Axalote
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INTRODUÇÃO
O reparo de tecidos que sofrem lesão agu- cina regenerativa. Células-tronco são capazes de
da ou crônica é um processo que utiliza duas manter uma população em crescimento e dife-
estratégias gerais: a regeneração e a substitui- renciar-se em tipos celulares diversos. Em ma-
ção. A regeneração ocorre quando a área de le- míferos adultos, essas células podem constituir
são é reposta pela proliferação das células uma “reserva” em tecidos como pele e glându-
parenquimatosas funcionais do tecido original. las intestinais, possibilitando a renovação con-
A substituição ocorre quando as células perdi- tínua e a regeneração após lesão. Em humanos,
das não exibem potencial regenerativo após di- alguns tecidos que não regeneram grandes áre-
ferenciação terminal, ou quando a perda do as de lesão possuem precursores com capacida-
arcabouço estromal impede que toda área de de de formar células funcionais, como recente-
lesão seja reposta por células parenquimatosas. mente foi demonstrado pelo surgimento de
Exemplos de reparo de substituição são os agre- novos neurônios e cardiomiócitos nas bordas de
gados de células gliais (astrócitos) em zonas de áreas de isquemia do tecido cerebral e cardíaco,
morte neuronal e a formação de tecido fibroso respectivamente. 2, 3
(cicatriz fibrosa) como resultado de um amplo A plasticidade de células-tronco embrio-
espectro de doenças agudas e crônicas em di- nárias e hematoipoéticas para diferenciação em
versos tecidos. 1 diversos tipos celulares oferece racional para o
Uma área promissora da pesquisa uso clínico e apresenta resultados promissores.
biomédica é o uso de células-tronco em medi- No entanto, os resultados de curto prazo dessas
1 Acadêmica de Ciências Biológicas. Instituto de Ciências Biológicas. Universidade Católica de Salvador – UCSAL. Salvador - BA
2 Professor Mestre. Departamento de Biointeração – Setor de Patologia Geral. Instituto de Ciências da Saúde. Universidade Federal da Bahia –
UFBA. Salvador - BA
estratégias não devem desestimular outras abor- ção, visto que uma nova planária pode ser gera-
dagens de regeneração dos tecidos. Regenera- da a partir de fragmentos que representam 0,4
ção a partir de células-tronco representa a resti- % de um organismo adulto. 5 Tais observações,
tuição de tecidos a partir de precursores por séculos, despertam questões sobre quais são,
indiferenciados; entretanto, é interessante no- afinal, as bases da identidade individual, um
tar que a natureza resolveu o problema da rege- tema atual da pesquisa em clonagem de células
neração de grandes secções do plano corporal humanas. Em vertebrados, exemplos excepcio-
com outra estratégia: a desdiferenciação e nais de regeneração (do ponto de vista de um
reprogramação de tecidos especializados. Entre humano) são escassos, embora suficientes para
vertebrados, apenas anfíbios urodelos (axolote, estimular a indagação: se eles podem, por que
tritões e salamandras) compartilham a fascinan- não pudemos? 6 O peixe zebra é capaz de rege-
te capacidade de regenerar membros inteiros, nerar pequenas secções do tecido cardíaco e a
córnea, retina, mandíbula e pequenas secções medula espinhal (FIGURA 1A). Entre anfíbi-
do coração. Na presente revisão, apresentare- os, sapos (ordem Anura) como os do gênero
mos conceitos e mecanismos envolvidos no re- Xenopus sp. são capazes de regenerar completa-
paro de anfíbios urodelos, ressaltando potenci- mente amputações de seus membros em de-
ais implicações para a regeneração em mamífe- senvolvimento, enquanto tal habilidade é per-
ros. dida assim que o órgão está completamente for-
mado 7(FIGURA 1B). Apenas os membros da
ordem Urodela ou Caudata (tritões e
REVISÃO DE LITERATURA E DISCUSSÃO salamandras) apresentam, quando adultos, a
capacidade de regenerar completamente olhos,
Anfíbios urodelos e a regeneração na evo- membros e tecido cardíaco.4 No entanto, essa
lução de metazoários habilidade é variável entre diferentes membros:
É interessante observar que a capacidade a axolote (FIGURA 1C) é capaz de regenerar a
de regenerar grandes secções do plano corporal cauda e os membros, mas não compartilha com
não é uma exceção entre metazoários (animais). tritões (FIGURA 1D) a capacidade de regene-
Dentre os cerca de trinta e cinco filos, apenas rar a córnea.8 Fetos mamíferos são capazes de
seis não têm membros com essa habilidade. Em regenerar a falange distal dos dedos durante o
vários grupos de invertebrados, a habilidade desenvolvimento, mas essa capacidade é perdi-
regenerativa está associada à reprodução da ainda dentro da vida intra-uterina. 9, 10
assexuada. Mesmo entre grupos que comparti-
lham grande potencial regenerativo, é impor- As estratégias regenerativas de anfíbios
tante notar que há grande variação nessa capa- urodelos
cidade, mesmo entre espécies filogeneticamente Três modelos experimentais são frequen-
próximas. Isso sugere que a habilidade temente aplicados no estudo da capacidade
regenerativa não é uma aquisição evolutiva que regenerativa de urodelos: a regeneração do teci-
surge em múltiplos momentos da evolução ani- do cardíaco, da córnea e de membros amputa-
mal. A regeneração, portanto, provavelmente é dos.
uma habilidade primordial de metazoários, que Após uma secção apical do ventrículo
foi reprimida em alguns contextos. 4 cardíaco de um tritão, um coágulo é formado, e
A capacidade regenerativa de a contração muscular em torno dele fecha a área
invertebrados pode ser surpreendente. As lesionada. Cardiomiócitos proliferam na borda
planárias, platelmintos de vida livre, com siste- do coágulo, onde até 10% de todas as células
ma nervoso central rudimentar, são capazes de especializadas reentram no ciclo celular.11 Em
gerar dois organismos completos e independen- contraste, a síntese de DNA numa pequena
tes após uma secção transversal que as separa parcela de cardiomiócitos pode ser documenta-
em segmentos cranial e caudal. Nesse caso, a da em modelos experimentais de lesão cardíaca
regeneração é inclusive um modo de reprodu- em mamíferos, mas não está claro se essas célu-
las-tronco (células indiferenciadas) dos tecidos cam domínios protéicos com ação de fatores
e não de células já diferenciadas. transcricionais que interferem na morfogênese
de animais, plantas e fungos. O gene homeobox
Regeneração muscular – algumas etapas Msx-1 é um repressor da diferenciação muscu-
da via de regeneração estão conservadas em ma- lar que aumenta sua expressão durante o pro-
míferos cesso de celularização de miotubos de urodelos
Duas estruturas musculares esqueléticas in vitro. Além disso, estudos em miofibras de
de urodelos são usadas na pesquisa de habilida- larvas de salamandra demonstram o aumento
de regenerativa: miotubos e miofibras. da expressão do gene durante a celularização,
Miotubos são estruturas multinucleadas que enquanto a administração de seqüências inibi-
derivam da fusão de mioblastos e apresentam tórias de RNA antisense mantém a diferencia-
alguns marcadores de diferenciação muscular, ção muscular. 21 Miotubos murinos in vitro, sob
enquanto miofibra (ou fibra muscular especi- expressão induzida do gene Msx-1, sofrem
alizada) representa uma longa fibra muscular celularização, perdem marcadores de diferenci-
com diferenciação terminal. A diferenciação de ação muscular, proliferam e são capazes de dife-
miotubos está relacionada à formação de renciar-se em linhagens miogênica, osteogênica,
sincícios multicelulares e à saída do ciclo celu- condrogênica e adipogênica sob estímulo apro-
lar. A implantação de miotubos marcados no priado.22 Fetos de camundongos são capazes de
blastema regenerativo demonstra que muitos regenerar a falange distal de um dedo amputa-
deles dividem-se em células mononucleares, do, mas essa habilidade é perdida em animais
num processo denominado celularização.18 Além deficientes para o gene Msx-1. Tal defeito foi
disso, núcleos de miotubos entram na fase S creditado à perda da via da proteína
(de duplicação do material genético).19 Dessa morfogenética óssea BMP4 (bone morphogenetic
forma, tanto a multinucleação quando a estabi- protein 4), visto que a administração exógena
lidade da fase G0 (fora do ciclo celular), dois desse fator recupera habilidade regenerativa de
aspectos fundamentais da diferenciação animais sem o gene Msx-1.23
miogênica, são revertidos pelo microambiente Uma interessante observação baseia-se
do blastema regenerativo. nos experimentos com heterocárions, miotubos
Apenas miotubos de urodelos são capa- híbridos que contêm núcleos derivados de
zes de entrar na fase S in vitro após estímulos tritões e camundongos. Estímulos para prolife-
como soro. Entre mamíferos, somente miotubos ração de miotubos de urodelos resultam tam-
de camundongos deficientes para as duas cópi- bém na entrada na fase S dos núcleos murinos.
as do gene do retinoblastoma (Rb) são capazes Uma explicação para o achado é que mamíferos
de migrar da fase G1 para S, após estimulação perderam a capacidade de reconhecer a sinali-
com soro. A proteína Rb tem função crucial zação extracelular envolvida na regeneração
como um regulador negativo do ciclo celular e muscular; entretanto, as vias intracelulares que
promove expressão de genes sob controle do fa- desencadeiam esse processo estão conservadas.
tor de transcrição MEF-2 (myocyte enhancer factor No entanto, a determinação “daquilo que falta”
2), induzindo diferenciação muscular.20 É sa- não é clara, visto que extratos protéicos de
bido que o gene Rb é fundamental no controle blastemas regenerativos de tritão são capazes de
do crescimento e da diferenciação celular de induzir celularização de miotubos murinos em
diversos tecidos de mamíferos, e também cres- cultura, um achado que sugere que alguma si-
ce o interesse de sua via no processo de nalização extracelular está preservada em ma-
reprogramação de células em regeneração de míferos. 24
urodelos (FIGURA 4A). Algumas estratégias farmacológicas para
Outro grupo de genes importantes para desdiferenciação foram aplicadas no modelo de
regeneração de urodelos são os genes homeobox, miotubos murinos. Uma triagem numa biblio-
que compartilham seqüências homeobox de cerca teca química de derivados da purina identifi-
de 180 pares de bases. Essas seqüências codifi- cou a mioseverina como agente capaz de indu-
sugerem que o circuito eletrofisiológico origi- los tróficos de nervos periféricos determinam à
nal não é restaurado, e a contração das novas decisão inicial pela regeneração, enquanto que,
células pode ser independente e não coordena- numa etapa posterior, a epiderme do membro
da com o restante do tecido cardíaco. 35, 36 Ou amputado assume a função de expressar fatores
seja, o mecanismo de regeneração natural de tróficos (FGF-2) e fatores de transcrição (Dlx-
urodelos não promove apenas a diferenciação 3), responsáveis pela autonomia da estrutura
para células originais dos tecidos, mas também em formação.
garante a restauração de relações fundamentais A supressão natural da regeneração axonal
para a preservação funcional. ocorre em mamíferos, e a inibição desse proces-
so potencialmente favorece a recuperação fun-
cional de tecidos agredidos. Por exemplo,
Como perdemos a plasticidade das oligodendrócitos são responsáveis pela forma-
salamandras? ção da bainha de mielina dos axônios no siste-
É difícil determinar que via sinalizadora ma nervoso central e expressam inibidores da
foi perdida durante a evolução dos vertebrados, regeneração axonal associados à mielina, como
o que resultou na incapacidade de regenerar Nogo-A. Anticorpos neutralizantes contra
estruturas complexas, como membros. Uma sé- Nogo-A aumentam a recuperação funcional em
rie de observações clássicas e recentes chama a graus variáveis nos modelos experimentais de
atenção para o papel da regeneração dos nervos lesão da medula espinhal. 38 Em recente relato
periféricos no resultado final do reparo de uma da inibição de Nogo-A em sagüis (Callithix
área perdida. A denervação prévia, ou na fase jacchus), um aumento da regeneração de fibras
inicial da regeneração, após a amputação de um nervosas foi observado após lesão da medula es-
membro da salamandra, impede que um novo pinhal. 39 Ainda não está claro como esses acha-
membro seja restaurado, enquanto a perda da dos podem ser relacionados à capacidade de re-
função nervosa na fase tardia do processo não generar estruturas não axonais. No entanto, eles
tem mais efeito sobre o resultado final.7
demonstram que existem vias inibitórias da re-
Entre os genes homeobox importantes
generação nervosa em mamíferos e que esse po-
para o desenvolvimento dos membros, um de-
deria ser o principal diferencial entre mamífe-
les é o Dll (Drosophila distal-less), que apresenta
ros e urodelos. Além disso, tais vias são aparen-
um gradiente de expressão decrescente da ex-
temente reversíveis clinicamente.
tremidade distal para a proximal na mosca da
Se for possível regenerar completamente
fruta. Uma família de ortólogos do Dll em ver-
órgãos de mamíferos, será que guardamos a
tebrados foi identificada como Dlx. O gene Dlx-
3 é expresso na epiderme do membro em rege- memória de posição para restauração perfeita
neração, e sua expressão é abolida quando a de estruturas perdidas? 6 Embora esteja claro
denervação do membro ocorre no estágio inici- que uma série de mecanismos, durante o de-
al do processo de reparo. Assim, tanto a capaci- senvolvimento e a regeneração, está conservada
dade regenerativa quanto a expressão de Dlx-3 entre todos vertebrados, um aspecto fundamen-
são dependentes de estímulos nervosos. O fator tal da regeneração de urodelos é sua autono-
de crescimento fibroblástico 2 (FGF-2) é outra mia. A regeneração independe de relações espa-
molécula expressa na epiderme dos membros ciais com tecidos vizinhos, que são fundamen-
em regeneração, e a administração de FGF-2 tais durante o desenvolvimento. A avaliação da
exógeno resgata a expressão epidérmica de Dlx- memória de posição em mamíferos é difícil na
3, bem como a habilidade regenerativa de mem- ausência de regeneração nos mesmos contextos
bros denervados. Além disso, recente publica- em que ela é observada em urodelos.
ção demonstrou a expressão de FGF-2 nos CONCLUSÃO
axônios de membros em desenvolvimento. 37
Em conjunto, os achados sugerem que estímu- Um olhar rápido pela capacidade
regenerativa de alguns anfíbios pode parecer já está em curso, embora sua aplicação clínica
uma característica extravagante desses peque- não esteja num horizonte próximo. Por outro
nos vertebrados. No entanto, uma análise mais lado, o estudo dos mecanismos básicos da rege-
cuidadosa permite concluir que a regeneração neração de urodelos fornece um fascinante con-
não é uma exceção entre os animais, e que vári- junto de informações sobre o desenvolvimento
os de seus mecanismos envolvem vias de sinali- e regulação dos tecidos, que podem ser impor-
zação que são conservadas, inclusive em huma- tantes nas abordagens atuais e futuras da medi-
nos. Uma abordagem para a identificação de cina regenerativa.
agentes farmacológicos que tentam reproduzir
a estratégia de desdiferenciação em mamíferos
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