O Texto Inédito Do Médico-Escritor A Biografia "O Dr. Torres Homem" de Pedro Nava
O Texto Inédito Do Médico-Escritor A Biografia "O Dr. Torres Homem" de Pedro Nava
O Texto Inédito Do Médico-Escritor A Biografia "O Dr. Torres Homem" de Pedro Nava
Juiz de Fora
2012
CASSIMIRO BAESSO JUNIOR
Juiz de Fora
2012
Ficha Catalográfica
CDD B869
FOLHA DE APROVAÇÃO
BANCA EXAMINADORA
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A meu pai; pois sem ele “não seria o mundo.”
“Profundamente.”
AGRADECIMENTOS
Pedro Nava (1903 – 1984), mineiro, é autor de uma extensa obra memorialística
editada na década de 1970, admirada e respeitada pela crítica. No entanto, seu
primeiro texto com expectativas de publicação foi a biografia do médico carioca João
Vicente Torres Homem, escrito na década de 1940, que permaneceu inconclusa e
inédita. Os manuscritos da obra foram doados pela viúva do autor, Antonieta Nava,
ao Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundaçao Casa de Rui Barbosa em
1985, ano seguinte à sua morte. O objeto desta dissertação é o estabelecimento do
texto de Pedro Nava, O Dr. Torres Homem, utilizando os conceitos da Crítica
genética e da Crítica textual como subsídios teóricos. Observamos a importância do
resgate deste texto inédito para incorporá-lo à obra édita de Nava.
Pedro Nava, (1903 – 1984), from Minas Gerais, Brazil, is the author of a wide memorial work
edited in the decade of 1970, admired and respected by the criticism. However his first text
with expectation of publication was a biography of the medic João Vicente TorresHomem,
form Rio de Janeiro, written in the decade of 1940, which remained unfinished and inedited.
The manuscripts of the work were donated by the widow of the author, Antonieta Nava, to
the Arquivo Museu de Literatura Brasileira at Fundação Casa de Rui Barbosa in 1985, the
following year to his death. The object of this dissertation is the establishment of Pedro
Nava's work, O Dr. Torres Homem, using the concepts of the Genetical Critics and the
Textual Critic as theoretical subsidies. We notice the importance of the ransom of this
unpublished text to incorporate it to the edited Nava's work.
APRESENTAÇÃO ................................................................................................... 10
1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................12
5 O MANUSCRITO ................................................................................................57
REFERÊNCIAS .......................................................................................................234
APRESENTAÇÃO
1 INTRODUÇÃO
1
Biblioteca Nacional de Paris.
2
Centro Nacional de Pesquisa Científica.
3
Instituto de Textos e Manuscritos Modernos.+
15
A Crítica Genética gera uma nova análise textual, deixando rígidas regras
estruturalistas em favor de uma leitura do processo de produção que antecede e
possibilita a obra final. Com isso, descobre-se e toma-se posse de uma vasta região
até então desconsiderada pelos pesquisadores. O objetivo deste tipo estudo
desloca-se para o processo dinâmico de criação, em detrimento ao texto final ou
prototexto4. Desta forma, é importante caracterizar e delimitar este novo objeto de
estudo destacado pela Crítica Genética. Salles (2000, p.31-32) apresenta esta
descrição no seu texto Crítica genética: uma (nova) introduçao:
O novo foco ou a nova análise faz com que se perceba a obra sob os prismas
dos questionamentos e hipóteses percorridos pelo autor. Como decorrência desta
atenção aos mecanismos de criação das obras literárias, os manuscritos foram
alçados a objetos de desejo de instituições universitárias, centros de pesquisa e até
mesmo colecionadores. Eles se constituiriam em prova da legitimidade e do esforço
deflagrado pelos escritores, chegando a ser uma representação do patrimônio
4
Segundo Jean Bellemin-Noël, prototexto pode ser definido: O conjunto constituído pelos rascunhos,
manuscritos, provas, variantes, visto sob o ângulo do que precede materialmente uma obra quando
esta é tratada como um texto, e que pode estabelecer uma relação com ela. [...] Estabelece-se,
portanto, em princípio que o prototexto é o texto/está dentro dele, e vice versa (1972 apud
GRÉSILLON, 2000, p.149).
16
Não tenho uma noção exata de como se formou naquela noite memorável
dos 22 a diversão descomunal. Era uma turma enorme e heterogênea [...]
Estávamos eu, Paulo Machado e Joaquim Nunes Coutinho Cavalcanti,
catecúmenos – aprendendo e admirando. E estava o poeta Carlos
Drummond de Andrade, logo preferido, imediatamente amado. Datou desta
noite de poesia e detonações a nossa confraternização e por seu intermédio
é que vi estreitar relações para nele ingressar logo depois, com o grupo de
que faziam parte ou que viriam a fazer parte o poeta ele mesmo, Francisco
Martins de Almeida, Hamilton de Paula, Abgar Renault, João Guimarães
5
A obra memorialística de Pedro Nava é constituída por sete volumes permanecendo o último
inconcluso devido ao seu suicídio em 1984. São: Baú de ossos (1972), Balão cativo (1973), Chão
de ferro (1976), Beira mar (1978), Galo-das-trevas (1981), Círio perfeito (1983) e, finalmente, o
incompleto Cera das almas, publicado apenas em 2003, por ocasião do centenário de seu
nascimento.
6
Ver Memória histórica e descritiva de Belo Horizonte de Abílio Barreto. Fundação João Pinheiro,
1996.
18
Alves, Heitor Augusto de Souza, João Pinheiro Filho, Alberto e Mário Álvares
da Silva Campos, Emílio Moura, Gustavo Capanema, Gabriel Rezende
Passos, Dario Magalhães, João Alphonsus de Guimarães e Miltom Campos
(NAVA, 2003a, p. 366).
Mais tarde, ainda entrariam nesse grupo outros modernos integrantes: Cyro
dos Anjos, os rapazes de Cataguases Guilhermino César e Ascânio Lopes e,
também, Luís Camilo. Esses jovens passariam a ser denominados como o grupo “do
Estrela”7, nome do bar na Rua da Bahia que elegeram para seus encontros. “E
conversávamos perdidamente [...]. Sobre as cartas do Mário, sobre o manifesto do
„pau-brasil‟, sobre os rapazes de Cataguases, sobre o aparecimento de Estética,
sobre o lançamento da Revista, sobre a recuperação das amadas e da poesia do
mundo” (NAVA, 2003a, p.370).
Nava já havia iniciado o curso de medicina em 1921 na Faculdade de
Medicina de Minas Gerais e se integrou ao grupo dos modernistas mineiros no ano
seguinte. Teve seus primeiros contatos com as ideias renovadoras através de
conversas com Carlos Drummond de Andrade e Aníbal Machado, dentre outros
notáveis. Já era terceiranista quando participou de um encontro que o marcaria
profundamente. Dois anos após a Semana de Arte Moderna de 22, a caravana
paulista, que tinha o intuito de redescobrir o Brasil, chega a Minas para as
comemorações da Paixão. Nava e outros integrantes do grupo8 foram recebê-los no
Grande Hotel de Belo Horizonte. Eram capitaneados por Mário de Andrade e a
mecenas paulista Dona Olívia Guedes Penteado9, participando ainda da excursão às
terras mineiras Gofredo da Silva Telles10, Renê Thiollier11, o poeta franco-suíço
7
São divertidos e poéticos os argumentos que Nava nos apresenta sobre a escolha do Bar Estrela
pelo grupo em trecho da Evocação da rua da Bahia: “Porque teríamos elegido precisamente o
„Estrela‟? talvez tivéssemos excluído o café do Bar-do-Ponto pela sua prodigiosa imundície e pela
frequência – perturbadora das conversas – dos heróis da cancha e da zaga, dos homens do Atlético e
do América. O „Fioravante‟ – pela freguesia por demais numerosa – consumidora de sorvete e
degustadora de gasosa. O „Trianom‟, porque aquilo já não era mais um bar. [...] O „ Estrela‟, não... Ali
havia paz. [...] Passávamos a tarde em torno às mesas de cândido mármore” (NAVA, 2003a, p.370).
8
Os poetas Martins de Almeida e Emílio Moura.
9
Representante da oligarquia cafeeira paulista foi importante personagem do movimento modernista
de São Paulo como mecenas e anfitriã de destacado salão frequentado pela intelectualidade
moderna. Nava a descreve “[...] quem poderia? vê-la sem deixar de amá-la. Jamais vi pessoa destilar
tanto encanto quanto essa senhora. [...] Falava baixo e algodoado e parecia se interessar
profundamente por nossas estórias e histórias” (NAVA, 2003b, p.204).
10
Genro de Dona Olívia, casado com sua filha Carolina.
11
René Thiollier (1882 – 1968): Advogado, intelectual e escritor paulista. Membro da oligarquia
paulista, foi um dos principais mecenas da Semana de Arte Moderna tendo sido o responsável por
19
alugar o Teatro Municipal de São Paulo para o evento com seus próprios recursos. Foi um dos
fundadores do Teatro Brasileiro de Comédias e conselheiro do Liceu de Artes e Ofícios.
12
Blaise Cendrars (La Chaux-de-Fond, Suíça, 1887 – Paris, 1961) pseudônimo de Fredéric Louis
Sauser, novelista e poeta que tendo conhecido Paulo Prado em Paris aceitou convite para conhecer o
Brasil. Influenciou diversos artistas e escritores do modernismo brasileiro, mas também foi
influenciado por Oswald em seus poemas de construção cubista. Nesta incursão mostrou intenso
interesse pela mente doentia do criminoso Febrônio Índio do Brasil, sobre quem escreveu artigos e
um capítulo de livro. Escreveu o poema “São Paulo”: Adoro esta cidade/ São Paulo combina com
meu coração/ nada aqui de tradição/ Nenhum preconceito/ Antigo ou moderno
13
Nava o descreve com reverência: “O Oswald cintilava conversando. Nós ouvíamos tomados da
maior admiração. Admiração por ele, por nós mesmos, de estarmos nos entretendo ali com, no
momento, a maior expressão do Modernismo” (NAVA, 2003b, p.205).
14
As cartas de Mário de Andrade para Pedro Nava (PN) fazem parte de seu acervo e encontram-se
depositadas no Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa. São em
número de 10 e cobrem o período de 9 mar. 1925 a 17 jan 1944 perfazendo 14 folhas. São
manuscritas ou datilografadas todas em português. Os assuntos são: Crítica a poemas e desenhos
de PN. Elogio ao retrato de Drummond feito por PN e publicado em A noite de 14 fev. de 1925. Envio
de fotografias de quadros de Tarsila do Amaral. Orientação sobre o estudo de artes plásticas e
oferecimento de livros de artes. Abrasileiramento de linguagem poética e a questão da língua
brasileira. Confessional sobre atividade literária e cultural dos grupos paulista e mineiro.
Considerações diversas sobre o Modernismo e o grupo mineiro. Notícias dos trabalhos em
realização. Alusão a Poemas Cronológicos, do grupo de Cataguases. Anúncio de viagem ao norte do
país. Notícia de desentendimento com Oswald de Andrade; preocupação com o abatimento de
Drummond por motivo da morte de seu filho Carlos Flávio em 21 mar. 1927. Menção à doença de
João Alphonsus. As cartas foram publicadas no Correspondência contumaz. Há dois documentos
reservados segundo vontade expressa de PN.
20
deste. A forte impressão decorrente deste encontro pode ser percebida no trecho a
seguir em que Nava tenta descrever a experiência vivida:
Ventania15
Co-nhe-ceu papudo?
15
Extraído da Revista Verde, Cataguazes, Ano 1, nº 3, novembro de 1927, p. 23.
22
morte de Aloysio de Castro, eminente clínico carioca que tinha a música e a poesia
como atividades paralelas à carreira médica.
16
Nava sempre se refere a Juiz de Fora com uma nota de amargura e ressentimento. Em seus
cadernos de viagem, quando quer descrever alguma construção de gosto duvidoso ou provinciano,
usa sempre a comparação com a sua terra natal, como: “Arquitetura utilitária e sem gosto, do
moderno sintético não por simplicidade mas por economia. Lembra vagamente uma Juiz de Fora.
Uma Juiz de Fora imaginária, com três avenidas Rio Branco, quatro ruas Halfeld e cinco ruas Espírito
Santo.”, e, ainda, “[...] a gruta do leite, feia como um igreja de Juiz de Fora” (NAVA, 1998 , p.57; p.27).
Ilustrativo desta relação de rancor entre o autor e sua cidade natal que provavelmente era de
conhecimento de seus amigos é um breve poema dedicado a Nava escrito por Carlos Drummond em
ata do Sabadoyle de 14 de junho de 1983: ”Meu amigo Pedro Nava / regressou de Juiz de Fora /
Parabéns a Pedro Nava / parabéns a Juiz de Fora”.
17
Citada nas Memórias de Nava como Lenora, Zilah Pinheiro, apesar de ser de família tradicional de
Belo Horizonte, é descrita como uma moça libertária. Em viagem ao Rio de Janeiro, suicidou-se.
Nava soube, somente cinqüenta anos depois, que o motivo do ato foi uma leucemia diagnosticada
naquela cidade.
23
O defunto18
18
Nava recolhe suas lembranças e sensações da infância, de seu primeiro contato com aquela que
viria a ser sua companheira de viagem. O poema O defunto possui uma grande gestação. É clássico
o trecho de Chão de ferro onde o autor descreve sua primeira visão da morte. Em suas primeiras
férias em Belo Horizonte quando foi levado pelo colega Olimpinho ao velório do comerciante Caldeira.
“O corpo estava exposto na sala da frente, de casaca, entre tocheiros e crepes, grandes mãos
calçadas de luvas de pelica da mesma brancura amarelada de sua face de gesso máscara de
Beethoven. [...] Entrei um, saí outro. O eu que saiu – saiu pesado da carga completa de O defunto –
de que só me aliviei um pouco, quando o escrevi nos ainda futuros de 1938: vinte e dois anos de
gestação. Nunca mais esqueci aquele morto por quem rezo até hoje – como rezam os descrentes à
hora em que o pânico lhes faz bater os queixos...” (NAVA, 2003a, p. 109).
19
As flores de pano roxo apareceriam novamente na obra naveana em Balão cativo, quando o autor
descreve os funerais de sua avó juizforana Inhá Luiza, matriarca detestada pelo neto. As flores
24
E quero ir de casimira:
De jaquetão com debrum,
Calça listrada, plastron...
E os mais altos colarinhos.
Dêem-me um terno de Ministro
Ou roupa nova de noivo...
E assim Solene e sinistro,
Quero ser um tal defunto,
Um morto tão acabado,
Tão aflitivo e pungente,
Que sua lembrança envenene
O que resta aos amigos
De vida sem minha vida.
22
Pedro Nava possuía grande saber anatômico, tendo sido uma de suas matérias de eleição durante
sua formação médica e que viria ser muito presente na escritura de suas memórias. Marta Campos,
em seu trabalho O desejo e a morte nas memórias de Pedro Nava, cita: “O amor pela Anatomia e o
fascínio pela forma humana resultarão numa inclinação afetiva e sensual pela dissecação do cadáver.
Esta prática tanto se revestirá de um conteúdo erótico quando, ao contrário, a paixão erótica tomará
nele formas de curiosidade analítica, de „animus disecandi‟. Somando-se a isso tudo um espírito
visual próprio e uma memória ótica, o resultado será um forte interesse pela exploração do corpo
humano” (CAMPOS, 1992, p. 62).
26
23
A última referência que Nava faz ao poema O defunto está presente em uma de suas derradeiras
entrevistas. Esta foi concedida ao jornalista Edmílson Caminha em seu apartamento na Glória.
Quando questionado sobre se ainda “o fantasma da poesia” ainda o tentava, Nava responde: “- Ainda
tenta, eu é que não consigo. Acho a minha poesia sem espontaneidade, sem aquele alumbramento
que você encontra num Murilo Mendes, num Drummond, num Vinícius, num Bandeira. A gente tem a
impressão de que aquilo é uma possessão, um estado de êxtase. Eu nunca senti isso, a não ser em
dois poemas que fiz: „O defunto‟ e „Mestre Aurélio entre as rosas‟, que foram escritos em um jato.
São poemas longos e quase sem correções. As correções que houve n‟O defunto‟ foram feitas por
Manuel Bandeira que gostava dos versos. Depois eu vi que aquele não era o meu poema. Então
voltei ao ruim, tirei o bom do Bandeira pra vestir minha roupa: ele me dera um smocking emprestado,
eu peguei meu paletó-saco outra vez...”
24
O lançamento do primeiro livro de Pedro Nava, que embora trata-se de temas médicos, possuía
grande carga literária, não passou desapercebido por dois, já destacados, escritores: Raquel de
Queiroz e Carlos Drummond de Andrade. Este último em carta enviada a Nava em 06/09/1947 diz:
“Meu caro Nava, Tive uma grande alegria com seu „Território de Epidauro‟. Nunca me conformei
com o fato de você continuar sem o nome na capa de um livro. [...] Você, muito manhosamente, se
refugiava num bissextismo cômodo, mas essa solução não me satisfazia, nem ao resto da
comunidade de seus amigos. Por isso mesmo, esse „Território‟, tão inteligente, tão rico de
perspectivas para o leigo, a quem você desvenda aspectos pitorescos, poéticos e humanos da
medicina – é uma espécie de pagamento de dívida. [...] Agora você fica intimado a nos dar outros.”
27
Carta depositada na Fundação Casa de Rui Barbosa sob o código Cp038 do Inventário do Arquivo
Pedro Nava.
25
Em entrevista a Edimílson Caminha, Nava comenta sobre a escritura destes primeiros livros sobre
assunto médico histórico: [...] Tive um período literário muito curto com o grupo de modernistas de
Minas Gerais, quando me liguei a amigos que tenho até hoje, como Drummond e Afonso Arinos.
Evidentemente que eu escrevia, não era insensível à beleza de uma frase, à beleza da coisa escrita.
E já tinha mesmo, muito mais cedo, muito antes de conhecer este pessoal, o hábito da leitura.Minha
obra médica é bastante grande, tenho algumas centenas de trabalhos publicados. [...] De modo que
escrevi minha vida inteira, sempre com a preocupação de escrever bem: nunca assinei trabalho de
colaboração que não fosse escrito por mim. Quem bateu a máquina, quem deu forma aquilo fui eu.
Tenho dois livros anteriores aos de memória, sobre história da medicina, a que não dou grande valor
porque foram feitos às pressas, eu estava interessado num concurso para uma cadeira de história da
medicina. São livros fabricados, não foram escritos como minha obra memorialística. Nessa eu
procuro dar o melhor que posso, o mais trabalhado possível” (CAMINHA, 2003, p.18-19).
26
Nava sempre vislumbrou um mundo de perseguições e traições dentro da área médica, entre seus
colegas, alunos e até mesmo pacientes. Uma intolerância mordaz e o conceito de “lobo-homem” o
perseguem durante a vida e reflete-se em suas escrituras: “Meu ano de doutorado, como numa
preparação para a vida profissional, trouxe-me grandes alegrias e grandes mágoas. Aquelas criadas
por mim, para mim, estas, pelo próximo sempre ou quase sempre adversário. Ah! Os homens são
naturalmente inimigos uns dos outros. Quando amigos – esse estado tem os caracteres da
instabilidade dos armistícios” (NAVA, 1979, p. 378).
28
serviço, livre docência, duas cátedras, professorado emérito e honoris causa, três
academias, sociedades estrangeiras, presidência de sociedade continental” (NAVA,
1979, p. 373). Chegou à aposentadoria carregando sua habitual amargura e
entregou-se àquela que foi sua maior realização – a escritura de um monumento –
suas memórias27. Os motivos para a confecção destas são descritos pelos
estudiosos do autor em várias frentes: dívida consigo mesmo, catarse psicanalítica,
atividade para não enfadar os amigos e ocupar o tempo de aposentado, impacto da
morte da mãe, cura para a solidão. Possivelmente os motivos são vários e as
diferentes opiniões podem estar corretas, mas é coerente pensarmos que Nava
buscava um resgate de um papel social e artístico que provavelmente acreditava
perdido devido às suas escolhas. Marta Campos cita como possível justificativa para
o início deste projeto:
Nava, por sua vez, organizou vários motivos para justificar a empreitada que
propôs a si. Boa parte de seus argumentos constituem-se em:
Meu plano inicial não era escrever cinco volumes: eu queria escrever um
livro de lembranças familiares, de fatos que eu conhecia, mas meus irmãos
ignoravam. Seria um livro clandestino, para correr dentro da família. Os
originais eu dei pra ler ao Fernando Sabino, a Otto Lara Resende e ao
Drummond, e a opinião deles foi que eu deveria continuar no mesmo tom,
escrevendo minhas memórias. Foi o que aconteceu. [...] Veja como eu fui
levado pelo meu próprio roteiro, pelo que eu queria escrever. Aquilo
provocou em mim uma série de caminhos, uma abertura pra novas
27
As memórias de Pedro Nava foram o grande acontecimento literário dos anos setenta, sucesso de
crítica e público desde o primeiro volume. Escritas em um pequeno espaço de tempo foram lançadas
a partir de 1972 com o inaugural Baú de ossos inicialmente publicado pela editora Sabiá de
propriedade de Fernando Sabino. A segunda edição deste e a publicação dos demais volumes
passaria a ser realizada pela José Olympio Editora sendo: Balão cativo (1974), Chão de ferro
(1976), Beira mar (1978), Galo das trevas (1981), Círio perfeito (1983) e o póstumo e inconcluso
Cera das almas publicado na ocasião do centenário de seu nascimento pela editora Ateliê em 2003.
29
Nesse momento, o corpo começa a falar de diversas formas. São “as vozes
misteriosas do corpo” (SCLIAR, 1996, p.7) – estertores, sopros, arritmias – e mais:
dores, espasmos, sangramentos, febres. Todas essas vozes transformam-se em
angústia, e a angústia em medo, e o medo em palavras.
Estas palavras serão pronunciadas pelas pessoas agora afastadas de seu
equilíbrio: em quartos, consultórios, ambulatórios e enfermarias. Médicos ao escutá-
28
Depoimento do crítico, ensaísta e jornalista Francisco Assis Barbosa (Guaratinguetá, 1914 – Rio de
Janeiro, 1991) (apud CAMINHA, 2003, p.11).
29
Dado e informações biográficas sobre Pedro Nava referenciados pela publicação Inventário do
arquivo Pedro Nava. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001.
30
30
Hipócrates de Cós: (460 a.C. – 375 a.C). Médico grego considerado o “Pai da Medicina”. Estudou e
lecionou na escola médica da cidade de Cós. Embora pouco se saiba de sua vida, segundo Platão e
Aristóteles, era considerado um grande médico e um homem de caráter e ideais nobres. Seus
conhecimentos de anatomia eram restritos ao aspecto externo do corpo humano embora tivesse
noção detalhada de osteologia; desta maneira seu entendimento clínico das doenças internas era
vago. A fisiologia hipocrática era baseada no humoralismo e sua terapia tinha por preceito restaurar o
equilíbrio humoral. Hipócrates elaborou um código de ética médica que impunha a seus discípulos e é
celebrado até os dias de hoje pelos médicos em formação como o Juramento de Hipócrates.
Atribuem-lhe a autoria de oitenta e sete tratados médicos que constituem a Coleção hipocrática.
31
Louis Ferdinand Céline (Coubervoie, 1894 – 1961) escritor e médico francês especializado em
obstetrícia. Sua obra mais aclamada é Viagem ao fundo da noite. No entanto, seu posicionamento
antissemita foi motivo da acusação por parte de Sartre de colaboracionismo com o nazismo na
ocupação francesa, o que talvez não seja realidade. Praticava o pensamento de Schopenhauer e
citava o famoso aforismo “o amor é o infinito ponto fora de alcance”.
32
François Rabelais (Chinon, 1494 – Paris, 1553). Escritor, padre e médico francês do
Renascimento. Suas principais obras são Gargântua e Pantagruel, obras cômicas que exploram
lendas, contos populares e, também clássicos. A linguagem escatológica é uma constante em seus
livros usada de maneira farsesca. A obra de Rabelais tem por característica as manifestações de
crença na capacidade humana simbolizada pelo gigantismo de seus principais personagens.
33
Sir Arthur Ignatius Conan Doyle (Edimburgo, 1859 – Crowborough, 1930). Escritor e médico
britânico mundialmente famoso por suas 60 histórias sobre o detetive Sherlock Holmes, um marco na
literatura policial. Prolífico, escreveu ainda peças, novelas históricas, ficção científica e poesia.
31
34
Wiliam Somerset Maughan (Paris, 1874 – 1965). Médico e escritor inglês, famoso romancista e
dramaturgo. Frasista célebre como em: “O amor é um sórdido embuste pelo qual a natureza nos leva
a continuar a espécie”.
35
Jorge Mateus de Lima (União dos Palmares, 1893 – Rio de Janeiro, 1953). Político, médico, poeta,
ensaísta, romancista, tradutor e artista plástico brasileiro. Possuía um consultório-ateliê na Cinelândia
que era ponto de encontro de intelectuais como Murilo Mendes, Graciliano Ramos e José Lins do
Rego. Teve como obra de destaque A invenção de Orfeu.
36
Gastão Cruls (Rio de Janeiro, 1888 – 1959). Médico sanitarista. Dirigiu a revista literária Boletim de
Ariel, publicou romances e contos, notadamente sobre a realidade amazônica.
37
Dyonélio Machado (Quaraí, 1895 – Porto Alegre, 1985). Médico e militante comunista brasileiro,
atuou como escritor, jornalista, ensaísta e romancista. Um dos principais expoentes da segunda
geração do modernismo nacional. Seu trabalho mais aclamado é Os ratos.
38
Nise da Silveira (Maceió, 1905 – Rio de Janeiro, 1999). Renomada médica psiquiatra brasileira,
aluna e correspondente de Carl Jung. Posicionou-se contrária às terapias aplicadas em
esquizofrênicos, como eletrochoque, confinamento, choque insulínico e lobotomia. Através da arte
desenvolvida pelos internos criou interessantes estudos sobre semiótica e mitologia do inconsciente
coletivo. Possui vasta obra científica e literária sobre o tema.
39
Antônio Lobo Antunes (Lisboa, 1942). Médico psiquiatra serviu como tenente médico durante a
Guerra do Ultramar em Angola. Publicou posteriormente os sucessos Memória de elefante e Os cus
do Judas.
40
Miguel Torga. Pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha (São Matinho de Anta, 1907 – Coimbra,
1995). Foi um dos mais importantes escritores portugueses do século XX. Contista, ensaísta e
romancista ainda manteve a atuação em sua especialidade – otorrinolaringologia - por toda sua vida.
A obra de Torga traduz sua inconformidade contra injustiças e o abuso de poder. O pseudônimo foi
criado em homenagem a Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno e Torga é uma planta rústica
comum em Portugal.
32
41
O Prêmio Pushkin foi criado em 1881 pela Academia de Ciências da Rússia com o intuito de
homenagear o escritor e poeta russo Alexander Pushkin (1799 – 1837). Este prêmio é anualmente
concedido aos escritores russos que alcancem a excelência literária. Foi interrompido durante o
regime soviético, sendo reiniciado em 1989.
42
Estórias curtas.
33
suas obras, como fato palpável, possibilidade premente ou sensação opressiva aos
personagens. Em seu conto “Uma história anônima” (1893) o narrador – um
tuberculoso - relata: “A vida só nos é concedida uma vez, e queremos vivê-la de
maneira ousada, com plena consciência e beleza” (MALCOLM, 2005 p. 118).
Seria reconfortante para nós pensar que Tchekov teria alcançado um
equilíbrio entre suas duas artes: a literatura na qual revolucionou a estrutura do
conto e do teatro dando uma leitura moderna e ágil a esses gêneros e a medicina
com a qual conheceu a fundo a complexidade e os dramas da sociedade russa. Em
correspondência a um amigo Tchekov diz: “A medicina é a minha esposa legítima e
a literatura é a minha amante; quando uma me cansa, passo a noite com a outra”
(MALCOLM, 2005, p.105)
impossibilidade de dar fim a tanto sofrimento testemunhado, após dois anos, Rosa
resolve afastar-se da clínica diária junto à população do local.
O conto Campo geral, descrito como poema pelo próprio Guimarães Rosa e
um dos mais enigmáticos da literatura brasileira, contém uma das passagens mais
sensíveis na obra Roseana: trata-se do relato de uma família isolada nos Mutuns e
do relato da figura central do menino Miguilim e seu desajuste em relação ao mundo.
Este fato surge como um relato do despertar do autoconhecimento, quando Dito,
irmão de Miguilim, sofre um ferimento no pé, evoluindo para um quadro de tétano
que o levaria à morte. A descrição do quadro mescla a correção no elencamento dos
sinais e sintomas de um quadro progressivo de tétano com a mais pura poesia.
43
João Guimarães Rosa foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 6 de agosto de 1963, mas
adiou sua posse até 16 de novembro de 1967 quando já contava com 59 anos; quatro de seus sete
tios morreram aos 58 anos e ele receava muito passar por esta idade. Nesta época também foi
candidato ao Nobel devido à indicação de seus editores alemães, italianos e franceses aumentando
em muito o turbilhão de emoções que atravessava. Em um domingo 19 de novembro faleceu em sua
casa devido a um infarto cardíaco fulminante apenas 3 dias após ter tomado posse da cadeira 2 da
ABL na sucessão a João Neves da Fontoura.
44
Dados e informações biográficas sobre Guimarães Rosa obtidos em Cadernos de literatura
brasileira: Gumarães Rosa. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2006.
35
Dizia “ter sido levado à medicina com a idéia de combater a morte” sendo a
medicina “mais uma meditação sobre a morte do que sobre a vida” (GT, 1981, p. 8).
Sua vasta experiência na profissão que escolhera - talvez por influência de
seu pai que também era médico e morreu devido a uma pneumonia adquirida
durante a prática - seu imenso senso de observação e sua capacidade em criar
metáforas e analogias se refletem intensamente nos seis volumes de suas ricas
memórias. Nava sempre foi um obcecado pela morte, possuindo dela uma incômoda
e constante consciência. Quando menino desenterrava macacos e pássaros para
observar a decomposição orgânica de seus corpos. Mais velho, conseguiria
imaginar, a cada dia após o sepultamento, o estágio em que se encontrariam seus
mortos, como se a terra do cemitério fosse “translúcida”. Sofria com a certeza de que
a vida e a morte estavam impregnadas uma da outra. Marta Campos45, observa o
drama perene de Nava:
45
Marta Campos desenvolveu um interessante trabalho em sua tese de doutoramento pela
Universidade Federal do Ceará em intercâmbio com a Universidade de Colônia, abordando uma
punjante interface naveana como tema de O desejo e a morte nas memórias de Pedro Nava. Tese
defendida na Alemanha, em 1992.
36
46
Moacyr Jaime Scliar (Porto Alegre, 1937 – 2011). Filho de imigrantes judeus russos foi educado em
escolas judaicas e posteriormente católicas. Forma-se em medicina no rio Grande do Sul em 1962
fazendo residência de clínica médica e medicina sanitária. Inicia sua produção literária no mesmo ano
em que se graduou com um relato das experiências vividas enquanto residente médico – “Histórias
de um médico em formação”. Sua extensa obra é marcada pela presença constante do imaginário
fantástico, pela cultura judaico-cristã e é claro pela presença do universo médico. Traduzido em
vários países, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2003 ocupando a cadeira de número
31.
47
Esta consulta a Moacyr Scliar foi realizada através de correio eletrônico em 20/09/2010 tendo sido
generosamente respondida no mesmo dia pelo autor. O escritor infortunadamente faleceu menos de
seis meses depois (27/02/2011) em virtude de complicações cirúrgicas, em Porto Alegre onde sempre
viveu e trabalhou.
38
Pedro Nava, em sua primeira incursão literária49 em prosa, opta pelo gênero
biográfico e desenvolve um texto, no mínimo, sui generis para tal. O tradicional
desenvolvimento biográfico abordando dados sobre origem, linhagem, laços
familiares, aspectos físicos, hábitos e mesmo anedotas são descartados. O leitor
que busca este tipo de informação a respeito do biografado encontrará pouco em
que se apoiar. Esses dados são sumariamente preteridos por Nava. O autor mantém
uma postura francamente positivista, embora algo tardia, priorizando as ideias
humanas em relação à vida cotidiana, considerada menor.
O que é abordado em um texto de 251 laudas manuscritas e dactiloscritas,
desenvolvidas e revisadas à exaustão pelo autor, restringe-se ao método de
diagnóstico do clínico João Vicente Torres Homem, método este desenvolvido sob a
influência do cientificismo corrente na segunda metade do século XIX e que se
baseava na observação e correlação entre o órgão ou tecido lesado e sua
consequência patológica. Nava apresenta-nos o médico do Império em ação.
Descreve com tanta competência a propedêutica desenvolvida por Torres Homem,
que é como se estivéssemos presentes em seu consultório, na enfermaria de Santa
Isabel da Santa Casa ou na residência de seus clientes durante um atendimento
48
Utilizamos como principal fonte informativa de dados biográficos de João Vicente Torres Homem, a
obra de Orlando Sattamini-Duarte, Um médico do Império, de 1957. Nesta obra o autor se utiliza de
vasta bibliografia coletada em publicações contemporâneas ao biografado.
49
A escritura da biografia O Dr. Torres Homem foi iniciada por Pedro Nava em 1946 de acordo com
datação registrada na página de abertura do manuscrito em questão. Os dois primeiros livros
publicados – Território de Epidauro e Capítulos da história da medicina do Brasil - tiveram
escritura e publicação em 1947 e 1949, respectivamente.
40
50
Pedro Nava pretendia a escritura de quatro capítulos que cobririam o método diagnóstico de Torres
Homem. O primeiro é a Inspeção que trata do exame físico do paciente doente e analisa
detalhadamente cada setor anatômico do corpo humano relacionando os sinais e sintomas ligados
àquele órgão às doenças prováveis. O segundo capítulo trata do Interrogatório que vem a ser a
anamnese ou entrevista realizada com o doente na busca por dados para acrescentar ao exame
físico visando ao diagnóstico. Acredito que o terceiro capítulo não escrito abarcaria o exame do
cadáver ou autópsia, atitude que era corriqueira aos médicos da corrente estatística e cientificista que
buscava relacionar os achados de necrópsia aos sinais e sintomas da doença que havia vitimado o
paciente. E o quarto e último capítulo, também não escritos, possivelmente seriam sobre a análise
dos dados para a conclusão do diagnóstico, visto que Torres Homem seguia fielmente os métodos do
clínico francês Rostan que desenvolvia o seu método diagnóstico baseado nestes quatro pilares.
51
Além de professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro exerceu também a função de
diretor nessa mesma instituição, sempre interinamente, por ser o lente mais idoso. Foi presidente da
Academia Imperial de Medicina quando esta ainda era designada como Sociedade de Medicina do
Rio de Janeiro, em 1832, e, também, deputado pela província do Rio de Janeiro.
41
aos 16 anos, cuja estrutura de ensino era precária como nos afirma o cirurgião
Andrade Pertence, professor da referida instituição naquela época, ao descrever
uma aula de clínica cirúrgica:
„[...] peças compridas, de teto alto, onde os leitos se arrumam de cada lado,
um em frente ao outro, separados por uma passagem larga e cômoda [...].
Colchões de palha bem cobertos ... cobertores e fronhas duma brancura
perfeita‟ (SATTAMINI-DUARTE, 1957, p.32).
Estes estágios informais que Torres Homem buscou, durante o curso, foram
de grande valia para a escritura de sua tese de doutoramento sobre a evolução
52
Manuel Joaquim de Valadão Pimentel foi eminente médico clínico carioca descendente de
agricultores portugueses. Pagou os próprios estudos lecionando matemática e destacou-se pelo
grande conhecimento clínico e retidão moral com que conduzia sua vasta clínica. Recebeu o título
nobiliárquico de Barão de Petrópolis devido à importância de seu trabalho assistencial junto à corte.
Foi a principal influência médica de Torres Homem quando o mesmo opta pela clínica médica em
detrimento da cirúrgica.
53
O Hospital do Castelo foi originalmente um sólido colégio jesuíta posteriormente transformado em
hospital para atendimento de militares e se localizava no Morro do Castelo. O morro do Castelo foi
um acidente geográfico que existiu no Rio de Janeiro, sendo um dos pontos de fundação da cidade,
abrigando fortalezas coloniais e um complexo jesuíta. Desde o tempo de Dom João VI era
considerado insalubre á cidade, pois dificultava a circulação dos ventos e o escoamento livre das
águas. Ao longo dos séculos foi sendo considerado como um fator de impedimento ao crescimento
da cidade. Foi removido em 1921, pelo prefeito Carlos Sampaio, com a desculpa de ser um local
proletário repleto de cortiços e velhos casarões no centro da cidade e necessário para a instalação e
montagem da Exposição do Centenário da Independência do Brasil. Suas terras foram usadas para
aterrar parte da Urca, da lagoa Rodrigo de Freitas e do Jardim Botânico.
42
Sangrava-se toda a gente: o próprio Torres Homem conta que, por três
vezes, sangrara „doentinhos menores de dois anos‟; os resultados,
„justificaram-me perante a minha consciência‟, diz ele. Na verdade nunca foi
fanático pelo método: chega mesmo a lamentar que houvesse „alguns
médicos, e o que mais admiramos, alguns médicos moços que na presença
de um pneumônico, não se lembrem senão da lanceta!‟... E, como resumiu
ele, „era tal a devoção de alguns práticos que, apesar de instruídos e
dotados de bom senso, acreditavam às vezes que a morte de um
desgraçado era devida à insuficiência das emissões sanguíneas. Mais
cinquenta sanguessugas, diziam eles, talvez o tivessem salvo‟ (SATTAMINI-
DUARTE, 1957, p. 66).
Além da dedicação à sua farta clínica privada, herdada do pai, e que soube
manter e ampliar, Torres Homem teve como foco também a carreira docente. Talvez
pela influência paterna óbvia e de Valadão, ambos eméritos professores da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, ele participava insistentemente de todos
os concursos para cadeiras do curso de medicina que, por ventura, ocorressem.
Apenas dois anos após sua graduação, concorreu com sucesso ao cargo de
opositor que era papel de modesta hierarquia dentro do ambiente acadêmico e
submisso ao catedrático, além de ser mal remunerado e de ter que transpor uma
difícil prova. Era, porém, uma etapa inicial obrigatória na carreira almejada. Sua tese
de apresentação ponderava sobre coqueluche54, doença infantil que grassava entre
as crianças brasileiras em uma época pré-vacinal. Quando em 1865, com o
surgimento de vacância da cadeira de higiene e história da mediina, Torres Homem
prontamente se inscreveu como candidato à Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Apresentou uma tese sobre aclimatamento55 onde estudava a
superatividade “genésica” dos indivíduos de clima quente no Brasil. Dizia sobre as
levas de imigrantes que aportavam no país: “os de baixa classe chegam aos
milhares, morrem em grande quantidade (ou de infecções paludosas graves [...] ou
de moléstias agudas ou crônicas do aparelho respiratório e digestivo) devido à falta
absoluta de cuidados higiênicos”. Afirmava neste trabalho que eram necessários
cerca de dois anos para o total aclimatamento dos europeus ao clima tropical;
perdeu a vaga para o colega Dr. Souza Costa.
54
Dissertação sobre a coqueluche. Rio de Janeiro 1860. Tese (concurso para o lugar de lente
opositor da seção de clínica médica) – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typ.
De Thevenet, 1860.
55
Do aclimatamento. Rio de Janeiro, 1865. Tese (concurso do lugar de lente em higiene) Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typ. de Thevenet, 1865.
44
É importante lembrar que os concursos não eram uma prática comum nas
instituições de ensino superior brasileiras do século passado (XIX), quando
os postos de ensino eram distribuídos mediante indicações políticas e
apadrinhamentos. No entanto, quando ocorriam, os concursos eram
acontecimentos extremamente valorizados e ocasionavam disputas muito
acirradas (FERREIRA, 1994, p.66).
Com isso, Torres Homem alcança um grande objetivo que era a cátedra tão
anunciada e aguardada, especificamente na escola em que se graduara.
Destacou-se admiravelmente como professor, sendo admirado e tornado-se
referência para gerações de alunos. Suas magistrais aulas eram comentadas não só
nos corredores da Faculdade, mas também nos cafés e salões. Eram aulas-
espetáculo em que ele podia exercitar sua requintada oratória contida, mas eficaz,
seu extenso conhecimento médico, sua análise racional de sintomas e, também, sua
erudição humanista que pontuava as aulas com trechos e referências a textos
clássicos e fragmentos literários que iam de Moliére a Cervantes. Como forma de
ilustrar a maneira como Torres Homem dominava e conduzia suas conceituadas
aulas, reproduziremos um trecho onde Sattamini-Duarte descreve uma aula prática
que o professor conduziu junto a um paciente tuberculoso e, ao ocorrer uma crise
56
Doutrina criada por François Broussais que foi o mais influente médico francês do século XIX.
Organizou um sistema médico que por simples proposições abrangeriam todas as patologias. Não
haveria doenças e, sim, “irritações” cuja propagação se daria pela “simpatia” entre os diversos
órgãos. Também apresentava uma terapêutica a este processo irritativo que consistia em tratamento
“antiflogístico” baseado em sangrias, dietas restritivas e enemas.
57
Das sangrias em geral e em particular na pneumonia e na apoplexia cerebral. Rio de Janeiro,
1866. Tese (concurso cadeira de clínica interna) faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Typ. De Thevenet, 1866.
45
epiléptica em um dos alunos que o assistiam, cambia o foco da aula para esta
patologia.
58
Este episódio relatado pelo biógrafo foi reportado originalmente por um aluno presente á aula em
questão, o doutorando carioca Adolfo Fonseca.
59
Além de Torres Homem foram fundadores e editores da Gazeta Médica do Rio de Janeiro os
jovens médicos Mateus Andrade, Pinheiro Guimarães e Souza Costa.
46
60
A produção de Torres Homem foi a base referencial de Pedro Nava na escritura da Biografia do Dr
Torres Homem. Nava utilizou praticamente todos os livros publicados por Torres Homem os quais
deviam constar em sua extensa biblioteca.
47
O que torna um texto uma arte? Uma biografia pode vir a ser arte? Woolf
(1942 apud VILAS BOAS, p. 110) relata-nos que “[...] a arte da biografia, é a mais
restrita das artes. [...] O romancista é livre; o biógrafo está atado”. Pedro Nava
ensaiou o início de sua surpreendente obra justamente com um texto biográfico. Ao
aposentar-se de uma carreira médica sólida e produtiva, Nava, que havia sido
classificado como poeta bissexto, inicia em 1968 o desenvolvimento da escritura de
um monumento literário anfíbio entre o memorialístico e o ficcional que iria marcar
definitivamente a literatura brasileira. É ele mesmo quem afirma em entrevista
concedida ao jornal O Estado de São Paulo: “Por causa da medicina contive muito
tempo o que havia de literário em mim. Mas minhas memórias estouraram feito
aneurisma” (NAVA, 1972).
Nava elencou vários motivos que o levaram a iniciar a escritura das
Memórias. Escrevia para “não chatear os amigos”, mas, também confessa
recorrentemente que estava dando início ao pagamento de uma dívida ou um
encontro consigo mesmo. “A elaboração de minhas memórias foi decorrendo da
61
Arquivo da Biblioteca Nacional. Fac símile publicado (SATTAMINI-DUARTE, 1957, em caderno de
ilustrações).
49
É neste momento de tantas perdas que o velho médico atravessava, que sua
escrita memorialística funciona como um processo de autoanálise que teria um
objetivo terapêutico e autocurativo. Mesmo sendo agnóstico, Nava tentaria colocar
em prática o ensinamento bíblico: “Médico, cura-te a ti mesmo” (Lc 4, 23). Ele
declarou com alguma frequência em entrevistas, “escrevo para não morrer”.
Com o véu de amargura que sempre levou diante dos olhos, talvez não
tivesse ideia da dimensão que sua obra alcançaria – um terremoto a sacudir o meio
literário nacional nos anos setenta. Em pouco mais de 10 anos escreveu e publicou
seis volumes monumentais. Iniciando sua escritura em 1968, entregou à editora
José Olímpio62 o Baú de ossos em 1972, inaugurando um sucesso de público
elogiado pela crítica que repetiria-se nos outros volumes: Balão cativo (1973), Chão
de ferro (1976), Beira-mar (1979), Galo das trevas (1981) e O Círio perfeito
62
Editora carioca fundada em 1931 por José Olympio, que foi um dos principais incentivadores da
nova geração de escritores brasileiros que surgiriam a partir daquela década. Publicou as primeiras
edições de grande parte de autores iniciantes e atualmente canônicos como: José Lins do Rego,
Clarice Lispector, Gilberto Freyre, Raquel de Queiroz, Cyro do Anjos, Pedro Nava entre muitos outros.
50
63
Do latim alter = outro egus = eu. Pode ser explicado literalmente como o outro eu ou outra
personalidade de uma mesma pessoa. Termo frequentemente utilizado em análises literárias para
indicar identidades secretas ou para identificar um personagem como sendo a expressão da
personalidade do próprio autor de forma geralmente não declarada. Para a psicanálise o alterego é o
outro eu inconsciente.
64
Destaque do próprio autor.
51
Ou seja, o biógrafo precisa ser movido por algum sentimento dito intenso pelo
biografado. No caso de Nava e Torres Homem, acredita-se que o mesmo esteja no
pólo da admiração e diria que chegaria a um grau de identificação do biógrafo com o
biografado.
Os pontos convergentes, aqueles que tangenciam as duas personalidades
Nava ─ Torres Homem, são vários e parece-nos interessante identificá-los.
54
Chegara ao mais alto ponto que podia desejar um professor: único que
fizera escola, foi quem deixou aos vindouros os melhores e mais numerosos
documentos nas muitas obras que publicou. Nos últimos vinte anos tinha
sido quem mais influíra nos destinos da medicina brasileira (SATTAMINI-
DUARTE, 1957, p.141).
65
Monte Aprazível, pequena cidade do oeste paulista onde Nava permaneceu e clinicou, de 1931 a
1933, ajudado pelo amigo Dr Joaquim Nunes Coutinho Cavalcante. Lecionou na cadeira de História
Natural do Ginásio Monte Aprazível além de exercer seu trabalho médico.
55
nos com trechos que mesclam as artes médica e humanista de rara sensibilidade
como:
Manuel Maria de Barbosa du Bocage (Setúbal, 1765 – Lisboa, 1805): poeta português e talvez o
66
5 O MANUSCRITO
abortamento da obra, pois, se avaliarmos as datas, veremos que Nava foi afastado
em 1943, tendo sido publicado o decreto expulsório de Vargas no Diário oficial
neste mesmo ano. Pedro Nava iniciou a escritura da biografia em 6 de julho de 1945
(como registrado pelo autor no primeiro fólio do manuscrito), consequentemente dois
anos depois da traumática data. Seus reais motivos calam-se, deixando-nos com
mais um enigma naveano.
A propósito, as datas de entrada na obra biográfica podem ser identificadas
devido aos registros extratextuais do autor no manuscrito. Inicia sua escritura em
06/07/1943, tendo concluído o primeiro capítulo em “7. I 47”, data que se encontra
grafada na marginália inferior do fólio 74. No fólio 190 registra: “Retomei Th em
Setembro de 1959. PN”. E finalmente no fólio 215, encontramos a terceira entrada
no manuscrito em que Pedro Nava registra ainda em notas marginais: “Decidi
retomar esse trabalho dia 21 de Março 1964. PN”. Observamos, portanto, que Nava
durante quase vinte anos interviu no manuscrito realizando revisões frequentes
(visto a variedade de tintas e cores de lápis que utilizou com esse objetivo) sendo a
hipótese de um abandono precoce da investida biográfica claramente falsa.
Outra característica interessante observada refere-se ao método de geração
do texto e suas fases utilizadas pelo autor. Objeto de estudo de vários
pesquisadores da complexa e sedimentada obra naveana, o método de construção
do texto pode ser observado em trecho da autora Edina Panichi em seu ensaio
Pedro Nava e a construção do texto quando nos apresenta o modo Pedro Nava
de geração do texto final:
Observa-se, assim, que o autor já utiliza seu incomum método para a geração
de texto já em seu primeiro trabalho, pois as características observadas no trecho
59
acima são as mesmas utilizadas por Nava na escritura de O Dr. Torres Homem,
excetuando-se a colagem de textos e desenhos que não ocorre na página da direita
do manuscrito em estudo, sendo esta utilizada apenas para acréscimos de rasuras e
inserções de trechos inicialmente esquecidos.
É fundamental citar os documentos anexos que Nava manteve junto ao
manuscrito e dos quais se utilizou para a geração da obra. A sanha arquivista do
autor é uma das suas mais importantes características. Nava colecionou todo o tipo
de registro e imagem referentes ao biografado, seu tempo e seu meio. Encontramos
fotos de Hospitais da segunda metade do século XIX como: Misericórdia, Casa de
Saúde São Sebastião, Enfermaria Santo Antônio. Plantas de Fragoso referentes ao
Rio de Janeiro imperial com a identificação das localizações dos consultórios em
que Torres Homem atendeu.
Talvez, o mais característico do método que Nava utilizava para captar
informações de terceiros era a presença de um questionário com que o autor
entrevistou pessoas que poderiam ter dados significativos sobre João Vicente Torres
Homem. Este questionário foi enviado a colegas médicos, como Dr. Aloysio de
Castro, Dr. Brício Filho e Dr. Maurício Lacerda, possíveis possuidores de dados
preciosos para Nava. Este questionário foi ainda encaminhado a parentes de Torres
Homem como Dona Lúcia Thaís Torres, sobrinha neta do biografado e Dona Rita
Guimarães Freitas. Observa-se no lote de documentos anexos ao manuscrito a
presença de laudas respondidas pelos citados em entrevistas realizadas pelo autor.
Era seguido um determinado roteiro nestas entrevistas, nas quais questionava:
“Conheceu pessoalmente o Dr Torres Homem?” “Qual a sua impressão sobre o
profissional e sobre o homem?” e, o mais pitoresco do questionário “Conhece fatos
sobre a vida particular que abonem a tradição que ficou do Dr. Torres Homem como
marido oprimido, profissional ávido de lucro, indivíduo fraco diante de bebidas
alcoólicas e pessoa de mau gênio?”.
No que se refere às questões de planejamento e composiçao de texto, Nava
mostra-se impecável. Reunia farto material, às vezes durante anos, para que o
prototexto final fosse plausível e substancioso, mesmo que não totalmente verídico.
Como nos informa o próprio autor em uma de suas últimas entrevistas em 1983: “Eu
não tenho compromisso com essa verdade: meu compromisso é com a verdade
passando um pouco para o terreno do verossímel, da verossimilhança, que é mais
interessante, porque é interpretativa” (NAVA, 1983 apud CAMINHA, 2003, p.16).
60
67
Documentos Anexos ao Manuscrito O Dr. Torres Homem do arquivo Pedro Nava do Arquivo Museu
de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa – perfazem um total de 510 folhas.
Fotografias: Hospital da Misericórdia – Mapa arquitetônico do Rio de Janeiro, parte comercial de
autoria de J. Rocha Fragoso, de 1874 – Reproduçoes de plantas de Fragoso, para localização dos
consultórios de Torres Homem – Fundos do sobrado da Rua Conde d‟Eu nº 12, onde funcionou a
Enfermaria Santo Antônio durante a epidemia de febre amarela de 1876 - Canto do pátio interno do
sobrado situado na esquina de Campo da Aclamação com a Rua do Hospício onde funcionava em
1874 a Casa de Saúde São Sebastião – Rua Frei Caneca, datada de 1944.
Relatórios: Todos de autoria de Noronha Santos: Texto de março de 1944 sobre as hospedarias
existentes na Rua da Misericórdia e sobre a Taverna Public Franck – Notas sobre residências e
consultórios de Torres Homem – Informações relativas às Casas de Saúde São Sebastião, Nossa
Senhora da Ajuda e Enfermaria Santo Antônio, que funcionavam em 1874 e 1876 - Texto sobre a
Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro – Notas do fichário de Noronha Santos – Notas avulsas
de Pedro Nava relatando entrevistas com colegas médicos e pessoas que poderiam oferecer
informações sobre Torres Homem.
68
Ver ensaio de Flora Sussekind sobre o universo da página direita na gênese textual naveana em A
Página ao lado. In: SUSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.
61
Fonte: Do autor.
69
Rasura silenciosa é assim designada quando não se permite a leitura ou decodificação da primeira
opção da escritura que foi reavaliada e excluída pelo autor.
62
70
Rasura variante imediata ou variante de escritura é sugerida quando a palavra ou pequeno grupo
de palavras é rasurado e reescrito em seguida na mesma pauta, no mesmo fluxo de escrita. Sugere
ser produzida imediatamente durante a escritura inicial do texto.
71
A sobrecarga é evidenciada quando a segunda opção de escritura do autor é registrada, acima,
abaixo ou mesmo sobre a palavra ou grupo de palavras rasuradas. Sugere ser gerada em uma
revisão posterior à escritura do texto.
72
Diário íntimo do engenheiro Vauthier, 1840 – 1846, prefácio e notas de Gilberto Freyre. Rio de
Janeiro: Serviço Gráfico do Ministério da Educaçao e Saúde, 1940.
73
A biblioteca de Pedro Nava, na qual por certo constavam todas as obras de Torres Homem e
provavelmente um bom número de obras significativas da história da medicina que foram citadas e
63
registradas nas referências da biografia, foi vendida pela família à Universidade de Brasília logo após
sua morte. Ao buscarmos junto àquela instituição o rol dos títulos, fomos informados que não houve a
preocupação na identificação e registro do conteúdo da rara biblioteca adquirida e a mesma foi
depositada e dispersa no acervo da UNB. Um tradicional caso em que a biblioteca morre junto com o
proprietário.
74
Ver lista de siglas no início da dissertação.
64
partes definidas por ele próprio, inferindo ao pesquisador que isso ocorria a cada
mudança do assunto abordado: *
* *
Introdução
75
Louis-Lèon Rostan (1790 – 1866) Importante internista francês. Estudou em Marselha e Paris onde
foi discípulo de Philippe Pinel (1745 – 1826), foi membro da Académie de Médicine, trabalhando
durante longo tempo no hospital parisiense de Salpêtrière. Estudioso de patologias neurológicas
estruturou as diferenças entre as alterações anatomo-patológicas de encefalites e apoplexias. Sofreu
frequentes ataques dos seguidores de Broussais. Homenageado pelo epônimo Asma de Rostan:
asma cadíaca caracterizada por dispnéia noturna paroxística.
76
Joseph Frédéric Bérard (1789 – 1828) Médico e filósofo francês nascido em Montpellier. Foi um
dos estruturadores da Escola Vitalista.
77
Manuel de Valladão Pimentel (Cachoeiras de Macacu, 1812 – Rio de Janeiro, 1882). Eminente
médico do Império Recebeu o título nobiliárquico de Barão de Petrópolis por serviços prestados no
atendimento da família real brasileira. Clínico respeitado por seus pares, formou-se pela Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro onde foi professor da cátedra de Medicina Interna e diretor da
instituição. Foi professor de João Vicente Torres Homem tendo tido grande influência na opção pela
clínica feita pelo aluno.
65
78
Paralisia do lado direito do corpo.
79
Termo utilizado para definir coqueluche, hoje em desuso.
80
Inflamação da pleura que vem a ser uma membrana serosa que reveste os pulmões.
66
81
Entrevista realizada com o doente para obter informações sobre o início e evolução de sua
patologia objetivando alcançar o diagnóstico da mesma.
82
O que fazemos em primeiro lugar, e por assim dizer involuntariamente, quando nos aproximamos
de um doente, é examinar seu estado exterior.
83
Onde é sua doença?
67
84
Há quanto tempo está doente?
68
85
Pierre Adolph Piorry (1794 – 1879): Médico e poeta francês, serviu nas guerras napoleônicas em
Espanha no início de sua carreira. Aluno de Corvisart, Broussais e Bayle, inspirado pela técnica
auscultatória de Laennec desenvolveu e divulgou a percussão como parte do exame físico. Publicou
cerca de vinte livros textos e seu extenso poema Dieu, L’ame et la nature de 1853 alcançou grande
repercussão à época. Criou neologismos médicos como toxina , toxemia e septicemia que são ainda
utilizados hoje.
86
Jean Antoine Eugène Bouchut (1818 – 1891): Médico francés. Desenvolveu instrumento tubular
para intubaçao endotraqueal e introduziu a técnica no tratamento da crupe. Cunhou o termo
“nervosismo” referente á neurastenia, e “cerebroscopia” referente á oftalmoscopia. Escreveu também
sobre a história da medicina.
87
Louis Jules Béhier (1813 – 1876) : Médico francés, professor de clínica médica da Faculdade de
Medicina, criador dos laboratorios do hospital Hôtel-Dieu e introdutor em França do método inglês de
tratamento de pneumonia com álcool.
88
Louis Phillipe Alfred Hardy (1811 – 1893): Médico francês. Inventor de loções dermatológicas
composta de sublimado corrosivo, sulfato de zinco e acetato de chumbo.
89
Carl Reinhold August Wunderlich (1815 – 1877): Médico alemão. Na obra Das Verhalten
Eigenwarme in Krankeiteen (1868), descreveu a curva de variação térmica observada em pacientes
com febre tifoide.
90
François Sigismond Jaccoud (1860 – 1913): Médico francês. Publicou Leçons cliniques (1867) e
Traité de pathologie interne (1869). Dirigiu a redaçao do Nouveau dictionaire de medicine et de
chirurgie pratiques.
91
Ver nota (26) do autor que faz referência ao Termômetro de Fastré.
69
92
Joseph Skoda (1805 – 1881): Médico tchecoeslovaco. Descreveu o aumento da ressonância à
percussão da porção superior do pulmão enquanto a parte inferior do órgão é comprimida, observado
em pacientes com pneumonia - (sinal de Skoda)
93
René-Théophile-Hyacinthe-Laennec (1781 – 1826): Médico francês. Especialmente famoso pela
introdução à prática da ausculta através do desenvolvimento de um protótipo rudimentar de
estetoscópio. Publicou suas experiências com esta nova técnica semiológica , em 1819, em tratado
intitulado Traité d’auscultation médiate et des maladies dês poumons et du coeur, causando
enorme sensação no meio médico.
70
94
No fólio 11 encontra-se na margem superior esquerda o seguinte registro: “voltar a essa página
como guia a ser desenvolvida”.
95
Jacques Anatole France Thibault (1844 – 1924): Escritor francês cuja obra de acento cético
alcançou grande repercussao junto ao público à época. Seu primeiro grande sucesso literário foi O
crime de Sylvestre Bonnard. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto da obra em 1921.
96
No fólio 12 na margem superior à esquerda temos o seguinte registro em lápis preto: “ir
completando essa página à medida que forem feitos os itens de inspeção e exame clínico”
71
NOTAS:98
97
O registro do ponto final da última frase da introduçao não foi observado no manuscrito pelo
pesquisador. A frase termina com uma vírgula no meio da relação que o autor faz dos capítulos que
viriam a seguir. Pedro Nava pretendia escrever quatro capítulos na biografia de Torres Homem. De
acordo com o método diagnóstico de João Vicente Torres Homem seriam a inspeção, o
interrogatório, a avaliação do cadáver ou necrópsia e, finalmente, a a análise e discussão dos dados
objetivando o diagnóstico final. Somente os dois primeiros foram concluídos. É possível que o autor
aguardasse a finalização dos dois últimos capítulos para terminar a sentença.
98
Notas de autoria de Pedro Nava, identificadas no texto pelo autor com numerais arábicos entre
parênteses e registradas no manuscrito ao pé da página nos fólios correspondentes. Optamos por
reuni-las ao final dos capítulos correspondentes com o intuito de diferenciá-las das notas do
pesquisador. Foi mantida a grafia registrada por Nava.
99
O autor não identifica a nota a ser consultada.
100
O autor não identificou a fonte no manuscrito.
72
Capítulo I
Inspeção
Olhar com atenção e fixar exatamente – eram para João Vicente Torres
Homem, a resultante natural da agudeza da vista e da capacidade retentiva da
memória visual. A prova dessa aptidão inata está nas reminiscências de lugar e nos
detalhes de paisagem associados maquinalmente à história de quase todos os seus
pacientes. Assim ambientadas, essas figuras melancólicas recortam-se nas páginas
onde são evocadas com o mesmo toque de vida e o patético de humanidade que
conferem forma e presença ás personagens realizadas pelo gênio dos ficcionistas.
O singular a propósito e o senso realista que o mestre brasileiro punha
nessas marcações, o bom gosto correntio e a nenhuma vulgaridade dos seus
flagrantes, ─ são uma das chaves da fascinação imutável exercida pela leitura de
suas observações. Mesmo a daquelas cientificamente pretéritas, - porque, apesar de
esvaziadas pelo tempo do conteúdo perecível de sua doutrina – nela permanece,
vivendo e palpitando, o seu sentido de poesia que involuntariamente lhes foi
transmitindo pela invenção artística do autor.
Essa prodigalidade descritiva aparentemente inútil, não é outra coisa, senão a
composição coerente das impressões fornecidas à inteligência de Torres Homem
pelos órgãos apuradas de sua sensibilidade extraordinariamente alerta e sempre
vigilante. E sobre darem colorido e vivacidade aos casos versados, ela incorria ainda
para enriquecê-los da contingência que os dramatizava e que por sua vez induzia à
piedade que todo médico deve pôr no contato com seus doentes. Isso faz com que
101
O olhar para, se assegura e esclarece todos os passos do corpo.
74
102
José Vieira Fazenda (1874 – 1917): Médico, historiador e político carioca. Publicou Antiqualhas e
memórias do Rio de Janeiro, composta de vários volumes na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro.
76
numa chácara encravada em plena rua da Ajuda (49), ora numa casa de “francesa
recentemente chegada”, à rua do Ouvidor (50), ora no pacato, no repousante “Hotel
Vista Alegre” em Santa Tereza (51), ora no centralíssimo “Hotel Ravot”(52),
movimentado pela freguesia veterana e folgazã do Moreaux e da Madame Solange
(53).
Do mesmo modo como as reminiscências locais da cidade percorrida dia e
noite em todas as direções e fixada nos quadros reproduzidos automaticamente
como detalhes obrigatórios dos acontecimentos relatados, - parece que Torres
Homem era dotado ainda de notável capacidade no guardar a lembrança das
pessoas com quem entrava em contato. Há várias passagens deixadas entrever por
ele mesmo, onde fica provada sua aptidão de fisionomista.
É assim que conta como em 1862, encontrou na Praça da Constituição,
reconheceu e abordou em conversa sobre sua doença, a um homem que havia
assistido um ano antes no “leito nº 14” do serviço do Barão de Petrópolis (54).
Em 1870, e em companhia do Dr. Albino Alvarenga trafegava pela rua dos
Pescadores quando lhe surge pelos passos um Thomé, preto liberto, que ele tratara
em 1869 de uma descompensação cardíaca na clínica da Faculdade. Lembrado do
negro que por sinal tinha ocupado ali o “leito nº12” e lembrado mais das
peculiaridades de sua lesão orovalvular, - uma insuficiência mitral, - logo o recolhe
ao interior de uma loja para examinar-lhe o coração, verificando que “os fenômenos
estetoscópicos persistiam no mesmo estado em que ... os tinha observado” quando
o doente deixara a enfermaria (55).
Em 1879, numa de suas memoráveis lições sobre o “Pleuris”, descreve a
cena de um corre-corre familiar desenrolado numa casa de arrabalde a que acorrera
como médico em 1869, - com tal riqueza de pormenores e com tal luxo de
circunstâncias que é como se ainda tivesse presente e estivesse vendo a situação
dramática presenciada dez anos antes. Nada lhe escapou. De nada se esqueceu.
Desde a posição em que surpreendera a doente (“fiquei logo impressionado pela
atitude que ela conservava no leito: fortemente inclinada sobre o lado esquerdo do
tronco, apoiando a mão deste mesmo lado sobre o colchão”), até a expressão
agoniada de sua face (“com a boca aberta, os lábios cianóticos, banhada em
copioso suor frio, com os olhos semi-fechados”). Desde as transes da sua luta
contra a falta de ar (“fazia esforços inauditos para respirar, pondo em contribuição
forçada o lado direito do tórax que era único que se movia um pouco”), ao
77
103
Egbert Van der Poël (Delft, 1621 – Roterdam, 1664): Pintor holandés pertencente à Guilda de São
Lucas de Delft. Representante da idade de ouro da pintura holandesa.
104
Anton Elfinger (1821 – 1864): Médico e ilustrador austríaco.
105
Ferdinand Ritter von Hebra (1816 – 1880): Médico austríaco. Conhecido como um dos fundadores
da Nova Escola de Dermatologia de Viena, que foi um importante grupo de médicos
queestabeleceram aa bases da dermatologia moderna.
78
*
* *
106
Trata-se do início do capítulo 2 do obra de Hipócrates O prognóstico. O texto mostra a
importância da visão para a determinação etiológica da doença. “Nas enfermidades agudas deve-se
observar atentamente isso: em primeiro lugar o rosto do paciente – se é parecido com os das
pessoas sãs, e se, sobretudo, é parecido consigo mesmo.”
107
Pierre Nicholas Gerfy (1797 – 1856): Cirurgião francês. Seu nome está relacionado a vários
epônimos: Fibras de Gerdy, Fontanela de Gerdy, Fossa hióide de Gerdy e Ligamento de Gerdy.
80
“Terror” (66), “sofrimento” (67), “indiferença” (68), “fadiga” (69), “desânimo” (70),
“animação” (71), “êxtase” (72) são os outros moldes com que o meningismo veio
impor sua marca à aparência desse doente de “febre perniciosa” (66); o prejuízo
respiratório, à desse outro portador de “pleuro-bronquite” (67); o calor febril à
daquele acometido de “paludosa-tifóidea” (68), a dispepsia, à do indivíduo sofrendo
de “gastrite crônica” (69); a discrasia “hipoêmica”, à de tal opilado (70); o delírio
hipertérmico, à de determinado “remitente bilioso” (71); e, os “espasmos letárgicos”
da histeria, à de certa “yáyá” (72), “altamente colocada na sociedade pela posição
do marido”.
Além da precisão descritiva enuncida nessas qualificações fisionômicas que
retocam o retrato somático dos que as exibem é preciso considerar o valor do seu
conteúdo psicológico e a equivalência dos sentimentos que elas exprimem, trate-se
do reflexo de estados positivos de excitação, ou, do resultado de situações
negativas de depressão108. O que, tem uma enorme importância para o médico
atento ao espírito do cliente e que avalia, com circunspeção, as consequências que
suas reações afetivas podem ter sobre o proveito de um tratamento e a evolução de
sua doença. É bem possível que o cuidado que o semblante merecia de Torres
Homem, não fosse um pormenor de somenos na atenção dispensada por ele a toda
inspeção externa, mas o ato inicial de sondagem de consciência em que estava
empenhado, sempre que procedia a um exame clínico mais interessante.
Automatismo do psicólogo prevenido e penetrante cuja habilidade procuraremos
demonstrar quando for estudado o seu sistema de anamnese.
Além da catadura no seu aspecto mímico, outras modificações mais
profundas dos traços do paciente eram sistematicamente valorizadas pelo mestre
brasileiro. As variações do colorido e as gradações da nutrição, - postas na equação
de seu significado clínico exato, reportam na descrição das figuras “emagrecidas” de
cirróticos (73), “encovadas” de tifentos (74), “vultuosas” de “brighticos”109 (75),
“empalidecidas”, de dispépticos (76), “amareladas” de cancerosos (77),
“entumecidas” de opilados (78), “ictéricas” de biliosos (79), “rubicundas” de
comatosos (80) ou “decompostas” de gangrenados (81).
108
No fólio 26, encontra-se escrito a lápis na margem superior esquerda o seguinte registro: “voltar a
esta pg. quando estudar a anamnese”
109
Referente a portadores da Doença de Bright – Nefrite crônica (epônimo devido ao médico
patologista inglês Richard Brigth).
81
110
Areteo da Capadócia (81 – 138): Médico grego da escola eclética. Sua obra é composta por oito
livros divididos em doenças crônicas e agudas. Realizou notáveis descrições de pneumonia, pleurisia,
empiema, diabetes, tétano, elefantíase, difiteria e insanidade.
82
tristeza e melancolia, eis em pálidos traços a fisionomia do pobre homem que pagou
tão pesado tributo ao vício a que entregou-se com paixão durante o longo período
de um quarto de século” (105). “Multa paucis!”111 Impossível melhor síntese, ou
moldagem mais bem vazada do “facies crapulario”!
A vantagem tirada do exame do semblante, quando a generalidade de suas
modificações lhe davam o significado de um complexo unívoco, - é a mesma que
Torres Homem colhia dos seus componentes, quando a perturbação isolada bastava
para fornecer o dado proveitoso à interpretação patogênica, ou, o indício útil à
demonstração diagnóstica.
Nas suas observações, os pormenores de cada região, cavidade ou órgão da
face, raramente, aparecem sob forma negativa. Quando o comemorativo intervém, é
para assumir, geralmente, o caráter do sinal positivo, do sintoma terminante.
As referências que deles são feitas, deixam entrever as partes sobre o que se
demorava a atenção do observador e, é a coordenação dessas indicações esparsas
nas histórias dos doentes, que permite a reconstrução do sistema seguido pelo
professor brasileiro nesse capítulo particularizado da inspeção clínica.
À cor da pele era atribuída grande importância. Ela figurava como princípio
seletivo norteando a diligência para as regiões orgânicas que, um descoramento,
uma vermelhidão ou uma hipercromia anormal do rosto, apontavam imediatamente
como suspeitas. Nesse doente é a “excessiva palidez” da face que, somada à
anamnese, leva ao exame do aparelho circulatório, “onde encontramos um quadro
sintomático muito complexo e instrutivo que torna fácil o diagnóstico de sua
moléstia” (106). Noutro, a “palidez lívida” mais os traços hipocráticos acentuados por
ela demonstram que “não é difícil reconhecer a primeira vista uma tísica em seu
último período” (107). A “palidez amarelada” (108), levanta a hipótese de um cancro
do estômago; a “cianose” (109), de uma cardiopatia; o “rubor moderado” (110) de
uma meningite; a “hiperemia” (111), de um icto apoplético. E, em certo paciente cuja
cara “apresenta uma cor esverdinhada muito notável, que impressiona a quem o vê”
(112), - não teria sido esse, o sinal menos indicativo, conduzindo Torres Homem a
rotular o caso como de uma “hepatite com tendência a supuração”.
Cada parte do rosto é esquadrinhada com o maior cuidado e analisada nos
menores detalhes. Na região frontal, - são reparadas as “estrias avermelhadas”
111
Expressão em latim que exprime a condiçao de dizer muita coisa em poucas palavras.
85
*
* *
112
Jean Étiene Dominique Esquirol (1772 – 1840): Médico francês. Foi um dos fundadores da
moderna psiquiatria. Efetuou importantes reformas na abordagem terapêutica dos doentes mentais.
91
113
Arthur Thomson (1858 – 1935): Acadêmico e anatomista britânico.
114
Mal de Bright – epônimo alusivo à nefrite crônica, descrito por Richard Bright, patologista inglês.
92
de “cor branca” (158), “amarela nacarada” (159), “sub-ictérica” (160), “ictérica” (161),
“alaranjada” (162), ou, “esverdinhada” (163).
“Olhos injetados, lacrimejantes e muito sensíveis à luz”, - eis o conjunto
frequentemente mencionado por Torres Homem, na síntese da face febril. Quase
sempre inseparáveis, - a injeção das conjuntivas, o aumento da secreção lacrimal e
a fotofobia, são sinais que ele põe na dependência do estado congestivo do
segmento cefálico (164), epifenômeno das pirexias em que é apontada a tríade.
Como consequência dos dois primeiros termos da mesma, aparece também o brilho
inusitado que acende no olhar e na face do paciente aquela expressão peculiar e
vivaz que o mestre terá surpreendido tantas vezes nos seus meningíticos,
reumáticos, perniciosos, remitentes, intermitentes, tifo-biliosos, pneumônicos,
paludosos e amarelentos (165).
A enoftalmia contingente que pode se instaurar rapidamente nos grandes
desidratados é apontada a propósito da história de um “Ricardo, pardo escravo,
marceneiro”, internado no Hospital da Misericórdia com o diagnóstico de “cholera
morbus” a 7 de julho de 1869 e que vai ser encontrado com a “face decomposta,
olhos profundamente situados no interior das órbitas, voz sumida, abafada e
cansada” (166).
A exolftalmia surge interpretada como sintoma das meningites (167), dos
tumores retro oculares (168) e do bócio exoftálmico. A propósito das variações do
sinal, nessa doença, parece que Torres Homem estava advertido da possibilidade
de sua manifestação uni ou bilateral ou pelo menos mais acentuada de um lado que
de outro (“Há casos em que a procidência de um ou de ambos os olhos chega ao
ponto de deslocá-los completamente das cavidades orbitárias”) (169). Se
interpretarmos suas palavras segundo essa intenção, teremos que ele se punha,
aqui, de acordo com um dos seus modelos, Jacourd (“...ordinairement elle est
d'emblée double et égale des deux côtes, quelquefois pourtant elle rest assez
longtemps unilatérale...”)115 (170) e em oposição a outro, Trousseau (“L'
exophtalmie est double, égale des deux côtés, sans strabisme, ce qui la distingue de
toute exophtalmie de cause orbitaire ou crânienne...”)116 (171). Aliás, escolhendo
115
Normalmente ela (a exoftalmia) ocorre bilateralmente e semelhante nos dois lados; algumas
vezes, no entanto, pode ocorrer muito tempo unilateralmente.
116
A exoftalmia é dupla, igual nos dois lados, sem estrabismos que a distingue de outras de causas
orbitárias ou cranianas.
93
117
O termo utilizado pelo autor não foi localizado no léxico da língua portuguesa. Devido a sonoridade
do vocábulo o pesquisador o buscou no idioma francês esclarecido pelo Grande Dicionário, de
Domingos de Azevedo – Francês – Português; p. 1332, conforme duas variantes: sopeur [çó-për],
s. f. Med. V. Sopor. e sopor [çó – pór], s. m. Med. Sopor, modorra, sono pesado. O conteúdo do
período corrobora com o sentido do vocábulo pretendido pelo autor no período. Observamos que a
fonética do termo é compatível com o registro gráfico realizado pelo francófilo Nava (AZEVEDO,
Domingos de. Grande Dicionário Francês-Português).
94
“Quando procura sentar-se ajudado por duas pessoas, o doente conserva a cabeça
fortemente reclinada para a parte posterior, sem poder conservá-la na posição
vertical; cefalalgia, olhos brilhantes, salientes, conjuntivas injetadas, estrabismo
duplo convergente, pupilas dilatadas” (176).
“Estrabismo duplo convergente” Eis aí, como nos outros casos, o elemento
básico do exame. Presente o desvio dos globos oculares, - como que todos aqueles
fenômenos patológicos aparentemente desarticulados, se ordenam do ponto de vista
semiogênico e se engatam, como elos, na cadeia de silogismos que conduz à
asserção coerente do diagnóstico.
Alertado pelo conjunto mórbido poliforme, é, pois, no exame dos olhos que
Torres Homem vai se fixar quando se decide na especificação da meningite. Serve
para guiá-lo, a presença do estrabismo. Servem ainda, no mesmo fim, a saliência e
o brilho dos dois globos, a injeção das conjuntivas, as variações da mecânica
pupilar.
“O estrabismo, unilateral ou duplo, convergente ou divergente, é um sintoma
que se observa muitas vezes na aracnites, principalmente nas crianças. Devido à
contratura dos músculos motores do globo ocular, esse sintoma coincide com o
delírio, a cefalalgia e a insônia; pertence ao grupo dos fenômenos do primeiro
período da moléstia; verdadeira convulsão tônica, a contratura dos músculos retos
dos olhos vem acompanhada muitas vezes de convulsões de outros músculos,
particularmente dos da face e dos membros, tanto superiores como inferiores” (177).
“As pupilas ordinariamente apresentam-se contraídas durante o período de
excitação da meningite, e, só mais tarde é que ficam dilatadas; há casos porém em
que desde o começo da moléstia o disco pupilar oferece uma exagerada dilatação,
sem que a íris deixe de contrair-se na presença da luz” (178).
Confirmando esse princípio expendido nas “Lições sobre as Moléstias do
Sistema Nervoso” lá estão, nas observações, as dessemelhanças ostentadas pelos
doentes segundo a gravidade do caso e o período em que é surpreendida a
moléstia.
O moleque Zacarias, “de 14 anos de idade, escravo”, portador de uma
“meningite da base do cérebro”, apresentava no dia 2 de junho de 1869, quando da
doença, as “pupilas dilatadas”. De “diâmetro normal, insensíveis à luz”, eram as de
“um preto completamente comatoso”, “encontrado na rua sobre a calçada” e que, “a
policia remeteu para o Hospital da Misericórdia” às 10 horas da noite de 22 de
95
118
Termo utilizado para designar febre tifóide.
119
Epônimo – Também chamado de doença de Basedow; bócio exoftálmico, ou seja bócio tóxico
caracterizado por hiperplasia difusa da glândula tireóide, uma forma de hipertireoidismo; a exoftalmia
é uma complicaçao concomitante comum. Descrita pelo médico irlandês Robert James Graves (1796
– 1853).
120
Hermann Ludwig Ferdinand Von Helmholtz (1821 – 1894): Médico, físico, anatomista e fisiologista
alemao. Cirurgião do exército prussiano. De 1855 a 1858 ocupou as cátedras de Anatomia e
Fisiologia da Universidade de Bonn e subsequentemente, a cátedra de Fisiologia na Universidade de
96
tempo prodigioso e simples que tornou possível tal milagre e que, posto nas mãos
destras de Eugène Bouchut, permitiu a esse admirável e completo médico francês,
alargar de léguas os territórios da neurologia e da clínica apenas com o sistematizar
da vistoria das modificações oferecidas pela pequena superfície interna do globo
ocular.
“Cerebroscopia” foi o nome que ele deu ao seu invento, destinado como
método, ao “diagnóstico das doenças do cérebro e da medula por meio do estudo
das alterações do fundo do olho” (189).
Torres Homem estava ao par das pesquisas de Bouchut e dever ter lido suas
memórias fundamentais sobre o assunto, como a “De La méningite reconnue à
l'ophtalmoscope” de 1863, e, a “De l'ophtalmoscopie appliquée au diagnostic des
maladies du cerveau et de lá moelle èpiniere”, de 1866, porque transcreve, nos seus
“Elementos de Clínica Médica” de 1870, - várias páginas do professor de Paris
(190). Não obstante, sente-se nas palavras do brasileiro ligeira reserva, quando,
fazendo a apologia parcial da descoberta, deixa transparecer algumas dúvidas
quanto à totalidade dos seus primores.
“... Se é verdade que podem ser taxadas de exageradas as opiniões dos que
pensam que as diversas espécies de meningite, de amolecimento cerebral, de
hidrocéfalo e de hemorragia do encéfalo, são facilmente diagnosticadas por meio do
oftalmoscópio, com muito mais exatidão mesmo do que qualquer outro meio, não é
menos verdade que o emprego razoável e oportuno deste instrumento em alguns
casos particulares, pode esclarecer muitas dúvidas que comumente aparecem no
diagnóstico das moléstias intracranianas, sobretudo quando elas têm sua sede na
vizinhança do quiasma ou dos centros ópticos” (191).
“Não tenho a necessária competência para decidir se estas investigações têm dado
à ciência os excelentes resultados apregoados por seu autor; julgo que ainda é cedo
para se afirmar ou negar que as lesões intracranianas se desenham no fundo do
olho, sendo real ou não a existência de uma verdadeira cerebroscopia; o que me
parece porém fora de toda a dúvida é que o oftalmoscópio em certos casos é um
poderoso auxiliar do diagnóstico das moléstias cerebrais” (192).
Prudência que não ficava nada mal a quem só conhecia o lado teórico do
problema mas que, logo depois, e sob a influência do surto de desenvolvimento
tomado pela oftalmologia no Rio de Janeiro; passaria a considerar sua cooperação
como sendo aquele dado complementar sem preço já perfeitamente entrevisto
quando escrevia, que “é preciso que o... instrumento inventado por Helmholtz deixe
de ser patrimônio exclusivo dos especialistas” (193).
Setenta anos depois a influência norte-americana poria nas mãos dos nossos
neurologistas e neurocirurgiões, o mesmo aparelho que Torres Homem queria ao
alcance de todos e tão vulgarizado quanto “o laringoscópio, o termômetro, o
esfingmógrafo e o microscópio” (194).
É indispensável deixar bem claro que, a divulgação, meramente informativa
feita pelo eminente professor carioca sobre o exame do fundo de olho e sobre a
aparelhagem criada para isso por Ruete, Donders, Licbreich, Galezowski e pelo
patrício Nunes da Costa (195), ressentia-se de sua falta de prática no assunto. O
que é, aliás, compreensível, pois na época em que eram dados ao prelo os seus
ensinamentos, estava justamente se abrindo o decênio decisivo em que Fernando
Pires Ferreira, Carlos Ludovico Drognat Landré, Manoel da Gama Lobo, José
Cardoso de Moura Brasil e Hilário Soares de Gouvêa, iriam transformar o semi-
artesanato e o amadorismo elementar em que vegetava a oftalmologia no Brasil, - na
especialidade vigorosamente vitalizada ao influxo das ideias por eles difundidas, da
escola francesa, com Wecker; da escola alemã, com von Graefe; e, da escola
vienense com Arlt, von Jager, Stelwag e outras figuras memoráveis (196). A
“Reforma Sabóia” configurando e dando realidade ao ensino da Clínica
Oftalmológica na Faculdade de Medicina da Corte (197), ─ fecha essa década com
chave de ouro.
O progresso e a disseminação dos conhecimentos oculísticos, resultados
destes fatores, vão repercutir imediatamente no exercício do grande clínico, como
vemos da confiança com que ele se refere ao recurso subsidiário do exame fúndico,
- tanto nas suas lições publicadas em 1878 e 1884, como nas que veio a proferir nos
últimos anos de vida e que tiveram luz póstuma em 1890. Já não se sentem as
hesitações teóricas mostradas no livro impresso em 1870, mas que na realidade,
reflete ainda opiniões que vinham sendo elaboradas desde 1865 (198), - e o
“Processo de Torres Homem” surge aprimorado pelo amparo suplementar que lhe é
fornecido pela colaboração técnica dos especialistas.
98
configuração radiada característica, bem diversa da que se deixa ver na retinite que
acompanha o diabetes saccharino, onde o processo flegmásico não é peri-macular,
porém se efetua na periferia da papila, é peri-papilar (205).
*
* *
121
Os lábios entreabertos, pendentes, frios e pálidos são ainda um indício de morte. Trecho de texto
de Hipócrates O Prognóstico.
100
122
Alfred Gordon (1874 – 1953): Neurologista e psiquiatra norte-americano. Descreveu o Sinal de
Gordon que é a elevação ativa e extensão de um braço parético seguida de hiperextensão
involuntária e abdução dos dedos.
123
André Thomas (1867 – 1963): Neurologista francês. Descreveu a perda de coordenação entre
grupos musculares antagonistas das extremidades do corpo na disfunção cerebelar.
124
Boissier de la Croix de Sauvage (1706 – 1767): Médico francês. Professor de medicina em
Montpellier. Escreveu a Pathologia methodica e Nosologia médica que foi uma grande obra de
taxonomia.
102
125
Gherard Van Swieten (1700 – 1772): Médico austríaco. Pupilo de Boerhaave. Fundou a Escola
Vienense de Medicina.
126
François Chaussier (1746 – 1828): Cirurgião e anatomista francês. Professor de anatomia na
Universidade de Dijon e na École de Paris. Autor do Discours at the la Maternité e Tables
Synoptiques.
103
destas que devia redobrar de atenção o prático para que não lhe escapassem os
sinais da dentição rompente, nem a interpretação exata dos acidentes provocados
por ela.
“Quando uma criança é atacada de convulsões, o médico chamado para vê-la não
deve omitir o exame atento e minuncioso das gengivas, porquanto às vezes e a
extrema dificuldade que tem um dente em romper o bordo gengival é a única coisa
que provoca e entrevê os acessos convulsivos” (244).
Nas infecções, Torres Homem mostra-se sempre muito alerta para o grau de
secura da boca e de suas formações. “Os lábios estão secos e fuliginosos; do
mesmo modo se acham os dentes e a língua” (245), - acentua naquele remitente
bilioso grave. “Língua seca e saburrosa, dentes e lábios secos, sede devoradora”
(246), - frisa nesse pernicioso ardendo em febre. “Língua rubra, seca, fendida,
retraída e acetinada, dentes secos e fuliginosos, lábios secos, vermelhos e gretados;
sede devoradora” (247), - salienta no disentérico, explicado pela assiduidade das
camadas copiosoas e involuntárias.
Parece que essa atenção na aridez bucal se prendia ao fato da mesma lhe
servir como índice da permanência da moléstia no altiplano do “período de estado”,
porque vamos encontrar a valorização antagônica do sinal oposto, logo que são
surpreendidos os prenúncios de deflexão e as primeiras aparências de que a
economia está começando a dominar a agressão infecciosa. É, pelo menos, o que
se conclui da observação de um Alcântara pardavasco “de 35 anos de idade,
marceneiro”, quando é relatada a fase de declínio da “remitente paludosa tifoídea”,
que o acometera a 1º de maio de 1873. No dia 10 há “melhoras sensíveis”, - sua
língua está um pouco mais úmida na ponta” e os “dentes menos fuliginosos”. No dia
seguinte, - “progridem as melhoras”, - só há secura no “centro e na base da língua” e
os dentes se apresentam, finalmente, - “úmidos e sem fuligem” (248).
Esta fuliginosidade indicada regularmente nos lábios e principalmente nos
dentes, cuja intensidade oscila como corolário da secura ou da umidade da boca, -
devia assumir para o internista patrício significado diagnóstico e prognóstico
equivalente aos desses últimos fenômenos. Ela surge como episódio
consuetudinário na história dos seus grandes infectados, - nas “disenterias”, nas
“remitentes paludosas tifóideas”, nas “remitentes biliosas dos países quentes”, e,
máxima, nas “febres tifóides” (249). Justamente nessa pirexia é que se estadiava,
em pleno, aquele induto dentário e labial, - sinal que os atuais cuidados de
104
127
Ou Leptotrichia buccalis (Robin 1853): Fusobactéria comumente encontrada em
gengivoestomatites infecciosas em humanos.
128
Gabriel Andral (1797 – 1876): Médico francês. Professor de higiene e patología na Universidade
de Paris, membro da Academia de Medicina (1824), sucessor de Broussais na cadeira de Patologia e
Terapêutica (1830), membro da Academia de Ciências (1843). Primeiro a destacar a importância do
exame do conteúdo químico sanguíneo nas diversas condições mórbidas. Autor de Clinique
médicale (1824), Précis d’anatomie pathologique (1829); Cours de pathologie interne (1836);
Notes et additions au Traité de l’auscultation médicale de Laennec (1837); Sur le traitement de
la fiévre typhoide par les purgatifs (1837); Recherche sur les modifications de proportion de
quelques principes du sang e Essai d’hematologie pathologique (1843), dentre outras obras.
129
Tradução do francês – Espírito vasto e penetrante, observador sagaz e judicioso, sábio de primeira
ordem.
105
medicina clínica que há de ser sempre uma honra do pensamento humano e glória
perene da inteligência francesa.
Não havia nada que pudesse escapar à sua atenção inflexível. O pormenor
de aparência mais insignificante, tinha na elaboração do diagnóstico e no
delineamento do prognóstico a mesma situação funcional, - absoluta, imprescindível,
exata, insubstituível, - da gota d'água no volume da onda e do grão de areia, no
alteamento da montanha.
Um dos exemplos mais frisantes dessa capacidade de sacar da menor
particularidade, - o máximo de vantagem, patenteia-se no mundo de induções e
conclusões que aqueles “virtuoses” do exame médico sabiam tirar de uma simples
vistoria da língua. E, nesse capítulo da inspeção, parece que a maneira de Andral
terá influído de muito, na técnica de Torres Homem. De fato, encontramos em
ambos, praticamente, a mesma nomenclatura na qualificação dos estados mórbidos
daquele órgão e uma sistematização quase idêntica dos distúrbios que alteram os
seus caracteres. É o que se pode ver, mostrando como, nas pegadas do parisiense,
o professor carioca se servia das gradações da sua cor
(“descorada”,“pálida”,”ictérica”,“avermelhada”,“rubra”,“excessivamente rubra”,
“escarlate”, “escura”, enegrecida”); das modificações de sua superfície (“acetinada”,
“luzidia”, “áspera”, “encarquilhada”, “gretada”, “sulcada”, “fendida”, “descamada”,
“ulcerada”); das variações de sua forma (“pontiaguda”, “larga”, “esplanada”,
“volumosa”, “túrgida”); das perturbações de sua posição, mobilidade e motilidade
(“retraída”, “parética”, “paralítica”, “desviada”, “imobilizada”, “trêmula”); e, da
qualidade, quantidade e coloração dos seus depósitos
(“tênues”,“espessos”,“glutinosos”,“mucosos”,“sanguinolentos”,“pultáceos”,”pastosos”,
”viscosos”,””saburrais”, “espumosos”, “pseudo-membranosos”, “cor de caliça”,
“amarelados”, “cor de ferrugem” e “denegridos”), - para associando e combinando
esses elementos, representar todos aqueles tipos de língua, - exemplares
inconfundíveis, específicos e patognomônicos, onde os velhos práticos liam o
diagnóstico e o prognóstico, - como nas linhas de um livro aberto.130
Em quase todas as observações de Torres Homem são encontradas
referências a esse exame. Na “nefrite intersticial” (259) e na “angina tonsilar,
130
No fólio 72 encontra-se registrado a lápis na marginália superior à esquerda a seguinte frase: “Viva
o Bigunga! 3 – 6 - 946”
Ainda no fólio 72 encontra-se registrado a lápis no centro da margem direita a data “3.VI.946”.
106
131
As ligações simpáticas que unem a boca ao estômago.
132
De todas as doenças, as febres certamente são aquelas onde a língua apresenta as modificações
mais importantes e variadas.
107
133
Francisco de Melo Franco (1757 – 1823): Médico brasileiro, formado em Coimbra onde fez parte
da Real Academia de Ciências de Lisboa. Acompanhou a princesa Leopoldina em sua viagem ao
Brasil em 1817, como seu médico particular. Foi um dos primeiros pediatras e escreveu o primeiro
tratado de pediatria em português: Tratado da educação física dos meninos para o uso da nação
portuguesa (1790).
134
Tradução do grego: sýnocha. Febre contínua.
135
José Maria Bomtempo (1794 – 1843): Médico português. Formado em filosofía e medicina em
Coimbra, exerceu a medicina na cidade do Rio de Janeiro onde foi diretor interino da Academia
Médico Cirúrgica para a qual compôs vários compêndios como: Compêndios de matéria médica
(1814), Compêndio de medicina prática, feitos por ordem de sua Alteza Real (1815).
110
136
Denominação para febre amarela, hoje em desuso.
111
(316), nos levaria a repetir aqui, o estudo já processado, com relação à língua no
paludismo.
Prosseguindo na inspeção da boca, Torres Homem examinava o aspecto com
que se apresentava o véu do paladar, - atentando nas modificações de sua
coloração (icterícia) (317), de sua embebição (edema) (318) e de sua motilidade
(319). Inseparável da apreciação das paralisias palatinas e complemento do seu
diagnóstico, eram os desvios imprimidos pela incapacidade motora à posição da
úvula.
“A paralisia do véu do paladar é revelada pela flacidez, queda para diante e falta de
concavidade deste órgão. Se a paralisia é de um só lado, a úvula desvia-se para o
lado são; este desvio torna-se patente sobretudo durante os movimentos da
deglutição; nesta ocasião vê-se perfeitamente uma metade do istmo da garganta
imóvel, ao passo que a outra contrai-se puxando para o seu lado a base da língua”
(320).
Conjuntamente à da abóbada e à da campainha, era operada a vistoria dos
pilares, das amígdalas e da parte visível da faringe, tudo reunido por Torres Homem
sob a designação de “boca
posterior”, como se vê no relato do caso de um certo Fonseca, - lusitano e “morador
na rua de S.Diogo, de temperamento sanguíneo e constituição forte” que “entrou
para a enfermaria de Santa Isabel no dia 11 de agosto de 1869”.
“Depois de muitos esforços, a boca posterior pode ser examinada: as amígdalas
estão muito aumentadas de volume, ulceradas e com uma cor vermelha muito
intensa ... O véu do paladar e seus pilares, a úvula, a parede posterior da abertura
superior da faringe e a epiglote apresentam-se rubros e edemaciados. A palavra é
muito difícil, a voz rouca e fanhosa” (321).
Ainda, com relação ao faringe, competia verificar, durante a sua inspeção, a
existência de paralisias (“Quando a paralisia invade o faringe, o doente não pode
deglutir, principalmente substâncias líquidas, as quais são logo expelidas pelas
fossas nasais”) (322); de descamações da mucosa respectiva (323); e, finalmente,
completar a sua exploração, ao mesmo tempo que a da base da língua e a do
laringe, com o auxilio da endoscopia” (324).
Nos “Elementos de Clínica Médica”, Torres Homem faz um estudo da
laringoscopia que compreende o seu histórico, sua técnica, sua aparelhagem e sua
utilidade clínica (325). Não cita os nomes de Bozzini, Cagnard de Latour, Senn,
112
Babington, Beunati, Trousseau, Belloc e Baumès, que foram entre 1807 e 1838, os
pioneiros desse método de exame (326), - mas mostra-se informado sobre os
trabalhos de Czermak, Turck, Liston e Garcia, apesar de atribuir erradamente ao
último a qualidade de médico. Na realidade, Manuel Garcia, filho do cantor e
compositor sevilhano Manuel del Popolo Vicente Garcia, foi um “basso”137 medíocre
mas, não obstante, o eminente professor de canto que “estudou seriamente a
conformação do órgão vocal” (327) e que impôs o seu nome às páginas dos tratados
de medicina como sendo o do “primeiro que pensou em examinar o próprio laringe
durante o canto ... fundando assim a autolaringoscopia” (328).
A aparelhagem descrita são os espelhos de Liston e Garcia, o de Turck e o de
Czermak. Desse último, a técnica é repetida com minúcia e os detalhes referentes à
iluminação, à posição do paciente e à do médico, que “para ter as duas mãos livres
... fixa um refletor diante dos olhos por meio de uma mola de arame que se prende
no diâmetro antero-posterior da cabeça” (329), - são esclarecidos pela reprodução
de uma gravura que mostra como era praticado o exame em questão, segundo o
jeito do notável fisiologista de Praga.
Em 1870, época em que Torres Homem faz essa vulgarização não havia
ainda entre nós nenhum curso regular de otorrinolaringologia. Seu ensino, só
principiava depois da inauguração da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, em 1882,
quando Cypriano Barbosa Bethanio vai ocupar o cargo de “professor de clínica de
moléstias do laringe, das fossas nasais e dos ouvidos”, na nova instituição (330).
Antes disso, entretanto, - o que aumenta de muito o seu mérito, - já o mestre patrício
servia-se da laringoscopia, como recurso auxiliar do diagnóstico clínico, praticando-a
pessoalmente, como se vê no livro publicado por ele naquele mesmo ano de 1882,
mas que só contém lições proferidas anteriormente, isto é, no período que vai de
1867 a 1881.
“Para que o diagnóstico não pudesse sofrer a mais leve contestação, deliberei
verificar por meio do espelho laringoscópio a existência das lesões que eu tinha
admitido” (331).
“... fostes testemunhas do que se passou quando, durante três sessões
consecutivas, tivemos de fazer tentativas infrutíferas para examinar o laringe do
doente”(332).
137
Baixo, pequeno.
113
*
* *
Na “febre biliosa grave dos países quentes”, a icterícia, que num período
adiantada da moléstia “torna-se muito pronunciada e invade toda a superfície
cutânea”, - deve ser procurada na fase inicial, quando é ainda um sintoma discreto e
menos aparente, mas assim mesmo, de relevante valor diagnóstico. É o que faz
Torres Homem quando trata de surpreendê-la, mal começa o “estado bilioso”,
apanhando-a ainda sob a forma das impregnações parciais, pouco salientes e que
apenas se esboçam “nas conjuntivas oculares, nos regos naso-labiais, no mento,
nas faces laterais do pescoço e na parte superior do tórax” (352).
As veias jugulares são estudadas do ponto de vista, ora da “turgência” que
podem a apresentar na assistolia (353), no enfisema pulmonar (354) e na congestão
cerebral (355), ora das oscilações que às vezes abalam as suas paredes. Estão
nesse caso o “falso pulso venoso” (356) e o “pulso venoso legítimo” (357), ambos
magistralmente interpretados pelo mestre carioca, tanto na sua origem patogênica
como no sentido de sua tradução clínica.
Com relação às carótidas, a inspeção vai focalizar desde seus “batimentos
exagerados” (358) aos “movimentos regulares e rítmicos de vai e vem” que mostram
“em toda a sua pujança o fenômeno conhecido pelo nome de dança das arterias”
(359).
“A posição anatômica das carótidas, livres no meio das camadas de tecidos moles
do pescoço, sem repousarem em um plano resistente que possa limitar a dilatação
de suas paredes, faz com que os mesmos fenômenos que nelas se passam tornem-
se apreciáveis à vista em uma certa distância. A violência com que o sangue
amplamente as distende e a rapidez com que elas se retraem logo depois de
distendidas, explicam satisfatoriamente os movimentos ritmicos que se passam no
pescoço” (360).
*
* *
que o prático vai “ler através das paredes do peito e relacionar a lesão provável do
órgão incluso ao ponto de reparo escolhido na superfície exterior” (361).
Nenhum dos processos objetivando essa finalidade e em voga na época de
Torres Homem, - desde o das “linhas plessimétricas” de Piossy, ao da conexão das
vísceras com as saliências e reentrâncias externas de Francis Libson; dos
diagramas obtidos com o “Chest-rule” de Ransome, aos esquemas de notação
auscultatória de Lasègue138, - parece ter merecido a preferência exclusiva do mestre
brasileiro. O que se consegue reconstruir de sua topologia, - não dá a impressão de
que ele observasse uma conduta uniforme e sempre a mesma, quer durante a
inspeção dos seus pacientes, quer ao redigir o relato das suas observações. O seu
modo de proceder às localizações torácicas muito simples e muito pessoal (“... et
chacun peut à cet égard s'en créer quelqu'un qui soit conforme a ses habitudes”139.)
(362), - devia servir, antes de mais nada como um recurso didático, como um
instrumento claro e preciso para se fazer entender (“Et l'on peut toujours être
compris, lorsqu'on dit que tel bruit se fait entendre sous la clavicule, dans l'une des
fosses sus ou sous épineuses... dans le creux auxilaire, sous le mame lon droit ou
gauche, etc.”)140 (363).
Era dentro desse juízo simplificador, expresso por Luton, que se colocava o
professor fluminense, quando apontava em largos traços certos acidentes que o
acaso teria disseminado, caprichosamente, no “tronco” (364) ou nas “espáduas”
(365) de um enfermo, mas, cuja importância, mesmo quando intrinsecamente
grande, carecia de significado, de expressão, ou de especificidade, se encarada
exclusivamente do ponto de vista do local onde sua fenomenologia ia ser
surpreendida. Essa maneira de não fatigar o ouvinte ou o leitor com o detalhe inútil
nem com a particularidade supérflua, - deixa seu raciocínio sempre pronto a ser
alertado ao chegar a vez do pormenor interessante ou da minúcia prestadia. É o que
sucede quando Torres Homem vai mostrar o sinal decisivo e que cumpre demarcar
nessa região, restringir naquela faixa, ou, extremar num ponto determinado.
138
Charles Ernest Laségue (1816 – 1883): Médico francês. Observou e descreveu o que seria o “sinal
de Laségue” quando indivíduos portadores de compressão ciática experimentam quando elevam a
perna a pouco mais de trinta graus. Suas principais obras são Traité des angines (1848), Traité de
l’auscutation de Laënec e Traité de la goutte de Sydenham.
139
... e todos podem imaginar alguém que seja de acordo com seus hábitos.
140
E pode ser sempre incluído, quando disse que tal ruído é ouvido sobre a clavícula, em uma de
suas fossas sobre ou sub espinhosas, .. no oco axilar sob a mama direita ou esquerda.
119
141
Tuberculose da coluna vertebral; osteíte das vértebras, ocorrendo frequentemente como
consequência da tuberculose pulmonar. Epônimo de Sir Percivall Pott (1714 – 1788), médico inglês.
123
eletiva dos sinais que traduzem os distúrbios das vísceras que eles revestem.
Parece que esse seria o critério de Torres Homem, pois encontramos nas suas
lições várias referências em abono dessa afirmativa.
É assim que nas regiões costais ele aponta como dados relevantes a
“separação das costelas” (399) e a “ausência das depressões intercostais” (400) que
somadas à imobilidade e ao abaulamento do dimídio lesado, vão completar o quadro
postural oferecido nos espargimentos da pleura. Esse apagamento dos entrecostos,
pode, isoladamente, relacionar-se também a um processo de serosite alta do
abdômen, como no caso do português José Duarte que foi ocupar o leito número 15
da “enfermaria de Santa Isabel no dia 23 de Maio de 1869”, com uma
“hepatoperitonite” secundária a uma “grande hidropisia da vesícula biliar” e à
“comunicação dessa vesícula com...cavidade formada por uma porção do peritônio
que reveste a superfície convexa do fígado.” Lá está o sintoma, muito claramente
relatado no texto da observação.
“... as depressões dos espaços intercostais direitos, desde o quarto até o último, não
existem, ao passo que as do lado esquerdo são muito pronunciadas” (401).
A inspeção da região esternal e das circunvizinhas está intimamente ligada à
pesquisa dos elementos que induzem à suspeita dos aneurismas da aorta. Essa
inspeção merece cuidados muito especiais “antes que o tumor... faça saliência na
parede torácica”, quando ainda “não é muito fácil perceber... os seus batimentos
expansivos”. “Para apreciá-los convenientemente”, - ensina Torres Homem, - “o
médico deve colocar-se às vezes em uma posição que lhe permita dirigir o eixo
visual em sentido horizontal, paralelamente em relação à parede torácica: nesta
posição, fixando com atenção o olhar para a região suspeita, as pulsações do
aneurisma não lhe passarão despercebidas” (402). Tais cuidados, é obvio, seriam
supérfluos nos casos espetaculares, nos grandes aneurismas da aorta ascendente e
da crossa que são exatamente os que se tornam mais salientes para o exterior, -
“destruindo costelas, cartilagens costais e o esterno, luxando as articulações,
esterno-claviculares, e formando tumores mais ou menos volumosos” (403).
Além desses batimentos, perceptíveis no centro da proeminência
característica que se instala “na parte lateral direita da região esternal e nas duas
primeiras peças do esterno” (404), - outras ondulações parietais eram salientadas
pelo mestre fluminense, como as acarretadas pela presença de líquido derramado
124
142
Jean Baptiste Sénac (1693 – 1770): Médico francês autor de On the Structure action and
diseases of the heart, reflections on drowned persons.
143
Jean Baptiste Bouilland (1796 – 1881): Médico francês e professor de Medicina Interna no Hôpital
de la Charité. Foi adepto de Broussais no que se refería à prática de sangrias. Descreveu uma
retração permanente da parede torácica na área precordial em casos de aderência pericárdica –
descrito como sinal de Bouilland.
125
144
No fólio 111 encontra-se em registro autógrafo na marginália superior direita a seguinte frase:
“Viva o Buzunga 22- 8-946”. Em entrevista a Claudio Aguiar, Paulo Penido, sobrinho de Nieta Nava
comenta sobre o tratamento que o casal mantinha na intimidade: “Olhe, Nieta e o Pedro gostavam-se
tanto que se tratavam na intimidade com um nome só: Bisunga. Ele a chamava de Bisunga. E ela
também o chamava de Bisunga”. A referida entrevista está publicada no livro Pedro Nava. O Bicho
Urucutum. Seleção de textos e desenhos de Paulo Penido. Cotia: Ateliê Editorial, 1998.
126
145
Epônimo. John Cheyne, médico escocês (1777 – 1836 ) e Wiliam Stokes, médico irlandês (1804
– 1878 ). Respiração de Cheyne-Stokes: Respiração em que há variação ritmada na intensidade, em
ciclos; cada ciclo corresponde em diminuição gradual da intensidade dos movimentos respiratórios,
com cessação total deles durante alguns segundos e depois aumento gradual até atingir o máximo.
Observado em casos de coma de origem central.
127
atáxico, grave, “que precede de poucos movimentos a morte”, na febre amarela, “em
algumas formas de febre perniciosa” e mais raramente, na febre tifóide (425).
“... o paciente com paralisia das potências respiratórias, terá necessidade de sorver
o ar destinado aos seus pulmões, apresentará o sintoma a que alguns patologistas
dão o nome de respiração bulbar e que eu chamo de respiração de chupeta” (426).
“Dentre os sintomas atáxicos que apresentam alguns doentes, há um que é indício
infalível de morte próxima: vem a ser uma desordem particular da respiração, uma
espécie de dispneia que faz com que o doente inspire, aspirando por entre os lábios
mal abertos o ar que deve chegar aos pulmões; de sorte que cada inspiração é
ruidosa e sibilante, como se o individuo estivesse sorvendo a grandes tragos um
líquido qualquer.
Este sintoma, fornecido pelo aparelho da respiração, denota que as funções do
nervo pneumogástrico se acham muito comprometidas. É a este fenômeno que eu
chamo - respiração de chupeta” (427).
Não estaria Torres Homem, quando descrevia a respiração “rara e intensa” e
mais a “de chupeta” colhendo e exprimindo, sem querer, os termos esparsos, que
reunidos, não constitui algumas fases do ritmo de Kussmaul146? É o que parece.
A “grande respiração” quando se apresenta de modo típico, é uma sequência
lenta e entrecortada que se processa em quatro tempos. O primeiro é uma
inspiração forçada, profunda, penosa. O segundo, uma pausa. O terceiro, uma
expiração rápida e gemente. O quarto, uma nova pausa.
Se a essa definição, superpusermos as expressões usadas pelo professor
brasileiro, veremos que os seus sentidos se ajustam com bastante exatidão.
Para a sequência lenta e entrecortada, para as pausas de apneia, temos a
“respiração rara”. Para a inspiração forçada profunda, penosa, temos o que Torres
Homem quer significar quando diz que o paciente tem necessidade “de sorver o ar”
e que há como uma espécie de dispneia “que faz com que o doente inspire,
aspirando por entre os lábios mal abertos o ar que deve chegar aos pulmões; de
sorte que cada inspiração é ruidosa e sibilante, como se o indivíduo estivesse
sorvendo a grandes tragos um líquido qualquer”. Para a expiração rápida e gemente
encontramos equivalência no “caráter da respiração suspirosa”.
146
Epônimo. Adolf Kussmaul, médico alemão (1822 – 1902): Respiração de Kussmaul, respiração
profunda e rápida, com pausas bruscas entre a inspiração e expiração característica de situações de
acidose metabólica.
128
*
* *
147
Pierre Fidèle Bretonneau (1778 – 1862): Médico francês. Foi profesor de Trousseau, Velpeau e
Baillarger. Descreveu a febre tifóide e a difteria e diferenciou a febre tifóide do tifo. Realizou a
primeira traqueostomia devido a crupe.
131
148
James Sanders (1777 – 1843): Médico inglês. Descreveu o sinal da pulsação epigástrica nos
pacientes que apresentavam aderência pericárdica ou o epônimo sinal de Sanders.
149
Ernest Ludwig Heim (1747 – 1834): Médico alemão. Descreveu conjuntamente com Friederich
Ludwig, uma depressão presente nos espaços intercostais esquerdos durante a sístole cardíaca.
134
onde teria contraído a “opilação” que levou ao leito do hospital. “Dor epigástrica que
se exacerba pela pressão e sobretudo depois da ingestão de alimentos: esta dor
quando é intensa, irradia-se para os hipocôndrios e para o dorso” (501).
Mas o jeito mais habitual de Torres Homem, de separar, no abdômen, as
zonas de reparo é o clássico, o que o divide nas onze áreas a que ele tanto se
reporta, quando alude reiteradamente às regiões do epigastro (502), do umbigo
(503), do hipogastro (504), dos dois hipocôndrios (505), dos dois flancos (506), das
duas fossas ilíacas (507) e, às dos dois lombos (508).
Esses mesmos espaços aparecem às vezes subdivididos como quando se
fala na “metade direita” do epigastro (509) ou, mais fragmentariamente, ainda,
quando vem â baila uma parte dessa metade (“... um tumor, o qual ocupa, ora o lado
direito do epigastro, na sua parte inferior, ora o hiponcôndrio direito...”) (510); e
quando, dentro do perímetro da região umbilical, há necessidade de circunscrever
certos fenômenos, tomando-se como notação as “vizinhanças da cicatriz umbilical”
(511) a zona “supra umbilical” (512) e a que fica “abaixo da cicatriz umbilical” (513).
Os alteamentos do epigastro, do hipogastro dos hipocôndrios, dos flancos e
da região umbilical aparecem traduzindo processos que, via de regra, repercutem de
maneira mais ou menos específica sobre esses pontos, como é o caso da elevação
epigástrica “muito acima do plano horizontal” (514), quando a ascite empurra na
direção do diafragma as “asas intestinais... distendidas por gases” e o de um “foco
purulento que formado no lobo esquerdo do fígado, na parte deste órgão que excede
o bordo da costela e invade o epigastro”, vai provocar aí, a superveniência de “uma
elevação mais ou menos pronunciada” (515); como é o caso da saliência formada no
hipogastro, no início dos espargimentos da cavidade, - saliência “apreciável
sobretudo quando o paciente conserva-se de pé, porém que diminui quando ele se
deita” (516); como é o caso da proeminência dos hipocôndrios que no decurso das
grandes hidropisias da vesicula biliar (517), o dos estados mórbidos associados ,
infra e supra diafragmáticos, assestados do lado direito (518) e, o das
hepatomegalias (519): como é o caso do avultamento dos flancos que pode ser
determinado pela presença de líquido na cavidade celíaca (520); e, por fim, como é
o caso da tumefação da zona umbilical, ou mais precisamente da cicatriz umbilical
que, no quadro de um abaulamento geral do ventre, dá de si mais que o resto das
paredes e torna-se protusa quando as ascites condicionam uma “hérnia flutuante e
translúcida” (521) ou quando universaliza-se o meteorismo do tubo digestivo. “...o
136
aquela depressão ilíaca, mais acentuada â direita que na fossa oposta e servindo,
preciosamente, no caráter assimétrico emprestado ao baixo ventre, para ser
estabelecido o diagnóstico diferencial entre a natureza inflamatória ou apenas
transudativa de um derrame coletado na cavidade.
“... víamos distintamente... que a fossa ilíaca daquele lado se achava mais deprimida
do que deste. Ora, se o líquido derramado fosse simplesmente hidrópico, constituído
portanto exclusivamente por serosidade, distribuir-se-ia regular e uniformemente em
toda a cavidade abdominal, obedecendo às leis da gravidade e do equilíbrio e daria
às paredes distendidas do ventre uma perfeita e completa simetria” (531).
*
* *
Em seguimento à do tórax e à do abdômem, a inspeção do tronco ia se
completar pela dos órgãos genitais do homem e da mulher. Esses exames são muito
esclarecedores, principalmente porque provam a minúcia e o zelo com que Torres
Homem levava a cabo a vistoria ampla e completa do corpo dos seus pacientes.
Particularmente nos do sexo masculino, onde o enunciado de perturbações locais
surpreendidas no pênis e no escroto, não estão senão uma única vez na
dependência de qualquer investigação urológica, mas representam na sua maior
frequência uma parte do exame geral que, ao que parece, era raramente dispensada
pelo grande professor patrício.
É assim que vemo-lo num caso de coma por “meningo-encefalite... que
esteve sujeito à observação durante algumas horas somente” chamando a atenção
dos seus discípulos para a existência de “um cancro venéreo em via de
cicatrização”, “na região balano prepucial” (532). Num, de diabete a “balanite e
consecutivamente a fimose”, o “alargamento do meato urinário e a intumescência
dos seus bordos” é que são apontados (533). Num outro, de “opilação”, está referido
o “edema do pênis e do escroto” (534). Nesse de “febre perniciosa” é acentuada a
ausência da tríade, inflamatória, - rubor, calor e turgência, que fora procurada nas
bolsas devido a haver uma “dor aguda do testículo esquerdo” (535). Naquele
hidrópico, de “nefrite parenquimatosa crônica” o que se mostra são as “proporções
desconformes” do saco escrotal e o “pênis torcido e desfigurado” (536). É sempre
assim: o sinal local nomeado como complemento da afecção em apreço, - trata-se
do edema do prepúcio, capítulo de uma anasarca (537); da flegmasia de toda a pele
138
150
Ver nota 158.
139
Destes três, o último era considerado como sendo o melhor. A descrição feita
nos “Elementos de Clínica Médica” (556) trata exatamente deste espéculo; o de
Jobert, de tipo bivalvo, mas o curioso é que a figura do texto de Torres Homem, não
representa o instrumento original do cirurgião francês. Representa outro, talvez o de
Ricord, se é que o desenho de linhas grosseiras que está no tratado nacional pode
permitir essa identificação151.
Interessante a considerar, ainda como prova de gosto que tinha o mestre
patrício pela ingressão no estudo das especialidades, de que mesmo se servia como
coadjuvante do seu gênio clínico, - é a síntese histórica que ele faz dos abridores
vaginais, desde os modelos primitivos, como a “dioptra” de Paulo de Egina152 e o
“vertigo” de Albucassis153, aos mais recentes de Dubois154 e Dupuytren155, sem
esquecer o nome de Récamier156, a quem se deve ter feito “reviver a ideia do
speculum” (557). Outra evidência disso nos é oferecida pela nota da “Gazeta médica
do Rio de Janeiro”, onde o comentário de uma cesariana praticada em 1864 pelo
velho Luiz da Cunha Feijó157, transforma-se na pena de Torres Homem, numa
verdadeira lição sobre a história dessa operação (558).
A inspeção dos membros consistia numa vistoria completa que ia dos vazios
e das pregas que ajudam a marcar seus limites com o tronco, como as axilas e as
virilhas (559), - até às mãos, onde eram acentuados no seu justo valor sinais como
os dedos e as unhas hipocráticas (560), como as retrações de aponeurose palmar
151
No fólio 142 o autor registra na parte superior da página direita em lápis dados sobre as figuras
publicadas nos Elementos de clínica médica de Torres Homem à pagina 457 daquela edição. Está
registrado: “Figura:/ Espéculo representado por T. H. Nos Elementos/Espéculo de Jobert/ Espéculo
de Ricord/ Dic Jaccoud v. XXX /pg. 457”.
152
Paulo de Egina ou Paulus Aegineta (625 a.C – 690 a.C): Médico grego bizantino. Conhecido por
ser autor de enciclopédia médica Compêndio médico em sete livros. Esse trabalho continha todo o
conhecimento médico ocidental, sendo incomparável em sua perfeição e precisão. O sexto livro sobre
cirurgia em especial, foi referenciado na Europa durante toda a idade média.
153
Albucassis de Córdoba (936 – 1013): Médico árabe. Foi médico na corte do rei Hakan II e aoutor
de al-Tasrif (Coleçoes) , tratado médico que reune o conhecimento da medicina árabe à época do
autor, constituído por 3 volumes contendo descriçoes de técnicas cirúrgicas para litotomia, litotripcia e
amputações e descrições de instrumentos cirúrgicos.
154
Jacques Dubois (1478 – 1555): Médico e anatomista francês. Professor de Vesalius em Paris. Sua
admiração por Hipócrates e Galeno era tanta que, certa vez, declarou que Vesalius “era um louco”.
Primeiro a realizar dissecções em cadáveres na França. Autor de Isagoge.
155
Baron Guillaume Dupuytren (1777 – 1846): Cirurgiao francés. Foi cirurgiao de Louis XVIII e
Charles X e fundou a Societé Anatomique de Paris em 1803 e o museu Dupuytren.
156
Joseph Claude Anthelme Recamier (1774 – 1852): Médico francês. Descreveu a técnica de
histerectomia por via vaginal (operação de Recamier).
157
Luis da Cunha Feijó (1817 – 1881): Médico carioca. Foi o Barão e único Visconde de Santa Izabel.
Formado em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, é considerado o primeiro
médico a realizar a operação cesariana no Brasil. Foi membro da Academia Nacional de Medicina e
do Instito Histórico e Geográfico do Brasil. Médico particular da Princesa Isabel.
141
(561) e, até à sola dos pés, onde se procurava “descobrir algumas das
manifestações do vício boubático”.
“... olhai minuciosamente para as plantas dos pés, onde ordinariamente se
escondem os chamados cravos de boubas” (562).
O emagrecimento excessivo ou desenvolvimento natural de braços e pernas,
contrastando ou equilibrando sua massa com a das cavidades esplâncnicas eram
referidos (563), do mesmo modo que o eram as gradações das “atrofias” assestadas
sobre eles (“... a atrofia pode ser levada a um ponto tal que uma parte ou totalidade
de um membro fique reduzida a menos da metade do seu volume normal...”); e,
quando essas existiam e se localizavam em territórios definidos, já não é mais da
do artículo tomado em seu conjunto que vai falar o eminente clínico, mas da dos
grupos musculares que dão fisionomia determinada e caracterização especifica a
certos gêneros de reduções como, por exemplo, as que resultam da intoxicação
saturnina.
“... as saliências musculares dos antebraços tranformam-se em goteiras, as
iminências tenar e hipotenar achatam-se e desaparecem; os espaços inter-ósseos
pronunciam-se cada vez mais... a mão torna-se descarnada...” (564).
O estado dos vasos vem mencionado, não só com relação ao aspecto
apresentado pelas veias (“... turgência do sistema venoso; as veias dos braços,
antebraços e mãos estavam muito desenvolvidas ...”) (565) como com ao
exteriorizado pelas artérias (“... as artérias radiais, bem como as temporais
apresentam-se tortuosas e degeneradas pela ateromasia ...”) (566).
Certas alterações na forma e na linha dos membros, produzindo deformidade
permanete, servem para a orientação do diagnóstico, - aqui, no caso dum quarentão
“empregado como servente nas capatazias da Alfândega”, de uma sífilis pregressa
cujo vestígio atual é uma exostose evidente na “face anterior do tíbia esquerdo”
(567); ali, no de certo “preto velho da rua do Hospício”,158 de passados insultos
articulares, cuja pegadas ficaram nas “defomidades antigas” existentes “ nos joelhos
nas articulações falangianas” (568); e, nesse outro, de um Antônio, negro livre,
morador na Ilha das Cobras, velhote e cego, que ganhava sua vida lavando roupa, -
158
No fólio 145 encontra-se registrado no seu verso um trecho que aparentemente foi abandonado
por Nava sendo retomado pelo autor na face posterior do mesmo fólio. O trecho diz: “capatazias da
Alfândega, de uma sífilis remota, cujo vestígio evidente é a volumosa „exostose na face anterior do
tíbia esquerdo ( ); ali, no de certo preto“.
142
159
Armand Trousseau (1801 – 1867): Médico francês. Considerado o primeiro a realizar
traqueostomia para alívio da difteria.
143
160
No fólio 149 está registrado, a lápis, no canto esquerdo da margem superior, a data: “18.XI.47”.
144
*
* *
161
No fólio 150 está registrado, a lápis, no canto esquerdo da margem superior, a data: “16.XII.47”.
145
162
Na escritura do manuscrito Pedro Nava quase nunca demosntra dúvidas em relação às escolhas
de vocábulos e expressões. Suas rasuras, na peça avaliada, são frequentemente silenciosas. Um
raro exemplo de indefinição nos remete aos termos - excreção e secreção manuscritos este acima
daquele na mesma pauta, incitando a reflexão sobre o significado dos mesmos no contexto.
148
que se nota nos indivíduos sãos, de raça caucásica pura” - são detalhes de exame
mostrando que a inspeção dos fâneros não era esquecida na inspeção geral de
Torres Homem (687).
*
* *
Já ficou dito que Torres Homem não legou aos seus vindouros a codificação
dos preceitos que lhe caracterizavam, a maneira de diagnosticar. Nas suas
observações e nas suas memoráveis lições só ficaram os seus modelos
propedêuticos. Aí é que fomos buscar, peça por peça, os elementos que dispostos
em ordem lógica, permitiram reconstruir o que seria – sistematizada e completa - a
“Inspeção” dentro do seu exame clínico. A recomposição assim empreendida tem
forma bastante e documentação suficiente para permitir que se conclua sobre até
que elo do encadeamento diagnóstico podia chegar o grande internista – servindo-se
exclusivamente do sentido visual.
Quando critica a precipitação dos que diagnosticavam de início “e depois iam
ver se os sintomas eram com efeito do estado mórbido que presumiam” e que
enganados, logo se desenganavam, “reconheciam que a suposição havia sido
infundada” e “passavam a outra moléstia” (688) – Torres Homem é como se dissesse
que a análise sintomatológica e semiológica deve vir primeiro que a que a síntese
diagnóstica e que nunca essa pode preceder àquela; que não é possível
diagnosticar sem fundamento; que o fundamento, a base do diagnóstico radica no
estudo dos sintomas e sinais; que a falta de apreciação destes sintomas e sinais é
caminho do erro; que para bem apreciar esses sintomas e sinais sua colheita não
será pobre e incompleta, mas abundante e minudente. Se nos for dado considerar
essas sentenças como variações do pensamento contido na advertência do mestre,
nelas encontraremos a chave para explicar as razões porque ele tanto se demorava
na pesquisa da prodigiosa quantidade de indicações, de características e de
fenômenos mórbidos que são a constante da sua maneira de inspecionar.
“O médico ao chegar à cabeceira de um doente não deve ter prevenção
alguma” (689) - dizia ele, alertando o observador contra os males que advêm à
150
*
* *
I. INSPECÇÃO DA FACE:
2. Alterações quantitativas.
Faces – emagrecida, encovada, vultuosa, entumescida, túrgida
3. Alterações de cor:
Faces – empalidecida, amarelada, ictérica, esverdinhada, lívida, injetada,
hiperêmica, ruborizada, rubicunda, cianótica.
4.Condições dos músculos e tendões:
153
V. INSPECÇÃO DO ABDÔMEM:
NOTAS
(34) T.H: FRJ, p.536.
(35) T.H: CM1, p.124.
(36) T.H: CM1, p.508.
(37) T.H: CM1, p.532.
(38) T.H: CM1, p.537.
(39) T.H: CM2, p.538.
(40) T.H: CM2, p.271.
(41) T.H: CM1, p.527.
(42) T.H: FRJ, p.552.
(43) T.H: CM1, p.538.
(44) T.H: CM1, p.246.
(45) T.H: CM2, p.142.
(46) Feijó Bittencourt: Os Fundadores. (publicação do Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro,
Imprensa Nacional, Rio, 1938, p. 469.
(47) T.H: FRJ, p.49.
(48) TH: FRJ, p.543.
(49) T.H: FRJ, p.311.
(50) T.H: FRJ, p.446
(51) T.H: CM3, p. 190.
(52) T.H: CM1, p. 563.
(53) Francisco Agenor de Noronha Santos: Apontamentos para o indicador do Distrito Federal
Tipografia do Instituto Profissional, Rio, 1900, p. 451.
(54) T.H: CM1, p. 535, 534, 536.
163
Ao final do Capítulo I o autor registra data, a lápis, provavelmente referente ao término desta fase
da escritura do manuscito: “7.I.47”.
158
164
O autor não identifica a publicação referente à nota.
161
(326) Eugène e Jules Baeckel: art Larynx (Laryngoscopie) in Nouveau dictionnaire de médicine
et de chirurgie pratiques. J.B. Baillière, Paris, 1875, Tomo XX, p.230.
(327) Pierre Larousse: Grand dictionnaire universel du XIX siècle. (Edição sem referência ao editor
e sem data), art. Garcia (Manuel).
(328) Eugène e Jules Boeckel: op cit, nº 326, p.232.
(329)T.H: ECM, p.115.
(330) União médica (Revista mensal), ano II, Imprensa Industrial, Rio, 1882, p. 241; idem, ano III,
Tip.de G. Leuzinger & Filhos, Rio, 1883, p. 142; J.F. Velho Sobrinho Dicionário bio-bibliográfico
brasileiro. Ministério da Educação e Saúde, Rio 1940, volume II, art Bettamio (Cypriano Barbosa
Betthamio).
(331) T.H: CM1, p.32.
(332) T.H: CM1, p.32.
(333) T.H: CM1, p.33.
(334) T.H: CM2, p.227
(335) T.H: ECM, p.347-348.
(336) T.H: ECM, p.346-347.
(337) T.H: ECM, p.680.
(338) T.H: ECM, p.351, 371.
(339) T.H: ECM, p.346.
(340) T.H: ECM, p.489.
(341) T.H: CM1, p.414.
(342) T.H: ECM, p.348-349.
(343) Armande Desprès: art Oreille (otoscopie). In Nouveau dictionnaire de médecine et de
chirurgie pratiques, J.B. Baillière et Fils, Paris 1870, tomo XXV, p.16.
(344) T.H: ECM, p.140.
(345) T.H: ECM, p.393, 397, 778-779.
(346) T.H: ECM, p.795.
(347) T.H: CM2, p.346-347.
(348) T.H: CM2, p.547.
(349) T.H: CM3, p.2.
(350) T.H: CM3, p.9.
(351) T.H: CM1, p.450.
(352) T.H: FRJ, p.221, 223. (o grifo é nosso)
(353) T.H: CM2, p.126.
(354) T.H: CM1, p.89.
(355) T.H: ECM, p.371.
(356) T.H: CM1, p.89-90; CM2, p. 108.
(357) T.H: CM1, p.90.
(358) T.H: ECM, p.371.
(359) T.H: CM2, p.71.
(360) T.H: CM2, p.74-75.
(361) A. Luton: art Poitrine (Sémécologie) in Nouveau dictionnaire de médecine et de chirurgie
pratiques, J.B. Baillière et Fils, Paris. 1880, tomo XXVIII, p.650.
(362) A. Luton: op. cit nº 361, p.653.
(363) A. Luton: op cit nº 361, p.653.
(364) T.H: ECM, p.394.
(365) T.H: ECM, p.738.
(366) T.H: CM1, p.411.
(367) T.H: FRJ, p.325; CM1, p.80 e 582.
(368) T.H: FRJ, p.323. (o grifo é nosso)
(369) T.H: CM1, p.80.
(370) T.H: ECM, p.497.
(371) T.H: CM2, p.284.
(372) T.H: CM2, p.282, 285.
(373) T.H: CM2, p.80-81.
(374) T.H: CM1, p.450.
(375) T.H: CM1, p.202; CM2, p.215, 216, 233, 236.
(376) T.H: CM1, p. 411.
(377) T.H: CM1, p. 80.
(378) T.H: FRJ, p. 221.
164
165
O autor não registra a nota.
165
166
O autor registra “GM2” como publicação fonte da nota. Gazeta Médica nº2?
167
167
O autor não identifica a publicação fonte da nota.
168
O autor registra “GM1” como publicação fonte da nota. Gazeta Médica nº 1?
168
Capítulo II
Interrogatório
169
Tradução do francês: Segundo o sábio Salomão, a sabedoria não importa para a alma malévola, e
a ciência sem consciência não é mais do que a ruína da alma.
170
O registro dactiloscrito das epígrafes de Rabelais e Torres Homem no fólio 175, autógrafo, levou o
pesquisador a concluir que as mesmas foram acrescidas posteriormente.
171
Louis Pasteur (1822 – 1895): Químico francês. Suas pesquisas sobre a fermentação alcoólica e
lática e sobre a microbiologia das doenças do vinho e da cerveja provaram que essas allteraçoes
eram provocadas por organismos microscópicos. As idéias de Pasteur revolucionaram o pensamento
171
uma só invenção definitiva que não esteja vinculada à superioridade mental que
tenha sido outra qualidade de um homem bom.
Um indivíduo frio e insensível – mesmo quando altamente dotado de
inteligência – nunca será um clínico completo: falta-lhe o empenho que vem da
participação, o esforço que nasce do altruísmo, a diligência que é filha da
comiseração e do amor. Pode resolver perfeitamente um diagnóstico – como quem
deslinda uma charada ou como quem põe em equação um problema algébrico –
mas ficará sempre impotente diante da humanidade trágica do doente: não o
compreenderá, porque não teve dó, não o alcançará no indissolúvel complexo físico
e moral da dor, porque não é dotado de acuidade para captá-la. Sua percepção
diluída não abrangerá os horizontes e as perspectivas que delineia e alarga aquele
útil e necessário “sofrimento” que Miguel Couto173 não separava da essência do
verdadeiro prático (“Sofre cada um as suas dores, sofre o médico as de todos”).
E é a urgência de diminuir esse sofrimento (o seu, como parte do que punge
o paciente) que leva o clínico acabado às análises implacáveis de sua intimidade; às
decomposições inexoráveis de sua essência e transformando o afinco, a paciência,
a minúcia de sua observação numa busca que, antes de ser tarefa da razão e
empreitada da ciência – é trabalho do coração e mister da consciência.
Esse desejo de ser útil e de servir transparece nas histórias, relatadas por
Torres Homem, dos doentes que ele assistia com a inteligência ao mesmo tempo
que cobria com sua bondade. Sempre presentes, esses sentimentos éticos deviam
ser a inspiração cotidiana do inimitável mestre no seu exame e, neste, dobrar o
apuro técnico do interesse humanitário que é outro precioso auxiliar do diagnóstico.
É a eles e ao que eles ditam que obedece o médico no seu “corpo-a-corpo”, arrojado
com os contagiosos e com os repugnantes – de que se aproxima por curiosidade
científica, é verdade, mas também premido pelas categorias morais e afetivas que o
da época determinando o fim definitivo da crença sobre a geração espontânea. Pesquisou sobre
anaerobiose e desenvolveu processo de pasteurização para destruir bactérias patogênicas.
Desenvolveu ainda pesquisas na área de vacinas. Considerado um grande benfeitor da humnidade.
172
Sir Alexander Fleming (1881 – 1955): Bacteriologista escocês. Ganhador junto com Ernst Boris
Chain e Sir Howard Walter Florey, do prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1945 pela descoberta
de penicilina. Um dos pioneiros da vacinação anti-tifóide e do uso do salvarsan como terapia anti-
sifilítica.
173
Miguel Couto (1865 – 1934): Médico e escritor brasileiro. Realizador de importantes mudanças no
ensino de medicina no Brasil. Foi assistente e discípulo de João Vicente Torres Homem. Membro da
Academia de Medicina, a qual presidiu por 21 anos consecutivos e também foi membro da Academia
Brasileira de Letras. Escritor prolífico, são suas as obras Lições de clínica médica e Só há um
problema: a educação.
172
exame o que logo se vê são os sinais “muito numerosos e salientes” deixados pelo
bacalhau174 no tronco e nas espáduas (14) – todos aqueles pobres coitados são
casos de reumatismo, de assistolia, de geofagia verminótica, de “perniciosa
pneumônica” de “pleuro pericardite”, são pacientes de relatos de clínica médica –
mas são também sem tirar nem por personagens de Harriet Beicher Storve, gente d'
A Cabana do Pai Tomás.
Não é só a esses humildes que eram os preferidos de sua chaneza e que
recebiam invariável e incondicionalmente as mostras melhores de sua benignidade
(“O médico conhecedor da nobreza e dignidade do seu sacerdócio deve se fazer
querido dos pobres, tratando-os sempre com benevolência e afabilidade, assim
como nunca prescindirá de nenhuma prova de consideração, quando tratar dos ricos
e potentados, que julgam poder pagar com dinheiro os serviços que dele
reclamam.”) (15), não é só a esses deserdados que Torres Homem evoca conferindo
a eles a comovente humanidade com que nos aparecem outras figuras que hoje só
realizamos nimbadas pela fama e transfiguradas pela glória revivem nas sua lições
lembradas na contingência da fragilidade de seus órgãos e da precariedade de sua
saúde.
Aqui é Francisco Pinheiro Guimarães175 que aparece – não como o herói de
Tuiuti e de Uruguaiana ou como o professor ilustre, o dramaturgo e o romancista –
mas como moço fraco do peito, curando-se da afecção pulmonar que o afligia “no
começo de sua carreira” (16). Ali é João Caetano176 – não mais nos triunfos da
ribalta, togado à romana e brandindo um aço de tragédia – mas cardíaco se
acabando “vítima de uma dilatação do coração” (17).
Para defender os pequenos e os desvalidos da sociedade, Torres Homem não
hesita em investir contra as instituições que representavam aqueles “ricos e
potentados” de quem falava com aspereza e desenvoltura. Clínico de uma
aristocracia baseada na economia escravocrata, era do alto da cátedra às abertas e
ouvido pelos filhos de fazendeiros que vinham à Corte se fazer doutores que ele
verberava a escravidão que maculava a “civilização do Brasil” (18); que incriminava
174
Azorrague com que no Brasil eran açoitados os escravos (Dicionário Priberan).
175
Francisco Pinheiro Guimarães (1809 – 1877): Médico brasileiro, poeta, dramaturgo e jornalista.
Autor da tese Algumas palavras sobre a epilepsia. Foi um dos redatores da Gazeta Médica do Rio
de Janeiro. Autor de A Moça rica, Punição e O Comendador.
176
João Caetano dos Santos (1808 – 1863): Ator e encenador brasileiro. Organizou no Rio de Janeiro
uma escola de arte dramática gratuita. Era dono absoluto da cena teatral brasileira à sua época.
175
como causa de doença o “excessivo trabalho” a que os negros eram submetidos nas
fazendas; sua “alimentação insuficiente pela quantidade e pela qualidade, composta
de uma pequena porção de carne seca, feijão e farinha de mandioca ou milho”; sua
promiscuidade nas senzalas, onde dormiam aglomerados apertados, “expostos à
umidade da atmosfera” e atirados ao solo (19). Médico da Santa Casa pouco se lhe
davam desagradar seus irmãos da Mesa, seus Administradores de Cemitério, seus
Escrivães, seus Definidores, suas Irmãs de Caridade, seus Mordomos e seus
Provedores – gente considerável e poderosa de opa e confraria – quando era
preciso por a nu essas infâmias para que geralmente há vista grossa por parte dos
comodistas ou essas indignidades sancionadas em que não se toca porque vêm de
cima. É assim quando denuncia perseguições sofridas por doentes e quando deixa
suspeitar o que havia de turvo, de ambíguo e de equívoco na proibição das
autópsias no corpo dos escravos que morriam nos leitos da Misericórdia.
“... aconteceu ainda uma vez o que constantemente observam os facultativos de
todas as enfermarias deste grandioso estabelecimento... Ninguém prestava ao infeliz
mudo e paralítico os cuidados que lhe eram indispensáveis depois da visita do
médico; como era um doente que não podia prestar serviços... como tinha tido a
coragem de queixar-se de uma falta grave para com ele cometida, não houve
desfeita, mau trato e perseguição que não lhe fizessem sofrer a fim de que pedisse
alta: coitado! depois de muitos dias de suplício e no maior auge do desespero pediu-
me de mãos postas e pelo santo nome de Deus que lhe deixasse sair. Como eu
sabia qual a sorte que lhe estava reservada se por ventura ficasse no hospital mais
um dia, autorizei a sua saída...” (20).
“Em virtude de uma disposição regulamentar absurda do Hospital da Misericórdia,
que proíbe expressamente que se faça autopsia em cadáveres de escravos, não
pudemos verificar porque modo se fez a hemorragia que matou instantaneamente o
doente ...” (21).
É que, autopsia no cadáver dum escravo era bem capaz de mostrar - mais
que a caverna do pulmão, que a hipertrofia do fígado ou que a dilatação cardíaca –
as marcas que não podiam aparecer da peia e do tronco, dos ponta-pés e das
pauladas, do murro e do “vira-mundo”.
Toda essa ralé dolorosa e sombria que os trancos e barrancos da existência
empurravam para a Santa Casa (“... na imensa maioria pobres trabalhadores, ou
míseros escravos ...”) (22), toda essa massa inditosa e sinistra, essa gente de vida
176
177
No fólio 190, na marginália superior esquerda foi assim grafado: ”Tetome th em Setembro 1959.
PN”, iniciando os registros dactiloscritos até o término da escritura.
178
encontra nos relatos completos de história dos doentes que são fornecidos pelos
anuários de 1868 e 1869 (54) finalmente, a quarta representa-se pelos 76 exemplos
I a LXXI e LXI- A, LXI-C, LXI-D e LXI- E) mencionados no “Estudo Clínico sobre as
Febres do Rio de Janeiro”. Basear-nos-emos, principalmente, nestes 76, no capítulo
dos “Elementos da Clínica Médica”, no apêndice desse livro que é o anuário de
observações de 1868 e no pequeno volume onde estão registrados os casos
importantes de 1869. Em todos vamos encontrar relatórios completos, redigidos
uniformemente e dentro da ordenação adotada pelo insigne mestre fluminense.
Estas observações são realmente admiráveis documentos de síntese, onde se
valorizam com notável percuciência todos os elementos que se encadeiam para
servir ao diagnóstico e ao prognóstico, onde só se exalta o que tem importância e
onde a seleção deixa de lado tudo que não é prestadio. Justamente uma das
características de Torres Homem é a ausência da superfluidade, do detalhe inútil, da
minuciosidade ociosa. O elemento negativo aparece às vezes, é bem verdade, mas
para dar contraste e ênfase aos fatores positivos: “Na descrição do estado atual, o
observador deve ser muito minucioso. Falará de todas as funções, mesmo das que
estiverem em perfeito estado fisiológico, declarando que nelas nada encontrou de
anormal: em uma observação, os sinais negativos são muitas vezes de grande
valor.” (55). Dentro desse critério funcional, se, dando conta de uma doença
infecciosa geral, o médico vai consignar que nada encontrou de anormal para o lado
do aparelho respiratório, do aparelho circulatório e do aparelho urinário, essas
negativas aparentes são, na realidade, as bases veementes em que ele vai
fundamentar um prognóstico lisonjeiro.
Incidentemente, tomaremos também como material interpretativo o que nos é
fornecido pelos casos que Torres Homem trazia como exemplo nos três volumes das
“Lições de Clínica Médica” no das “Lições sobre as Moléstias do Sistema Nervoso” e
no das “Lições de Clínica sobre a Febre Amarela”. Infelizmente ele nos vão servir
apenas para justificar um ou outro ponto da exegese do seu processo anamnético,
uma vez que não aparecem como modelos de observações completas.
Inspeção, anamnese, exame organoscópico não são etapas sucessivas e
estanques de uma investigação clínica. Enquanto interrogamos estamos olhando,
enquanto olhamos, vamos palpando, percutindo e cheirando. Lendo-se a obra de
Torres Homem concluímos que ao abordar um paciente se ele começava
inspecionando (“A primeira coisa que se faz, logo que se chega ao pé de um doente,
179
178
Termo latino utilizado em medicina para designar perda ou comprometimento da função de um
órgão ou organismo.
180
que sofre. O médico vai julgar não apenas a história de quem está arguindo – mas
sua psicologia, suas reações afetivas, todo o seu modo particular de encarar o
próprio sofrimento e parte daí, não só para o diagnóstico, mas para a maneira mais
segura de como dominar o diagnosticando e melhor fazê-lo aceitar seus conselhos,
sua orientação, sua terapêutica. O médico nesse lance do exame clínico, não deve
se esquecer que ele também está sendo examinado e julgado pelo paciente. O
primeiro passo para que a análise seja favorável de parte a parte é o
estabelecimento de um ponto de integração comum, de uma linguagem que permita
a tradução perfeita do que eles se dizem. Compete àquele a obrigação de julgar
rapidamente do estado emocional do segundo, da sua compreensão, da sua
inteligência, da sua sensibilidade e a norma de adaptar-se a cada personalidade que
tem diante de si a assumir com ela a atitude necessária e a linguagem
imprescindível à comunicação e equilíbrio recíprocos.
Torres Homem, suscetível como ninguém, captava soberanamente esta
situação. É o que ele deixa bem patente quando nos ensina que o “... o médico deve
usar sempre uma linguagem clara, isenta de termos técnicos, ao alcance daquele a
quem interroga; é preciso que se identifique com o lugar e as circunstâncias em que
se acha; tendo muitas vezes de dirigir-se em um mesmo dia, a indíviduos ignorantes
do baixo povo e a outros que ocupam na sociedade uma posição elevada pela
educação, pela ciência ou pela fortuna, suas palavras, suas perguntas, devem variar
conforme as ocasiões” (61).
Compreendendo a importância do contato clínico e do interrogatório (“... sem
as informações dadas pelo próprio doente o facultativo não pode avançar um passo
com firmeza...”) (62), o grande internista fluminense preparava-se com zelo de ator
exímio na representação do seu papel. Encarnado completamente nele,
despreocupava-se de tudo que não fosse o doente e a doença afim de bem poder se
desempenhar sem os empecilhos e os óbices que muitas vezes o próprio médico
cria para si mesmo quando deseja exorbitar e ser mais alguma coisa que médico e
exclusivamente médico (“... as empresas arriscadas, as especulações industriais e
comerciais... o impossibilitam de bem exercer a sua profissão. Convém pois que ele
se torne estranho a estas emoções ...”) (63). Esse sacrifício de outros interesses
dava-lhe a primeira qualidade que ele exigia do profissional para abordar um doente:
a serena despreocupação – desconhecida daquele cujo “espírito está agitado” e que
“tem consciência perturbada” (64). Assim isento, simples no seu exterior, reservado
181
179
De modo súbito; abruptamente; intempestivamente.
182
(“Como seria cruel e desumano o ... que sem piedade destruísse a ilusão de um
doente que caminha para a sepultura sem disso ter consciência!”) (75).
São as próprias palavras de Torres Homem, os períodos de suas lições onde
ele se configura por inteiro que permitem reconstruir a personalidade do internista
prodigioso que dominou completamente seus contemporâneos e para os quais era
uma espécie de instância suprema na hora do perigo: “Ninguém morria sem a
presença do Dr. Torres Homem ...” (76). São suas próprias palavras que mostram
suas qualidades de homem bom – a sensibilidade, a benevolência, afabilidade e a
indulgência; a paciência, a caridade, a cortesia e a severidade mesma - também
obra de misericórdia no conceito cristão. É a leitura de suas lições que evidencia
seus predicados de inteligência superior – a capacidade de análise, a minúcia, a
atenção, a penetração, a argúcia e a disciplina de pensamento de onde lhe vinham a
imparcialidade, a despreocupação, a impassibilidade e a isenção. São ainda seus
períodos que depõem sobre esta outra superioridade indispensável ao médico que
era a sua admirável boa educação – traduzida na adaptabilidade, na reserva, no
decoro e na prudência de suas maneiras simples e de sua frase decente. Esse
conjunto de requisitos é que tornavam o insigne internista na figura que se impunha
ao cliente de modo total e que faziam que este o julgasse segundo a excelência de
suas virtudes. Se Torres Homem empenhava todas essas condições na avaliação do
próximo, nela colocava outra propriedade muito sua: a astúcia solerte que lhe fazia
dar logo e de pronto, na balda dos paspalhões, dos mentirosos, dos simuladores,
dos cachaceiros, dos prolixos e dos maçadores. E imediatamente se adaptava à
situação aparelhando-se logo com a sua qualidade antonímica daqueles defeitos
Se tinha diante de si um estúpido, apesar do valor que reconhecia nos dados
trazidos pela anamnese, não perdia tempo em palavreados difusos, incapaz de
conduzir qualquer comunicação útil (“... são por tal forma rudes e brutos que … nos
vemos impossibilitados de colher o mais insignificante dado comemorativo... as
incoerências, as contradições, os disparates, abundam tanto, que nos lançam em
completa confusão.”) (77). Cortava logo a verbiagem gratuita e procurava inquerir
“as pessoas interessadas pelo doente” (78) e se estas também divagavam ou nada
podiam esclarecer, prescindia das informações e duplicava a aplicação no exame
clínico, como se estivesse diante de criança que não fala. Atentava nas expressões
produzidas pelas manobras com que provocava dores e sensações para guiar-se,
então, por aquelas mutações da mímica que “constituem a linguagem natural,
183
180
Exame cruzado.
184
181
Planta da familia das simarubáceas. Nome popular Pau-tenente ou Pau-amarelo. Utilizada como
digestivo e vermífugo, produzindo vômitos se utilizada em excesso.
185
182
No fólio 200 (dactiloscrito) o autor registra um acréscimo, autògrafo â direita como nota
paratextual, a referência sobre o falecimento do Dr Aloysio de Castro. “7.X.59 – Morreu hoje às 11
horas da manhã, de um icto cerebral, termo final de longos padecimentos circulatórios, Aloysio de
Castro.” Pedro Nava possuia grande admiraçao pelo clínico carioca Aloysio de Castro tendo realizado
o discurso de recepção ao professor na ocasião de sua posse no Instituto Brasileiro de História da
Medicina intitulado Medicina e humanismo. Com o advento da morte do então homenageado em
07/10/1959, Nava escreveu e proferiu novo discurso, Aloysio de Castro, o Gentil-Homem da
medicina brasileira, na Sessão Extraordinária de 23/11/1959 no mesmo Instituto. Ambos os
discursos foram reeditados no volume A medicina de Os Lusíadas e outros textos (Cotia: Ateliê
Editorial, 2004).
186
183
Geoges Dieulafoy (1839 – 1911): Médico francês. Autor de extenso tratado médico intitulado
Manual de pathologie interne.
187
184
Samuel Cristhian Friedrich Hahnemann (1755 – 1843): Médico alemão. Fundador da homeopatia.
Expôs seu novo sistema médico homeopático na obra Organon der rationellen heilkunde.
188
[“...hipocôndrio direito muito elevado, tenso e doloroso ... Formigamentos nos pés ...”
- comprimindo-se o tórax logo abaixo das clavículas, provoca-se ... grande
sofrimento. Não há sensação de formigamento... nos membros...”(121)]; as ardentes
[“... dor urente no escroto ...” (122) - “sensação urente que tem sua sede no
epigastro...” (123). Ainda é assim quando se trata das impressões de peso [“O
doente sente uma dor gravativa forte na região hepática... (124) - “...peso de cabeça,
dores nas pernas ... (125)]; das pungentes, que o doente compara ao revolver da
carne viva [“... a dor ligada ao tumor aneurismático da aorta abdominal é quase
sempre constante, e pungitiva...” (126) – “A dor na pericardite aguda ... é intensa,
pungitiva ...” (127) –“... dor aguda e pungitiva abaixo do mamelão direito ...” (128) –
“Dos nossos nove doentes pneumônicos, seis tiveram pontada ... (129)]; das
lancinantes, em que há arremessos e elances passageiros que, ao contrário do que
acontece nas latejantes e pulsáteis, não têm correspondência com os batimentos
cardíacos [“... dor de caráter lancinante ...” (130) – “Ora aguda, nevralgiforme e
contínua; ora moderada, lancinante ou terebrante ...”(131)]; das tensivas, em que há
como que estufamento e distensão (“... o doente acusa uma dor tensiva e difusa ...”)
(132); das contusivas, que lembram a dor das pisaduras e que fazem os doentes se
sentirem como se tivessem passado por uma rodada de pau, queixa constante dos
paludosos dos meningíticos, dos amarelentos [“... dores contusivas nos membros
tanto superiores como inferiores ...”(133) - “... dores contusivas em todo o corpo...
(134) – “Quem consultar o antigo, porém precioso livro de Valentim, onde a febre
amarela, que apareceu epidêmicamente em Filadélfia, é descrita por mão de mestre,
aí encontrará as dores contusivas e nevrálgicas...”(135)]; das terebrantes, que
lembram a penetração giratória, nos tecidos, das puas e dos parafusos ou o morder
dos cães [“... a dor ligada ao tumor aneurismático da aorta abdominal é quase
sempre constante, pungitiva ou terebrante ...” (136) - “Surda, contusiva, lancinante,
pungitiva ou terebrante, a dor, quanto ao caráter é muito variável ...” (137) - “ A dor
na pericardite aguda ... ora é intensa, pungitiva ou terebrante ...”(138) - “O tumor em
contato com as vértebras, às vezes as destrói, as corrói e as desloca: daí o
aparecimento de dores terebrantes nas costas, nevralgias intercostais, disfagia,
paraplegia incompleta ...”(139)] das de cólica (Apareceram algumas dores
abdominais, verdadeiras cólicas ...” (140); das nervosas [“... disse aos alunos que se
tratava de uma febre paludosa remitente, e que a nevralgia testicular era indício de
gravidade iminente ...”(141) - “... dores de caráter nevrálgico nos jumelos ...” (142) –
189
185
O termo irritação fimatosa é referente à tuberculose.
186
É hora contínua com ou sem exacerbação, ora intermitente com ou sem regularidade.
187
Qualquer dor que se repete em um tipo específico de febre intermitente, e cuja duração em
qualquer uma de suas repetições é aproximadamente a de um acesso, é geralmente devida às
causas que produzem as febres intermitentes.
190
noite, Torres Homem vai encontrá-lo com “todos os caracteres de uma nevralgia
intercostal”. Prescreveu-lhe um “purgativo salino e meia oitava de sulfato de quinino”.
“Na tarde do dia 28, a pontada que tinha cessado completamente às 11 e meia horas
da manhã, não se manifestou.” (151).
Sucede o mesmo no caso de “febre perniciosa” do italiano Balthazar Ruffo,
recolhido ao leito nº 3 da Enfermaria de Santa Isabel na manhã de 21 de Setembro
de 1883, acometido de dor “muito intensa em todo o raques” e dores “de caráter
nevrálgico nos braços, antebraços, nas coxas e nas pernas”. Recebeu como
tratamento “vinte sanguessugas na margem do ânus”, “vinte ventosas sarjadas ao
raques”, calomelanos e óleo de rícino, injeções hipodérmicas de bromidato de
quinina e 2 gramas de sulfato de quinina em solução. “Graças a este tratamento... o
doente apresentou-e na visita do dia 22 completamente transformado... As dores
raquidianas e dos membros estavam em grande parte atenuadas” (152).
Não é preciso multiplicar os exemplos. Quase todos os casos de “febre
intermitente simples”, de “febre intermitente larvada”, de “febre remitente simples”,
de “febre pseudo-contínua”, de “febre remitente paludosa tifóidea”, de “febre
remitente biliosa dos países quentes” e de “febre perniciosa” - transcritos no tratado
sobre as pirexias do Rio de Janeiro, são de doentes em que a dor nevralgiforme
aparece dentro da mesma intermitência e regularidade que são as características de
sua causa: o acesso palustre.
“Quanto à localização, as dores são gerais e parciais. Estas se dividem em
parciais fixas ou parciais móveis ou dores vagas. Essa discriminação aparece no
livro de Chomel (153) e em alguns dos seus relatos, verificamos que Torres Homem
adotava essa nomenclatura. Encontramos exemplos de dores generalizadas em
seus casos de febre perniciosa (“Dor muito intensa em todo o raques... de caráter
nevrálgico nos braços, antebraços, nas coxas e nas pernas... comprimindo-se o
tórax … provoca-se... grande sofrimento... há uma hiperalgia muito pronunciada.”)
(154); da febre pseudo-contínua (“... hiperestesia geral...”) (155); e de febre amarela
(“...notava-se em todo o corpo uma verdadeira hiperetesia; o indivíduo parecia
acometido de uma dermalgia geral.”) (156). De dores parciais fixas, em casos de
tuberculose pulmonar (“... ângulo inferior da omoplata ... lugar preferido pela dor
pleurítica reveladora do primeiro período da fimatose pulmonar.”) (157) e de pleuris
(“Quando se observa uma dor fixa, persistente e limitada na região infra-clavicular,
na supra ou infra-espinhosa, ou nas proximidades do mamelão no homem e do seio
191
188
François Louis Isidore Valleix (1807 – 1855): Médico francês. Descreveu pontos dolorosos
localizados sobre o curso de um nervo acometido por nevralgia.
192
valor semiológico segundo os fenômenos paralelos criados pelo estado mórbido (“...
a dor, considerada como sinal diagnóstico não deve ser apreciada isoladamente...”)
(173) e finalmente nas suas consequências para a economia orgânica – desde o
simples estado transitório de “surpresa, de admiração, de terror” que ela traz ao
paciente, até aos mais perduráveis da inibição e do estupor (174).
Obra prima da lógica, harmonia e medida, o exame clínico de Torres Homem
desenrolava-se numa sequência perfeita. Preparado pela inspeção inicial do doente,
inteirado pelos elementos que lhe fornecia a dor (e tome-se aqui a palavra como
significando sensações subjetivas as mais variadas, desde os simples incômodos,
desconfortos, aflições e ansiedades - até à configuração mais acabada e solene do
sintoma!), pelos fenômenos que lhe eram paralelos, pelo estudo minucioso da sua
sede – estava o ilustre médico brasileiro de posse dos dados essenciais para
estabelecer a sua presunção diagnóstica da moléstia em causa. A continuação de
sua anamnese tomava então novo aspecto: ia ser a análise do indivíduo nas suas
condições genotípicas e fenotípicas, mediante as quais procederia à integração e à
aplicação dos seus conhecimentos de patologia geral e de patologia interna, nos
termos clínicos e individuais do terreno.
O preclaro médico ensinava que uma observação clínica bem tomada consta
de quatro partes – comemorativos, estado atual, alterações cadavéricas (quando há
óbito e autopsia) e reflexões do observador (175). Há aí um lapso evidente. É o
esquecimento da sequência diária, parte relevante de um relato e onde as notações
sucessivas vão mostrando a evolução da moléstia e o acerto ou desacerto do
prognóstico. E era esse justamente o trecho em que o prático ilustre se sobrepujava.
Comemorativos, estado atual e sequência – são ditados principalmente pelo
interrogatório e nos casos de Torres Homem, seus detalhes eram cuidados com a
abundância de informações que justificava sua sentença: “...em uma observação
clínica a minuciosidade fastidiosa é preferível à omissão de algum esclarecimento
útil” (176).
Eram assim, consignados de início o nome, cor sexo, naturalidade, idade,
estado civil e profissão. À última, dava-se particular atenção. Aparecem declarados
os mais variados misteres, sempre com precisão e evitando-se as designações
genéricas que nada podem informar quanto às possíveis influências da atividade do
doente sobre a saúde e a moléstia (“... não levando em conta o título de trabalhador
que figura nas papeletas... que exprime ausência de uma profissão definida...”)
193
(177). Quando o trabalho não podia ser fixado, aparecia de preferência a notação
negativa (“... Português ... sem profissão ... chegado ao Brasil hà trinta e cinco dias
...”) (178).
Canteiro, carroceiro, cocheiro, calafete, empalhador, cigarreiro e charuteiro,
pescador, pedreiro, marinheiro, marceneiro, alfaiate, copeiro, cozinheiro, torneiro,
oleiro, carvoeiro, ferreiro, trabalhador de enxada, trabalhador de roça, engraxador de
sapato, aprendiz de torneiro, aprendiz de maquinista, servente de açougue, servente
de laboratório, caixeiro, carregador de sacos de café, foguista de vapor, trabalhador
de estrada de ferro, limpador de trilhos de companhia de bonde - são geralmente as
profissões livres dos doentes internados nas clínicas da Faculdade (179). Os
escravos de todo serviço aparecem com sua condição mencionada e esta ao lado do
ofício, quando eles o tinham [“... um pardo escravo... (180) - “Avelino, pardo
escravo...” (181) - “José, preto escravo, amassador de pão ...” (182) - “Raul, moleque
de 12 anos de idade, escravo... “(183) – Pedro, preto escravo, carregador d'água...”
(184) – “Barnabé, preto escravo... cocheiro, morador da rua das Violas ...”(185)].
Torres Homem, em suas lições, denunciava com indignada revolta, a situação
miserável em que viviam geralmente os cativos, submetidos a regime alimentar
escasso, a trabalho excessivo, a serviços brutais, a repouso precário em senzalas
imundas e a um terrível constrangimento moral (186). A marca da escravidão era
para ele outro elemento comemorativo que, mesmo passado, tinha de ser posto em
relevo, com o peso da tara orgânica pretérita ou da doença anterior – capazes de
influir para sempre na vida futura do indivíduo. É assim que ao lado do ofício atual
dos libertos, figura também, nas suas observações, referência à triste condição
transata (187). Outras profissões aparecem ainda, essas desaparecidas e que vale a
pena mencionar pelo seu pitoresco e pela rememoração do elemento humano das
paisagens e quadros quotidianos do Brasil antigo, como as dos cocheiros de praça
(188), dos mascates de jóias (189), dos serventes de cocheiras de vacas (190) e dos
lavadeiros como o português Manuel de Souza, morador da Praia do Saco e do
preto Antônio, domiciliado na Ilha das Cobras que foram dar na enfermaria de Santa
Isabel, respectivamente em 1868 e 1869 – o primeiro com um uma “febre
intermitente cotidiana” e o segundo com um reumatismo de forma nervosa (191).
“As mulheres no Rio de Janeiro ordinariamente só exercem quatro profissões:
as de lavadeiras, engomadeira, cozinheira e costureira; qualquer delas, com
exceção da última, é muito rude...” (192). Ao citar essas atividades do sexo feminino,
194
esquece-se Torres Homem de outras situações às quais ele se reporta mais de uma
vez em suas lições e comportando também esforço: o árduo trabalho escravo e o
duro ofício do coito. As cativas, de que nos dá alguns exemplos [“Anna, preta,
escrava... lavadeira e engomadeira ...” (193) - “Júlia, preta, escrava ... muito
depauperada ...” (194)]. As prostitutas, de que nos pinta dramaticamente o mister
esfalfante (“... faz o comércio cotidiano com o próprio corpo em uma destas ruas...
refúgios das mulheres perdidas... Ultimamente os seus padecimentos tomaram tal
incremento que ela viu-se privada de entregar-se à sua torpe profissão, porque
cansava quando fazia o menor exercício ...) (195).
Homens e mulheres, trabalhadores livres ou escravos, sua profissão servia
sempre de informação útil ao professor insigne que além de indagá-las para
consigná-las nas observações que nos legou, ia esmiuçá-las mais profundamente na
suas condições de exercício e riscos para a saúde. Temos de mais essa minúcia,
vários exemplos nas suas lições onde se apontam circunstâncias inerentes às
atividades e capazes de favorecerem o aparecimento de intoxicação crônica pelo
chumbo, da tísica, da opilação e das lesões cardíacas.
“Esse moço... que exerce há oito anos a profissão de pintor, que já sofreu de
cólicas saturninas...” (196).
“Tendo dirigido... minha atenção para a influência que exercem as profissões
entre nós no aparecimento tísica... tendo sempre o cuidado de informar-me
minuciosamente deste dado comemorativo, cheguei ao seguinte resultado: no sexo
masculino, a profissão que dá maior número de tísicos é a de cigarreiro ou de
charuteiro, depois a de cozinheiro, em terceiro lugar a de alfaiate, em quarto a de
cocheiro ...” (197).
“A única circunstância inerente à profissão de alfaiate que pode explicar a sua
ação etiológica... é a posição em que os indivíduos trabalham: assentados em um
lugar muito baixo, com o tronco forçosamente inclinado para diante, posição esta
que ainda mais se exagera pela atitude que tomam as pernas... a cabeça em forte
flexão e a face quase a tocar os joelhos, assim passam muitas horas, respirando
mal...” (198).
“Todas as circunstâncias que acompanham a vida do cocheiro... o estado
crapuloso em que vive... os continuados resfriados a que são sujeitos, passando
grande parte na noite na almofada de um carro, expostos ao sereno e à chuva,
sendo obrigados a conservar a roupa molhada no corpo, dormindo mal... mal
195
alimentados...” (199).
“As mulheres do Rio de Janeiro ordinariamente só exercem quatro profissões:
as de lavadeira, engomadeira, cozinheira e costureira; qualquer delas com exceção
da última, é muito rude... obriga ao resfriamento ... (200). 189
“... disse-nos o velho que era empregado da Empresa Gary, que era obrigado
a levantar-se de madrugada para cuidar na limpeza das ruas, que freqüentemente
se expunha à chuva e à umidade, que se alimentava mal e fazia uso imoderado de
bebidas alcoólicas” (201).
“João da Limeira... ocupa-se em cortar e vender capim em uma chácara do
Andaraí Grande... Passa grande parte do dia com os pés na umidade... dorme em
um pequeno casebre de sapé... mal resguardado da chuva, dos ventos e dos
temporais... o seu trabalho começa de madrugada... é forçado a sair com chuva,
molhando-se e conservando a roupa molhada no corpo...” (202).
“...as modificações profundas porque passam as paredes e as cavidades do
coração dependem... do exercício prolongado de algumas profissões... da ação
permanente de certas causas morais... do abuso dos prazeres sexuais, do vício do
onanismo, do uso imoderado do tabaco...” (203).190
“O exercício imoderado de certas profissões que obrigam o individuo a por em
contribuição os sentimentos alheios, como os de advogado do júri, do ator
dramático, do tribuno... do político... do pregador sagrado... constitui um causa das
mesmas lesões cardíacas a que acabo de referir-me...” (204).191
Não só a influência da profissão, como do ambiente sobre o endivíduo,
mereciam acurada atenção, por parte de Torres Homem. Em páginas anteriores
tivemos a ocasião de nos deter sobre a extraordinária capacidade memorativa do
ilustre médico e da maneira como ele ligava sempre a pessoa de seu paciente ao
local de onde o vira, consignando tal detalhe nas suas observações. Muitas vezes,
nos fatos clínicos das suas lições, deixa de mencionar o nome do doente, mas é raro
189
Registramos a repetição do período “As mulheres do Rio de Janeiro ordinariamente só exercem
quatro profissões: as de lavadeiras, engomadeiras, cozinheira e costureira. Qualquer delas com
exeção da última é muito rude ...” nos fólios 212, 2º parágrafo e último parágrafo do fólio 213.
190
No fólio 214 dactiloscrito, registrou-se um acréscimo autógrafo na marginália lateral direita à altura
do 4º parágrafo a seguinte data: “3.V.64.”
191
No fólio dactiloscrito 216, registrou-se um acréscimo autógrafo na marginália direita de dois
registros: “Decidi retomar esse trabalho dia 21 de Março de 1964, sábado” e “Mme Blank seguiu de
volta para a Holanda, 4ª f. Dia 18 de Março de 1964. Fomos levá-la a bordo do avião em que seguiu
com Joanita Magri, eu e o panamenho Homero, cônsul e espoleta do Manuel Bandeira.”
196
que se esqueça da sua rua ou do bairro da sua moradia. “Na rua de S. Pedro da
Cidade Nova observei uma moça...” (205) - “ ... um moço português ... residente na
chácara da Floresta (Rua da Ajuda), que apresentava... delírio loquaz ...” (206) - “Em
um espanhol morador na rua D. Manuel ...” (207).
“... uma moça residente no Campo da Aclamação...” (208) - “... um doente
meu, morador na rua do Rezende ...” (209) – são um sistema de notação que se
repete dezenas de vezes a propósito de meninos, meninas, moços, homens,
mulheres, velhos e velhas, moradores em S. Clemente, na Praia dos Mineiros (210),
nas ruas do Senado, do Areal, da Princesa dos Cajueiros, ou do Rio Comprido,
Laranjeiras, Cosme Velho (211), Silva Manoel, Mercado, Partilhas, Ourives,
Rezende, Catumbi e nos arrabaldes do Andaraí, Pequeno, Paula Matos, Rio
Comprido (212), Santa Tereza e Cascadura (213). Em todos estes casos o preclaro
médico se omitia o nome, não deixava escapar o comemorativo de local de
residência, adotando aliás sistema milenar e clássico pois que era o mesmo de
Hipócrates (o “claromeniano que morava perto do poço de Friniquides” - “mulher que
morava perto da Água-Fria” - a moça que morava na Via Sacra”) (214).
Também nas observações clínicas completas, transcritas nos vários volumes
de suas lições, além de nome e outros dados anamnéticos, lá estão os bairros da
cidade ou as ruas de residência dos pacientes do mestre. Ilha do Governador,
Jardim Botânico, São Cristóvão (215), Cidade Nova, Ilha das Cobras (216), Pilar,
Vila Nova, Maxambomba, Andaraí Grande, Pedregulho, São Francisco Xavier (217),
ou mais precisamente as ruas da Assembléia, da Alfândega, do Ipiranga (218),
Saúde, S. Diego, (219), D. Manuel, Lavradio, Machado Coelho, Ourives e Santa
Luzia (220) – são alguns exemplos, entre muitos outros que poderíamos apontar
para demonstração. Além do seu valor indicativo para o conhecimento pregresso da
geografia médica do Município Neutro, pois a maioria dos pacientes citados eram
portadores de doenças epidêmicas, a toponímia de Torres Homem assume, para o
leitor moderno, o pitoresco de um passeio pelo Rio antigo quando nos refere os
nomes de vias hoje desaparecida ou rebatizadas como o Cais da Imperatriz, a rua
da Pedreira da Glória, a rua das Violas, ou as de Santa Isabel (221), Prainha (222),
Ajuda, Mataporcos, Areal, Conde d‟Eu, Lampadosa, Nova do Ouvidor (223),
Partilhas e Princesa dos Cajueiros.
Essa ligação do doente ao logradouro era fácil devido à prodigiosa memória e
rara aptidão visual do conspícuo médico. Teria passado a fazer parte de seu
197
192
Charles Péguy (1873 – 1914): Editor, poeta e ensaísta francês. Inicialmente agnóstico, torna-se
católico a partir de 1908, tendo tido a religião forte influência sobre sua obra.
193
Walt Whitman (1819 – 1892): Escritor, poeta e jornalista norte americano. Considerado o pai do
verso livre, exerceu forte influência no meio literário, à sua época, com sua complexa e controversa
obra.
198
ora baixo e queimado por calores abafados, ora alto e frio” (225).
Nestas palavras eternas se ensina que é preciso conhecer não só o clima
como os microclimas de uma aglomeração urbana e é sem tirar nem por o que
acontecia com Torres Homem. O seu volume “Estudo Clínico das Febres do Rio de
Janeiro” encarta mapas meteorológicos organizados por ele e Francisco de Castro
(226). O seu “Anuário Clínico de 1868” tem fora do texto um gráfico das “Médias das
Observações Meteorológicas do ano letivo de 1868, segundo as respectivas tábuas
mensais” (227). Esses dois exemplos bastam para mostrar a preocupação do mestre
com o clima e suas repercussões sobre a evolução das doenças. E se não bastasse
isso lá figura ainda no primeiro livro citado aquela descrição magistral da topografia e
meio da capital do Império que, apesar de longa, não pode deixar de ser transcrita,
como comprovante do que estamos a afirmar.
“Outrora toda a parte conhecida pelo nome de Município Neutro era cortada
por extensos e numerosos pântanos; mesmo nas ruas mais centrais, onde
atualmente o comércio se ostenta com mais atividade e opulência, existiam muitos
brejos, e as emanações paludosas faziam-se em elevada escala. Com os
progressos da civilização, a higiene pública foi-se aperfeiçoando, os pântanos foram
aterrados, as ruas convenientemente calçadas, e hoje as condições de salubridade
da chamada cidade velha, que fica aquém do Campo da Aclamação, pouco ou nada
deixam a desejar. Porém na cidade nova, sobretudo nas ruas que ficam próximas ao
canal do mangue, ainda se observam águas estagnadas, dormentes e lodosas, que,
reunidas às deste canal, entretêm o ambiente em uma continuada infecção e exalam
muitas vezes aquele fétido especial que procede dos pântanos” (228).
“... O Rio de Janeiro está situado entre 22º 43' e 23° e 6' de latitude austral, 4'
longitude oriental e 35' de longitude ocidental de seu próprio meridiano: acha-se por
conseguinte quase sob o trópico de Capricórnio, bem como dentro dos limites da
zona tórrida; a sua temperatura média é de 23°, 5 cent., a máxima de 27°,2 e
mínima de 20º (Humboldt). O clima de nossa cidade reúne pois todas as condições
dos climas quentes; durante os meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março,
entre as 11 horas da manhã e às 2 da tarde, o céu dardeja com extrema violência
seus raios sobre a terra, o calor é excessivo. A umidade constante do solo e da
atmosfera, a grande abundância de detritos orgânicos, sobretudo vegetais, que
existe no terreno e o torna muito fértil, a exuberância luxuriosa da vegetação logo
que nos afastamos do coração da cidade, eis um certo número de elementos que
199
194
Município Neutro foi a designaçao dada à situação administrativa da cidade de São Sebastião do
Rio de Janeiro, entre 12 de agosto de 1834 quando foi proclamado o Ato Adicional à Constituição de
1824 e 15 de novembro de 1889, quando da proclamação da república no Brasil. Deixou de existir
oficialmente com o advento da Constituição de 1891. Esta unidade administrativa passou a se
chamar Distrito Federal após a promulgação da República.
195
José Francisco Xavier Sigaud (1796 – 1856): Médico francês. Formado em medicina em
Estrasburgo, instalou-se no Rio de Janeiro em 1825. Foi um dos primeiros editores de literatura
médica no Brasil.
196
Francisco Freire Alemão e Cisneiro (1797 – 1874 ): Médico brasileiro e botânico. Formado na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e doutorado em medicina pela Universidade de Paris. Foi
professor de botânica médica e zoologia em instituições de ensino superior do Rio de Janeiro. Foi
comissionado para buscar na Itália a noiva do Imperador Pedro II, Dona Teresa Cristina Maria de
Bourbom.
201
197
José Pereira Rego (1816 – 1892): Médico cirurgião brasileiro. Primeiro e único Barão do Lavradio.
Foi patrono e membro titular da cadeira número 7 da Academia Nacional de Medicina.
202
198
Abstração feita de sua importância do ponto de vista da higiene, a questão da aclimatação
apresenta um verdadeiro interesse da atualidade. Depois de meio século, as nações civilizadas
mudaram suas condições de existência, ao isolamento sistemático das nações se sucedeu esta
necessidade de expansão. A imobilidade tradicional de nossos pais deu lugar a uma verdadeira febre
de locomoção. O vapor e a eletricidade encurtaram distâncias. As grandes migrações que ocorreram
em diversas épocas não podem oferecer uma ideia deste movimento incessante que só pode
aumentar.
203
199
Os Reverendos padres jesuítas submetiam os noviços vindos da Europa a um tratamento:
sangramento, banho geral, dieta vegetariana para diminuir as forças, em seguida o uso de purgativos,
renovados a cada estação. Eu creio que esta prática seria útil imitar para os jovens que chegam às
paragens do Brasil em grande número.
204
pestiferas” (281).
No capítulo dos “Elementos de Clínica Médica” em que Torres Homem
dá as regras do interrogatório, nada refere sobre o que se deve perguntar ao doente
sobre sua alimentação. Entretanto esse inquérito era feito por ele, como se percebe
de observações clínicas em que se acentua o papel nocivo dos regimes tênues e
pouco variados impostos pela pobreza, como o do português João de Limeira,
portador de caquexia palustre (“... alimenta-se ordinariamente de carne seca, feijão,
bacalhau e sardinhas...”) (282) e o de um preto liberto de Inhaúma sofrendo de
opilação (“... alimetava-se de feijão, carne seca e farinha de mandioca ...”) (283) ou
dos hábitos contrários de comida excessiva e eriçada de especiarias como o
incendiário caruru, o corrosivo vatapá que, concorrendo com a vinhaça, tinham sido
as causas da cirrose hepática de certo paciente abastado e extravagante (284).
De muito interesse histórico e sociológico é o depoimento de Torres Homem
sobre a alimentação dos escravos e que, pelo menos quanto aos do Município
Neutro e sua vizinhanças que ele via nos leitos da Santa Casa de Misericórdia ou do
Hospital de Nossa Senhora da Ajuda, desmente afirmações correntes sobre a
abundância e fartura com que eram nutridos os nossos cativos. É o que se
depreende claramente de uma de suas lições, onde afirma que “... a opilação ataca
a escravatura dos estabelecimentos rurais e agrícolas denominadas fazendas, bem
como a gente livre que vive como esta parte infeliz da nossa população. Uma
alimentação insuficiente pela quantidade e pela qualidade, composta de uma
pequena porção de carne seca, feijão e farinha de mandioca ou milho; um excessivo
trabalho... aglomeração de muitos indivíduos em pequenos aposentos, cuja reunião
constitui as senzalas ... os constantes resfriados a que estão expostos pela
insuficiência das vestes... tais são as influências nocivas, que, atuando lenta e
gradualmente... viciam a nutrição, depauperam as forças...”(285).
O estado de indigência de que resultam as condições deficitárias de casa,
roupa e comida representam um elemento etiológico importante e delimitam grupo
humano com uma patologia especial, que deve ser encarada pelo prático de modo
particularíssimo. É o que parecia compreender o médico ilustre quando resumia esta
situação sob a rubrica de miséria, de vez em quando citada como fator ponderável e
dramático na história de seus doentes (“... más condições higiênicas inerentes à vida
debochada e à miséria ...” - “... entrega-se com freqüência à embriaguez, luta com a
miséria ...” – “Há seis anos perdeu o marido e ficou reduzida à mais extremada
207
abuso dos prazeres de Vênus quando contam de 16 a 18 anos... esses moços ficam
nevropáticos ou acabam tísicos”. ) (319). “Advertia-os de que só “... depois de bem
constituída a puberdade é que o homem deve entregar-se aos prazeres sexuais,
evitando com sumo cuidado qualquer excesso ...” (320). No que o eminente mestre
tinha toda razão era na posição assumida contra o velho hábito patriarcal brasileiro
de entregar ao Moloch200 do matrimônio, a machos madurões, tantas vezes brutais
ou desajeitados – tenras meninas apenas saídas da infância e mal entradas na
pubescência (“... só depois de completamente púbere e bem desenvolvida é que a
mulher poderá casar-se.” - “O casamento prematuro no sexo feminino, o abuso dos
prazeres sexuais em menor idade no sexo masculino, são outras causas que
concorrem... para aumentar o número de tísicos.” - “Quantas vezes não me tenho
revoltado contra o procedimento de alguns pais... que pensam em casar as filhas
logo que elas se tornam púberes!”) (321).
No tocante aos abusos genésicos e suas decorrências, o quadro pintado por
Torres Homem é de cores sombrias e capaz de nouer l'aiguillet aos mais afoitos e
desensofridos. Ai do desavisado que não se continha, que se mostrava insaciável e
que, segundo sua própria expressao “... se entregava com furor aos prazeres de
Vênus”! (322). Aterradoras e fúnebres eram as perspectivas abertas para seu futuro.
Nele, a sensibilidade se embotava e o espírito entrava nos tresvarios da
superexitação e do delírio (323).201 Dissorava-se-lhe o sangue na discrasia da
“oligocitemia” (324). A garra da tuberculose lhe empolgava os pulmões, cavitava-os
como esponjas e abria as torneiras das hemoptises cataclísmicas (“... dois dias
depois do casamento é acometido de uma hemoptise abundante... Pelo
interrogatório convenci-me de que o acidente hemorrágico tinha sido motivado pelos
excessos venéreos tão comuns nos noivos, e que no doente tinham atingido grau de
verdadeira imprudência.” - “... teve a primeira hemoptise em uma noite de carnaval...
na ocasião em que depunha uma oferenda no altar de Vênus com o mesmo ardor
com que havia festejado o deus Momo...”) (325). Seu coração de predispunha às
lesões mortais, entrando primeiro nas desordens e descompassos da “nevrose” para
depois sofrer arrochos implacáveis no torniquete da angina pectoris (326). E para
remate do desmatelo, comparecia a “hepatite parenquimatosa” com o cortejo sinistro
200
Antigo deus pagão ao qual se sacrificavam crianças para prestar-lhe reverência.
201
No fólio 235 existe registro autógrafo no centro da página da direita (reservada para acréscimos e
rasuras): “entreaberto botão entrefechada rosa.”
212
202
Maldito é o homem que espalha suas sementes sobre a terra.
213
permet pas de nommer, & qui eft fuivi de maladies terribles...”203 (332) e a que a
Reveillé-Parise – transfigurando-se num S. João Evangelista da safadeza – dava
envergaduras de Apocalipse: “Segundo minha opinião, nem a peste, nem a guerra,
as bexigas, ou outro grande número de males semelhantes, tem resultados mais
desastrosos para a humanidade que o funesto costume da masturbação: é o
elemento destruidor das sociedades civilizadas...” (333).
Um período de Mauriac204 dá bem ideia das razões do que chamamos o mal
entendido milenar reinante no assunto: “L' abus des plaisirs de l'amour a toujors eté
regardé par les médecins et les moralistes comme une cause puissante de
détérioration pour l' organisme et de déchéance pour les facultés intellectuelles et
morales.”205 (334). Vê-se aí a intromissão em assunto médico e exclusivamente
médico dos moralistas, trazendo para o mesmo um lastro filosófico, ou cultural, ou
religioso dos quais independe a observação imparcial do fato biológico. E
perturbando sua apreciação com toda sorte de mandamentos, prescrições,
doutrinas, preceitos, normações e preconceitos, como sucedeu através dos tempos,
não só com o ato fisiológico da masturbação, como com todos os que dizem respeito
à sexualidade. Não sendo os mesmos exclusivamente físicos, mas comportando
também um lado psíquico, foi o último que representou o elemento de entrave
porque, se Hipócrates tinha liberados há mais de 2000 anos a Medicina da sua
bagagem místico-teúrgica, só entre em 1895 e 1897 é que Freud conseguiu alforriar
da mesma, a psicologia e a psiquiatria. As ideias da culpa, pecado e punição
toldaram completamente o senso crítico dos médicos que escreveram sobre o
onanismo que vieram tecendo variantes em torno de um período hipocrático lido de
esguelha ou interpretado com má fé tendenciosa: o que está no tratado “De morbis” -
e que não se refere à manualização mas, simplesmente, ao abuso e ao excesso do
coito (335). O Pai da Medicina dá como consequência da imoderação que ele
chama, segundo a tradução de Littré, de “tísica dorsal” e que outros transpõem
ainda por “consumição dorsal”. Em torno dessa simples expressão e enfeitando-a
como uma árvore de Natal, através de mais de vinte séculos de ideias
203
Vício que o pudor não permite nominar e que leva a terríveis doenças.
204
François Charles Mauriac (1885 – 1970): Escritor francês ganhador do Nobel de Literatura de
1952. De forte formação religiosa, suas obras refletem o conflito trágico entre a religião e as
tentações.
205
O abuso dos prazeres do amor é sempre observado pelos médicos e pelos moralistas como uma
causa poderosa de deterioração do organismo e de privação das faculdades intelectuais e morais.
214
206
A imaginação superexcitada por desejos reais ou imaginários lança-se em sonhos sem fim
perseguindo sempre o mesmo objeto, é um sentido de gratificação genital, em momentos de
congresso sexual, com todas as verdades e sentimentos refinados que possam dominar o lazer,
calcular, suspender, renovar, retardar e prolongar, de modo a percorrer todas as faixas e fazer com
215
stacato e pianissimo desse solo – sua tremenda contrapartida. Tentaremos dar uma
ideia do que ele e os que ele cita, prometiam aos manualizadores. Dois brasileiros
do século passado, que consultamos, Antonio Pedro Teixeira (337) e Miguel Antônio
Herédia de Sá (339), sabedores e experimetados em materia de onanismo e coito,
afinam pela mesma tecla. Esses Antônios são autores de duas teses onde – sob a
capa meio rota do farizaismo moralizante aparece a nudez da malícia mal contida.
Amostra de Teixeira (onde vai grifado o lapsus acusador ): “... quero falar da
masturbação, desse vício infernal, flagelo do gênero humano que tantas vítimas tem
ceifado pela grande facilidade que temos de executá-lo e pelo hábito arreigado que
contraem as pessoas que a ele se entregam...” Amostra de Herédia ( na dissertação
dedicada a sua “adorada mãe” ): “... durante a extrema excitação que acompanha o
orgasmo venéreo o homem fica em estado de epileptiforme, o rosto colora-se, a
respiração acelera-se, os movimentos tornam-se convulsivos...” Ainda aqui, lapsus,
escorregão autobiográfico ou, então, experiência de voyeur... Em resumo: nacionais
e estrangeiros de acordo na forma e no fundo e despedindo tempestades feitas dos
mesmos raios.
Segundo seu consenso, nos fanáticos pelos vícios solitários, a pele se
alterava na turgência e as carnes na plasticidade. Sobrevinham preguiças,
debilidades, sobressaltos, contrações, convulsões e paralisias musculares.
Resultava disto um habitus onde sobressaíam a atitude amolentada, o
emagrecimento, a parada de crescimento, o aspecto mofino, o desmoronamento do
tronco, o encurvamento da espinha, a diminuição das forças, a pouca aptidão para
os exercícios físicos e o fenecimento do organismo que caminhava e passos largos
para a prostração e o marasmo.
As pupilas, em midríase, deslocavam-se para cima e para dentro, os olhos
afundavam nas órbitas escavadas. A pálpebra superior descaía pesada, sobre eles,
enquanto a inferior tingia-se de um bistre malsão. Tudo concorrendo para o olhar se
tornar mortiço, langoroso, terno e apático. Os descorados beiços arreganhavam-se
sobre dentes desencravados das gengivas escorbúticas e sobre a língua vascilante.
Palidez de cera, desmerecendo para a cor terrosa. O conjunto fisionômico era
dormente e a essa facies, somava-se outro sinal patognomônico tirado das doutrinas
que o último paroxismo seja intenso em seu corpo, mais profundo, mais penetrante através de sua
irradiação por todo o sistema nervoso.
216
207
Franz Josef Gall (1758 – 1828): Médico alemão. Fundador da doutrina da Frenologia que baseava-
se no estudo morfológico de cérebros e crânios de homens e animais. Pretendia estabelecer
correlações entre as faculdades mentais com os formatos dos órgãos avaliados.
208
Substantivo alemão cuja tradução literal é substituto.
217
209
Sigmund Freud (1856 – 1939): Neurologista austríaco fundador da psicanálise. Professor de
neurologia da Universidade de Viena. Em Paris estudou com Charcot e trabalhou com Breuer no
tratamento da histeria utilizando hipnose, mais tarde substituindo este método pela livre associação
de idéias e ainda pela associação de uma determinada ideia com outra previamente ligada a ela.
Essa técnica lançou os fundamentos da psicanálise
210
… ou a estimulação da genitália por prazer é normal na infância.
211
… a recrudescência da masturbação é bastante natural entre adolescentes, a prática em excesso
sugere rico imanginário tanto quanto fonte de forte necessidade de excitação genital.
212
O ato, desta maneira, é relativamente inofensivo.
219
213
Raul d‟Ávila Pompéia (1863 – 1893): Escritor e jornalista brasileiro. Consagrado no meio literário
devido sua obra maior O Ateneu: crônica de saudades, relato de crônica de cotumes sobre o
ambiente educacional do século XIX no Brasil, possuindo forte cunho autobiográfico. Suicidou-se aos
31 anos, na noite de Natal.
220
não ia, na sua repressão, além das catilinárias que dirigia aos seus pacientes e de
po-los espavoridos e de perna bamba com bosquejar o horrível quadro do que os
esperava, caso não mudassem de vida e se emendassem do pecado (359). Seja
dito em honra de sua inteligência que o mestre reconhecia na manipulação
exagerada, o aspecto de consequência de certas alterações mentais (“Em alguns
indivíduos, o desejo da masturbação os assalta como verdadeiros acessos a que
não podem resistir, à semelhança do que se dá com acessos de loucura.” -
“...muitos fatos de abuso do onanismo... alguns dos que parecem reconhecer por
causa uma verdadeira alienação mental, uma monomania.” - “... às vezes o vício
excede os limites da boa razão e parece estar ligado a uma perversão intelectual.”)
(360).
Precursor de Austregésilo e do seu famoso “pensar sifiliticamente”, Miguel
Antonio Herédia de Sá, em 1845, bradava contra a tremenda disseminação das
moléstias venéreas no Rio de Janeiro (“... posso afirmar, sem medo de ser taxado de
exagerado, fazer a sífilis em breve parte integrante até da caliça das paredes”.)
(361). Quando ele dizia “sífilis”, possivelmente estaria englobando nesta palavra não
só a avaria, como a gonorréia e mais o cancro mole – tudo isso muito mal distinto
pelos médicos antigos. Realmente, só com o advento da “teoria microbiana”, a
identificação e demonstração do papel patogênico do gonococo por Albert
Neisser214, em 1879; do bacilo do cancro mole por Auguste Ducrey215 em 1889; e do
trepanoma da lues por Fritz Schaudin216, em 1905 (362), cessou o unicismo da
ignorância e ficaram definitivamente separadas três moléstias antes reunidas, como
coisa única, no “mal de Vênus”.
Morto em 1887, Torres Homem só poderia ter tido conhecimento, se é que o
teve, dos trabalhos de Neisser, os únicos aparecidos durante sua vida. Mas a sua
maneira de dar notícias sobre as afecções venéreas mostra, não só que ele
apartava perfeitamente sífilis e gonorréia – o que não era vantagem em sua época,
214
Albert Ludwig Siegmund Neisser (1855 – 1916): Médico alemão. Especialista em dermatologia e
venerologia. Foi o descobridor do gonococo (Neisseria gonorrhoeae, 1879) e demonstrou a existência
da bacilo causador da lepra. Realizou uma revisão completa da hidatidose em Die
Echinococcenkrankheit.
215
Augosto Ducrey (1860 – 1940): Dermatologista italiano. Descritor do Haemophilus ducrey (1888)
causador de doença sexualmente transmissível conhecida vulgarmente como cancro mole ou Doença
de Ducrey.
216
Fritz Richard Schaudinn (1871 – 1906): Bacteriologista prussiano. Descobridor do Treponema
pallidum (1905).
221
pois a identificação absurda das duas estava denunciada desde 1838 por Philippe
Ricord217 (363) – como mostra, ainda, que ele separava o cancro mole do cancro
duro que, isto sim, representava atilamento clínico excepcional ao seu tempo. Seus
relatos mostram a atenção do seu interrogatório no tocante às moléstias referidas.
A existência de “blenorragia” vem consignada numerosas vezes nas suas
observações onde ficava determinado o tempo de aparecimento da moléstia, sua
persistência, suas repetições (“... só teve uma blenorragia em 1863...” - “... só teve
uma blenorragia há nove anos ...” - “... contraiu uma blenorragia há seis meses, da
qual conserva ainda alguns vestígios ...” - “Teve duas blenorragias ...”) (364).
A relevância dada à sífilis transparece, inclusive no sistema de sua notação
negativa às vezes adotada pelo grande mestre (365). Já se o dado parecia de
importância anamnética, ora sempre salientado de maneira positiva (“... organismo...
cruelmente alterado pelo deboche, pela sífilis e pelo álcool ...” - “... a sífilis, o abuso
do álcool e o deboche produziram os maiores estragos ...” - “... apresentava em seus
antecedentes patológicos a sífilis ...” - “... ex-praça do exército... tendo tido sífilis...”)
(366). Quando necessário e quando possuindo implicações clínicas, o diagnóstico
da “sífilis” era justificada por detalhes abundantes que mostravam, não só os
conhecimentos de Torres Homem sobre o papel da avaria, como sobre suas lesões
e aspecto evolutivo. Numerosos trechos da obra do mestre insigne legitimam essa
afirmativa (“... teve acidentes primitivos e secundários da sífilis ...” - “... teve um
cancro sifilítico, seguido de sifílides, mais tarde de ulcerações da garganta,
finalmente de dores osteocopas e reumáticas e de uma úlcera extensa e profunda...
da perna direita ... sucedeu-lhe uma cicatriz espessa, irregular, deprimida, de cor
cúprica ...” – “... havia seis anos tinha tido um cancro venéreo na base da glande...
não se lembrava se tinham lhe aparecido manchas pelo corpo, porém tinham tido
reumatismo articular, úlceras na garganta, fortes dores de cabeça e os cabelos da
cabeça nessa mesma ocasião lhe tinham caído quase em totalidade”) (367). Prova
de detalhe posto por Torres Homem no interrogatório, para o diagnóstico do mal
gálico são suas próprias palavras (“A primeira base em que se apoia o diagnóstico
de sífilis do pulmão é a história anamnésica do doente.” - “A anamnese neste caso
tem valor imenso para o diagnóstico da esclerose hepática sifilítica. Expressão
217
Philippe Ricord (1800 – 1889): Médico norte americano naturalizado francês. Demostrou que a
sífilis e a gonorréia eram doenças distintas desenvolvendo técnica especial para uretroplastia.
222
terciária e tardia da sífilis, esta lesão visceral, bem como as gomas... são precedidas
de uma série... de acidentes terciários mais precoces, de acidentes secundários e de
acidente primitivo, representado pelo cancro infectante.”) (368).
A maneira clara e incisiva de Torres Homem referir-se à “sífilis”, “cancro
sifilítico”, “cancro infectante”, “acidentes primitivos”, “acidentes secundários”,
“sifílides”, “dores ostecopas, - e às manifestações viscerais - em suma, a todos os
fenômenos primários, secundários e terciários do mal napolitano, mostram que ele o
individualizava perfeitamente. Ao contrário dessa nitidez, o vago e o difuso de outros
períodos seus deixam transparecer que ele diferençava o cancro duro de cancro
mole. Podemos fazer o diagnóstico retrospectivo do último, todos as vezes que a
terminologia do grande prático perde a precisão e ondeia na expressão vacilante e
ambígua. É assim que em casos não se enquadráveis no que ele estava
acostumado a definir como “sífilis”, sua notação difere e deixa margem a dúvidas –
de certo propositadas e intencionais. A seu ver, haveria ali alguma coisa diferente.
Fica-se convencido disto quando se percebe como ele acentuava a pluralidade dos
cancros referidos pelos doentes; a supuração da adenite satélite quando as
ulcerações eram muitas; a ausência dessa mesma supuração quando se verificava
acidente primário único (“Teve cancros venéreos, blenorragias e bubões ...” - “Há
cinco anos teve blenorragia, cancros venéreos e um bubão que supurou ...” - “Teve
duas blenerroagias, e a segunda foi acompanhada de cancros venéreos em número
de três e de um bubão ... terminado por supuração”.) (369) É evidente a intenção de
deixar bem distinto o cancro luético, único e duro, acompanhado de íngua
irresolutiva, dos cancróides múltiplos e moles, seguidos das “mulas” supuradas.
“O conhecimento das moléstias anteriores de que foi acometido o doente, é
um dado comemorativo muito precioso. Há afecções que preparam o organismo
para a repetição frequente de sofrimentos da mesma natureza, porém, tendo sede
diversa. Certas moléstias determinam outras secundárias ou por continuidade de
tecido, ou por contiguidade dos pontos afetados, ou em virtude de íntima conexão
nervosa entre os órgãos comprometidos, dando lugar às moléstias simpáticas”
(370).
Hoje, o período acima pode não ser considerado ortodoxo mas o que é
indubitável é a importância dada por Torres Homem à patologia pregressa do
indivíduo e à repercussão da mesma sobre o terreno.
Dando a este elemento fundamental – o terreno – a relevância que sempre
223
NOTAS
(1) T.H: CM1, p.9.
(2) T.H: CM3, p.90.
(3) T.H: CM1, p.359-360.
(4) T.H: CM1, p.263.
(5) T.H: ECM, p.439.
(6) T.H: ECM, p.488.
(7) T.H: ECM, p.490.
(8) T.H: FRJ, p.451.
(9) T.H: CM2, p.596; ECM, p.422, 523.
(10) T.H: ECM, p.778.
(11) T.H: CM2, p.141.
(12) T.H: CM2, p.596.
(13) T.H: FRJ, p.326.
(14) T.H: ECM, p.738.
(15) T.H: ECM, p.21.
(16) T.H: CM1, p.520.
(17) T.H: CM2, p.32.
(18) T.H: CM1, p.324.
(19) T.H: FRJ, p.125.
(20) T.H: ECM, p.490.
(21) T.H: CM1, p.405.
(22) T.H: FRJ, p.174.
(23) T.H: CM1, p.152. (o grifo é nosso)
(24) T.H: CM2, p.346 e 358. (os grifos são nossos)
(25) T.H: CM2, p. 572. (o grifo é nosso).
(26) T.H: CM1, p.122.
(27) T.H: CM3, p.315.
(28) T.H: ECM, p.352, 383.
(29) T.H: FRJ, p.441; CM1, p.35, 384; CM2, p.463; CM3, p.257, 311.
(30) T.H: CM1, p.347.
(31) T.H: CM1, p.59.
(32) T.H: CM2, p.357.
(33) T.H: CM1, p.433; CM2, p.570; CM3, p.5, 38.
(34) T.H: CM2, p.571.
(35) T.H: CM1, p.152.
(36) T.H: CM3, p.109.
(37) T.H: CM3, p.283.
(38) T.H: CM2, p.103.
(39) T.H: CM1, p.610.
(40) T.H: CM3, p.77.
(41) T.H: CM1, p.273.
(42) T.H: ECM, p.590.
(43) T.H: CM1, p.359.
(44) T.H: CM1, p.397.
(45) T.H: CM1, p.513.
(46) T.H: CM2, p.206.
(47) T.H: CM3, p.90.
(48) T.H: CM1, p.37; CM2, p.501.
225
(49) T.H: FRJ, p.351; CM1, p.49, 199, 277, 530, 591-592; CM2, p.91, 236, 252, 290, 326, 446, 514,
546, 567.
(50) T.H: ECM, p.357, 555; CM1, p.536; CM2, p.336; CM3, p.101.
(51) T.H: ECM, p.183, 430, 568; CM1, p.17 e 278; CM2, p.274.
(52) T.H: ECM, p.45.
(53) T.H: ECM, p.352, 357, 365, 373, 394, 398, 404, 408, 415, 418, 428, 457, 460, 465, 468, 477,
480-481, 487, 515, 520, 523, 527, 529, 531, 540, 543, 554, 562, 567, 569, 571, 575-576, 584, 605,
610, 622, 636, 641; FRJ, p.40, 66, 68, 77, 88, 99, 108, 121, 158, 159, 160, 165, 176, 196, 203, 211,
214, 218, 238, 243, 246, 248, 250, 276, 281, 283, 284, 290, 294, 298-299, 301-302, 304-307, 311,
312, 314, 322, 326, 330, 332, 337, 338, 339, 340, 341, 342, 344, 346, 348, 350, 352, 406, 407, 410,
411, 417, 420, 421, 423, 424, 428, 429, 442, 443, 444, 457, 459, 473, 476, 479, 482, 483, 485, 506,
522, 523, 530, 533, 536, 541, 543; CM1, p.29, 35, 39, 41, 49, 53, 55, 59, 59, 60,, 66, 77, 79, 93, 94,
96, 101, 104, 110, 119, 121, 122, 124, 125,, 126, 127, 130, 132, 133, 134, 135, 141, 142, 151, 162,
168, 180, 189,192, 197, 199, 210, 212, 213, 246, 252, 257, 272, 281, 282, 326, 338,339, 340,344,
346, 348, 349, 350, 365, 372, 376, 383, 388, 390, 395, 400, 403, 405, 412, 416, 417, 429, 431, 433,
434,454, 456, 459, 460, 483, 507, 510, 511, 512, 514, 520, 521, 522, 525, 526, 527, 529, 532, 533,
534,, 535, 537, 539, 549, 550, 551, 559, 560, 563, 565, 567, 571, 576, 578, 588, 598, 608, 625,632,
635; CM2, p.10, 28, 30, 64, 65, 67, 72, 78, 80, 84, 91, 92, 93, 103, 104, 116, 133, 135, 136, 137, 140,
141, 142, 184, 186, 192, 193, 203, 204, 205, 206, 208, 214, 226, 233, 241, 251, 256, 258, 270, 271,
276, 278, 279, 290, 292, 295, 296, 302, 303, 311,, 315, 317, 319, 321, 323, 324, 325, 330, 332, 345,
366, 368, 379, 388,, 393, 395, 405, 408, 409, 410, 416, 420, 421, 425, 427, 433, 438, 454, 455, 463,
465, 492, 509, 512, 513, 515, 517, 519, 520, 521, 522, 523, 524,525, 531, 532, 537, 541, 545, 575,
587, 591, 602, 608, 615, 620, 622, 624, 625, 634, 635, 647, 652, 658, 959, 66, 661, 668, 669, 973,
974, 691, 692; CM3, p.1, 14, 18, 22, 26, 31, 38, 47, 53, 54, 55, 59, 71, 76, 78, 85, 106, 110, 111, 115,
127, 134, 145, 156, 159, 175, 178, 232, 246, 249, 252, 255, 257, 256, 258, 260, 261, 271, 309 e 339.
(54) T.H: ECM, p.679; Anuário obs, p. 7.
(55) T.H: ECM, p.79 e 80.
(56) T.H: ECM, p.47.
(57) T.H: ECM, p.52.
(58) T.H: ECM, p.47. (o grifo é nosso)
(59) T.H: ECM, p.55.
(60) T.H: CM1, p.152; ECM, p.79
(61) T.H: ECM, p.50.
(62) T.H: ECM, p.60.
(63) T.H: ECM, p.47.
(64) T.H: ECM, p.46.
(65) T.H: ECM, p.21.
(66) T.H: ECM, p.22.
(67) T.H: ECM, p.21.
(68) T.H: ECM, p.20 e 21.
(69) T.H: ECM, p.50.
(70) T.H: CM2, p.179 e 180.
(71) T.H: ECM, p.50 e 51.
(72) T.H: ECM, p.20.
(73) T.H: ECM, p.20.
(74) T.H: ECM, p.51.
(75) T.H: ECM, p.22.
(76) Depoimento do Dr. Cândido Martins ao Autor
(77) T.H: ECM, p.48.
(78) T.H: ECM, p.48.
(79) T.H: ECM, p.48 e 49.
(80) T.H: ECM, p.51.
(81) T.H: ECM, p.51.
(82) T.H: ECM, p.51.
(83) T.H: ECM, p.56.
(84) T.H: ECM, p.55 e 56
(85) T.H: ECM, p.56.
(86) T.H: ECM, p.56
(87) T.H: ECM, p.56 e 57.
(88) T.H: CM2, p.260
226
(89) Referido por Francisco de Castro e Aloysio de Castro e pos este em depoimento ao Autor.
(90) T.H: ECM, p.23
(91) T.H: ECM, p.49 e 50
(92) T.H: ECM, p.53.
(93) T.H: ECM, p.53.
(94) T.H: ECM, p.53
(95) T.H: ECM; p.53.
(96) T.H: ECM, p.53.
(97) Luiz Costa: Do Diagnóstico em geral- tese de doutoramento, Faculdade de medicina do Rio de
Janeiro, 1871, p. 134 e 135.
(98) Antonio Francisco dos Santos Bastos: Do Diagnóstico em geral – tese de doutoramento,
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1873, p. 16.
(99) A F. Chomel: “Eléments de pathologie générale” J.B. Ticher, Bruxelas, 1841, p. 143 e 144
(100) Georges Dieulafoy: art. Douleaur in Nouveau dictionaire de médecine et de chirurgie
pratiques. J. B. Baillière et Fils, Paris, 1869, Tomo XI, p. 678.
(101) T.H: FRJ, p.154.
(102) T.H: CM2, p.329.
(103) T.H: CM2, p.311.
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(105) T.H: CM3, p.50.
(106) T.H: ECM, p.731.
(107) T.H: CM3, p.187.
(108) T.H: FRJ, p.160.
(109) T.H: CM3, p.285.
(110) T.H: CM2, p.331.
(111) T.H: FRJ, p.282.
(112) T.H: CM3, p.128.
(113) T.H: ECM, p.337, 338 e 339.
(114) T.H: ECM, p.332.
(115) T.H: ECM, p.332 e 335.
(116) Georges Dieulafoy: op.cit. Nº 100, p. 683.
(117) T.H: ECM, p.339.
(118) T.H: ECM, p.708.
(119) T.H: CM2, p.254.
(120) T.H: FRJ, p.348.
(121) T.H: FRJ, p.348.
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(126) T.H: CM2, p.320.
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(128) T.H: FRJ, p.160.
(129) T.H: CM1, p.165.
(130) T.H: CM3, p.192.
(131) T.H: CM3, p.285.
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(137) T.H: CM3, p.50.
(138) T.H: CM2, p.213.
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(140) T.H: ECM, p.743.
(141) T.H: FRJ, p.350.
(142) T.H: ECM, p.723.
(143) T.H: FRJ, p.139.
(144) T.H: CM1, p.369.
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(363) Haggardm, Howard W. Devils. Dougs et doctors. The Pocket book, 1 ed. Harper et Brothers,
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(364) T.H: ECM, p.722; CM1, p.51; CM2, p.68 e 368. (os grifos são nossos.)
(365) T.H: CM1, p.433; CM2, p.366 e 616; CM3, p.146 e 256.
(366) T.H: LMSN, p.4; CM2, p.84 e 311; CM3, p.352
(367) T.H: CM1, p.531; CM2, p.545; CM3, p.210.
(368) T.H: CM1, p.546; CM3, p.248.
(369) T.H: ECM, p.712 e 763; CM2, p.368.
(370) T.H: ECM, p.78
(371) T.H: ECM, p.61, 62 e 73
(372) T.H: ECM, p.73, 74 e 76
(373) T.H: ECM, p.74
(374) T.H: ECM, p.76
(375) T.H: ECM, p.77
(376) T.H: ECM, p.74. (o grifo é nosso)
(377) T.H: ECM, p.74
232
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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