Organismos Internacionais Nas Políticas Culturais para A América Latina. Arte e Cultura de Resistência Às Hegemonias
Organismos Internacionais Nas Políticas Culturais para A América Latina. Arte e Cultura de Resistência Às Hegemonias
Organismos Internacionais Nas Políticas Culturais para A América Latina. Arte e Cultura de Resistência Às Hegemonias
DOI NÚMERO
2021
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP
Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan
Vice-reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes
COMITÊ EDITORIAL
Prof. Dr. Adebaro Alves dos Reis (IFPA)
Profª. Drª. Adriana Carvalho Silva (UFRRJ)
Prof. Dr. Adriano Rodrigues de Oliveira (UFG)
Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa (UNESP)
Prof. Dr. Alécio Rodrigues de Oliveira (IFSP)
Profª. Drª. Ana Regina M. Dantas Barboza da Rocha Serafim (UPE)
Prof. Dr. Cesar de David (UFSM)
Prof. Dr. José Elias Pinheiro Neto (UEG)
Profª. Drª. Maria Jaqueline Elicher (UNIRIO)
Prof. Dr. Ricardo Júnior de Assis Fernandes (UEG)
Prof. Dr. Roni Mayer Lomba (UNIFAP)
Profª. Drª. Telma Mara Bittencourt Bassetti (UNIRIO)
Profª. Drª. Valéria Cristina Pereira da Silva (UFG)
Catalogação na Publicação (CIP)
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Maria Imaculada da Conceição - CRB - 8/6409
A000 XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
[recurso eletrônico] / Organizadores: Júlio César Suzuki, Maria Margarida Cintra
Nepomuceno , Gilvan Charles Cerqueira de Araújo. -- São Paulo: FFLCH/USP, 2021.
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ISBN: 000-00-00000-00-0
DOI: 00.00000/0000000000000
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fonte e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada.
SUMÁRIO
centralidade de quem escreve e difunde por meio das palavras, imagens e significações em
diferentes mídias, como é o caso do Jornal Dobrabil.
Igor Lemos Moreira em seu capítulo Gloria Estefan em Guantânamo: projetos
políticos e representações em cena há uma correlação entre a música, o espetáculo, a
representação e os impactos de suas significações. Em diferentes perspectivas o autor trabalha
a partir de um evento específico de arte e música para efetuar pontes de interpretação
problematização em diferentes campos como política, cultura e economia.
Em De Pontos de Cultura à Cultura Viva Comunitária: teias de políticas públicas e de
agentes culturais na América Latina Juan Ignacio Brizuela e Alexandre Barbalho são as
singularizações dos agentes culturais que recebem o protagonismo e foco do trabalho dos
autores. Em uma escala macro de redes culturais há, inevitavelmente, o papel e importância
das ações individuais e localizadas, que (per)fazem os desafios e consolidação da arte e
cultura em diferentes amplitudes de expressão e manifestação na América Latina.
Manuel Mendive Royo: a performance iorubá em diáspora é o capítulo de Marcelo
Mendes Chaves para esse livro. Recursos teóricos, metodológicos e visuais são elencados e
trabalhados amplamente pelo autor, a partir de uma apresentação e evento artístico-cultural
específico, a respeito da cultura iorubá e suas implicações, permanências, interpretações e
formas de expressão nos dias atuais.
No texto O Teatro Político na América do Sul e as ditaduras militares: censura,
repressão e a função do teatro de Michelle Cristina Alves Silva a arte, pelo teatro, é o foco da
possibilidade de (re)existência de sujeitos pela história, cultura e política. Tendo a América do
Sul e seu históricos de regimes autoritários, a autora articula argumentos teóricos, analíticos e
de significações da pensar, fazer e sentir teatral latino-americano.
Em Doença, controle dos corpos e democracia: uma reflexão a partir da obra de Caio
Fernando Abreu de Milena Mulatti Magri encontramos apontamentos e reflexões sobre
política e corporeidade, a relação em macro e micro poder, controle e liberdade a partir das
contribuições de Caio Fernando Abreu, tanto como amostra quanto possibilidade de novas
aberturas e problematizações sobre a temática trabalhada pela autora.
A poética dos manifestos artísticos latino-americanos a partir do estudo do Manifiesto
de Los Disidentes (1950) é o capítulo apresentado neste livro por Vanessa Beatriz Bortulucce.
A arte como manifesto e o manifesto como arte são posições e ponderações que podemos
considerar como ponto de partida e chegada dos debates propostos pela autora em seu
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capítulo, que é um convite para uma temática histórica, social e cultural com imensurável
potencial de aprofundamento teórico, analítico e metodológico na América Latina.
Douglas Gregorio Miguel, sem eu teto intitulado A produção partilhada do
conhecimento nas redes colaborativas e o uso da hipermídia. Neste trabalho, encontramos um
dos desafios contemporâneos de maior proficuidade em debates e aprofundamentos, que são
as redes colaborativas no mundo digital e suas diferentes formas de circulação por mídias
diversificadas. Novos horizontes de expressão e consolidação da arte, cultura e questões
política, sociais, econômicas e históricas são colocadas como possíveis de serem trilhadas no
âmbito latino-americano.
O livro encerra-se como o capítulo de Bruno Henrique Bezerra Silva Caminhos
musicados da resistência: Brasil e Uruguai (1967-1973) nos apresenta reflexões
comparativas a respeito da América Latina pela música brasileira e uruguaia. Questões e
contextos políticos, sociais e econômicos somam-se a configurações e panoramas de produção
cultural que também são apresentados e analisados pelo autor.
Desejamos aos leitores uma ótima experiência de leitura a todos os leitos dos trabalhos
aqui reunidos, tendo no horizonte as reflexões, experiências e partilhas sobre a América
Latina.
APRESENTAÇÃO
1
Doutora em Educação, Arte e História da Cultura. Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail:
[email protected]
2
Mestre em Sociologia. Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]
3
Oriana Jarra Maculet, incansável lutadora pelos direitos dos imigrantes, pela dignidade humana, contra a
violência de gênero e grande incentivadora dos coletivos culturais de São Paulo.
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A esse respeito destacamos a Política Municipal para a População Imigrante (Lei Municipal 16.478/16), o
Conselho Municipal de Imigrantes e outras ações institucionais destinadas às comunidades imigrantes residentes
em São Paulo. Em âmbito nacional, ressaltamos a revisão da política migratória através da instituição da Lei de
Imigração (Lei Federal 13.445/17).
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Parece-nos importante iniciar esse exercício teórico discutindo o caráter dos artistas
enquanto intelectuais, pois a condição migratória os conduziu a expressar-se através da
produção artística, na sociedade receptora. Considerando os aspectos da migração simbólica,
especialmente na redefinição identitária a partir do processo migratório, é fundamental
compreender como as identidades se mobilizam no exercício dos papéis desempenhados pelos
sujeitos na experiência social. Manuel Castells sugere uma diferenciação entre as identidades
e os papéis sociais e, para ele “em termos mais genéricos, pode-se dizer que identidades
organizam significados, enquanto papéis sociais organizam funções” (CASTELLS, 2018, p.
55) e, para a análise do fenômeno que nos propomos a investigar, essa definição é oportuna.
Contribuindo para a compreensão sobre o significado dos papéis sociais, Castells
(2018) afirma que estes são definidos a partir de negociações entre os sujeitos e as instituições
e organizações da sociedade. Já as identidades são construídas em contextos marcados por
relações de poder (CASTELLS, 2018, p. 55-56). Portanto, cabe coletar na narrativa desses
artistas, elementos que possibilitem identificar o modo como suas identidades são constituídas
e como se relacionam com as relações de poder para se afirmarem como sujeitos produtores
de cultura cumprindo o papel de intelectuais.
Ao discorrer sobre a natureza do trabalho intelectual, Gramsci (2001) alerta que as
determinantes a serem consideradas para definir a função de intelectual na sociedade de
classes devem ser balizadas por critérios fundados nas relações de poder desenvolvidas no
seio dessas sociedades. Ao afirmar que “seria possível dizer que todos os homens são
intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais”, Gramsci
(2001, p. 18) situa que a posição de intelectuais é atribuída pelas funções socialmente
legitimadas. Por essa razão identificar, na atividade artística, as características desse trabalho
intelectual praticado pelos sujeitos requer “buscá-lo no conjunto do sistema de relações no
qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se encontram no conjunto
geral das relações sociais” (GRAMSCI, 2001, p. 18).
simbólica que conduzimos nosso trabalho, buscando identificar quais elementos culturais os
artistas imigrantes ressaltam em sua narrativa.
Colombiano de Bogotá, Aleksey Benavides migrou para São Paulo em dois mil e
catorze, aos vinte e sete anos. Sua formação é em Engenharia Química e essa é sua ocupação
profissional principal. Ele nos conta que migrou sozinho e veio morar com familiares,
também colombianos. Conhecemos Aleksey em dois mil e dezesseis, através do trabalho
musical dos dois grupos aos quais ele participa, o Tríptico Caribe e os Cambamberos.
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Fonte: acervo do artista.
Quando convidado a refletir sobre o projeto migratório que o trouxe ao Brasil, ele não
entende que esse processo fez parte de um ‘projeto’, mas de uma busca pessoal.
“Cara, não. Assim, eu não vim objetivo específico, não vim para estudar,
trabalhar ou a passeio, vim porque surgiu a possibilidade de morar em São
Paulo com um dos meus primos que mora aqui, mas depois de ter suficiente
tempo para pensar o motivo de estar aqui, eu concluo que eu vim me
procurar aqui no Brasil. Foi uma coisa mais pessoal que eu consegui
entender depois. Num sentido pessoal, inclusive num sentido imigrante que
eu não tinha na cabeça, pois morei até os 26 anos em Bogotá. Eu nunca
imaginei estar nessa, não sei se dá para chamar de condição, de fazer parte
desse grupo imigrante do mundo. Então eu acho que vim redescobrir
algumas coisas que eu não estava entendendo na minha vida e aqui eu
consegui me encontrar de certo modo” (Aleksey, 2021).
Para Aleksey, sua chegada ao Brasil possibilitou que ele experimentasse essa nova
condição, ao participar do grupo de imigrantes. Ele nos conta que, no primeiro ano que
chegou ao Brasil, interagiu inicialmente com as pessoas da sua família. O contato com outras
pessoas, para além do seu círculo família, veio quando ele iniciou cursos livres na EMESP
Tom Jobim5, onde conheceu brasileiros e imigrantes, bem como através dos cursos de
Português realizados no Consulado da Colômbia em São Paulo. Em Bogotá ele já havia
estudado música em uma escola pública de formação de músicos e participava do coral dessa
instituição. Além disso, ele estava começando um trabalho artístico com um amigo violonista,
projeto que foi interrompido quando surgiu a oportunidade de migrar para o Brasil. Quando
perguntamos sobre a recepção de seu trabalho no Brasil Aleksey avalia que o público é
5
A EMESP Tom Jobim é a Escola de Música do Estado de São Paulo, uma instituição do governo do Estado de
São Paulo que proporciona formação musical para crianças e jovens e cursos de aperfeiçoamento para músicos.
Fonte: http://emesp.org.br/escola/ .
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bastante receptivo e salienta que tem se dedicado a propostas musicais distintas daquela que
constitui seu objetivo musical, que é a música autoral, com voz e violão. Apesar desse gosto
pessoal, ele nos conta que acabou ‘se encontrando’ nas propostas dos grupos Tríptico e
Cambamberos, que são mais dançantes ou, sem sua definição, são ‘tropicais’.
“as pessoas são receptivas com esse tipo de música, esses tipos de ritmos,
propostas, ainda mais os Cambamberos, que traz um conteúdo migrante
forte, acho que é bem... acho que complementou as nossas propostas e
trouxeram um pouco do que as pessoas já conheciam e trouxeram mais da
nossa cultura, então considero que a resposta do público presente na cidade
de São Paulo tem sido muito receptiva, de aceitação” (Aleksey, 2021).
“(...) eu não fazia ideia de que existia um nordeste que tem seus ritmos
próprios, seus ritmos dançantes, então já morando aqui aparece para mim o
forró e todos os ritmos que fazem parte dessa cultura, que hoje penso fazem
também parte do universo da música caribenha. Um dia eu pretendo misturar
dentro das minhas músicas e dentro de um projeto de banda dançante
elementos da música nordestina que considero têm muita conexão com os
nossos ritmos do caribe, pois compartilham um objetivo comum, fazer o
público dançar, igual faz a salsa, a cúmbia, etc. Então eu gostaria muito de
trazer essa parte nordestino, além claro, das outras influências como samba,
bossa nova” (Aleksey, 2021).
“(...) são músicas do povo, populares, folclóricas, regionais e isso faz toda
diferença é.… são ritmos que juntam as pessoas. Eu particularmente não
gosto de alguns ritmos dançantes em que a proposta é você dançar sozinho,
é... eu acho que a dança, me parece que é a junção das duas pessoas, é muito
importante, então eu acho que ali é uma grande semelhança porque também
fazem parte de tradições regionais né, então é apresentação da nossa cultura
latina, e... mesmo que o, que o forró digamos não seja tão caribenho falando
em região, eu acho que a alegria que a música traz tem tudo a ver, inclusive
tem alguns instrumentos parecidos, tem a sanfona aqui, pra gente aqui tem o
acordeão da cúmbia e do Vallenato e isso já, isso já traz uma ponte entre os
ritmos” (Aleksey, 2021).
trabalho. Falando sobre seu percurso de investigação, Aleksey assinala que a adaptação feita
por Chico Buarque para essa canção foi um marco da integração musical.
“(...) minha conclusão né, que foi um ponto de partida para que por exemplo
a MPB da época e a trova cubana se juntassem e começassem a fazer versões
dos outros e aí abre o portão para que outros músicos tenham contato com
repertorio cubano e isso nasceu a partir da música, do interesse de juntar as
ideias, lutas, harmonias, melodias. Então eu acredito totalmente que a
música seja uma das armas que a gente tem para continuar trabalhando. Estar
aqui hoje como imigrante, poder conversar com vocês sobre o trajeto
musical aqui no Brasil que eu confesso que nunca imaginei que ter... Então
não tem como não ser uma forma de juntar, afinal a música é uma linguagem
é que todos sabemos falar” (Aleksey, 2021).
Natural de La Paz, Bolívia, Juan Cusicanki tem cinquenta e quatro anos e migrou para
o Brasil em 1980. Sua ocupação profissional é de projetista de balões infláveis, seu ‘ganha
pão.’ Com a empresa de balões, Juan trabalha com cenografia, lançamentos, eventos, e diz
que é uma profissão que também trata de arte. Com formação de ator de teatro, Juan
Cusicanki também atua como performer, músico e dançarino. Conhecemos Juan através da
atuação na peça de teatro Camiños invisibles... la partida6 e pelo trabalho musical do grupo
Kollasuyu Maya.
Ele nos conta que, na Bolívia, já era músico e dançarino e a migração para o Brasil
ocorreu com um grupo musical, o Karumanta, montado para fazer turnês pela região. Antes
de vir ao Brasil, esse grupo, definido por ele como autóctone (não folclórico), havia se
apresentado em um festival em Medelín (Colômbia), no Peru, também em Oruro e
Cochabamba. Após esse circuito, retornaram para La Paz e decidiram vir ao Brasil, numa
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Dirigida por Carina Casuscelli e Lenerson Polonini, da Cia. Nova de Teatro, peça trata da migração, tratando
de temas como exploração do trabalho e ancestralidade. Em 2012 Camiños Invisibles-la partida recebeu o
Premio Internazionale per il Teatro dell’Inclusione Teresa Pomodoro, em Milão, Itália. A peça foi elaborada com
uma trilha sonora que teve por base o grupo Jacha Sicuris de Italaque.
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viagem de trem cheia de aventuras. Juan chegou ao Brasil com catorze anos de idade, e nos
conta que era o ‘mascote’ do grupo.
Sobre esse projeto migratório, Juan explica que o objetivo do grupo Karumanta era
chegar a América Central, passar pelo México e o Canada e depois, ir pra Europa, e confessa
que:
“(...) o Brasil é tão grande, que a gente se perdeu por aqui. E aí chegamos no
Carnaval né, [e disseram] "não, que isso, vamos tocar né". Lá na Bolívia os
grupos se misturam e tocam, é tudo livre. Carnaval é livre lá e aí a gente vem
aqui e de repente na avenida Tiradentes só tinha samba, né? Aquelas escolas
de samba passando e imagina um grupo de índios com poncho e
chapeuzinho e tocando essas músicas, nada a ver. E o povo estava a fim de
orgia, de brincar, de dançar, de namorar, outras coisas e a gente estava com
essa coisa de história, né!” (Juan, 2021).
Juan relembra que seu grupo foi muito bem recebido pelos seus compatriotas. Naquela
época, já havia uma comunidade estabelecida em São Paulo, composta por negociantes,
autônomos, médicos, donos de oficinas de costura e músicos, que indicavam o grupo para
apresentações em restaurantes bolivianos. Além de auxiliar nessas contratações, seus
conterrâneos também ofereciam estadias temporárias em suas residências.
O grupo Karumanta teve uma vida breve, se desfez em cerca de um ano e alguns
integrantes voltaram para a Bolívia, mas Juan e outros três companheiros optaram por
permanecer no Brasil.
Quando perguntado sobre os valores da cultura que ele procura compartilhar, Juan
afirma que são os valores históricos e ressalta a cultura Aymara, sua origem étnica. Além de
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cantar e recitar em seu idioma nativo, Juan ressalta a importância da respiração, e reflete sobre
essa consciência corporal “em São Paulo, uma metrópole tão grande, a gente se esquece de
respirar, esquece de sentir as coisas, por isso talvez muita gente sofre de asmas né?”.
Ao tratar da percepção sobre o trabalho do artista no seu país de origem, Juan diz que
na Bolívia tinha outra visão, que queria conhecer o mundo com a música autóctone boliviana
e, ao chegar ao Brasil, se deparou com algumas dificuldades, como a língua e colonialidade.
“A coisa colonial muito é forte aqui e talvez a gente [bolivianos] não tem
mais isso. Essa é a grande diferença, [...] o artista boliviano não tem mais
essa fronteira do colonialismo, né? O brasileiro de forma geral ainda está
dividido, se perde talvez nessa história, que é diferente do boliviano. o
boliviano ele é de um lado ou do outro, ou é de direita ou esquerda, esquerda
ele sabe que não existe mais o colonialismo, sabe que tem uma história, a
história pós 1500, história antes de 1500, a história dos incas, antes dos incas
e depois. Isso é muito forte e agora com chegada do Evo Morales se torna
mais forte ainda” (Juan, 2021).
Para Juan, a chegada de Evo Morales à presidência da Bolívia significou uma ruptura
com a história colonial e um fortalecimento das culturas originárias em seu país. Rememora
situações de preconceito que ele e sua família viveram em décadas anteriores, por serem
indígenas, mas salienta todo o processo de resistência, e conclui “a gente é originário tem a
nossa história... E não tem como a gente tirar isso, está no nosso sangue”.
“Uma mistura de música autóctone, misturada com teatro, fica muito mais
viva, forte (...). Em alguns trechos o público se envolve na história, então é
muito importante as junções das linguagens, do teatro, da música, eu coloco
sempre à música histórica. E, hoje em dia, ainda um pouco mais através da
performance. A performance, como linguagem contemporânea, é mais
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impactante (...) porque na performance não se sabe no que ela vai dar, até
onde ela vai fazer. Ela é mais surpreendente, vai surpreender até o próprio
diretor que não sabia de algumas coisas” (Juan, 2021).
O trabalho artístico é exemplificado como uma ação ativa e, para Juan, “(...) é uma
coisa muito recíproca, do artista fazendo e o público respondendo. É uma coisa viva, sabe? É
uma atividade, uma reatividade, é uma coisa viva”.
Interessava-nos saber sobre o público que é atraído para as apresentações e Juan nos
informa que, nos últimos anos, esse é composto principalmente por jovens bolivianos da
segunda geração. Ele nos relata que têm participado de eventos na própria comunidade e
relembra um episódio recente, em que foi convidado a participar de uma cerimônia de
casamento em um cartório, aqui em São Paulo. A performance por ele apresentada remeteu a
um costume da Bolívia, e ele entoou canções no idioma Aymara. Sobre essa experiência
relata que, tempos depois, encontrou um dos convidados que assistiu a celebração, um senhor
que se emocionou ao relembrar essa performance. Diante da emoção desse seu compatriota,
Juan o reconfortou: "isso só faz parte da nossa história".
Outra experiência similar a essa é narrada.
“(...) no ano passado, faz uns três meses... era noivado, em Guarulhos.
Primeiro chega a família, toca a porta é meia noite...aí eles conversam e a
gente tá lá fora, esperando. Nisso conversa vai, conversa vem, abrem a porta,
entra só as pessoas que vão pedir a mão da moça. Depois eles falam assim "
a gente veio pedir a mão da sua filha, mas a gente trouxe umas bebidinhas
para vocês" aí entra o garçom leva a bebida, né? E aí deixa eles bêbados e
depois no meio a gente já entra contando já para levar [a moça] embora. E aí
tem os abraços, acho que esse intervalo uma meia hora, uma hora de que a
gente vai tocando sicuri, as músicas tradicionais... e a gente leva a noiva
tocando. Só que aqui é longe, lá [na Bolívia] é perto, uma montanha ou um
outro bairro e aqui não! A gente chegou de três Kombi e entramos lá,
levamos a noiva e chegamos aqui no Brás (risos)” (Juan, 2021)
meu olhar não era de artista, intelectual, de músico, de ator, nada... simplesmente o meu olhar
foi de pesquisador de performance”.
Para Juan, sua interpretação de Ekeko na Fiesta de las Alasitas representa um ritual
xamânico de esperança e sonhos e “tem toda uma história atrás disso. Indígena, originária,
toda uma história (...) aqui em São Paulo não morre mais”. Essa percepção do significado
simbólico da festa e de Ekeko faz com que Juan considere que, mesmo quando ele não estiver
mais incumbido de representá-lo, outros o farão.
“(...) é uma coisa assim, isso é ímpar, uma coisa nossa: você tem um desejo
esse ano, todo mundo tem um desejo esse ano, né? Eu quero ter trabalho,
quero ter dinheiro, alimento em abundância, sempre temos [o desejo] que
não falte. Alimentação, assim, é o mínimo, é o básico, mas daí se tiver
abundância é melhor ainda! Então, é muito essencial para o homem isso,
então todo mundo está dentro, ninguém está fora” (Juan, 2021).
Sobre a importância da festa, Juan informa que no ano de dois mil e vinte reuniram-se
mais de cinquenta mil pessoas no Parque Dom Pedro e, nesse ano, a celebração foi bastante
reduzida, em virtude da pandemia de Covid-19. Mas, prossegue esperançoso “ano que vem
esperamos que já tenha passado toda essa febre e vai ser uma coisa linda, grande, aberta, para
todos, porque a história milenar do Ekeko é... essa é a nossa história originária andina, sabe?
Dos Aymaras, Quéchuas, dos indígenas”.
Refletindo sobre a importância da sua atividade artística para a integração da América
Latina, Juan acredita que a influência latina que tem sido vivenciada pela chegada de artistas
da Argentina, do Chile, que trazem toda a riqueza do continente. Essa influência dos vizinhos
possibilita, de acordo com Juan, uma produção artística ‘menos colonialista’.
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Verónica Urzúa Ytier nasceu em Santa Cruz, no Chile. Tem 71 anos e vive há trinta e
oito anos em São Paulo. Veio para o Brasil em mil novecentos e oitenta e três com sua
família. Sua profissão é Designer de Interiores, cuja formação se deu na Universidad Federico
Santa Maria em Valparaíso.
“Penso que ninguém sai da sua terra por muita vontade. Existem os
imigrantes económicos, os políticos e os que saem por razões familiares que
é meu caso, pois me casei com um brasileiro. Quando você deixa o seu país
carrega consigo sua cultura, seus costumes, seu idioma, e tudo isso vai estar
sempre presente na sua vida. Isso faz com que você procure seus
conterrâneos para se sentir mais à vontade e não se isolar. Mas a verdadeira
integração se dá quando se começa a trabalhar e participar no seu novo país.
E isto é o mais importante na sua nova vida porque vai participar da
sociedade. Penso que um país é bom quando dá a oportunidade de trabalhar
e ganhar seu sustento. Visitar um país como turista é diferente da realidade
de viver nele, você só o conhece de verdade quando mora e trabalha nesse
lugar. O mundo é grande, mas nem tanto. As pessoas são todas parecidas,
independentemente de seu tamanho, cor ou sexo. Eu as divido em dois tipos:
as que me tratam bem e as que não me tratam bem. Evidentemente eu me
relaciono com as primeiras e as coisas correm bem. Na condição de
imigrante você tem algumas limitações, mas no Brasil há muito que
aprender, o que não é difícil pois o povo brasileiro é muito solidário. Sendo
o Brasil um país de imigrantes se torna fácil a integração e cada povo que
aqui chega é bem acolhido” (Verónica, 2021).
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No Chile, Verónica já produzia Arte e nos conta que pintava quadros dos morros de
Valparaíso “meu programa de sábado e domingo era pintar ou desenhar e depois pintava”.
Fazia cursos de pintura na escola de Belas Artes de Viña del Mar à noite, e chegou a
participar de uma exposição organizada por essa escola. Nessa época de sua juventude em
Viña del Mar, Veronica pintava à óleo e chegou a vender quadros de sua autoria e receber
encomendas para fazer retratos. Mas sempre trabalhou ligada ao setor de móveis e só nos
últimos anos no Brasil começou a desenvolver o trabalho com murais.
Sobre este trabalho, ela nos conta que este estilo de murais se desenvolveu no Chile no
começo dos anos setenta no período da campanha de Salvador Allende e se estendeu ao longo
do seu governo. Foi nesse período que conheceu as Brigadas Populares Ramona Parra. Suas
referências na produção dos murais remontam à essa época, e Verónica destaca o trabalho de
Alejandro Gonzalez, conhecido como Mono Gonzalez. Os jovens das brigadas usavam cores
fortes e rostos expressivos que chamavam a atenção ao ser vistos de longe. Geralmente um
deles riscava as figuras enquanto os outros iam preenchendo os espaços e o resultado era
muito bonito.
Os murais produzidos por Verónica são por encomenda e geralmente a artista e a
instituição que solicita o trabalho conversam sobre a mensagem que o mural pretende
transmitir. De posse dessas informações, a artista inicia o trabalho de composição das figuras
e cores, em seu ateliê. O projeto é apresentado à instituição que solicitou e, no dia da
elaboração coletiva, o público participa da pintura na parede ou muro, em interação com a
artista.
Os espaços que acolhem seu trabalho são diversos, e ela nos conta que já fez murais
em escolas públicas municipais de São Paulo: EMEF Geraldo Sesso, na Brasilândia, EMEF
Infante dom Henrique, no Pari e EMEF Maria Aparecida Rodrigues Cintra, na Freguesia do
Ó. Realizou o mural “Arte Popular” na Universidade Federal de Santa Catarina para mostrar a
arte muralista chilena. Posteriormente foi convidada para uma atividade no Encontro Nacional
de Estudantes do Serviço Social (ENESS) dessa Universidade onde foi pintado o mural
“Universidade Popular”.
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Imagem 6 - Mural “Por uma escola pública inclusiva” (2016), localizado na EMEF Infante dom
Henrique.
Em Diadema, grande São Paulo, foi realizado um mural na Casa Bete Lobo. Além
disso, produziu murais para a ADURF7 que foram adaptados em outdoors na cidade do Rio de
Janeiro. Uma característica do muralismo realizado pela artista em instituições é a
participação das pessoas, que assumem junto com ela a produção da obra. A artista idealiza,
elabora os desenhos, prepara as cores, mas não pinta o mural sozinha. Quem o produz é o
público e, para ela, esse é o sentido democrático da arte que produz “Porque eu acho, assim, a
arte não deveria estar nos museus, guardada. Tem que estar na rua para que a pessoa que
passar pelo ônibus possa ver”. Sobre o trabalho em escolas, a artista atribui importância tanto
a participação do público quanto à mensagem que é transmitida. E nos conta que certa vez
enviou fotos e vídeos de seu trabalho para suas amigas no Chile e “todas falaram ‘que lindo
(...), mas a tua equipe é maravilhosa’. Mas não é a ‘minha equipe’ era a escola! Então, é o
povo fazendo arte! Entendeu? Isso que é bom! Isso não tem preço!”.
O trabalho mais recente de Verónica em escolas foi o mural Mulheres incríveis8,
realizado na EMEF Maria Aparecida Rodrigues Cintra em dezembro de dois mil e dezenove.
Nele, é rendida homenagem à memória de mulheres ligadas à história e à cultura brasileiras:
7
ADUFRJ é a sigla da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
8
O mural “Mulheres incríveis” fez parte do projeto “Mulheres Incríveis: dez histórias, dez inspirações”,
desenvolvido pela professora Paula Rezende. Esse projeto, que teve por objetivo desconstruir o papel secundário
das mulheres na sociedade, conquistou o 3º lugar no prêmio Professor em Destaque organizado pela Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo no ano de 2020. Fonte: https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/conheca-
os-vencedores-do-premio-educador-em-destaque/
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Dandara, Aqualtune, Dona Ivone Lara, Sonia Guajajara, Mariele Franco, Pagu e Carolina
Maria de Jesus. Sobre a mensagem desse mural, ela revela:
Imagem 7 - Mural “Mulheres Incríveis” (2019), localizado na EMEF Maria Aparecida Rodrigues
Cintra.
Valparaiso encontrou algo inusitado, um mural “com as cores do Brasil e lá estava escrito em
português”.
Diante de toda essa experiência artística e social qual seria, na visão de Verónica, o
papel da arte para a integração da América Latina? Ela reflete que qualquer expressão artística
é integração e ela percebe a relevância do seu trabalho através das encomendas de seus
murais.
“Então é isso que é importante também, porque mais ou menos a minha ideia
é não ficar somente no elemento chileno, sempre ponho um indígena aqui do
Brasil, pode ser indígena do Chile também ou os dois, entende? Algo que
caracteriza o Brasil, uma planta, uma palmeira que é o Brasil. Então a ideia,
não sei se estou equivocada ou não, mas a ideia é parar com essa coisa de
colocar barreira... boliviano, colombiano, é tudo a mesma coisa!” (Verónica,
2021).
Ao término do diálogo, uma sentença revela a relação da artista com o Brasil: “uma
coisa fica clara, esse país é muito criativo, mas é outro estilo e é muito livre, sabe? Tem muita
liberdade, isso é bom”.
Patricia Villaverde tem 48 anos e migrou do Paraguai com a família aos 5, em função
de uma oportunidade de trabalho que seu pai recebeu no Brasil. Sua ocupação atual é
bancária, mas também é professora e já exerceu a docência na Educação Básica. Quando
chegou ao Brasil, sua família foi muito apoiada por uma senhora brasileira, dona Elisa, que é
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A cueca é um estilo de dança muito popular nos países andinos. No Chile, é considerada a dança nacional.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
apaixonada pela cultura paraguaia e acolheu sua família nesse momento inicial: “Dona Elisa
Soares, foi a primeira pessoa que recebeu meu pai e minha mãe aqui em São Paulo, ela foi a
pessoa que indicou as primeiras coisas como... procurar uma casa, procurar escola para os
filhos”.
No Paraguai, Patricia já estava inserida, desde muito pequena, nesse universo
artístico.
Sobre a recepção de seu trabalho no Brasil, ela diz que atualmente percebe que o
público a recebe de forma “calorosa, carinhosa, espirituosa”, e avalia que esse acolhimento só
é possível por conta da Arte.
Essa percepção é interessante pois a artista relata que sofreu situações de xenofobia,
mas que o trabalho artístico possibilita que as pessoas possam conhecer e valorizar seu país e
seus compatriotas e, para ela, “a dança quebra um pouco essa parede”.
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Ela prossegue dando outros exemplos dessa proximidade entre os dois países e cita as
guarânias como exemplo: “Muita gente acha que Índia é uma produção brasileira, ou Meu
Primeiro Amor, né?”. E nos conta um episódio interessante a esse respeito.
“Aquele filme ‘Lula, filho do Brasil o tema musical dele era uma guarânia
paraguaia, e saiu na mídia falando filme ‘Lula filho do Brasil’ com a música
popular brasileira ‘Meu Primeiro Amor’ e eu ouvi aquilo e pensei ‘Gente, eu
não acredito!’, vamos corrigir isso! A gente fez um texto para mandar para a
produção [do programa], falando que aquela música era uma guarânia, que
se chama Lejania. O pessoal se retratou e falou "pedimos desculpas, porque
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domingo passado falamos que a música Meu Primeiro Amor é uma música
popular brasileira e não, essa música é do Hermínio Gimenez, paraguaio, e a
canção se chama Lejania. (Patricia, 2021).
‘Eu entrei no grupo Alma Guarani, em 96, 97, mas eles já existiam. Então o
grupo Alma Guarani que não era com esse nome, se formou na igreja, ele
tinha outro nome, tinha outras pessoas como todo grupo ele vai mudando,
pessoas vão saindo, vão entrando pessoas... eu entrei em 97 com outro nome
também, outra professora, depois foi indo. A professora saiu, teve outra que
faleceu por problema de saúde e foi em 2003 que eu acabei assumindo a
liderança porque não tinha ninguém e a gente ficou todo mundo "e aí, o que
a gente vai fazer? Vai continuar..." e eu como amei muito foi uma coisa
natural” (Patricia, 2021).
Sobre os locais em que apresenta seu trabalho, destaca-se a Missão Paz, onde o grupo
nasceu, onde o grupo Alma Guarani é convidado a participar das atividades culturais, como a
festa da padroeira do Chile, e as festas do Peru. Nessas ocasiões, o público é composto
majoritariamente por comunidades imigrantes, como peruanos, os chilenos, os colombianos,
bolivianos. Outros locais onde o grupo se apresenta é o Museu da Imigração, que organiza
anualmente a Festa do Imigrante, além de outros eventos culturais na cidade de São Paulo e
fora da cidade de São Paulo. De acordo com Patricia, nesses espaços o público é composto
majoritariamente por brasileiros. Outro elemento ressaltado na narrativa é que, muitas vezes,
o público não os reconhece como imigrantes, “eles acham muitas vezes que nós somos
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
brasileiros e estamos representando um outro país” e ela acredita que isso se deve ao fato de
os participantes serem fluentes em Língua Portuguesa.
“A roupa (...) mãos artesãs teceram, porque tanto a blusa dos meninos,
a blusa das meninas são todas artesanais e feitas manualmente, então tem
história de mãos artesãs, mãos paraguaias sofridas (...) e nós estamos aqui
para mostrar. A manta que as meninas levam, preta, porque preto? Luto por
uma guerra que aconteceu, pelos filhos, pelos maridos, pelos pais que se
foram, elas carregam aquele manto preto, a mantilha. Há outra manta
também, feita manualmente, de lã crua de ovelha e que mostramos a época
do frio, do sofrimento... da mulher que teve que levantar um país. E essa
mulher, tem muito historiador que diz, são heroínas, invisíveis. Todo mundo
fala de Mariscal Lopez, mas ninguém fala daquela mulher que ficou sozinha
e teve que levantar sozinha um país nas costas, trabalhando, sendo mãe,
sendo pai. Porque ficaram mais mulheres que homens, e foram elas que
levantaram, reconstruíram o país” (Patricia, 2021).
“O cântaro que é uma moringa de barro, e tem água, era para que? Quando
tem as festas populares dos santos padroeiros, depois dos atos religiosos
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
saem as meninas e dançam com aquele cântaro, mas o que significa aquele
cântaro com água? Depois do ato religioso os romeiros e tropeiros ficam
com sede, então as moças, as mulheres oferecem água para essas pessoas
que estão com sede, então a gente retrata várias coisas, desde festas sazonais,
até o cotidiano, o dia a dia, os homens na lida para colher a cana de açúcar e
eles vão com aquele machado, então tem danças que eles [os bailarinos]
fazem com o machado. Então é o dia a dia principalmente do homem e da
mulher do campo” (Patricia, 2021).
Por essa razão, para Patricia “a dança é vida, (...) ela expressa vida e o que ela faz é
unir sem falar. A dança é capaz de comunicar, de informar, de transformar, de unir, sempre.
Acho que não tem fronteiras, não existe tempo, a dança é capaz de fazer isso”. O caráter
formativo e educativo é, para ela, o faz com que essa linguagem artística integre o artista à
comunidade.
ENTREVISTADOS
Aleksey Benavides. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo. Dia 2
de fevereiro de 2021.
Juan Cusicanki. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo. Dia 4 de
fevereiro de 2021.
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Verónica Urzúa Ytier. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo.
Dia 18 de fevereiro de 2021
Patricia Villaverde. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo. Dia
20 de fevereiro de 2021.
Referências
INTRODUÇÃO
Há 50 anos, o artigo Why have there been no great women artists?, de Linda Nochlin,
publicado na revista ArtNews, questionava de modo incisivo “por que não existiram grandes
artistas mulheres”? Visto como seminal, o ensaio expôs a questão que envolve o papel
atribuído ao feminino na história da arte, confirmou a lacuna nos estudos sobre a atuação de
mulheres artistas e abriu portas para nova abordagem historiográfica.
Não por acaso, os anos de 1970 marcaram mudanças na cena mundial, especialmente a
partir da ação de movimentos sociais que reivindicaram o direito à vida. No Brasil, assim
como em outros países sul-americanos, a ousadia anti-hieráquica e igualitária deu prioridade
ao desafio frente aos regimes opressores e à estrutura social – o que abafou outras demandas,
entre elas, as de gênero e identitárias.
Apesar dessa condição, o número de mulheres artistas expandiu-se ao longo das
décadas seguintes e elas ocuparam lugares centrais na produção e na reflexão sobre o
contemporâneo. Já na virada do século, a quebra das metanarrativas ocasionou a busca por
referências na nova ordem mundial que se instaurava. Os grupos sociais, sexuais, religiosos e
étnicos outrora negligenciados – isto porque todos foram invisibilizados pela tradição
“patriarcal, branca e europeizada” - eclodiram com grande força. A pergunta provocadora de
Nochlin despertou sentidos numa geração de mulheres, artistas e pesquisadoras que não
menosprezaram ou ressentiram-se das discussões feministas. Ao contrário, elas intensificaram
o debate e surgiram novas complexidades inerente ao discurso sobre o feminino. Evidenciam-
se pontos nevrálgicos entre feminismo e as discussões raciais dentro do movimento.
Quando a décima segunda edição da Bienal do Mercosul, com curadoria da argentina
Andrea Giunta e equipe integrada pela polonesa Dorota Maria Biczel e pelos brasileiros Igor
Simões e Fabiana Lopes, adotou como temática Feminismo(s) Visualidades, Ações e Afetos
respondeu, de certo modo, a pleitos atuais e teve respaldo nesse contexto que vem desde os
1
Doutora em Artes Visuais pela ECA USP (2008) e pós-doutorado pela UNESP (2018). Atualmente, é
especialista em cooperação e extensão universitária do MAC USP, membro da ABCA e pesquisadora do Centro
Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes. Autora do livro Schenberg: Crítica e Criação
(EDUSP, 2011). E-mail: [email protected].
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anos de 1970. Como pesquisadora Giunta desenvolveu estudos de gênero desde meados dos
anos de 1990, incluindo o enfoque feminista a partir da exposição Mulheres Radicais: Arte
Latino-americana, 1960-1985, exibida no Hammer Museum (2010), no Brooklyn Museum
(2017) e na Pinacoteca do Estado de São Paulo (2018).
A inflexão para a abordagem crítica estava também presente na temática O Triângulo
Atlântico da Bienal anterior, com curadoria de Alfons Hug, que escolheu refletir sobre a
escravidão e o apagamento sofrido pelas culturas africanas e indígenas. Nesse itinerário, o
curador levantou conexões entre Brasil e África – algo que igualmente surge como mote nas
produções contemporâneas preocupadas com ancestralidade e representatividade. Assim
sendo, a Bienal de 2020 apresentava outra vertente da arte atual – a produção de mulheres.
E aqui enfatizamos o ponto de convergência entre as duas edições da Bienal: a mulher
negra. O que nos diz essa produção feita por artistas negras ou mestiças? Quais suas
preocupações e modo de fazer? Essas mulheres artistas propõem redes colaborativas? Longe
de esgotarmos todas as potencialidades e transversalidades desse viés da produção
contemporânea, propõe-se jogar luzes sobre a história que envolve a organização da Bienal
12, em 2020, seus critérios curatoriais, suas condições de execução, mas, sobretudo, sobre o
discurso e a escolha de artistas que nos seus repertórios trazem as memórias e as formas de
resistência da ancestralidade negra.
Nessa seara, estão artistas, tais como: Rosana Paulino – uma das grandes
homenageadas da edição; as brasileiras Aline Motta, Renata Felinto, Janaina Barros, Jota
Mombaça, Musa Michelle Matiuzzi e Priscila Rezende; mas também, Rahima Gambo
(Nigéria), Glady Kalichini (Zâmbia), Gwladys Gambie (Martinica) e Joiri Minaya (EUA).
Todas essas artistas têm em comum a tentativa de reescrever as narrativas tradicionais e de
descolonizar o pensamento tendo a arte como instrumental. Reunidas na mesma plataforma,
suas investigações repercutem no circuito internacional das artes por intermédio de grandes
exposições – tal como a Bienal do Mercosul – e motivam novas proposições centradas no
feminino e, particularmente na condição da mulher negra no Brasil e no mundo.
Nas últimas décadas, têm ganhado densidade os estudos dedicados à história das
exposições. Algumas mostras consagradas receberam novas montagens e outras voltaram ao
debate público, explicitando, principalmente, o papel das instituições na legitimação de
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
crítica de arte Radha Abramo. Já fechando o ciclo, em 2009, organizou-se a mostra Corpos
Estranhos (em duas edições, no Memorial da América Latina e no MAC USP). Composta por
obras – vídeo, performances, fotografias e instalações – das artistas Laura Lima (Brasil), Pilar
Albarracín (Espanha) e Regina José Galindo (Guatemala). Em comum, as três artistas
apresentavam trabalhos com forte viés psicológico, revelado através da exposição de seus
próprios corpos ou de outrem.
Mais recentemente, a programação do Museu de Arte de São Paulo (MASP) tem dado
continuidade às exposições que tratam sobre histórias (Histórias da infância, em
2016, Histórias da sexualidade, em 2017, Histórias afro-atlânticas, em 2018, e Histórias da
dança, em 2020). Nessa programação, destaca-se Histórias das mulheres, histórias feministas,
em 2019, que revelou criadoras presentes no acervo permanente do século 1 ao 19. Mencione-
se ainda as individuais, como Tarsila, popular (2019) e Beatriz Milhazes: avenida Paulista
(2020-2021).
São essas ações e outras não descritas neste texto que proporcionaram o escopo da 12ª.
edição da Bienal do Mercosul – que teve um trabalho processual iniciado em 2018, através de
seminários e eventos de preparação e que em 2020, contava com uma seleção de artista
vindos da América Latina (Brasil, Argentina, Chile, Peru, Equador, Bolívia, Colômbia,
Guatemala e República Dominicana), da América do Norte (EUA e Canadá), Europa (Polônia
e Espanha), Ásia (Japão e China) e África (Nigéria e Zâmbia). Dos artistas participantes, 80%
eram mulheres e entre os objetivos da mostra estava o de ser uma “zona de intercâmbios”.
Prevista para abril/2020, a 12ª. A Bienal do Mercosul encontrou em seu caminho a crise
sanitária ocasionada pelo novo coronavírus – era março/2020, quando a Organização Mundial
de Saúde (OMS) decretou o estado de pandemia.
Naquelas circunstâncias, era impensável a organização de um evento artístico tal como
a Bienal. A solução encontrada foi levar todas as obras e ações para o ambiente virtual – a
primeira bienal em formato digital do planeta, como asseguraram alguns críticos e jornalistas.
A motivação do tema Femininos (s), Visualidades, Ações e Afetos se colocou como ato de
resiliência. Curadores e artistas tiveram que pensar juntos numa nova forma de exibição das
obras.
Originalmente, cerca de 30% dos trabalhos eram instalações e performances que
exigiriam a interação do público – esses trabalhos foram suspensos. Outros recursos de
fruição foram empregados, entre eles, a subversão do binômio espaço/tempo. O local de
fruição não era tão somente Porto Alegre e, sim o ambiente virtual, onde se encontravam
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AS ARTISTAS E AS OBRAS
Sob a eleição do recorte para nosso texto, temos onze artistas que em seus trabalhos
focam atenções sobre uma nova visualidade que envolve ancestralidade, afetos e femininos,
sendo sete brasileiras e quatro de nacionalidades distintas2. Optamos por trazer ao presente
texto, a ênfase em algumas dessas artistas e suas respectivas proposições para o evento. Não
caberia aqui a análise sobre cada obra e artista, mas, confessemos: a tentação é grande! São
trabalhos com diversas camadas de leituras e desdobramentos reflexivos. Fiquemos a meio
caminho do risco, abrindo, então, espaços para alguns deles que nos apoiam no entendimento
do repertório e do “fazer artístico” sustentado por conceitos afrocentrados.
Na 12ª Bienal, Rosana Paulino (São Paulo, 1967) tem um lugar destacado: oito
trabalhos foram expostos de modo virtual, são eles: Série carapaça de
proteção (2003), Parede da memória (1994-2015), Série tecelã (2013-2014), As filhas de
Eva (2014), ¿Historia natural? (2016), Paraíso tropical (2017), A geometria à brasileira
chega ao paraíso tropical – azul (2017-2018) e A geometria à brasileira chega ao paraíso
tropical – amarelo (2017-2018). Mais uma vez, o exercício de selecionar os trabalhos para a
discussão se faz necessário, escolhemos para comentários cinco deles.
Em Parede da memória (1994-2015), a artista monta um “álbum de família” impresso
sobre patuás. Aos espectadores coloca-se uma árvore genealógica – uma tentativa de
reconstruir sua identidade a partir da ancestralidade. Aos afrodescendentes, põe-se uma
questão: a diáspora rompe com os laços familiares e a reconstrução dessa linha condutora
torna-se relevante para esse indivíduo. Nesse mural, a linhagem ancestral constrói a
identidade negra de grande parte da população brasileira.
2
Aline Motta, Rosana Paulino, Renata Felinto, Janaina Barros, Jota Mombaça, Musa Michelle Matiuzzi e
Priscila Rezende (Brasil); Rahima Gambo (Nigéria), Glady Kalichini (Zâmbia), Gwladys Gambie (Martinica) e
Joiri Minaya (EUA).
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Na série As filhas de Eva (2014), a artista emprega técnicas mistas sobre papel azul
para recriar imagens de africanos e sombras que evocam os pretos novos (escravos recém-
chegados que pereciam face aos maus tratos da viagem no navio negreiro). Essas imagens
aludem a flora e a fauna Brasilis, colocando o negro “como o natural da terra”, ou seja, nada
mais do que um elemento da fauna exótica (dele se retira a humanidade). O título do trabalho
nos faz lembrar que todas as mulheres, inclusive as negras, são “filhas de Eva”– a primeira a
provar do fruto do saber e, por consequência, a ser expulsa do Paraíso.
¿Historia natural? (2016) é um livro de artista com 12 pranchas. Faz referência aos
volumes enciclopédicos – reconhecidos pela tentativa de ordenação dos reinos animal e
vegetal. Paulino dedica-se à pesquisa das teorias da classificação das raças; subverte e sutura
imagens e argumentos, mostrando o avesso da razão colonial. Através da gravura e das
colagens, a artista oferece imagens borradas, sujas e suturadas como se nos mostrasse que
aquela história, legitimada pelo discurso moral, religioso e pseudocientífico, é falsa; tornou-se
grande trapaça.
Já em A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – azul (2017-2018) e A
geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – amarelo (2017-2018) um cânone da
história da arte é questionado: que “vocação à geometria” é essa que nos conta o
abstracionismo e o concretismo nacional? Nesse espectro de indagação, os dois trabalhos
trazem imagens da exuberante natureza tropical e da iconografia de homens e mulheres
negros do século 19, em geral, em preto e branco, com interferências de figuras geométricas
em cores fortes – essa associação torna-se inquietante pelo contraste visual. No fundo,
explicita a ironia de um país que se pretende “moderno”, mas que excluiu sua natureza e sua
história.
Note-se que uma das lives mais concorridas do evento ocorreu no mês de julho de
2020, com Rosana Paulino e o curador do programa educativo Igor Simões. Nessa ocasião,
temas, tais como, a necessidade de se usar o termo “arte contemporânea afro-brasileira” e o
intercâmbio com artistas latino-americanas que tratam assuntos semelhantes em sua poética
são enfrentados pelo curador e pela artista de modo franco e prospectivo.
Em um dos seus trabalhos anteriores, Renata Felinto (São Paulo, 1978) nos mostra
como os territórios são racializados na cidade de São Paulo – transformam-se em verdadeiras
fronteiras intangíveis. No vídeo performance White face and blonde hair (2012), realizado na
Rua Oscar Freire, ela caminha com o rosto pintado de branco, trajes “à lá patricinha” e uma
peruca loira. Sua presença ali provoca a perplexidade e o desconforto dos transeuntes – o
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preconceito tão velado transparece em seus rostos com tensão. Na 12ª Bienal, Felinto
apresentou Danço na terra em que piso (2014). Ela dançou por sete locais públicos da cidade
de São Paulo, alguns pontos históricos e outros ligados às suas memórias. Para cada lugar,
uma música (uma paisagem sonora) – a seleção considerou a letra da música, questões
históricas e afetos – nessa proposta, o corpo da mulher negra ocupa espaços, exercendo seu
devido pertencimento.
De ascendência nigeriana, Rahima Gambo (Londres, 1986) desenvolve seus projetos a
partir Abuja, onde fixou residência. Dona de múltiplas linguagens, entre elas, a ilustração, a
fotografia, o texto, o vídeo, a escultura e a instalação, seu projeto mais conhecido é Education
is Forbidden (2015-2017). Nesse trabalho, Gambo abordou a luta de meninas que tentam
obter educação no Nordeste da Nigéria e explorou como é ser aluna em meio a dominação do
Boko Haram. O nome do grupo radical islâmico, em livre tradução, diz que “a educação
ocidental ou não-islâmica é pecado” – confirmando o fundamentalismo religioso. Como
estratégia de ação, o grupo terrorista sequestra mulheres, comete assassinatos e ataca
povoados. Na série Tatsuniya holiday is coming (2017), apresentada na 12ª Bienal, a artista
continua conceitualmente a série Education is Forbidden, usando imagens estáticas e
instalações para representar as jovens alunas da escola Shehu Sanda Kyarimi, em Maiduguri.
A artista propôs, em princípio, uma foto-documentação das estudantes, porém, aos poucos, a
ação tornou-se desdobramento lúdico com narrativas compartilhadas entre as meninas e a
artista – juntas elas reconstituíram brincadeiras de infâncias e passeios pelo parque local.
Sendo promessa de renovação das artes visuais na Martinica, nossa última artista é
Gwladys Gambie (Fort-de-France, 1988). Ela questiona a condição dos corpos das mulheres
negras e explora sua descolonização, a partir da prática do desenho e da escultura. Para a
Bienal 12, Gambie expandiu a série de colagens The birth of Manman Chadwon (2018), uma
figura de sua mitologia pessoal inspirada em Manman Dlo, a deusa do oceano na cultura afro-
caribenha. O significado da palavra chadwon, em “creole”, também remete a ouriço do mar,
uma referência recorrente no trabalho da artista. Gambie evoca imagens que usam o corpo
para contar sobre identidade, gênero e resistência.
Ao fim e ao cabo, essas mulheres artistas tratam sobre suas memórias carregadas de
ancestralidade, de questões que envolvem a discussão sobre a violência, o racismo e o gênero.
Os anseios e as preocupações desse grupo social pautam os trabalhos dessas artistas de modo
sensível e denunciador. O uso dos objetos domésticos do universo feminino e as referências
ao corpo da mulher transformam-se em matéria-prima para a reflexão.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Bienal 12: um espaço de intercâmbios. Revista USP. São
Paulo, n. 126, p. 112-124, jul./ago./set. 2020.
KIYOMURA, Leila. Quando a arte das mulheres desafia a covid-19. Jornal da USP.
Disponível em https://jornal.usp.br/cultura/quando-a-arte-das-mulheres-desafia-a-covid-19/.
Acesso 31 mar. 2021.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. A reescrita da história. Jornal da USP. 16 out. 2020.
Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/a-reescrita-da-historia/. Acesso em 31 mar. 2020.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. O jogo da memória. Jornal da USP. 20 dez. 2019.
Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/o-jogo-da-memoria/. Acesso em 11 ago. 2020.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. A “Onda negra”: arte visual afro-brasileira, legitimação e
circulação. Jornal da USP. 05 out. 2018. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/a-onda-
negra-arte-visual-afro-brasileira-legitimacao-e-circulacao/. Acesso em 13 nov. 2018.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Mulheres, negras e perigosas. Jornal da USP. 18 dez.
2017. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/mulheres-negras-e-perigosas/. Acesso em 11
ago. 2020.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Memória da Pele – o devir da arte contemporânea afro-
brasileira. Arte e Cultura da América Latina. São Paulo: Terceira Margem. Vol. XXVIII, 2º.
Semestre, 2012, p.p. 35-42.
VIANA, Janaina Barros. A invisível luz que projeta a sombra do agora: gênero, artefato e
epistemologias na arte contemporânea de autoria negra. 2018. Tese (Doutorado). Programa
de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo.
São Paulo: PGEHA USP, 2018.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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INTRODUÇÃO
1
Este texto é uma síntese de parte do relatório de pós-doutorado em Artes, desenvolvido junto ao Programa de
Pós-graduação do Instituto de Artes da Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP – SP).
2
Docente Adjunta do Curso de Artes Visuais e do Mestrado Profissional em Artes da Faculdade de Artes, Letras
e Comunicação da Universidade Fedral de Mato Grosso do Sul (FAALC- UFMS) e coordenadora do Projeto de
Pesquisa “Arte da América Latina: habitando a decolonialidade em arte” E-mail: [email protected]
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à convocatória, como também a outros convites formulados pelo Conselho de Arte e Cultura3
(CAC) da Fundação Bienal de São Paulo (FBSP) Estas conferências foram datilografadas e
compiladas pela FBSP, e estão apresentadas em dois volumes presentes no acervo do Arquivo
Histórico Wanda Svevo da FBSP. Este artigo comenta estas conferências apresentadas ao
longo do Simpósio e, portanto, faz uma análise desses discursos.
Como procedimento metodológico para a construção deste texto e apresentação das
análises, assumi a decisão de agrupar os conferencistas pela tônica discursiva predominante e,
portanto, não sigo a sequência das apresentações da programação desse evento científico, feita
essa escolha procedimental cabe a ressalva de que algumas conferências permeiam mais de
uma tônica durante a exposição de suas teses, essa decisão se justifica por julgar que o
agrupamento seguindo a tônica central nas conferências favorece a percepção do que
representou esse evento científico. Durante o Simpósio observou-se cinco tônicas
predominantes e as apresento na seguinte ordem: primeiro as discussões sobre o conceito de
América Latina; em seguida a procura de uma identidade plástica para a arte da
América Latina e dentro desse tema analisaremos as conferências que relacionaram essa
identidade exatamente atrelada ao tema da mostra, ou seja, Mitos e Magia na arte. Terceira
tônica entre as conferências foi a apresentação do exercício da crítica de arte latino-
americana, que parece cumprir o papel de responder a seguinte indagação: existe uma crítica
de arte latino-americana?
Como quarta tônica identificada reuno conferencistas que se dedicaram a defender
abordagens metodológicas para as análises das obras. E por fim, como quinto tônica
predominante agrupo conferencistas discutiram como questões centrais em suas falas a
abordagem de aspectos específicos da cultura latino-americana, como: as africanidades,
indianidade e a arte popular, aspectos estes que nos distanciam dos ex-colonizadores,
portanto, podemos dizer que esses conferencistas ao tecerem estas abordagens estão aliados à
proposta de entendimento da arte e da cultura de modo anticolonial e antiimperialista.
3
Conselho de Arte e Cultura (CAC) foi um colegiado que se formou em 1976 na FBSP e ganhou maiores
poderes deliberativos à medida que o mecenas Francisco Matarazzo Sobrinho se afastou da presidência
instituição, o que ocorreu em 1977, depois de cerca de dois anos de ensaios para isso. Coube ao CAC elaborar o
regulamento da I Bienal Latino-Americana, discutir as representações, o CAC foi constituído por artistas e
críticos de arte, entre eles: Jacob Klintowitz, Leopoldo Raimo, Marc Berkowitz, Maria Bonomi, Yolanda
Mahalyi, Juan Acha, Alberto Beuttenmüller, Carlos Von Schmidt e Olívio Tavares de Araújo.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
milhões, marca que superamos. Ainda movido pela utopia, Darcy questionou: “Estaremos
estruturados em uma confederação? Existiremos no mundo como alguma coisa respeitável
como a Europa, por exemplo?” E vem a dúvida: “Ou seremos outra vez povo de segundaclasse,
um conjunto de povinhos que parece que são novos...” Depois de invocar a utopia, por um
momento Darcy reclamou indignado com o discurso aleatório de que América Latina é uma
área nova. Afirmou: “Não é não, é velhíssima!” Ele concluiu que temos tudo, indagou “por
que não sermos povos que merecem influir?” E conclui afirmando: “Somos o melhor resumo
da humanidade, das raças humanas, dos jeitos de ser, então a América Latina meus caros
amigos é uma promessa boa, vale a pena votar nela,vale a pena jogar nessa promessa.”
Outra conferência na qual a tônica predominante é o conceito de América Latina e em
especial da “urbe latino-americana” foi a realizada pelo arquiteto Oscar Olea Figueroa
(1930-2009), cuja atuação profissional principal foi a docência na Facultad de Arquitectura
da Universid Nacional Autónoma do México (UNAM) e da Universidad Iberoamericana.
Oscar Olea refletiu sobre as mudanças urbanas ocorridas desde o final da década de 1950 na
América Latina, para indagar que América Latina é essa após quase trinta anos de forte êxodo
rural.
Olea nos trouxe reflexões sobre o êxodo rural que representou um trânsito muito
expressivo de humanos para as cidades latino-americanas, êxodo que percebia como
irreversível, tanto pela maginitude como pela descontinuidade com o passado, uma vez que o
processo de êxodo das pessoas que perderam vínculos de afeto com os lugares, com as praças,
com as fazendas, com os hábitos e pessoas do campo. Chamou esse fenômeno da “mais vasta
transformação que conhece na história: números astronômicos se registram e incrementam a
demografia nas cidades4”, falou sobre o esgotamento eventualmente rápido das fontes de
energia em uso.
Oscar Olea apresentou uma conferência com pontos altos, como a sua análise das
mudanças na urbe, mas em minha opinião, a conferência também mostrou fragilidades, como
as apontadas acima. Nota-se certa preferência do crítico pela arte até os pós-impressionistas,
que citou durante a sua conferência,em tom de saudosismo.
4
OLEA,O. El Arte de la Civilización Urbana em Latinoamérica. In: Simpósio da I Bienal Latino- Americana de
São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. Nesta análise todas
as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente
informado.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
consigo mesmo. E prosseguiu “Se a religião é culto a este sobrenatural, a magia irá envolvê-lo
com práticas secretas capazes de esconjurar os espíritos maléficos ou benéficos. Daí porque
a psicologia vê nas práticas mágicas a sombra do inconsciente”.
A crítica prosseguiu relacionando o sobrenatural, o mito e o símbolo com a arte, uma
vez que defendeu a tese de que esta é a mais completa forma de comunicação humana, pois
abrange a pessoa individualmente e também de maneira coletiva, registrando seus mitos de
origem e seus mitos locais. Portanto, segundo Araújo, a arte é uma manifestação identitária, ou
seja, reveladora da identidade de quem a elabora, mostra o seu lugar além de identificá-lo.
Se arte é identitária, como impor padrões e modelos? Adalice Araújo passou a abordar
a implantação de modelos desde a chegada da Missão Artística Francesa, em 1816, para
fundar no Brasil uma academia de arte, objetivo que se realizou em 1826 com os preceitos
neoclássicos, onde o ensino de arte era baseado na cópia dos grandes mestres, e esses eram
todos europeus.
O artista plástico, poeta, crítico de arte e curador argentino Carlos Esparco dedicou a
sua fala para trazer outra definição de mito e afirmou que mito é o modo de contar, declarou:
“Um mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. Nesse nível, o mito não seria um
objeto, um conceito ou uma ideia,mas um modo de significação, uma forma5”.
Carlos Espartaco dedicou-se aos estudos da linguagem, abraçou a fenomenologia de
Merleau Ponty, passando por Martin Heidegger e Charles Pierce, todos apareceram refletidos
em suas reflexões durante a conferência intitulada “El mito del avestruz”.
Para desenvolver a conferência, Espartaco escolheu como ponto de partidao avestruz, que
no pampa da América do Sul recebe o nome de Ñandú e afirmou que se deixarmos de lado o
seu significado na zoologia o avestruz será somente uma palavra, mas se considerarmos o
modo de ser do animal, ao qual é atribuído a capacidade de se colocar fora de perigo ao
esconder a sua cabeça na terra, avestruz se torna um mito, representativo de quem se esconde.
O historiador e crítico de arte mexicano Jorge Alberto Manrique (1936-2016)
apresentou neste Simpósio a conferência intitulada “Uma reflexão sobre a presença do mito na
arte latino-americana”6, o crítico mexicano iniciou conceituando mito como a maneira de
relacionar-se com a realidade vivida, mito como uma criação de uma nova realidade que
5
ESPARTACO, C. El mito del avestruz. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São
Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. Nesta análise todas as colocações entre
aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado.
6
MANRIQUE, J. A. Una Reflexión sobre la presencia del mito en el arte Latinoamericano. In: Simpósio da I
Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p. Tradução da
autora. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação
diferente será devidamente informado.
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49
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
influencia a vida e as ações dos membros da sociedade que o criam. Portanto, essa definição
distancia ao máximo mito do significado de inverdade, que segundo Manrique, só com olhar
estrangeiro é que mito poderia ser entendido desta maneira e permeado por “[...] coordenadas
lógicas e racionais de uma civilização que alcança mais em razão e menos na sua
possibilidade de sentir”.
Manrique abordou a riqueza mitológica dos povos ameríndios, sobre isso afirmou que
“Na América a atitude mítica é eminentemente própria, no sentido de ser uma atitude normal
nas sociedades anteriores à Conquista ou à predominância da cultura ocidental”. O crítico é
muito feliz em suas definições sobre o mito e na sua observação sobre a forte presença entre
os povos ameríndios, porém empregou o termo conquista que é um termo contestável, uma
vez que, carrega uma visãoeurocêntrica da história, pois o sujeito nesta narrativa é o europeu,
e a América Latina é o objeto desta conquista, seria mais apropriada a expressão encontro
entre dois mundos, o mundo europeu e o ameríndio7.
O crítico mexicano afirmou que a conquista da América, ou seja, a ocidentalização é a
presença do mundo da razão na América Latina, o mundo da razão técnica e prática, neste
momento citou o artista mexicano José Clemente Orozco (1883-1949) que representou a
conquista como um robô de ferro. O crítico m salientou a contribuição dos africanos
“transplantados através do mar” somando camadas míticas à América Latina, contribuição
daqueles que chama “de outros irmãos da natureza”. Por diversas vezes, Manrinque salientou
o caráter coletivo do mito, pois ele é criado e recriado no âmbito da coletividade dos
indivíduos da sociedade,
Marianne Tolentino, crítica de arte atuante na República Dominicana, discorreu sobre
as condicionantes da arte naquele país na primeira parte de sua conferência, intitulada
“Problemas y Esperanzas del Arte Dominicano de Hoy”. Em resumo, nos mostrou uma
realidade de um ambiente cultural conservador e que oferecia poucas oportunidades ao artista.
Por essas dificuldades, segundo ela, havia a tendência do artista sair do país e desenvolver
toda ou quase toda sua carreira no exterior, além da necessidade para o artista que
permanecesse no país, de trabalhar em outro ofício para provimento da sua vida.
Durante a conferência, Marianne de Tolentino salientou as condições incipientes do
circuito das artes mais graves ainda no interior do país quando comparado a capital, salientou
também que a formação profissional atravessa dificuldades e insuficiências, mencionou que
7
Sobre esse questionamento da expressão “descobrimento da América” ver o trabalho de Edmundo O´Gorman,
editado em português com o título “A invenção da América”, salienta-se que tal trabalho teve a sua primeira
edição editada no México em 1958. O’GORMAN, E. A invenção da América. Reflexão a respeito da estrutura
histórica do novo mundo e do sentido doseu devir. São Paulo: Editora Unesp, 1992.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
8
TOLENTINO,M. Problemas y Esperanzas del Arte Dominicano de Hoy. In: Simpósio da I Bienal Latino-
Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução nossa. Nesta
análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será
devidamente informado.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
da colonização europeia da América Latina. O europeu entrou em contato com o outro com
noções diversas às suas, dentre elas esta, referente ao tempo, não compreendeu e a inferiorizou,
foi um dos motivos para a desqualificação dos povos ameríndios rotulados sob o título
homogeneizador de “índio”, inferiorizando-os e privando as diferentes etnias de viverem as
suas culturas e cidadanias.
O literato argentino Ernesto Sábato (1911-2011) apresentou a conferência intitulada
“Anotaciones sobre la crisis occidental y la desmitificación”9 neste Simpósio, que se
constituiu em um elogio ao pensamento mágico. O conferencista iniciou o seu discurso
afirmando que o mundo está sob a pressão da mentalidade dos tempos modernos, regida pela
razão pura, pelo positivismo e pela recusa ao pensamento mágico. Constatou que esta
mentalidade nos jogou na crise mais grave da história e que os países em desenvolvimento
deveriam parar e avaliar as virtudes e os defeitos deste “progresso”. Apelou para a retomada
da unidade perdida e a revitalização da sabedoria existencial das culturas latino-americanas
que a arrogância europeia taxou de “primitivas”. Sábato admitiu que se considera um renegado
da ciência que buscou na literatura de ficção o homem concreto, lógico e mitopoiético,
advertiu que suas aproximações são apaixonadas e discutíveis, mas, por isso mesmo férteis.
Oreste Bruneto apresentou no simpósio vinculado à I Bienal Latino- Americana, em
nome da dupla formada com Carmen Lariño10, a conferência intitulada “Sant-O-Matic”. O
discurso centrou-se em refletir sobre o encontro com os “outros”, abordando o “outro
comercial” e o outro representado pelos ritos religiosos gerados pelas crenças, e isso inclui a
utilização das crenças e seus correspondentes ritos pelo mercado, criando mercadorias para o
comércio. O conferencista prosseguiu afirmando que na América Latina, como em todas as
partes do mundo onde o povo foi invadido por outro, gerou-se sincretismos. A conferência
passou a abordar uma obra de autoria dos palestrantes, da qual infelizmente não foi
encontrada imagem, que aborda essa questão, onde há objetos de culto à venda, tais como velas
adornadas, espigas, imagens de santos populares, e demais santos tradicionais. A proposta dos
artistas é evidenciar o comércio associado aos ritos religiosos, mas também evidenciar uma
hierarquização presente nas religiões.
O conferencista destacou ainda a intenção de trabalhar em sua obra com a redundância,
a repetição como um traço comum aos discursos, ao comercial e ao ritual religioso e assim
9 SÁBATO, E. Anotaciones sobre la crisis occidental y la desmitificación. In: Simpósio da I Bienal Latino-
Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. Nesta
análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será
devidamente informado.
10
Não foi possível conseguir dados biográficos dos conferencistas, apesar dos esforços empreendidos para tal.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
O crítico brasileiro Jacob Klintowitz (Porto Alegre, 1941) atuou no Conselho Arte e
Cultura (CAC) da Fundação Bienal durante a germinação da ideia e a organização da I Bienal
Latino-Americana de São Paulo, Klintowitz defendeu que o tema “Mitos e Magia” não
poderia ficar restrito ao passado e, portanto, solicitava que se pensasse nos mitos
contemporâneos, e passou a defender o futebol como mito latino-americano
contemporâneo.Em sua conferência durante o Simpósio intitulada “A Implantação de um
modelo alienígena exótico e outras questões pertinentes: A seleção Brasileira de Futebol
1978”, o crítico abordou o futebol como mito e a seleção de 78 como metáfora da questão
central que caracteriza a cultura latino-americana. Mas que seleção foi essa? A copa de 1978
não foi ganha pela seleção brasileira mesmo não tendo perdido nenhum jogo, mas a seleção
11
WHITELOW, G. Magia y Creación Artística. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II.
São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. Nesta análise todas as colocações entre
aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
brasileira perdeu no saldo de gols, ou seja, a seleção perdeu na regra estipulada. Estipulado por
quem? Estipulada por qual estrutura de poder? Estipulada pelo que o crítico chama de
“modelo alienígena exótico”?
Mas o que significa isso? Para onde caminhou o pensamento de Jacob Klintowitz nesta
conferência? O crítico prosseguiu informando que os jogadores da seleção de 78 foram
“aqueles capazes de funcionar como bons elementos. Isto é bem comportados, obedientes,
executantes de um plano geral”12 e concluiu “Nesta seleção, como numa sociedade industrial,
o importante era o “planejamento” [...] Lembre-se, ao homem cabe apenas ser um elemento
que produz e consome. E obedece ao plano”.
Portanto, a Seleção de 78, formada por maioria de jogadores obedientes era anti-
criativa, era contra a livre expressão, era “exatamente o contrário do pensamento divergente,
da fluência e da flexibilidade”. O crítico prosseguiu “nada de drible e iniciativa, nada dessa
habilidade incontrolável. Além de exercícios de musculação na tentativa de alterar o próprio
corpo (aproximando-o do modelo civilizado, o modelo europeu)”. E o crítico apontou que esta
seleção passou a ser “um corpo vazio no qual pudesse insuflar conteúdo” ao sabor da
publicidade, ao sabor do mercado, trata-se, portanto de um jogo de poder, onde os poderosos
sempre procuram influir na expressividade e na linguagem popular, e o crítico concluiu “o
nome que essa posição tem recebido é dirigismo cultural”. Ora, isso ocorre somente no
futebol? Não. Ocorre nas artes, nas ciências, na filosofia.
Isso acontece com a arte Latino-Americana? Sim, em vasta dimensão, mas somente
com aquela colonizada, ou seja, com aquela obediente às teorias estéticas ou formais criadas
fora, em outros contextos sócio-históricos e, portanto, alienígenas. Não podemos implantar
modelos alienígenas exóticos na América Latina, usando as palavras empregadas no título da
conferência, nem podemos ser obedientes às regras dessas estéticas, a ponto de negarmos as
culturas populares das Américas Latinas. Então, pergunto, o que fazer com as teorias estéticas
criadas na Alemanha e em outros países europeus? Devemos jogá-las fora para que não
caiamos na esparrela de produzir uma arte colonizada? Não, não devemos jogá-las fora e sim
estudá-las para sermos conhecedores e fluentes, empregando o termo do crítico, e em
consequência, sejamos flexíveis a ponto de saber lidar com essas ideias e com as demais
caracterizadas pela nossa diferença, pela nossa latino-americanidade.
12
KLINTOWITZ, J. A Implantação de um modelo alienígena exótico e outras questões pertinentes: A seleção
Brasileira de Futebol 1978. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo:
Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta
palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
A palestra do curador Donald Goodall teve como título “Visão Interior e Imagem
Exterior; Carlos Mérida e Leonora Carrington”13, segundo o curador afirmou, a intenção do
trabalho foi evidenciar através do paralelismo, as diferentes posições dos artistas em relação à
mitologia e à magia.
Segundo Goodall, os dois artistas se expressam através da pintura revelando o segredo
da criação e da morte, do sagrado e do profano, da revelação e transfiguração, conceitos para
“explicar o universo” através da dualidade dos contrários, usando as palavras do
conferencista. Observou que os dois artistas escolheram o México para viver, mas o
nascimento se deu em outros países, de fato, Carlos Mérida (1981 - 1984) é guatemalteco,
descendente de indígenas do grupo maia-quiché, e se estabeleceu na Cidade do México a
partir de 1922, já Leonora Carrington (1917-2011) nasceu na Inglaterra em 1917, chegou ao
México em 1942.
Explicou que a posição de Carrington é diferente da de Mérida, pois a pintora tem uma
visão mais complexa consequência de um mergulho pessoal em sua imaginação, já Mérida
tem uma visão herdada de seus antecedentes nas considerações sobre criação e morte, do
sagrado e do profano, da revelação e transfiguração. Goodall atribui o adjetivo privilegiada à
imaginação de Carrington, pois a artista não se contenta em contar o mito, mas em recriá-lo
misturando outras e diversas referências e a pintora se lança a decifrar o inexplicável,
portanto, Carrington não narrou a cosmogonia maia, mas ao fazer referência a ela, a pintora
recriou e assim ampliou horizontes. Sobrepôs a sua capacidade fabular ao relato mítico maia
em transparências abrindo outras portas de percepção míto-mágicas, ou seja, o mito em
Carrington é acompanhado por outras camadas interpretativas.
Na conferência intitulada “Para una Lectura Exergetica del Arte Latinoamericano”14, o
crítico Carlos Silva referiu-se à teoria do conhecimento e destacando a tarefa da crítica como
produtora de conhecimento na mediação entre obra e público. Explicou que o mundo está
implícito na obra de arte e não refletido nela, e, portanto, tem um modo de leitura.
Carlos Silva recomendou a crítica simbólica para a arte latino-americana e acrescentou
que a arte tem uma superfície misteriosa que leva a uma sequência de extratos e níveis de
13
GOODALL, D. Visão Interior e exterior: Carlos Mérida e Leonora Carrington. In: Simpósio da I
Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.
Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação
diferente será devidamente informado.
14
SILVA, Carlos. Para una Lectura Exergetica del Arte Latinoamericano. In: Simpósio da I BienalLatino-
Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p.
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significação que devem ser lidos pelo espectador em um processo de decodificação muito
rigoroso. Segundo o conferencista a alegoria (leitura exegética) trabalharia com símbolos que
tendem a uma cristalização emblemática. Em geral a alegoria não se apresenta em seu
esplendor, mas já popularizada e empobrecida.
O artista e crítico de arte radicado na Colômbia Galaor Cabornel (1938-1992)
apresentou no simpósio um exemplo de crítica, a artista enfocada foi a colombiana Olga de
Amaral (1936) e a título de registro de sua conferência enviou um elaborado e extenso texto
que não tem a dinâmica de uma fala. Sabendo-se que Carbonell escreveu um livro sobre esta
artista, inclusive com o mesmo nome da conferência, nos parece que o arquivo da Fundação
Wanda Svevo possui uma cópia deste livro e figura nos registros tal qual fosse a conferência.
O material se intitula “Olga de Amaral: Desarrollo del Lenguaje15”.
Parece-me que Carbonell caminhou por um esforço de internacionalizar o trabalho da
artista, mesmo para distanciá-la do artesanato que, por certo, em muitos momentos foi
empregado na perspectiva de desqualificação de seu trabalho artístico.Carbonell associou o
trabalho de Amaral às tessituras dos povos ameríndios e chamou o construtivismo de Amaral
de “El suyo”. Destaca-se: “O seu é um construtivismo transbordante e enérgico cheio de
imaginação, fantasia e gestos grandiloquentes. Este construtivismo pode localizar-se dentro
dos limites gerais têxteis artísticos contemporâneos”. O crítico associa a obra de Amaral a um
expressionismo pleno de fúria cromática e acrescenta uma comparação com o expressionismo
abstrato norte-americano da década de 50 do século vinte, mas declara “Assim mesmo sua
obra guarda fortes nexos com a produção textil artesanal e nativa da Colômbia: pelos
materiais humildes, pela legitimidade técnica na excecução, pela inventividade [...] e pela sua
associação aos processos mais profundos da cultura do país”. Parece-me que na busca por
agregar legitmação à obra de Amaral, Carbowell, usa termos condicionados aos processos de
colonização e suas consequências, exemplos disso, são os empregos de “materiais humildes”
e “legitimidade técnica” na citação anterior. Carbonell conclui que a obra de Amaral é
internacional e ao mesmo tempo nacional, melhor dito, parece-me seria dizer, a obra de
Amaral é nacional e ao sê-lo atinge o internacional.
Marta Traba (1923–1983) teceu um paralelismo entre artes plásticas na Colômbia e na
Venezuela com o objetivo final de discutir a recepção estética, o que chamou de consumo das
obras pelos cidadãos desses países na conferência intitulada “Consumo de Arte en dos
15
CARBONELL, Galaor. Olga de Amaral: Desarrollo del Lenguaje. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana
de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
56
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16
TRABA, MARTA. Consumo de Arte em dos sociedades, Colombia y Venezuela. In: Simpósio da I Bienal
Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da
autora.
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PEDROSA, M. Variações sem Tema ou a Arte da Retaguarda. Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São
Paulo. Vol.I. São Paulo:Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.
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considerar com o status de arte as peças oriundas desses países e colocá-las no mesmo
patamar da arte grega ou renascentista, iniciando uma “revolução no gosto”.
Jorge Glusberg (1932-2012) proferiu no Simpósio a conferência intitulada “Mitos e
Magia do Fogo, o Ouro e a Arte18”. Importante dizer que, nesta ocasião o crítico argentino
voltou ao Brasil um ano depois que o chamado Grupo de los Trece, organizado por Glusberg,
ter recebido o Prêmio Itamaraty na edição anterior da Bienal Internacional de São Paulo, a
décima quarta edição realizada em 1977, uma premiação polêmica, mas que demonstra o
destaque deste grupo de artistas representantes do Centro de Arte y Comunicación, fundado e
dirigido por Glusberg desde 1968.
Glusberg construiu ao longo de sua conferência a analogia entre o ouro e a arte,
passando pelo fogo, já que este é tão necessário para as ações humanas, inclusive a fundição do
ouro, salientou os mitos envolvidos, salientou que a manipulação do ouro e a arte são as duas
máximas manifestações simbólicas da sociedade, são ambos os produtos do trabalho humano e
originam bens sociais. E acrescentou que o ouro e o objeto artístico valem pelo que são, mas
também valem pelo que representam em uma rede de critérios socialmente determinados.
Assim o crítico defendeu que a arte é um produto social, precisa da sociedade tanto quanto do
indivíduo que a cria e teceu a sua crítica à uma leitura restrita aos critérios formais intrínsecos
de uma obra, e defendeu a análise da obra de arte em seu contexto histórico e em relação com
as demais obras contemporâneas a ela.
O ouro e a arte são símbolos de poder, mas a arte sozinha não garante o sucesso de uma
mostra, é necessário pensar no crítico como outra instância de poder. Glusberg coloca a crítica
como criação, assim como a arte.
Néstor Garcia Canclini iniciou a sua conferência intitulada “Teoria da Superestrutura
e Sociologia das Vanguardas Artísticas19” no simpósio vinculado à I Bienal Latino-
Americana de São Paulo afirmando a “insuficiência interpretativa do materialismo histórico.
O problema reside em saber se é uma incapacidade definitiva [...]”, citou Jean-Paul Sartre
para defender que a incapacidade interpretativa do marxismo não é definitiva.
O conferencista também refletiu sobre o ponto de vista do criador que, a partir da
sociologia, percebe “sua obra se enriquecendo com os olhares e a imaginação de quem a
18
GLUSBERG,J. Mitos e Magias do Fogo, o Ouro e a Arte. In: Simpósio da I Bienal Latino- Americana de São
Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.(traduçãoda autora).
19
CANCLINI, N. G. Teoria de la superestrutura y sociologia de las vanguardias artísticas. In: Simpósio da I
Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p Tradução da
autora.
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recebe, alterando seu sentido ao circular por classes e sociedades distintas, ao intervirem os
marchands, os editores, a publicidade”.
A propósito da arte, Canclini, apresenta duas direções de modelos de análise formulados
no materialismo dialético, uma direção se consiste em afirmar que as relações de produção
artística determinam as representações artísticas, entendidas como uma forma particular de
representação ideológica, como exemplo cita o “realismo socialista”; a segunda direção é
considerar, sem descuidar o estudo da arte como ideologia, que a determinação principal da
estrutura social opera sobre as condições de produção específica da arte, mais que sobre a
representação artística.
Canclini fechou o que me pareceuser uma relevante contribuição para a elaboração de um
método sociológico para análise de obras de arte e o emprego deste para a compreensão das
vanguardas argentinas da década de sessenta do século vinte. Ele finalizou concluindo que
estes artistas vanguardistas descobriram que criar novas propostas artísticas requer que se alie
a criação de novas obras o que chamou de “um conjunto de imagens nunca vistas” ao
estabelecimento de novas maneiras de produzir comunicar, compreender. Referente a isso,
acrescento que esses artistas precisaram estabelecer novas maneiras de expor as obras de arte
e buscar novos espectadores que participem das obras, ou seja, os vanguardistas criaram obras
novas e novos modos de se relacionar com a sociedade. A contribuição de Canclini foi
bastante relevante para se pensar as questões de Arte, centrou a pesquisa na América Latina,
porém não abordou o tema “Mitos e Magia” desta Bienal.
A historiadora da arte Rita Eder apresentou conferência intitulada “El debate
Latinoamericano en el Arte: notas para um analisis20”, nesta conferência a crítica mexicana
convocou para uma leitura da obra da arte latino-americana influenciada pela realidade local
em uma visão que ela denominou mais totalizadora da produção artística, portanto. Defendeu a
análise da obra de arte como campo de estudos interdisciplinar. A crítica nos alertou que
este ponto de vista, que se distancia por definição do formalismo e do idealismo, encontra
grande resistência por parte de uma maioria de estudiosos que desejam conservar métodos
que colocam a arte como fenômeno privilegiado, destacado dos demais ambitos da cultura.
A crítica mexicana levantou uma questão importante sobre o conceito de arte, dizendo
que o que é discutido sobre “arte latino-americana” é feito a partir da produção do continente
sul americano que aparece em exposições, o que discutimos nestas reuniões tem quase sempre
20
EDER, Rita. El debate latinoamericano en el arte: notas para un análisis. In: Simpósio da I Bienal Latino-
americana de São Paulo, 1978. São Paulo, Brasil: Fundação Bienal de São Paulo.s/p. Tradução da autora.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
raízes na arte latino-americana que conhecemos através das bienais e das diferentes
exposições organizadas pela União Pan-Americana. Cabe a pergunta se esta é realmente a
produção de arte latino-americana, ou se já houve camadas de influência do que se
convencionou definir como arte? Será que não seria necessário colocar outras manifestações
em relação com outros campos estéticos, como a produção chamada artesanato, os meios
de comunicacão de massa e até mesmo esses produtos de artistas de vanguarda que circulam
por canais marginais?
A crítica de arte mexicana Rita Eder abordou vários momentos da historiografia do
século XX na arte da América Latina, e conclui que se amplia uma "gama de possibilidades
metodológicas à medida que o estudo da arte se abre aos modos de análises presentes nas
ciências sociais". É importanteperceber que essa crítica se alia ao antropólogo Darcy Ribeiro
e Néstor Garcia Canclini, entre outros cientistas sociais, nessa convocação do contexto
sociológico para a interpretação das manifestações artísticas.
O crítico Bengt Oldenburg, atuante na Argentina, também defendeu a leitura
sociológica do objeto artístico em sua conferência que explorou os condicionantes da arte da
América Latina. A sua conferência intitulou-se “Mecenazgo y Mecanismos Selectores”
(Mecenato e mecanismos seletores) na qual o autor enfocou a situação atual da arte latino-
americana através da análise de algumas estruturas sociais que condicionam, dominam e
determinam a atividade artística. Essas estruturas sociais condicionam o artista desde a sua
etapa formativa, à medida que cresce sua posição artística e socioeconômica, o artista se
encontra cada vez mais emaranhado em mecanismos que o controlam e que na maioria das
vezes, se confundem com os mecanismos de fomento para as artes.
Outro crítico que se deteve em sua conferência em construir uma metodologia que possa
revelar a arte da nossa América foi Juan Acha21 (1926-1995) a partir da premissa de que a
arte é um fenômeno sócio cultural, o conferencista priorizou o sistema de produção sobre a
conservação da herança cultural e, com isto, destacoua urgência de dar prioridade à inovação ou
criação que seria benefício coletivo em vez do consumo individual majoritário na palestra
intitulada: Das valorizações objetivas da estrutura artística (ou no original: Hacia las
Valoraciones objetivas de la estrutura artística).
21
ACHA, Juan. Hacia las Valoraciones objetivas de la estrutura artística. In: Simpósio da I Bienal Latino-
Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
O crítico argentino Jorge Romero Brest22 (1905 – 1989) apresentou neste Simpósio a
conferência intitulada “A arte, a obra de arte e as artes” onde abordou os conceitos para a
definição do que seria arte, como um objeto se torna arte e a relação do objeto com o sujeito,
partindo da ideia de que a arte está em crise, para tanto se apoia no filósofo alemão Martin
Heidegger (1889-1976), mas adverte que nem sempre concorda com ele. Brest refletiu, como
aproximação ao tema e a partir do aforisma proposto pelo artista Carl André para a definição
de arte: “Arte é o que faz um artista”, o crítico apontou que este raciocínio gera um ciclo
vicioso: os artistas fazem obras, logo estas são arte.
Segundo Brest, Heidegger argumentaria de outra forma, pois “o que faz de uma coisa
uma coisa não reside em que coisa seja um objeto representado, e esta “coisidade” não
poderia de nenhuma maneira ser determinada a partir da objetividade do objeto”. Outro
caminho seria pensar em arte como adjetivo qualificativo de obra na expressão obra de arte,
mesmo dessa maneira o crítico salientou que também não há nenhuma característica que
definiria uma coisa ser ou não arte.
O crítico também refletiu se o modo de fazer define o que é obra de arte, ele se pergunta
será que o obrar com as suas próprias mãos define o que é arte? E respondeu, pensar assim é
insuficiente, “ainda mais nos tempos atuais onde a tecnologia alterou por completo a relação
obra-sujeito”. O conferencista prosseguiu sua palestra reconhecendo que é necessário que a
sociologia entre nesse debate, pois o artista é um ser social, neste momento citou José Ortega
y Gasset. A conferência de Brest pouco abordou as artes da América Latina e também pouco
abordou o tema desta mostra, Mitos e Magia, a não ser duas rápidas menções aos mitos na
arte, dizendo são “explicações religiosas, ideologias, modos de reger o mundo, de
inventar a origem, de assinalar o destino, Mitos e ideologias perduráveis quando são
transformados pelos artistas em imagem que são símbolos”. Neste simpósio a propósito da I
Bienal Latino-americana, parece-me que faltou especificidade aos temas e ao recorte latino-
americano.
Pinturas de Israel Pedrosa (1926-2016) estiveram presentes na I Bienal Latino-
americana de São Paulo, o artista também participou do Simpósio vinculado à mostra e o fez
com a conferência intitulada “Arte – Documentação didática23”. O artista e crítico apontou que
o seu apoio à I Bienal Latino-Americana nãosignifica acreditar na existência de uma arte latino-
americana produzida nos dias atuais, pois há meios de diálogo entre os artistas, os meios
22
BREST, J. R. El Arte, La Obra de Arte, Las Artes. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo.
Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora.
23
PEDROSA, I. Arte – Documentação Didática. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo.
Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
24
OLIVEIRA, E.O. “Pessoa” e “Persona” na Etnia Brasileira. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São
Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p.
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63
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25
Artista, coreógrafo e professor norte-americano, foi diretor Grupo de Dança Contemporânea da Escola de
Dança da Universidade Federal da Bahia entre 1971-1978.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
também que passou a entender que aqueles que não passaram pelo “ponto de virada”, aqueles
que ele denominou como “pseudo intelectuais”, juntamente com os “europeus alienados”, são
aqueles que se distanciaram da natureza e dele. Agora, já falando como representante da dita
“segunda classe”, que havia aprendido a desprezar a sua cultura quando era aluno de dança.
Morgan afirmou que o “ponto revolucionário” se iniciou quando assistiu “Les Ballets
Africaines” do Senegal e afirmou ter sido convencido “de que através da dança, as pessoas
podiam passar para uma outra dimensão, que não é deste mundo. Não tinha mais dúvidas
quanto a existência da magia teatral”. Neste trecho o artista narrou que ao assistir “Les Ballets
Africaines” ele encontrou o mito original e assim encontrou a magia, Morgan nos brindou
com um belo exemplo de como se dá o mito e a magia em arte. Deixou claro que não é uma
questão de sangue e sim de cultura.
O antropólogo braileiro Raul Lody apresentou a conferência intitulada “Leitura da
Iconografia Religiosa Afro-Brasileira. Introdução ao Estudo das Cores”, salientando a
importância das cores e afirmou: “As cores têm significado preciso e certo nos variados
implementos de culto. É através das cores que facilmente são identificados os Orixás,
evidenciando as suas características pela representatividade das cores isoladas ou conjugadas
entre si”. Enfocando os terreiros como estudo de caso, Lody defendeu o papel central da cor
no conjunto sócio hierárquico afirmando que há um conjunto simbólico de cores fundamental
para os elencos mitológicos e de terreiros. Esse conjunto atua como normativa e a leitura
imediata garante ao iniciado nos ritos religiosos a identificação do Orixá-patrono ou o
conjunto de divindades a quem estão ofertados os objetos de culto. A cor garante a leitura da
iconografia de culto no contexto social e hierárquico do terreiro de candomblé.
O professor brasileiro Fernando Albuquerque Mourão (1934-2017), que ajudou a
criar o Centro de Estudos Africanos na Universidade de São Paulo, apresentou a conferência
intitulada “A Especificidade e Universalidade da Arte Africana” e nesta refletiu como vem
sendo construídas as análises e os sentidos para a Arte Africana, afirmando Fernando
Albuquerque Mourão: a Arte Africana é, também, forma e não somente misticismo.
O conferencista afirmou que somente poderemos analisar a questão das raízes africanas
nas manifestações artísticasbrasileiras se soubermos o conceito de Arte Africana e alertou que
é importante refletir com quais concepções vem se construindo processos de interpretações e
leituras das obras de arte produzidas no continente africano, porque é através desses processos
que são construídas as narrativas da História da Arte e em consequência o conceito de Arte
Africana.
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Estas concepções podem ser muitas e diferentes entre si: podem ser sociológicas,
antropológicas, mitológicas, fenomenológicas em todas estas é dada grande ênfase ao
contexto cultural no qual a obra de arte está inserida. A concepção para abordagem da leitura
pode ser formalista, ou seja, que leve em consideração os elementos formais da linguagem
visual presentes e trabalhados na obra de arte. Neste caso a ênfase é no objeto de arte e não no
contexto onde foi produzido, ou onde está inserido no momento de leitura, nem mesmo no
sujeito que o lê e lhe atribui sentido. Além dessas, a abordagem de leitura pode ser
iconológica, empregando Erwin Panofsky, ou através da teoria da Gestalt de Rudolf Arnheim,
que unem uma aproximação formalista com uma leitura do contexto cultural no qual a obra
foi produzida.
O que o conferencista pareceu reclamar é que ainda há a necessidade de fazer a leitura
formal das obras africanas, pois a arte africana é também forma, alertou que foi feita a leitura
sociológica, antropológica ou etnográfica, preocupando-se em estabelecer ligações com o
contexto cultural, ligando a arte africana aos fenômenos das práticas religiosas, mas há a
carência de dar ênfase no objeto de arte para a real apreensão da arte africana.
Outro aspecto específico da cultura latino-americana abordado por Maria Heloisa
Fénelon Costa (1927-1996) foi a indianidade, abordando o mito e o rito indígena, através de
um estudo de caso na etnia Mehunákú.
A conferência intitulada “O Mundo dos Mehináku: Representações visuais, mito e
cerimonialismo26”, onde Maria Heloisa relatou trechos da cosmovisão da etnia Mehináku,
trazendo com destaque as diferenças na linguagem e nas representações visuais para um
mesmo ser vivente em diferentes situações. A conferencista abordou um rito chamado
Xapukuyáuá dos indígenas da etnia Mehináku – de língua Aruak do Alto do Xingu, no estado
de Mato Grosso. Neste rito o doente curado, através da mediação do pajé da aldeia, promove
o rito do ser sobrenatural que lhe restituiu a saúde, esse ser sobrenatural vai ser personalizado
durante a festa. Xapukuyáuá é o ser da água de aparência antropomórfica, que exerce
autoridade entre os peixes, aos quais também aparecem alusões várias durante o ritual. O
Xapukuyáuá é representado por uma indumentária de palha trançada e ostenta um cetro de
cabaça, relacionado com uma canoa antropófaga e sobrenatural, que também mostra
características animais.
26
COSTA, M. H. F. O Mundo dos Mehináku: Representações visuais, mito e cerimonialismo. In: Simpósio da I
Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de SãoPaulo, 1978, s/p.
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66
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Outro aspecto específico da cultura latino-americano discutido neste simpósio foi a arte
popular. A tônica da discusão do conceito de arte popular foi predominante nas conferências
da mexicana Eli Bartra, das brasileiras Lélia Coelho Frota e Alba Maria Zaluar, além do
crítico Mirko Lauer, atuante no Perú.
Eli Bartra apresentou neste a importante conferência intitulada “Retorno de um mito: A
Arte Popular27” trouxe elementos importantíssimos para o entendimento da crescente
ideologia em a favor do estudo centrado e a partir da América Latina percebidos no período
do evento no qual ela palestrou, percebeu que para a construção desta ideologia muito
influenciou o triunfo da Revolução Cubana e as lutas de caráter anticapitalistas e anti-
imperialistas que ocorreram desde 1960 em diversos países da América Latina.
Bartra afirmou “Se parece haver tanto esforço para encontrar o que é latino-americano na
arte, seria conveniente partir do reconhecimento da realidade dos colonizados”. A colonização
nos trouxe uma série de imposições culturais referentes aos modelos e parâmetros implantados
nos países da América Latina e essas mudanças impostas também fazem parte do que somos.
Portanto, a conferencista clama pelo entendimento da identidade latino-americana no presente e
não somente no passado pré-colonização.
Por isso, Bartra afirmou que não podemos negar os elementos herdados do colonizador,
em diferentes processos uns mais outros menos violentos, sobre isso destaca-se: “Fechar os
olhos diante da realidade, negar a coisa ocidental na coisa latino-americana, é negar a nós
mesmos, em parte, é negar o que somos”.
E quanto à arte popular? Bartra declarou: “Uma das respostas frequentes para a questão
sobre o que é a verdadeira arte latino-americana é encontrada na arte popular. Esta arte seria a
expressão autêntica de nossos povos [...]”, e isso a conferencista chama de um mito, usando
mito como sinônimo de engano ou ilusão, e que esta ilusão não é nova, de tempos em tempos a
América Latina retorna a este mito, como se houvesse um original do homem latino-americano.
Bartra afirmou que esta maneira de pensar sobre a arte latino-americana como vinculada
a um passado longínquo e pré-colombiano desprezando a chamada produções artísticas
modernos ou mesmo contemporâneas, por considerá- las “meras imitações da arte das
metrópoles ocidentais” é o pensamento do colonizador que se interiorizou no colonizado, de
um papel para América Latina de subalterno culturalmente destinado a ser uma “cultura de
27
BARTRA, E. Retorno de un mito: El Arte Popular. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana deSão Paulo.
Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
repetição”, usando o termo de Nelly Richard quanto discute as questões da cultura latino-
americana.
Lélia Coelho Frota (1937 – 2010) foi poeta, crítica e historiadora da arte brasileira que,
e muitos de seus trabalhos foram dedicados às questões da arte popular e ao patrimônio
material brasileiro, nessas áreas, é autora de célebres trabalhos como “Mitopoéticas de nove
artistas Brasileiros”, “Mestre Vitalino” e “Pequeno dicionário da Arte do Povo Brasileiro”,
onde a autora inovou por não separar o artistas e o autores das obras populares.
A sua conferência neste Simpósio intitulou-se “Um reassumir do subjetivo e da
realidade cultural próxima28” e nesta a autora clamou para que deixemos a tendência que
identificou na América Latina de “filiar-nos, na esfera estética, à manifestações estranhas à
formação das nossas culturas”, defendeu que a arte precisa ser entendida como parte da
cultura em uma visão antropológica. Lélia Frota citou as palavras de Mário de Andrade que,
sessenta anos antes, ao analisar música brasileira afirmou “A falha da cultura consiste na
desproporção do interesse que temos pela coisa estrangeira e pela coisa nacional”, a autora
comentou como as palavras Mário de Andrade são atuais.
A professora universitária Alba Maria Zaluar apresentou a conferência intitulada “O
Clovis ou a criatividade popular num carnaval massificado29” com o principal objetivo de
evidenciar como os conflitos não estão ausentes das festas populares, para construir esta tese
lançou análise sobre a festa popular chamada “Clovis” que ocorre na periferia carioca, alguns
elementos criativos usados nessa festa estavam expostos na mostra vinculada a esse simpósio.
Em sua tese defendeu que a arte popular precisa ser vista como resistência onde se mesclam
submissão e autonomia do povo frente aos parâmetros impostos. Encaminhando para a
conclusão Alba afirma que Clóvis é a negação da participação daquela coletividade em uma
sociedade que determina um lugar inferior a ela, portanto é uma resistência auma estruturação
social que subalteriza as comunidades periféricas. Clovis é uma manifestação popular como
forma de resistência.
Assim como Alba Zaluar, Mirko Lauer30 também se referiu aos componentes de
dominação e de resistência na Arte popular. Mirko Lauer trouxe ao Simpósio uma conferência
sobre a situação do artesanato e do artesão no Peru contemporâneo, devemos lembrar que a
28
FROTA,L. C. Um Reassumir do Subjetivo e da Realidade Cultural Próxima. In: Simpósio da I Bienal Latino-
Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.
29
ZALUAR, A. M. O Clovis ou a criatividade popular num carnaval massificado. In: Simpósio da I Bienal
Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo,1978, s/p.
30
LAUER, M. Artesanía y Capitalismo em el Peru. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo.
Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
referida palestra ocorreu em 1978. A principal contribuição de Mirko Lauer foi vincular as
situações analisadas ao processo histórico cujo fato principal é a colonização iniciada no século
XVI pelos espanhóis no Perú, mas também todas as decorrências da implantação do
capitalismo no país, ele analisou a história e percebeu que o artesão perdeu lentamente as
referências que guiavam o seu trabalho em consequência da dominação cultural, processo
vinculado e tributário da dominação econômica e do fenômeno antropológico associado.
Mirko Lauer entende o artesanato tanto quanto uma forma pré-capitalista de produção
quanto como expressão artística genuína de diferentes setores da população. É somente
partindo dessa dupla definição de artesanato que foi possível caminhar a pesquisa e análise
que transcende antigos preconceitos referentes à arte popular, como um ponto alto do
campesino sem qualquer valor ou significado econômico ou estético.
Considerações Finais
Desenhando considerações finais para as análises tecidas sobre o que representou este
Simpósio destaco a abrangência dos temas que, em seu conjunto, procuraram acercar
diferentes olhares para o nosso continente e para a arte produzida aqui, nesta procura pelas
nossas especificidades foram abordadas, tais como as afrinidades, a indianidade, o lugar da
arte popular, além da urgência de discutir o conceito de América Latina e de metodologias
mais acertadas para a análise da arte latino-americana, essa abrangência pode ser traduzida no
desejo de ver outras epistemes tendo espaço e voz nas sociedades. A análise das conferências
revela que por um momento o sistema de arte foi sensível e abriu o devido espaço para este
debate, muito embora, o projeto de Bienais Latino-Americanas de arte foi descontinuado.
Durante as análises, não foi somente uma vez que perplexa percebi que as pautas identitárias
expressas em 1978 são ainda atuais, quase 43 anos depois. Talvez essa seja a maior motivação
para este trabalho que busca resgatar os debates realizados e que evidenciam que as reflexões
não podem ser descontinuadas para que se efetivem mudanças. Se em 1978 teve início do
apontamento da abertura de portas para a frágil democracia brasileira, hoje vivemos um
momento crítico, onde infelizmente existe a defesa de que essas frágeis portas deveriam se
fechar e aliado a isso, o atual governo federal acata direitos e busca silenciar vozes, todo esse
cenário torna urgente o resgate de toda as lutas a favor da pluralidade cultural, há de se ver e
rever a história construída de luta para mais potentemente habitarmos o presente da luta.
REFERÊNCIAS
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
INTRODUÇÃO
1
Formada bacharel em Arte: História, Crítica e Curadoria pela PUC SP. E-mail:
[email protected]
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70
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
coração financeiro do Brasil, ao mesmo tempo em que há uma restrição a esse acesso
por causa da localidade escolhida para abrigar as exposições, geralmente bairros
abastados e afastados da zona periférica e dos trabalhadores que, além de questões de
espaciais, enfrentam a falta de tempo e de recursos para acessar essas zonas centrais,
portanto as obras de arte.
Mário Pedrosa acredita que a partir do momento em que o trabalhador trava
contato com essa produção artística, geralmente restrita aos círculos burgueses, o
trabalhador passa por uma revolução interna, que o leva a entender a sua condição
material e de classe, por meio das experiências sensoriais ou cognitivas que as obras de
arte podem provocar. Neste sentido, para Mário, a obra de arte desempenha um papel
social que leva os sujeitos à uma humanização a partir da sensibilidade. A arte, segundo
o argumento, provoca uma reação à realidade material que o Sistema Capitalista impõe,
por meio da exploração do proletariado pela burguesia.
No entanto, ao contrário do Museu da Solidariedade, que se ergueu por meio de
doações e da proposição do Governo de Allende, de um museu público, a Bienal de São
Paulo e os primeiros museus paulistas foram erguidos por meio da intervenção de
industriais e coleções particulares, por iniciativa da elite local.
2
Jornal no qual Mário Pedrosa atuou como crítico de arte
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
3
Ver: As tendências sociais da arte e Kathe Kollwitz
4 A Bienal de lá pra cá, p.448
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
trabalhadoras. No entanto, talvez por causa da época ou de sua classe Pedrosa nunca
tenha discorrido sobre as fronteiras invisíveis que existem nas grandes cidades, como o
poder de locomoção da população periférica ou dos altos custos que envolvem uma ida
ao museu para a população periférica das cidades, geralmente muito distantes dos
centros nos quais os museus se encontram. Obviamente que, devido à larga abordagem
que o autor realizou a respeito do Sistema Capitalista, do mercado de Arte e da exclusão
social a que a classe trabalhadora é submetida, Pedrosa muitas vezes alcança certos
setores sociais muitas vezes mais pauperizados do que os do proletariado aos quais a
teoria marxista se dirige.
No texto Arte culta e arte popular5, resultado de uma Comunicação que Pedrosa
realizou na Cidade do México em 1975, o autor aventa como seria possível que o acesso
à arte nas camadas mais pauperizadas da população fosse uma realidade: para o crítico,
por meio da ampliação do acesso ao artesanato local e pela formação de cooperativas
que controlam a distribuição e o mercado ao qual esse fazer popular se apresenta,
poderia ser garantida à boa parte das comunidades que pudessem adereçar suas
residências e tornar essa produção artística difundida não apenas num mercado externo,
mas internamente. Pedrosa alerta que existe um mercado formado por grandes galerias
ou atravessadores que exportam esses objetos artesanais, encarecendo-os ao ponto de
que a própria comunidade na qual essas obras têm origem não pode consumi-los,
tornando essa arte dita popular, portanto, objetos de luxo mais uma vez consumíveis
apenas por famílias abastadas. Alienando a população de sua própria imagética.
5PEDROSA, Mário. Arte culta e arte popular. Publicado em Arte em revista, n. 3, 1980, pp. 22-26 (trad.
Elisabeth Ferreira e Iná Camargo Costa).
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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5 PEDROSA, Mário. Arte culta e arte popular. Publicado em Arte em revista, n. 3, 1980, pp. 22-26 (trad.
Elisabeth Ferreira e Iná Camargo Costa).
6
PEDROSA, Mário. A BIENAL DE LÁ PRA CÁ. p.444.
7
Francisco Antônio Paulo Matarazzo Sobrinho (1988-1977). Industrial, mecenas e político ítalo-
brasileiro. Filho de Andrea Matarazzo e sobrinho do conde Francesco Matarazzo. Responsável pela
criação do MAM SP e da Bienal de SP.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
74
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Bienal de São Paulo viu o surto da industrialização paulista tomar impulso, gerando a
ampliação da população urbana e a multiplicação da massa de operários que ocupavam
os casebres e vilas da cidade. Neste caso em específico, e a respeito de um tema
recorrente dentro da crítica de Pedrosa, é importante notar que a iniciativa privada foi
essencial à construção de espaços culturais e coleções de arte no Brasil. Tanto o Masp,
erguido com a contribuição de Assis-Chateaubriand, quanto a existência do Museu de
Arte Moderna de São Paulo e da Bienal são devidos aos esforços dessa burguesia
industrial.
Mário Pedrosa jamais mediu esforços à crítica do que ele considera uma criação
artística de mercado feita para “o consumo conspícuo da burguesia”, no entanto, é
bastante difícil argumentar contra esses industriais e grandes colecionadores, como
Yolanda Penteado, esposa de matarazzo Sobrinho, porque foram eles os responsáveis
pela inserção do Brasil dentro desse circuito mundial. Apenas para lembrarmos, a
primeira exposição de Anita Malfatti ocorreu dentro da galeria de uma loja de
departamentos cuja clientela era a classe média e a elite local8. É interessante notar que
a alta sociedade local, no caso do Brasil, teve papel fundamental na construção de uma
rede de museus e consequentemente num ambiente propício ao surgimentos de novos
marchands, críticos e artistas, visto que o mercado de arte brasileiro e a rede de museus
de Arte sequer existia já que o Estado brasileiro foi principal fiador de museus de
ciência e históricos, prioritariamente.
A São Paulo das décadas de 1940-1950 difere muito daquela cidade que sediou o
movimento moderno de 1922. A política do café com leite da Velha República fez
enriquecer os cofres da cidade e da burguesia local. A primeira ferrovia do Brasil
conectava os interiores do Estado paulista ao porto de Santos, garantindo o escoamento
da produção cafeeira que conduzida a República ao eminente progresso da
industrialização. A vinda de imigrantes pauperizados, porém com um conhecimento
industrial acima da média brasileira, também foi fator essencial ao progresso da cidade
que crescia exponencialmente, recebendo trabalhadores vindos de fora e das entranhas
rurais.
A nomeação de Lúcio Costa para a direção da Escola Nacional de Belas-Artes, na
década de 1930 em conjunto com a determinação da autonomia da Faculdade Nacional
de Arquitetura possibilitou a primeira geração de arquitetos modernos brasileiros.
Pioneiros, os primeiros arquitetos fizeram extenso uso do concreto, e aqui devo prestar
homenagem à fábrica de cimento Portland Perus, fundada em 1924, a primeira
fornecedora nacional de cimento, construída, porém, com capital estrangeiro. A fábrica,
atualmente desabilitada, sedimentou o bairro paulista que alcunhou o nome da empresa,
bairro este que emergiu a partir de uma vila operária.
A pulsão industrial e o apelo moderno que renuncia o estilo neo-clássico europeu
empurrou as camadas populares para longe dos centros urbanos, a partir das décadas de
1940-1950, formando grandes zonas periféricas que consistiam em bairros satélite, ou
bairros-dormitório, em cuja a população operária apenas residia, precisando se deslocar
aos grandes centros industriais a fim de trabalhar ou usufruir das opções de lazer
disponíveis na cidade. Aos que sequer conseguiam trabalho, estavam reservadas as
favelas ao longo do Rio Tietê, como aquela retratada em Quarto de Despejo, de
Carolina de Jesus. Talvez, seja necessário destacar que houve relativo avanço nas leis
trabalhistas com o governo de Getúlio Vargas, mas a questão urbana nunca foi de
extrema relevância para a esfera pública, até o investimento arquitetônico feito por JK
com o intuito da construção de Brasília.
A estrutura brutalista da arquitetura brasileira e o estilo concretista adotado pelos
mais importantes arquitetos brasileiros, segundo Mário Pedrosa, colocou o Brasil na
vanguarda do mundo. Há diferenças entre o desenvolvimento da arte brasileira a partir
da Semana de 1922 até a fase das Bienais. Segundo ele, a Semana de 22 tratava “de
levar ao público [...] espécimes da revolução modernista”, reunindo artistas, intelectuais
e pintores em nome desse modernismo a apresentarem-se ao “burguês provinciano”. A
segunda fase da Arte brasileira, essa de cunho arquitetônico, já apresenta “uma certa
conotação social e coletiva, e não por um acaso o protagonista [...] é o arquiteto”. Na
fase das Bienais “o pêndulo volta às artes individuais, a hegemonia passa à pintura,
como era na Europa”9.
Esse desenvolvimento das artes no Brasil, contudo, aconteceu bastante
tardiamente, devido à história da Colônia, com o envio de artistas para a Europa,
promovido por bolsas, ou através do investimento particular das famílias destes artistas.
O investimento público sempre foi essencial ao desenvolvimento das Artes no Brasil,
mas as coleções privadas tiveram desempenharam um importante papel nesse
desenvolvimento. A iniciativa de industriais, em São Paulo, se diferenciou das
10
Conferir a excelente aula gravada em vídeo sobre História da Casa Carioca, com o professor William
Bittar, disponibilizada em função da Exposição “Casa Carioca” no Museu de Arte do Rio (MAR) em
2020.
11
Francisco Franco Pereira Passos (1836- 1913). Prefeito do então Distrito Federal (Rio de Janeiro) entre
1902 e 1906, nomeado pelo presidente Rodrigues Alves.
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reflexão, é possível inferir que mesmo que se transfira obras de arte para museus e
instituições culturais a fim de que a população tome conhecimento dessas peças e possa,
segundo o que acredita Pedrosa, acessar esse conteúdo humanístico e libertador, que é a
obra artística, ainda assim o museu, enquanto instituição, é um espaço criado aos
moldes dos que a classe burguesa frequenta. No lugar que lhes é conveniente.
Santiago do Chile, fundada em 1541 pelo espanhol Pedro de Valdivia, recebeu das
mãos de Pedro de Gamboa a sua arquitetura, em estilo Espanhol. A expansão do centro
e a divisão da cidade em lotes foi essencial para uma expansão mais controlada e
organizada de seus prédios, o que difere, em muito, da maneira portuguesa, que não
possui esse cuidado com o plano arquitetônico de sua colônia ou até mesmo de algumas
de suas cidades. Essa urbanização, contudo, não conseguiu impedir o processo de
gentrificação no século XX e a formação de bairros dormitórios que, igualmente aos
brasileiros, são compostos por trabalhadores que precisam se deslocar ao centro para
trabalhar e acessar as opções de lazer, de maneira similar aos nossos. Portanto o acesso
às instituições culturais de fato é dificultado aos trabalhadores que precisam residir
longe das fábricas e dos centros comerciais, o que impede essa intenção que Mário
Pedrosa transmite em seus textos de que a arte esteja acessível ao trabalhador. Durante o
seu pronunciamento em 1972, por ocasião da inauguração do museu da Solidariedade
chileno, Pedrosa asseverou que:
Los donantes quieren que sus obras sean destinadas al pueblo, que
sean permanentemente accesibles a él. Y más que eso, que el
trabajador de las fábricas y de las minas, de las poblaciones y de los
campos entre en contacto con ellas, que las considere parte de su
patrimonio. La esperanza de los artistas y nuestras es contribuir de
este modo a la espontánea creatividad popular para que fluya
libremente y pueda coadyuvar a la transformación revolucionaria de
Chile. Es así como pensamos que el “ Museo de la Solidaridad”
deberá ser ejemplar en sus funciones específicas, ejemplar en sus
tareas educativas y culturales, ejemplar en su accesibilidad
democrática. Debe ser el hogar natural de las expresiones culturales
más fecundas del Chile nuevo, consecuencia de su avance en el
camino del socialismo. Este es el deseo entusiasta de los artistas del
mundo que concurren para ello entregando el producto de su fuerza
creativa.12
12Os doadores querem que suas obras sejam destinadas às pessoas, para que estejam permanentemente
acessíveis a elas. E mais do que isso, que trabalhadores de fábricas e minas, cidades e campos tenham
contato com eles, que os considerem parte de seu patrimônio. A esperança dos artistas e da nossa é
contribuir desta forma com a criatividade popular espontânea para que flua livremente e possa contribuir
para a transformação revolucionária do Chile. É assim que pensamos que o “Museu da Solidariedade”
deve ser exemplar nas suas funções específicas, exemplar nas suas tarefas educativas e culturais,
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
A reboque deste pequeno excerto, não é possível afirmar que uma vez presente
nos museus as obras não estarão acessíveis ao trabalhador por causa das questões de
deslocamento, uma vez que seria possível que o trabalhador se dispusesse a tomar o
transporte público da cidade e ir ao local em que a obra está, mesmo que longínquo ou
de difícil acesso. Não é possível ignorar, no entanto, uma outra crítica bastante
pertinente que Pedrosa faz a respeito da alienação desse trabalhador dentro do Sistema
Capitalista, baseando-se nos textos econômicos de Marx e na filosofia Trotskista do
papel social da Arte.
Uma observação importante à análise dos conceitos empregados por Mário
Pedrosa para tratar dessa experiência afetiva entre a obra de arte o trabalhador é que
mesmo considerando que Pedrosa jamais tenha tocado diretamente na questão do
deslocamento urbano, ao tratar da luta de classes e da alienação no trabalho, além das
condições materiais dos proletários, é difícil traçar alguma hipótese que confronte o
autor neste ponto. A exemplo:
[...] Hombres que operan los mecanismos del Estado y a los artistas
del mundo que manejan instrumentos, en su mayoría destinados a
atrapar sensaciones, vivencias, imágenes, intuiciones, “ la esencia del
hombre” en suma, en eterno conflicto con su existencia, al fin del cual
el nombre encuentra o debe encontrar su liberación total. [...] Aparte
de mirarlas, contemplarlas, admirar esas corporificaciones, de dialogar
con ellas por el tacto, por los sentidos, por el pensamiento, adquirimos
una nueva experiencia vivencial, un nuevo enriquecimiento
cognoscivo, que es sobretodo un vehículo de la Verdad todavía
trascendente en su contraste con una realidad que la niega. Y mientras
la realidad que la (sic) niega. Y mientras la realidad sigue negándola
(sic), el arte sigue en su acercamiento permanente a una verdad cada
vez más histórica y cada vez menos trascendente. Un día, en un punto
del horizonte, los dos procesos se encontrarán, y entonces el arte será
la vida y la vida será arte.13
exemplar na sua acessibilidade democrática. Deve ser o berço natural das expressões culturais mais
fecundas do novo Chile, consequência de seu avanço no caminho do socialismo. Este é o desejo
entusiasta dos artistas de todo o mundo que concorrem para isso, entregando o produto de sua força
criativa. Tradução livre. In: Discursos pronunciados por el presidente de la república, doctor Salvador
Allende, y por Mario Pedrosa, presidente del comite de solidaridad artística con Chile, con ocasión de
inaugurarse la primera muestra de obras donadas al museo de la solidaridad. Santiago del Chile: 1972.
p.21.
13 Homens que operam os mecanismos do Estado e os artistas do mundo que manuseiam instrumentos,
em sua maioria destinados a captar sensações, experiências, imagens, intuições, "a essência do
homem" em suma, em eterno conflito com sua existência, no final do qual o nome encontra ou deve
encontrar sua liberação total. [...] Além de olhar para eles, contemplá-los, admirar essas encarnações,
dialogar com eles pelo tato, pelos sentidos, pelo pensamento, adquirimos uma nova experiência
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Mário Pedrosa, ao se pronunciar acerca dessa função socializante das artes, que se
encontra no processo de contato com a obra de arte e o incentivo a uma experiência
vivencial que leve o homem à sua essência, que Pedrosa acredita ser a liberdade, não
num sentido abstrato, mas no sentido do livramento da condição opressora a qual os
trabalhadores são submetidos a fim de existir dentro do sistema capitalista. Por isso,
para Mário, a Arte tem a função social de despertar a consciência de classe dos sujeitos
através de suas experiências sensoriais e cognitivas, de modo que ao ser interpelados
por essa “verdade”, que para Mário consiste no materialismo histórico e na luta de
classes, o trabalhador atinja a consciência de que está sendo oprimido e alienado de seu
verdadeiro Ser.
A partir disso, podemos argumentar que, de fato, as condições materiais do
trabalho o impedem de ter contato com essas obras. Não seria contraditório não levar
em consideração a localidade desses equipamentos culturais quando aplicada essa
crítica? Tanto no caso da Bienal de São Paulo quanto no caso do Museu da
Solidariedade Salvador Allende, estes equipamentos estão, ainda, fora do roteiro desses
trabalhadores braçais, ainda que disponíveis. Não há, na obra de Pedrosa, uma
consideração a respeito das barreiras econômicas internas que impedem esse acesso
para muito além de uma obra de arte internacional ser apresentada numa Bienal, por
exemplo.
Ainda assim, ao discutirmos a questão das classes, da alienação e da exploração
do trabalhador, acabamos por esbarrar na narrativa pedrosiana de que os museus tornam
este contato mais possível, contudo, essas condições mesmas, da cidade, do transporte
público e do trabalho, são impeditivos invisíveis que se apresentam para além das
estruturas que Mário Pedrosa acredita desempenharem essa função essencial na
educação do homem ao caminho de sua liberdade. E do artista, a caminho de sua
liberdade de criação. Não se pode alegar que Mário não estivesse a par das condições de
trabalho dos operários brasileiros, devido ao seu extenso contato com a militância
experiencial, um novo enriquecimento cognitivo, que é antes de tudo um veículo da Verdade ainda
transcendente em seu contraste, com uma realidade que o nega. E enquanto a realidade que o nega. E
enquanto a realidade continua a negá-lo (sic), a arte continua em sua abordagem permanente de uma
verdade cada vez mais histórica e cada vez menos transcendente. Um dia, em um ponto do horizonte, os
dois processos se encontrarão, e então a arte será vida e a vida será arte. Tradução livre. Tradução livre.
In: Discursos pronunciados por el presidente de la república, doctor Salvador Allende, y por Mario
Pedrosa, presidente del comite de solidaridad artística con Chile, con ocasión de inaugurarse la primera
muestra de obras donadas al museo de la solidaridad. Santiago del Chile: 1972. p.19.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
comunista. Contudo, também não é possível afirmar que Pedrosa estivesse a par dos
caminhos necessários a essa interação entre o trabalhador e a obra. Dos textos
analisados e presentes nas referências, não houve menção a uma tratativa a respeito de
se levar a cultura a esses polos afastados dos museus através de exposições itinerantes
ou da necessidade da criação de espaços culturais que permitissem esse acesso mais
próximo do trabalhador com o Museu a partir de seu local de residência.
Atualmente, é possível que o trabalhador acesse coleções virtuais e faça tours
guiados por diversos museus ao redor do mundo a partir do computador e até mesmo
utilizando óculos de realidade virtual. Obviamente que Mário jamais teve contato com
essa tecnologia, uma vez que o mesmo faleceu no ano de 1981, contudo, é possível
analisar que Pedrosa não foi precursor da defesa de novos espaços de contato com a arte
que não os já conhecidos museus, feiras de arte, galerias e Bienais. Em algumas de suas
críticas, principalmente àquelas direcionadas às intervenções que Hélio Oiticica, o
crítico faz aproximações entre a questão de se levar os bólides para dentro das
comunidades e não abre mão de discorrer a respeito de obras interativas, como os
Parangolés de Oiticica ou os Bichos de Lygia Clark.
Todas estas obras entram dentro do escopo que o crítico determina como sendo a
experiência artística que pode levar o trabalhador à consciência de classe. Mas é
importante notar que quando se trata de determinar caminhos pelos quais o trabalhador
poderá acessar essas obras, dentro da crítica de Pedrosa não há um caminho possível;
algo que discorra sobre possíveis desdobramentos para uma crítica a respeito da
mediação ou até mesmo da arte-educação. O impacto imediato da consciência de classe
autodeterminada é quase uma entrelinha quando Mário Pedrosa discorre sobre a
potência socializante da arte. O incômodo que o trabalhador pode sentir neste lugar
construído pela burguesia para a burguesia, mesmo que dentro de um escopo público,
como o é o Museu Salvador Allende, não é uma questão na crítica de Pedrosa.
Por fim, as questões sociais que envolvem o acesso aos museus latino-americanos
pela população periférica local abrem lacunas a respeito do discurso libertário que
Mário Pedrosa emprega ao discutir o papel desempenhado pelas instituições de cultura,
seja um Museu ou uma Bienal. Ao que parece, não há uma grande diferenciação entre
um e outro, apesar da alfinetada que Pedrosa vez ou outra emprega ao afirmar que “a
arte, uma vez que assume valor de câmbio, torna-se mercadoria como qualquer
presunto''.(Pedrosa, 1972, p. 448). Apesar de Mário crer que as instituições, por estarem
de portas abertas, estão disponíveis e podem ser acessadas por trabalhadores urbanos e
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
mineiros, creio que ele, mesmo que socialista e crítico ao capitalismo, não consiga
enxergar de fato as barreiras que impedem essa conscientização, que perpassa as
condições materiais de sobrevivência dos sujeitos, necessidades mais urgentes do que a
contemplação visual de alguma obra que mimetize a sua situação concreta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
PEDROSA, Mário. As tendências sociais da arte de Käthe Kollwitz. In: Arte: Ensaios.
Organizado por Lorenzo Mammì. São Paulo: Cosac Naify. 2015, p. 25-47.
PEDROSA, Mário. Vicissitudes do artista soviético. In: Arte: Ensaios. Organizado por
Lorenzo Mammì. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 359-366.
PEDROSA, Mário. Mundo em crise, homem em crise, arte em crise. In: Arte: Ensaios.
Organizado por Lorenzo Mammì. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 433-439.
PEDROSA, Mário. Quinquilharia e Pop Art. In: Arte: Ensaios. Organizado por Lorenzo
Mammì. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 393-399.
PEDROSA, Mário. Arte ambiental, Arte pós-moderna, Hélio Oiticica.In: Dos murais de
Portinari aos espaços de Brasília. Organizado por Aracy A. Amaral. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1981. p. 205-210.
PEDROSA, Mário. Situação atual nas Artes. In: Dos murais de Portinari aos espaços
de Brasília. Organizado por Aracy A. Amaral. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981. p.
7-26.
PEDROSA, Mario. Dijo Mario Pedrosa. In: Discursos pronunciados por el presidente
de la republica, doctor salvador allende, y por mario pedrosa, presidente del comite de
solidaridad artistica con Chile, con ocasion de inaugurarse la primera muestra de
obras donadas al museo de la solidaridad. Santiago del Chile: 1972. Acesso em: 20 dez
2019. Disponível em: https://www.mssa.cl/wp-content/uploads/2017/06/r0199.pdf.
FORMIGA, Tarsila et. al. Mario Pedrosa atual [E-book] / Organização: Izabela Pucu,
Glaucia Villas Bôas, Quito Pedrosa. Rio De Janeiro: Instituto Odeon, 2019. 542 P.: Il.
Color; Epub.
REVISTA ARIEL
LA PROPAGANDA DE LA RED ANTIMPERIALISTA DE
SOLIDARIDAD CON AUGUSTO C. SANDINO. 1927-1930
INTRODUCCIÓN
Entre 1927 y 1930 se configuró una de las primeras redes de solidaridad que
involucró a las diversas expresiones latinoamericanas del antiimperialismo en torno a la
guerrilla encabezada por Augusto C. Sandino. A partir de esta estructura la lucha del
Ejercito Defensor de la Soberanía Nacional de Nicaragua (EDSNN) fue conocida a
nivel continental y la figura de su líder se convirtió en representante del imperialismo
latinoamericano durante la primera mitad del siglo XX.
Buena parte de la historiografía que analiza este momento histórico centra su
atención en la figura de Sandino y su relación con algunos de los intelectuales más
importantes de la época de forma fortuita. El objetivo de este trabajo es complejizar el
análisis de esta relación a partir de una serie de vínculos que permitieron sostener la
lucha sandinista en el periodo de 1927 a 1930. Para ello analizamos la conformación,
desarrollo y disolución de una red de vínculos solidarios que establecieron
organizaciones como la Liga Antiimperialista de las Américas, la Alianza Popular
Revolucionaria Americana y el Unionismo Centroamericano, entre otras.
Enfatizamos la tarea de propaganda realizada por esta red concentrándonos en
Revista Ariel, publicación hondureña que de 1927 a 1929 fungió como vocería oficial
del EDSNN. Ponemos especial atención en la narrativa elaborada por Froylán Turcios,
editor de la publicación hondureña, que se caracterizó por una visión heroica y devota
de la lucha sandinista en la cual colaboraron los principales intelectuales
latinoamericanos: Gabriela Mistral, Waldo Frank, Isidro Fabela, César Falcón, Tristán
Maroff, así como el mismo Sandino.
La década de los años veinte del siglo XX puede ser considerada una bisagra en el
tiempo (FUNES, 2006, p. 13). La primera posguerra definió que este periodo de
transición estuviera marcado por tres hechos: la decadencia de Europa como referente
civilizatorio; la consolidación de Estados Unidos como potencia imperialista y la
Revolución rusa de 1917.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Para América Latina la complejidad de los años veinte se expresó al menos en tres
niveles: en el ámbito internacional los países latinoamericanos comenzaron a ser
considerados como un espacio de influencia a disputarse entre Estados Unidos y la
URSS; en el nivel regional se consolidó un discurso unificador de América Latina —
basado en el binomio materialismo vs idealismo —, y, por último, los distintos países
experimentaron importantes procesos de cambio social protagonizados por obreros,
campesinos, indígenas, mujeres y estudiantes.
En este contexto se articuló un movimiento antiimperialista configurado a partir
de la convergencia de distintos proyectos políticos — nacionalistas, anarquistas
comunistas, hispanoamericanistas, unionistas — que se expresaron en momentos clave
como la intervención norteamericana en México, Nicaragua, Haití, Cuba y República
Dominicana. El antiimperialismo como tópico en estos años consolidó una tradición
antinorteamericana que se gestó desde finales del siglo XIX y que tuvo en la política del
Big Stick una de sus expresiones más violentas.
En esta década la idea de que existían varios tipos de imperialismo, uno
parasitario (norteamericano) y otro civilizatorio (europeo), estaba puesta en duda
después de los efectos causados por la Gran Guerra. A partir de esta premisa los grupos
antiimperialistas latinoamericanos comenzaron a delinear estrategias comunes y
plantearon sólidos argumentos para manifestarse contra la presencia estadounidense,
especialmente en la Cuenca del Caribe. Bajo premisas como: la defensa de la
autonomía, la soberanía y la independencia política y económica el movimiento
antiimperialista latinoamericano entró en consonancia con los movimientos
anticolonialistas de Asía y África.
La coordinación y la manifestación pública de las organizaciones antiimperialistas
fue fundamental. Ya fuera conformando colectivos y revistas, manifestándose
públicamente, realizando conferencias o a partir de expresiones individuales condenaron
la estrecha relación de las oligarquías latinoamericanas con los grupos económicos y el
gobierno estadounidense. Sin embargo, a pesar de sus coincidencias y de una aparente
sintonía, el movimiento antiimperialista se caracterizó por sus tensiones, fracturas y
confrontaciones.
El periodo de 1924 a 1927 es clave en la configuración de este movimiento, pues
se fundarán tres importantes organizaciones antimperialistas de proyecciones
continentales: La Liga Antiimperialista de las Américas (LADLA), la Alianza Popular
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Bajo esta lógica la Liga de las Américas fue financiada en gran medida por la
Komintern y creo una estructura organizativa y de propaganda dirigida especialmente
por comunistas norteamericanos. A esta estructura, encabezada por José Allen y Charles
Phillips, se adhirieron connotadas figuras de la esfera política y cultural mexicana como
Diego Rivera, Úrsulo Galván, Carlos Pellicer, José Clemente Orozco, Xavier Guerrero,
David Alfaro Siqueiros, German Litz Arzubide y Enrique Flores Magón, entre otros. De
igual forma se incorporaron importantes intelectuales y políticos latinoamericanos
afincados en México como el dominicano Pedro Henríquez Ureña, el cubano Julio
Antonio Mella, el peruano Edwin Elmore, y el venezolano Gustavo Machado. Como
parte de esta estructura se crearon dos órganos de propaganda: El Machete y El
Libertador.
Por su parte la Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA) fue fundada
en 1927 por el peruano Víctor Raúl Haya de la Torre2. Según el programa de la
2
La historiografía aprista suele datar la fundación de la APRA en mayo de 1924 en el marco de la
ceremonia de la trasmisión de poderes de la Federación de Estudiantes de México. En ese evento Haya de
la Torre pronunció un discurso en el que se asumía presidente de la Federación de Estudiantes Peruanos,
y en el que sostenía las premisas latinoamericanistas que compartía con el filósofo y ministro de
educación José Vasconcelos, —de quien fue secretario—. Durante el evento no se mencionó nada sobre
la fundación de una organización como la APRA. En 1926, ya en su estancia en París, Haya de la Torre y
un grupo de cuzqueños formarán el Frente intelectual Antimperialista y en enero de 1927 se fundará la
primera sección de la APRA. El episodio fundacional en México tiene como preámbulo la conferencia de
Bruselas (VALDERRAMA, 1979, 123-124)
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
3
Carta de Carlos León a Plutarco Elías Calles, 20 de agosto de 1927. AGN- México, Fondo Plutarco
Elías Calles, exp. 4/489
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
4
Una de las primeras expresiones unionistas que denunciaron la presencia estadounidense como una
amenaza para la existencia de los países centroamericanos fue la presencia de William Walker en
Nicaragua entre 1855-1857, cuando el proyecto cuando el proyecto colonizador del filibustero había
sobrepasado los objetivos e intereses de los liberales nicaragüenses que había pedido su intervención.
Como respuesta a la amenaza que representaban la presencia de Walker las clases dirigentes y letradas
utilizaron distintos mecanismos para exacerbar el miedo respecto de la intervención de las huestes
estadounidenses y la defensa de la unión centroamericana. Un ejemplo de esta acción en conjunto fue el
folleto costarricense Clarín Patriótico que circuló desde 1857 y que contenía poesía y cantos exaltando
tópicos como la nación, el patriotismo y la independencia, y representaba a los filibusteros como los
bárbaros impíos, los representantes de la esclavitud y la traición. (QUESADA, 2010, 23-54)
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Este apoyo puede analizarse a partir de las relaciones que las distintas
organizaciones establecieron en torno al Ejército Defensor de la Soberanía Nacional de
Nicaragua en general y de la figura de Sandino en particular. Denominaré al conjunto de
relaciones, que estuvieron activas durante el periodo de 1927 a 1930, como Red
Antiimperialista de Solidaridad (RAS).
Entendemos una red como el conjunto de relaciones efectivas (IMÍZCOZ, 2011)
entre personas u organizaciones estructuradas en un espacio y temporalidad
determinados con un objetivo particular. Los vínculos que componen una red pueden
ser de diferentes tipos— personales, afectivos, de parentesco, amistad, patronazgo,
vecindad, profesional, confesional asociativas—que, a partir de los intercambios, la
colaboración y los conflictos se pueden observar las dinámicas e intereses de las
facciones o grupos que actúan en el campo social o político (IMÍZCOZ, 2009, p. 81).
Concebir la temporalidad y la espacialidad de una red implica considerar las
relaciones que la constituyen como dinámicas de ahí que una red no sea armónica ni
completamente duradera. Si la intención es incidir en el rumbo de un proceso o un
problema en el momento en que deje de haber tal coincidencia la existencia de la red se
pone en juego.
Ciertamente el conjunto de vínculos efectivos que analizamos tuvo objetivos, una
temporalidad y una espacialidad. A demás cada una de las organizaciones que se
involucraron en esta red tuvo una intencionalidad y a partir de ella actuó en
consecuencia. Por ello cada una de las organizaciones integrantes de esta red
desplegaron los recursos que tuvieron a su disposición para acercarse a la guerrilla
sandinista con el fin de capitalizar a su favor la lucha nicaragüense.
La efectividad de los vínculos durante este periodo radicó en la materialización de
los objetivos en común de las organizaciones antiimperialistas— por un lado, el
combate al imperialismo norteamericano y, por otro, la de una unidad
latinoamericana— que les permitió presentarse como un bloque homogéneo y en acción
coordinada.
Si partimos de la idea de que la Red Antiimperialista de Solidaridad además de ser
la configuración de las relaciones y las acciones coordinadas de las organizaciones
antimperialistas dio sentido a las coincidencias y tensiones que existían entre las
distintas posturas antiimperialistas, podemos entender cómo y en qué nivel actuaron
cada una. De manera que, conforme intervinieron en el conflicto los intereses y las
tensiones se expresaron los vínculos establecidos entre las distintas organizaciones se
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
diluyeron pues, aunque en algunos puntos pudieron establecer consensos pesaron más
las diferencias.
La solidaridad fue un valor humanista que tuvo dos funciones en este entramado.
Por un lado, fue utilizada como una justificación para la intervención de las
organizaciones antiimperialistas con el objetivo de nivelar la confrontación entre las
huestes sandinistas y los marines norteamericanos. Para conseguir este objetivo fue
fundamental la propaganda pues la circulación de información y de un imaginario
favorable a la guerrilla sandinista permitió cuestionara la presencia de Estados Unidos
en Nicaragua y legitimar el movimiento armado. Por otro lado, la solidaridad tuvo una
expresión militar. Los vínculos articulados por las organizaciones antiimperialistas
permitieron la circulación de dinero, armas y personas que engrosaron las filas del
EDSNN. En ambos niveles las organizaciones antiimperialistas se ubicaron y
funcionaron de forma distinta.
En agosto de 1927 la UCSAYA, desde México, organizó un comité contra la
presencia estadounidense desde un perfil humanitario para poder apoyar a las victimas
nicaragüenses. El objetivo de este comité fue comunicado al entonces presidente
mexicano Plutarco Elías Calles en una carta el venezolano Carlos León, explicaba:
Misión Especial acreditada ante el gobierno de México para asistir a las festividades en
representación del gobierno hondureño.
Para 1925 Rafael Heliodoro Valle era considerado uno de los intelectuales
centroamericanos más reconocidos en América Latina, por ello su labor
antinorteamericana frente a la ocupación de la ciudad de Tegucigalpa por parte de los
marines norteamericanos y, posteriormente, la invasión a Nicaragua en 1926 lo llevaran
intensificar su actividad política como el puente entre los intelectuales hondureños,
nicaragüenses, guatemaltecos, salvadoreños y costarricenses con centroamericanos
asentados en México, los intelectuales mexicanos, y el resto de los intelectuales
latinoamericanos. Será en 1927 cuando la actividad política de Rafael Heliodoro Valle
en la región tendrá relevancia, específicamente para el movimiento antiimperialista.
Heliodoro Valle y Carlos León, ambos, parte de la UCSAYA, fueron personajes
estrechamente vinculados con los grupos políticos e intelectuales en México. Junto con
los nicaragüenses José Pedro Zepeda y Hernán Robleto, este último también miembro
de la Unión Centro Sud Americana y de las Antillas, formaron un núcleo que desde
México vinculó al MAFUENIC y a otras organizaciones antiimperialistas con la
estructura que dirigirá Turcios en Tegucigalpa.
En México Heliodoro Valle establecerá una estrecha relación con el líder de la
APRA. En una carta de inicios de 1928 Víctor Raúl Haya de la Torre pide apoyo Valle:
El viaje aludido se realizó en junio de 1928, el cual tenía por objetivo arribar a
Nicaragua para reunirse con Sandino (PAKKASVIRTA, 2001, p. 16). La gira del líder
aprista por Centroamérica consistió en una serie de conferencias mediante las cuales
estableció contacto con importantes intelectuales unionistas como Alberto Masferrer y
Joaquín García Monge. Como ha documentado Jussi Pakkasvirta la intención de la
6
Carta de Víctor Raúl Haya de la Torre a Rafael Heliodoro Valle. Torreón, 26 de enero de 1928.
Biblioteca Nacional de México, Fondo Rafael Heliodoro Valle, exp. 1019., doc. 9
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
El periodo que comprende los años de 1927 a 1929 fue el momento en que las
organizaciones antiimperialistas actuaron y se mostraron como un solo bloque contra
los Estados Unidos. Uno de los factores que ayudaron a esta percepción se plasmó en la
construcción de una narrativa latinoamericanista y la iconización de la figura de
Sandino elaborada por un grupo de ensayistas, artistas, poetas y políticos que se
pronunciaron a favor del levantamiento nicaragüense y participaron activamente dentro
de las organizaciones antiimperialistas o se adhirieron a la narrativa antinorteamericana.
Este grupo de personajes coincidieron en ser opositores a las oligarquías y las
dictaduras; defendieron la soberanía de las naciones latinoamericanas; se manifestaron a
favor de la incorporación gradual de campesinos, obreros, indígenas y mujeres en la
vida pública de sus naciones, y tuvieron una actitud ambigua frente a Estados Unidos
pues, por una parte, se opusieron al expansionismo militar y cultural, pero, por otra,
admiraban los logros de modernizadores conseguidos.
Buena parte de los integrantes de este grupo procedió de una clase media letrada o
fueron cercanos a oficios como la tipografía, por lo tanto, asumieron una importante
participación en los medios escritos y tuvieron la oportunidad de recorrer algunas de las
de las ciudades y puertos más relevantes de la región latinoamericana, Estados Unidos y
Europa.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
7
Estos reportajes fueron financiados por The Nation publicación periódica neoyorkina que los reprodujo
entre febrero y abril de 1928. Los reportajes mismos fueron traducido al español y publicados por el
Comité Pro Sandino de San José de Costa Rica y el Universal Gráfico de México. En 1983 estos
reportajes serían publicados por la Editorial Nueva Nicaragua bajo el título Banana Gold.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Las crónicas de Beals fueron publicadas en Revista Ariel y al igual que otros
intelectuales latinoamericanos, incluidos en la revista, mostró una abierta simpatía y
admiración por la lucha sandinista y particularmente por Sandino. Beals hace una
descripción del guerrillero que abonará a su iconización al describirlo de la siguiente
forma:
CONCLUSIONES
a una serie de esfuerzos que permitieron ser a Sandino el héroe devoto representante de
una de las gestas antiimperialistas más importantes del siglo XX.
FUENTES
“El aviador que bombardeo Chinandega” Revista Ariel, n°39, 1 abril de 1927
“El General Sandino según Carleton Beals” Revista Ariel, n°64, 1 de mayo de 1928
“Las resoluciones sobre América Latina” en El libertador, n°12, vol. II, 1 de junio 1927
Carta de Carlos León a Leo Rowe, México 5 de octubre de 1927, Revista Ariel, n°55, 1
de diciembre de 1927
Carta de Carlos León a Plutarco Elías Calles, 20 de agosto de 1927. AGN- México,
Fondo Plutarco Elías Calles, exp. 4/489
Carta de Víctor Raúl Haya de la Torre a Rafael Heliodoro Valle. Torreón, 26 de enero
de 1928. Biblioteca Nacional de México, Fondo Rafael Heliodoro Valle, exp. 1019.,
doc. 9
BIBLIOGRAFÍA
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IZMÍZCOZ, José María. Las redes sociales de las elites: conceptos, fuentes y
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Disponible en
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QUESADA Camacho, Juan Rafael. Clarín Patriótico: la guerra contra los filibusteros
y la nacionalidad costarricense. San José: Eduvisión- Museo Histórico Juan Santa
María, 2010.
INTRODUÇÃO
1
Licenciado em Ciências Sociais, Universidade Pedagógica Nacional - Colômbia. Professor da Educação
Básica. Membro do Grupo de Estudos em História e Literatura (GEHISLIT) da PUC Minas. E-mail:
[email protected]
2
Mestre em História Social – Unioeste/PR. Professora da Educação Básica – Seduc/MT. Membro do
Grupo de Estudos em História e Literatura (GEHISLIT) da PUC Minas. E-mail:
[email protected]
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
brasileiros condensado em múltiplas derrotas e fracassos, são vidas que falam pela pena
dos grandes escritores Eduardo Caballero e Jorge Amado, intelectuais de nossa América
que exploraram questões de nosso ser como povos que historicamente conviveram com
as múltiplas manifestações de violência.
série de reflexões que permitem fazer um balanço da construção social a partir das
representações que se pode apreender de sua leitura.
Para ter um pouco mais de clareza sobre as distintas relações da literatura com a
história recordamos que de 1946 a 1965 a Colômbia viveu um momento crítico,
marcado por uma violência bipartidária, podendo ser considerado o evento sociopolítico
e histórico mais impactante que ocorreu no país no século passado.
3
Augusto Escobar Mesa en o texto: La violencia: ¿Generadora de una tradición literaria? Cf. Revista
Gaceta Colcultura, No. 37. diciembre de 1996. p. 21-29. Fala de 57 escritores que durante 20 anos
escreveram mais de 70 novelas e numerosos contos formando assim um movimento literário que jamais
se havia produzido na Colômbia.
4
Quando se escreve com maiúscula, refere-se ao período entre 1946-1965, denominado “la Violencia”.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
113
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
conceito de representação tem mudado a compreensão do mundo social, visto que nos
convida a pensar na construção das identidades, das hierarquias e as classificações como
resultado de «lutas de representações», onde o importante é a força, afirmada ou negada,
dos signos que devem ser reconhecidos como legítimos no domínio de uns sobre os
outros.
De maneira tal, as representações são as formas de visualizar e enunciar a
realidade estabelecendo de que modo é visto o mundo desde uma perspectiva individual
ou coletiva. Para Chartier também é importante compreender os mecanismos que
operam na formação de representações coletivas sobre a realidade e os efeitos que essas
representações têm na orientação da ação social. Se faz necessário examinar a função
ativa da representação como um elemento que gera condutas e práticas sociais.
Passa-se assim a outra categoria trabalhada por Roger Chartier que corresponde
às práticas. Se pode entender que as práticas são as ações concretas de sujeitos ou
grupos determinados em um lugar e tempo específico. Através das práticas é possível
rever a atividade humana nos diferentes cenários, para este caso específico as práticas
violentas que foram geradas ou às quais foram submetidos os temas históricos tratados
no romance de Caballero Calderón.
Desta forma, as práticas estão conectadas de maneira muito estreita com as
representações, já que a ação do sujeito está medida pela representação que confere
significado aos atos e movimentos e as converte em portadoras de sentido. Estas ações
são um produto social que tem como suporte uma representação do mundo. Finalmente,
Chatier (1992) sublinha que, por inscrever-se numa obra situada numa história das
práticas historicamente diferenciada e numa história das representações inscritas em
textos ou produzidas por indivíduos; pode-se compreender a maneira como os sentidos
e os significados de si mesmos e do mundo são construídos e produzidos.
Esse traço essencial do romance permite vislumbrar que cada uma das
representações que se apresentam a seguir se realiza sob a figura do camponês, suas
construções sociais e suas decisões pessoais. É preciso mencionar que dentro do
romance há uma referência direta à realização das próximas eleições presidenciais, este
elemento é de extrema importância porque a partir dele entraremos para observar a
força das representações e a subsequente gestação de práticas violentas. No início, este
acontecimento eleitoral permeia as diferentes relações sociais de forma particular, visto
que o discurso político está mais em voga do que nunca entre a população e só se pensa
e se discute quem e de que forma vai ganhar as referidas eleições. A tensão no ambiente
faz com que os conflitos pelo poder aumentem drasticamente.
El año de 1946 las elecciones habrían de ser muy reñidas según los
técnicos, porque los conservadores levantaron la abstención electoral
la consigna de ambos partidos era la de conquistar las urnas como
fuera, por las buenas o por las malas, pues se trataba ni más ni menos
que de elegir un nuevo presidente de la república. Los liberales tenían
en sus manos el poder, pero estaban divididos en dos bandos
irreconciliables, por lo cual los de la oposición oficial, que eran
conservadores, veían el cielo abierto y propicio para alzarse con el
santo y con la limosna que habían perdido en 1930. Agentes
electorales, candidatos del partido conservador y de los dos bandos
liberales, directores políticos, recorrían el país dictando discursos y
conferencias que terminaban en formidables batallas Campales en las
plazas de los pueblos. Los periódicos se enseñaban los dientes todas
las mañanas, y había que cogerlos con pinzas no solo porque hedían,
sino porque abrasaban (CABALLERO, 1954, p. 90).
—La política se está poniendo otra vez fea. Al Campo Elías, el que
vivía arriba del puente, lo despacharon de un tiro hace tres noches.
Donde los liberales nos descuidemos, los godos nos vuelven a meter
un susto...
— Cómo le parece! —decía Siervo.
—Al Marcos de la Palmera, que es godo5, los guardias le hicieron una
requisa y le quitaron la cédula. iFigúrese! iAhora los godos con
cédula!
—Yo creía que era liberal.
—Pues no se crea. Resultó el indio más godo que el cura...
(CABALLERO, 1954, p. 22).
No hay quien entienda a los jefes. Primero lo mandan a uno que grite
y alborote y mantenga a raya a los godos, y después, cuando se arma
la grande, ellos se lavan las manos y nos vuelven la espalda
(CABALLERO, 1954, p. 94).
Como se acaba de evidenciar era bastante difícil ter algum tipo de garantia na
hora de estabelecer relações comerciais em escala local, posto que os comerciantes
conservadores enquanto representantes da fraude e do engano exerciam práticas de
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119
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
violência do princípio ao fim. Era cometido maltrato verbal, mentiras, golpes sem
justificativa, o uso de armas de fogo para intimidar, ademais de uma amizade abusiva
entre os administradores públicos, os guardas e o alcalde6. De fato, se algum camponês
contava ao alcalde as formas de proceder de Don Anselmo, aquele empreenderia uma
perseguição contra quem se atreveu a denunciar seu amigo. Isto ocorria assim porque o
alcalde se reconhecia dentro de uma pequena coletividade que estava, hierarquicamente,
sobre todos os demais e com Deus (Igreja) e a lei (Estado) a seu serviço.
Nesse contexto existem muitos atores que, como participantes, frutificam novas
formas de violência por meio das quais se reconhecem e estabelecem relações de todos
os tipos. Não é incomum que para preservar os espaços de que se apropriaram através
do uso do poder, desejosos para manter o domínio sobre certos tipos de recursos, onde
infelizmente a maioria dos desafortunados são os camponeses.
Por outro lado, a representação de engano e fraude passaria pela máscara da
indiferença, posto que o pouco apoio que se dá ao campesinato local com suas
produções feitas da forma mais artesanal e rudimentar complementando com o
estabelecimento de acordos internacionais, alimentaram de forma violenta a
desocupação dos trabalhadores rurais e engrossando a lista de males. Agora, ao declive
político, se somará o drama da fome.
6
Eduardo Caballero foi alcalde do município de Tipacoque no departamento de Boyacá entre os anos de
1968 a 1971, o que lhe permitiu criar uma consciência muito clara das ações do alcalde em relação à sua
população e ser muito crítico quanto a ostentação do poder e proceder dos prefeitos de diferentes
municípios da Colômbia. O seu texto Os Camponeses, de 1974, aponta a sentença exposta em Siervo sin
tierra e os abusos por parte dos administradores locais “Las aldeas se mueren porque las siguen
combatiendo estas alimañas. Alcaldes sin control, caciques que mandan sobre el alcalde, policía que a los
dos les obedece y es como su guardia de combate, pájaros que anidan a la sombra del amo y escarabajos
que muerden las raíces agazapados bajo las escamas del otro. Y el cacique y el alcalde siguen tan orondos
y tan campantes en todo el país, pues para ellos no hubo mayo y continúan en su agosto” (Caballero,
1974. Los Campesinos. Pág. 152).
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Dentro dessa maioria dos atingidos, é inevitável que surjam relações que se
organizam segundo a mesma lógica da violência econômica, aquela que põe em jogo os
esquemas de perceção e ação dos sujeitos históricos, ou seja, foram levados a praticar
uma série de atos que agora vão contra a lei. Ironicamente essa mesma lei que nunca os
apoiou. Assim, a construção de sentido em torno da vida e da sobrevivência viria agora
das mãos do contrabando.
Pensar a história do Brasil, mesmo antes de ser Brasil, talvez seja pensar a
construção social de um território em paralelo com a violência produzida e reproduzida
continuamente ao longo dos séculos. Primeiro, podemos destacar as guerras justas, dos
invasores portugueses contra as populações indígenas, seguidas de um modelo que
escravizou negros vindos d’África e nativos durante mais de três séculos. Uma abolição
mal elaborada que afirmava que todos eram livres, mas cujas práticas sociais
reproduziam os aspectos estruturais da escravidão, que se mantém fortemente
arraigados na sociedade brasileira. Assim, tal processo não concedia espaços para, nem
mesmo minimamente, ao contingente populacional recém-liberto.
No início do século XX parte dos grandes heróis da pátria eram os bandeirantes
e os movimentos das bandeiras paulistas que tinham por objetivo o aprisionamento de
indígenas para escravização, mas que, pelo discurso oficial, se tornaram os responsáveis
por expandir as fronteiras do “Brasil” e assegurar o domínio português sobre essas
terras. Para além dessas questões ainda convivemos com outros tipos de violência como
no caso das mulheres escravizadas que eram violadas constantemente pelos senhores e
capatazes, o que deixou uma marca racial complexa a ponto de, até pouco tempo atrás,
ser comum dizer que “no Brasil todo mundo tem um pé na cozinha”, expressão que
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Estes contrastes e tensões sociais se fazem presentes nas mais diversas classes
sociais representadas, suas formas de interação, as relações por elas estabelecidas. Bem
como são apresentadas as estruturas do Estado e o reflexo das decisões tomadas em
escala macro no impacto da vida cotidiana de pessoas distantes dos centros de poder.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
- Jagunço?
- Não é jagunço porque é fazendeiro rico... Zé Estique tem um
mundão de fazendas, um nunca acabar de pés de cacau... Mas um
número de mortes ainda maior.
- Nunca foi preso?
O homem espiou piscando os olhinhos:
- Preso? – sorriu... – Ele é rico... (AMADO, 1979, p. 37).
A narrativa construída por Jorge Amado no livro Terras do Sem Fim, de 1944,
foi escrita quando do exílio do escritor grapiúna durante a ditadura do Estado Novo de
Getúlio Vargas (1930-1945). Nesse livro, Jorge Amado, recua até o início do século XX
narrando as disputas de terras entre a família Badaró e o fazendeiro Horácio da Silveira,
compondo um cenário característico das disputas agrárias que são observadas até hoje
no campo brasileiro, como o caxixe, ou seja, a grilagem de terras.
O mote principal para o desenvolvimento da narrativa de Terras do Sem Fim é a
disputa entre a família Badaró, liderada por Sinhô, e o coronel Horácio da Silveira por
uma porção de terras ainda intactas, as matas do Serqueiro Grande. Para se apossarem
da referida mata, os coronéis, ao longo do livro, se lançam dos expedientes mais
diversos para garantir sua posse e, consequentemente, quem teria o mando político e
econômico da região. A trama se desenvolve nas cidades do sul da Bahia, em especial
Ilhéus, que foi uma grande região cacaueira durante parte do século XX.
Durante o desenrolar da história somos apresentados às mais diversas
personagens que compunham a sociedade cacaueira de então, desde os coronéis até os
trabalhadores alugados e suas famílias. As relações de compadrio, alinhamento político,
dominação de classe, o uso indiscriminado da violência, a impunidade das elites, se
fazem presentes, nos evidenciando traços constitutivos da sociedade brasileira.
Com o fim do Império e a ascensão do modelo republicano, em 1889, o título de
coronel7 passou a ser algo mais fluido, não sendo algo exclusivo dos grandes
proprietários, mas algo que poderia ser adquirido caso o indivíduo fosse aliado político
de algum coronel mais antigo ou exercesse alguma profissão de prestígio como
advogados, médicos, engenheiros (OLIVEIRA, 2017, p. 76-77). Os coronéis, fosse pela
7
Ao falarmos de coronel com quem não estiver familiarizado com a história do Brasil pode imaginar que
nos referimos a alguém com posto e patente dentro do exército, por exemplo. A concessão do título de
coronel remonta aos anos do Império brasileiro. Os grandes fazendeiros recebiam esse título a fim de
serem os representantes armados do Estado em determinada localidade e garantirem a supressão de
qualquer possível levante popular.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
124
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
riqueza em terras por meio de heranças ou por uma questão de profissão, reproduziam
as mesmas formas de agir: comandavam suas terras e a política de seus municípios de
forma a sempre favorecer aos seus interesses, de suas famílias e de sua base aliada,
enraizando uma noção turva entre o público e o privado no Estado brasileiro.
A relação de clientelismo existente entre os coronéis e as populações locais
também são evidenciadas na obra amadiana de Terras do Sem Fim. O autor apresenta
como que atendimentos básicos que, em tese, são ofertados pelo Estado passam a ser
controlados pelas famílias no poder e seus apoiadores, dando uma imagem pública aos
coronéis de benevolência e bondade assim explicados por Janaina Oliveira:
Além dos barulhos, um dos temas recorrentes no livro são os caxixes, ou seja, a
apropriação indevida das terras de trabalhadores e pequenos proprietários rurais por
parte dos coronéis. Uma das primeiras referências à prática de usurpação das terras no
livro é encontrada nas primeiras páginas e se passa no navio que leva os trabalhadores
de pontos mais ao norte da região nordeste, rumo às plantações de cacau do Sul da
Bahia. Em um diálogo entre trabalhadores que estão migrando em busca de vida
melhor e outras pessoas no navio, um senhor, ao ouvir o que falavam os outros
passageiros sobre as terras ricas do Sul da Bahia, indaga se os presentes conheciam o
caxixe, o descrevendo assim:
“- Eu era menino no tempo da escravidão... Meu pai foi escravo, minha mãe
também... Mas não era mais ruim que hoje... As coisas não mudou, foi tudo
palavra...” (AMADO, 1976, p. 98).
uma classe social inferior. Dessa forma, essas empregadas “quase da família” deveriam
se contentar com os presentes esporádicos, com as sobras de comida e em não ter sua
individualidade respeitada. Inúmeras vezes não se admitia que essas pessoas poderiam
ter qualquer traço de desejo, sonhos, vontades.
Para algumas mulheres das classes trabalhadoras a perpetuação do pensamento
senhorial se dava por meio do trabalho doméstico nas casas dos patrões, para outras e
para uma grande parcela dos homens era o cotidiano das roças que lhes situavam nessa
“nova, velha, ordem social”. Eram denominados de alugados, e se caracterizavam por
serem os migrantes de outras regiões que se dirigiam à Ilhéus e suas redondezas
vislumbrando uma realidade melhor que a encontrada em suas localidades de origem.
Esses trabalhadores eram escolhidos no porto de Ilhéus e redirecionados para os
trabalhos nas fazendas da região. Ao se instalarem se deparavam com uma realidade
diferente daquela que imaginavam e, a maioria acabava por se tornar escravo por
dívidas. A configuração desse tipo de escravidão é explicada no livro de Jorge Amado
por meio de uma personagem que trabalha nas roças para um recém-chegado, vindo do
Ceará:
não existem vínculos duradouros entre escravo e o dono, e o escravo não possui valor
econômico” (LE BRETON, 2010, p. 194). Esses alugados que chegavam todos os anos
para trabalharem nas lavouras de cacau optavam por esse deslocamento e se ofereciam
para a função. As questões sociais degradantes que os levavam a ocupar tais postos são
fundamentais para que entendamos a lógica que os impulsiona (seca, fome, miséria).
Cabe ressaltar que a escravidão após o século XIX não se relaciona diretamente com a
cor da pele, entretanto, num país como o Brasil, no qual o racismo é estrutural, a cor da
pele ainda define grandemente o local social que o indivíduo ocupará.
Le Breton diferencia escravidão de ocupação degradante, fazendo-o da seguinte
maneira “a pessoa numa situação de trabalho degradante pode ser maltratada, pode
trabalhar sem parar, mas tem a liberdade de sair. A pessoa numa situação de trabalho
escravo não pode sair” (LE BRETON, 2010, p. 194). Os casos dos alugados retratados
os enquadram no conceito de escravidão por dívidas da autora. Após contraírem a
dívida nos armazéns das fazendas, esses empregados viam seu direito de ir e vir
cerceado enquanto não quitassem a dívida.
As dívidas fugiam ao controle dos funcionários e eram organizadas e
contabilizadas pelos donos dos armazéns e pelos coronéis, que não estavam interessados
em perder o trabalhador ou em ter que lhe pagar qualquer valor. Esse modo de agir
poupava os fazendeiros de pagarem salários ou de terem quaisquer outros gastos com
esses empregados. Sendo esta uma condição quase impossível de sair. Os que tentavam
fugir eram perseguidos e, muitas vezes, capturados e surrados ou mortos para servirem
de exemplo aos outros.
Fosse o tratamento dispensado pelos patrões aos alugados nas roças de cacau, ou
às empregadas domésticas nas casas das fazendas aquele era sempre uma marca
indelével do passado escravocrata que não se fez esquecer nas relações sociais,
políticas, econômicas e culturais do Brasil. Esse comportamento de manter os negros,
indígenas e seus descendentes como subalternos nos permeia enquanto sociedade,
mesmo que se tente, por vezes, disfarçá-lo das mais diferentes formas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
transações, foram os dois elementos que adquiriram significado especial para esta
análise. A partir das figuras históricas expostas por Caballero Calderon (1954)
abordamos a proposta feita pela professora Sandra Pesavento que considera que a
principal aposta da história cultural será decifrar a realidade por meio das
representações, tentando alcançar as formas pelas quais os homens de outrora se
expressam sobre o mundo e sobre si mesmos.
Dessa forma, a construção das representações teve uma carga simbólica que
vinha de sua realidade mais próxima, gerando práticas e comportamentos que, conforme
evidenciado, são dotados de uma força que os levou a se posicionar em uma luta
constante pela construção de uma identidade que oscilou entre as imposições dos
dirigentes políticos, que ao mesmo tempo eram donos do capital, e entre o sentimento
rural caracterizado pela nobreza, pelo trabalho e pelo amor familiar.
As temáticas abordadas na primeira parte deste trabalho, hoje ainda têm grande
relevância. A fraude eleitoral foi permeada constantemente com o aniquilamento da
democracia por meio da compra de votos, a manipulação de sua contagem e campanhas
corruptas. Enquanto as miseráveis condições de vida da população continuam as
mesmas, com um tratamento quase desumano, tendo seu trabalho remunerado com
salários que não servem para levar uma vida digna, onde vencem os intermediários e
onde os tratados internacionais são cada vez mais fortes. Por isso, ousamos dizer que a
vida quotidiana não cessa de se refletir a todo o momento nas personagens que
constituem as obras e que são essencialmente fruto do nosso proceder como povo e
como nação.
Na segunda parte do texto tentamos abordar alguns tipos de violência que são
expressos pela narrativa de Jorge Amado em Terras do Sem-Fim. Primeiro, detivemo-
nos nas relações de poder que os coronéis e seus partidários estabelecem e reproduzem
no interior do Brasil nos primeiros anos da República e de como isso afetava a vida dos
trabalhadores rurais e dos pequenos proprietários. Os caxixes, os jagunços, o compadrio
e as formas de operar nessa sociedade.
Num segundo momento nos dedicamos ao processo de não mudança social
promovido pela abolição da escravatura. As formas como os trabalhadores são vistos
dentro do período republicano como uma continuação do pensamento escravagista que
por mais de trezentos anos norteou as relações de trabalho do Brasil.
Trabalhar com a obra de Jorge Amado nos leva a refletir sobre a constituição
da sociedade brasileira em sua totalidade. Quando lemos seus livros nos deparamos com
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
134
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
REFERÊNCIAS
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SERNA, Justo. Heroes alfabéticos, por qué hay que ler novelas. Valencia.
Publicaciones de la Universidad de Valencia, 2008.
INTRODUÇÃO
O presente texto tem como objetivo analisar como arte corrobora na inserção
de corpos dissidentes entendendo que as produções das artistas brasileiras Lyz Parayzo
e Élle de Bernardini assumem um papel social, político e cultural quanto à questão de
identidade e expressão de gênero desde o enfrentamento à sua invisibilidade dentro da
sociedade assim como o combate à violência sofrida por pessoas transexuais em um
país que lidera o ranking em assassinatos a essa população, o Brasil.
As marcas de um colonialismo patriarcal formaram identidades hegemônicas
que produziram pensamentos de lógica hétero-cis-normativas dentro da sociedade
brasileira impondo relações de poder sobre a população transexual e travesti que,
historicamente, foi colocada às margens e expostas às situações de extrema
vulnerabilidade social e violência.
Há a necessidade de se levantar a discussão quanto ao lugar em que essa
população foi obrigada a ocupar tendo como opções de trajetória de vida a prostituição,
o crime ou o suicídio, sendo assim invisibilidades e/ou discriminadas em outros locais
que não estes aos quais são “pertencentes”.
Na primeira parte desta pesquisa, apresenta-se uma leitura dos dados sobre a
violência contra travestis e transexuais no Brasil, analisando como o discurso político
atual pode influenciar parte da sociedade. Propomos também uma breve compreensão
do conceito de identidade e expressão de gênero a partir do olhar dos teóricos Judith
Butler e Paul B. Preciado.
Em seguida, será feito um curto panorama das representações LGBTQIA+2 na
História da Arte com recorte na Arte Romana, passando pelo Renascimento e pelo
1
Pesquisadora independente com Especialização em História da Arte – Teoria e Crítica pelo Centro
Universitário Belas Artes – SP. E-mail: [email protected]
2
A sigla LGBTQIAPN+ refere-se à pessoas que são Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando,
Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Poli, Não-binárias e as demais orientações sexuais,
identidades e expressões de gênero.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
137
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
(Paul B. Preciado)
Tendo como base os Estudos Culturais de Stuart Hall, podemos afirmar que
identidade não é algo inato, ela se desenvolve gradativamente por meio da relação entre
indivíduos e grupos dentro de uma sociedade, construindo identidades que são
múltiplas, mas, ao mesmo tempo, são indissociáveis como raça, etnia, classe social e
assim como a identidade de gênero.
Há muito que se avançar, começando pela educação e na compreensão de que o
sexo biológico não necessariamente é correlato à identidade e expressão de gênero.
Como aponta Judith Butler (2003), essa dicotomia sexo vs. gênero é criada pela
6
Entende-se por cisgênera a pessoa cuja identidade e expressão de gênero correspondem ao sexo
biológico ao qual foi designada ao nascer.
7
Entende-se por cissexismo o conjunto de noções discriminatórias que estabelecem as pessoas trans
abaixo das pessoas cis, de maneira institucional e/ou individual.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
139
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
sociedade a partir de uma “ordem compulsória” que exige essa relação. A filósofa
sugere pensarmos que:
8
Disponível em: https://resistaorp.blog/2018/05/08/a-vida-nao-e-a-identidade-a-vida-resiste-a-ideia-da-
identidade/ Acesso em: Fevereiro de 2021.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
140
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
9
Disponível em http://site.videobrasil.org.br/news/2058869 . Acesso em: 03 de janeiro de 2021.
10
Entende-se por hermafrodita uma condição genética na qual o sujeito nasce com dois órgãos genitais,
tanto masculino quanto o feminino.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
141
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Fonte: https://tendimag.files.wordpress.com/2016/03/12-hermafrodita-impc3a9rio-romano-27-
ac-476-dc-museu-do-louvre.jpg
11
Entende-se por decolonizar o termo cunhado pelo grupo Modernidade/Colonialidade nos anos 2000,
definindo que decolinalidade indica o transcender da colonialidade e não apenas a sua superação
(Ballestrin, 2013).
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
A artista nasceu Lisandro Coelho de Souza (fig. 05), no ano de 1994, em Campo
Grande, subúrbio do Rio de Janeiro em uma casa entre mulheres: mãe, avó e suas tias.
Lyz conta, durante uma entrevista12, que foi na adolescência que sua sexualidade se
manifestou e tomou consciência de que não se encaixava nos padrões heteronormativos,
relatando que o primeiro contato feminino com o seu corpo foi pintar as unhas, aí,
então, teve uma relação diferente socialmente porque percebeu que, ao pintar as unhas,
catalisava uma série de sensações de violência.
A família, sendo grande parte evangélica e outra parte espírita, teve grandes
dificuldades em entender e aceitar a declaração do então Lisandro, o que teve como
consequência relações bastante complicadas. Exceto com a sua avó que, após um
tempo, percebeu a necessidade de estar ao lado da neta, embora ainda tenha dificuldade
em usar o artigo “a” para se referir a ela e chamá-la de Lyz.
Ingressa no curso de teatro, mas devido ao seu distanciamento e de sua família
com as artes (em especial o teatro, visto que em Campo Grande havia apenas um
cinema) sentiu dificuldade em lidar com o curso, o que a fez questionar a continuidade
dos estudos. Decide então cursar a Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de
Janeiro e ali conquista seu espaço, não só no que se refere à questão de gênero, mas de
12
Entrevista concedida por Lyz Parayzo em setembro de 2019. Entrevistadora: Debora Armelin Ferreira.
São Paulo, 2019. 1 arquivo .m4a (28 min.)
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
146
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
classe também. Recebe uma bolsa de estudos e, ao ocupar aquele lugar, concebe seu
entendimento de quem era e qual o seu papel como artista.
Lyz narra que sua ida até à escola de artes sofria variações. Seu trajeto de
Campo Grande até o Parque Lage, localizado em uma área mais nobre da cidade, levava
duas horas entre ônibus, metrô e ônibus e sentia certos marcadores sociais. Enquanto em
Campo Grande, os moradores faziam piadas quanto ao seu gênero, ao chegar ao local de
destino, era como se houvesse um certo respeito, um “perdão de classe” por ela estar
transitando aquele espaço.
Adota, então, o nome de Lyz Big Field13, escolhendo este sobrenome que faz
referência à sua origem geográfica, considerada periferia do Rio de Janeiro, como forma
de falar de suas urgências, questionar os corpos que são julgados unicamente por serem
de áreas periféricas, pois, no Brasil, o seu sobrenome e seu local de origem ditam quais
são seus privilégios e, no seu caso, os acessos aos espaços de artes.
Com sua ousadia, a artista queria romper fronteiras, queria desafiar a lógica
colonial e patriarcal do Parque Lage que defendia um discurso superficial de inclusão.
Foi censurada em três apresentações, a primeira, não tendo sua obra selecionada para
uma exposição, fez uma intervenção dispondo uma série de fotografias de seu próprio
ânus dentro dos banheiros masculinos. Foi neste momento que assumiu como nome
social Lyz Parayzo, com o intuito de “abrasileirar” seu nome, devido a uma pergunta
feita por um professor do Parque Lage sobre como queria que fosse chamada.
Na segunda fez uma crítica à “gourmetização” da cantina da universidade, o que
faria com que os preços dos produtos se tornassem inacessíveis aos alunos bolsistas. E
por último, na abertura de uma exposição, Lyz se posta seminua sob um tijolo enquanto
Augusto Braz rasga grandes pedaços de um papel cor-de-rosa (que se assemelha aos
papéis higiênicos considerados baratos e de baixa qualidade) e posteriormente cola em
seu corpo tomando forma de um vestido de gala com o qual, ao fim, Lyz caminha
lentamente pelo espaço.
Os trabalhos da artista tratam não somente da temática do gênero e do corpo,
que não anseia em ser encaixado em determinadas classificações, um corpo que é
fluido, transitando entre o masculino e feminino, mas também fala sobre classes
refletindo como os espaços institucionais no Brasil são elitistas e segregantes, um “local
13
Lyz Campo Grande, em tradução nossa.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
147
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
de disputa” em suas palavras. Suas obras seguiam uma lógica de crítica não somente
dos espaços, mas também sobre quem os ocupava.
Uma de suas obras é “Putinha Terrorista” (fig. 06) de 2017, em que panfletos
impressos com sua foto nua ou seminua, afirmando o lugar de prostituta e suas
respectivas descrições, com telefone e endereço de galerias de artes do Rio de Janeiro,
são jogados durante aberturas aleatórias de exposições pela cidade. Assim, Lyz pensa
em “transfigurar o lugar marginalizado da prostituição dentro da sociedade em algo
potente, criticando os espaços museológicos” fazendo referência a este local como
também um espaço que se vende, colocando-os como as próprias prostitutas e assim,
expondo as fragilidades do mercado de arte.
No primeiro semestre de 2018, Lyz se muda para São Paulo, para uma residência
artística na FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado. Nesse momento resolve
criar objetos, algo que sempre resistiu fazer por acreditar que estes não dariam conta de
suas urgências, tal como o seu próprio corpo dava.
Nesse momento segue com a ideia de olhar para a sua história: grande parte dos
homens de sua família era ourives. Inicia então a série de joias no ateliê da faculdade,
que era maioritariamente frequentado por homens. E ali sofre constantes ataques de
violência psicológica por parte do técnico responsável pelo ateliê que chegou a quebrar
uma de suas peças e dizer-lhe “Você não deveria estar ali”. A artista que, nessa época,
acreditava que ao vestir-se de forma feminina conseguiria melhor aceitação, chegou a
cortar os cabelos a fim de amenizar os ataques que sofria.
Lyz Parayzo estudou sobre a História da Arte Brasileira no Parque Lage e um
dos movimentos do qual se identificava foi o Movimento Construtivista que tinha
representantes artistas como Franz Weissmann (1911-2005), Waldemar Cordeiro (1925-
1973), Lygia Clark (1920-1988) e Amilcar de Castro (1920-2002), tomando como
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
149
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
referência a técnica de corte e dobra em suas peças de alumínio, uma vez que lhe
faltavam recursos para a solda.
Sua série “Bichinhas” (fig. 08) faz referência à série “Bichos” de Lygia Clark,
atualizando a sua estética e utilizando o nome no diminutivo de uma maneira irônica em
razão de suas peças possuírem “um toque de violência no intuito de criar uma poética,
da necessidade de se defender”, diz a artista. São objetos escultóricos que transcendem a
função de ser apenas apreciado, num estado de passividade, tornando-se uma “arma” de
defesa para que ela possa se defender da violência sofrida cotidianamente, resistir e
sobreviver.
Figura 09 – Unha Navalha, 2016, da série Próteses Bélias. Prata, aço, madeira, espuma, veludo
e cetim.
14
Na década de 1987, ocorreu a chamada “Operação Tarântula” em que policiais perseguiam travestis
que se prostituíam com o argumento de que seria um controle do VIH (vírus da imunodeficiência
humana). Alguns travestis escondiam navalhas nas gengivas e se cortavam perante os policias, que se
afastavam com medo que, do contato com o sangue, pudessem contrair a doença.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
151
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Nascida em 1991, em Itaqui, Rio Grande do Sul, Élle de Bernardini (fig. 11) tem
hoje a consciência do seu privilégio não só de ser branca e pertencer à classe média,
mas pela aceitação e apoio de sempre recebeu de sua mãe, talvez pelo olhar de uma
educadora que acredita na multiplicidade de corpos. O único medo era por sua filha
sofrer qualquer tipo de violência.
15
Disponível em: https://www.pivo.org.br/sobre/ Acesso em: Fevereiro de 2021
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
152
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
16
Entende-se por DRT – Delegacia Regional de Trabalho, uma espécie de registro profissional. Hoje a
sigla foi substituída por SRTE - Superintendência Regional do Trabalho e Emprego
17
Conhecida como "a dança da escuridão" o butô surge no Japão na década de 1950, criado por Tatsumi
Hijikata e Kazuo Ohno, sendo um resultado filosófico da confluência das culturas oriental (tradição
milenar japonesa) e ocidental (substâncias da modernidade dos anos 50)
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
153
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
18
Em entrevista a Amanda Olbel disponível em: https://midianinja.org/news/ouro-e-mel-a-
pote%CC%82ncia-em-ato-atraves-de-elle-de-bernardini/ Acesso em: Fevereiro de 2021
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
154
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Élle também questiona a inserção de corpos trans em locais dos quais lhe são
negados a partir da construção de um novo imaginário para esses corpos além da
marginalizado. Em “A Imperatriz” (fig. 12), 2018/20, com vestido de alta-costura na cor
vermelha e joias, a artista se convida a ocupar espaços arquitetônicos que representam
tanto poder político quanto cultural, adentra estes locais de forma diplomática a fim de
“seduzir” as instituições para que assim, outros corpos também possam ocupar estes
lugares. A artista apresenta um novo olhar para o corpo trans além daquele já
estereotipado pela sociedade.
Com a obra “Dance with me” (fig. 12), 2018/19, a artista se utiliza da expressão
popular, “nem se fulano(a) estivesse coberto de ouro” e assim, cobre seu corpo de mel e
folhas de ouro e convida seu público para dançar acompanhada de músicas consideradas
de bom gosto pela alta sociedade. Além de investigar os sentidos: tato, olfato e audição,
Élle coloca em pauta a aceitação desde corpo pela sociedade. Ao aceitar dançar com ela,
tocando o seu corpo, não só pontuando que houve ali uma aceitação deste para com a
artista, mas o sujeito leva um pouco de ouro em suas mãos e não doenças, sujeira, tudo
o que há atrelado à população travesti e trans. Pelo contrário, leva ouro, um metal
precioso.
Fig. 13: Série: Formas Contrassexuais Acrílica, ouro, feltro e prego sobre tela Díptico, 2 telas de
50x40
Élle se muda para a cidade de São Paulo e participa, juntamente com Lyz
Parayzo, do projeto Pivô Pesquisa. Suas obras compõem o acervo das seguintes
instituições: Museu de Arte do Rio Grande do Sul / MARGS, MAC- RS, MAC-Niterói,
Coleção Santander Brasil, Museu de Arte do Rio, Museu de Arte Moderna do Rio,
Fundação de Artes Marcos Amaro, Museu Nacional da República e Pinacoteca do
Estado de São Paulo. Participou da 12 Bienal do Mercosul, em Porto Alegre e da Bienal
Internacional de Performance Ativismo, em Bogotá/Colômbia e exposições individuais
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
159
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
na Verve Galeria, Galeria Kogan Amaro, Karla Osório, Museu de Arte do Rio Grande
do Sul, Casa de Cultura Mario Quintana e Museu de Arte de Santa Maria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar?, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
Documento sonoro:
Entrevista a Lyz Parayzo (2019) Entrevistadora: Debora Armelin Ferreira. São Paulo, 1
arquivo.m4a (28 min.), registado em Setembro de 2019.
Websites:
https://transrespect.org/wp-
content/uploads/2017/11/TvT_TMM_TDoR2017_Map_ES.pdf Acesso em: 03 de
janeiro de 2021
https://revistahibrida.com.br/2020/11/17/em-2020-brasil-continua-lider-mundial-em-
assassinatos-de-pessoas-trans/ Acesso em: 03 de janeiro de 2021
https://resistaorp.blog/2018/05/08/a-vida-nao-e-a-identidade-a-vida-resiste-a-ideia-da-
identidade/ Acesso em: 03 de janeiro de 2021
https://www.pivo.org.br/sobre/ Acesso em: 01 de fevereiro de 2021
https://midianinja.org/news/ouro-e-mel-a-pote%CC%82ncia-em-ato-atraves-de-elle-de-
bernardini/ Acesso em: 01 de fevereiro de 2021
Vídeos:
https://www.youtube.com/watch?v=YdwLHaGOxK0
https://www.youtube.com/watch?v=iuafej-C6V4
https://www.youtube.com/watch?v=29dE7WDSZoc&t=3s
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162
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Edson Capoano1
Pedro Rodrigues Costa2
INTRODUÇÃO
1
Doutor em Ciências da Integração da América Latina - PROLAM-USP. Pesquisador do Centro de
Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, Braga, Portugal. e-mail:
[email protected]
2
Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho. Pesquisador do Centro de Estudos
de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, Braga, Portugal. e-mail:
[email protected]
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
163
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
DESENVOLVIMENTO
Dos muitos tópicos para discussão da cultura jornalística do século XXI, optou-
se por discutir como se dá a influência da internet sobre o trabalho dos jornalistas e
sobre o fazer jornalístico, especificamente a atuação desse ethos nas redes sociais,
espaços sociotécnicos preponderantes na troca de informação contemporânea.
Pela sua arquitetura voltada a plataformas de interação, graças a ferramentas
digitais de produção, publicação e compartilhamento, as redes sociais potencializam
ambientes digitais socializados, nos quais seus usuários moldam sua topografia ou têm
seus hábitos moldados por ela. Não à toa, uma das metodologias mais utilizadas para
compreensão da sociologia digital é a ARS (Análise das Redes Sociais), que permite a
compreensão destas estruturas e o uso por parte de seus atores (Quandt, Souza, 2008;
Costa, 2020).
Assim, como as redes sociais materiais reúnem conjuntos de atores com relações
entre si, as redes digitais acrescentam vínculos digitais através do fluxo de informação
entre seus membros, categorizadas de diversas formas, como unilaterais, bilaterais ou
triádicas (Quandt, Souza, 2008), em torno de “relações recíprocas, relações indiretas,
com intermediação, com representação, com bloqueio, com mediação e com
coordenação” (Costa, 2020, p.78).
O desenvolvimento do campo jornalístico (Bourdieu, 1994) dentro das redes
sociais, com grupos identitários segundo atividades laborais (Maffesoli, 2007) geraram
cibercultura (Lévy, 2010), assim como o faziam através de linguagem própria a tribo de
jornalistas antes da digitalização (Traquina, 2008). As interações entre os novos meios
de jornalismo (Campos-Freire et al., 2016; Méndez, 2019), especificamente os Ibero-
americanos (Salaverría-Aliaga, 2016), realizam dinâmicas comuns ao seu ecossistema
(Canavilhas, 2015), utilizando a potencialidade das redes sociais, como a co-criação de
conteúdos entre seus membros (Sixto-García et al., 2020).
Da mesma forma, a organização das redes sociais gerou toda uma linguagem e
procedimentos para compreensão de seus elementos individuais e seu funcionamento
como um todo. Os grafos, representações visuais de redes sociais interativas, são
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
165
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
compostos por atores (os membros das redes, representados por esferas ou pontos),
arcos (ou arestas, as conexões entre nós, geralmente representadas por linhas), nós (ou
vértices, geralmente representados por várias linhas conectadas a si). Tais grafos, que se
interligam com a teoria social de Simmel (Costa, 2020), podem gerar díades (ligações
simples), tríades (subgrupos de redes) ou clusters (ou hubs, nós fortemente conectados).
Estas medidas de análise (ou métricas) decorrem de tais componentes básicos que
compõem uma rede, revelando suas dinâmicas (Amaral, 2016; Costa, 2020). Vai-se
utilizar essa nomenclatura e conceito para analisar as interações entre estudo de caso
escolhido, meios nativos digitais de jornalismo ibero-americanos.
Para restringir o objeto de estudo, foi utilizado um método misto de coleta e
seleção. Inicialmente, optou-se pela metodologia snowball para delimitação do corpus
da investigação (Quivy & Campanhoudt, 2003). Definiu-se que os jornalistas
"embaixadores" da entidade Sembramedia (sembramedia.org/equipo), colaboradores
locais em distintos países da Ibero-América, seriam os propulsores do questionário
junto aos meios nativos de idioma espanhol na América Latina. Já para alcançar os
meios nativos digitais em Portugal e no Brasil, utilizou-se a lista do site Media
Alternativos (mediaalternativos.pt) e o Mapa do Jornalismo Independente
(apublica.org/mapa-do-jornalismo), da Agência Pública, respectivamente, para disparo
de e-mails solicitando a resposta do questionário. Finalmente, para o contato com os
meios espanhóis, utilizou-se o Digital News Report 2020 (digitalnewsreport.org) para
definir os meios digitais mais influentes da Espanha, aos quais foram enviados e-mails
solicitando participação neste trabalho.
Neste contexto, os jornalistas/meios respondentes foram questionados sobre a
cultura jornalística que desenvolvem; se assimilam a cultura do meio que estão
instaladas (as redes digitais), compondo uma rede informal não planejada de produção e
circulação de informação, ou se atuam de forma autônoma nos ambientes digitais. As
questões enviadas foram inspiradas em tais características que as redes sociais
comportam em si, como sobre produção coletiva, cultura do compartilhamento, conexão
com outros elos, relativização de autoria e de propriedade digitais, interação e
conhecimento dos integrantes da rede, interdependência entre membros,
representatividade e ação direta dos atores na rede. Assim, foram desenvolvidas as
seguintes questões:
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
166
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
(CAPOANO, 2021)
Estudos de caso
Dessa forma, foi composta uma rede unimodal (todos membros da mesma
natureza) com nove atores: Sebastián Auyanet (Sembramedia, Uruguai); Carlos Herranz
(El Confidencial, Espanha); jornalista não-identificado (Gerador, Portugal); jornalista
não-identificado (Fumaça, Portugal); jornalista não-identificado (Interruptor, Portugal);
Aleen Khan (Connectas, Colômbia); Agostinho Vieira (Colabora, Brasil); Indhira
Acosta (PolétikaRD, República Dominicana); Miguel Loor (Sembramedia, Equador).
A seguir, será apresentada a análise das respostas coletadas pelo questionário
enviado aos atores da rede composta para este estudo, a fim de definir se estes têm e
quais são os elos relacionais entre si e como eles interagem através da rede. Decidiu-se
não traduzir os depoimentos pela proximidade dos idiomas português e espanhol e pela
característica mestiça das redes compostas na América Latina.
Análise
Figuras 1 e 2: nuvem de palavras obtida pela pergunta “Você e sua organização se consideram
representantes de algum setor da sociedade ou tem um público específico?”; e rede obtida com a
questão “Você e sua organização tiveram ou ainda têm suporte/apoio de outro meio?”.
PolétikaRD ressaltou a sinergia com o portal Acento, além dos sites Diario Libre e
Hoy.
Acento. Por igual, otros medios como Diario Libre y Hoy han
publicado nuestras notas de prensa (Acosta, PolétikaRD, 2021);
Figuras 3 e 4 – rede obtida com a questão “Você e sua organização têm atividades conjuntas
com outros meios?”; e rede obtida com a pergunta “Você e sua organização publicam
regularmente em outros meios além do seu próprio?”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A rede artificial (composta apenas para este estudo) conta com ao menos quatro
elos originais: “Embajadores de Sembramedia”, o nó modal dos atores hispano-
americanos; a lista “Mapa do Jornalismo Independente”, o site “Mediaalternativos.pt”,
nós para meios de idioma português no Brasil e em Portugal, respectivamente; e o
relatório “Digital News Report Spain 2020”, pelo qual chegou-se ao meio espanhol,
mas que não foi inserido no grafo por não se tratar de um meio nativo digital como os
demais elos.
A maior parte das interações do grafo elaborado para este texto é de natureza
bilateral, ou uma rede preponderantemente composta por díades. Algumas dessas
relações têm força dirigida para fora da rede composta, para atores não investigados
neste trabalho (ICIJ, Agência Pública, Acento, “meios tradicionais”, Shifter,
Divergente, e Disjuntor). Trata-se de uma rede composta por um número considerável
de atores, com arcos bidirecionais e poucos nós, dada a potencialidade do ecossistema.
Sembramedia se apresenta como o grande cluster/hub da rede, já que nasce
configurada justamente para o desenvolvimento e troca com outras instituições
jornalísticas. Colabora, também com esta função, faz papel semelhante no cenário
brasileiro, mas como papel de nó, mais restrito às relações construídas por atividades
comuns. De forma semelhante, outros atores esclareceram suas formas de interação em
ambiente digital, com destaque a PolétikaRD, com um processo produtivo idealizado
junto ao parceiro Acento.
Comprovou-se que tais atores são representantes da sociedade civil e terceiro
setor imersos na cibercultura e/ou são representantes “puro sangue” do ciberjornalismo
ou nativos digitais, com missão e objetivos contidos no campo da comunicação social.
A maioria das instituições são projetos originais, criados sem auxílio de outra entidade
da rede. Outra característica claramente estimulada pela cibercultura do ecossistema
digital é o conhecimento dos públicos atendidos, dada a possibilidade de métrica de
consumo que as ferramentas digitais permitem aos novos meios.
Ainda há muito potencial para aumentar a interação entre os meios nativos
digitais, seja entre os membros apresentados neste texto, seja com outros atores. Sabe-
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
173
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
REFERÊNCIAS
MÉNDEZ, Marga Cabrera; CODINA, Lluís; ALIAGA, Ramón Salaverría. Qué son y
qué no son los nuevos medios. 70 visiones de expertos hispanos. Revista Latina de
Comunicación Social, n. 74, p. 1506-1520, 2019.
Negredo et al. Digital News Report Spain 2020. Reuters Institute. Acesso em
13/04/2021. Disponível em https://www.digitalnewsreport.org/survey/2020/spain-
2020/
INTRODUÇÃO
1
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
177
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
com motivos juninos, camisetas, chapéus bordados de vaqueiros, brincos e tudo que
lembre fogueira, boi, bandeirolas e os santos festejados. A cidade brilha com os enfeites
e paira a festa seja na escola, na comunidade ou nos arraiais espalhados nos bairros.
Os agentes envolvidos com a produção dessa manifestação de cultura popular,
os brincantes e público, com o crescimento do turismo na capital, perceberam uma
oportunidade de agregar valor à cultura local, atrair mais visitantes, gerar receita e
manter acesa a chama da tradição local. Mesmo que as mudanças provocadas pelo
turismo possam causar uma sensação de saudosismo, em relação à forma com que eram
feitas as brincadeiras de Bumba-meu-boi, em entrevistas, brincantes e público assumem
que o turismo impulsiona e dá certo “orgulho de mostrar o que é nosso”.
O boi como patrimônio vem de uma trajetória de lutas e conflitos de seus
sujeitos/brincantes. Vale salientar que com a patrimonialização e salvaguarda a
brincadeira local, comunitária tem adequações e interferências para atender uma
demanda, no entanto, não a modifica a ponto de perder seus símbolos e sentidos.
A promoção turística oficial do boi contempla a dimensão social, cultural e
econômica com o estabelecimento de uma rede de ações que intervenham nas
manifestações populares tradicionais, e também promovam integração entre todos os
segmentos sociais que reproduzem e reinventam suas tradições.
No período junino transforma-se em um grande teatro. O teatro no Bumba-
meu-boi do Maranhão é o “teatro do Boi” na forma em que na brincadeira ele se
organize, inclusive territorialmente, afirma Borralho (2002, p.26). A festividade do boi
tem a sua máxima no período junino que performatiza um grande arraial, a vida no
campo estilizada, sujeitos que incorporam personagens rurais e se montam com suas
indumentárias para (re) criar o auto do bumba-meu-boi.
Vale ressaltar que as festas juninas também é uma festa religiosa, há o
pagamento de promessas por graças recebidas, simpatias que são dedicadas aos santos,
como a Santo Antônio, por ser conhecido como o “casamenteiro”, um sincretismo
religioso onde o catolicismo e de matriz africana fundem-se em homenagem a entidades
e Santos. Brinca-se em homenagem a eles.
Na Antropologia esse olhar ao “nativo e o seu natural” causa um
estranhamento e torna-se objeto de análise do antropólogo, estranhamento também ao
nativo com certas práticas culturais, sensações e percepções as quais também
compartilho. O boi artefato vive um ritual até mesmo de batismo e outros, sentidos
naturalizados aos maranhenses e exótico/diferente/espetáculo a quem assiste. Daí a
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
184
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Maria Michol Pinho de. Matracas que desafiam o tempo: é o bumba-
meu-boi do Maranhão, um estudo da tradição/modernidade na cultura popular. São
Luís:[s.n.].Brasil.1995.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
188
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
THOMPSON. John. B. Ideologia e cultura moderna. Editora Vozes. (9ª ed.). Rio de
Janeiro. Petrópolis. Brasil.2011
VELHO, Gilberto. (Org.). O Desafio da Cidade: novas perspectivas da antropologia
brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Campus. V. 1. 1980, 180 p.
INTRODUÇÃO
1
Prof. Dr. Günther Richter Mros – Coordenador do Grupo de Estudos em Instituições e Processos
Decisórios nas Relações Internacionais (GEIPRI), vinculado ao DGP/CNPq, e professor adjunto no
Departamento de Economia e Relações Internacionais (DERI) na Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). E-mail: [email protected].
2
Rafaella Chueri Abreu Rodrigues (graduanda de Relações Internacionais do 7º semestre) –
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].
3
Pedro Quinteiro Uberti (graduando de Relações Internacionais do 7º semestre) – Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
190
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
4
A abstração de tais ideias partiu da identificação, feita pelos autores, da alta incidência de certos
conjuntos de palavras-chave presentes em dezenas de músicas de artistas latino-americanos que faziam
referências diretas ou indiretas à América Latina. Para a idealização dos povos nativos têm-se índios, luta,
libertação etc.; para opressão, morte, fome, pobreza etc.; para resistência, revolução, guerra, luta etc.; para
a comunhão entre os povos, povo, irmão, unidade etc.; para as reivindicações populares, paz, justiça,
liberdade etc.
5
Grupo sociolinguístico nativo que hoje se encontra na região sudoeste da Argentina e boa parte do
centro-sul do Chile (SICHRA, 2009, pp. 106-110).
6
Grupo sociolinguístico nativo que hoje se encontra na região sul da Bolívia, praticamente todo
território paraguaio, o nordeste da Argentina, boa parte da região Sul e porções litorâneas do Sudeste
brasileiro, além de parte do nordeste uruguaio (BRANDAO, 1990, pp. 53-57).
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
192
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
7
Grupo étnico nativo que vivia, grosso modo, junto à margem ocidental do Rio Uruguai (GARCIA;
MILDER, 2012, p. 3).
8
Grupo sociolinguístico nativo que hoje se encontra em boa parte do território de Venezuela e Colômbia
(SICHRA, 2009, pp. 454-456).
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
193
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
O papel das canções, contudo, não era apenas o de denunciar a opressão das
populações latino-americanas. Por meio de suas letras, cantores e bandas clamavam pela
resistência popular em suas mais diversas expressões. A imobilidade não era
considerada uma opção, de modo que as massas eram convocadas abertamente para
romper com as estruturas as quais estavam submetidas, seja por meio de greves e
protestos, seja por meio de lutas armadas, cujas explícitas alusões os censores não foram
capazes de suprimir.
9
Como mostra Bandeira (2019, p. 214-223), o posto de Terceiro Mundo atribuído à América Latina
durante a Guerra Fria fica claro ao analisarmos, por exemplo, a política externa dos Estados Unidos para
com a região. Tendo como mote a defesa do hemisfério contra o comunismo, os Estados Unidos apoiaram
política e economicamente o estabelecimento e manutenção de diversos regimes autoritários na América
Latina. Portanto, os fatores internos e externos da opressão, cantados pelos artistas latino-americanos, se
retroalimentavam, sendo impossível compreendermos os regimes autoritários desprezando a análise da
conjuntura na qual estes foram estabelecidos.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
194
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Sobe monte desce rio / Vida e barbas por fazer / Sobe monte desce rio
/ Sobe monte desce rio / E um dia de repente fez da morte mais viver /
Quem temia teu caminho / Não podia te prender / E mesmo por
traição / Pensando que te matava / No meu corpo americano / Fincou
mais teu coração / Che – “Che” (VANDRÉ, 1968);
A ideia de comunhão acabou por escapar aos limites dos versos, concretizando-
se no estabelecimento de redes de cooperação entre artistas latino-americanos de
diferentes nacionalidades. Exemplo de tal fenômeno foi a gravação do álbum “Corazón
Americano”, em 1985, por León Gieco, Mercedes Sosa e Milton Nascimento, que
contou com a regravação de composições de outros artistas da região, como a música
“Volver A Los 17”, da chilena Violeta Parra.
As canções, além de clamarem pela resistência do povo, também serviam como
palco para a exposição das reivindicações populares. Dessa forma, ecoavam o grito das
ruas, protestando diretamente por melhores condições de vida para os povos latino-
americanos. As três grandes metas eram a paz, a justiça e, principalmente, a liberdade.
Eram estas as curas para as mazelas sofridas pelas populações da região, e os artistas
consideravam-se peças-chave na propagação de tais ideais.
A paz almejada pode ser entendida como o desejo pelo fim da opressão em suas
diversas materializações, enumeradas anteriormente, tais como a fome e a pobreza. A
justiça reclamada diz respeito à reparação dos infortúnios historicamente derramados
sobre os povos latino-americanos. A liberdade, a musa maior das composições, é
cantada ao mesmo tempo como condição necessária para a obtenção de paz e justiça,
além de fruto direto de ambas – é, simultaneamente, meio e fim. Sua materialização está
diretamente ligada com o desmantelamento dos regimes autoritários então vigentes na
região.
Danos valor para pelear / Por lo que es nuestro y nos quieren sacar /
Danos el maíz que alimenta, el agua que es vida / Y a lana que abriga
del frío / Danos la paz, la justicia, el respeto a este pueblo / Sufrido
que es tuyo y es mío / Sol, mi Padre Sol, calienta el aire / Con tu llama
secular / Ayúdanos a derrotar / A los que quieren hacernos el mal –
“Oración Al Sol” (RAMIREZ; LUNA, 1972a; interpretado por
Mercedes Sosa);
10
Fenômeno que se caracteriza pela assimilação cultural de um grupo pela influência de outro.
TRANSCULTURAÇÃO. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2021. Disponível
em: https://www.dicio.com.br/transculturacao/. Acesso em: 26/02/2021.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
198
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
o passado colonial (GONZÁLEZ, 2013). Por outro lado, existe também a representação
triste e reflexiva, que canta até os dias atuais o passado comum cheio de violências e
submissões.
Esse passado é explorado a partir da categoria analítica do espaço de
experiência, proposta por Reinhart Koselleck, em que “todas as histórias foram
constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das pessoas que atuam ou
que sofrem” (KOSELLECK, 2006, pp. 306). A música, assim como a história, constrói-
se a partir da esperança e da recordação, vinculando o passado e o futuro. O passado
segue sendo atual, na medida dos acontecimentos incorporados e relembrados.
Sendo assim, existe uma integração de distintas realidades latino-americanas,
construídas a partir da política, da economia e da cultura. Na década de 1990, como
continuação de um movimento de ressignificação identitária em torno do conceito de
América Latina, a música difundiu temas comuns, como: a exaltação de heróis
nacionais e povos nativos; o ideal da liberdade frente à opressão dos países ricos; e a
crítica ao cenário de violência e morte. Músicos que já produziam nas décadas de 1970
e de 1980 continuaram cantando essa América Latina em busca de libertação e
autonomia, ao mesmo tempo em que exaltavam a beleza e a fertilidade das terras latino-
americanas, com um ascendente tom de esperança. A canção “Es Sudamérica Mi Voz”,
de Ariel Ramirez e Félix Luna, e interpretada por Mercedes Sosa (1990), retrata bem o
sentimento de unidade e identificação latino-americana, ao exaltar os povos e heróis sul-
americanos, como também clama por paz e liberdade.
A reivindicação por liberdade frente aos regimes autoritários, muito presente nas
músicas entre as décadas de 1960 até meados dos anos 1980, permanece nas décadas de
1990 e de 2000, com a diferença de que agora, após a conquista da democracia, passou-
se a reivindicar liberdades mais pontuais. Uma variedade de músicas populares
difundidas, principalmente nos centros urbanos, foi submetida a processos de
modernização, que renovaram a forma de reflexão e composição. Temáticas presentes
em menor grau nas composições do século XX, passaram a ser pautadas com maior
força na virada do século.
Na voz de Violeta Parra, por exemplo, pode-se observar uma composição
centrada na condição de mulher e na construção do feminino, seguida de estratégias
para a ampliação da presença feminina, tanto na vida nacional quanto na carreira
musical. Abre-se a discussão para a agenda da emancipação da mulher, a ação da
indústria, e a negociação de identidades e discursos públicos: "Yo soy a la chillaneja,
señores para cantar / Si yo levanto mi grito, no es tan solo por gritar / Perdóneme al
auditorio si ofende mi claridad / Cueca larga militar" (PARRA, 2005).
Observa-se uma dicotomia entre tradição e modernidade, na qual os opostos
convivem e se necessitam (GONZÁLEZ, 2013). O espaço de experiência, que traz o
passado em tom reivindicatório, está presente, assim como o horizonte de expectativa,
que corresponde ao futuro presente, voltado para o que pode ser previsto
(KOSELLECK, 2006, pp 310). Acontecimentos passados tornam-se presentes, na
medida em que se mostra uma insatisfação com a realidade e uma perspectiva de
mudança para o futuro. Busca-se, portanto, construir os caminhos para a mudança,
liberdade e conquista do espaço. Nos anos 1990 e 2000, a agenda de emancipação da
mulher, cantada por Violeta Parra já em meados do Século XX, adquiriu maior alcance,
como pode-se observar nas músicas de Elza Soares (2015) e Rita Lee (1999).
toda brasileira é bunda / Meu peito não é de silicone / Sou mais macho
que muito homem – “Pagu” (LEE, 1999).
Outra continuidade, ainda muito presente nas músicas, diz respeito à identidade
dos povos nativos. Mantém-se os relatos de sofrimento, exploração e violência, que
perduram desde os tempos da colonização. Encontra-se um elo com esses povos, visto
que todo habitante deste entorno geográfico continua sofrendo, mesmo que a
configuração das relações tenha se alterado. Já não existe mais o colonialismo
propriamente dito. Contudo, parte das estruturas de exploração se mantém,
materializando-se em uma assimetria nas relações, pautada na dependência da periferia
para com as potências do Norte global11.
Outro ponto crítico, constantemente citado nas músicas, diz respeito à violência
estrutural perpetuada pelo próprio Estado. A fome, a miséria, e a marginalização social,
são temas recorrentes, principalmente nos ritmos urbanos. O rap é o estilo musical que
hoje mais apresenta essas pautas nas canções. Rappers como Djonga, Francisco El
Hombre, Emicida, entre tantos outros, cantam a luta diária nas ruas, na periferia e nas
favelas pela sobrevivência, o sangue derramado pela violência e o esquecimento dos
que mais precisam de atenção dos governos.
O dólar vale mais que eu / Eita, fudeu / Vale mais que eu / Se essa
vida se resume a dinheiro / Corre corre o dia inteiro para a vida se
pagar / Faço o quê, se acordo sem trocado / Sem din din fico bolada /
Sem tutu não valho nada – “Tá com Dólar, Tá com Deus”
(HOMBRE, 2016).
11
Relações teorizadas por Immanuel Wallerstein, na obra O Sistema Mundial Moderno, a partir do
conceito de divisão internacional do trabalho, advinda da estrutura capitalista, que divide o mundo em três
estamentos hierárquicos: centro, periferia e semiperiferia (SARFATI, 2005, p. 140) e (MARTINS, 2015).
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
201
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Ano passado eu morri / Mas esse ano eu não morro / Ano passado eu
morri / Mas esse ano eu não morro / Eu sonho mais alto que drones /
Combustível do meu tipo? A fome / Pra arregaçar como um ciclone
(Entendeu?) / Pra que amanhã não seja só um ontem / Com um novo
nome – “AmarElo” (BELCHIOR; EMICIDA; MAJUR; PABLLO
VITTAR, 2019).
O nosso som não tem idade / Não tem raça e nem vê cor / Mas a
sociedade pra gente não dá valor / Só querem nos criticar pensam que
somos animais / Se existia o lado ruim hoje não existe mais / Porque o
funkeiro de hoje em dia caiu na real / Essa história de porrada, isso é
coisa banal / Agora pare e pense, se ligue na responsa / Se ontem foi a
tempestade hoje vira a bonança / É som de preto, de favelado / Mas
quando toca ninguém fica parado – “Som de Preto” (AMILCKA,
2020).
12
MTV NEWS (@MTVNEWS). “Today is @shakira 's birthday! Back in 1999, she spoke with us on
how Latin culture influences her sound and movement, but told us her music is a fusion of many different
parts of who she is.” Disponível em:<https://twitter.com/MTVNEWS/status/1356648935461421063>.
Acesso em: 2 fev 2021.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
202
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
13
Conceito cunhado pelos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer. O sentido convencional refere-
se à concepção de produção da obra de arte como esfera cultural dissociada da produção cultural derivada
da nascente indústria de cultura (MARANHÃO, 2010).
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
203
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Já foi dito por Marc Bloch (2001) que a história é a ciência que estuda o Homem
no tempo. Ao estudar as ressignificações conceituais da América Latina, por meio das
letras de músicas ao longo de pouco menos de um século, o objetivo do capítulo foi
propor uma construção argumentativa que pudesse localizar a cultura latino-americana
no tempo e no espaço do imaginário que forjou a identidade, que permite o
reconhecimento frente aos reflexos do espelho.
Aos jovens historiadores envolvidos nesse estudo, coube a tarefa de buscar,
captar, e auscultar os ecos do passado por meio de todas as músicas pesquisadas. As
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
204
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
teias narrativas tecidas por meio dessas músicas representam o elemento essencial da
tarefa do historiador, a de escrever a história. É um exercício de pesquisa que ensina o
respeito aos antepassados.
É enorme o desafio de novos e constantes estudos sobre a relação entre cultura e
identidades regionais, sobretudo no que diz respeito à América Latina, tão diversa e tão
mutável. As músicas são um testemunho de que o lugar das coletividades humanas é
construído e reconstruído constantemente, e cantado em verso e prosa ao longo do
tempo histórico.
REFERÊNCIAS:
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<https://open.spotify.com/track/321K5lmG4pbW8YZBXuKigB?si=8bc58d1e96464851
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https://open.spotify.com/album/6hAxqfWO3xDGzjs8yad1pB?highlight=spotify:track:2i
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RAMIREZ, Ariel; LUNA, Félix. Alcen Las Banderas. Intérprete: Mercedes Sosa. In:
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s).
VELOSO, Caetano.; GIL, Gilberto. Eles. Intérprete: Caetano Veloso. In: CAETANO
VELOSO. Caetano Veloso. Direção Artística: Liana Tavares; Paulo Tavares. Rio de
Janeiro: Philips, p. 1968. 1 disco sonoro (35 min), 33 1/3 rpm, mono. 12 pol. Lado B,
faixa 6 (4 min 41 s).
Gustavo Scudeller1
INTRODUÇÃO
O JORNAL DOBRABIL
2
A edição de 2001 não possui numeração de página. Adotei aqui o mesmo princípio de numeração
usado pelo autor, sendo “f.” para o número do folheto, com acréscimo de “v” depois do número, quando
se tratar do verso. Também optei por manter a ortografia original do jornal, justificada por Glauco em
inúmeras passagens do Jornal e em outros materiais publicados por ele.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
211
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
em 2001 (a 1ª edição saiu em 1981). Aqui, transcrevo apenas o trecho que completa a
passagem anterior:
Os dois trechos dão uma boa ideia de como o confronto com os suportes e meios
de publicação constituía o foco de experimentação literária de Glauco. Começando pela
máquina de escrever, Glauco passa ao papel “stencil”; desse, ao mimeógrafo; e daí, para
o correio. Com o tempo, modifica o processo: começa com a máquina de datilografar,
agora com marca e modelo (uma “Olivetti Linea 88 typo paica”); em seguida, passa
para a copiadora, também uma máquina com marca (“Xerox”); é nela que manipula os
blocos de texto, reduzindo-os para o tamanho ofício, até obter a prova final. Finalmente:
fotocopia, envelopa e manda pelo correio. O uso do envelope não é supérfluo: ajuda a
preservar o conteúdo, o remetente e o destinatário, driblando, eventualmente, a censura.
O resumo de Glauco é ligeiro, bastante conciso. De uma ponta a outra dele
percebemos a linha de um avanço técnico que coincide com a ampliação do acesso
econômico do autor e do público a esses meios. Uma máquina de escrever custava
certamente muito menos que uma máquina de fotocopiar, lá pelo fim dos anos 1970,
mas bem mais que um aparelho e material para reprodução com “stencil”. O custo de
nenhum deles, porém, se compararia ao de um “offset”. Aliás, nem seria o caso: uma
fotocopiadora pode ser colocada a serviço de uma clientela média, cobrando-se pela
cópia. Mas uma máquina de offset precisa justificar seu alto custo, sendo empregada
mais frequentemente na impressão em escala, em geral de materiais que exigem elevada
qualidade de reprodução. Continua Glauco, na sequência da primeira passagem
mencionada:
Jornal Dobrabil vem a ser, com efeito, bem mais amplo que o restricto
circulo no qual se tornou um vehiculo de massa (cinzenta, of course!)
(MATTOSO, 2001, ibid., f. 43).
3
Ver, por exemplo, o que escreve Eduardo Galeano (2018, p. 344), em “A deusa tecnologia não fala
espanhol”, de As veias abertas da américa latina (1970/1977): “O mero transplante da tecnologia dos
países adiantados não só implica a subordinação cultural e, em definitivo, a subordinação econômica,
como também — após quatro séculos e meio de experiência na multiplicação do oásis de modernismo
importado em meio aos desertos do atraso e da ignorância — pode-se afirmar que não resolve problema
algum do subdesenvolvimento. Esta vasta região de analfabetos investe em pesquisas tecnológicas uma
soma 200 vezes menor do que aquela que os Estados Unidos destinam para esses fins. Em 1970, há
menos de 1.000 computadores na América Latina e 50 mil nos Estados Unidos. É no norte, por certo, que
são desenhados os modelos eletrônicos e são criadas as linguagens de programação que a América Latina
importa.” As estimativas, segundo menciona Galeano, são de Manuel Sadosky, publicadas em “América
Latina y la computación”, Gaceta de la Universidad. Montevideo, maio de 1970.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
214
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Todos esses nomes aparecem assinando citações que envolvem reflexões sobre
política, arte e literatura. O conteúdo é, na maioria das vezes, insólito, visando a crítica e
o riso, efeito que decorre no mais das vezes da incongruência entre o que é dito e a
pessoa que o assina, ou entre o dito e a circunstância que a envolve. Alguns exemplos:
“El que ama su patria, no puede amar nada.” – PERÓN (f. 13v)
“El secreto de todo poder consiste en saber que los demás son aún más
cobardes que nosotros” – A. SOMOZA (f. 24v)
4
No folheto 28, aparecem Manuel Puig, escritor argentino, e Aristides Klafke. Klafke é brasileiro, mas a
citação não exclui a possibilidade de que estivesse fora do país, ou que “exterior”, aí, signifique qualquer
coisa como “fora do círculo imediato ou de interesses” do Jornal. Na mesma nota, os correspondentes
internos mencionados são: Lula, Paulo Leminski, Júlio Mendonça, Décio Pignatari e Sebastião Uchoa
Leite.
5
Se quisermos um quadro mais completo, podemos incluir no primeiro grupo: Iaac Asimov (f. 45),
Euclides da Cunha (f. 45v) e Florestan Fernandes (f. 43v), entre os intelectuais; Trini Lopez (10v),
Opalong Cassidy (f. 43), Arlo Guthrie (f. 27) e Pete Seeger (31v), entre os artistas; e, enfim, Enrico
Berlinguer (f. 43), “um general linha dura” brasileiro (f. 44) e Farah Diba, a última imperatriz do Irã (f.
46), entre as personalidades associadas ao poder. No segundo grupo: Alfredo Stroessner (f. 2, 39) e Omar
Toerijos Herrera (4); Maria Estela Martinez de Perón (6), entre os políticos; Hubert Matos (f. 33), Zapata
(f. 39) e Sandino (f. 47v), entre os opositores; entre os escritores: Carlos Castañeda (f. 31); Gabriela
Mistral (f. 28); Alejo Carpentier, Borges e Cortázar (f. 15v); e, dentre os artistas ou personalidades da
cultura: Salvador Dali (f. 2), Carlos Gardel (f. 13v), Picasso (f. 16v), entre muitos outros.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
216
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
“Qué cosa tan simple vuestra política! De un lado, los que tienen todo,
dinero, honores y cargos; del otro, los que nada poseen. Aquéllos todo
lo encuentran bien. Éstos lo encuentran todo mal. A la derecha, la
digestión; a la izquierda, el apetito” – LIZA MINNELLI (f. 26v)
Glauco reuniu muitas dessas citações em Galeria Alegria (2002), livro publicado
pelo Memorial da América Latina. Os textos do livro são todos atribuídos a Garcia
Loca, heterônimo de Glauco que fazia frequentes incursões pelas páginas do Dobrabil.
O personagem é uma versão debochada do poeta espanhol, morto durante a Guerra
Civil, e de quem chegou-se a discutir muito sobre a sua sexualidade6. Procurando
avaliar o interesse do material ao escrever uma nota para o livro, Barros Toledo
(“Glauco Mattoso: um poeta latino-americano” in: GALERIA ALEGRIA, 2002) lembra
os vínculos de Glauco com a literatura latino-americana, mencionando-o como tradutor
de Borges, do mexicano Salvador Novo e de Severo Sarduy. Toledo considera o
castelhano de Glauco “quase tão macarrônico quanto o portunhol dum portenho
apaulistanado”; e destaca: “[Glauco] sente-se à vontade para versejar desabridamente
sua latinidade desde a pesada década de 1970, quando todo o continente atravessou um
período de dictaduras, quarteladas e guerrilhas, cyclo que tende a repetir-se ao longo da
história” (ibid.).
Reynaldo Jimenez (“El contra-perogrullo” in: GALERIA ALEGRIA, 20027),
poeta peruano, nascido em Lima, em 1959, e radicado em Buenos Aires desde 1963, é
de opinião semelhante. Para ele, “la lengua escrita originalmente mixturada” dos
escritos de Glauco se parece muito com aquela procurada por outros poetas latino-
americanos e brasileiros que, transitando por “ambos lados de la frontera”, têm
procurado fazer “sin embargo del portuñol una
rumia devastadora de las ‘perfecciones paralelas’” dos dois idiomas, engrossando essa
espécie de “río de varias corrientes”, que atravessa os países que ladeiam suas margens.
PAPÉIS DE ESCRITOR
6
Quanto a essa polêmica, ver “A verdade sobre Garcia Lorca”, matéria publicada no número zero do
Lampião da Esquina — de autoria de Agnaldo Silva, um dos seus editores. Segundo a matéria, a dúvida
sobre a sexualidade de Lorca ainda era assunto à época do surgimento do Lampião (1978), tendo voltado
à discussão com a encenação de El Público (1930) no Teatro da Universidade de Porto Rico. A peça ficou
desconhecida até 1976, quando foi editada pela Universidade de Oxford (SILVA, 1978, p. 4).
7
A versão eletrônica do livro disponibilizada publicamente pelo autor não possui numeração de página.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
217
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Figura 1 - verso do f. 27
Fonte:
8
Segundo James N. Green (p. 178-179, 2014), o grupo surge em resposta ao chamado do número zero
do jornal Lampião da Esquina, de março de 1978, publicado em seu editorial. Avaliando a nova
conjuntura de enfraquecimento do regime militar e visando a abertura política, o editorial defendia ser o
momento de gays, lésbicas e transexuais, assim como outras minorias, abandonarem o gueto e participar
do movimento de redemocratização do país adotando uma postura afirmativa e sexualmente assumida em
defesa de seus direitos. A proposta era inspirada em grupos como o Nuestro Mundo, de 1968, e Frente de
Liberação Homossexual (FLH), de 1971, ambos argentinos, e, também, em outras iniciativas surgidas nos
Estados Unidos e Europa. Ainda de acordo com Green (p. 185), o próprio nome do grupo brasileiro era
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
219
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
uma homenagem ao boletim Somos do FLH, material com o qual uma parte dos ativistas do grupo
tiveram contato no momento em que muitos ativistas argentinos começaram a migrar para o Brasil, com o
agravamento da repressão na Argentina. Glauco manteve contato com o Somos, tendo participado de sua
criação. No Jornal Dobrabil, publicou pelo menos uma carta do grupo, em que os editores acusam
recebimento do Dobrabil e parabenizam Glauco “por levar adiante tal trabalho, com tanta criatividade e
inovação” (“Curreio”, f. 51). Glauco permaneceu no Somos até 1981, quando se afastou por divergências
internas. Para mais detalhes, ver o artigo de Cecilia Palmeiro (2017, p. 36-42). Aproveito aqui para
agradecer muito especialmente à Milena Mulatti Magri, que me apontou a relação dos poemas de Glauco
com o Somos e sugeriu a leitura do texto de J. N. Green.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
220
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Benedetti). Por fim, se voltamos ao cabeçalho da página, olhando para o lado direito, o
que encontramos, em posição simetricamente oposta à citação de Benedetti, é um outro
aforismo assinado por Glauco — agora, porém, redigido em um tom sério, bastante
diferente do adotado por ele no Jornal Dobrabil, e no qual a “luta das minorias” é
defendida como centro de todo engajamento cultural e político do momento (“’Luta
maior’ é a luta das minorias, que, além de lutar pelo pão, têm que defender sua cor e sua
cultura, seu sexo e sua sexualidade [...] arriscando a própria pele”, diz Glauco). O
diagrama desses paralelos da página fica mais ou menos assim:
Figura 2 – verso do f. 26
Fonte:
da hora do dia. Depois de muito tempo nessa situação, já perdendo os sentidos, o rapaz
avança sobre a lata e devora seu conteúdo, sem levar muito em conta o que come.
O episódio é publicado na página do Dobrabil ao lado de outras passagens
semelhantes tiradas de José Veríssimo, de Julia Lopes de Almeida, das Mil e uma noites
e dos 120 dias de Sodoma, de Sade. Nelas se cruzam alguns dos temas mais caros a
Glauco Mattoso: a escatologia, o sadomasoquismo e a tortura. São temas que
constituem o centro do interesse de outras obras de Glauco, como o Manual do
podólatra amador (1986) e Tripé do Tripúdio: e outros contos hediondos (2011). Aqui,
porém, a insistência sobre aspectos asquerosos da dejeção e do prazer sexual aponta
para um outro traço característico da poesia de Glauco e do Jornal Dobrabil: a
nivelação da literatura e da arte com a “merda” (ou a “obra”, se optarmos pela expressão
mais polida) e, do jornal, com o papel higiênico9.
É, contudo, ainda no trecho citado de Miguel Ángel Asturias que o compromisso
de Glauco com a arte do papel, bem como com as diferentes figuras que o intelectual
pode assumir, fica mais evidente.
Para dizer a verdade, a cena descrita por Glauco não corresponde exatamente ao
que se passa no romance de Asturias. As palavras e os trechos são tomados ipsis litteris
do romance. Mas é com o corte e a justaposição das passagens que Glauco cria a cena
anteriormente descrita, fazendo parecer que os dois momentos aconteçam
simultaneamente. No romance de Asturias, o personagem não chega a se lançar sobre a
lata de excrementos, pensando ser comida. Ele sequer chega a se confundir. Mas o que
Glauco percebe muito agudamente é que a possibilidade de que isso aconteça é sugerida
nas entrelinhas do próprio livro de Astúrias. Astúrias somente não desenvolve a situação
por aí, enquanto Glauco, em sua versão, explicita-a duramente, deixando o leitor sem
alternativa. O truque e malícia muito sutis de Glauco está em deslocar o último dos três
trechos selecionado do capítulo de Asturias para o meio da sua versão, fazendo com que
as duas cenas, a da descida da comida e a das fases, pareçam a sequência natural uma da
outra. Mas não são: a sequência em que o jovem corre para a lata é continuação da cena
de descida da comida; ele nem mesmo se engana sobre o conteúdo da lata. O que há de
mais impressionante no efeito conseguido por Glauco, porém, é ele conseguir reescrever
9
“Comparar a arte à merda é como comparar o jornal ao papel higiênico: questão de ponto de vista (*)”;
“(*) basta encarar o jornalismo como arte...”, dizem duas notas assinadas pelo próprio Glauco, no verso
do f. 46 (MATTOSO, 2001).
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
223
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Insisti muito nas questões ligadas ao suporte. Mas o papel do intelectual também
é discutido muito diretamente por Glauco em outras passagens do Dobrabil. Por
exemplo, na coluna “LITTERATURA DE DENÚNCIA”, do f. 33; ou em
“¿metaphysica?”, do f. 44v. Seria difícil abordar aqui a intrincada problemática que
esses trechos sugerem; já tentei fazê-lo em outros trabalhos recentes, ainda que muito
lateralmente. Destaco, portanto, apenas o que se relaciona mais especificamente à nossa
discussão de agora. A primeira passagem, a do f. 33, é uma matéria de primeira página
do jornal, publicada na posição que costuma ser reservada à seção de cartas e ao
editorial. Nela, Glauco faz uma espécie de balanço crítico da literatura de denúncia
publicada no Brasil até aquele momento. Na mira, estão os livros de quatro escritores
brasileiros com estreitas relações com a América Latina: Augusto Boal, Gabeira, Fon e
Fialho. A segunda passagem, do f. 44v, vem publicada no rodapé, e traz trechos de uma
carta escrita por Glauco em resposta ao jornal Movimento, na época em que, como deixa
entender, o jornal vinha sofrendo intimidações e agressões de agentes da ditadura. O
trecho não diz nada de específico sobre a América Latina. Mas pela grafia do título —
em pontuação exclusiva do espanhol —, dá a entender que as críticas de Glauco à
postura confrontadora, e, por vezes, temerária, do jornal poderiam ser também
generalizadas ao modo como a luta armada ou o sacrifício pessoal eram idealizados em
toda a América Latina como formas viáveis de resistência à repressão.
É muito significativo, a propósito, que Glauco chegue a nomear a América
Latina pelo menos uma vez, como tema, em um dos poemas-manifestos mais
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
224
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
REFERÊNCIAS
DERRIDA, Jacques. O papel ou eu, os senhores sabem... In: DERRIDA, Jacques. Papel
Máquina. Trad. Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. P. 217-247.
EAGLETON, Terry. A função da crítica. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 1991.
SILVA, Aguinaldo. A verdade sobre Garcia Lorca. Lampião da esquina, Rio de Janeiro,
n. 0, abr. 1978. Esquina, p. 4.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Trad.
Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
227
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
INTRODUÇÃO2
Em 1995, a cantora cubana exilada Gloria Estefan realizou seu primeiro show
em Guantánamo. Apesar de ser considerado como território estadunidense desde a
proposição da primeira constituição cubana, a base naval de Guantánamo encontra-se
instalada em Cuba, o que permite considerarmos que, pela primeira em sua carreira, a
artista retornou a ilha para uma performance3. A apresentação da cantora, que havia
retornado a ilha de Cuba apenas uma vez desde seu exílio iniciado em 19594, integrou
as ações de divulgação de seu álbum Abriendo Puertas (1994), que tinha como temática
a aproximação entre os países do continente americano e, em especial, a integração
latino-americana globalmente através das identidades latinas.
Largamente coberto pela mídia televisiva e impressa, o show foi realizado nas
dependências da base militar estadunidense para agentes norte-americanos que ali
estavam e, em especial, para a comunidade exilada que estava dentro de Guantánamo
aguardando pela autorização para deixar Cuba e ir aos Estados Unidos. Nesse show, a
cantora apresentou um repertório de canções recentes em sua trajetória e integrantes dos
1
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Mestre e licenciado em História pela mesma instituição. Bolsista CAPES-DS. E-mail:
[email protected]
2
O presente ensaio é resultado das reflexões que venho desenvolvendo em minha pesquisa de doutorado
no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Em minha
investigação analiso a trajetória artística de Gloria Estefan entre 1977 e 2011, com ênfase em seus
diferentes engajamentos políticos, sociais, econômicos e culturais, assim como na elaboração de
representações de cubanidades e latinidades no exílio.
3
Neste artigo consideramos apesar dos acordos diplomáticos existentes desde a primeira constituição
cubana, a baia de Guantánamo é um dos principais palcos de disputas políticas entre EUA e Cuba desde
1959, tendo servido em diversos momentos como centro de operações para a saída de exilados cubanos
para os Estados Unidos. Neste sentido, dimensionar a complexidade dessa região, que é arrendada aos
EUA, mas está sob território cubano é fundamental para refletirmos sobre a importância política e
simbólica da performance de Gloria Estefan em 1995. Apesar disso, é importante destacar que a cantora
até os dias atuais não reconhece diretamente esse “entre-lugar” e afirma que nunca pisou em solo cubano
para realizar um show ou uma apresentação desde o início de sua carreira.
4
A primeira viagem de Gloria Estefan a Cuba ocorreu ainda no início de sua carreira musical, quando
ela e seu esposo e companheiro de banda, Emílio Estefan Jr., viajaram ao país para tratar do processo de
migração de um familiar.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
228
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
álbuns: Abriendo Puerta e Mi Tierra (19935). Tal apresentação, para além de integrar
uma fase da trajetória artística de Gloria Estefan em que pretendeu aproximar-se
novamente das questões culturais, sociais e políticas em Cuba também ocorreu no auge
do Período Especial em Tempos Paz, momento em que o país vivia uma crescente crise
econômica e social provocada, em especial, pelo colapso do bloco socialista após a
Queda do Muro de Berlim (1989), que aumentou o número de cubanos/as solicitando
deixar o país com destino aos EUA. Em função da alta procura, inclusive através de
meios ilegais e perigosos como as práticas de balsas nas quais cubanos/as se jogavam ao
mar, o governo dos Estados Unidos passou a instalar todos/as aqueles que aguardavam
pelo visto estadunidense na base militar localizada na ilha.
Neste breve ensaio pretende-se analisar fragmentos do show realizado por Gloria
Estefan em Guantánamo (1995), com foco em no processo de construção da
performance de Gloria Estefan naquele contexto, procurando perceber quais os sentidos
e projetos associados, em especial por meio da problematização de suas
intencionalidades. Como discussão central, mobiliza-se a noção de performance a partir
dos estudos de Diana Taylor (2013). Mais que respostas conclusivas, no decorrer deste
capítulo pretende-se demonstrar que a apresentação realizada em 1995 foi fundamental
para a construção de uma narrativa sobre Cuba e o exílio cubano. A escolha de
repertório, ou do arquivo como destaca Diana Taylor (2013), foi dimensão central para
elaborar um show pautado em canções de lamento, de saudade e de nostalgia.
5
Entre as canções que integraram o setlist do show estavam: Mi Tierra, Guantanamera, Montuno, Tres
Deseos e Abriendo Puertas.
6
Entre 1975 e 1989 Gloria Estefan foi vocalista do Miami Sound Machine, grupo no qual não apenas
atuou, mas também foi sua base para consolidação como artista latina proeminente na indústrias
fonográfica. Em especial, esse processo de expansão da banda, e por consequência da artista, teve início
em 1980 com a assinatura de contrato da banda com a CBS Discos International que, naquela época
criava uma seção visando o mercado latino-americano e/ou falante de língua espanhola a partir do
estabelecimento de uma sede da CBS Discos em Miami.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
229
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
7
Gazette, 01 de setembro de 1995.
8
Diversas imagens sobre o período da cantora na base militar registram o encontro com a comunidade
exilada através de muros, grandes de contenção, de encontros em ambientes fechados, fotografias com
crianças. O potencial de tais imagens (DIDI-HUBERMAN, 2020) que, em muitos casos, foram
“montadas” a partir das intenções de quem as registros para construir uma imagem de Gloria Estefan
como “salvadora” ou um “ídolo”, reside justamente em demonstrar o impacto de sua visita para aquela
comunidade exilada e, apesar dos esforços do regime revolucionário (MOORE, 2006) o reconhecimento
de sua figura em Cuba como parte da oposição. Alguns fragmentos de cenas gravadas podem ser
observados em: < https://www.youtube.com/watch?v=MNFVd039jho>
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
230
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
9
Em 1996 o Cuban Adjustment Act foi reformulado pelo presidente estadunidense e o congresso
nacional, passando a adotar uma política conhecida como “Pés-Secos, Pés-Molhados”, garantido a
concessão de visto para qualquer cubano/a que chegasse ao país independente da forma. Sobre isso ver:
M OREIRA, Igor Lemos. Half of my heart is in havana: Uma análise da trajetória da cantora cubana
Camila Cabello (2012-2018). Dissertação (mestrado). Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro
de Ciências Humanas e da Educação, Programa de Pós-graduação em História, Florianópolis, 2019.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
231
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
identificando sua produção como parte do movimento Miami Sound, definido como
movimento artístico e musical das comunidade cubanas exiladas em Miami (PEREZ-
FIRMANT, 2012).
Todavia, quando o Miami Sound Machine passou a integrar o catálogo da CBS
Discos International, percebe-se que progressivamente ocorre uma fase de maior
destaque para as sonoridades ligadas a world music. Apesar da latinidade de sua
produção ainda se fazer presente, essa ocupou segundo plano em diversos momentos
nos anos 1980, com raras exceções a exemplo da canção Conga (1985). Foi apenas no
início da década de 1990 que a cantora deu início a “guinada latina” em sua produção,
ou seja, um movimento de inversão no destaque de determinados ritmos e gêneros
musicais colocando as sonoridades caribenhas em destaque. Inicialmente, esse processo
se materializou na produção do disco Mi Tierra (1993), produzido junto de grandes
artistas cubanos exilados, a exemplo de Tito Puente, Arturo Sandoval, Cachao López,
Chamin Correa e Paquito d'Rivera.
O álbum Mi Tierra, que garantiu a Gloria Estefan seu primeiro Grammy além de
permanecer nas primeiras posições das paradas musicais latinas da Billboard por mais
de um ano, marcou a carreira da artista pois foi seu primeiro álbum solo totalmente em
espanhol e com canções compostas a partir de gêneros cubanos como a Conga, Salsa e
Montuno. Mi Tierra, em linhas gerais, era um álbum romântico, nostálgico e de
exaltação de uma Cuba imaginada não somente pela artista, mas por um grupo de
artistas cubanos/as exilados/as nos Estados Unidos que buscavam na música formas de
construir uma comunidade ligada pelas emoções. Tal comunidade emocional (SARDO,
2010) era ao mesmo tempo uma forma de se aproximar por meio das sonoridades que
determinavam uma identidade artística, mas também reforçar elos de pertencimento
coletivo, territorial e temporal.
Após o sucesso midiático, comercial e de crítica do álbum Mi Tierra em 1993,
Gloria Estefan produziu um segundo disco totalmente em espanhol. Lançado em 1995,
Abriendo Puertas possuía algumas semelhanças com seu predecessor, em especial pela
língua oficial do disco e pela proposta de construção de uma identidade latina pelas
canções. Contudo, enquanto Mi Tierra tinha como central a identidade cubana,
ressaltando esse laço pelas composições, letras, sonoridades, capas e afins, o disco
Abriendo Puertas expandia esse projeto para uma identificação latina ampliada e
diversa. Apesar da questão territorial ser central, assim como foi no disco anterior, o
álbum Abriendo Puertas focou-se na construção de um narrativa sobre a própria
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
232
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
O SHOW
canção como aos projetos sonoros da cantora de buscar pela canção estabelecer laços
com Cuba. Em diferentes momentos o processo de edição da gravação do show focou
em pessoas cantando uma determinada música em coro, exaltando a cantora ou
dançando. Destaca-se também os momentos de diálogo da cantora com o público que
respondia imediatamente as falas de Gloria Estefan entre as músicas.
A participação ativa do público durante a performance, levantando faixas,
cantando as canções junto a artista ou substituindo a voz de Gloria Estefan quando a
artista voltava seu microfone para a plateia, ou mesmo com camisetas com frases das
canções indicam que apesar dos esforços do governo revolucionário a produção da
cantora, assim como de outros artistas exilados conseguiam adentrar e circular na ilha.
A circulação das canções de Gloria Estefan, assim como de Willy Chirino e outros, foi
parte do processo de abertura econômica pensado como via de resolução da crise
econômica do Período Especial em Tempos de Paz. Nesse momento,
processo não é oposto, mas sim complementar a construção de uma narrativa sobre
Cuba que reforça a oposição anticastrista da cantora, dos EUA e da comunidade exilada.
O encadeamento/roteiro do show foi central neste sentido, inclusive ao próprio a
reinterpretação de canções tradicionais cubanas a exemplo de Guantanamera, música
que usa de frases de um poema de José Martí, que foi apresentada junto a faixa
Montuno, de Gloria Estefan, e que tematiza o próprio gênero musical cubano.
Tais elementos de referência foram fundamentais na construção das
representações, narrativas e no próprio projeto político, cultural e social que simbolizou
a ida da cantora, e Andy Garcia, a Guantánamo para realização do show. Tais
referências, retomando a ideia de arquivo para Diana Taylor (2013) foram centrais para
a manifestação do repertório da artista (no sentido teórico e artístico da palavra), o que
conferiu a sua performance sentidos políticos e de mobilização de temporalidades
múltiplas na busca por reforçar um pertencimento seu e das comunidades exiladas no
tempo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos, em linhas gerais, mais que respostas fechadas apontar para processos que
atravessaram o show da cantora em Guantánamo, atentando em especial para a
centralidade das narrativas e representações centralizadas pela performance. Desta
forma, pretendemos estimular o debate e a reflexão a respeito das circularidades entre
Estados Unidos e Cuba por meio dos artistas exilados compreendendo sua atuação
política, social e cultural na construção de visões sobre o país, sobre os Estados Unidos
e a própria revolução de 1959.
REFERÊNCIAS
BUSTAMANTE, Michael. Cultural Politics and Political Cultures of the Cuban Revolution:
New Directions in Scholarship. Cuban Studies, Volume 47, 2019.
CHOMSKY, Aviva. "They Take Our Jobs!": And 20 Other Myths about Immigration. Boston:
Beacon Press, 2007.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens Apesar de Tudo. São Paulo: Editora 34, 2020.
DUANY, Jorge. Blurred Borders: Transnational Migration between the Hispanic Caribbean and
the United States. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2011.
GOTT, Richard. Cuba: Uma História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
MIGNOLO, Walter. The idea of Latin America. Nova Jersey: Blackwell Publishing, 2007.
MORALES, Ed. Latinx: The New Force in American Politics and Culture. Nova York: Verso
Books, 2019.
MOREIRA, Igor Lemos. Half of my heart is in havana: Uma análise da trajetória da cantora
cubana Camila Cabello (2012-2018). Dissertação (mestrado). Universidade do Estado de Santa
Catarina, Centro de Ciências Humanas e da Educação, Programa de Pós-graduação em História,
Florianópolis, 2019.
NAPOLITANO, Marcos. História & música. 3. ed. rev. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
ORTIZ, Paul. An African American and Latinx History of United States. Boston: Beacon Press,
2018.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: perfomance e memória cultural nas Américas. Belo
Horizonte: Ed. da UFMG, 2013.
INTRODUÇÃO
1
Doutor em Cultura e Sociedade (IHAC/UFBA). Pesquisador bolsista de pós-doutorado da Cátedra
Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência (IEA/USP). e-mail: [email protected].
2
Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Professor permanente dos PPGs em
Sociologia e em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará e em Comunicação da
Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected].
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242
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Brasil de 2003 a 2016, com destaque para o Programa Cultura Viva (PCV) e os PCs.
Por fim, nas seções seguintes analisa-se a constituição da “teia” – para usar um termo
caro aos “ponteiros”3 – de PCs na América Latina e como essa política foi redesenhada
em sua expansão pelo subcontinente.
O Programa Cultura Viva (PCV) e a ação dos Pontos de Cultura (PCs) podem
ser considerados como paradigmáticos da política cultural brasileira estabelecida a partir
do primeiro governo Lula, sob liderança do ministro da Cultura Gilberto Gil. Como
demonstra uma ampla e consolidada bibliografia (ver, entre outros, BARBALHO;
RUBIM, 2007; BARBALHO; BARROS; CALABRE, 2013; BARBALHO;
CALABRE; RUBIM, 2015; CALABRE, 2009; RUBIM, 2010, 2011), tratou-se de um
momento em que o Estado retomou o papel de formulador e executor das políticas
públicas de cultura, o que implicou, entre outras consequências, no esforço em
institucionalizar essas políticas, como demonstram, por exemplo, a elaboração do Plano
5
A esse respeito ver o levantamento realizado no âmbito da Cátedra Andrés Bello, ligada à
Universidade Federal da Bahia, para o contexto íbero-americano (RUBIM; PITOMBO; RUBIM, 2005).
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248
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
6
Historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Foi Secretário Municipal de Cultura de Campinas
(1990-1992).
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Turino a “narrativa” mais conhecida sobre os PCs, intitulada Ponto de cultura. O Brasil
de baixo para cima, publicado em 2009. Nela, relata que o termo “ponto de cultura”
nasceu na gestão de Antônio Augusto Arantes, antropólogo e professor da UNICAMP,
quando secretário de Cultura de Campinas no final da década de 1980, para nomear dois
espaços culturais municipais na periferia da cidade. Na sua avaliação, houve uma
adesão efetiva ao PCV e aos PCs por parte de setores da sociedade civil, a ponto de se
identificarem como movimento social, se auto-intitularem como “ponteiros” e dos
gestores dos PCs terem assimilado os conceitos centrais do programa (autonomia,
protagonismo e empoderamento). Turino defende em seu livro que o PCV e os PCs só
foram viáveis por conta do ambiente político e social proporcionado pelo governo Lula
e pelo simbolismo da presença de um líder operário na Presidência da República.
Ao longo da sua execução inicial (2004-2010), o PCV e os PCs consolidaram,
portanto, um movimento social e uma rede nacional que retroalimentam ou, ainda mais,
que são constitutivos da política governamental. Trata-se de uma experiência de política
cultural inédita no Brasil que buscou conectar e dar nome a diversas entidades artísticas
e culturais e que batizou e alimentou um movimento sociocultural, como é o Cultura
Viva. Com a sua circulação por meio do que Elodie Bordat-Chauvin (2020) chamou de
"cenas transnacionais de encontro de atores institucionais", e, dessa forma, com a
contribuição de outros países latino-americanos, o PCV terminará sendo o "Cultura
Viva Comunitária", como se verá em seguida.
7
A SEGIB, com sede em Madrid e criada em 2005, é um órgão de apoio institucional e técnico à
Conferência Ibero-americana e à Cúpula de Chefes de Estado e de Governo e reúne 22 países ibero-
americanos.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
8
Fuentes Firmani é Secretário Executivo da Unidade Técnica do Programa IberCultura Viva (SEGIB).
Graduado em Gestão Cultural pela UNTREF, foi assessor do programa Puntos de Cultura na Argentina.
Fundador da RGC Ediciones, projeto especializado em publicações sobre gestão e políticas culturais.
9
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 15 jan. 2021.
10
As Teias foram encontros presenciais com pontos de cultura de todo o país. Na gestão de Célio
Turino, ocorreram três: 2007 (Belo Horizonte), 2008 (Brasilia) e 2010 (Fortaleza).
11
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021.
12
A esse respeito ver http://cultura.gov.br/pontos-de-cultura-no-exterior/. Acesso: 26 fev. 2021.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
13
A esse respeito ver http://cultura.gov.br/pontos-de-cultura-na-inglaterra-1134590/. Acesso em 26 fev.
2021.
14
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021.
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15
Disponível em https://www.segib.org/pt-br/o-ii-congresso-ibero-americano-da-cultura-apostou-na-
transformacao-social/ Acesso em 08 fev. 2021.
16
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
254
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
momento privilegiado desse processo17. Para o gestor argentino, foi mesmo o momento
inicial. Na ocasião, ele junto com outros produtores culturais montaram uma mesa de
discussão intitulada “A articulação latino-americana de cultura e política" na qual
participaram representantes de pontos de cultura. Em outra mesa, sobre políticas
públicas, na qual Eduardo Balán18 participou para falar da experiência argentina, teve a
presença de Turino apresentando a experiência do PVC e dos PCs.
Turino ressalta a participação, no Fórum, do "Arte para a transformação social",
movimento do qual faziam parte, entre outros, Ines Sanguinetti e Jorge Blandon, e que
promoveu a mesa da qual o gestor brasileiro participou. Do cruzamento que a mesa
possibilitou, resultou uma reunião sobre o Cultura Viva e eles, nas palavras de Turino,
"abraçaram" a proposta dos PCS, no momento em que começavam a articular a
Plataforma Puente, da qual se falará mais adiante19.
A mesa sobre políticas públicas ao qual se refere Fuentes Firmani foi uma
promoção do Instituto Pólis, de São Paulo, ele próprio um PC e integrante da
"Articulação Latino-americana: Cultura e Política" (ALACP)20. A mesa se chamou
“Pontos de Cultura: Políticas Públicas e Cidadania Cultural” e reuniu uma centena de
representantes de PCs e de organizações culturais comunitárias da América Latina.
Hamilton Faria, um dos fundadores do Instituto, em entrevista concedida à Silvia
Chejter (2010), ressalta que a ideia de regionalizar os PCs surgiu no Fórum. Para o
17
O Fórum teve como lema "Um outro mundo é possível" e discutiu, entre outros temas a integração
latino-americana com a participação dos então presidentes do Brasil, Luiz Inácio “Lula” da Silva, da
Venezuela, Hugo Chávez, do Equador, Rafael Correia, do Paraguai, Fernando Lugo, e da Bolívia,
Evo Morales.
18
Eduardo Balán é editor, educador e comunicador popular; fundador do coletivo cultural “El Culebrón
Timbal”, produtora, espaço cultural e educativo que inclui o plurimédio comunitario “La Posta Regional”.
Atualmente trabalha na gestão pública no município de Moreno, Província de Buenos Aires, Argentina,
na Direção Geral de Educação Popular e Comunitária. Para um depoimento de sua relação com o Cultura
Viva Comunitária ver Balán (2018).
19
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021.
20
A ALACP é uma rede de mobilização de entidades da sociedade civil da América Latina e composta
por organizações como INESC, CEPAD, Instituto Pólis, CFEMEA, Red Mesoamerica de Arte y
Transformación e AVINA. Sua pretensão é "descobrir novos caminhos para a integração latinoamericana
e contribuir para a reinvenção da democracia e da cidadania cultural, por meio de articulações inovadoras
entre movimentos culturais e sociais". A ALACP se define como "uma rede de experiências e de
comunicação composta por organizações sociais, culturais e de expressões artísticas que visa contribuir
para os processos de democratização/cidadania cultural, construção de valores e símbolos que sejam
capazes de mobilizar manifestações e posições de afirmação a favor de uma sociedade mais justa, plural,
equitativa, sustentável fundada na radicalização e implementação dos direitos humanos nas diversas
sociedades e povos da América Latina". A esse respeito ver https://polis.org.br/noticias/articulacao-
latinoamericana-de-cultura-e-politica-e-lancada-no-fsm/ e https://www.af2comunicacao.com.br/cultura-e-
protagonismo-social-na-america-latina/. Acesso em 08 fev. 2021.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
lançamento formal da ALACP durante o evento em Belém, Faria propôs a mesa para a
qual foram convidados representantes da América Latina, com destaque para a
Argentina e a Colômbia. Segundo Faria, as pessoas ficaram "fascinadas" e perceberam
que os PCs eram "uma proposta universal e poderia ser replicada em outros países". A
partir de uma mobilização dos argentinos presentes no evento é que surgiu uma
proposta de lei para o Parlamento do MERCOSUL, da qual se falará mais adiante. Na
sua avaliação, os PCs são "uma experiência concreta de articulação entre redes, de uma
articulação em torno a uma política de cultura para América do Sul e não só discursos
gerais, discursos ideológicos sobre a diversidade, etc., senão um intercâmbio e uma
aproximação de fato" (FARIA apud CHEJTER, 2010, p. 143).
Para Santini, as participações dos PCs no Fórum sinalizavam o fato de que a
rede criada pelos pontos “começava a assumir os contornos de um movimento político-
social” que, embora articulado a partir de uma política pública e com interlocução com
o Estado, apresentava “uma perspectiva de dialogar e incorporar outros espaços de
debate e participação social construídos de maneira autônoma pela sociedade civil,
pautando a dimensão cultural nos debates políticos dos movimentos sociais” (SANTINI,
2017, p. 136).
O depoimento de Santini remete à análise que Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e
Arturo Escobar fazem na introdução à coletânea que organizaram com textos acerca das
relações entre cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos. Os autores
propõem uma nova forma de compreensão desses movimentos ao defenderem que todos
eles, de maneira mais ou menos consciente e com maior ou menor extensão, põem em
prática políticas culturais. Por política cultural, entendem a relação constituinte entre
cultura e política, posto que as práticas sociais e seus significados simbólicos (dimensão
cultural) não podem ser consideradas de forma separada das relações de poder
(dimensão política) e vice-versa. Em outras palavras, a política cultural é o “processo
posto em ação quando um conjunto de atores sociais moldeados por, e que encarnam
diferentes significados e práticas culturais, entram em conflito uns com outros”
(ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p. 24). As políticas culturais dos
movimentos sociais, e especificamente dos latino-americanos, se revelam em suas ações
concretas na luta contra os projetos dominantes de "nação", “democracia”, “cidadania”,
"gênero", “etnia”, etc., de modo que desafiam a cultura política vigente,
desestabilizando-a e ampliando seu significado.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
256
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Diversidade Cultural cuja primeira gestora foi Marta Porto. Em menos de dois anos,
tanto a ministra como a secretária foram substituídas do cargo, e um dos principais
movimentos de oposição que enfrentaram foi, justamente, o dos pontos de cultura. No
primeiro governo Dilma (2011-2014), portanto, o PCV foi perdendo protagonismo e
orçamento, como expressa a quantidade cada vez menor de PCs apoiados com recursos
federais.
Mas se no plano interno brasileiro, a instabilidade, a redução do orçamento e a
sensação de “desmonte” do programa Cultura Viva (TURINO, 2013) geraram
profundas contradições na gestão do MinC e nas próprias redes e conselhos de pontos
de cultura que tinham sido criados anteriormente, as relações com os países latino-
americanos pareciam ir em direção totalmente diferente, seja no nível governamental,
seja nas redes dos movimentos culturais comunitários. Afinal, foi na gestão de Ana de
Hollanda que se assinou o memorando de entendimento com a então Secretaria de
Cultura da Argentina com foco, justamente, no PCV e nos PCS como experiências
análogas de cooperação, formação, capacitação e intercâmbio técnico e foi lançado o
"Programa Nacional de Puntos de Cultura". Na Costa Rica, El Salvador e Guatemala o
conceito de Cultura Viva Comunitária começou a ser debatido por organizações
comunitárias e instituições governamentais21.
No Peru, o recém-criado Ministério de Cultura implantou uma experiência piloto
de PCs nesse período que vale a pena destacar porque, junto com Argentina, são as
iniciativas públicas mais duradouras da região fora do Brasil. Para Paloma Carpio22, o
movimento da cultura viva comunitária no Peru é interessante, também, pelo fato de não
ter tido um governo progressista ou de esquerda nos moldes de outros países da região.
Tanto o Ministério quanto o programa Puntos de Cultura resistiram às mudanças de
gestão e uma profunda instabilidade presidencial que foi uma constante ao longo dos
anos. Carpio23 reforça a importância das redes preexistentes e o papel impulsionador das
fundações de cooperação internacional na aproximação do país com os processos da
Cultura Viva, que no caso dela se inicia em 2007 e se fortalece no FSM de Belém do
Pará em 2009 e na Teia de Fortaleza de 2010. Através de um contato acadêmico, o prof.
21
Memorando de Entendimento entre o Ministério de Cultura do Brasil e a Secretaria de Cultura da
República Argentina, assinado em Buenos Aires, 2011. Disponível em https://iberculturaviva.org/wp-
content/uploads/2018/03/Memorandum-de-Entendimiento.pdf Acesso em 15 fev. 2021.
22
Paloma Carpio é formada em Artes Cênicas pela Pontifícia Universidad Católica de Perú, fundadora
de Tránsito-Vías de Comunicación Escénica. Foi assessora cultural no município de Lima e coordenadora
dos Pontos de Cultura no Ministério de Cultura do Peru. Mais informações em Carpio (2015).
23
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 09 abr. 2021.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
259
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Victor Vich, se aproximou da gestão cultural no município de Lima em 2011 - que tinha
uma prefeita recém eleita de centro-esquerda, Susana Villarán - e em 2012 chega ao
Ministério da Cultura também por contatos universitários da Pontifícia Universidade
Católica do Peru (PUCP). Em síntese, Cárpio não foi formada como militante e
funcionária cultural por um partido comunista ou de esquerda tradicional ou
progressista (aliás, o comunismo no Peru está muito associado, ainda, aos movimentos
armados mais radicalizados como Sendero Luminoso) mas pelas redes da sociedade
civil, da cooperação internacional e da qualificação universitária.
Em setembro de 2011, em Mar del Plata, ocorreu o IV Congresso Ibero-
americano de Cultura, com o lema “Cultura, política e participação social”. Contudo, o
evento não previa a participação de organizações culturais não governamentais. Diante
desse impedimento, ocorreu uma articulação a partir da rede estabelecida em Medellín
que pressionou a organização do Congresso e conseguiu garantir a realização de uma
programação paralela que se intitulou “Cofralandes de Organizaciones Culturales
Comunitarias”. Naquele espaço se realizou a “Asamblea Latinoamericana de Cultura
Viva Comunitaria”, com a participação de representantes de 21 países.
Do encontro da Plataforma Puente em Mar del Plata, surgiu a proposta de
realizar a Semana Continental de Cultura Viva Comunitaria, que ocorreu em abril de
2012, e "consistió en la realización de actividades tales como encuentros, festivales,
debates, seminarios y manifestaciones culturales en varios países, para promover la
Cultura Viva Comunitaria y los debates en torno de las políticas culturales en el ámbito
local, nacional y continental" (SANTINI, 2017, p. 148). A Semana Continental foi
importante também por mobilizar e organizar a participação dos movimentos de cultura
comunitária na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável
(Rio+20) que se realizou em maio do mesmo ano no Rio de Janeiro. Os ativistas da
cultura comunitária se congregaram na Cúpula dos Povos, com representantes da
Colômbia, Argentina, Perú, Equador, Bolívia, Costa Rica e El Salvador, além de
dezenas de PCs brasileiros. Na ocasião ocorreu a Caravana por la Vida: de
Copacabana a Copacabana, um projeto de Iván Nogales24, que consistiu em uma
caravana entre a cidade de Copacabana, na Bolívia, e a praia carioca de Copacabana, da
qual participaram os artistas do Teatro Trono - Comunidad de Productores en Artes
(COMPA), dirigido por Nogales.
24
Ator, diretor de teatro e gestor cultural, Iván Nogales foi o criador do Teatro Trono e da Fundación
Compa (Comunidad de Productores de Artes) na Bolívia. Sobre a atuação de Nogales ver Mongis (2021).
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
260
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
"sustentabilidade". Não é sem razão que Turino indica o ano de 2013 como o de
consolidação do movimento, por conta do Congresso, que reuniu 1.200 pessoas de 17
países, apesar de ressaltar também, em 2014, a realização do Congresso Iberoamericano
pela Cultura Viva Comunitária, na Costa Rica em 2014, de onde surgiu o programa
IberCultura Viva, ganhando uma institucionalidade plurinacional25.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando a pergunta que abre essas reflexões, "é possível pensar uma política
pública de cultura transnacional e popular no contexto latino-americano?", é possível
responder de forma afirmativa, a partir do estudo de caso dos PCV e dos PCs. A
regionalização dessa experiência surgida no Brasil sinaliza para outras formas
alternativas àquela definida por Garcia Canclini (1983) como "histórico-popular" onde
sobressaíam os propósitos políticos, econômicos e sociais, relegando a plano secundário
o papel da cultura.
O que se pode observar na trajetória que vai do Cultura Viva brasileiro ao
Cultura Viva Comunitária latino-americano é a atenção ao espaço cultural latino-
americano, onde a dimensão cultural, e mais especificamente popular e comunitária se
constitui como eixo fundamental, não na conformação de um bloco latino-americano,
como esperava Garretón (2008), mas de um rede de intelectuais oriundos, em grande
parte, das parcelas subalternizadas das sociedades da região, que por isso reinventam os
parâmetros de pertença a esse espaço, de modo mais inclusivo e democrático. Aliás, a
articulação continental termina atuando como uma rede de redes, incorporando diversas
capas no movimento, desde o nível local até o internacional. A política pública
transnacional, por sua vez, também se articula em numerosas políticas culturais locais,
regionais e nacionais, chegando até a organismos intergovernamentais como no caso do
Ibercultura.
Esse contexto, por outro lado, não está isento de contradições, recuos e
ambiguidades. Basta constatar que no Brasil, onde surgiu o PCV e os PCs, o MinC
perde o protagonismo e liderança, que é assumido por governos locais que vão
municipalizando a experiência e alimentando as redes e as interações com o resto da
América Latina. De todo modo, vários dos ativistas, intelectuais e ex-gestores
brasileiros que participaram dos eventos realizados desde 2004, a exemplo de Turino e
25
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
262
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
REFERÊNCIAS
BALÁN, Eduardo. Cultura Viva Comunitaria: un camino y sus enigmas. In: SEGURA,
María Soledad; PRATO, Anna Valeria. Estado, sociedad civil y políticas culturales:
rupturas y continuidades en Argentina entre 2003 y 2017. Caseros: RGC Libros, 2018,
p. 91-96.
CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil. Dos anos 1930 ao século XXI. Rio de
Janeiro: FGV, 2009.
PEÑALOZA, Amor Arelis Hernández. Las redes intelectuales como mecanismos que
permiten la constitución de la teoría y crítica literaria. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n.
37, p. 93-114, 2013.
RUBIM, Albino. As Políticas Culturais e o Governo Lula. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2011.
RUBIM, Albino (org.). Políticas Culturais no Governo Lula. Salvador: UFBA, 2010.
TURINO, Célio. Ponto de cultura. O Brasil de baixo para cima. São Paulo: Anita, 2009.
_____ . Era uma vez o Programa Cultura Viva. Revista Murro em Ponta de Faca, Nº 7,
São Paulo, jul. 2013. Disponível em https://issuu.com/gugulooper/docs/revistamurro_07
Acesso em 15 fev. 2021.
INTRODUÇÃO
3
Ilê Afro-brasileiro Odé Lorecy: casa de culto de candomblé queto fundada em 1968 e tombada como
patrimônio cultural pelo condephaat em 2020. Em: www.condephaatsp.org.br
4
Oná: Conceito de Arte iorubá.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
268
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
renascendo a cada estação e a arte ressurgindo feito a flor de maiz, narrativa mitológica
conciliante em toda América Latina.
No texto - A utopia na construção da América latina, elaborado para o IV Fórum
Arte e Cultura da América Latina - “Para não deixar morrer a utopia”, Bertoli afirma
que a América nasce sob o signo da utopia e no meio de tantos direitos que lhe foram
usurpados, possui o direito à memória.
5
Santeria: Palo Monte ou Regla de Ocha, é uma prática sincrética religiosa afro-caribenha, concilia
fundamentos da religião tradicional africana em diáspora e o catolicismo espanhol.
6
África Negra: a questão ancestral.
7
Orixá: deuses iorubanos relacionados aos elementos da natureza, numa tradução literal seria a entidade
protetora do Orí, cabeça;
8
Bienal de Havana: Ano de fundação: 1984
Organizador: Wifredo Lam Center of Contemporary Art
Desde a segunda Bienal de Havana de 1986, também participaram artistas da África, Ásia e Oriente
Médio.
A Bienal de Havana foi criada em 1984 e sua primeira edição foi dedicada a artistas da América Latina e
do Caribe. Desde a segunda Bienal de 1986, também participaram artistas da África, Ásia e Oriente
Médio. Esta tradição, que se manteve durante cada uma das edições subsequentes, fez de Havana um
importante local para a reunião e exibição de arte "não ocidental". A Bienal de Havana tem focado sua
atenção nos artistas do Sul cujas obras representam preocupações e conflitos - muitas vezes de alcance
universal - comuns a suas regiões.
Temas como as tensões existentes entre tradição e contemporaneidade, o desafio aos processos históricos
de colonização, as relações entre arte e sociedade, o indivíduo e sua memória, a comunicação humana
diante do desenvolvimento tecnológico e as dinâmicas da cultura urbana têm sido temas de interesse
particular pela Bienal, sem distinção entre as múltiplas formas de visualidade que operam na cultura
como sistema.
Durante o seu desenvolvimento a Bienal de Havana reconheceu a reconfiguração geopolítica ocorrida e
consequentemente o aumento do número de países que se aproximam das condições do chamado Sul e
daqueles que, em posições precárias de desenvolvimento, buscam inserir-se no econômico. blocos de
países mais favorecidos.
Agora, a Bienal de Havana se dá dentro de um mundo supostamente globalizado que se apresenta com
muitas faces, complexidades e conflitos, principalmente quando o discurso a que se refere tende a ordenar
por ordem de importância a hegemonia econômica, a dependência e o controle da informação, ignorando
o diferentes estágios de desenvolvimento e as orientações sociopolíticas que coexistem no planeta.
A Bienal de Havana é organizada a partir de um processo de pesquisa e curadoria, e todos os participantes
são selecionados de acordo com alguns parâmetros como a sujeição temático-conceitual ao tema de
reflexão. Nesse processo, a equipe curatorial da bienal, do Centro de Arte Contemporânea Wifredo Lam
de Havana, recebe o apoio de colegas de outros países que contribuem com suas sugestões e se tornam os
elos necessários no diálogo com os criadores.
Fonte: www.bienalhabana.cult.cu
https://www.biennialfoundation.org/biennials/havana-biennale/
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
270
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
parte dos itans, narrativas mitológicas iorubás, percorrendo um extenso caminho entre a
oralidade transmitida de geração em geração, seja pelo viés étnico e ou religioso,
sobrepostos aos estandartes e corpos pintados em movimentos vibrantes pelas ruas de
Havana velha.
Ao recorrermos a Gell evocamos a vivacidade desses corpos e possíveis
adereços-objetos, num sistema de fruição, não diante de uma apresentação de arte
performática, mas um comboio de seres reais, humanos ou não, nascidos da Tecnologia
do encanto9:
Para Gell, mesmo sendo possível reconhecer uma categoria pré-teórica de objeto
de arte que se divide em duas subcategorias: arte ocidental e arte Indígena ou
etnográfica, no entendimento da antropologia tudo poderia ser tratado como objeto de
arte, incluindo pessoas vivas, uma vez que a antropologia da arte se ajusta à
antropologia social das pessoas e seu corpo.
9
Tecnologia do Encanto: O antropólogo britânico Alfred Gell (1945-1997) desenvolve seu conceito de
arte como parte de sua proposta de estabelecimento de uma nova antropologia da arte. Responsável por
uma rotação de perspectivas nesse domínio, Gell revisa conceitos como obra de arte, artefato, tecnologia
da arte, estética, encantamento, magia e estilo, o que resulta em uma complexa teoria sobre a agência do
objeto artístico.
No artigo “A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia” (1992), o autor considera as
diversas artes como partes de um vasto e frequentemente não reconhecido sistema técnico, que
ele denomina “tecnologia do encanto”. Nessa perspectiva, objetos de arte seriam fruto de uma
atividade técnica de transubstanciação engenhosa de materiais e das ideias a eles associados.
Gell reivindica aí o emprego de um “filisteíismo metodológico”, postura de total indiferença do
antropólogo no tocante ao valor estético das obras de arte. Para elucidá-la, utiliza como exemplo
objetos de arte criados com a intenção de funcionar como “armas” em uma “guerra
psicológica”; é o caso das tábuas que ornam as proas das canoas dos participantes do kula,
sistema de trocas realizado pelas populações das ilhas Trobriand. A intenção por trás do uso
dessas tábuas é fazer com que os parceiros da troca que estão em outras ilhas, ao observarem as
canoas chegando, se deslumbrem a ponto de perderem os sentidos, oferecendo braceletes e
colares mais valiosos do que de costume. A eficácia dos objetos de arte como componentes da
tecnologia do encanto e o poder de fascinação que exercem são resultantes do encanto da
tecnologia empregados em sua construção. Gell prioriza, assim, a análise da eficácia do objeto de arte,
seu poder de agência.
Fonte: http://ea.fflch.usp.br/conceito/arte-alfred-gell
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
271
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
10
Índice: A antropologia da arte não seria a antropologia arte se não se limitasse ao subconjunto de
relações sociais que associam “objeto” a um agente social de uma forma distinta – “artística”, por assim
dizer. Descartamos a ideia de que os objetos se relacionam “artisticamente” com os agentes sociais se (e
somente se) consideram esses objetos de um ponto de vista “estético”. Se é assim, porém, de que outros
meios dispomos para distinguir uma relação “artística” entre pessoas e coisas de uma relação “não
artística”? A partir de agora, para simplificar o problema, limitarei a discussão ao caso da arte visual – da
arte “visível”, pelo menos –, excluindo a arte verbal e a musical, embora reconheça que elas costumam
ser inseparáveis na prática. Assim, as “coisas” de que falo poderão ser entendidas como reais, tendo uma
existência física, sendo únicas e identificáveis, e não como atuações, leituras, reproduções etc. Essas
observações pareceriam fora de lugar na maioria das discussões sobre arte, mas são necessárias aqui, já
que as dificuldades que enfrentamos podem ser mais bem superadas se abordadas uma de cada vez. Além
disso, é muito difícil propor um critério que distinga os tipos de relações sociais que se enquadram no
escopo da “antropologia da arte” daí que fumaça é um “índice” de fogo . ( Gell, Alfred. Arte e agência
(Coleção Argonautas) . Ubu Editora. Edição do Kindle.)
11
Abdução: O termo empregado na lógica e na semiótica para designar tais inferências é “abdução”. A
abdução é um caso de inferência sintética “no qual encontramos algumas circunstâncias bastante curiosas,
explicáveis pela suposição de que ela seria um caso de alguma regra geral, motivo pelo qual essa
suposição é adotada” (Eco 1976: 131, citando Pierce ii, 624). Em outras ocasiões, Eco afirma que “a
abdução […] consiste em traçar, de forma arriscada e hesitante, um sistema de regras de significação que
possibilitem que um signo adquira seu próprio significado […] a abdução ocorre com aqueles signos
naturais que os estoicos chamavam de indicativos, dos quais se suspeita que sejam signos, ainda que não
saibamos o que eles significam” (Eco 1984: 40). A abdução abrange a zona cinzenta na qual a inferência
semiótica (dos significados a partir dos signos) se funde às inferências hipotéticas de um tipo não
semiótico (ou não convencionalmente semiótico), tais como a inferência de Kepler a respeito do
movimento aparente de Marte no céu à noite, a partir da qual concluiu que o planeta percorria uma órbita
elíptica: A abdução é uma “indução a serviço da explicação, na qual uma nova regra empírica é criada
para tornar previsível aquilo que de outra forma seria misterioso” […]. A abdução é uma variedade de
inferência não demonstrativa, baseada na falácia lógica segundo a qual afirmar o antecedente obriga a
afirmar o consequente (“se p então q; mas q; portanto p”). Por meio de premissas verdadeiras, ela produz
conclusões que não são necessariamente verdadeiras. No entanto, a abdução é um princípio de inferência
indispensável, pois é o mecanismo básico que permite limitar a enorme quantidade de explicações
compatíveis com um dado evento. (Boyer 1994: 147, citando Holland et al. 1986: 89) (Idem)
12 12
Agente Social: No entanto, como geralmente acontece com as definições, a afirmação de que o
índice deve ser “visto como o resultado e / ou o instrumento da agência social” é em si mesma dependente
de um conceito que ainda não foi definido, o de “agente social” – aquele que exerce a agência social. É
claro que não é difícil dar exemplos de agentes sociais e de agência social. Qualquer pessoa deve ser
considerada um agente social, pelo menos potencialmente. A agência pode ser atribuída a essas pessoas (e
coisas, conforme discutirei a seguir) que são vistas como iniciadoras de sequências causais de um
determinado tipo, ou seja, de eventos causados por atos da mente, da vontade ou da intenção, e não de
uma mera concatenação de eventos físicos. Um agente é aquele que “faz com que os eventos aconteçam”
em torno de si. Como resultado desse exercício da agência, certos eventos acontecem (não
necessariamente os eventos específicos que foram “pretendidos” pelo agente). Enquanto as cadeias
baseadas em relações físico-materiais de causa e efeito consistem em “acontecimentos” que podem ser
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
272
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
explicados pelas leis da física que governam o universo como um todo, os agentes dão início a “ações”
que são “causadas” por eles próprios, por suas intenções, e não pelas leis da física do cosmos. Um agente
é a fonte, a origem dos eventos causais, independentemente do estado do universo físico.(Ibidem)
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
273
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Quem seriam, portanto, os destinatários em vista disso? Nos anos 1980, marco
inicial das performances de Mendive, possivelmente o grupo que assistia e compunha o
quando sobre o “arrebatamento do amor de Xangô por Oxum ao encontra-la em
companhia do irmão Oxóssi”, ou “a paixão de Xangô vivida ao lado de Oyá, que sem
pestanejar abandona a numerosa prole de nove filhos do marido Ogum para viver
aventuras de guerra ao lado do Obá13 de Oyó”, seja pelas ruas cubanas ou no Teatro
Símon Bolívar, na década de 1990, no memorial da América Latina. Atualmente, anos
2021, aquele que acessar por uma plataforma digital uma performance, seja “Las
Cabezas”, “Los Abrazos”, “El água”, estará presente na cosmogonia e cosmologia
iorubá, no exato momento de sua criação por Olodumaré, uma variante iorubá para o
nome do Pré-existente.
Conquanto a gênese da sociologia e por conseguinte da “Escola Francesa” nos
remeta a Durkheim, compete à Mauss em seu tratado “As técnicas do corpo” apontar
um bívio: a diferenciação do exame do corpo e os escritos sobre o corpo. Imprescindível
aludir a desmedida filosofia de Nietzsche ao elaborar o lugar do corpo no contexto pós
iluminismo, ao lançar frases: “eu só acreditaria num Deus que dançasse”, “A vida sem a
música seria um erro”, “o que não provoca minha morte faz com que eu fique mais
forte”, nano-conceitos, que mesmo destacados da obra original ou sem referência
bibliográfica alguma nos acomete imediatamente a elocubrações corpóreas.
13
Obá: Rei.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Ajalá
Ajalá modela a cabeça do homem
Odudua15 criou o mundo
Obatalá criou o ser humano
Obatalá fez o homem de lama,
14
Elaborada a partir do texto do Prof. Dr. Fábio Leite, supracitado.
15
Odudua: Deusa da criação do mundo pela cosmogonia iorubá.
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276
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Desse modo, no momento em que o homem é criado recebe o Emí, sopro de vida
que faz seu corpo Ara, por hora inerte, receber a força vital, Axé; frente a oportunidade
da vida, concebe a beleza em forma de arte, Oná, e celebra o propósito fundamental da
realidade do corpo: dançar, visto que a vida é uma dança, um xirê16, realizando desse
modo o seu Odú, destino, firmado no além céu, Orun, pelo seu Orí, a cabeça;
enunciação da órbita de toda concepção “del Maestro Manolo”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
16
Xirê: roda, brincadeira e dança
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
17
Igbá: representação do Orixá, recipiente onde se deposita a pedra otá e as insígnias de cada Orixá.
18
Las Cabezas performance de Mendive. Por: Ismael Francisco
En este artículo: Arte, Bienal de La Habana, Cuba, Cultura, Fotografía, Frank Fernández, La
Habana, Manuel Mendive, Sociedad, XI Bienal de La Habana. El pintor, escultor y grabador
cubano Manuel Mendive paseó sus "lienzos humanos" dentro de una acción plástica que recorrió una de
las más concurridas avenidas de La Habana y a su paso provocó la sorpresa de muchos transeúntes
atraídos por la originalidad de su propuesta titulada "Las cabezas". Casi 200 personas entre actores de
teatro, bailarines, artistas circenses, estudiantes y hasta algunas sin vínculo directo con las artes plásticas,
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278
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
prestaron a Mendive la piel de sus cuerpos -una quincena totalmente desnudos y otros con el torso
descubierto- y lo dejaron estampar su pincel sobre ellos. El artista dijo a EFE que con esta nueva
intervención plástica quiso "hacer un homenaje a nosotros mismos, a 'Las cabezas', las buenas, las malas
y las regulares para que todas sean cada vez mejores". En víspera de la inauguración de la XI Bienal de
La Habana, Mendive presentó esta muestra como "un llamado al mejoramiento humano, al amor a la
naturaleza y entre los hombres". Su nuevo trabajo irrumpió en el medio urbano con pinturas sostenidas
por caballetes rodantes mezcladas con piezas escultóricas, e instalaciones, a las que se integraron la
danza, la música y también la pantomima de los participantes, algunos con máscaras que cubrían sus
cabezas.Además incorporó al conjunto otros elementos como los populares "bicitaxis" -bicicletas que
arrastran un asiento de dos plazas techado- y carretillas de las que utilizan actualmente los vendedores
ambulantes de productos agrícolas. Fiel a la esencia de su obra, en la que acostumbra a combinar lo
cotidiano, lo tradicional, lo moderno y un mundo de figuras "mágicas", esta nueva "performance" arrancó
expresiones como "impactante", "sorprendente", "es algo fuera de lo común", "espectacular" del público
que la presenció. "Es fantástico, todo es posible en el arte cuando se hace con disciplina, cordura y
equilibrio, aunque no es la primera vez que Mendive hace este tipo de acción artística", recordó Evelio,
un admirador de la obra de Mendive. Roxana y Mairelys, dos jóvenes estudiantes se declararon
"fascinadas" porque les pareció "algo fuera de lo común", mientras que Rosa Hernández, una señora
entrada en años dijo a EFE que "nunca había visto un acto así con personas desnudas", pero le pareció
que "eso es cultura y no me resulta chocante ni vulgar". A uno de los turistas que frecuentaban este jueves
la populosa zona, se le escuchó comentar a sus acompañantes "is wonderful (maravilloso)". Mendive
inició esta acción artística con la pintura corporal de los participantes en el vestíbulo del Gran Teatro de
La Habana y luego encabezó la representación que desfiló a lo largo de varias calles del Paseo del Prado
hasta su intersección la avenida malecón, y desde allí regresó para cerrar la caminata frente al edificio de
"El Capitolio". Allí en una plataforma se completó la obra artística con la intervención de voces de la
Opera Nacional de Cuba, bailarines de los grupos Danza del Caribe, Danza Fragmentada y Rakatán, el
grupo teatral de muñecos Okantomí y el pianista Frank Fernández. Con el "performance", procedimiento
que Mendive estrenó en 1986, este artista fusiona su manejo de técnicas y recursos propios del arte
africano, su gusto por la escultura, la pasión por el color y un primitivismo voluntario, según las
valoraciones de algunos especialistas. Pero sin duda, un observador de su obra dijo al ver "Las
cabezas" que el principal mérito de Mendive es que consiguió trascender "lo exótico" y ha impuesto una
visión plástica "original". Mendive ha participado en todas las ediciones de la Bienal de La Habana,
según han señalado los organizadores de esta nueva edición de la cita cuya inauguración oficial será este
viernes con la asistencia de más de 180 artistas de 43 países y volcada a los espacios públicos y las calles
de la ciudad.
Fonte:://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-de-mendive-fotos/
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-
de-mendive-fotos/
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-
de-mendive-fotos/
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Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-
de-mendive-fotos/
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Figura 09 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
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REFERÊNCIAS
Fundação Memorial da América Latina. Catálogo Memorial da América Latina. São Paulo:
Empresa das Artes, 1990.
GELL, Alfred. Arte e Agência. (Coleção Argonautas) . Ubu Editora. Edição do Kindle, 2018.
LEITE, Fábio Rubens da Rocha. A Questão Ancestral: África Negra. São Paulo: Palas Athena:
Casa das Áfricas, 2008.
MAUSS, Marcel. Introdução à obra de Marcel Mauss: (in Sociologia e antropologia) (Coleção
Argonautas) e-Book Kindle, 2017.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das letras, 2003.
Web bibliografia
Eri Wole: mi cabeza da vueltas OJEDA, Aurora Cuba, 1989, 9 min. El artista Manuel
Mendive arma frente a la cámara un rito musical, cuerpos, color, flora, fauna y algo de história.
Disponível em:
https://bibliotecadaeca.files.wordpress.com/2016/04/documentario-arte.pdf
Dedalus – Banco de Dados Bibliográficos da USP, catálogo de todas as bibliotecas da USP.
Ainda não traz a totalidade do acervo audiovisual da ECA
http://www.dedalus.usp.br
Filmes e Vídeos, catálogo específico desse acervo, completo, disponível no site da Biblioteca da
ECA
http://www.eca.usp.br/biblioteca-bases/cena/search.htm
Para saber o que há de novo no acervo, consulte sempre as bases de dados online e acompanhe a
Biblioteca da ECA no Facebook e Twitter. https://www.facebook.com/ecabiblioteca
https://twitter.com/bibliotecadaeca/
Data de acesso: 30/04/2021.
Disponível em:
http://ea.fflch.usp.br/conceito/arte-alfred-gell
Data de acesso: 30/04/2021.
Tese: ANDRÉS INOCENTE MARTÍN HERNÁNDEZ. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES. UNICAMP. ARTE & ARQUITETURA, CORPO E
ESTRUTURA: CARACTERÍSTICAS DAS OBRAS DE ARTE TENSIONADAS PELO
ESPAÇO ARQUITETÔNICO – CASOS DE HAVANA E SÃO PAULO. 2018.
Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/333284/1/Hernandez_AndresInocenteM
artin_D.pdf
Data de acesso: 30/04/2021.
Bienais:
Acervos em Museus:
Museo de Bellas Artes de Havana
Disponível em:
https://www.bellasartes.co.cu/
Data de acesso: 30/04/2021.
Acervo:
Manuel Mendive Hoyo, Barco negrero, 1976
Manuel Mendive Hoyo, Obba, 1967
Manuel Mendive Hoyo, Cristóbal Colón, 1984
Manuel Mendive Hoyo, Ollá. La dueña del cementerio, 196
Manuel Mendive Hoyo, Sin título, 1986
Manuel Mendive Hoyo, Sin título, 1986
Manuel Mendive Hoyo, Allacuá, 1991
Artigos e Catálogos
Obras de Mendive inauguran Galería de Mayabeque
En Bellas Artes la Bienal supera lo anunciado
Repensando Cuba y la Cubanidad en el Museo Nacional de Bellas Artes
Bellas Artes en representativa muestra internacional
Sin Máscaras. Arte Afrocubano Contemporáneo
Análisis y puntos de vista acompañan exposición transitoria
Alicia y los pintores
Acervo:
Print. Manuel Mendive. 1989
Data de acesso: 30/04/2021.
Exposições:
Histórias afro-atlânticas 2018 – Projeto Temático
MASP Museu de Arte de São Paulo Assi Châteaubriant
Disponível em:
https://masp.org.br/
Local: Instituto Tomie Ohtake
https://www.institutotomieohtake.org.br/
Data de acesso: 30/04/2021.
Periódicos:
Jornal da USP: “A arte de Cuba”
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
290
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Disponível em:
http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2006/jusp750/pag09.htm
Data de acesso: 30/04/2021.
Agência nacional de notícia: “Museu Oscar Niemeyer apresenta uma das mais completas
mostras de arte cubana”
Disponível em:
http://www.historico.aen.pr.gov.br/modules/noticias/makepdf.php?storyid=23764
Data de acesso: 30/04/2021.
Fonte:://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-de-mendive-fotos/
Data de acesso: 30/04/2021.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
INTRODUÇÃO
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina
(PROLAM) da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected].
2 Proletkult é a abreviatura da expressão russa "proletarskaya kultura", que significa "cultura proletária".
Foi um movimento literário surgido na Rússia em 1917. Entre seus criadores estão o teórico Alexander
Bogdanov e o poeta Mikhail Gerasimov. Durante a sua existência reuniu uma ampla gama de artistas, de
decadentes a futuristas.
3
A expressão foi criada pelos revolucionários russos em 1917 para divulgar os projetos políticos da
revolução, bem como para potencializar a agitação das massas no processo de transformação social. No
que se refere ao teatro de agitprop, grupos culturais organizavam trabalhos de curta duração visando à
politização das massas.
4
Grupo de teatro que foi criado no período da Revolução Russa e que realizou uma série de atividades,
desde a formação de novos agitadores, até a produção e a publicação de uma revista intitulada Revista
Blusa Azul.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
293
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
da consolidação do teatro político no Brasil reporta à década de 1960, com a criação dos
Centros Populares de Cultura vinculados à União Nacional dos Estudantes (CPC da
UNE). Junto com estes espaços, grupos e artistas de tendência mais questionadora
começaram a se reafirmar. É o período no qual se buscou a presença em cena do homem
brasileiro, da reafirmação da identidade nacional. Não apenas no teatro, mas em outras
linguagens artísticas como o cinema, percebe-se a tentativa de abordar e dar visibilidade
para as mazelas sociais do povo brasileiro. Assim, a atuação dos artistas de teatro junto
ao CPC, mostrou-se uma experiência mais direta com as massas.
5
O Opinião foi um grupo de teatro carioca da década de 1960. Após o golpe militar de 1964, um grupo
de artistas ligados aos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes se reuniu com o
objetivo de fazer frente à situação político-social enfrentada pela sociedade brasileira. Em 11 de
dezembro de 1964, ocorreu a estreia do legendário show Opinião, dirigido por Augusto Boal e João das
Neves e que dá nome ao grupo. Desde a sua fundação, o Opinião privilegiou o teatro popular. Mais
informações vide: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo399366/grupo-opiniao. Acesso em
23/04/2020.
6
O Arena foi um grupo paulistano fundado na década de 1950 e reuniu um expressivo número de
artistas comprometidos com um teatro político e social, a exemplo de José Renato, Henrique Becker e
Sérgio Britto. Somaram-se depois artistas como Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e
Milton Gonçalves. O grupo teve sua estreia em 1953 com a peça “Esta Noite É Nossa”, de Stafford
Dickens no Museu de Arte Moderna de São Paulo- MASP. Uma de suas montagens mais emblemáticas
foi o texto de Guarnieri “Eles não usam black-tie” de 1958. Mais informações vide:
http://54.232.130.51/grupo399339/teatro-de-arena. Acesso em 22/04/2020.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
297
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
intuito era defender e manter o status quo das elites. Nesse sentido, sobre a produção
cultural e sua relação intrínseca com as questões sociais, Canclini (1982) nos diz que:
Assim, falar sobre a função social do teatro é abordar uma série de fatores para além
da encenação em si. Diz respeito, também, a uma nova forma de relação da cena com o
espectador: a valorização do trabalho coletivo e horizontal dos grupos e companhias
teatrais, a uma vinculação mais estreita com os movimentos sociais e em situar o fazer
teatral a partir de outra perspectiva, uma perspectiva transformadora, pois como dizia
Boal: “não é o teatro que transforma a sociedade, é o homem quem a transforma e o
teatro pode ser sim, uma forma de transformar o homem para que eles proceda às
mudanças necessárias” (BOAL, 2019, s.p).
Muitos questionamentos surgiram a partir da atuação deste teatro, que visava
fortalecer principalmente as lutas de classe, como diz a companheira de Augusto Boal,
Cecília Boal:
Logo, o crítico alerta para o fato de que caberia aos coletivos e artistas do teatro
político ampliar a função social do teatro e falar não apenas para os seus pares, mas para
grande parcela da população alijada do processo de uma politização. Bentley foi crítico
ferrenho de diversos dramaturgos, mas reconheceu aqueles que efetivamente
contribuíram, no seu tempo, para o teatro engajado.
Dentre estes dramaturgos e encenadores, ele abordou amplamente sobre a
produção e a obra de Bertold Brecht. Antes de Brecht, Erwin Piscator, já tinha lançado
também “a semente” do que viria a ser o teatro político, comprometido com a sociedade
e suas principais questões.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
307
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
Nesse sentido, Piscator foi um dos encenadores que mais levou a sério a
proposição do teatro político, aprofundado em seguida por Bertold Brecht, dentro da
perspectiva do seu teatro dialético, didático e poético.
Assim, o destino da sociedade não era visto como imutável. Para tanto, Piscator
apontava para a necessidade de aproximar o teatro das classes operárias e camponesas,
arte esta que sempre esteve, não só do ponto de vista econômico, mas na luta de classes,
em um “patamar inalcançável” imposto pelo teatro burguês. Logo, era preciso devolver
às classes populares o teatro como ferramenta de mobilização social.
Por fim, é importante dizer sobre a efemeridade também do teatro político e de sua
função social; ainda que o seu legado seja uma importante fonte de consulta, até mesmo
histórica. Isso porque esse tipo de teatro está afinado, de forma intrínseca, a um
determinado contexto político-social no qual a obra foi criada. Como nos aporta Julian
Boal (2020), filho de Augusto Boal e que deu continuidade ao trabalho do Teatro do
Oprimido:
teatro; é possível traçar considerações acerca dos principais pontos da produção teatral
que pretende contribuir para o processo de luta de classes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
que, finalmente, tenta romper com a lógica do sistema capitalista e burguês, que
considera necessário questionar, constantemente, as relações sociais e a conjuntura
política como fixas, permanentes, imutáveis.
Embora os próprios agentes teatrais tenham a consciência de que o teatro, de
forma isolada, não pode transformar o contexto social; eles compreendem como o teatro
pode contribuir, de forma efetiva, no processo de mudanças, ao impulsionar a
capacidade de reflexão crítica do público.
Não podemos deixar de problematizar que, desde a produção localizada nas
ditaduras militares sul-americanas; é ainda um desafio diário a mobilização de grande
parcela da sociedade para a formação crítica pela via teatral; uma vez que, as questões
diárias de sobrevivência da maioria da população, não contribui para uma formação
humana que considere o papel de protagonista das artes desde a infância. Assim, os
coletivos teatrais ainda lidam com questões que se arrastam por décadas, tais como o
desafio de ampliar e democratizar suas produções para além das plateias já formadas, a
fim de se aproximar daqueles potenciais expectadores que, muitas vezes. nunca foram
assistir uma peça teatral.
Trazendo todo esse processo de luta e mobilização dos quais os artistas fizeram
parte nas ditaduras para os contextos atuais da América Latina, com a derrocada de
diferentes governos progressistas e o retorno ao poder de políticos ultraconservadores e
nos quais vemos retrocessos sociais sem precedentes, governos que voltam, inclusive, a
atacar os artistas; como é o caso do Governo do Brasil, com o atual presidente Jair
Bolsonaro; é premente retomar e reforçar o papel do teatro enquanto agente mobilizador
dos coletivos que seja capaz de refletir sobre o processo das mudanças sociais tão caras,
necessárias e urgentes em nosso território.
Para tanto, precisamos de um teatro que fale do nosso tempo, a partir do nosso
lugar de enunciação e com o foco nos nossos territórios.
REFERÊNCIAS:
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. São Paulo: Editora 34,
2019.
BOAL, Cecília Thumin. Teatro em tempos difíceis in: Residência agrária da UNB:
teatro político, formação e organização social, avanços, limites e desafios da
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
314
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
experiência dos anos de 1960 ao tempo presente. / Eliene Rocha; Rafael Litvin Villas
Bôas; Paola Masiero Pereira e Rayssa Aguiar Borges (organizadores) .--1.ed.- São
Paulo: Outras Expressões, 2015.
BÔAS, Rafael Litvin Villas, PEREIRA, Paola Masiero. Teatro Político, Questão
Agrária e Ditadura: Dimensão do trauma, Defasagem e retomada contemporânea in:
Residência agrária da UNB: teatro político, formação e organização social, avanços,
limites e desafios da experiência dos anos de 1960 ao tempo presente. Eliene Rocha;
Rafael Litvin Villas Bôas; Paola Masiero Pereira e Rayssa Aguiar Borges
(organizadores) .1.ed.- São Paulo: Outras Expressões, 2015.
FREDERICO, Celso. Ensaios sobre Marxismo e Cultura. Rio de Janeiro: Mórula, 2016.
PEIXOTO, Fernando. Brecht: uma introdução ao teatro dialético. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1981.
SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2009.
1
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
317
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
claustrofóbica da parede pode ser lida como uma metáfora do contexto de opressão do
regime militar, no qual quem ousasse contestar a limitação a que todos estavam sujeitos
sofreria as consequências da perseguição, exclusão e violência institucionais –
representada, no conto, por uma política sanitária.
Já na década de 1970, podemos encontrar imagens de peste em outras obras do
autor, como no conto “O Afogado”, da coletânea O Ovo Apunhalado, publicada em
1975. No texto, um médico de uma pequena vila resgata um rapaz desconhecido,
aparentemente um náufrago, que misteriosamente aparece na praia, e o leva para casa
ainda desacordado. Com o passar dos dias de recuperação, a população da cidade se
incomoda com a presença do forasteiro a quem imputa a responsabilidade pelo
surgimento de inúmeros males que acometem o vilarejo, incluindo as doenças. Por
outro lado, a presença do rapaz exerce um fascínio sobre o médico que encontra, nele, a
possibilidade de ruptura com a ordem social estabelecida pelos moradores e endossada
pelos poderes institucionais, representados pelo padre e pela estátua do general,
patriarca da cidade. No desfecho, os moradores lincham o rapaz na presença do médico.
A partir da segunda metade dos anos 1980, com a passagem da ditadura para a
democracia, há uma mudança no tratamento da imagem do corpo e da doença na obra
do escritor brasileiro que coincide, ao menos temporalmente, com uma alteração no
regime de controle dos corpos operado pelo Estado, que passa a ser orientado não mais
pela violência física, mas pela acentuação do controle dos processos vitais, em
consonância com aquilo que Michel Foucault identifica, em sua História da
Sexualidade I, como biopolítica. Neste estudo, o filósofo francês procura retraçar a
história da sexualidade no Ocidente, que se constituiu, na modernidade, como um
conjunto de normas que, amparadas em discursos médicos e jurídicos, regulamentam o
comportamento dos corpos e determinam o que é considerado normal, saudável e
socialmente aceito. O sexo se torna privilégio do casal heterossexual, em situação de
matrimônio e para fins exclusivos de procriação. Tudo o que não atende a esse padrão é
considerado doença ou desvio e deve ser combatido; e, no limite, aqueles que não se
enquadram devem ser excluídos do convívio dito saudável.
Para sua definição de biopolítica, o filósofo remonta à Idade Média, quando o
governo, centralizado na figura do rei, detinha o poder sobre a vida de seus súditos,
determinando, inclusive, quem tinha o direito de permanecer vivo e quem deveria
morrer, seja servindo aos exércitos, seja por meio da pena de morte. Na passagem para a
modernidade, contudo, este poder sobre a vida se torna mais difuso e menos
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
centralizador. Ele continua existindo, mas por outros meios que elegem, sobretudo, o
corpo como objeto último que deve ser controlado, mensurado e vigiado. Deste modo,
estabelecem-se saberes sobre o corpo que passam desde o discurso médico e jurídico,
até a instituição de comportamentos considerados socialmente válidos. Criam-se
inúmeros meios de controle sobre a vida, como o estudo de estatísticas, expectativa de
vida, natalidade, saneamento etc., que têm como resultado um crescimento populacional
nunca experimentado. Como consequência, no entanto, é preciso estabelecer normas e
condutas socialmente válidas para poder gerenciar estas “vidas a mais” que passaram a
integrar o corpo social. Dentro deste quadro, o controle sobre a sexualidade se revela
um mecanismo chave, uma vez que ele permite, ao mesmo tempo, estabelecer um
controle sobre a natalidade e sobre o comportamento.
É justamente no contexto histórico da reabertura política – que coincide com o
aumento dos casos de contaminação por HIV e Aids, no Brasil e em toda a América
Latina –, que verificamos, na obra de Caio Fernando Abreu, uma mudança na forma de
representação do corpo e da doença. A partir de então, sobressaem em sua obra os
sofrimentos provenientes da epidemia de Aids, que afeta principalmente, num primeiro
momento, os homossexuais. A Aids é tema recorrente na obra de Caio Fernando Abreu
desde o início dos anos 1980, quando surgiram as primeiras notícias da doença e dos
grupos minoritários especialmente atingidos. Por sentir-se de certa forma ameaçado e
por conviver com amigos, artistas e pessoas que admirava e que haviam sido infectadas,
o escritor procura dar destaque para este tema em obras como a novela “Pela noite”, de
1983, e a coletânea de contos Os Dragões não Conhecem o Paraíso, de 1987, assim
como em seu último romance, Onde andará Dulce Veiga?, de 1990. Contudo, é
sobretudo depois de ser diagnosticado como soropositivo, em 1994, que a experiência
da doença passa a figurar em sua obra de modo ainda mais intenso.
Caio Fernando Abreu torna público seu estado de saúde por meio da publicação
de suas crônicas, no jornal O Estado de São Paulo, posteriormente reunidas na
publicação póstuma Pequenas Epifanias (2006), passando a relatar os dramas físicos e
também psicológicos de saber-se contaminado com uma doença potencialmente mortal
– como de fato era a Aids até meados da década de 1990 – e sobre a qual recaíam
preconceitos e estigmas. Apesar do pouco tempo de vida que de fato teve, após o
diagnóstico da doença – Caio Fernando Abreu veio a falecer em menos de dois anos, em
1996 –, sua obra dedica especial atenção à questão, que, para além de suas crônicas,
surge também na sua última coletânea de contos, Ovelhas negras, de 1995, e em
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
319
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
algumas de suas peças de teatro, reunidas em seu Teatro Completo (2009), revistas e
reescritas nesta mesma fase.
Ainda sem mencionar de modo explícito a Aids, a listagem, que se divide entre epitáfio
e homenagem, dá a dimensão do impacto devastador que a doença teve no campo das
artes. São rememorados músicos, dançarinos, atores, diretores de cinema e teatro,
artistas plásticos, escritores, todos das mais variadas nacionalidades – o que permite
vislumbrar a capacidade de destruição da doença em termos globais. Algumas destas
personalidades atuaram no campo da indústria cultural e, desse modo, têm ampla
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
320
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
sexualidade quanto sua escrita eram o que conferiam sentido à sua vida, tendo sido
ambos motivos de perseguição por meio do governo ditatorial de Cuba:
Assim como Caio Fernando Abreu, que inicia sua carreira de escritor sob uma ditadura
militar, no Brasil, também Néstor Perlongher e Reinaldo Arenas experimentam, em
diferentes medidas, as consequências de viver sob regimes militares em seus respectivos
países. O fato de Arenas abrir e fechar sua autobiografia com a referência à Aids – e,
portanto, à morte –, mas preencher toda a sua história com sua luta para sobreviver sob
um regime ditatorial, é elucidativo de como estas duas dimensões da experiência – a
doença terminal e a privação da liberdade – são experiências em alguma medida
equiparáveis, a partir da perspectiva do escritor cubano.
Por fim, uma outra referência artística latino-americana vinculada à Aids,
presente na obra de Caio Fernando Abreu, se dá um seu último livro de contos, Ovelhas
negras. Esta última coletânea do escritor é uma recolha de artigos que escreveu ao
longo de sua carreira e que por diferentes razões ainda não haviam sido publicados,
somados a textos recém escritos. Trata-se, portanto, de um livro escrito e organizado
sob a perspectiva da morte iminente, como uma espécie de fechamento de sua própria
obra literária. O penúltimo conto do livro, intitulado “Metâmeros”, apresenta dois
breves fragmentos que aludem ao impacto da doença e à perspectiva da morte. Recorto,
a seguir, um trecho do segundo fragmento, que o autor nomeia como “Sobre o vulcão”:
Naquele tempo, minha única ocupação diária era tentar não morrer.
[...] numa espécie de ensaio geral da treva definitiva deflagrada pela
hospitalização de Daniel, pouco mais de quarenta quilos e nódulos
púrpuras espalhados pelo novo corpo quase de criança onde, do
antigo, restavam apenas os enormes olhos verdes, e também pelo
suicídio de Julia, pulsos cortados e a cabeça enfiada no forno do fogão
a gás, vestida de bailarina com tutu de gaze azul e sapatilhas, depois
de ter grafitado em spray rosa-choque no lado de fora da porta da
cozinha alguma coisa em espanhol, alguma coisa amarga, alguma
coisa assim: no se puede vivir sin amor. (ABREU, 2002, p. 222-223).
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
remédios em 14 estados diferentes: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa
Catarina, Pernambuco, Ceará, Alagoas, Piauí, Paraíba, Acre, Amapá, Pará, Rondônia e
Roraima. Constatou-se atrasos no recebimento da medicação pelos postos de
distribuição; baixa nos estoques de medicamentos; ou a necessidade de fracionamento
da medicação em mais de um comprimido, sem comprometimento para o tratamento. O
jornal Correio identificou, em Salvador, em maio de 2019, a falta ou baixa no estoque
de diversos medicamentos, entre eles, alguns medicamentos para soropositivos. Um
deles, em especial, é administrado para crianças recém-nascidas filhas de soropositivos
para evitar a transmissão do vírus, a chamada transmissão vertical. O medicamento não
existe na rede privada e só é acessível pelas redes de farmácias públicas. Também o
jornal G1, em junho de 2019, identificou falhas na distribuição de remédios para
soropositivos no Rio Grande do Norte, onde 48 pacientes chegaram a ficar sem a
medicação.
Caso ainda mais grave é o enfrentado por soropositivos na Venezuela, onde,
desde o agravamento da crise econômica e política nos últimos anos, há falta de
medicamento e interrupção forçada do tratamento. O jornal El País, em matéria de
setembro de 2018, apontava que a situação da Venezuela se assemelha à crise
enfrentada nos anos 1980, quando ainda não havia medicação eficaz para controle da
síndrome. O médico Carlos Pérez, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital Geral
do Oeste (HGO), relata:
onde o tratamento é possível. Alguns pacientes, contudo, morrem antes mesmo de ter
acesso à medicação no novo país. Segundo Eduardo Franco, secretário-geral da Rede
Gente Positiva, os dados sobre a epidemia na Venezuela são estipulados a partir de
“estimativa feita às cegas porque faz anos que o Governo não publica informações
epidemiológicas e, neste 2018, a pasta da Saúde eliminou seu portal na Internet”
(SINGER, 2018). A previsão é de agravamento da situação, uma vez que, com a crise
econômica, a população mal tem dinheiro para comprar preservativos.
Ao compararmos as diferentes representações da doença, na obra de Caio
Fernando Abreu, nos períodos anterior e posterior à reinstalação do regime democrático,
no Brasil, e à emergência da Aids, identificamos algumas questões pertinentes para
pensar o problema da epidemia de HIV e Aids ainda hoje. Se até o final da década de
1970, as diferentes imagens da doença apontavam para uma possibilidade de
contestação das forças exercidas pelo Estado sobre os cidadãos, a partir dos anos 1980
verificamos a imagem do corpo adoecido e, portanto, fragilizado diante de uma
conjuntura nova e ameaçadora. Apesar dos esforços em políticas públicas e de saúde
para prevenção e acesso ao tratamento de soropositivos, adotadas de modo crescente
desde o fim dos anos 1980, vemos ainda a dificuldade em garantir uma política eficaz,
que esbarra em forças conservadoras disseminadas no tecido social. Além disso, a
atuação social de grupos soropositivos e de organizações sociais contra o HIV não é
suficiente para garantir a esta camada da população uma completa independência em
relação às decisões de Estado, tornando-as sujeitas aos impasses e revezes políticos que
incidem sobre governos e populações. Os quadros latino-americanos aqui discutidos,
sobretudo a partir das experiências de Brasil e Venezuela, são paradigmáticos de como
as instabilidades na ordenação democrática tornam estes grupos populacionais
especialmente vulneráveis.
REFERÊNCIAS
ABREU, Caio Fernando.Pela noite. In:___. Triângulo das águas. Porto alegre: L&PM,
2007.
ABREU, Caio Fernando.Os dragões não conhecem o paraíso. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2010.
ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça. Trad. Irène Cubric. Rio de Janeiro: BestBolso,
2009.
GONÇALVES, Juliana & CHAPOLA, Ricardo. Capitais estão sem estoque do principal
remédio contra HIV. Jornal The Intercept Brasil. Abr 2018. Disponível em:
https://theintercept.com /2018/04/13/hiv-retroviral-em-falta/. Acesso em: 15 out 2019.
INTRODUÇÃO
1
Doutora em História Social (UNICAMP). Docente da Faculdade Casper Líbero, Museu de Arte Sacra
de São Paulo e Centro Universitário Assunção. [email protected]
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
331
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
de 1934, com o Realismo Socialista imposto por Stalin), a arte abstrata não conseguiria
retornar ao seu momento “heroico”, pré-1914.
Com o início da Segunda Guerra Mundial, muitos artistas abstratos emigraram
para os EUA, em busca de melhores condições para o desenvolvimento de suas
pesquisas. O país da América do norte tornou-se um prolífico campo de testes no
sentido de expandir e consolidar diversas vertentes da arte abstrata; vencedores do
conflito de 1945, assumem-se como o novo centro artístico e cultural do globo, num
cenário onde uma Europa destroçada conta seus mortos (artistas entre eles) e a América
Latina, até então atrelada culturalmente ao Velho Mundo, inicia um processo de
reconfiguração cultural, num diálogo com os desenvolvimentos da Guerra Fria, onde a
ideologia estadunidense impõe para o restante do continente.2
De uma forma que ressoa parte da poética construtivista soviética, a presença da
abstração no continente americano possui vantagens para além de seu aspecto formal:
está intimamente associada com as qualidades da sociedade industrial: alude à cultura
de massa, às máquinas, o ritmo urbano, a racionalização do trabalho, mas também se
inclina ao gestual, ao lírico e ao ethos primal que serve como um desafogo destas
mesmas características da modernidade. Assim, a experiência da abstração nos EUA
abraça tanto o estruturalismo visual de um Mondrian (que insere um ar festivo e
luminoso a esta poética, como, por exemplo, em Broadway Boogie-Woogie, de 1942)
quanto o dripping de reminiscências navajo de Jackson Pollock. Este último, como
sabemos, tornou-se um dos nomes de destaque no chamado Expressionismo Abstrato,
movimento respaldado por instituições como o MoMa, e por colecionadores como
Peggy Guggenheim.
No caso específico da América do Sul, desde a década de 40 já existem
propostas voltadas a uma arte de valores abstratos, notadamente a abstração geométrica.
Em muitos países, com destaque para o Uruguai, a Argentina, o Brasil e, em um
momento posterior, a Venezuela, a arte construtiva, com propostas que privilegiavam o
racional, foi a primeira tendência abstrata a se fazer dominante3. Sua difusão, contudo,
2
Não sem alguma resistência, claro. Em alguns casos, nota-se um conflito em alguns locais, onde uma
arte de cunho social divide espaço com e a abstração, como o México.
3
Como exemplo podemos citar Joaquín Torres García (1874-1949) que, após 20 anos na Europa, volta
ao Uruguai e através de cursos, aulas e palestras, defende a abstração geométrica, fundando a Asociacíon
de Arte Constructivo e a edição da revista Quadrado y Círculo. A poética construtiva também é
identificada na Argentina, com o trabalho de Tomás Maldonado e Carmelo Aden Madí, às voltas com a
criação de associações, grupos e revistas teóricas. As obras criadas no final da década de 1940 pelas
pessoas do grupo Madí (que vai durar até o final de 1950), bem como as criações de Lucio Fontana
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
333
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
deve ser estudada com cautela, considerando os percursos sociais, históricos e culturais
de cada local. Os sistemas de artes locais devem ser considerados, uma vez que eles
podem se relacionar com as novas tendências de forma amistosa ou não.
Nos países da América Latina a abstração alarga-se e torna-se conhecida pelos
artistas também pelo fato de esta corrente ganhar força e ser promovida pelos EUA. Se
não se trata de uma única explicação, certamente trata-se de um aspecto relevante. A
nação da América de Norte, com o objetivo de expandir e consolidar suas zonas de
influência no continente, irá realizar grandes investimentos dirigidos à modernização da
produção, em território nacional e fora deste. Seja em empresas particulares ou com
empréstimos estatais, a América Latina participou de um momento de modernização
onde a arte abstrata insere-se como um importante componente de inserção social e
valorização de mercado.
Sem dúvida, a linguagem da abstração geométrica atende aos anseios de uma
modernidade voltada para o campo gráfico, o design, a arquitetura, a exploração do
potencial plástico das formas, mas sobretudo o desejo por uma arte de valor universal,
democrática, descolada de quaisquer regionalismos. Trata-se de uma poética que, como
observa Couto (2012), busca estabelecer uma modernidade para depois superá-la, de um
modo original. Acrescenta-se, aqui, a observação feita por Jimènez (2011) acerca das
transformações plásticas e seu diálogo íntimo com as modificações sociais que ocorriam
no período:
qual ao seu modo, para a constituição de uma poética visual nacional. A primeira dessas
correntes, influente desde o início do século, era representada pela pintura de paisagem,
de tendência impressionista, onde a figura de Armando Reveron merece destaque, tanto
pela sua pesquisa formal do uso da luz, quanto pela sua personalidade solitária. A
segunda corrente era marcada por uma estética nativista, com ênfase na exploração da
história nacional. Uma terceira corrente defendia uma arte de caráter político, engajada,
tendo como influência o muralismo mexicano. Por fim, a quarta corrente, com impacto
menor, explorava a temática indigenista. Todas elas, em suma, orientadas pela figuração
e pelo viés nacionalista.
É neste cenário cultural que alguns artistas, estudantes da Escola de Belas Artes
de Caracas, manifestaram interesse pelas ideias de modernidade e progresso, no desejo
de realizar uma arte nova, desatrelada dos valores reforçados pela ditadura militar
imposta por Juan Vicente Gomez entre 1908 e 1936. Muitos destes artistas irão
encaminhar-se para uma poética de tendências cubistas, construtivas e marcadas pelas
experimentações formais de Cézanne, na tentativa de superar a tendência da pintura de
paisagem e de valores agrários que era constante no país.
A ascensão do cinetismo na Venezuela estava diretamente ligada ao surgimento
de uma classe média poderosa que cresceu vertiginosamente rica com a economia do
petróleo. A demanda explícita desta classe emergente apontou para dar, por meio da
arte, a imagem de desenvolvimento, alta tecnologia e expectativas do futuro. O
cinetismo foi duplamente apoiado por essa classe e pelo Estado, que estava de acordo
com aquela imagem de país moderno e permanente. Marta Traba observa que
O caráter ambíguo do manifesto cria uma ponte entre o artista e a sociedade, pois
a arte, uma vez autônoma das várias funções sociais, distancia-se da experiência vivida.
Já que o conteúdo da arte está cada vez mais próximo da individualidade e das
preferências particulares do seu criador, fica cada vez mais difícil encontrar uma poética
que una o seu tema ao mundo da experiência vivenciada. O artista moderno encontra-se
diante de um dilema: ao mesmo tempo em que conquista um discurso estético
autônomo, livre para rejeitar todas as formas de convenções tradicionais de código e
conteúdo, sente a necessidade de fazer circular sua produção num ambiente social
dominado pelas regras da troca capitalista.
Isso posto, uma análise do manifesto moderno implica na discussão acerca dos
elementos que caracterizam a sua comunicação, que se faz de forma específica. Sua
textualidade procura ir além dos limites do próprio texto, que gera outros discursos, que
possui a urgência de ser colocado em prática. Trata-se da necessidade premente de
inserir-se no presente, seu locus por excelência. Porém, Puchner observa que a
modernidade possui uma temporalidade específica que plasma-se de forma especial no
manifesto. Esta temporalidade é caracterizada por
explícita, desde que sua função de ruptura se torne evidente como uma
consequência dos efeitos que ele tem sobre o espaço (...). Se o
manifesto situa-se num espaço entre arte e vida, talvez seja possível
considerá-lo como um gênero que questiona os contornos destes
limites, e chama a atenção para um entendimento mais complexo do
texto como evento e da textualidade do evento (SOMIGLI, 2003, p.
27).
O MANIFESTO OS DISSIDENTES
pela criação do grupo Os Dissidentes e pela fundação de uma revista com o mesmo
nome.
Isolamento, distanciamento, dissidência: ao distanciarem-se de sua terra natal,
tomam consciência deste caráter duplo de distância, geográfica e cultural. Paris é uma
tomada de consciência, uma percepção aguda dos problemas estéticos da Venezuela.
Para estes artistas, a arte venezuelana apoia-se em uma estagnação profunda: a crítica
local, por um lado, defende uma arte desatrelada das tradições artísticas europeias, ao
mesmo tempo em que exalta a constituição de uma estética nacional calcada no
academicismo de fundo histórico. Conforme observa Silva (2012), em consequência
deste cenário, a postura do grupo, particularmente a de Otero, será a de adotar a
abstração geométrica, “assumindo abertamente a natureza da arte latino americana em
sua relação antropofágica com as grandes correntes do pensamento e estética europeus”
(SILVA, 2012, p.62). A abstração apresenta-se como uma escolha adequada, porque se
mostra como a mais radical e contundente estética diante de um cenário artístico
marcado por orientações acadêmicas. Além disso, a poética abstração é de teor
internacional, contrapondo-se às tendências historicistas.
De 1945 a 1951, o grupo permaneceu em Paris, retornando a Venezuela no ano
seguinte. As criações artísticas a partir deste ponto não se limitarão aos espaços restritos
dos museus, imprimindo-se nas arquiteturas e em outros espaços do cotidiano. Merece
destaque o projeto do arquiteto Carlos Raúl Villanueva, que em 1951 convocou vários
artistas para trabalhar na decoração da Cidade Universitária de Caracas, o primeiro
grande conjunto arquitetônico e artístico que se ergue na América Latina. Villanueva
reuniu artistas de outros países, como Alexander Calder, que trabalhou no teto de
auditório, Arp, Laurens, Pevsner, Léger e Vasarely; a estas contribuições juntaram-se as
atividades de artistas locais como Manaure, Vigas, Barrios, Gramas, Lobo, González
Bogen, Narváez, Otero, Valera, Soto, Poleo, Arroyo, Carreño e Salazar.
O Manifesto dos Dissidentes, escrito durante o tempo de estadia em Paris, alinha-
se a tendência, presente desde o século XIX na Europa, de divulgação e circulação de
periódicos específicos sobre arte, bem como a produção de manifestos4. É nas revistas
4
Também merece ser destacada a importância das publicações e periódicos na difusão da arte abstrata a
nível internacional. Segundo Couto (2012) um dos primeiros e mais importantes materiais de divulgação
internacional da poética da abstração foi o catálogo inaugural da Galerie Art of this Century de Peggy
Guggenheim, publicado em 1942, com textos como “arte abstrata” de Mondrian, “Notas sobre a arte
abstrata” de Bem Nicholson e “Arte Abstrata e Arte Concreta” de Jean Arp. Posteriormente, na França,
em 1949, Michel Seuphor editou o livro L´art abstrat, ses origines, ses premiers maitres, sobre a
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343
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
que as propostas artísticas, conforme Schwarz (1995), podem ser percebidas com maior
clareza, uma vez que estas estão de certa fora desatreladas os status quo literário:
Devido ao seu caráter contestatório, seja nas artes, seja nas questões
sociais, elas mantém uma relação pragmática com o público leitor, e,
pregando uma linguagem mais direta que o discursos estritamente
literário, e possuindo um status menos “aurático” Há nelas um forte
sentido de oposição que não passa pela censura ou pelo crivo da
grande imprensa. Devido ao seu caráter efêmero, as revistas de
vanguarda apresentam linhas ideológicas mais nítidas, tanto pelas
definições explicitamente avançadas nos editoriais, quanto pelo
escasso tempo que dispunham para assimilar uma nova tendência ou
inclusive mudar a trajetória ideológica inicial (SCHWARZ, 1995, p.
54).
exposição realizada na Galeria Maeght. Ainda neste ano, também em Paris, André Bloc lançou a revista
Art d´Aujord´hui, totalmente dedicada à arte abstrata. O mesmo Michel Seuphor publicou, em 1957, o
Dictionnaire de la peinture abstraite, em Paris.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
344
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
5
consummatum est (locução latina que significa "tudo está consumado"). Últimas palavras de Jesus
Cristo ao expirar na cruz; citam-se a propósito de uma grande catástrofe, ou de uma vida que acaba de
extinguir-se. Fonte: Vulgata, S. João, XIX, 30."consummatum est", in Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/consummatum%20est Acesso em 04-
03-2021.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
345
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nós não viemos a Paris para fazer cursos de diplomacia ou para adquirir uma
“cultura” para desfrute pessoal. Viemos enfrentar problemas, lutar com eles, aprender a
chamar as coisas pelo seu nome e, portanto, não podemos ser indiferentes ao clima de
mentira que é a realidade cultural da Venezuela. Acreditamos contribuir para sua
melhoria, analisando suas deficiências com maior rigor, colocando a culpa nos
verdadeiros culpados e naqueles que os apoiam.
Parte razoável da tarefa que realizamos não nos caberia, mas frente a indiferença
de seus responsáveis não hesitamos em torná-la nossa, especificando também tudo o
que pudermos.
Somos venezuelanos (e o continuaremos a ser) e somos as primeiras vítimas
desse lamentável estado de coisas. Hoje nos rebelamos contra elas e clamamos porque é
necessário.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
347
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
REFERÊNCIAS
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abril de 1984. Disponível em <http://newleftreview.org/I/144/perry-anderson-modernity-and-
revolution> Acesso em 01/03/2021.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. “A cor como evento: a série Fisicromia de Carlos Cruz-
Diez. Campinas. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 20, p. 183-202, 2014.
Disponível em
COUTO, Maria de Fátima Morethy. Abstrações na América Latina: arte e crítica nos anos
50. Anais do XXXII Colóquio CBHA, 2012. Disponível em
http://www.cbha.art.br/coloquios/2012/anais/pdfs/artigo_s7_mariafatimamorethy.pdf Acesso
em 3 de março de 2021.
MAITA, Esther Morales. “La disidencia en Venezuela. Uma perspectiva histórica”. Presente
y Pasado. Revista de Historia. Mérida, Venezuela. Ano 14, nº28. Julho-Dezembro de 2009.
MORALES MAITA, Esther. El arte venezolano del siglo xx. Entre el exilio y la disidencia.
Anuario GRHIAL. Universidad de Los Andes. Mérida. Enero-Diciembre, Nº 1, 2007.
SOMIGLI, Luca. Legitimizing the artist: Manifesto Writing and European Modernism, 1885-
1915. Toronto: University of Toronto Press, 2003.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
1
Doutor em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo – FFLCH-USP. Membro do Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerância e
Conflitos da FFLCH-USP. Contato: [email protected] .
2
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão autor de obras como Assim Falava
Zaratustra (1885), Genealogia da Moral (1887), O Anticristo (1888) entre várias outras. Seu pensamento
funda-se principalmente na crítica à cultura ocidental, centrada na moralidade cristã, a qual considerava
inibidora do espírito livre e da vontade, gerando uma civilização de homens submissos que negam seus
mais valorosos talentos e atributos, criticando também a modernidade, fundada no primado da razão
como fonte de verdade. Trata-se de um dos mais influentes pensadores da contemporaneidade.
3
René Descartes (1596-1650), filósofo francês autor de obras como Discurso do Método (1637) e
Meditações (1641), entre outras. Inaugurou o pensamento moderno ao desenvolver uma epistemologia
fundada no primado da razão e no procedimento metódico, o que provocou a fragmentação do
conhecimento segundo sua especificidade e a distinção entre o sujeito cognoscente e o objeto
cognoscível, revolucionando a ciência que a partir de então apresentou um desenvolvimento tão acelerado
quanto diversificado, produzindo nos séculos seguintes um avanço sem precedentes.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
351
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
O que fica, portanto, pairando neste liame inexorável entre sujeito e objeto?
O telos do procedimento moderno de construção de conhecimento a partir de
suas rígidas regras metodológicas é o de buscar a verdade naquilo o que o platonismo
construiu há séculos, que é a permanência ideal numa unidade perene da unidade e da
universalidade. Um pensamento que se tornou hegemônico na civilização ocidental.
Tal hegemonia levou ao esquecimento de expressões do saber que compreendem
construções cosmológicas e representações do real a partir de estatutos epistemológicos
diversos que compreendem concepções hermenêuticas próprias na leitura dos
fenômenos e de processos interativos onde a separação entre sujeito e objeto não ocorre.
Assim, o liame que na concepção racional moderna de produção de conhecimento
separa de modo radical sujeito e objeto passa a compreender sujeitos somente, o que
equivale a dizer que não um sujeito, mas sujeitos múltiplos interagem incorporando em
seu ser a situação de objeto, agora não mais como algo a ser apropriado pela razão;
sujeitos e sujeitos agindo de modo interativo, e então surge a produção partilhada do
conhecimento.
O conjunto de representações do real, a visão do cosmos é aquilo o que constitui
o imaginário e assim pode ser entendido. Na relação do indivíduo com sua comunidade,
surgem inúmeras possibilidades de representações vindas do senso comum. Assim, se
há uma origem em comum nas representações, por que diferentes perspectivas
epistemológicas não podem interagir?
Tratando-se de perspectivas epistemológicas distintas e diversificadas, o campo
de operação daquele saber racional e metódico, que são as categorias de tempo e espaço
entram em suspensão; a partir disso, aquele telos moderno, racional e idealista, também
acompanhará tal suspensão, ou seja, abandona-se a partir daqui a ambição de verdades
únicas, universais e imutáveis; a busca de um caminho metódico calcado na lógica
matemática deixa de ser essencialmente significante, já que encontra-se num patamar
transcendente daquela relação entre o eu e o outro dentro de perspectivas de que, ao
mesmo tempo, sejam sujeito e objeto.
O encontro deste eu e o outro ocorre num determinado momento: cada “eu” é
situado dentro de uma determinada cultura, e cada cultura apresenta diferentes estatutos
e perspectivas epistemológicas; ferramentas como a escrita, tão fundamental ao
conhecimento racional metódico, torna-se incapaz de expressar o conhecimento que
emerge desses encontros, já que a escrita consiste num registro que transcende o
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352
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
4
Dersu Uzala (1975), direção de Akira Kurosawa, co-produção nipo-soviética ganhadora do Oscar de
melhor filme estrangeiro em 1976.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
das convenções. Ela ocorre através da experiência estética e moral, a qual ocorre no
interior da relação propriamente dita dos elementos envolvidos dentro de uma mesma
esfera.
Peter Sloterdijk (2016) fala de uma conditio humana impregnada da evidência
que, quer seja no círculo familiar, quer seja na esfera pública, ocorre um jogo incessante
de contaminações afetivas entre os homens. A abstração individualista, característica da
modernidade é posterior a tal fenômeno em que o espaço interpessoal está abarrotado de
energias simbióticas, eróticas e miméticas concomitantes; isso estabelece uma
constatação em que o axioma da ação de um sujeito racional alheio, que de forma
autônoma aborda o objeto de estudo, é desmentido pelo encantamento recíproco que
ocorre entre seres humanos. E talvez poderíamos ir além de Sloterdijk ao situar tal
relação numa esfera que ultrapassa a intersubjetividade humana para uma esfera
holística propriamente dita.
Outro filósofo que fala da questão da interatividade entre o eu e o outro em
processos de produção de conhecimento é Hans-Georg Gadamer (2005), quando afirma
que é na linguagem que se realiza o acordo entre os interlocutores. Ao abordar uma
mesma realidade, é na linguagem que o entendimento acontece. Dessa interatividade
surge uma hermenêutica que garante um acordo através do qual o entendimento sobre a
realidade e seus fenômenos vai acontecer. Cada conversação apresenta seu próprio
espírito, e a linguagem empregada carrega consigo sua própria verdade desvelada. As
verdades não se legitimam por métodos, mas pela própria experiência da verdade em si.
Tais postulados permitem com que se compreenda a importância da integração
cultural na perspectiva das redes colaborativas. Uma rede colaborativa constitui a base
propriamente dita da vida em coletividade, constituinte da sociedade. A partir das redes
ocorre a dinamização de ações entre indivíduos, grupos, instituições, organizações, e
mesmo entre entidades coletivas políticas, como uma cidade, uma província ou um país.
É em seu interior que ocorre o desenvolvimento de potencialidades que promovem a
organização e a dialética de processos de abordagem dos interesses coletivos, e neste
ponto é que pode surgir o resultado da produção partilhada do conhecimento.
Segundo Lílian Pacheco (2015), não é a partir de autores acadêmicos isolados,
mas na espontaneidade criativa e vivencial de autores, grupos de pesquisa e ação
comunitária, movimentos sociais que se reencantam, que ocorre a produção cultural
diversificada em manifestações cotidianas, onde se dá a transversalidade de saberes, na
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
5
A Congada rememora a coroação do rei do Congo, seguida de um cortejo teatralizado onde se simulam
lutas de espada, rememorando as guerras entre o Congo e Angola.
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
mescla arte marcial, música, poesia, dança, e outros elementos culturais que
representaram, na origem do movimento, atitude de resistência à escravidão,
integrando-se de tal modo a esta tradição que hoje é considerado uma das mais
eminentes autoridades da Capoeira. Graduado em Educação Física e em Pedagogia, o
Mestre Alcides tem destacado papel como educador e ativista cultural que, em rede
colaborativa, integra-se a diversos grupos de diversas tradições ancestrais, atuando em
comunidades, instituições universitárias e em educação de base, firmando a posição de
que a formação oferecida aos professores regulares de tais instituições é insuficiente
para que eles se tornem agentes transmissores do rico patrimônio imaterial das mais
variadas expressões presentes no conjunto da cultura popular brasileira, havendo nisso
um prejuízo enorme na educação das novas gerações, que deixam de vivenciar
processos de aquisição de ensinamentos sumamente necessários para a apropriação da
identidade e da prática da cidadania plena, lembrando do papel que as Congadas tiveram
em sua formação.
6
Quando o índio filma a sua cultura, o vídeo é um espelho – disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=rpCUsH8th0g&t=17s Acesso em abr 2021.
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360
LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
modo ritual, ele verifica que a introdução da hipermídia neste processo pode
potencializar e difundir a compreensão desses elementos a culturas alheias, e justifica
isso comentando sobre a sua redescoberta desses mesmos elementos na medida em que
retoma a experiência vivencial a cada vez que se observa participante desse processo,
como num espelho, redescobrindo e percebendo novos elementos que ali já estavam e
lhe escaparam da percepção em momentos anteriores, sob outros ângulos diversos dos
quais esteve envolvido nas vezes anteriores. Verifica também que a introdução da
hipermídia como ferramenta de registro comandada por alguém de dentro protege tais
elementos da especulação que decorre da postura racionalista, quando eles se tornam
objeto da observação que ocorre a partir, por exemplo, do jornalismo convencional. Em
seu trabalho Kadojeba percebe o reforço das identidades e valores de sua cultura,
enriquecendo sua própria compreensão dos mesmos. Percebe Kadojeba que tal efeito
transcende sua aplicabilidade na cultura Bororo, e desde então vem estendendo este
trabalho para outras culturas indígenas, como os Kalapalo e Kuikuro.
Em dezembro de 2012 na Universidade de São Paulo, reuniram-se professores
junto com diversas entidades e organizações que percebem na tradição oral um caminho
para a pesquisa e difusão no patrimônio imaterial da cultura brasileira, ocorreu um
grande evento7, o Curso de Pedagogia Griô e Produção Partilhada do Conhecimento
onde, entre os vários grupos da tradição oral presentes, estiveram representados os
Karajás, Xavantes e Bororos. Na ocasião, entre diversas trocas e informações, um fato
chamou a atenção: Xavantes e Karajás tradicionalmente eram etnias inimigas, em
constante estado de guerra; no entanto, a interação promovida pela rede ali estabelecida,
em colaboração com os recursos apropriados pela diversidade imensa ali presente,
imediatamente anulou tal disposição e o processo que começou a partir de então
desencadeou uma reconstrução cultural ressalvando a importância da união dos povos
indígenas pela sua própria sobrevivência e a troca mútua da riqueza cultural e
emocional que surgiu daquela nova perspectiva relacional que superou a disposição
hostil.
Entre os anos de 2010 e 2012 o prof. Dr. Caio Lazaneo, com a contribuição de
Paulo Kadojeba, desenvolveu uma pesquisa sobre o uso da hipermídia na construção
partilhada do conhecimento em duas aldeias indígenas, a Sangradouro, Xavante, e a
Fontoura, Karajá, localizadas no Estado do Mato Grosso. Além da presença in loco do
7
Vídeo descritivo do evento, com depoimentos e descrições está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=_Z7hN4dGWGo Acesso em abr 2021.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
8
O filme está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iDGEjvx9YkM Acesso em: abr 2021.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA
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LATINA. ARTE E CULTURA DE RESISTÊNCIA ÀS HEGEMONIAS
9
Expressão cultural de origem bantu, o jongo, também chamado de caxambu, consiste em rodas de
dança acompanhadas de batuque que ocorrem de forma concomitante a festejos católicos.
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Dança que expressa o sincretismo religioso afrocatólico, que ocorre concomitante a festejos católicos
como a Festa do Divino, onde os participantes, vestidos de branco, praticam um cortejo em louvor a São
Benedito.
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O trabalho no campo encerra por volta das dezessete horas, quando então as
pessoas retornam a seus lares para banhar-se e vestir-se para o festejo, que tem início ao
anoitecer, e só acaba com o almoço no dia seguinte. Os músicos da comunidade tem
participação optativa nos trabalhos na terra, já que sua função é a de animadores do
festejo.
Em verdade, a prática do mutirão, que reunia entre 25 e 100 pessoas, encontra-se
em decadência e ocorre esporadicamente, havendo hoje algumas versões mais sumárias,
como a reunida, a pojuva ou poiuva, a troca de dia e o compadrio, as quais diferem
basicamente apenas no contingente de pessoas envolvidas, salvo a troca de dia que
trabalha com pagamento por empreitada aos envolvidos.
Nestes eventos, a troca e transmissão oral e prática de conhecimentos e técnicas
agrícolas é intensa, partindo obviamente dos mais velhos aos mais jovens; de igual
forma, as mulheres que trabalham na alimentação praticam a mesma interação no
tocante às práticas culinárias. A confecção de instrumentos agrícolas, cestos, utensílios
artesanais, peneiras, artefatos de madeira e palha, beneficiamento de produtos como
arroz, cana-de-açúcar, milho, mandioca entre outros, bem como os pratos típicos
cercados de explicações mitológicas ocorre de forma intensa durante o processo,
altamente dialogado, onde a ancestralidade, valores, crenças, práticas religiosas (uma
das principais motivações dos festejos) e outros elementos identitários e culturais é
transmitido. É neste momento em que a simbologia, as lendas, os episódios históricos,
as cantigas e poesia, rituais religiosos são transmitidos, havendo especial trato para com
as crianças, atendidas à parte.
A introdução pelo ISA do recurso das rodas de conversa representou o
estabelecimento de uma prática comunitária colaborativa que aproximou os
pesquisadores da comunidade. Dessa aproximação ocorreu a produção documental que
se deu principalmente a partir da hipermídia, com a produção de uma série de três
vídeos11 que proporcionassem ao interlocutor a perspectiva interativa entre sensações,
sentimentos e compreensão de sentido dos processos culturais, valores e significados
que tinham como eixo o sistema agrícola tradicional do Vale do Ribeira, que não
ocorria num lugar qualquer, mas na realidade de um quilombo, a qual não tinha uma
proposta simples de preservação saudosista de tempos áureos, mas a proposta de uma
11
Vídeos disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=0B0ydEoqJ8E ;
https://www.youtube.com/watch?v=sQhGq1ZkXiQ ; https://www.youtube.com/watch?v=J6nMulSoBvw
Acesso em abr 2021.
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CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
SLOTERDIJK, Peter. .Regras para o Parque Humano. São Paulo: Estação Liberdade,
1999.
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INTRODUÇÃO
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REPRESSÕES E CERCEAMENTOS
Durante os anos de 1960, o Brasil sofreu com forte polarização dos setores de
articulação política e uma discussão ideológica precária.
Com a queda do presidente João Goulart, os militares tomaram o poder.
Uma teoria, já bastante disseminada, com interpretações de historiadores como Angela
de Castro Gomes e Jorge Luis Ferreira, sugere que o golpe já se articulava há 10 anos,
ainda no Governo Vargas, e o seu suicídio teria sido, dentre outros fatores, um grande
elemento de atraso para o golpe imediato. Goulart e Leonel Brizola, à época
Governador do Rio Grande do Sul, eram bastiões dos direitos sociais na década de
1960, e a ideia de realizar uma reforma agrária era suficiente para convencer parte da
população de que um golpe comunista estava sendo arquitetado.
Instaurado o Governo Militar dito provisório, algumas manifestações
aconteciam contra a tendência antidemocrática. Uma dessas manifestações eram os
CPC, Centros Populares de Cultura, onde universitários criaram conteúdo artístico
politizado para a juventude dos grandes centros urbanos. No CPC da Bahia, por
exemplo, trabalharam juntos Tom Zé e Capinam, que mais tarde trabalhariam juntos no
disco Tropicalia ou Panis Et Circencis. Assim como eles, diversos outros artistas
importantes emergiram nesse momento. No mesmo período surgiram os grandes
festivais de música popular brasileira nas emissoras de TV Excelsior, Record e Globo,
onde se reuniram grandes nomes da música brasileira como Vinicius de Moraes, Elis
Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Roberto Carlos e os fundadores do
tropicalismo, Caetano Veloso e Gilberto Gil. O Festival de Música Popular Brasileira de
1967 da TV Record é o momento em que o movimento musical é apresentado ao
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Caetano Veloso
Tropicália
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Caetano parte de uma cantiga de roda – “na mão direita tem uma
roseira/ na mão direita tem uma roseira/ que dá flor na primavera” por
“autenticando a eterna primavera”. Desmonta-se aqui o caráter mítico
da direita, que manipula signos da natureza para validar a sua pretensa
universalidade. No deslizamento do significante “direita” para “eterna”,
indicia-se a ideologia que funciona como mito primaveril e brincadeira
inocente. Mas o violento contraponto crítico, longo e nordestino, do
verso seguinte, recoloca o sinistro: o urubu surrealista passeia nos
jardins sempre à espera do que sobra; o mau agouro paira sobre a
aparência de naturalidade, num movimento de carnavalização [...]
(FAVARETTO, 2000, pp. 75-76).
É Proibido Proibir
Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês
têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que
vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma
juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que
morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada,
absolutamente nada (VELOSO, 1968).
Ainda é apontado por Veloso que a reação daqueles que se dizem a juventude
“que quer tomar o poder” se assemelha, e muito, com a daqueles que eles querem
combater, aqueles que reprimem a liberdade de expressão artística de resistência:
não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser americana.
Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim
aqui para acabar com isso! (VELOSO, 1968)
Gilberto Gil
Procissão
A composição foi feita para o espetáculo Arena Canta Zumbi, no grupo baiano
que deu origem ao grupo tropicalista, com Caetano Veloso, Tom Zé, Gal Costa e Maria
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Bethânia em 1965, como lembra Ramon Casas Vilarino em seu livro A MPB em
Movimento – música, festivais e censura. Segundo Vilarino, em Procissão
Gil, no mesmo show da POLI USP, em 1973, negou alguns pedidos de músicas,
caso de Ensaio Geral e, por pouco, não foi o caso de Procissão por já não acreditar nas
questões abordadas pelas músicas, como a esperança na vitória das manifestações
populares.
Outra especificidade desse show foi o fato de Gilberto Gil não ter cantado
nenhuma de suas composições em inglês, compostas em Londres. Isso pode ser uma
questão relacionada ao uso exclusivo de violão no show, mas também pode indicar que
Gilberto Gil não gostaria imprimir, nesse momento delicado, uma postura que pudesse
ser considerada subversiva ao mencionar o exílio.
Daniel Viglietti
A Desalambrar
A música é a seguinte:
A luta armada é um tema abordado com certa frequência por Viglietti em sua
discografia. Não é segredo a simpatia de muitos músicos da época pelos movimentos de
guerrilha armada. O próprio Aníbal Sampayo, músico importante do período, era
militante do MLN-Tupamaros. Viglietti, embora não fosse militante, fazia apologia à
insurreição pela luta armada em algumas de suas canções, como é o caso de Cruz de Luz
(Camilo Torres), que também foi interpretada por Victor Jara, sendo esta a versão mais
famosa. Segue o trecho inicial:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o AI-5, em dezembro de 1968, muitos dos que ainda mantinham alguma
liberdade de expressão passaram a também ser perseguidos pelo regime no Brasil.
Caetano e Gil, foram mantidos presos durante 4 meses em prisões no Rio de
Janeiro e mais tarde em prisão domiciliar, em Salvador. Quando foram mandados para
Salvador, foram proibidos de dar qualquer entrevista, se apresentar publicamente ou
serem fotografados, para que a imagem dos dois, sem suas características cabeleiras,
não se espalhasse (TINHORÃO, 1998).
Solicitaram saída do país no ano seguinte. Antes de ir para Londres, eles
estiveram em Portugal, onde em uma emissora de televisão portuguesa no dia 04 de
agosto de 1969, Caetano alega ter chegado ao fim o movimento tropicalista.
No Uruguai, em 1972, Daniel Viglietti é preso e há uma grande campanha por
sua liberdade, com participação de intelectuais como Jean Paul Sartre e Júlio Cortázar.
Depois de liberto, se exila na Argentina.
Em 1973, Viglietti é convidado para participar do festival Fête de L ́Humanité e
viaja da Argentina para a França. Durante sua estadia na Europa, o governo uruguaio
cancela seu passaporte e o proíbe de voltar para o Uruguai. Viglietti transforma sua
estada na França em exílio e só lhe é permitido voltar para o seu país de origem 11 anos
depois.
Através da discussão levantada com as músicas dos dois movimentos, – aqui
analisadas de forma mais específica, sem levar em conta a ampla discografia da época –,
e analisando os processos de repressão aos direitos civis no Brasil e no Uruguai na
época, podemos apontar uma tendência a um retorno das raízes conservadoras sul-
americanas, no que, em um primeiro momento, parece acusar uma espécie de tendência
cíclica na política sul-americana, mas, mais alarmante do que isso, pode acusar um
eterno controle das alas mais conservadoras e reacionárias desses países, cuja ação é
discreta até que o caminho tomado por determinado partido ou determinada
administração saia de seus planos.
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Daniel Viglietti, Aníbal Sampayo e outros
músicos do Brasil e do Uruguai foram presos e exilados em nome desses governos
autoritários por discordâncias de diferentes graus. Podemos dizer que nem Gil nem
Caetano fazem resistência firme ao Governo Militar, tendo em vista que sua
preocupação não era derrubar a ditadura, mas oferecer uma visão menos presa a
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aspectos tradicionais para a Música Popular Brasileira, que sempre apela ao estilo mais
rural e tradicional da música (TINHORÃO, 2013). José Ramos Tinhorão ainda diz que
o pensamento de Caetano Veloso e Gilberto Gil era muito mais à direita do que os
militares pensavam:
REFERÊNCIAS
AGUIAR, José Fabiano Gregory Cardozo. "Yo vengo a cantar por aquellos que
cayeron". Poesia política, engajamento e resistência na música uruguaia – o cancioneiro
de Daniel Viglietti. Me. 2010. UFRGS.
CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. 2ª ed. São Paulo:
34, 2010.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e Outras Bossas. 5ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegoria Alegria. 4ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2007.
MELLO, Zuza Homem de; Severiano, Jairo. A Canção no Tempo: 85 Anos de Músicas
Brasileiras Vol. 2: 1958 – 1985. 6ª ed. São Paulo: 34, 2015.
RENNÓ, Carlos. (org.) Todas as Letras. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1996.
SCHAEFER, Sérgio.; SILVEIRA, Ronie. Alexsandro. Teles. da. Caetano e a Filosofia.
1ª ed. Salvador: EDUNISC/EDUFBA, 2010.
VAZ, Toninho. A explosão tropical (uma narrativa dos tempos fabulosos e heroicos).
In: VAZ, Toninho. Pra mim chega: A biografia de Torquato Neto. 1ª ed. São Paulo:
Casa Amarela, 2005.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
VELOSO, Caetano.; FERRAZ, Eucanaã. Letra só. 1ª ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
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SOBRE OS AUTORES
Alexandre Barbalho
Edson Capoano
Gustavo Scudeller
SOBRE OS ORGANIZADORES