existem porque certos elementos do passado deixaram traços menos
duráveis que outros”.
A força mítica que Pepetela apresenta como forma de organização do caos angolano
surge, portanto, através da feminilidade expressa por Kianda. Esta divindade é também
conhecida como Kiximba ou Kimbuta e é comum em toda a extensão do rio Kwanza, um
dos principais do país, e é um dos mitos cosmogônicos de Angola. Como representante
do “espírito das águas” (Pepetela, 1995, p. 98) é uma das entidades reguladoras das
águas, dos peixes, das marés e da pesca. Manifesta-se ainda sob lençóis de luz imersos
nas águas, formando feixes de fitas coloridas a que se juntam guizos, que, com seu
sonido, dão conta de sua presença. Quando enfurecida, a deusa torna-se implacável,
semeando morte e desolação. A mafumeira e o imbondeiro são árvores que também lhe
servem de abrigo e, por isso, é ao pé delas que os pescadores lhe fazem oferendas a fim
de obterem sorte nas viagens e pescarias.
Como forma de ressaltar o esgarçamento das tradições e esquecimento de
elementos telúricos, Pepetela resgata as vozes de Luandino Vieira e Arnaldo Santos –
escritores angolanos que resgatam, igualmente, o saber primordial angolano –, fazendo-
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os personagens de O Desejo de Kianda. É da enunciação atribuída a Arnaldo Santos que
João Evangelista apreende o relato do corte da mafumeira dedicada à deusa das águas,
no largo onde outrora também existira uma lagoa a ela dedicada e sobre a qual foram
erguidos os prédios que, posteriormente vieram ao chão. Evangelista ouve, ainda, a
estória que narra o “sangramento” da árvore, ou seja, da seiva avermelhada vertida por
sete dias antes do fenecimento da árvore e do aterramento da lagoa, alegorias que se
associam à perda da identidade cultural nacional em função do capitalismo e do
afastamento das tradições africanas na Angola pós-independente.
Desabamentos e mistério
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