Navegantes Bandeirantes Diploma - Synesio Sampaio Goes Filho

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Ministério das Relações Exteriores

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Secretário-Geral - Embaixador Sérgio França Danese

Fundação Alexandre de Gusmão


Presidente - Embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima

Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais


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A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública


vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à
sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da
pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião
pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política
externa brasileira.

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Paulo Nascimento
Brasil 2015
G598 Goes Filho, Synesio Sampaio.
Navegantes , bandeirantes, diplomatas : um ensaio sobre a formação das
fronteiras do Brasil / Synesio Sampaio Goes Filho. – Ed. rev. e atual. –
Brasília : FUNAG, 2015.
(História diplomática)
ISBN: 978-85-7631-559-9
1. Colombo, Cristovão, 1451?-1506. 2. Tratado de Tordesilhas (1494). 3.
Vespucci, Americo, 1451-1512. 4. Cabral, Pedro Alvares, 1467 - 1520. 5.
Entradas e Bandeiras (1634-1728). 6. História - Brasil - Império (1822-1889).
7. História - Brasil - Primeira República (1889-1930). 8. Descoberta geográfica
- América. 9. Navegação marítima. 10. Fronteira - aspectos históricos - Brasil.
11. História diplomática - Brasil. 12. Expedição exploradora. I. Título. II.
Série.
CDU 94(81).01/07

Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei nº 10.994, de 14/12/2004.


Synesio Sampaio Goes Filho

Navegantes,
bandeirantes, diplomatas
Um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil

Edição revista e atualizada

Brasília – 2015
Apresentação

O livro do Embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, que tenho


o prazer de apresentar, possui uma gênese que se confunde, em
alguma medida, com a própria evolução da disciplina das Relações
Internacionais no Brasil1. A origem remota do trabalho é a tese
Aspectos da Ocupação da Amazônia: de Tordesilhas ao Acordo de Cooperação
Amazônica, aprovada pela Banca Examinadora do Curso de Altos
Estudos (CAE) do Instituto Rio Branco (IRBr), em 1982. Ganhou o
prêmio de sua publicação e foi editada pelo IPRI, em 1991, com o
título de Navegantes, bandeirantes, diplomatas. Logo tornou­-se uma das
obras mais lidas entre as editadas pela Fundação Alexandre de
Gusmão (FUNAG) e referência bibliográ­fica nos cursos de Relações
Internacionais e de História do Brasil em todo o País.

Em 1999, foi a primeira tese do CAE a ser publicada por uma


editora comercial, a Martins Fontes, com o título de Navegantes,
bandeirantes, diplomatas: um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil.
O autor abandonou então os temas de atualidade (o pacto
amazônico) e desenvolveu a parte histórica, para incluir, junto com o
Norte, informações valiosas sobre a formação territorial e a
negociação dos limites do Oeste e do Sul do País. O interesse na
obra levou a Biblioteca do Exército a publicar edição independente,
em 2000. Apesar das reimpressões, todas as tiragens encontram­-se
esgotadas. Em 2013, partes do livro foram reescritas e publicadas
sob o título As fronteiras do Brasil, na coleção “Em poucas palavras”,
da FUNAG.

Há anos Navegantes, bandeirantes, diplomatas tem sido presença


constante nos estudos e pesquisas que tratam da formação
territorial do Brasil e leitura favorita dos candidatos ao IRBr e de
seus alunos. Para estimular a continuidade da tradição de estudos
históricos de um livro já considerado um clássico da nossa História
Diplomática, a FUNAG resolveu fazer nova e cuidadosa edição,
revista pelo autor e um pouco redirecionada para manter o foco nas
questões centrais, e que inclui novos mapas. Conservou­-se o
prefácio original, de 1999, do Professor Arno Wehling, Presidente do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pelo seu valor intrínseco e
para lembrar os fortes laços existentes entre o Itamaraty e o IHGB,
que foi presidido também pelo Barão do Rio Branco.

Creio que todo estudioso da História do Brasil conhece a obra


do Embaixador Sampaio Goes. Talvez seja este o melhor tributo que
se possa conferir a um diplomata e historiador. Sua produção
acadêmica é resultado de pesquisa metódica, bem fundamentada e
instigante sobre a formação do País, a consolidação de suas
fronteiras e o papel da diplomacia nesse extraordinário esforço
coletivo da nacionalidade. Os fundamentos no direito internacional e
nas práticas diplomáticas tornaram a definição da linha de limites
fator de estabilidade e de paz no continente e legado não apenas
nacional, mas contribuição a princípios que acabariam consagrados
na Carta das Nações Unidas. O trabalho de Synesio permite
conhecer melhor essa narrativa e honra as tradições da
historiografia diplomática brasileira e seus maiores, como Delgado
de Carvalho, José Honório Rodrigues e Hélio Vianna.

Sempre admirei em Synesio a cordialidade e a elegância, a


inteligência e a objetividade, atributos que contribuíram para sua
exitosa carreira diplomática. A circunstância da preparação de tese
para o Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco (IRBr)
acrescentou nova dimensão à sua fecunda atividade como
diplomata. Abriu­-lhe perspectiva na exploração de outros caminhos
para promover o conhecimento do Brasil e de sua História e
compartilhá­-lo com seus alunos e leitores.

Apesar da maneira amena e fácil no relacionamento e a


modéstia na consideração do seu trabalho, Synesio se distingue
pelo rigor e a coragem de suas análises, temperadas pela
linguagem direta e sóbria de seus escritos, mas sempre provocativa.
Seu juízo crítico não se impressiona diante de tabus e jamais perde
a objetividade do profissional da diplomacia. Essas características
também transparecem em seu mais recente ensaio Rio Branco,
Inventor da História2, revelador de uma rebeldia intelectual que se
mantém desafiadora dos mitos e das verdades, disposta a renovar,
senão a revolucionar.

Não poderia deixar de referir­-me ainda a outra reveladora


leitura de Synesio, desta feita sobre o patrono da FUNAG, o
diplomata Alexandre de Gusmão, nascido em Santos, no Brasil­-
Colônia, que se notabilizou pelos serviços prestados à Corte de D.
João V, em importantes negociações com a Coroa Espanhola. Foi
Gusmão o responsável por pesquisar no direito privado romano o
princípio do uti possidetis e o transplantar para o direito internacional
público no Tratado de Madri de 1750, que deu ao território brasileiro
expressão mais próxima à que hoje ostenta, em comparação aos
limites fixados no instrumento até então vigente, o Tratado de
Tordesilhas. Alexandre de Gusmão não só desenhou o mapa do Brasil,
na expressão de Synesio3, como também consagrou, num mundo
onde prevalecia a força, os valores da pesquisa, da diplomacia e do
direito, que viriam marcar o início do pensamento diplomático
brasileiro. 

A presente versão de Navegantes, bandeirantes e diplomatas


devolve o clássico às suas origens no Itamaraty e ao acervo
bibliográfico da FUNAG. Estou certo de que continuará não apenas
enriquecendo e inspirando diplomatas, acadêmicos e
pesquisadores, mas, sobretudo, prosseguirá como fator de estímulo
à vocação de novas gerações de jovens interessados na
Diplomacia, nas Relações Internacionais e na História do Brasil.

Embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima


Presidente da Fundação Alexandre de Gusmão
Maio de 2015
Sumário

Lista de mapas
Prefácio
Arno Wehling

Introdução
Uma visão de conjunto
Primeira parte
A DESCOBERTA DO CONTINENTE

Capítulo I
Viagens de Colombo
1.1 Gênova e o Mediterrâneo
1.2 Portugal e o Atlântico
1.3 A empresa das Índias
1.4 A viagem descobridora
1.5 Outras viagens
1.6 O mundo de Colombo

Capítulo II
O Tratado de Tordesilhas
2.1 Rivalidades ibéricas
2.2 Negociações
2.3 A fronteira indemarcável

Capítulo III
Relatos de Vespúcio
3.1 Espanhóis na costa norte
3.2 O enigma das cartas
3.3 Uma decifração
3.4 “América, de Américo...”

Capítulo IV
Cabral e o Brasil
4.1 Navegações portuguesas
4.2 O descobridor e o escrivão
4.3 Prioridade, intencionalidade, descobrimento
Segunda parte
A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

Capítulo V
Bandeirismo: a superação de Tordesilhas
5.1 Entradas ou bandeiras?
5.2 Focalizando o movimento
5.3 Controvérsias
5.4 Histórias
5.5 A visão ortodoxa
5.6 A dimensão política
5.7 Julgamentos

Capítulo VI
Rio da Prata: a fronteira desejada
6.1 Portugueses e espanhóis na boca do Prata
6.2 A colônia da discórdia

Capítulo VII
Rio Amazonas: a fronteira conquistada
7.1 A descida de Francisco de Orellana
7.2 A subida de Pedro Teixeira
7.3 Povoamento

Capítulo VIII
Monções: a ocupação do Oeste
8.1 As monções cuiabanas
8.2 Conflitos de soberania
8.3 As monções do norte
Terceira parte
AS NEGOCIAÇÕES DOS LIMITES TERRESTRES

Capítulo IX
O mapa da Colônia
9.1 Madri: um acordo favorável a Portugal?
9.2 O desconhecido revelado
9.3 Madri: ocupação e transação
9.4 Alexandre de Gusmão
9.5 Ideias criativas
9.6 Madri: negociações
9.7 O Tratado de Santo Ildefonso
9.8 A incorporação dos Sete Povos

Capítulo X
As fronteiras do Império
10.1 Incertezas amazônicas
10.2 O uti possidetis
10.3 Duarte da Ponte Ribeiro
10.4 O tratado de 1851 com o Peru
10.5 O tratado de 1859 com a Venezuela; negociações com a Colômbia
10.6 O tratado de 1867 com a Bolívia
10.7 Buenos Aires: o Vice­-Reinado e as províncias desunidas
10.8 A Banda Oriental; a Cisplatina; o Uruguai e as fronteiras de 1851
10.9 Limites e guerra: Uruguai − 1864
10.10 Guerra e limites: Paraguai − 1864­-1870

Capítulo XI
O Barão da República
11.1 Rio Branco: a obra de uma vida
11.2 A Questão de Palmas (1895)
11.3 A Questão do Amapá (1900)
11.4 A Questão do Pirara (1904)
11.5 O Acre (1903)
11.6 O tratado de 1904 com o Equador e o de 1907com a Colômbia
11.7 O tratado de 1909 com o Peru
11.8 O tratado de 1909 com o Uruguai
Conclusão
Uma história que deu certo
Referências bibliográficas

APÊNDICE
Mapas
Lista de mapas

Mapa 1
Geografia real e imaginária

Mapa 2
Divisões do “mar oceano”

Mapa 3
Viagens de Vespúcio

Mapa 4
Viagens portuguesas

Mapa 5
Algumas bandeiras

Mapa 6
A ilha Brasil na carta de João Teixeira Albernaz (1640)

Mapa 7
A rota das monções cuiabanas

Mapa 8
O Mapa das Cortes

Mapa 9
Variações da fronteira sul

Mapa 10
Limites do Paraguai

Mapa 11
O arbitramento de 1895

Mapa 12
O arbitramento de 1900

Mapa 13
O arbitramento de 1904

Mapa 14
Limites do Acre

Mapa 15
A fronteira noroeste

Mapa 16
A “expansão” do Brasil
Prefácio

Navegantes, bandeirantes e diplomatas constituem elemen­tos


típicos da história brasileira, tanto quanto senhores de engenhos,
escravos, comerciantes, mineradores, funcionários, militares e
outros mais. Sem optar por uma tipologia ideal de sabor weberiano,
o autor sublinha o papel desses três agentes sociais e os encarna
em homens singulares, com nome e currículo: Colombo, Vespúcio,
Cabral, Pedro Teixeira, Raposo Tavares, Alexandre de Gusmão,
Ponte Ribeiro, Rio Branco. Suas ações são consideradas em função
do Leitmotiv da obra: a formação das fronteiras do Brasil.

Navegantes, bandeirantes, diplomatas − um ensaio sobre a formação das


fronteiras do Brasil é livro para ser lido pelo menos duas vezes: uma,
sofregamente, porque o expositor possui, além das ideias claras e
distintas dos cartesianos, imensa facilidade de expressão. Para
quem, na Universidade, acostumou­-se a certos jargões que afetam
o estilo e às vezes comprometem o argumento, o texto flui com
profundidade e elegância. A segunda leitura, mais pausada, permite
refletir sobre nuanças das questões colocadas pelo autor − induz a
associar, comparar, imaginar.

O autor é o diplomata Synesio Sampaio Goes Filho, atual


Embaixador do Brasil em Lisboa. Paulista da cidade de Itu,
graduou­-se em Direito pela Universidade de São Paulo, entrando
em seguida para o Itamaraty. Especialista em comércio interna­cional
e historiador, foi professor de história diplomática no Instituto Rio
Branco. Exerceu funções diplomáticas na França, no Peru e na
Inglaterra, tendo sido também embaixador na Colômbia. Ocupou,
ainda, a chefia de gabinete do Ministério do Exterior, nas gestões
dos Ministros Celso Lafer e Fernando Henrique Cardoso, e do
Ministério da Fazenda, na administração deste último.

O livro foi, originalmente, tese apresentada ao Curso de Altos


Estudos (CAE) do Ministério das Relações Exteriores, tendo sido
indicada pelo Professor Francisco Iglesias e pelo Embaixador J. H.
Pereira de Araújo para publicação. Editado em 1991, o trabalho foi
agora modificado, revisto e ampliado.

Entre as questões que estuda, merecem destaque as


seguintes:

a valorização de aspectos menos conhecidos da ocupação do atual


Sul do Brasil, como os relacionados à província jesuítica do Guairá
e à província de Vera, denominação atribuída por Cabeza de Vaca
à Região Sul do Brasil, que penetrou, desde o litoral, em demanda
a Assunção;
o uso político­-ideológico da cartografia, com a oscilação da linha
de Tordesilhas ao sabor da nacionalidade ou interesse do autor;
o significado do rio Madeira para ligar duas grandes frentes de
colonização, a do Norte, localizada no Estado do Maranhão, e a
dos bandeirantes, que, a partir do Sul, dirigiam­-se para Goiás,
Mato Grosso e à região do rio Guaporé, unindo pelas “monções do
Norte” as entidades políticas coloniais, Brasil e Maranhão;
a definição do papel do Estado português, em seu eixo
metropolitano e seus ramos coloniais, no processo expansionista
do Brasil, sem com isso desvalorizar o bandeirantismo. Aliás, o
autor coloca­-se com muita ponderação e acuidade ante o
bandeirante, equidistante dos excessos que veem apenas uma
epopeia afirmativa da paulistanidade ou a ação predatória de
homens cúpidos;
a formação das fronteiras do Brasil concebida como um diálogo
entre o bandeirante e o diplomata, tipos emblemáticos,
respectivamente, da ação privada e da ação estatal na construção
do país;
a identificação, nas três etapas institucionais do Brasil, de
Alexandre de Gusmão, Duarte da Ponte Ribeiro e o Barão do Rio
Branco. A inclusão do primeiro e do terceiro dispensa
justificativa. A de Ponte Ribeiro, para nosso autor, deve­-se ao fato
de ser “um estudioso das questões de limites, um hábil
negociador, talvez o diplomata que mais contribuiu para a
formulação e execução da bem sucedida política de fronteiras do
Império”.

Trabalho de inequívoco mérito, este ensaio de Synesio


Sampaio Goes Filho sobre a formação das fronteiras do Brasil
relaciona com argúcia e profundidade o processo social com a ação
de alguns pró­-homens, “navegantes, bandeirantes, diplomatas”.
Optando pelo gênero ensaístico, que possui tão densa tradição
intelectual desde Montaigne, o autor alicerça suas reflexões à luz da
documentação e da informação especializada mais recente,
iluminando­-as com uma nova leitura pessoal.

A concepção geral, a análise de cada conjuntura e os


destaques biográficos a elas relacionados são absolutamente
pertinentes, o que deve ser estendido ao uso que faz da
historiografia brasileira e sobre o Brasil e da historiografia hispano­-
americana. A complementação com textos de reflexão sobre nosso
país, como os de Ronald de Carvalho, Euclides da Cunha e
Cassiano Ricardo, frequentemente ausentes de análises
especializadas, torna o texto ainda mais denso, sofisticando a
interpretação.
Por fim, cabe ressaltar que o autor bem aderiu às modernas
concepções epistemológicas sobre a história, que coincidem em
considerá­-la como um conhecimento construído, sem, contudo,
concluir por isso que as análises e os juízos devam ser permeados
de subjetividade e partidarismo. Certamente sua atividade
profissional, na qual se combinam necessariamente o rigor da
análise intelectual com o pragmatismo na consideração das
situações concretas, contribuiu para dar­-lhe tal equilíbrio
interpretativo.

A esse propósito, lembremos que o Embaixador Sampaio Goes


torna­-se, com este estudo, mais um elo na longa e brilhante série de
diplomatas­-historiadores que, no Brasil e em outros países,
conjugaram a reflexão sobre a história com algum tipo de ação
sobre o seu desenrolar. Para não sairmos do Brasil e nos limitarmos
apenas a uma geração, a fim de não cometermos injustiça por
omissão, lembremos as figuras emblemáticas de Rio Branco,
Oliveira Lima e Joaquim Nabuco.

Navegantes, bandeirantes, diplomatas – Um ensaio sobre a formação das


fronteiras do Brasil valoriza a tarefa ciclópica de construção do espaço
social e a habilidade luso­-brasileira em mantê­-lo diplomaticamente,
pelo argumento substantivo do uti possidetis e pelo emprego
processual, com Rio Branco, do arbitramento.

Ratzel dizia, em boa lógica evolucionista, que “a fronteira é


constituída pelos inumeráveis pontos sobre os quais um movimento
orgânico é obrigado a parar”.

Se a sociedade constrói a fronteira, os diplomatas costuram seu


limes. De ambos os processos deu conta cabal nosso autor.

Arno Wehling
Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Dezembro de 1999.
Introdução
Uma visão de conjunto

De navegantes, bandeirantes e diplomatas trata este livro. Entre


os primeiros, são individualizados Cristóvão Colombo, Américo
Vespúcio e Pedro Álvares Cabral. O genovês descobriu um
continente sem querer e morreu sem saber que o fizera, tão grande
era sua fixação de chegar às “Índias”. A ele se vincula o Tratado de
Tordesilhas, pelo qual Portugal e Espanha, em 1494, separavam as
terras que estavam descobrindo no “mar oceano”, como então se
chamava o Atlântico. O florentino, que teve a honra única de dar seu
nome ao continente, tem suas proezas náuticas questionadas há
quase cinco séculos, desde Bartolomeu de Las Casas; seu mérito
indiscutível é ter, se não concebido, pelo menos divulgado a ideia de
que as terras deste lado do Atlântico faziam parte de um “Mundus
Novus” (como se chama a mais conhecida de suas cartas),
totalmente desconhecido até então.

Quando Cabral chegou à “Terra de Santa Cruz, a que vulgar-­


mente chamamos Brasil”4 – título do livro de Magalhães Gândavo,
de 1570, nossa primeira História –, já tinha esta, portanto, uma
fronteira, a linha das 370 léguas a partir das ilhas do Cabo Verde,
definida em Tordesilhas. O que não se sabia, exatamente, nem
então nem mais de dois séculos depois, era onde passava: no
litoral, havia ainda a vaga ideia de que cortaria a foz do Amazonas
ao norte e algum ponto acima do Prata ao sul; mas, no interior do
continente, ninguém identificava os acidentes geográficos em que
tocaria.

Ao criar em 1534 o sistema de capitanias hereditárias, que


fracionou a colônia em lotes de 30 a 100 léguas de costa, entre o
Maranhão e Santa Catarina, D. João III procurou respeitar os limites
de Tordesilhas. De vários núcleos do litoral leste, principalmente São
Vicente, Salvador (capital do Governo Geral, estabelecido em 1549)
e Olinda, ocasionais grupos de sertanistas foram devassando terras
na parte portuguesa do continente à procura de metais preciosos.

No fim do século XVI, surgiu, entretanto, um fenômeno histórico


diverso: um conjunto denso de ações de penetração territorial, com
origem num único local e objetivo predominante de caça ao índio,
que ultrapassava com frequência a linha de Tordesilhas.
Bandeirismo (bandeirantismo, dizem alguns autores) chama­-se esse
movimento, que cria na cidade de São Paulo, aproximadamente
entre 1580 e 1730, uma sociedade de caracte­rísticas especiais: “sua
vocação” – diz Sérgio Buarque de Holanda – “está no caminho, que
convida ao movimento, não na grande lavoura, que cria indivíduos
sedentários”5.

Os espanhóis tiveram a sorte de achar grandes civilizações,


ricas em prata, já nos primeiros anos após o descobrimento. Os
portugueses, não; só no final do século XVII descobriram ouro na
região montanhosa que depois se chamou “Minas Gerais” e que em
poucos anos se tornaria o centro gravitacional da Colônia. O ciclo do
ouro em Minas é um dos momentos culminantes da História do
Brasil, mas não vamos tratar dele porque se desenvolveu na parte
portuguesa da divisão de Tordesilhas, não tendo a ocupação do
território mineiro provocado nenhum conflito de soberania.

De outro ponto do território, Belém, fundada em 1616, subindo


o rio Amazonas e seus afluentes, outros homens, mestiços de índios
em sua maioria, como em São Paulo, e também com objetivos
econômicos (aqui, além de índios, “drogas do sertão”), foram­-se
apossando de lugares que deveriam ser espanhóis pela partilha de
1494. Pedro Teixeira, em 1639, teria chegado a fundar uma
povoação em pleno Equador atual; mas a fronteira acabou fixando­-
se mais a leste, na boca do rio Javari. Na margem norte do
Amazonas, os luso­-brasileiros foram adentrando os rios Negro e
Branco até quase suas nascentes; na margem sul, subiram os
compridos rios Madeira, Purus e Juruá, até onde puderam. E, assim,
já nas primeiras décadas do século XVIII tinham completado o feito
excepcional de ocupar os pontos estratégicos da imensa bacia
amazônica6.

Em 1680, a coroa portuguesa patrocina a fundação da “Colônia


do Santíssimo Sacramento” na margem esquerda do Prata, em
frente a Buenos Aires. Era uma tentativa de levar os limites do Brasil
até o grande rio. Portugal, entretanto, nunca conseguiu estabelecer
por terra uma ligação segura entre Colônia e os núcleos
portugueses mais ao sul, e por isso Colônia ficou sempre ilhada,
sem poder resistir às forças espanholas da região, centradas em
Buenos Aires.

Bandeirantes de São Paulo em suas andanças pelo interior, em


1718, descobrem ouro no rio Cuiabá. Para manter contato com essa
área longínqua, estabeleceu­-se um sistema de transporte por meio
de rios, o que é uma das originalidades da História do Brasil, as
“monções”. Eram comboios de canoas que, por mais de cem anos,
ligaram São Paulo aos núcleos mineradores do Centro­-Oeste.
Dessas minas, o movimento expansionista atravessou o então
chamado “mato grosso do rio Jauru” (que deu nome ao futuro
Estado) e atingiu as margens do Guaporé, onde novas minas foram
descobertas em 1734; da bacia do Prata os bandeirantes paulistas
passavam à do Amazonas. Em pouco tempo, estabeleceu­-se a
ligação com Belém, pelo rio Madeira, também por comboios de
canoas, as “monções do norte”. Com elas, os dois movimen­tos de
penetração se encontravam: era a ligação entre os Estados do
“Brasil” e do “Maranhão” (durou de 1621 a 1776) que afinal se
estabelecia.

Não há dúvida de que a conquista da Amazônia pela calha do


grande rio e seus afluentes foi tarefa que contou com a participação
do poder público; no sul, desde a fundação de Colônia, é também
inquestionável a presença do Estado. Discute­-se, sim, se as
bandeiras de preação do século XVII, na capitania de São Vicente e
nas Missões, ou as de prospecção do século XVIII, em Goiás e
Mato Grosso, foram espontâneas ou dirigidas pela coroa
portuguesa. A conclusão aqui adotada (na linha de Capistrano de
Abreu e Affonso Taunay, e divergindo de Jaime Cortesão) é que as
ban­deiras, apesar de terem tido imensas consequências políticas,
foram basicamente um movimento de inspiração econômica local.

Dessas penetrações, a pé e depois em canoas a partir de São


Paulo, sempre em canoas a partir de Belém, e em uma pequena
armada na fundação de Colônia resultou o acontecimento
fundamental do período colonial: a dilatação do território brasileiro
muito além de Tordesilhas. Em 1750, Portugal e Espanha assinam o
Tratado de Madri, que legalizava a ocupação de dois terços do atual
território brasileiro; o tratado previa igualmente a troca da Colônia do
Sacramento pelos Sete Povos das Missões, aldeamentos fundados
por jesuítas espanhóis no atual oeste do Rio Grande do Sul. Pela
primeira vez desenhava­-se no papel a forma compacta, quase
triangular, do mapa que hoje nos é familiar: 4.319 km de leste a
oeste, 4.395 km de norte a sul. Ao lado do Tratado de Madri, o único
da história que dividiu um continente, todos os demais acordos de
limite são de pouca importância territorial. Concebido principalmente
pelo brasileiro Alexandre de Gusmão, na época Secretário Particular
de D. João V, estruturou­-se em torno de dois princípios: o das
“fronteiras naturais”, como são os cursos dos rios e as cumeadas
das montanhas, e o do uti possidetis, que determina que cada parte
conserve o que ocupa no terreno.
Problemas de demarcação no Norte, dificuldades para a
remoção dos indígenas dos Sete Povos no Sul e, principalmente,
novo e pior ambiente entre as cortes peninsulares explicam, em
1761, o Tratado de El Pardo, anulatório de Madri. Em 1777,
entretanto, pelo Tratado de Santo Ildefonso, as fronteiras de Madri
eram retomadas, à exceção do extremo sul, onde os Sete Povos
retornaram à soberania espanhola. A guerra de 1801 entre Portugal
e Espanha provocou ocupações territoriais na Europa (a cidade de
Olivença é até hoje espanhola) e, o que interessa particularmente
neste trabalho, na América: aqui, tropas gaúchas conquistaram,
para sempre, a região dos Sete Povos. O tratado de paz desse
mesmo ano não previu a devolução de territórios ocupados. Na
prática, e para o Brasil também na teoria, estava anulado Santo
Ildefonso. E, assim, a independência das nações sul­-americanas
encontrou­-as sem limites perfeitamente conhecidos ou respeitados.

As grandes preocupações políticas do novo Império concen-­


travam­-se no Prata. A Argentina, que se pretendia herdeira do
antigo Vice­-Reinado e, portanto, tinha uma política anexionista com
relação ao Uruguai e ao Paraguai, era o adversário atávico. A
fronteira bilateral é em sua maior parte fluvial: os rios Uruguai e
Iguaçu, familiares às populações locais e reconhecidos como limites
desde os tratados coloniais. Só houve problema no final do século
XIX, quando a Argentina pôs em dúvida a identificação dos dois
pequenos rios que ligavam o Uruguai ao Iguaçu. A questão foi
resolvida favoravelmente ao Brasil pelo arbitramento de 1895.

A situação interna no Uruguai no século XIX foi sempre tensa. A


região − a “banda oriental” dos tempos coloniais − havia sido
disputada pelas potências ibéricas desde a descoberta do rio da
Prata, mas passou a sê­-lo com maior empenho após a fundação de
Colônia. Invadida por tropas portuguesas em 1821 e incorporada ao
nascente Império de D. Pedro I, no ano seguinte, como “Província
Cisplatina”, tornou­-se independente em 1828, ao final de uma
guerra entre a Argentina e o Brasil, com o nome de República
Oriental do Uruguai. Manteve as mesmas fronteiras da incorporação
(o arroio Chuí, a lagoa Mirim, o rio Jaguarão, as cumeeiras da
coxilha de Santana e o rio Quaraí). Não parou, entretanto, o novo
país de agitar a vida política no Prata, por sua instabilidade crônica,
que encontrava eco nas regiões vizinhas − no caso brasileiro, no
Rio Grande do Sul.

O Paraguai era um caso à parte: não participava das


transações platinas, desde que o ditador José Gaspar Rodríguez de
Francia o isolara para preservar sua vida de nação independente.
Quando o terceiro ditador, Francisco Solano Lopez (filho do anterior,
Carlos Antonio Lopez), quis participar mais ativamente do jogo de
poder no Prata, aproveitando o trunfo de seu magnífico exército,
provocou a maior guerra da América do Sul e a quase destruição de
sua pátria. A derrota, em 1870, fez o Paraguai aceitar o limite do rio
Apa, que parecia ao Brasil ser o correto.

Na Amazônia, foram necessárias quase três décadas para que


se pudesse concluir um primeiro tratado de limites. A partir de então,
ficou perfeitamente estruturada uma sólida política de fronteiras,
baseada no uti possidetis, onde houvesse a ocupação e,
subsidiariamente, onde tal não ocorresse, no Tratado de Santo
Ildefonso. Nessas bases, houve negociações com todos os países
amazônicos e se conseguiu firmar acordos com o Peru (1851), a
Venezuela (1859) e a Bolívia (1867). Um nome de diplomata deve
ser destacado, por sua contribuição fundamental no
estabelecimento da política e participação constante nas
negociações de fronteira: Duarte da Ponte Ribeiro, o “fronteiro­-mor
do Império”,7 como já se lhe chamou.

O traçado completo da linha divisória do Brasil é obra do


começo da República. O grande artífice da chamada “política de
limites” foi o Barão do Rio Branco: sem guerras, conseguiu
consolidar e ampliar as fronteiras de sua terra, feito dado a poucos.
Antes de ser nomeado Ministro, em 1902, já havia sido o vitorioso
advogado do Brasil nos arbitramentos das Questões de Palmas,
com a Argentina (1895), e do Amapá, com a França (1900); além de
ter feito o estudo preliminar da Questão do Pirara, com a Inglaterra
(1904). Assim que assume o Itamaraty, resolve o complicado
problema do Acre (1903) e, durante seus quase dez anos como
Chanceler, assina acordos de fronteiras com cinco de nossos dez
vizinhos (com a Venezuela e com o Paraguai, os acordos já
existentes não foram modificados), terminando essa fase importante
de nossa História Diplomática. Ao morrer, em 1912, deixava o país
livre dos problemas de limites que até hoje atormentam outros
países do continente.

Descobrimento, ocupação e, com mais amplitude, fronteiras8


são os assuntos que serão desenvolvidos nas próximas páginas.
Um ensaio sobre os que revelaram, devassaram e limitaram o
imenso território brasileiro: navegantes, bandeirantes, diplomatas.
PRIMEIRA PARTE
A descoberta do continente

Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!


(Fernando Pessoa, Mar Português.)
Capítulo I
Viagens de Colombo
[...] the discovery of America and that of a passage to the East Indies by the Cape
of Good Hope are the two greatest and most important events recorded in the
history of mankind. (Adam Smith, The Wealth of Nations.)

1.1 Gênova e o Mediterrâneo


É incontável o número de livros sobre o mais célebre dos
navegantes, Cristóvão Colombo, embora pouco se saiba de incon-­
troverso sobre sua vida, particularmente antes da grande aventura
de 1492, a Descoberta da América. São escassos os escritos de
Colombo hoje existentes, fora os abundantes comentários que
deixou nas margens de seus livros, que não só revelam autores
favoritos, mas também indicam temas recorrentes de seu
pensamento.

Das obras sobre Colombo, duas há que são as fontes básicas


de tudo o que sobre ele se tem falado. Uma é a biografia publicada
na década de 1530 por seu filho natural, Fernando, Historia del
almirante Don Cristóbal Colón.9 Muito rica de informações, é
infelizmente imprecisa nos fatos – por ela não se fica sabendo, por
exemplo, onde Colombo realmente nasceu – e tem o defeito de ter
sido escrita com o objetivo de nobilitar o descobridor, tanto em suas
ações, quanto em suas origens.
A outra fonte é a Historia de las Indias, elaborada entre 1550 e
1563 pelo bispo dominicano Bartolomeu de las Casas, célebre por
sua defesa dos índios americanos e pela denúncia dos excessos da
ocupação espanhola10. Nesse relato, há centenas de páginas sobre
o descobridor, com trechos transcritos por Las Casas de originais do
próprio Colombo. O famoso Diário de bordo da viagem descobridora,
o primeiro documento da História da América, tantas vezes editado
e sempre tão citado, nada mais é, para dar o exemplo mais
importante, do que um conjunto de capítulos da Historia; o original
ou uma cópia do Diário esteve em mãos do historiador, que o
resumiu e, em parte, reproduziu­-o. Já se apontaram exageros e
imprecisões na obra de Las Casas, para muitos um santo, e do
gênero corajoso, mas sem dúvida um escritor exaltado. No que
concerne a Colombo, entretanto, especialistas contemporâneos
consideram­-no plenamente confiável.

Biografias de Colombo, há várias em cada um dos cinco


séculos que transcorreram desde a Descoberta, mas só nos últimos
150 anos passaram a ser mais abundantes e acuradas. Em nossa
época, são justamente valorizadas as do espanhol Ballesteros y
Beretta, a do italiano Paolo Emilio Taviani e – esta a mais conhecida
– a do norte­-americano Samuel Eliot Morison. Sobre momentos
importantes de sua vida, o que há, entretanto, são opiniões, muito
bem fundadas algumas, mas, como todas as opiniões, sujeitas a
serem contraditadas por outras, ou superadas pela descoberta de
novos documentos.

Dentro dessas limitações, vejamos os traços básicos da vida do


navegador. Depois de muita controvérsia, parece hoje provado que
nasceu realmente em Gênova, em 1451, no seio de antiga família
de tecelões locais, não sendo, portanto, correta a difundida opinião
de Salvador de Madariaga, a chamada tese sefardita, de que era
filho de pais judeus, recentemente emigrados da Espanha. A cidade,
sede da poderosa República de Gênova, era um dos primeiros
portos do Mediterrâneo; grande centro financeiro, com seu famoso
Banco di San Giorgio, então o maior do mundo, não tinha propriamente
uma armada, como sua rival Veneza, mas, sim, uma numerosa frota
comercial. Interessa particularmente saber que era um núcleo de
conhecimentos marítimos, em especial cartográficos, de importância
única na época. E lembre­-se que, no tempo da Gênova que
conheceu o jovem Colombo, fora das águas do mar Mediterrâneo –
que tinha sido no final da época clássica um lago romano e que
continuava no início da Idade Moderna a concentrar a navegação
europeia – só havia alguma cabotagem nas costas atlânticas da
Europa, além das navegações insulares e africanas de Portugal e,
em menor escala, de Castela e Aragão.

Bem jovem, com quatorze anos, Colombo já se teria engajado


em algum navio, dos muitos que abarrotavam o porto de Gênova.
Seguramente fez várias viagens pelo Mediterrâneo em sua
mocidade, quer de objetivos comerciais, quer, nesse período de
tanta rivalidade entre as nações circundantes, de propósitos bélicos.
Hoje se considera certo que foi tripulante de navios corsários, o que
não é tão surpreendente, num tempo em que os capitães dessas
embarcações eram às vezes recompensados pelos governos a que
serviam – nem sempre os das regiões onde haviam nascido – com o
honroso e então raro título de Almirante11.

De tripulante passou a comandante e é provável que, nessa


condição, aos 25 anos, tenha participado de uma escaramuça entre
genoveses e franceses, não longe do cabo de São Vicente (sul de
Portugal), na qual seu barco foi afundado. Nadando e se apoiando
num remo – é curioso como este pormenor relatado por Las Casas
se repete em muitas biografias – pôde chegar à praia do povoado
de Lagos, no Algarve. Exatamente onde meio século antes o Infante
D. Henrique havia estabelecido o núcleo da grande empresa
portuguesa de navegação de longo curso, cujo resultado foi a
ruptura do mundo fechado do Mediterrâneo, o fim do monopólio das
cidades italianas no comércio oriental. Pode ter sido sorte, mas
Colombo, homem místico, sempre viu a mão de Deus em sua
sobrevivência e no local em que foi parar. Mas onde não se
demorou...

1.2 Portugal e o Atlântico


Agora, em 1476, já no reinado do sobrinho do Infante, D.
Afonso V, o centro das atividades marítimas era Lisboa, onde havia,
aliás, vários representantes de interesses comerciais genoveses12.
Lá também estava, exercendo a profissão de cartó­grafo, seu irmão
mais moço, Bartolomeu. Não existiria cidade mais internacional,
nessa época em que os portugueses estavam explorando os
arquipélagos da Madeira, dos Açores, das Canárias13 e do Cabo
Verde, além de boa parte do litoral atlântico do continente negro.
Embora não haja um só documento sobre a estada de Colombo em
Portugal – o que é estranho, pois se tornou navegante de certo
renome, tendo empreendido missões importantes e se relacionado
com gente de projeção14 –, não há dúvida de que os oito anos em
que lá viveu constituem o período fundamental para a grande
empresa de sua vida: aquele em que adquire conhecimentos
profundos de navegação oceânica e concebe o projeto de chegar às
Índias navegando para o Ocidente.

Menino pobre, se aprendeu alguma coisa em Gênova deve ter


sido o humilde ofício de seu pai. Cedo foi ao mar e aí, sim, começou
a haurir quase tudo que sabia. A escrever, talvez só se tenha
iniciado em Lisboa, onde aprendeu não só português, mas também
espanhol, então comum na Corte e até usado por autores lusos15, e
rudimentos de latim, então língua universal da cultura. Essa
circunstância, aliada ao fato de ter vivido na Espanha, depois,
explica por que a língua corrente de Colombo, como se vê em seus
escritos, era um espanhol truncado com portuguesismos; e por que
nunca redigia no dialeto genovês, na realidade mais falado que
escrito, nem no italiano clássico, o de Dante, o de Florença16.

Em Lisboa, sua bela figura (outro ponto comum dos biógrafos,


embora os retratos de Colombo sejam meramente conjeturais) e
suas habilidades como navegante devem ter contribuído para
superar as dificuldades que um estrangeiro, de origem modesta,
aparecido numa praia, teria para se casar com moça de família
eminente, como era Felipa Moniz Perestrelo. Sua mãe era nobre,
com parentes bem situados na Corte, e seu pai, que fora um dos
capitães do Infante D. Henrique, era então donatário de Porto Santo,
a segunda ilha do arquipélago da Madeira.

Morou pelo menos dois anos em Porto Santo e depois na


Madeira; provavelmente na primeira nasceu seu único filho legí­timo,
Diego, donde provém a linha dos “Colóns” espanhóis, até hoje
existente. Dessas ilhas, talvez a serviço de mercadores genoveses
de Lisboa, viajou às outras possessões insulares portuguesas, à
Inglaterra, onde se impressionou – homem do Mediterrâneo que era
– com o tempo brumoso e a altura das marés, e à Islândia, esta a
derradeira terra então conhecida, a “Ultima Thule”17. Com os
portugueses, fez pelo menos uma longa viagem à África (até o golfo
da Guiné), tendo visto pela primeira vez o céu do hemisfério sul;
atento, deve ter observado o grupo de estrelas que se tornaria o
indicador de rotas dos viajantes futuros dessa metade da Terra: o
Cruzeiro do Sul.

Instruiu­-se o suficiente para ler em latim pelo menos trechos de


obras de seu interesse, como eram livros de geografia e de viagens
ao Oriente. Destes, o grande best­-seller da época continuava a ser
aquele em que Marco Polo conta sua grande excursão à China
(Cataio), entre 1271 e 1295: Il Milione18. Descreve aí regiões e
costumes do império mongólico fundado por Gêngis Khan, que,
durante a maior parte dos séculos XIII e XIV, de suas capitais Tatu e
Shangtu, ambas não longe da atual Beijing, dominou boa parte da
Ásia, à testa da qual estava, no momento da viagem, o rei Kublai
(Kublai Khan)19. Não esteve no Japão (Cipango), mas também fala
deste país. É incerto que Colombo tenha lido Marco Polo em
Portugal, porque a edição de sua propriedade traz a data de 1485,
quando não estava mais lá, mas o livro era tão divulgado que é bem
possível que conhecesse suas histórias de outras fontes. O que
parece certo é que Colombo tomou conhecimento em terras lusas
pelo menos de partes dos compêndios do saber geográ­fico e
histórico de seu tempo, respectivamente a Imago Mundi, do Cardeal
Pierre d’Ailly, e a Historia Rerum Ubique Gestarum, de Eneas Silvio
Piccolomini (futuro Papa Pio II).

A biblioteca colombiana que se encontra na Catedral de


Sevilha20 tem exemplares desses dois livros em edições anteriores a
1483, isto é, anteriores à data da sua proposta ao rei de Portugal,
com cerca de 1.800 anotações nas margens, o que mostra seu
interesse por essas obras21. Em d’Ailly, há, aliás, claramente
expressa, a ideia de se ir às Índias navegando em direção ao oeste;
foi provavelmente nesse livro que Colombo encontrou a menção a
Esdras, que se tornaria seu profeta predileto da Bíblia, certamente
porque fala de terras desconhecidas: “Seis partes do Orbe secou
Deus” (v. 42 do livro IV, que não faz mais parte do Cânone).

Mas a maior influência intelectual que sofreu nesse período foi


a do sábio florentino Paolo del Pozzo Toscanelli, que havia, em carta
dirigida ao matemático e religioso português Cônego Martins,
proposto em 1474 “um caminho por mar à terra das especiarias
mais curto do aquele que [D. Afonso V] está descobrindo pela [costa
da] Guiné”22. Colombo pessoalmente se teria correspondido com
Toscanelli,23 e há indicações de que conhecia o mapa feito pelo
sábio, com Cathay na outra margem do Atlântico, depois da
imaginária ilha de Antilha24 e de Cipango.

Não se sabe exatamente quando, mas um dia, em 1483 ou


1484, Colombo teve a coragem de fazer a D. João II uma proposta
inusitada: a de chegar ao Oriente navegando para o Ocidente; ou,
mais precisamente, como informa João de Barros, o grande cronista
português do século XVI, “descobrir a ilha de Cipango, através do
mar oceano”25. A ideia podia não ser nova, mas propor realizá­-la era
julgar­-se capaz de fazer o nunca feito. Colombo respeitava o
soberano português, que, em suas palavras, “entendía en el descubrir
más que otro”26. Mas, esse sentimento não era reciprocado por D.
João II, que não via com bons olhos a segurança, o orgulho e a
imaginação exacerbada que caracterizavam a personalidade de
Colombo, a ser correta a versão do mesmo historiador: “O rei, vendo
que esse Cristóvão Colombo era um grande falador, e muito vaidoso
em alardear suas virtudes, e cheio de fantasia e imaginação com
relação a sua ilha de Cipango, e seguro do que afirmava, não fez
muita fé”27.

Assim mesmo, passou a proposta a uma comissão de


entendidos, que não demorou a dar seu veredito em contrário. Há
quem diga que, antes da decisão, maliciosa e secretamente,
mandou D. João II que se verificasse a viabilidade do projeto,
enviando dos Açores uma caravela para explorar o oeste, a qual
não teria chegado a terra nenhuma. Há quem lembre igualmente
que o rei passava por um período politicamente difícil (revolta de
alguns nobres), que tinha desacelerado o ritmo dos descobrimentos.

De qualquer modo, Colombo não oferecia muito, fora sua


excepcional experiência como navegante. Além de não ser original,
a base científica de seu projeto estruturava­-se em torno de
premissas que os entendidos nomeados pelo rei podiam, com
argumentos respeitáveis, recusar. Estribado em Toscanelli, que, por
sua vez, louvava­-se em Ptolomeu, concebia um mundo bem menor
do que é na realidade, quando já existiam em seu tempo cálculos
mais corretos; desde os gregos, aliás, pois Eratóstenes havia
avaliado a circunferência da Terra no equador em cifras mais
precisas. Colombo calculava a distância das Canárias a Cipango, o
primeiro objetivo de sua empreitada, em 2.400 milhas náuticas
(Toscanelli o fazia em 3 mil), isto é, 24% apenas da distância real,
de 10 mil milhas náuticas.

A causa principal da recusa parece, entretanto, ter sido outra.


Em 1485, ano em que Colombo foi para a Espanha por não
conseguir apoio do rei, os portugueses já tinham chegado com as
viagens de Diogo Cão, o descobridor do rio Congo, às costas da
Namíbia (Cape Cross): a extremidade sul da África não poderia estar
longe. Mantinham, ademais, um próspero comércio de escravos,
ouro, marfim e algumas especiarias, não tão desejadas como as
asiáticas, mas de boa aceitação nos mercados europeus, como a
pimenta malagueta. A construção, em 1482, da grande fortaleza de
São Jorge da Mina, junto à atual cidade de Elmina, em Gana,
indicava ser pela África o caminho que preferiam para chegar às
Índias.

Não era mesmo para ser Portugal. Outra nação teria a glória de
patrocinar a descoberta da América, quando Portugal tinha tudo
para fazê­-lo: um rei poderoso e interessado em descobertas,
capitães e marinheiros habilitados, caravelas aprestadas e, o que
modernamente se valoriza muito, estruturas comerciais eficientes e
prontas a financiar viagens com possibilidades de lucro. Não era
para ser então, em 1484, nem quatro anos depois, quando,
contrariando o provérbio, pela segunda vez Colombo bateu em sua
porta. Na Espanha, já cansado de demoras e negaças, o navegador
recebeu uma carta de D. João II na qual o soberano lhe dava o
tratamento honroso de “nosso especial amigo” e se propunha agora
a utilizar sua “indústria e bom engenho”28. Os historiadores divergem
se Cristóvão Colombo regressou pessoalmente ou se foi Bartolomeu
quem nessa ocasião renovou as tratativas. De qualquer forma, não
deram certo. Por quê, não se sabe. Existe, entretanto, uma
coincidência que bem pode explicar o novo impasse: um dos irmãos
estava em Lisboa, em dezembro de 1488, negociando o acordo
para a viagem, quando aportou no Tejo a caravela de Bartolomeu
Dias, já considerada perdida por muitos − estava havia mais de
dezesseis meses no mar −, com a notícia de que a África era
contornável, que pelo cabo da Boa Esperança se poderiam atingir
as Índias. Tudo indicava que era dos portugueses, não de Colombo,
a opção correta; não havia por que continuar negociando.

1.3 A empresa das Índias


Atrasemos um pouco o relógio para tratar de uma questão
importante. Como teria ele concebido o projeto de, em suas
palavras, “buscar el Levante por el Poniente”? Em outros termos, a partir
de que dados haveria arquitetado o plano de chegar à Ásia
navegando para o Oeste? Respostas várias foram dadas, desde os
primeiros livros sobre Colombo. Seu filho Fernando, na famosa
biografia, fala em três grupos de causas que teriam levado seu pai a
engendrar a “empresa de las Índias”. Primeiro seriam as ideias sobre a
esfericidade do mundo, suas medidas e a proporção de águas e
terras existentes, vindas de autores antigos, como Ptolomeu,
Estrabão e Plínio. Depois, haveria a autoridade dos sábios que
achavam ser possível da Europa navegar pelo Atlântico até as
Índias, e, aqui, Fernando, que era um erudito e um bibliófilo, cita um
rosário de autores consagrados, cujas ideias teriam influenciado seu
pai, como Aristóteles e Sêneca, entre os clássicos, Averróis, no
mundo muçulmano, Marco Polo, no medieval, Toscanelli,
Piccolomini e d’Ailly, entre os contemporâneos de Colombo. E,
finalmente, existiriam os indícios (“señales”, diz Fernando) da
existência de terras a oeste que Colombo teria recolhido,
excepcional observador que era, de suas próprias experiências ou
de navegantes de suas relações, tais como plantas de espécie
ignorada, barcos de construção estranha, cadáveres de raças
desconhecidas, que de tempos em tempos chegavam às ilhas
portuguesas do Atlântico.

Nesta última categoria entrariam, segundo o aporte de


escritores posteriores, tudo o que há de misterioso na vida do
navegante, desde os mapas secretos que teria visto até as histórias
de navegações descobridoras contadas por velhos marinheiros, tão
frequentes nos livros populares sobre Colombo. Há, ademais,
historiadores respeitáveis que, indo além dos indícios de Fernando,
julgam Colombo sobrevivente de uma expedição que já havia
descoberto a América, como diz em nossos dias o espanhol Diaz­-
Plaja: “él sabía que existían esas tierras porque había estado allí en
una expedición anterior y de la cual era el único superviviente”29. Ou,
pelo menos − é o que contam vários outros − herdeiro das
confissões finais de um navegador moribundo que lá estivera (seu
sogro, Bartolomeu Perestrelo, é com frequência colocado nesse
papel).

Fernando, homem de cultura livresca, fala mais de livros do que


de qualquer outra coisa, inaugurando uma longa tradição,
persistente até hoje, de explicar principalmente por meio da
influência de grandes autores a gênese do projeto colombiano. Há
alguma razão para isso. Colombo viveu em pleno Renascimento,
período que se caracteriza pela redescoberta dos clássicos gregos e
romanos, alguns dos quais já tinham falado da esfericidade da Terra
ou da existência de terras depois das Colunas de Hércules, como
era conhecido o estreito de Gibraltar. Mais ainda, Colombo viveu no
período em que os livros, de quase sagrados objetos de culto − os
manuscritos dos mosteiros medievais − ou de artísticos objetos de
prestígio − os livros de horas ricamente iluminados das casas
nobres − passam a ser bens de uso mais generalizado: a
descoberta da imprensa (Gutenberg edita sua famosa Bíblia em
1455), tornando muito mais fácil a reprodução das páginas, foi a
causa dessa revolução democrática do saber.

Os livros sobre Colombo, ou sobre as descobertas, destacam,


com razão, um autor que reingressa no acervo cultural europeu com
o Renascimento e que teve imensa influência no pensamento
cosmográfico de então: Ptolomeu, o grande erudito que viveu em
Alexandria no primeiro século da Era Cristã e escreveu dois tratados
fundamentais, um de astronomia (conhecido pelo título árabe de
Almagesto) e outro de geografia (Guia de Geografia), que é o que
interessa aqui. Como se sabe, esta era uma ciência muito pouco
estudada na Idade Média, pois não integrava os currículos regulares
(nem o trivium – gramática, retórica e dialética; nem o quadrivium –
aritmética, geometria, música e astronomia). Por meio de refugiados
de Bizâncio, tomada pelos turcos em 1453, Ptolomeu reingressou
na Europa, junto com outros gregos e romanos ilustres, mas quase
ignorados. Dos escassos gênios da humanidade, é injusto ser o
sábio de Alexandria mais conhecido hoje por seus poucos erros, dos
quais o geocentrismo é o mais espetacular, do que por seus
abundantes acertos. Não se pode também considerar “erro” de
Ptolomeu o não imaginar que havia um continente entre a Europa e
a Ásia. Ninguém o fez, nem antes do sábio grego, nem nos quatorze
séculos que se passaram, até o tempo de Colombo. A descoberta
foi totalmente inesperada: “The American Surprise”, como muito
apropriadamente Daniel J. Boorstin títulou um dos capítulos do seu
The Discoverers.

As ideias de Ptolomeu, em especial sua concepção − correta −


da Terra como um globo e sua descrição – errada – da Ásia
estendida desproporcionadamente para leste, divulgaram­-se
rapidamente. Colombo, como os navegantes de primeira linha e os
europeus educados de seu tempo, acreditava na esfericidade da
Terra, sendo falsa a versão popular de que seu conflito com as
autoridades indicadas pelas cortes portuguesa e espanhola para
discutir seu projeto centralizava­-se na discussão sobre ser a Terra
uma esfera, como afirmava, ou um círculo, como acreditava a
maioria inculta e mostravam os mapas­-múndi da Idade Média.

Que Colombo era um grande navegador, reconhecem os seus


biógrafos; o problema é que quase todos dedicam mais tempo aos
autores que o teriam influenciado do que aos conhecimentos
práticos adquiridos nas suas experiências pessoais de navegante.
Essa visão desequilibrada necessitava de correção, o que foi feito
por bons biógrafos de nosso tempo, particularmente Paolo Emilio
Taviani. No momento em que arquitetou o projeto − esta a tese
central de seu Cristoforo Colombo, la genesi della Grande Scoperta −, o
descobridor não conhecia ainda os autores clássicos geralmente
considerados como seus inspiradores; leu­-os, sim, mas só mais
tarde, na Espanha, à procura de argumentos que favorecessem a
defesa de ideias que já tinha.

Examinando os livros que pertenceram a Colombo, verifica o


mencionado autor italiano, algumas vezes pelas datas de
publicação, outras pelas observações manuscritas nas margens,
que foram pouquíssimos aqueles que teria lido em Portugal, isto é,
antes de apresentar sua proposta a D. João II. Vimos que deveria
então conhecer pelo menos trechos do livro das viagens de Marco
Polo e já teria tido algum contato com os compêndios de d’Ailly e
Piccolomini e conhecia o pensamento de Toscanelli, em quem
encontrou a base científica de seu projeto. Mas os outros livros,
sobretudo os grandes autores da antiguidade greco­-romana, tão
mencionados por tantos que escreveram sobre o genovês, só foram
lidos posteriormente, durante os sete longos anos que passou na
Espanha tentando convencer os reis católicos da viabilidade de seu
plano. Serviram para reforçar sua proposta, para enriquecê­-la com o
aporte de opiniões de peso para uma banca de julgamento em que
havia eruditos; mas nada tiveram, este o paradoxo, com a gênese
do projeto.

A verdade é que só com o que se poderia chamar de “autores­-


navegantes”, isto é, os escritores que eram também especialistas
em assuntos marítimos, como o francês Charcot e os almirantes
norte­-americanos Numm e Morison, descobriu­-se o “segredo de
Colombo”, ou seja, a razão oculta que lhe dava tanta confiança
numa empresa tão incerta. A explicação é simples: não havia
segredo... A excepcional experiência de navegante muito atento às
coisas do mar, calmarias, ventos, correntes, e a coragem de
fertilizá­-la com sua imaginação é que o levaram à certeza de que as
Índias estavam ali do outro lado do Atlântico. E, mais do que isso,
que era factível, com os navios então existentes, não só ir, mas
também vir, tarefa nada óbvia na época de navegação à vela,
quando os elementos, se impelem as naves num sentido, impedem
o regresso no sentido oposto. Sua concepção errada do globo
terrestre, bem menor do que na realidade, também ajudou, pois
seria inconcebível nas caravelas de seu tempo atingir a Ásia sem
escalas: não tinham capacidade de armazenar os alimentos
necessários para uma viagem de 10 mil milhas. É desnecessário,
pois, procurar motivos mais obscuros para explicar a certeza
absoluta do navegante, que o fez, durante quase dez anos, no
período mais produtivo de sua vida, interromper a atividade
marítima, tão importante para ele.
Colombo chegou a Portugal, repitamos, já com a experiência da
navegação do Mediterrâneo; foi, entretanto, nos anos em que viveu
entre os lusos e com eles viajou que adquiriu sua ampla experiência
de navegação pelo mar aberto. As circunstâncias o levarão a fazer
sua viagem descobridora a serviço da Espanha, mas é no conjunto
das navegações atlânticas de Portugal que se deve incluir sua
proeza, como reconhecem autores insuspeitos de parcialidade,
como Morison: “A viagem de Colombo em 1492 [...] foi um resultado
indireto das viagens dos portugueses para o sul, ao longo da costa
oeste africana, e mar afora para a Madeira e os Açores”30.

Na época de Colombo, só os portugueses sabiam navegar no


“mar oceano”, como era conhecido o Atlântico. Tinham desenvolvido
para isso um tipo de navio, a caravela, que enfrentava ventos
desfavoráveis melhor do que os outros e haviam adaptado às
condições do mar os instrumentos necessários às longas jornadas,
como a bússola, que indica direções, e o astrolábio, que serve para
se localizar pelos astros31. E, mais importante do que tudo,
conseguiram formar uma classe de navegantes sem paralelo, em
nenhuma outra nação. Como vimos, Colombo possivelmente esteve
na Islândia e na Guiné, isto é, nos extremos norte e sul do mundo
então conhecido. Em direção oposta fez viagens com os
portugueses aos Açores, situados no extremo oeste do Atlântico
então navegado, e às ilhas dos arquipélagos de Cabo Verde,
Canárias e da Madeira. Nessas navegações, conheceu tudo que os
portugueses sabiam do “mar oceano” e, talvez, com sua
perspicácia, aprendeu coisas novas. Viu que os ventos sopram no
Cabo Verde e nas Canárias em direção ao oeste e que os Açores
ficam bem na faixa das correntes aéreas que, ao contrário, impelem
os navios para o leste. Desvendou os mistérios das correntes
marítimas do Atlântico e bem observou o fenômeno dos ventos
periódicos, como os alísios, desconhecidos pelos navegantes do
Mediterrâneo, onde as correntes aéreas variam de forma não
previsível. Num trecho da carta sobre sua terceira viagem, informa
que “as águas movem como o céu, de este a oeste”32. Ora, que era
isso, se não o reconhecimento do que muito mais tarde se chamou
de corrente do Golfo (Gulf Stream)?

A ser verdade, a história de que D. João II teria mandado uma


caravela dos Açores a descobrir terras no oeste do Atlântico prova
que Colombo superara seus mestres: ele não teria feito isso, porque
já sabia a essa altura que dos Açores poderia voltar à Europa, mas
não, nessa época de navegação à vela, ir à América. As bases de
lançamento de sua expedição só poderiam ser as ilhas do Cabo
Verde (ou das Canárias, navegando com os espanhóis), onde
ventos e correntes empurram os barcos para o Ocidente. De fato,
Colombo não descobriu só a América: identificou também os dois
caminhos básicos de ida e volta, que, por quase quatrocentos anos,
isto é, até a época da navegação a vapor inaugurada no meio do
século XIX, foram usados na ligação entre o Velho e o Novo Mundo.

Estudando a navegação no Atlântico, o Almirante Numm


chegou à conclusão fundamental de que quem sabe navegar nos
três lados do triângulo Açores, Madeira e Canárias (ou Cabo Verde)
conhece as rotas básicas do Atlântico, pois que a orientação de
ventos e correntes marítimas entre os trópicos segue os padrões de
comportamento encontrados nessa microárea. A situação existente
entre os três pontos mencionados foi chamada por Numm de
“sistema do Atlântico”: quem o entende, como fazia Colombo,
domina a navegação entre a Europa e a América.

1.4 A viagem descobridora


Retomemos a cronologia colombiana. Recusada a proposta por
D. João II, Colombo partiu para a Espanha, com seu filho Diego (sua
mulher já havia morrido). Fez a viagem por navio, de maneira
clandestina, talvez porque, nessa época de tanta rivalidade na
península Ibérica, o rei português não quisesse vê­-lo na Espanha.
Não aceitara sua ideia, é verdade, mas não gostaria de que os
espanhóis o fizessem; e se desse certo? Lá, ao contrário de
Portugal, a negociação com os soberanos é conhecida em
pormenores. Encontrou defensores dedicados nos frades Antonio de
Marchena e Juan Perez, do mosteiro franciscano de La Rábida, bem
perto de Palos, onde aportou em 1485, e em nobres influentes,
como o Duque de Medinacelli, que tinha também interesses navais,
e Luiz de Santangel, tesoureiro dos reis. A este, aliás, retribuiu
fartamente depois da viagem de 1492, pois lhe assegurou certa
forma de imortalidade, fazendo­-o destinatário da carta que é o
primeiro documento em que o descobridor revela ao mundo sua
descoberta (mais que o Diário, permeado de termos náuticos, de
cerca de duzentas páginas, a carta, com apenas oito páginas, é
texto típico de divulgação).

Não demora em expor aos reis Fernando e Isabel seu plano.


Uma comissão de entendidos chefiada pelo Bispo de Talavera,
confessor da rainha, é indicada e, após vários adiamentos, dá seu
parecer contrário, em 1487. Uma frase pinçada da recusa, dada a
conhecer alguns anos depois por um de seus membros, diz tudo:
“todos concordaban que era imposible ser verdad lo que el almirante decía”33.
Mas assim mesmo os reis o retêm na Espanha, deixando uma fresta
para suas esperanças. Há quem fale, mais baseado na tradição do
que em documentos, da simpatia que a rainha teria por Colombo,
responsável pela não rejeição definitiva de sua proposta. Ter­-lhe­-ia
aconselhado esperar o final da reconquista da península, nesse
momento já à vista. Havia, na verdade, pontos de convergência
entre os dois personagens: exatamente da mesma idade,
compartilhavam um misticismo exaltado e, lembram pitorescamente
vários autores, a cor ruiva dos cabelos, traço incomum entre os
habitantes de países mediterrâneos. Durante os anos de espera na
Espanha, houve outras juntas, outros adiamentos, outras decisões:
“cosas de España”, como se dizia. A última palavra, de abril de 1492,
sete anos depois de Colombo chegar ao país, foi também negativa.
Tudo parecia perdido.

Dias depois, por causas não muito claras, nas quais o nave-­
gante veria de novo a mão da Providência, os reis, contrariando
pareceres, resolveram concordar com a proposta. Segundo a
tradição, perpetuada em gravuras de livros populares, Colombo, que
já havia partido de Santa Fé, onde estavam os peripatéticos
Fernando e Isabel, foi alcançado por um mensageiro quando,
tristemente montado em seu burrico, atravessava a ponte de Pinos,
longe uns seis quilômetros. Não demora em assinar as chamadas
“Capitulaciones de Santa Fé”, pelas quais os reis lhe proporcionavam
navios, tripulações e o faziam − o que alguns autores indicam como
ponto delicado da negociação − Almirante Maior do Mar Oceano,
Vice­-Rei e Governador­-Geral das terras que descobrisse. Granada
acabava de ser conquistada aos mouros em janeiro, completando
afinal a liberação da península, mas os recursos da Coroa estavam
exauridos. A versão mais divulgada diz que foi a rainha quem
financiou, com a venda de joias pessoais, a grande viagem;
historiadores mais próximos das fontes, sem negar a possibilidade
do gesto, veem em Santangel o motor tanto das capitulações como
do esquema financeiro da viagem.

Em Palos, porto atlântico no sul da Espanha, não longe de


Sevilha, que se tornará em breve a capital da expansão marítima
espanhola, Colombo arma sua modesta frota de três barcos e cerca
de noventa tripulantes, com o concurso de famílias locais de
tradição marítima, principalmente os dois irmãos Pinzón, Martín
Alonso e Vicente Yañes, que comandarão as duas caravelas que,
aliás, eram de propriedade deles: Pinta e Niña. Para si mesmo
reserva o comando geral e segue na nau capitânia, de propriedade
de outro navegante, Juan de la Cosa – hoje mais conhecido como o
autor, em 1500, do primeiro mapa­-múndi com as novas terras
descobertas –, da qual muda o nome, do laico Gallega para o
religioso Santa Maria.

No dia 3 de agosto de 1492, a frota levanta ferros e em seis


dias chega a Gomerra, uma das Canárias, onde ancora durante 28
dias. No dia 6 de setembro, apruma para o oeste, iniciando a mais
célebre das viagens de toda a história. Pelo prazo de 33 longos
dias, deu provas Colombo de uma fortaleza de alma tal, que faz
desse o momento supremo de sua vida: durante o percurso rumo ao
desconhecido, enfrentou resistências, venceu medos, superou
obstáculos. Familiarizado com a cabeça de seus marinheiros,
mantinha dois diários de bordo, anotando diariamente menos milhas
do que as que realmente percorria no que mostrava a seus
comandados: sabia que quanto mais distante do conhecido se
sentissem, mais débeis ficariam as vontades. Correu grandes riscos,
como entrar no mar dos Sargaços – esta assustadora porção do
Atlântico, coberta de vegetação – até então não atravessado por
ninguém.

Las Casas, seu primeiro cronista, não deixa dúvidas sobre a


tenacidade de Colombo. Os homens fraquejam: “Começaram a
reclamar sobre a viagem e sobre quem os colocara nessa
aventura”34; mas, o herói não cede: “O almirante acrescentou que
era inútil reclamar; já que ele tinha decidido navegar para as Índias
e pretendia continuar a viagem até, com o auxílio de Deus, chegar
lá”35. Na madrugada de 12 de outubro, finalmente ouviu­-se da
caravela Pinta, a preferida de Colombo, por ser, como dizia, “la más
velera”, o grito que seus comandados já não mais esperavam, “tierra,
tierra”36, na voz de um tal Rodrigo de Triana, marinheiro
desconhecido que o destino pinçou para a imortalidade, por ter dito
uma palavra.

Colombo chamou a ilha avistada – Guanahani, na língua dos


nativos – de São Salvador;37 tudo era bom, tudo era belo, era a
primeira “visão do paraíso”. As ilhas do mar do Caribe que conheceu
na sua viagem descobridora, formosíssimas hoje, mais ainda o
seriam então. Fala das águas límpidas e tépidas, das praias de
areias brancas, das matas de espécies desconhecidas, floridas e
perfumadas, e, o que era estranho para um europeu, que nunca
perdiam as folhas, conservando­-se sempre verdes “como en Andalucia
en Abril”38. Os “índios”, como chamou Colombo aos habitantes da
terra, num erro que permaneceu, eram mansos, alegres e bonitos. É
curioso como esse tipo de enfoque, quase edênico, sobre as terras
e os homens que emerge do diário de Colombo repete­-se em outras
primitivas descrições da terra, como as cartas de Vespúcio e de
Caminha. O toque de humanidade (de maldade...) é dado por
alguma guerra interna, vista em cicatrizes nos corpos, e pelo
esporádico canibalismo, mais ato de vingança contra o inimigo, para
assimilar suas qualidades bélicas, do que hábito alimentar39, mas
que impressionou muito os recém­-chegados europeus, que sempre
o mencionam em relatos e muitas vezes com suas imagens
decoram os primeiros mapas do continente. As dores da
colonização, de que trataria Las Casas, não tardariam... mas o
primeiro momento foi de prazer.

Vale a pena escutar diretamente Colombo, em trechos do seu


Diário40:

a. No primeiro dia, o contato inicial com os indígenas: “[...] todo


tomaban y daban de aquello que tenían de buena voluntad, más me
pareció que era gente muy pobre de todo. Ellos andan todos desnudos
[...] ninguno vi de edad de más de 30 años, muy bien hechos, de muy
hermosos cuerpos y muy buenas caras, los cabellos gruesos casi como
sedas de caballos y cortos [...]”. (São Salvador, no arquipélago das
Bahamas, 12 de outubro de 1492)

b. A terra é linda, florida, aromática: “la isla, la más hermosa cosa


que yo vi, que si las otras son muy hermosas, ésta es más. Es de
muchos árboles y muy verdes y muy grandes [...] llegando yo aquí a
este cabo (Cabo Hermozo) vino el olor tan bueno y suave de flores y
árboles de la tierra, que era la cosa más dulce del mundo [...]”.
(Fernandina, Bahamas, em 17 de outubro)

c. Logo aparece o que se tornaria a ladainha da colonização − servir


a Deus e ficar rico: “Así que deben Vuestras Altezas determinarse a
los hacer cristianos, que creo que si comienzan, en poco tiempo
acabarán de los haber convertido a nuestra Santa Fé multidumbre de
pueblos [...] sin duda es en estas tierras grandísima suma de oro [...]
y también hay piedras y hay perlas preciosas e infinita especería”.
(Cuba, 12 de novembro)

d. E a boa impressão se mantém até os últimos dias: “Esta gente no


tiene varas ni azagayas ni otras ningunas armas, ni los otros de toda
esta isla, y tengo que es grandísima. [...] y hay muy lindos cuerpos de
mujeres, y ellas las primeras que venían a dar gracias al cielo y traer
cuanto tenían, en especial cosas de comer [...]”. (Haiti, 21 de
dezembro)

Colombo deixou um grupo de 28 homens em Hispaniola (Haiti)


num pequeno forte que construiu com os restos da naufragada Santa
Maria, ao qual chamou La Navidad, e voltou à Espanha, onde
esperava ser recepcionado com todas as honras. Não se
decepcionou. Logo ao desembarcar em Palos, em 15 de março de
1493, oito meses depois da partida, recebeu uma carta dos reis
católicos, cujo envelope já dizia tudo que queria ouvir: destinava­-se
a “Don Cristóbal Colón, Almirante de la Mar Océano, Virrey y Gobernador­-
General de las islas que descubrió en las Indias”. “Sweet words”41, diz
Morison, que conhecia bem o orgulho de seu biografado... Os reis
católicos haviam prometido títulos, honrarias, riquezas e agora
cumpriam sua palavra.

1.5 Outras viagens


Três outras vezes esteve Colombo nas suas “Índias”. Descobriu
mais terras nessas viagens do que qualquer outro navegante de seu
tempo, do passado e do futuro. Na primeira, a descobridora, já havia
conhecido várias ilhas das Bahamas (do espanhol “baja­-mar”) e duas
Grandes Antilhas, Cuba (Joana) e Haiti (Hispaniola). Na segunda,
com uma grande frota de dezessete barcos, entre 25 de setembro
de 1493 e 11 de julho de 1496 (dois anos e dez meses), se não
descobriu as “mil islas”, de que falou aos reis espanhóis, identificou
Dominica, Guadalupe e outras Pequenas Antilhas, Porto Rico e
Jamaica (Santiago); fundou, ademais, Isabela, na costa norte de
Hispaniola, o primeiro núcleo urbano das Américas (alguns anos
depois removido para Santo Domingo, na costa sul). Dessa viagem
já voltou, no entanto, com fama de mau administrador, pelas várias
revoltas havidas em Isabela e pelos resultados econômicos
decepcionantes: nem descobriu ouro, nem encontrou as ricas
cidades do Grão­-Mogol, como prometera.

Na terceira viagem, entre 30 de maio de 1498 e fins de


novembro de 1500 (dois anos e seis meses), com seis barcos42,
avistou a ilha de Trinidad e desembarcou no continente, perto do
delta do Orinoco (na península de Pária, na atual Venezuela), em 5
de agosto de 1498, data que bem poderia ser mais valorizada, pois
é, afinal, a da primeira estada documentada de um europeu na terra
firme do continente americano. Reconheceu que a terra era vasta
pelo volume de água que o rio lançava no oceano e chegou a
escrever: “Eu acredito que esta terra pode ser um grande continente
que permaneceu desconhecido até hoje”43. Não a Ásia (as “Índias”),
de que Cuba, só circum­-navegada em 1508, seria uma península.
Morison tenta explicar a ideia que fazia da terra tocada: “Colombo
acreditava que a terra firme que ele acabava de costear ao longo da
Venezuela tinha a mesma relação com a China e a península Malaia
que a atual República da Indonésia realmente tem”44.

Chegando a Isabela, onde havia deixado seus irmãos, Diego e


Bartolomeu, reassume o Governo. Não encontra as coisas bem e
não consegue melhorá­-las. Sua administração provoca tanta reação
que os reis se convencem de que o magnífico nauta era mau
governador. Depois de muitas queixas e acusações, nomeiam outro,
Francisco Bobadilha, inicialmente com funções predominantemente
jurídicas. Este, mal chegado a terra, no turbilhão de motins, traições
e execuções, que davam a tônica da administração de Colombo,
acaba por prendê­-lo e nesse estado enviá­-lo à Espanha. As
vicissitudes por que passarão o novo Governador e seus
sucessores no século XVI deixam, entretanto, dúvidas se era
realmente possível governar os homens violentos e anárquicos que
a Espanha mandava para suas colônias americanas. Homens que
eram capazes de escrever a seu rei, como Lope de Aguirre, um dos
primeiros navegantes do rio Amazonas: “Yo, rebelde hasta la muerte por
tu ingratitud”45.

Trágica inversão de fortuna: a volta gloriosa da viagem


descobridora, o regresso agora acorrentado! Nessa humilhante
condição desembarca em Cádiz. O comandante do barco que o
trouxe de volta tratou­-o com respeito e se ofereceu para deixá­-lo
livre a bordo, mas Colombo recusou, alegando com típica altivez
que só o rei, em nome de quem fora preso, poderia libertá­-lo. Foi
transportado para Sevilha, tendo sido desacorrentado por ordem
real somente seis semanas depois.

O lado místico de Colombo recebia o sofrimento como um


martírio. Deus o estava provando por meio dos malvados que
pusera em sua frente, como o Governador Bobadilha, de quem
disse: “Corsario nunca tal usó con mercador”46, talvez se lembrando dos
velhos tempos do Mediterrâneo...

Após a terceira viagem, não recuperou mais o Governo das


Índias, nem seu prestígio na Corte, mas ainda conseguiu, depois de
grandes dificuldades, equipar três navios para a última de suas
jornadas, de 9 de maio de 1502 a 7 de novembro de 1504 (dois
anos e seis meses). Seu objetivo nessa navegação, muito
valorizada por ele, que a chamou “alto viaje”, era resolver o intrincado
problema geográfico do Caribe, isto é, a relação das terras
descobertas com o continente asiático. Ou, como coloca Morison,
de maneira mais próxima da mente e das palavras de Colombo:
“encontrar o estreito através do qual Marco Polo havia velejado da
China para o Oceano Índico”47.

Não teve apoio algum do novo governador de Santo Domingo,


Oviedo, e sofreu as agruras de passar longos meses como náufrago
na Jamaica, depois de costear boa parte da América Central,
explorando vários portos à procura da passagem inexistente. Com
grande dificuldade, perdidos seus navios, desertado por muitos,
conseguiu afinal, com vinte companheiros, fretar um barco para
regressar à Europa. Desembarcou pela derradeira vez em Sanlúcar
de Barrameda, na foz do Guadalquivir, aparentando bem mais do
que seus 53 anos, os cabelos totalmente brancos, sofrendo ataques
de gota e de reumatismo, tendo também febres delirantes. “Legacy of
his adventures”48, como diz um de seus biógrafos; e também de suas
desventuras, poder­-se­-ia acrescentar.

Voltou à Espanha sem ter conseguido decifrar o enigma das


ilhas descobertas: a última viagem, na qual pôs tanta esperança, foi
a mais decepcionante. Morreu em Valladolid, cercado de alguns
familiares, evitado pela corte, quase esquecido pelos divulgadores
das descobertas, pouco mais de um ano mais tarde, em 19 de maio
de 1506. Somente íntimos o velaram, e foi enterrado modestamente.
Sua orgulhosa alma não devia estar em paz. Não sabia que
descobrira um continente, que iniciara uma era49, que era espreitado
de perto pela glória: não a que passa, mas a que lança ferros na
história.

1.6 O mundo de Colombo (vide Mapa 1)


Colombo era um navegador interessado em cartas geográficas,
tendo ele mesmo desenhado algumas. Seguramente conhecia os
mapas­-múndi da Europa medieval, os chamados mapas de roda
(wheel maps)50, que apresentavam a terra como um círculo, com
Jerusalém no centro; mas sabia que estes já não serviam para
navegar no “mar oceano”. As cartas que a navegação atlântica
agora requeria eram portuguesas e derivavam dos antigos
portolanos, os mapas que indicavam as rotas entre portos do
Mediterrâneo, na verdade os primeiros mapas náuticos da história.

A Terra era esférica, não tinha dúvidas quanto a isso, embora


subestimasse suas dimensões e acreditasse que na outra margem
do Atlântico estava a Ásia ou, como se dizia em seu tempo, “as
Índias”. O mais antigo globo hoje existente, o de Martin Behaim, que
morou em Portugal na época em que Colombo lá residia (está
exposto no Museu Nacional Germânico, em Nuremberg), é de 1492,
isto é, exatamente do ano da descoberta e proporciona uma ótima
ideia da maneira como Colombo e seus contemporâneos
imaginavam o mundo: a Terra é um quarto menor do que a
realidade, e na outra margem do “mar oceano” está a massa
continental “das Índias” (vaga expressão para designar o Oriente;
provém de “indo”, do sânscrito “sindhu”, “rio”); voltada para a
Europa, “Cataio” (a China), e na frente desta, a ilha de “Cipango” (“o
país do sol nascente”, em chinês). Se se pusesse a rota da viagem
descobridora de Colombo nesse globo, ela tocaria exatamente em
Cipango, seu objetivo inicial. Como avistou inicialmente uma
pequena ilha habitada por indígenas de tipo físico asiático e, depois,
viu que a região abundava de ilhas, como mostravam os mapas de
então, não teve dúvidas de que estava próximo do Oceano Índico.

Tudo podia passar pela cabeça de Colombo, um imaginoso


num tempo de geografia fantasiosa, menos que havia um enorme
continente impedindo a comunicação marítima entre a Europa e a
Ásia. Nem antes, nem, o que pode surpreender, depois de suas
viagens americanas. Em 1504, em carta escrita na Jamaica, durante
sua quarta prolongada estada pelas terras do Caribe, quando
ninguém melhor que ele conhecia o mundo que estava revelando­-
se, descreve ainda certa região que deveria estar a uns dez dias de
caminhada do... rio Ganges. E nessa época já havia quem falasse
de um “novo mundo” que não tinha nada a ver com a Ásia, como o
historiador espanhol Pedro Martyr, em trabalho de 1497, ou o
navegador Américo Vespúcio, na carta em que descreve a viagem
de 1501­-1502 ao Brasil. Na Espanha − para não falar em Portugal −
começavam a ficar numerosos os que desconfiavam de que as
“Índias” de Colombo não deviam ser as Índias de verdade.

A viagem de Vasco da Gama, terminada em 1498, parece a


nós, hoje, não poderia deixar dúvidas disso, mas Colombo não
pensava assim: persistia nos rumos, o que se revelou virtude na
viagem descobridora, mas agora era vício que o impedia de ver a
realidade. É curioso observar que a descoberta de Colombo mudou
radicalmente as ideias que os homens faziam do mundo, mas não
as dele. Até o final, acreditou que chegara a uma região de
arquipélagos que não ficaria longe de Cipango e das grandes
cidades de Cataio; havia uma grande tierra firme ao sul (a Venezuela
em mapas do século XVI tem frequentemente essa denominação)
que parecia ser um continente desconhecido. Chegou a escrever
aos reis: “Vuestras Altezas tienen acá un otro mundo”51. Deduziu isso da
quantidade de água de uma das bocas do Orinoco, mas, misturando
tipicamente experiência e fantasia, achou que esse rio fluía do
paraíso terrestre. Seguramente faltava encontrar poucas peças,
pensava, para montar o grandioso quebra­-cabeça geográfico. A sua
quarta viagem, como vimos, foi imaginada para completá­-lo. Tocou
em vários pontos da América Central e procurou em vão a
passagem para a região descrita por Marco Polo. Deve ter feito
algumas “entradas” (aqui também teria sido precursor), mas não
trilhou os 80 quilômetros que, no atual Panamá, perto do golfo de
Darién, levariam Balboa, em 1513, a finalmente avistar o que
chamou “Mar del Sur”. Morreu sem decifrar a esfinge que achou...

Não era o único, entretanto, que não tinha ideias claras sobre
onde encaixar no globo as terras cujas descobertas iam­-se
sucedendo. Durante vários anos, conviveram a noção correta de
que as ilhas e a terra firme descobertas por Colombo e outros
navegadores eram parte de um novo continente, situado entre a
Europa e a Ásia, e a noção errada de que essas terras eram
asiáticas.

Há alguns mapas muito curiosos das primeiras décadas do


século XVI que ligam a América do Sul à China, por um estreito que
poderia ser tanto a América Central como a península malaia; a
América do Norte, mal conhecida então, fundia­-se com a China.
Estudiosos de hoje chamam essa curiosidade cartográfica de
“cauda do dragão chinês”52. O conhecido Globo de Mármore de
Gotha, feito no tardio ano de 1533, isto é, mais de uma década
depois da circum­-navegação de Fernando de Magalhães/Sebastião
de Elcano, que afinal decifrou a esfinge, mostra nitidamente a
América do Sul como um grande apêndice da Ásia.

Uma palavra, agora, sobre a personalidade de Colombo: era


um homem mais dos tempos medievais ou era já um renascentista?
Profundamente religioso, como os marinheiros de então (enfrentar o
“mar tenebroso”, como era também conhecido o Atlântico, naquelas
frágeis embarcações, realmente só com a ajuda superior...), as
ideias de ser um cruzado, de levar o Deus verdadeiro aos pagãos,
não o abandonavam nunca; nem as ilusões − outro traço medieval −
de haver um paraíso terrestre, que imaginou, em certa ocasião,
estar nas cabeceiras do grande rio cuja foz conheceu na Península
de Pária (Orinoco). Ao se aproximar do fim da vida, é Morison quem
nota, suas cartas vão adquirindo cada vez mais o grave tom bíblico.
A que escreveu aos soberanos espanhóis da Jamaica, quando da
quarta viagem, contando sobre suas explorações, os perigos por
que passara, as vozes do alto que escutava, parece saída da pena
de um daqueles varões sombrios e cheios de Deus que habitam
certas páginas do Velho Testamento: “He llorado hasta aquí a otros: haya
misericordia ágora en el cielo y llore por mí la tierra”53. Vimos, também, em
itens anteriores, que sua personalidade tinha ângulos
renascentistas, como o interesse pelos clássicos – manifesto, mas
exclusivamente voltado aos assuntos de seu interesse – e,
principalmente, a propensão para observar os fenômenos da
natureza. O grande navegante era, pois, um típico homem de
transição entre duas épocas.
Capítulo II
O Tratado de Tordesilhas
Within a few decades [entre o contorno da África por Bartolomeu Dias, 1487, e a
circum­-navegação da Terra por Fernão de Magalhães, 1519] the European World
concept would be transformed. The dominant Island of Earth, a connected body of
land comprising six sevenths of the surface, was displaced by a dominant Ocean of
Earth, a connected body of water comprising two thirds of the surface. Never
before had the arena of the human experience been so suddenly or so drastically
revised. (Daniel Boorstin, The Discoverers.)

2.1 Rivalidades ibéricas (vide Mapa 2)


Colombo conhecia bem as pendências luso­-hispânicas: basta
recordar que tinha vivido em Portugal durante a guerra peninsular
(1475­-1479) terminada com a paz de Alcáçovas. Ao voltar de sua
viagem descobridora, viu na prática como elas se refletiam na
disputa pela posse das terras descobertas. Batido por tempestades,
foi obrigado a aportar em Lisboa, antes de regressar a Palos. D.
João II estava em um mosteiro a cerca de 50 quilômetros da capital
e lá recebeu o navegante, que se fazia acompanhar por alguns
indígenas. Há várias versões da entrevista, que seguramente foi
tensa: o rei tinha razões para estar amargamente arrependido por
não ter dado crédito a Colombo; e o orgulho deste certamente o
levaria a se vangloriar perante o poderoso monarca, que não
confiara em seu plano.

Rui de Pina, que nesse mesmo ano seria nomeado Embaixador


para negociar na corte espanhola um tratado que solucionasse os
problemas criados pela nova descoberta, assim descreve a
entrevista:

Em 1493, estando El­-Rei no lugar de Vale do Paraíso [...] a seis de Março, arribou
ao Restelo em Lisboa, Cristóvão Colombo, italiano, que vinha do descobrimento
das ilhas de Cipango e Antilha, que por mandato dos Reis de Castela tinha feito, da
qual terra trazia consigo as primeiras mostras de gente, ouro e algumas coisas que
nelas havia. E sendo El­-Rei logo avisado, o mandou ir ante si e [...] [afirmou] que o
dito [descobrimento] era feito dentro dos mares e termos de seu senhorio da Guiné
[...] [o] Almirante, por ser de condição um pouco alevantado e no recontamento das
suas coisas excedia sempre os termos da verdade, fez esta coisa em ouro e prata e
riquezas muito maior do que era [...] E conquanto El­-Rei foi cometido
[aconselhado] que houvesse por bem de ali o matarem, porque com sua morte o
prosseguimento desta empresa [...] dos Reis de Castela, por falecimento do
descobridor, se acabaria; e que se poderia fazer sem suspeita do seu consentimento
[...] Mas El­-Rei, como era príncipe muito temente a Deus, não somente o defendeu,
mas antes lhe fez honra e mercê [...]54.

O que é importante reter é que D. João II deixou bem claro ao


navegador genovês que considerava serem portuguesas as terras
recém­-descobertas: estavam nos “mares e termos do seu senhorio
da Guiné”. Baseava sua afirmação em várias bulas papais e, em
particular, no Tratado de Alcáçovas, de 1479, pelo qual Portugal
desistia das Canárias mas, em compensação, passava a ter direitos
sobre qualquer terra descoberta ao sul desse arquipélago.

Na realidade, os textos das bulas eram menos precisos do que


desejaria Portugal, e o alcance do acordo, discutível, pois fora
negociado para resolver problemas de posse sobre ilhas próximas
da África e o litoral desse continente ao sul do cabo Bojador, a então
chamada costa da Guiné. Nele se diz que os reis católicos “no
turbarán, molestarán, ni inquietarán” a posse portuguesa da Guiné e de
várias ilhas, que nomeia, “y qualesquier otras yslas que se fallaren o
conquierieren de las yslas de Canárias para bajo contra Guinea”55.
Convenhamos que considerar as ilhas do Caribe, aonde havia
chegado Colombo, situadas “de Canárias para bajo contra Guinea”
(ao sul das Canárias, próximas da África) é forçar o espírito e a letra
do acordo.

A posição do rei português, mais que a expressão de uma


certeza íntima, era na verdade um recado para ser levado aos
patrões do navegador, “los Reyes Católicos”. E para aumentar a
credibilidade de suas palavras, D. João II tomou providências para
armar uma frota com a finalidade de explorar a região das terras
descobertas por Colombo. Dessa frota nada se sabe, afora o nome
do comandante, D. Francisco de Almeida, personagem da alta
nobreza, em breve o primeiro Vice­-Rei da Índia; mas a simples
notícia de que os portugueses a estavam preparando, que circulou
na Corte espanhola, fortaleceu a posição do Governo português nas
negociações diplomáticas subsequentes.

Nesse ano de 1493, não era mais privilegiada, como tinha sido
em passado recente (pontificados de Sisto IV e Inocêncio VIII), a
situação de Portugal na Santa Sé, que, no início da Idade Moderna,
ainda conservava o papel de árbitro, de que desfrutara entre os
povos da Europa medieval. Desde o ano anterior, era Papa, sob o
nome de Alexandre VI, o cardeal aragonês Rodrigo Bórgia, muito
mais conhecido pelo desregramento de sua conduta privada e pela
má fama de seus filhos Lucrécia e César (o modelo principal de O
príncipe, de Maquiavel) do que pelas virtudes de arguto
administrador dos Estados Pontifícios, apenas recentemente
admitidas.

Sem dúvida, Alexandre VI favoreceu os espanhóis. Motivos não


lhe faltavam: seus conterrâneos Fernando e Isabel (a rigor só
Fernando era aragonês) tinham sido responsáveis pela sua eleição
e lhe davam apoio militar, nessa época de agitações, em que estava
ocorrendo a primeira das várias invasões francesas na península
itálica. Poderia o Papa também alegar a necessidade de uma
política equilibrada do papado. Afinal, desde a conquista de Ceuta
pelo Infante D. Henrique, em 1415, até quase o término do reinado
de D. João II, sucessivos pontífices emitiram bulas do interesse dos
portugueses. Agora o momento era de beneficiar o outro reino
católico da península Ibérica, que só então completava a expulsão
dos mouros de seu território, ficando, portanto, mais disponível para
as gestas dos grandes descobrimentos.

Sem perda de tempo, no próprio ano em que Colombo


regressou de sua primeira viagem, Alexandre VI publicou as bulas
Eximiae Devotionis e Inter Caetera, que asseguravam à Espanha a
posse das terras descobertas. Por uma terceira bula, de 4 de maio,
também iniciada pelas palavras Inter Caetera e conhecida por “bula
da partição”, o Papa distinguiu as possessões da Espanha das de
Portugal, traçando a divisa pelo meridiano que passa 100 léguas a
oeste dos Açores e Cabo Verde. Por essa bula, certamente
inspirada pelos monarcas espanhóis, que se louvavam aqui nos
conhecimentos teóricos e práticos de Colombo, a América seria
integralmente da Espanha. Alexandre VI emitiu duas outras bulas
(mais uma Eximiae Devotionis e Dudum Siquidem), ainda em 1493,
confirmando à Espanha a posse das terras e ilhas caribenhas, que
então não se imaginava fazerem parte de um novo continente. Aqui
caberia uma pergunta. Tendo os espanhóis descoberto e ocupado
estas e havendo em suas leis (Siete Partitas) ecos do velho princípio
do Direito Romano de que a base da propriedade era a ocupação
primeira, por que as bulas? O historiador inglês J. H. Eliott explica
com clareza: “[...] a autorização papal atribuía um grau extra de
segurança às reivindicações castelhanas contra qualquer desafio
contestador por parte dos portugueses e elevava a conquista das
Índias ao nível de empreendimento sagrado [...]”56.

2.2 Negociações
Embora favorecida pelas bulas de Alexandre VI, a Espanha,
com sérios problemas na Itália e apenas recentemente unificada,
não queria correr os riscos de uma nova guerra com Portugal.
Resolveu transigir com o adversário tradicional e chegou a um
acordo que a deixava em posição menos vantajosa do que aquela
prevista pela bula da partição. As negociações foram completadas
em 7 de junho de 1494, na cidade de Tordesilhas, e o tratado, que
tinha o título pomposo de “Capitulação da Partição do Mar Oceano”,
acabou sendo conhecido pelo nome desse burgo fronteiriço de
tantas tradições na turbulenta história de Castela. Ratificado pela
Santa Sé em 1506, pela bula Ea quae pro bono pacis, seu parágrafo
essencial dividia as possessões ibéricas no Atlântico pelo meridiano
que passa 370 léguas a oeste do arquipélago do Cabo Verde: as
terras a leste seriam de Portugal; a oeste, da Espanha.

Por motivos diversos, ambas as partes contratantes ficaram


satisfeitas com a conclusão das negociações. A Espanha acreditava
que Colombo descobrira um caminho melhor para as Índias. Em
janeiro de 1494, os reis católicos haviam recebido correspondência
do genovês, então em sua segunda viagem à América, muito
animadora quanto às riquezas potenciais das ilhas descobertas: “[...]
las cosas de especería en solos las orillas del mar, sin haber entrado en tierra, se
halla rastro y principios della, que es razón que esperen [...] minas de oro [...]”57.
Os monarcas podiam estar tranquilos: ouro e especiarias eram as
provas de que seus navios haviam realmente chegado às Índias... O
Tratado de Tordesilhas dava, ademais, importante personalidade
internacional à Espanha, nesse momento em que estava ainda se
consolidando como Estado: afinal, colocava­-a ao lado da primeira
nação navegante da época, Portugal, na divisão do mundo que
estava sendo descoberto. E, depois, o que estava a Espanha
cedendo a Portugal? Nada mais, pensavam seus negociadores
(como também pensavam eruditos como Toscanelli ou geógrafos
como Behaim), do que uma zona marítima onde poderia haver
algumas ilhas.

Quanto a Portugal, embora nas negociações iniciais tivesse


preferido o paralelo traçado na altura das Canárias para dividir o
Atlântico, a aceitação de um meridiano, como queriam os
espanhóis, mas no número de léguas então acordado, garantiu­-lhe
tudo o que poderia razoavelmente almejar: o principal, que era o
caminho verdadeiro das Índias, já pressentido com as sucessivas
descobertas cada vez mais ao sul da costa africana; e o secundário,
que era uma boa porção das terras brasileiras de cuja existência já
teria indícios.

O paralelo das Canárias, proposto por Portugal, parece hoje


uma posição negociadora excessiva. Por ele, o país passaria a ser
possuidor de todas as zonas tropicais do universo: não só a África e
o caminho verdadeiro das Índias, mas também a região que estava
sendo descoberta por Colombo ficaria sob a soberania lusa. No
futuro, faria serem igualmente portuguesas a América do Sul, a
América Central e boa parte da América do Norte (a totalidade do
México), já que o paralelo corta a Flórida. E isso sem falar no outro
lado do mundo, onde, prolongando o paralelo, Portugal teria papel
protagônico na área que mais interessava então aos europeus: a
Índia, a China e as ilhas produtoras de especiarias.

Jaime Cortesão lembra, com razão, que os negociadores


portugueses já em 1494 não acreditavam no que Colombo e os
espanhóis então criam piamente, isto é, que tinham encontrado um
caminho mais curto para o Oriente. Se o fizessem, não teriam
assinado o Tratado, pois que isso significaria “o absurdo de que o
monarca [português] tivesse desistido do projeto tão longamente
ambicionado e amadurecido, verdadeiro fulcro da política nacional,
de alcançar o Oriente e monopolizar seu comércio”58.

Vasco da Gama, chegando a Calecute, em 1498, e Pedro


Álvares Cabral, descobrindo o Brasil, em 1500, confirmaram o
acerto da posição diplomática de Portugal em 1494 e
consequentemente o erro da Espanha. A frustração deste país
durou, entretanto, pouco. Verificado que havia um continente no
meio do Atlântico, viu­-se logo a imensidão das terras que
pertenciam à Espanha e a riqueza dos impérios asteca (1514) e inca
(1528) nelas contidos, sem falar na montanha de prata de Potosí
(1545), cedo descoberta. Benefícios bem recebidos, ainda mais
porque imprevistos...

2.3 A fronteira indemarcável


O Tratado de Tordesilhas, “a peça mais importante da nossa
história diplomática”59, na expressão de Capistrano de Abreu, “o
primeiro ato relevante da diplomacia moderna, porque negociando
entre Estados, e não, como era normal na Idade Média, decidido
pelo Papa”60, como diz um estudioso de nossos dias, tem dado
margem a muita discussão. Em primeiro lugar, por que 370 léguas?
Por que não um número redondo, 300 ou 400 léguas? Alguns
especialistas lembram que essa longitude representaria mais ou
menos o meio do oceano Atlântico; na verdade, o centro da
distância entre Portugal e o golfo do México. O acordo teria, então, o
objetivo de fazer uma partilha equitativa do mundo que estava
sendo descoberto.

Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, fala da crença,


popular ainda no tempo de Cervantes, de que a raia de demarcação
de 1494, entre os domínios de Castela e Portugal, constituía não só
uma fronteira meteorológica, pois “os tormentosos ventos que
sopravam na Europa cediam ali a uma amena viração”61, mas
também uma fronteira entomológica: “Isentas de monstros
façanhudos e temíveis [...] e de insetos imundos [...]”62, seriam as
águas e terras a oeste da fronteira. Só não explica o autor por que,
segundo a mesma crença, teria Portugal aceitado ficar com o lado
leste, imundo e façanhudo...

O aspecto mais interessante para a História do Brasil é aquele


indicado pelos historiadores que veem, na fixação das 370 léguas, a
prova de que Portugal conhecia a existência de terras a leste do
meridiano que por ali passa. A hipótese, sem dúvida possível, não
foi até hoje cabalmente confirmada, embora tenha sempre
partidários, a partir de Joaquim Norberto de Souza Silva, o criador,
no século XIX, da chamada “teoria da intencionalidade” do
descobrimento do Brasil. Vários historiadores portugueses
contemporâneos, Joaquim Bensaúde à frente, continuam a achar
que D. João II tinha conhecimento da existência do Brasil antes de
Tordesilhas. Outros, contrários à tese, esgrimam com um argumento
forte: que vantagem haveria no silêncio do monarca, se o que
legitimava a posse era a prioridade do descobrimento? Voltaremos
ao tema. Por agora digamos que é plenamente defensável a tese
menos drástica de que os portugueses, em 1494, teriam indícios da
existência de terras na sua parte da divisão. Além disso, já saberiam
que para contornar a África era mais fácil afastar­-se bastante das
calmarias do golfo da Guiné, isto é, precisava­-se de espaço para dar
a “volta larga”, de que se falaria mais tarde, quando a carreira da
Índia fosse uma rotina anual.

Para justificar a assinatura do Tratado de Tordesilhas, é muito


difundida a ideia de que, ao dividir­-se o mundo em dois hemisférios,
a Espanha cedia no Atlântico e ganhava no outro lado, onde havia
riquezas comprovadas. Mas a ideia de divisão do mundo é a rigor
anacrônica, embora encontrada em autores de peso, como
Capistrano de Abreu e José Hermano Saraiva. A verdade é que o
tratado foi concebido exclusivamente para o Atlântico, o “mar
oceano”, como então se chamava, pois o Pacífico não existia para
os europeus daquela época. Só anos depois de sua assinatura, com
o estabelecimento dos portugueses e espanhóis no Oriente, é que o
antimeridiano de Tordesilhas passou a ser considerado também o
divisor das terras nas “Índias”, região que, durante o século XVI, tem
muito mais importância para Portugal do que o Brasil. Em 1529, pela
chamada Escritura de Saragoça, estabeleceu­-se que Carlos V cedia a
D. João III, por 350 mil ducados, os direitos que pretendia ter sobre
as Molucas e se estabelecia que a linha divisória entre as duas
nações coloniais seria o antimeridiano que passava a 17º a oriente
das referidas ilhas.

Alexandre de Gusmão, o diplomata que dois séculos e meio


depois arquitetaria o Tratado de Madri, o segundo grande marco da
História da Formação das Fronteiras do Brasil, assim se expressa a
respeito, com a clareza que caracteriza os documentos que dele
conhecemos:

[...] quando se fez esse tratado [Tordesilhas], não se regula aí expressamente a


divisão no lado oposto ao do meridiano estabelecido. Alguns anos depois,
entretanto, os aventureiros das duas partes tendo chegado aqui e ali e a viagem de
Fernão de Magalhães tendo revelado a existência dos antípodas, foi preciso fazer­-
se a divisão da outra face da Terra. Sem contestação, chegou­-se ao consenso de que
a divisão desse lado deveria ser feita pelo meridiano oposto àquele que o Tratado de
Tordesilhas tinha estabelecido em nosso hemisfério63.

Mesmo reconhecendo que foi concebido exclusivamente para o


Atlântico, não há dúvida de que o Tratado era impreciso. Primeiro,
porque fala em léguas, sem especificar o tipo de légua, sabendo­-se
que havia vários no século XV. Depois − este o carro­-chefe dos
livros de História −, porque não indica a partir de qual ilha do
arquipélago do Cabo Verde deveria iniciar­-se a contagem das 370
léguas. Ora, da ilha mais ocidental à mais oriental, a diferença é de
três graus de longitude, cerca de 330 quilômetros.

Na verdade, se o tratado fosse completado por outro, que


precisasse o comprimento da légua adotada e a ilha donde se
iniciasse a marcação das distâncias, ele continuaria indemarcável
pelo simples fato de que, naqueles tempos, não se conhecia o
processo de calcular longitudes com exatidão, que só seria
descoberto, aliás, mais de duzentos anos depois, já no século XVIII.
O que os europeus faziam no século XVI era o que foi chamado de
“navegação das latitudes”, pela qual localizavam bem as terras
situadas ao norte e ao sul, mas não a leste ou a oeste. É esta a
razão por que é comum encontrar­-se em mapas antigos uma
mesma ilha, colocada na latitude correta, mas em longitudes
diferentes, o que a transformava, às vezes, num arquipélago
estendido na direção leste­-oeste. Nossa ilha de Trindade, por
exemplo, tem essa forma em alguns mapas dos séculos XVI e XVII.

Mas, então, com todas essas dúvidas e imprecisões, em que


ficamos com a famosa linha de Tordesilhas, traçada em tantos
mapas, que geralmente liga Laguna, em Santa Catarina, a Belém do
Pará? Ficamos em que se trata − essa reta, nessa longitude − de
uma simples escolha: pressupõe a adoção da milha marítima de
1.852 metros e o início da contagem a partir da ilha de Flores, a
mais a oeste do arquipélago. Há outras. O historiador Jaime
Cortesão, por exemplo, com sua autoridade adicional de cartólogo,
prefere um meridiano mais a leste, o que vai da baía de Maracanã,
não longe de Bragança, no Pará, até Iguape, no litoral de São
Paulo. Na realidade, os mapas antigos apresentavam divergências
ainda maiores. Se compararmos o célebre Mapa de Cantino, de 1502,
o primeiro que traz a costa do Brasil recém­-descoberta por Cabral,
com o de Diogo Ribeiro, de 1529, considerado o monumento
máximo da cartografia portuguesa, veremos que o primeiro coloca a
linha das 370 léguas, a 42º30’ de longitude, isto é, não muito
distante de onde está a cidade de Teresina, enquanto o segundo o
faz a 49º40’, isto é, mais ou menos no centro da ilha de Marajó. A
distância entre esses dois meridianos, no equador, é superior a 800
km.

Finalizando essas considerações sobre Tordesilhas, há outro


ponto que é necessário mencionar, porque está presente, se não no
texto, na circunstância deste Tratado, como, aliás, igualmente o está
nos dois outros que com ele se relacionam, também versando sobre
a repartição das terras descobertas, o anterior, de Alcáçovas, de
1479, e o posterior, de Saragoça, de 1528. Trata­-se dos casamentos
reais entre as casas de Madri e de Lisboa, que permeiam toda a
história das relações luso­-espanholas e quase sempre objetivavam
uma futura unificação peninsular (havida, aliás, entre 1580 e 1640).
Agora, em Tordesilhas, cuidava­-se de acertar o matrimônio da
Infanta D. Isabel, viúva do Príncipe D. Afonso (herdeiro de D. João II
e morto em 1491 num acidente equestre), com o futuro D. Manuel. A
corte de Castela e boa parte da nobreza portuguesa temiam que D.
João II quisesse impor, como sucessor, o filho natural D. Jorge, em
detrimento do novo herdeiro legítimo, seu primo e cunhado, o então
Duque da Beja. Este, como queriam os espanhóis, subiu ao trono
em 1495 e se casou com Dona Isabel em 1497. É, pois, neste
ambiente não só de rivalidades marítimas, mas também de
interesses dinásticos, que se inserem as negociações de
Tordesilhas64.
Capítulo III
Relatos de Vespúcio
Gracias te sean dadas, Señor, que me permites contemplar algo nuevo. (Atribuído
a Ponce de León, ao descobrir a Flórida.)

3.1 Espanhóis na costa norte


Em sua terceira viagem à América, Colombo poderia ter
descoberto a foz do Amazonas, se tivesse continuado por mais
quatro dias no rumo sudoeste que já seguia desde Cabo Verde.
Decepcionado, entretanto, por não ver terras onde esperava, decidiu
aproar para o oeste, passando de uma direção que o levaria de
encontro ao continente, a outra, oblíqua em relação à linha da costa.
Navegou quinze dias mais, em crescente frustração, até que
desistiu e resolveu aproar para o norte, rumo a Dominica. Horas
depois, viu uma ilha com três picos, a que, muito a propósito, deu o
nome de Trinidad; costeou­-a pelo sul, e, afinal, avistou a terra firme
onde desembarcou. A data era 5 de agosto de 1498 e o local era a
península de Pária, não longe do delta do Orinoco. As pérolas que
viu em alguns nativos confirmaram sua impressão de que
desembarcara em algum lugar perto das Índias. E seu misticismo
fez que escrevesse mais tarde que não deveria estar longe do
jardim do Éden, pois seguramente o rio que vira era um dos quatro
aí existentes. Logo rumou para Cuba, identificada pelo navegante
como uma península continental da Ásia. Outros navegantes,
também a serviço da Espanha, é que foram, pouco a pouco,
conhecendo os acidentes geográficos da terra firme situada ao sul
das Antilhas.

É facilmente compreensível a primazia espanhola em revelar o


litoral norte da América do Sul, afinal, o prolongamento atlântico do
contorno terrestre do mar do Caribe. Como também é perceptível,
sem dificuldade, que o caminho dos portugueses, o do sul, pela
Guiné, como se dizia, acabaria levando­-os à costa leste do Brasil;
principalmente após Vasco da Gama ter certificado que a boa rota
para o contorno do cabo da Boa Esperança afastava­-se bastante da
costa africana, com a finalidade de evitar as calmarias do golfo da
Guiné. O historiador inglês Edgard Prestage adianta, ademais, a
ideia plena de bom senso de que os portugueses deveriam estar
procurando terras na sua parte da divisão das Tordesilhas.

No estágio atual dos conhecimentos, parece à maioria dos


autores provado que além da de Colombo, três outras pequenas
frotas de bandeira espanhola tocaram o norte da América do Sul,
antes de 22 de abril de 1500, isto é, antes de Cabral chegar a Porto
Seguro: a de Alonso de Ojeda, a de Vicente Yañes Pinzón e a de
Diego de Leppe. Os dois últimos teriam margeado a costa norte do
Brasil desde o cabo a que Pinzón chamou, em janeiro de 1500,
“Santa Maria de la Consolación”, geralmente identificado como o cabo
de Santo Agostinho, em Pernambuco65, até pelo menos o Amapá.
Durante esta navegação viu uma faixa de areia que adentrava no
mar, a qual chamou “Rostro Hermoso”, que alguns especialistas, hoje,
identificam com a ponta de Jericoacoara no Ceará. Esse navegante,
comandante da Pinta na viagem descobridora, explorou o delta
amazônico e foi o primeiro a subir dezenas de quilômetros o rio
Amazonas, ao qual deu o eufônico nome de “Santa Maria de la Mar
Dulce”. Sobre a viagem de Leppe, pouco se sabe, a não ser que sua
frota navegou quase na esteira da de Pinzón, um mês depois.

Ojeda, cronologicamente o primeiro dos três a ver o litoral norte


da América do Sul, é personagem não tão conhecido, mas nada
opaco. Sempre teve amigos poderosos e já aos 22 anos era capitão
de uma das caravelas da segunda viagem de Colombo. Pouco
depois, com a ajuda do bispo Fonseca, que já se havia então
tornado o principal responsável pelas viagens espanholas,
conseguiu armar uma frota que se propunha a descobrir mais terras
e a explorar a “costa das pérolas”, recém­-identificada pelo genovês.
Tocou o continente em 1499, inicialmente na altura das Guianas, e o
foi costeando para oeste, pela região a que deu o nome de
Venezuela, isto é, pequena Veneza, por ter visto um povoado
indígena construído sobre palafitas. Percorreu depois várias ilhas
das Caraíbas e em todos os lugares tratou os nativos com
crueldade: o primeiro ponto da mancha negra da conquista.
Pretendia achar ouro e pérolas; o que fez foi escravizar e matar
índios, atacar e destruir aldeias. Inteligente, corajoso e ambicioso,
foi visto por Morison, que, aliás, admira sua atividade incessante,
como um “merry devil”66, o que talvez seja um julgamento mais
favorável do que o de Las Casas, que, quatrocentos anos antes,
pensando em sua violência, decretou: “não tivesse ele nascido, o
mundo não teria perdido nada”67. Com Ojeda vieram dois
navegantes que ofuscariam sua memória: o piloto e cartógrafo Juan
de la Cosa, autor do primeiro mapa em que aparecem as
descobertas de Colombo e seus imediatos seguidores; e,
principalmente, um certo comerciante florentino, que em barco
independente teria percorrido toda a costa norte do Brasil, o qual
bem merece alguns parágrafos...

3.2 O enigma das cartas


Entra em cena Américo Vespúcio, o mais controvertido
personagem do período das grandes descobertas. As opiniões
sobre o valor de seus feitos vão de um polo a outro, como se vê
pelas seguintes citações de historiadores de renome. A do francês
H. Vignaud é francamente favorável:

Seu mérito [...] está na segurança do julgamento, no conhecimento da geografia


antiga que lhe fizeram ver e lhe permitiram afirmar em primeira mão que o mundo
descoberto por Colombo era um mundo inteiramente distinto da Ásia. Esta visão
genial coloca­-o acima de todos os navegadores de seu tempo68.

Para o inglês Clement Markam, o florentino era apenas um


comerciante especializado em carnes, um “beef contractor”, em sua
divulgada expressão. Já a opinião do americano Ralph Waldo
Emerson é pesadamente ofensiva: “Estranha coisa que a grande
América deva levar o nome de um ladrão [...] que partiu em 1499
como subalterno de Ojeda [...] intrigou neste baixo mundo para
suplantar Colombo e batizar a metade da Terra com seu próprio
desonesto nome”69.

Tudo já se disse também sobre as famosas epístolas que


divulgaram na Europa as terras e a gente do Novo Mundo. Até os
defensores mais extremados de sua importância documental, como
o historiador argentino Roberto Levellier, que acreditava na
autenticidade básica de todas as cartas de Vespúcio em seu tempo
conhecidas, reconhecem que nada há no conjunto que não seja
questionado: “Todo en ellas se ha controvertido: su origen, su autenticidad,
sus fechas, la certeza de los viajes que describen, los recorridos supuestos y la
identificación de los destinatarios. Y las divergencias, lejos de reducirse en tan
variados exámenes, no han echo sino crecer”70.

“De famiglia fiorentina [...] conspícua e potente”71, nas palavras


de Rambaldi, ao contrário de muitos outros navegantes, de sua
época, “de condição social extremamente baixa”72, como lembra o
Professor Charles Boxer, Vespúcio teve ademais a sorte de nascer e
viver em Florença na época em que a cidade era um dos grandes
centros culturais do mundo. Basta dizer que eram seus
contemporâneos Botticelli, Leonardo da Vinci, Michelangelo e
Maquiavel. Em 1491, aos 37 anos, foi para Sevilha trabalhar numa
agência do banco dos irmãos Lorenzo e Giovanni di Pier Francesco
dei Medici (primos de Lorenzo, o Magnífico), que se ocupava
também de suprimentos marítimos. Nessa função, ajudou a equipar
a primeira frota de Colombo, que o considera, aliás, um amigo e até
– que ilusão! – um maltratado da sorte: “El siempre tuvo deseo de me
hacer placer: es mucho hombre de bien: la fortuna le ha sido contraria, como a
muchos [...]”73.

Deve ter­-se envolvido progressivamente nas viagens às


“Índias”, que estavam atraindo mais e mais navegantes, para
desespero de Colombo. Tornou­-se um entendido em cartografia e
nos processos de medir distância pelos astros e participou,
pessoalmente, de pelo menos duas expedições, talvez porque sua
empresa financiasse parte delas, talvez porque seus conhecimentos
específicos o fizessem um tripulante disputado, como indica o
convite recebido do rei Dom Manuel, para que viajasse com os
portugueses.

O que se sabe das viagens de Vespúcio é pouco mais do que


ele mesmo diz em suas cartas; e aqui o “imbróglio” é grande e
antigo. Vejamos o problema. São duas as cartas cuja publicação,
entre 1503 e 1506, trouxe ao florentino renome imediato e fez que
muitos o considerassem o principal descobridor do continente: a
Mundus Novus, uma versão latina da carta que dirigiu a um dos
chefes de sua empresa, Lorenzo; e a chamada Lettera al Soderini,
dirigida ao Gonfaloniere, isto é, o primeiro magistrado de sua cidade
natal, Piero Soderine, também divulgada em latim sob o título
Quatuor Americi Vespucii Navigationes. A Mundus Novus descreve sua
viagem ao Brasil, numa frota portuguesa que visitou o país em 1501,
logo após a descoberta de Cabral. A Lettera relata as quatro viagens
que teria feito à América: duas em frotas espanholas pelas Caraíbas
e pela costa norte da América do Sul, em 1497 e 1499; e duas com
os portugueses, pela costa leste do Brasil, em 1501 e 1504.

Vespúcio descreve nessas duas cartas, de uma maneira viva e


atraente, peculiaridades das terras descobertas e de seus
habitantes. Como na visão inicial de Colombo, o cenário é às vezes
paradisíaco:

Daqueles países a terra é muito fértil e amena e de muitas colinas, montes e


infinitos vales e grandíssimos rios abundantes e de saudáveis fontes irrigadas e de
larguíssi­mas selvas e densas e dificilmente penetráveis, e de toda espécie de feras
copiosamente cheia [...] E certamente se o paraíso terrestre em alguma parte da
Terra existir, não longe daquelas regiões estará distante [...]74.

A descrição dos indígenas contém observações curiosas:

São gente limpa e asseada dos seus corpos, por tanto continuarem a se lavar como
fazem; quando descarregam com respeito o ventre, fazem tudo para não serem
vistos [...] No fazer água são outro­-tanto porcos e sem vergonha; porque estando
falando conosco, sem se volverem, ou se envergonharem deixam sair tal fealdade,
que nisso têm vergonha alguma75.

Há pinturas eróticas que seguramente contribuíram para


despertar a atenção do público: “As mulheres [...] ainda que nuas
vaguem e libidinosas sejam [...] os corpos têm muito formosos e
asseados”76; “não têm vergonha de sua vergonha, não de outro
modo que nós temos em mostrar o nariz e a boca; por maravilha
verias as tetas caídas numa mulher, ou por muito parir o ventre
caído, ou outras pregas, que todas parecem que nunca pariram;
mostravam­-se muito desejosas de se juntarem a nós cristãos”77. E
há também comentários expressionistas sobre o canibalismo: “Os
vencedores os vencidos comem, e entre as carnes a humana é para
eles um alimento [...] já está visto o pai comer os filhos e a mulher; e
eu um homem conheci, com o qual falei, o qual mais de 300
humanos corpos ter comido divulgou”78.

Colombo, explica Morison, escrevia para ser lido por uma


rainha pudica; Vespúcio, por seus contemporâneos liberados da
Florença renascentista. Mas não foi apenas por motivos fúteis que
suas cartas se tornaram best­-sellers do século XVI. Nelas existem
descrições de costumes, comentários sobre animais e plantas,
citações de grandes autores, Plínio, Dante, Petrarca, e observações
sociológicas, como esta:

usam guerra [...] com gente que não é da sua língua muito cruelmente, sem
perdoarem a vida a ninguém senão para maior pena [...] não têm capitão algum,
nem vão com ordem, que cada um é senhor de si; e a causa das suas guerras não é a
cupidez de reinar, nem de alargar fronteiras suas, nem por cobiça desordenada,
senão por uma antiga inimizade, que pelos tempos passados entre eles houve79.

As proezas de Vespúcio, desde cedo, encontraram ouvidos


descrentes, como os do navegador Sebastião Caboto, que já em
1505 falava ironicamente da viagem de 1497, “que Américo diz ter
feito”80, ou o historiador Pedro Martyr d’Anguiera, que em suas
Décadas, escritas no começo do século XVI, limita­-se a dizer que
Vespúcio “navegou em direção ao Antártico muitos graus para além
da linha equinocial, sob os auspícios e a soldo dos portugueses”81.
Las Casas, por volta de 1570, já o via como um usurpador da glória
alheia, tachando de mentirosa a afirmação da Lettera de que teria
tocado a América do Sul antes de Colombo.

A situação com o passar dos anos foi­-se complicando, com os


sucessivos descobrimentos em arquivos de Florença, no final do
século XVIII e começo do XIX, de três novas epístolas de Vespúcio.
Ao contrário das anteriores, impressas, estas eram manuscritas,
embora não pelo próprio Vespúcio. São conhecidas pelos nomes
dos pesquisadores que as encontraram: a Bandini, de 18 de julho de
1500, trata da viagem que fez em 1499­-1500, com os espanhóis, de
forma contraditória com a Lettera, pois incorpora dados das duas
primeiras viagens aí referidas; a Bartolozzi, de setembro ou outubro
de 1502, descreve, com parcimônia de pormenores, a ter­ceira
viagem de Lettera (de que trata também a Mundus Novus), a que fez
ao Brasil em 1501­-1502; e a Baldelli, datada do Cabo Verde, em 4 de
junho de 1501, traz elementos dessa mesma viagem, além de
mencionar o encontro em Bezeguiche (baía ao sul de Dacar) com a
armada de Cabral, que voltava da Índia. Mais recentemente, em
1937, o pesquisador Ridolfi revelou uma quarta carta manuscrita,
conhecida também como “fragmentária”, que talvez seja autógrafa
de Vespúcio e seguramente é a mais pessoal: defende­-se aí de
críticas feitas a uma de suas cartas.
O conjunto das missivas, as duas impressas e as quatro
manuscritas, não é, para se dizer o menos, harmônico. Há dados
que não combinam, mas a grande divergência é que a Lettera
descreve quatro viagens e as outras todas se referem a duas: a
viagem realizada com os espanhóis, em 1499, e a com os
portugueses, em 1501. Em nenhuma carta Vespúcio dá o nome de
seu coman­dante, o que torna difícil comprovar a viagem em outra
fonte. Quando o menciona, aliás, é para falar mal: “como nosso
capitão fosse homem presunçoso e muito cabeçudo [...]”82. Atribui­-
se, ademais, muitos feitos e quase nada deixa aos outros: “o
continente [que] descobri habitado de mais frequentes povos e
animais do que a nossa Europa, Ásia ou África [...]”83.

3.3 Uma decifração (vide Mapa 3)


Historiadores eminentes interessaram­-se pelo problema da
autenticidade das cartas de Vespúcio, como Humboldt, Harisse,
Fiske e Vignaud. Varnhagen tem uma obra importante sobre o tema
na qual manifesta opinião que encontrou muitos seguidores: julga
falsa a série moderna, a das cartas manuscritas, e autêntica a série
tradicional, a das impressas, acreditando, portanto, nas quatro
viagens de Vespúcio. A maioria dos especialistas de nossos dias
tende, entretanto, a adotar a opinião do scholar italiano Alberto
Magnaghi, defendida em seu hoje clássico Amerigo Vespucci,
publicado em 1925, basicamente oposta à opinião até então
dominante, inspirada em Varnhagen. Considera serem hábeis
falsificações históricas as cartas publicadas no século XVI, a Mundus
Novus e a Lettera, e julga as três cartas manuscritas autênticas (não
conhecia então a “fragmentária” e quando o fez posteriormente
duvidou de sua autenticidade). Responsáveis pela fraude, teriam
sido os editores que, aproveitando­-se da avidez do público de então
por notícias sobre os espetaculares descobrimentos que se estavam
fazendo, ampliaram dados e inventaram pormenores, sobre uma
base de informações existentes em cartas originais de Vespúcio,
hoje perdidas: por exemplo, da Bartolozzi se teria editado a Mundus
Novus; da viagem aí descrita se teriam tirado dados para a terceira e
a quarta viagens da Lettera. Consequentemente dá como provadas
apenas duas viagens de Vespúcio; suficientes, no entanto, para
valorizá­-lo imensamente, se não como navegante, como divulgador
esclarecido das descobertas ibéricas.

Na viagem espanhola de 1499, destacando o barco que coman-­


dava da pequena frota de Ojeda ou talvez, não se sabe ao certo,
viajando separadamente, Vespúcio percorreu toda a costa norte da
América do Sul, do cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, até
a Venezuela. Para Magnaghi, não só avistou o litoral norte do Brasil
(tema controvertido, a que voltaremos no capítulo seguinte), como
também teria sido o primeiro europeu a ver o grande delta do
Amazonas; antes, portanto, de Vicente Yañes Pinzón, desde o
século XVI considerado o descobridor do grande rio. A segunda
viagem de Vespúcio foi feita numa frota portuguesa, enviada em
1501 para conhecer melhor a terra recém­-descoberta por Cabral. É
discutível o nome do comandante, mas a maioria dos historiadores
parece aceitar, hoje, o de Gonçalo Coelho. Tocando inicialmente o
cabo a que chamou de São Roque (Rio Grande do Norte), a frota
costeou o litoral leste do Brasil, parando em vários lugares para
identificar as potencialidades da terra e ver se encontrava uma
passagem para o oeste (só descoberta anos depois, em 1519, por
Fernão de Magalhães). Baseado no calendário religioso, nomeou
vários pontos litorâneos, como os cabos de Santo Agostinho, o rio
São Francisco, a Bahia de Todos os Santos, o Rio de Janeiro e o
porto de São Vicente. Há quem diga, como Levellier, que viajou até
50º de longitude sul, caso em que teria descoberto o rio da Prata,
antes, portanto, de Juan Dias de Solis; mas a maioria dos autores,
como Luiz Ferrand de Almeida, para dar o nome de um importante
historiador de nossos dias, interpreta os dados existentes nas cartas
como indicando “que não ultrapassou, junto à costa, a latitude de
32º, ou seja, o atual estado do Rio Grande do Sul”84.

Mais que descobrir e relatar fez Vespúcio. Na primeira viagem,


ele também, como Colombo, imaginou­-se explorando o extremo­-
oriente da Ásia: “vim das regiões de Índia pela via do mar
Oceano”85. Na segunda, percebeu, entretanto, que se tratava de um
continente: “lá aquela terra soubemos não ser ilha mas continente
[...]”86. “Chegamos a uma terra nova, a qual achamos ser firme por
muitas razões [...] fui à região dos antípodas, que pela minha
navegação era a quarta parte do mundo”87. Tendo em vista trechos
como estes e menções a mapas de Vespúcio, elaborados após a
viagem pela costa leste do Brasil (hoje desaparecidos), assim
observa o historiador alemão Georg Friederici: “Foi [...] o primeiro a
fazer uma ideia mais ou menos acertada quanto à distribuição da
terra e água entre a Europa e a Ásia e a registrar em mapas suas
observações. Colombo, que ainda vivia, jamais a concebera, até o
fim da vida”88. O brasileiro T. O. Marcondes de Souza, especialista
acerca do período, elaborando sobre a mesma base tem conclusão
parecida: “Convencido ficou Vespúcio que entre a costa ocidental da
Europa e a oriental da Ásia devia impor­-se uma enorme massa de
terra, um continente, e que este podia ser dobrado na parte sul”89.

3.4 “América, de Américo...”


Uma palavra agora sobre o nome “América”, dado ao
continente descoberto. Quem primeiro o empregou foi Martin
Waldeseemüller, um jovem e até então obscuro professor de
Geografia em Saint­-Dié, capital do Reino de Lorena, num pequeno
volume de 103 páginas, publicado em 1507, sob o título de
Cosmographiae Introductio. Ao lado de um resumo da Geografia, de
Ptolomeu, coloca uma versão latina da Lettera e, em comentário
próprio, propõe o nome de América para a quarta pars orbis (a quarta
parte do mundo), que se limitava então ao litoral atlântico da
América do Sul, nos seguintes termos:

Agora, estas partes da Terra [Europa, África, Ásia] têm sido mais extensamente
exploradas e uma quarta parte foi descoberta por Américo Vespúcio [...] como tanto
a Europa como a Ásia receberam seus nomes de mulheres, eu não vejo por que
alguém objetaria com justiça chamar­-se esta parte de Amerige [do grego “ge”,
terra], isto é, terra de Américo, ou América, de Américo, seu descobridor, um
homem de grande habilidade90.

O professor de Saint­-Dié edita também um atlas no qual coloca


o nome América na massa continental ao sul das ilhas descobertas
por Colombo. Identifica aí menos acidentes geográ­ficos do que
mapas anteriores, como o de Cantino, mas já inclui, por exemplo, o
monte Pascoal, perto de um certo “Rio Brasil”. Anos depois, em
1538, Mercator, o grande nome da geografia naquele século,
estende a designação “América” também à América do Norte, só
explorada alguns anos depois da América do Sul. Com o prestígio
de sua chancela, oficializa no mundo científico o nome do
continente, embora durante muitos anos houvesse denominações
concorrentes. Na Espanha, pátria de adoção de Vespúcio, até o
século XVIII seria mais comum o nome “Indias Occidentales”, do que
“América”. Por exemplo, na versão castelhana do Tratado de
Utrecht, de 1715, está “Indias Occidentales”; no de Madri, de 1750,
já se emprega “América”. Na língua inglesa o termo “West Indies”
acabou permanecendo, mas limitado à região caribenha.

Hoje, pode­-se achar que um nome como Colômbia, ou


“Columba”, como queria o Bispo Las Casas, faria justiça ao maior
valor do feito de Colombo. Isso pensam muitos, agora; não seus
coevos. Colombo teve dois rivais em notoriedade, em seu tempo:
Américo Vespúcio, que, graças à imensa difusão de suas cartas, foi
considerado por muitos, se não o único, o principal descobridor do
Novo Mundo; e Vasco da Gama, que, ao chegar a Calecute, em
1498, estabeleceu finalmente a tão procurada ligação por mar entre
a Europa e o Oriente, que parecia, então, o grande feito da época.
Como explica o historiador dos descobrimentos Franz Hümerich: “A
descoberta do caminho marítimo para a Índia foi considerada pelos
contemporâneos mais importante do que a descoberta da
América”91.

No final de suas jornadas, o genovês parecia ter perdido a


batalha da fama para ambos os navegantes. Sua morte ilustra a
derrota: frustrado, terminou seus dias em Valladolid, em 1506, um
ano antes do aparecimento do primeiro atlas com o nome América.
Não se sabe se Vespúcio, ao falecer em Sevilha, em 1512,
imaginava o renome de que gozaria, em poucos anos, nos círculos
cultos de toda a Europa, mas se sabe que seu passamento se deu
no importante e prestigioso cargo de piloto mayor da Espanha, que já
disputava com Portugal a primazia naval do mundo. Mas quem
morreu com toda pompa e glória – se é esta alguma vantagem – foi
o Gama, em 1524, na mais alta posição a que um português podia
aspirar: Vice­-Rei das Índias. E que seria, cinco décadas depois,
imortalizado pela epopeia de Camões.

Os historiadores tendem a defender os navegantes de sua


nacionalidade. Se se fizer, entretanto, uma estatística mundial de
preferências, é seguro que Colombo estaria no topo; pelo menos é
quem mais há inspirado estudos e biografias. O genovês é
justamente valorizado tanto do ponto de vista náutico – foi quem
viajou por rota nunca navegada –, como do histórico – afinal, bem
ou mal, sabendo ou não, foi quem descobriu um continente
desconhecido pelos europeus. Outro ponto para Colombo é ser ele
mesmo um piloto experimentado, que concebeu e executou um
projeto pessoal de navegação; diferentemente do Gama, um fidalgo
sem prévio conhecimento do mar, escolhido pelo rei para atingir o
antigo objetivo português de chegar às Índias contornando a África.
Mas Vasco da Gama tem também méritos únicos, pois fez a viagem
mais difícil e mais longa. Havia o inimigo mouro, Calecute estava
umas cinco vezes mais distante do que as Bahamas, sem tocar
terra permaneceu na ida 93 dias (bem mais que os 36, de
Colombo); e chegou exatamente aonde queria ir, às Índias, por um
até então ignorado caminho marítimo. Um descobriu sem querer o
“Novo Mundo”, outro querendo ligou o Oriente ao Ocidente. Quem
fez mais? Com Adam Smith, no passado, e Daniel Boorstin, hoje,
vemos méritos máximos em ambos. Afinal, são os homens que
fizeram da Espanha e de Portugal, nas palavras do respeitado
especialista do período, Vitorino Magalhães Godinho, “os pioneiros
da grande aventura da descoberta do globo e criação do mercado à
escala mundial”92.

Quanto à superioridade de Colombo e de Gama sobre


Vespúcio, não pode haver dúvidas: o genovês foi o primeiro a
chegar à América num feito concebido com ousadia e executado
com coragem e persistência ímpares; o português ligou o Oriente à
Europa, numa viagem que uniu o mundo então conhecido: foi a
primeira “globalização” da Terra. Sobre o florentino, o único
personagem histórico que deu nome a um continente, tem­-se dúvida
se alguma vez comandou um navio; a seus adversários mais
encarniçados, parece que não teria sido mais que um tripulante
privilegiado, uma espécie de comerciante­-astrônomo que escrevia
cartas...93 É realmente difícil saber o exato papel de Vespúcio nas
descobertas; mas, sem dúvida, foi relevante: além de ter sido o
primeiro que compreendeu, ou pelo menos divulgou, que as terras
descobertas eram outro continente, até então ignorado pelos
europeus, seguramente tinha conhecimentos marítimos
suficientemente amplos para exercer suas funções de piloto­-maior,
no período áureo dos descobrimentos espanhóis.

Um nome apenas, no período dos grandes descobrimentos,


superaria o de Cristóvão Colombo e o de Vasco da Gama, não pela
importância histórica do feito, mas pela magnitude da proeza naval:
o do português Fernando de Magalhães, que, capitaneando frota
espanhola, realizou entre setembro de 1519 e novembro de 1522 a
primeira circum­-navegação da Terra (morrendo Magalhães nas
Filipinas, a viagem foi completada por Sebastião de Elcano). As
opiniões dos especialistas de hoje sobre Magalhães têm sempre o
mesmo tom admirativo desta:

Nenhum navegante na História teve que ir tão longe sem comida e água fresca,
sem tocar em terra seca. Ao cruzar o Pacífico desconhecido, Magalhães e seus
homens contribuíram mais para o conhecimento da geografia universal do que
quaisquer outros navegantes anteriores94.
Capítulo IV
Cabral e o Brasil
A face do homem branco aparecia pela primeira vez no seio dessas regiões
misteriosas; e esse homem era o portuguez, que com audácia igual se aventurara,
primeiro ao mar incógnito, agora aos sertões bravios. (Oliveira Martins, O Brasil e
as Colônias Portuguesas.)

4.1 Navegações portuguesas


Se fosse possível fazer um resumo da História Universal em
umas poucas centenas de páginas, só alguns países e épocas
estariam aí mencionados. Portugal seria um deles, e o período seria
o dos descobrimentos, que dura, grosso modo, um século, da tomada
de Ceuta, em 1415, por D. João I, à circum­-navegação da Terra por
Fernando de Magalhães e Sebastião de Elcano, entre 1519 e 1522.
A viagem de Vasco da Gama à Índia (1497­-1498) é o momento
culminante do período: antes eram pequenas “barcas”, a partir de
1440 “caravelas”, descobrindo ilhas (Madeira, Açores, Cabo Verde,
São Tomé) e aportando cada vez mais ao sul da costa ocidental da
África, até o contorno do continente, por Bartolomeu Dias
(1487­-1488); depois, as grandes “naus” artilhadas que transpor-­
tavam mais gente e especiarias, a abertura da Ásia para os
europeus. A viagem de Colombo, que inaugurou, em 1492, para os
espanhóis seu “século de ouro”, foi para os portugueses uma
ocasião perdida e uma complicação geopolítica, resolvida em
Tordesilhas.
Cabral foi consequência de Gama, e o Brasil só passou a ter
alguma importância três décadas depois de descoberto: até então
era pouco mais que uma eventual escala na “carreira da Índia”. É
ilustrativo que, na carta em que D. Manuel dá informações aos reis
católicos sobre as peripécias da frota cabralina, a descoberta da
terra, aí, pela primeira vez denominada “Santa Cruz”, ocupa apenas
quatro linhas, num texto de quatro páginas (156 linhas), em que o
assunto básico era a Índia95.

Vejamos os principais descobrimentos portugueses. A con-­


quista de Ceuta no litoral marroquino tem ainda inegáveis aspectos
de cruzada. A dinastia de Avis estava consolidada (D. João I
derrotara os espanhóis em Aljubarrota, em 1385), o território
português estava já havia muito livre dos mouros (o Algarve, “al
Ghard”, em árabe, “a terra do poente”, fora conquistado em 1249),
mas estes ainda eram fortes na península Ibérica, onde Córdoba e,
depois, Granada eram prósperas capitais de reinos mulçumanos. A
ocupação de um ponto no norte africano sem dúvida era notável
vantagem estratégica dos povos ibéricos, na defensiva desde que o
chefe árabe Tarique atravessou, em 711, o estreito que até hoje leva
seu nome, Gibraltar (“Gebel al Tarik”, “a montanha de Tarique”).

Ilustrativo do lado medieval do feito português em Ceuta é o ato


de D. João I de aí sagrar cavaleiros a seus filhos, D. Duarte, D.
Pedro, D. Henrique e D. Fernando, a “ínclita geração” de Camões96.
Claro que havia também o lado comercial da empresa, pois a
conquista de Ceuta visava a controlar um importante núcleo
mercantil no norte da África (o que não aconteceu, pois as
caravanas deslocaram­-se para outras regiões). É a velha história da
cruz e da espada, servir a Deus e conquistar bens terrenos, tão
entrelaçada nas gestas ibéricas dos descobrimentos e da
colonização. “O primeiro impulso que arrastou os portugueses às
terras incógnitas da África foi a escravidão”, diz a primeira linha da
primeira página da História do Brasil de João Ribeiro, publicada em
1900, numa afirmação que chocou o público da época, acostumado
aos manuais jesuítas ou maristas que davam preeminência à
difusão da fé. Na verdade, sempre coexistiam os dois objetivos:
havia escravos, ouro, pimenta, poder, mas havia também a ideia de
conquistar as almas para Deus (o católico, não Alá...). Coteje­-se,
por exemplo, com a afirmação acima citada do historiador
sergipano, esta de Caminha: “[...] o fato de Ele [Deus] nos haver até
aqui trazido, creio que não o foi sem causa. E portanto Vossa
Alteza, que tanto deseja acrescentar à fé católica, deve cuidar da
salvação deles [os índios]”97.

Na conquista de Ceuta, aparece um dos dois nomes fulcrais do


período das grandes descobertas portuguesas: D. Henrique, no
futuro chamado “o Navegador” (o outro, veremos depois, é D. João
II, filho de D. Duarte e, portanto, sobrinho de D. Henrique). Abundam
biografias desse personagem histórico, em muitas línguas. Sabe­-se,
hoje, que não foi um grande navegador, como seu cognome leva a
supor. Velejou apenas três vezes e ali pertinho ao norte da África e
não criou a famosa Escola de Sagres, dos nossos livros escolares,
porque esta nunca existiu como tal. Viveu algum tempo no sul do
Algarve (em Lagos), atraiu conhecedores da navegação para suas
campanhas marítimas, mas não há prova nenhuma de que tivesse
juntado um grupo de professores e alunos para estudar e praticar a
arte náutica. Dominou o processo de descobrimento até sua morte,
em 1460, quando navegadores a seu serviço já tinham ultrapassado
os três cabos míticos do noroeste da África (o Bojador, o Branco e o
Verde) e se aproximavam do golfo da Guiné.

Os arquipélagos da Madeira, dos Açores e do Cabo Verde já


estavam em mãos portuguesas e a rivalidade com Castela se
centrava agora na posse das então chamadas Ilhas Afortunadas
(Canárias), só resolvida mais tarde, pelo Tratado de Alcáçovas, em
1479. Gil Eanes, “escudeiro do Infante”, é o grande marinheiro
dessa fase. Numa “barca”, ultrapassou em 1434 o cabo Bojador, por
décadas o limite das incursões portuguesas, pelas dificuldades que
havia para contorná­-lo, pois avança mar adentro por milhas, um
pouco abaixo do nível das águas, e pelo medo do que haveria
depois. Não é à toa que Fernando Pessoa escreveu: “Para passar
além do Bojador/É necessário passar além da dor”.

Um historiador português de nossos dias, José Hermano


Saraiva, explica com clareza como se davam as descobertas
henriquinas:

Pequenas expedições de um, dois e raramente mais navios, enviadas pelo infante ou
pelo rei, largavam do Algarve ou do Tejo para descobrir, isto é, para obterem
informações sobre o que dantes era desconhecido. Registravam observações
geográficas e recolhiam informes sobre os recursos das regiões novas. Procuravam o
ouro, que, segundo se dizia, existia em pontos ignorados da África. A partir de
1441, foram porém os escravos negros que passaram a constituir a principal
riqueza resgatada pelos portugueses no litoral africano98.

Não é sem razão que D. Henrique está destacado na frente do


imponente Monumento aos Descobridores, em Lisboa. O mais
poderoso personagem do reino, depois do rei (seus irmãos D.
Duarte, entre 1433 e 1438, e o Regente D. Pedro, entre 1438 e
1446, e seu sobrinho, D. Afonso V, entre 1446 e 1481), controlava o
comércio das ilhas e do continente africano por ser o Grão­-Mestre
da Ordem de Cristo (sucessora em Portugal da ordem militar dos
Templários), que tinha então o monopólio dos descobrimentos e
seus benefícios. Ao morrer, em 1461, seus direitos reverteram para
a coroa. Houve, então, uma relativa paralisação das descobertas,
talvez pela grande rivalidade com os castelhanos, sempre latente,
mas agora num período de exacerbação.

Da discórdia passou­-se à guerra, que levou quatro anos


(1475­-1479) e terminou com um impasse: os portugueses venceram
no mar, e seus adversários, em terra. A paz foi restabelecida pelo
mencionado Tratado de Alcáçovas, que deu aos portugueses
exclusivos direitos para navegar à Guiné (como se chamava toda a
parte noroeste da África), como compensação pelo fato de ficarem
pertencendo a Castela as ilhas Canárias. Pelo tratado também o rei
português abdicava de eventuais direitos ao trono de Castela.
O futuro D. João II era ainda príncipe herdeiro (de D. Afonso V)
quando, em 1474, passou a centralizar a empresa das descobertas.
Nos cincos anos anteriores (1469­-1474), a atividade esteve nas
mãos de um rico mercador, Fernão Gomes, que obteve da Coroa a
exclusividade de descobrir e explorar terras a partir da serra Leoa,
em troca do pagamento de uma anuidade. Com a nova liderança, os
portugueses vão mais longe, revelando trechos cada vez mais ao
sul: Diogo Cão, entre 1482 e 1485, chanta magníficos padrões de
pedra lavrada até quase o limite meridional da África, e Bartolomeu
Dias, comandando uma frota de três caravelas, afinal, ultrapassa o
cabo da Boa Esperança, em 1487. O grande ato diplomático do seu
reinado (1481­-1496) foi a assinatura do Tratado de Tordesilhas, em
1494. Concebido para valer para todos os povos (erga omnes),
aspirava a dividir o mundo...

D. Henrique e D. João II semearam; agora, com D. Manuel,


vem o período da colheita: motivos não faltam para que o futuro
cognominasse “o Venturoso”. Nasceu Duque da Beja, mero primo
do rei, com várias pessoas entre ele e a Coroa. Desaparecem
parentes mais próximos, morre o príncipe herdeiro D. Afonso, em
1491, e, contra a vontade de D. João II, que queria a coroa na
cabeça de seu filho natural, D. Jorge, o Duque da Beja torna­-se rei.
Casa com a viúva do Príncipe D. Afonso, filha mais velha dos reis
católicos, e recebe todas as benesses dos descobrimentos. Com D.
Manuel I vêm as Índias, vêm as grandes naus carregadas de
especiarias, vem Lisboa como novo centro do comércio oriental.
Vêm também as riquezas refletidas nas construções de “estilo
manuelino”, de que o Mosteiro dos Jerônimos e a Torre de Belém
são os exemplos mais conhecidos. Vem até o acréscimo ao antigo
título de “Rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar em
África” da expressão evocadora e grandiosa “e Senhor da Guiné e
da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e
Índia”.

Um tema de discussão na historiografia portuguesa é a origem


do chamado “plano da Índia”, isto é, quando começaram os
portugueses a pensar em chegar ao Oriente, pelo contorno do
continente africano. Há autores, como Jaime Cortesão e Max Justo
Guedes, que pensam que o objetivo já estava na cabeça de D.
Henrique; outros, como Duarte Leite e Luís Albuquerque, acham
que apenas anos depois, no período em que D. João II estava no
controle das ações, surgiu a ideia da ligação marítima com a Índia,
via África.

É verdade que na época de D. Henrique já se pensava em


chegar ao reino do mítico Preste João (a Etiópia), contornando pelo
sul a área árabe do norte da África; só após a viagem de
Bartolomeu Dias estava, entretanto, apontado com clareza o
caminho marítimo para o Oriente. Mas, entre o fim dessa viagem,
em 1488, e o começo da de Vasco da Gama, em 1497, passaram­-
se nove anos, um período excessivamente longo nessa época de
frenesi descobridor. Por que tão grande demora? O campo é aberto
para debates. É esse lapso, aliás, um dos argumentos básicos dos
historiadores que defendem a chamada “política do sigilo”, como
Jaime Cortesão: navegações teriam continuado, mas não foram
colocadas nos anais.

A política, de certa forma, sempre existiu: Portugal esforçava­-se


para que seus rivais não conhecessem rotas e terras por seus
navegantes singradas e descobertas, nem os consequentes mapas
e relatos; no que era plenamente correspondido... Levada ao
extremo, fica, entretanto, insustentável. Por ela se justificaria tudo:
não há documentos sobre Colombo em Portugal porque havia uma
grande reserva sobre as atividades marítimas; não há provas da
chegada dos portugueses ao Brasil, antes de Cabral, porque estas
teriam sido destruídas; não há uma coleção das viagens atlânticas
portuguesas, nem os respectivos mapas, por motivos semelhantes...
Implica, ademais, admitir, no caso das descobertas comprovadas,
um conhecimento anterior, o que as desvalorizaria. Às vezes,
parece até ir contra a lógica dos fatos: após Tordesilhas, por
exemplo, por que não dizer que se havia chegado ao Brasil antes de
Cabral (com Duarte Pacheco Pereira, admitindo­-se, por hipótese,
sua prioridade), se o território já era, sem contestação possível,
português?

Há o ignorado: onde estão, para ficar num só caso, as


instruções completas dadas a Cabral por D. Manuel, ou o mapa
português que reflita a descoberta do Brasil (do qual o de Cantino
seria a cópia)? E existem as suposições, algumas com aparência de
verdade: entre Dias e Gama, por exemplo, deve ter havido
navegações exploratórias, tanto pelos anos decorridos entre as
duas proezas, como pela segurança com que Vasco da Gama evita
o golfo da Guiné, aproximando­-se do Brasil para fazer a “volta larga”
(também chamada “volta do mar”).

Assim, não é necessário ser um defensor extremado da política


de sigilo para reconhecer que há casos em que parece muito
provável o conhecimento de uma realidade que se queria ocultar. Ao
negociar Tordesilhas e fazer questão de que a raia das 100 léguas
passasse para 370, tudo indica que os negociadores de D. João II
tinham, se não certeza, fortes indícios de existência de terras por
essa longitude. Nesse caso, existe uma carta dos reis católicos a
Colombo, salientando que os portugueses referem­-se a terras a
sudoeste do Atlântico.

4.2 O descobridor e o escrivão (vide Mapa 4)


Pedro Álvares Cabral não passa à história como grande
navegador, passa como mistério. Aos 32 anos, sem experiência no
mar ou na terra que explicasse a escolha, aparece como
comandante da maior frota até então aprestada por Portugal,
liderando capitães do renome de um Bartolomeu Dias ou de um
Nicolau Coelho; terminada a viagem, desaparece totalmente dos
anais. Por que, não se sabe. Uma explicação possível é que teria
sido escolhido por sua posição na nobreza: afinal, mais que capitão,
era o primeiro Embaixador que D. Manuel enviava às Índias; e
condenado ao ostracismo porque a viagem não foi bem sucedida
comercial e militarmente, além da perda de muitos homens e navios.
O que se sabe ao certo é que a descoberta do Brasil foi fato
secundário na época; apenas no século seguinte, com a ruína do
império português na Índia e com o auge da produção de açúcar do
Nordeste, a colônia passa a ter importância, que cresceria ainda
mais no século XVIII, com a exploração aurífera das “minas gerais”.

A biografia factual de Cabral resume­-se, pois, a poucas linhas.


Nasceu em Belmonte, no norte de Portugal, de uma família com
tradição de serviços prestados à Coroa, inclusive como navegantes.
Sem razões conhecidas, comanda a primeira frota que Portugal
envia à Índia, depois da descoberta do caminho marítimo por Vasco
da Gama. Este comandara quatro naus pequenas, com menos de
130 homens; Cabral capitaneava uma armada de treze dos maiores
navios da época (dez naus e três caravelas) e cerca de 1.500
homens. O objetivo era estabelecer vínculos comerciais com
Calecute, um dos mais prósperos reinos hindus da costa do
Malabar. Ponto de encontro de mercadores, como explica Vitorino
Magalhães Godinho “é daqui que partem as “naus da meca”,
carregadas de especiarias e drogas com destino ao Cairo e a
Alexandria, onde os venezianos as vêm recolher”99.

No caminho, “por acaso” (como dizia a historiografia tradicional)


ou “porque procurava” (como querem muitos hoje), encontrou uma
grande terra onde parou dez dias. Ao continuar, ainda na viagem de
ida, perde quatro navios numa terrível tempestade, não longe do
cabo da Boa Esperança (bem pode ter pensado que o nome
original, “das Tormentas”, dado por Bartolomeu Dias, agora um dos
capitães vitimados, era mais apropriado...). Tem um sucesso relativo
ao tentar estabelecer feitorias portuguesas na costa de Malabar,
aonde tinha chegado Gama: não consegue fixar­-se em Calecute,
mas cria vínculos comerciais com o reino rival de Cochim, 200
quilômetros mais ao sul. Volta a Lisboa com apreciável quantidade
de especiarias, mas só com seis velas; perdera mil homens e sete
embarcações.
Talvez por esses fatos, ou mais provavelmente por perder a
simpatia do rei − seu nome tinha sido cogitado para o comando da
terceira frota, mas foi, depois, preterido pelo de Vasco da Gama,
que faria em 1504 sua segunda viagem à Índia − sai rápida e
discretamente da história, tal como entrara. A lápide do jazigo de
Cabral, redescoberta por Varnhagen, em 1857, na Igreja da Graça,
em Santarém, demonstra a pouca importância que os
contemporâneos deram a suas proezas. Abaixo do nome
“Pedr’Alvares Cabral”, nenhuma menção à descoberta ou ao
comando da frota; abaixo do de sua mulher, sim, assinala­-se que
fora camareira de Dona Maria, uma das filhas de D. João III...100

Com Caminha passou­-se algo parecido: o futuro deu a ambos


um relevo que não tiveram em sua época. Achava­-se, em 1500, que
Cabral tinha chegado a umas terras sem grande importância e
pouquíssimos conheceram a carta do escrivão, logo extraviada em
algum arquivo de Lisboa. Estavam errados os contemporâneos e o
tempo fez justiça a um e a outro. Cabral é reconhecido hoje como o
verdadeiro descobridor do Brasil e o homem que pela primeira vez
ligou os quatro continentes; Caminha, como o autor de uma das
mais notáveis comunicações sobre o novo mundo que se estava
revelando.

Pero Vaz de Caminha ia na armada para ser o escrivão da


feitoria que se pretendia criar em Calecute (onde morreu por
ocasião do primeiro ataque árabe, ainda durante a permanência de
Cabral na região). Foi popularizado por uma frase que não disse
exatamente assim, “em se plantando tudo dá”, e ironizado por outra,
em que aparece como o primeiro “brasileiro” a solicitar emprego
público para parente: “peço (a Vossa Alteza) que por me fazer graça
singular, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu
genro [...]”. Na verdade, a primeira é “querendo­-a aproveitar, dar­-
se­-á nela tudo” e, na segunda, se é certo que pedia favor para um
genro, era para salvá­-lo do desterro a que estava condenado por
crime cometido em Lisboa.
A carta de Caminha é um notável exemplo da chamada
“literatura de viagem”, que inclui roteiros, diários de bordo, descrição
de lugares, narrações de naufrágios, existente em Portugal no
século XVI, mas particularmente bem representada na Espanha do
século XVII e na Inglaterra do século XVIII. Já foi
pormenorizadamente estudada por historiadores como Jaime
Cortesão e João Ribeiro e por filólogos como Carolina Michaelis de
Vasconcelos. Perdida durante séculos, só foi identificada em 1773,
por José Seabra da Silva, Guarda­-mor da Torre do Tombo, e
publicada pela primeira vez (expurgada dos trechos eróticos...) pelo
Padre Aires do Casal, no livro Corografia Brasílica, de 1817 (antes, a
data oficial da descoberta do Brasil era 3 de maio, dia em que a
Igreja celebra a invenção da Santa Cruz). E é, na opinião de muitos,
a melhor descrição do mundo recém­-encontrado, pela leveza do
estilo, lucidez dos comentários e riqueza das informações 101.

Embora escrita na linguagem fonética da época, é de fácil


leitura. Caminha, vereador no Porto, era um bom exemplo do
burguês culto e atualizado de seu tempo. Conta a D. Manuel a
estada de dez dias na costa descoberta, dando especial ênfase aos
costumes dos homens “pardos, todos nus”102 que lá viviam; nunca
os chama de “índios”, o que tem servido de argumento para os que
querem provar que, em Portugal, o engano da chegada às Índias
não prosperara. Como nas cartas de Colombo e de Vespúcio, dá
uma visão paradisíaca da terra e dos seus habitantes. Os homens
“de bons rostos e bons narizes [...] em geral são bem feitos”103. As
mulheres despertam­-lhe ainda maior admiração; num trecho refere­-
se a algumas moças, com graça e ironia: “muito novas e muito
gentis, com cabelos muito pretos e compridos, caídos pelas
espáduas, e suas vergonhas [seios] tão altas e tão cerradinhas e tão
limpas as cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos
nenhuma vergonha”104.

Outros pontos da carta merecem menção. Cabral aparece


sempre com muita dignidade e exercendo à perfeição suas elevadas
funções. Os mais mencionados comandantes capitães são
Bartolomeu Dias e Nicolau Coelho, ambos, oitenta anos depois,
personagens de Os Lusíadas; o primeiro, no episódio do gigante
Adamastor: “Aqui espero tomar, se não me engano/De quem me
descobriu suma vingança”; e o segundo como um dos heróis da
viagem, comandante que fora da nau “Berro”, a primeira da frota de
Vasco da Gama que regressou ao Tejo. Pouco aparece Sancho de
Tovar, o subcomandante da frota, nobre espanhol cuja família se
bandeara para Portugal nas guerras de D. Afonso V. Os pilotos (não
se confundem com os comandantes dos barcos) são também
referidos e dois deles, Pero Escobar e Afonso Lopez, nomeados
diretamente.

É curioso o papel relevante que tem na carta um dos dois


degredados deixados em terra, Afonso Ribeiro, que retornou a
Portugal com a armada de 1501 e poderia ter sido uma das fontes
de informação de Vespúcio. Frei Henrique Coimbra, que dirá as
duas primeiras missas do Brasil, é o superior dos oito franciscanos
da armada. O tema central de Caminha é a visão admirativa da
terra, boa e fresca, “como Entre Douro e Minho” e de seus
habitantes, que des­creve com interesse e simpatia (uma vez,
entretanto, usa a palavra “bárbaro”). Homem do norte agrícola de
Portugal, fica impressionado com o fato de que os nativos “não
lavram nem criam”105.

Termina a carta dizendo das dimensões amplas da terra achada


e de suas prováveis riquezas, lembrando que serve de ponto
intermediário da rota que o futuro chamaria de “carreira da Índia” e
dando discretos conselhos religiosos ao rei:

Pelo sertão nos apareceu, vista do mar, muito grande, porque a estender d’olhos
não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela
até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal
ou ferro; nem o vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares [...] As águas são
muitas e infindas [...] Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que
será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela
deve lançar. E que não houvesse mais ter aqui Vossa Alteza esta pousada para a
navegação de Calecute, isso bastava106.

4.3 Prioridade, intencionalidade, descobrimento


A descoberta do Brasil tem dado margem a vários problemas
cujas soluções estão em aberto: não há certezas absolutas, mas,
sim, opiniões, mais ou menos defensáveis. Quem chegou primeiro
ao Brasil? Cabral estava à procura de terra ou tocou na costa por
acaso? Como descobrir algo que já existia? Vejamos.

Antes de tudo, é preciso qualificar bem a prioridade cronológica


de navegantes de bandeira espanhola na descoberta da costa norte
do Brasil, provável no estado atual dos conhecimentos: afinal, eles
estavam logo ao norte, revelando e explorando as ilhas do mar do
Caribe e a “tierra firme”, a atual Venezuela. Podiam perfeitamente
chegar ao litoral brasileiro como consequência dessa atividade. De
modo algum esse fato tira aos portugueses, com a viagem de Pedro
Álvares Cabral, a glória de terem sido os verdadeiros descobridores
do Brasil, “descobridores sociológicos” como diz Capistrano,
lembrando que só eles criaram aqui uma “sociedade”: é com Cabral
que, para usar sua expressão, “inicia­-se nossa história”107.

Os navegantes pré­-cabralianos a serviço da Espanha não


sabiam com precisão aonde tinham chegado; apenas verificaram
que havia terras ao sul do mundo caribenho de Colombo. Não
foram, aliás, só eles que teriam chegado ao Brasil antes de Cabral;
outros nautas, de outras nacionalidades, possivelmente aportaram
em terras brasileiras, como explica Sérgio Buarque de Holanda:
“não é inverossímil que navegantes europeus, e de preferência
portugueses, os mais aparelhados para semelhante feito, tivessem
alcançado a costa atual do Brasil já antes mesmo de 1500”108.

Entre os portugueses há um famoso explorador dos mares em


relação ao qual há certa base documental para a atribuição de
prioridade: Duarte Pacheco Pereira, “cosmógrafo, navegador e
guerreiro”109 e, mais ainda, negociador de Tordesilhas. Em sua
clássica obra de 1507, Esmeraldo de Situ Orbis, um tratado de
navegação oceânica e de geografia da costa africana (pela primeira
vez descrita em termos de latitudes), afirma Pereira que descobriu
uma “grande terra firme”110 (estaria na costa norte do Brasil), em
dezembro de 1498, numa viagem que realizou a mando de D.
Manuel I. Outras fontes parecem confirmar a viagem e um
importante historiador português de nossos dias, Jorge Couto,
advoga, com fortes argumentos, a prioridade de Pacheco Pereira
em relação a Cabral e aos navegantes espanhóis. Para a maioria
dos historiadores brasileiros, se é que fez a viagem, não teria
chegado ao Brasil (teria costeado as Guianas).

Já a propósito da chegada de Pinzón à mesma costa, há vários


documentos que parecem a muitos comprová­-la. Quanto a Leppe,
existem poucos dados, mas suficientes para provar que navegou
logo depois e quase na mesma rota de Pinzón (ambos em janeiro
de 1500). Essas passagens pela costa norte brasileira merecem ser
assinaladas, mas não têm importância para nossa história, como
dizem claramente dois especialistas de hoje: “Não importa quem
chegou antes, foi Cabral quem fundou o Brasil” (Max Justo Guedes);
“Cabral é o único que historicamente tem consequências” (Romero
Magalhães).

Há dois pontos em comum entre todos os possíveis precur­sores


de Cabral. Primeiro, os autores que acreditam em suas viagens (há
sempre os que duvidam) divergem sobre a área revelada, o que
aumenta a insegurança de suas opiniões. Depois, todas as
possíveis navegações pré­-cabralianas são meras “passagens” pela
costa norte − o litoral do Maranhão, apenas avistado no caso do
navegante português. Bem diferente da “estadia” de uma da frota de
treze navios, durante dez dias, com vários desembarques. E, na
Bahia, onde começou o Brasil...

Pedro Álvares Cabral, com sua viagem perfeitamente docu-­


mentada, não somente pela admirável carta de Caminha, mas
também pelas do “físico”, isto é, o médico­-astrônomo de bordo,
Mestre João, e do chamado “piloto anônimo”, um dos tripulantes da
armada, foi quem realmente comprovou que existia uma grande
massa terrestre no Atlântico, em frente à África, na parte portuguesa
da divisão de Tordesilhas. Isto é, exatamente naquela área que
Portugal fizera questão de reservar para si − razões teria − por esse
tratado. O escrivão fala no corpo de sua carta em Terra de Vera
Cruz e a assina da Ilha de Vera Cruz, mas não deixa dúvida sobre a
vastidão da área achada. O rei D. Manuel, ao comunicar a
descoberta aos reis católicos, refere­-se à Terra de Santa Cruz,
nome que lhe pareceu mais apropriado. Mas o que triunfou foi o
prosaico Brasil, embora menos constrangedor do que Terra dos
Papagaios, mencionado em cartas de comerciantes italianos de
Lisboa...

Agora a intencionalidade. Saberia Cabral que havia terras a


oeste da África? Tradicionalmente os livros de História do Brasil
diziam que a descoberta fora acidental: a esquadra seguia a rota
indicada por Vasco da Gama, a qual, depois das ilhas do Cabo
Verde, afastava­-se bastante da África para evitar as calmarias do
golfo da Guiné e, por isso mesmo, aproximava­-se muito do Nordeste
brasileiro; num certo momento, impelido por correntes ou ventos −
uma tempestade foi também bastante citada − tocou por acidente a
costa brasileira. Em defesa dessa tese, podem­-se apresentar
argumentos de peso: não há documento português que mencione
haver terras a sudoeste do Atlântico, nem muito menos instruções a
Cabral para verificar sua existência. O fato de na grande armada
não haver um só padrão de pedra tem igualmente sido usado como
prova (também de peso...) de que o encontro foi casual.

A tese do descobrimento casual continua a ter defensores. Em


livro muito atualizado (1992), Filipe Nunes de Carvalho assim
conclui seu estudo sobre a descoberta de Cabral:

No estado actual dos conhecimentos, a tese da não intencionalidade afigura­-se­-nos


como a mais provavelmente conforme com a realidade dos factos. Não deixa de ser
significativo que dois dos autores que mais recentemente se ocuparam do problema,
Moacir Soares Pereira e Luís de Albuquerque, coincidam na adesão a esta
interpretação do evento. A questão parece, contudo, estar longe de definitivamente
encerrada.111

A maioria dos modernos historiadores do descobrimento do


Brasil, como o brasileiro Max Justo Guedes e o português Jorge
Couto, para mencionar dois prestigiosos especialistas, pensa
diferente. Este assim conclui suas observações sobre o tema:

as variáveis geopolíticas, diplomáticas, econômicas e técnicas [...] apontam


incisivamente no sentido de que “o afastamento da frota para Ocidente estaria no
plano imperial da Coroa”, pelo que Cabral terá recebido instruções de D. Manuel I
para, no decurso de sua viagem para o Índico explorar a região oeste do Atlântico
Sul, com o objetivo de encontrar o prolongamento austral do continente visitado
por Colombo, Caboto e Duarte Pacheco, a fim de aí estabelecer uma escala
destinada a apoiar a operacionalidade da rota do Cabo112.

Se não é provado que os portugueses sabiam que realmente


existiam terras onde Cabral encontrou o Brasil, é muito provável que
pelo menos desconfiassem disso. Os indícios são vários: por que
lutar tanto para ter uma larga parcela do Atlântico, em 1494, quando
negociaram Tordesilhas? Afinal, para fazer a “volta larga” não era
necessário tanto mar; Vasco da Gama reparou (está no diário de
Álvaro Velho, tripulante de sua frota), quando fazia essa volta, que
havia sinais de terra a oeste; navegantes espanhóis já haviam
chegado à costa norte do Brasil, o que indicava a probabilidade de
terras ao sul.

Um novo argumento em prol da intencionalidade foi trazido


recentemente pelo almirante Max Justo Guedes, que acredita com
ele provar que, ao chegar a Porto Seguro, a frota cabraliense
navegava para o noroeste, o que só seria aceitável numa viagem à
Índia se se quisesse encontrar terras por ali. Esse historiador naval
voou de helicóptero à altura do cesto da gávea das caravelas e
verificou, então, que a descrição do monte Pascoal feita por Pero
Vaz de Caminha só é possível se os navios da frota cabraliense
estivessem velejando nessa direção.

Tratemos, para finalizar este capítulo, dos conceitos


“descobrimento”, “achamento”, “encontro de culturas”. Significam
coisas diferentes? Vejamos. A expressão encontro de culturas
vulgarizou­-se quando da comemoração do quinto centenário da
Descoberta da América. Como já havia neste continente antigas
culturas, mais destruídas do que civilizadas pelos europeus, tratou­-
se de identificar uma expressão que demonstrasse respeito pelas
civilizações autóctones, como encontro de culturas o faz; embora
não seja de todo verdadeira, pois a civilização que se impôs foi a
europeia. Achamento e descobrimento têm pequenas variações
semânticas − “descobrir” refere­-se mais a uma exploração
sistemática, e “achar”, a um primeiro encontro casual −, mas nos
textos contemporâneos dos descobrimentos a sinonímia mantém­-se
com muita frequência. Achamento tem hoje um ar vetusto e o bom
precedente de ter sido usado por Caminha; mas nem por isso
justifica fugir sempre da palavra mais comum para descrever a
chegada dos europeus ao continente, “descobrimento”. Como
mostra a formação do vocábulo original, “des­-cobrir” é simplesmente
tirar a coberta (de algo que obviamente tem uma existência prévia).

Em resumo, se algum navegante espanhol ou português


avistou a costa norte do Brasil antes de 22 de abril de 1500, o fato
tem importância histórica muito diminuta perante o desembarque
bem documentado de Cabral em Porto Seguro: aí nasce o Brasil. É
provável, ademais, que Cabral não estaria desatento à existência de
terras onde as encontrou. “Descobriu” o Brasil? E por que não? Se
formos querer ser muito precisos, talvez o termo menos apropriado
da expressão seja o segundo: afinal, o “Brasil” não existia, é o país
que se foi formando depois, já com os portugueses na terra...113
SEGUNDA PARTE
A ocupação do território brasileiro

Brandiram achas e empurraram quilhas, Vergando a vertical de Tordesilhas.


(Guilherme de Almeida, no Pedestal do Monumento às Bandeiras, de
Brecheret, em São Paulo.)
Capítulo V
Bandeirismo: a superação de Tordesilhas
[...] afastados milhares de quilômetros da civilização litorânea, os bandeirantes,
sem o saberem, foram os nossos primeiros soldados, os obscuros obreiros da nossa
diplomacia, dos nossos consecutivos triunfos nas questões litigiosas de fronteiras.
(Ronald de Carvalho, Bases da nacionalidade brasileira, in À Margem da
História da República.)

5.1 Entradas ou bandeiras?


O ex­-presidente Washington Luiz Pereira de Souza, historiador
por vocação, começou a pesquisar sobre o bandeirismo em 1901,
nos arquivos da municipalidade de São Paulo. Prefeito da cidade e
mais tarde Governador do estado, teve oportunidade de mandar
publicar, nos anos 1920, dezenas de volumes de documentos
desses arquivos, que serviram de base para trabalhos fundamentais
de outros autores nas três décadas seguintes. Em seu livro Na
Capitania de São Vicente, de 1956, isto é, depois de tantos anos e
tantos estudos sobre o bandeirismo, dos quais estava perfeitamente
a par, reconhece que “apesar das honestas e exaustivas
investigações sobre as “entradas ao sertão”, até agora feitas, ainda
não se escreveu sobre elas a palavra definitiva”114. À mesma
conclusão chega hoje quem pretenda aprofundar­-se no tema, que
os manuais geralmente intitulam “entradas e bandeiras”. É
surpreendente constatar­-se que um movimento de penetração
territorial tão característico do Brasil e de tanta importância na
formação de nossas fronteiras terrestres − e consequentemente na
de nossos vizinhos − não encontrou ainda sua conceituação básica,
nem tem até hoje uma nomenclatura padronizada. Varia de autor a
autor a apreciação do assunto, “insuficientemente conso­lidado na
História do Brasil”115, como diz Helio Vianna. Vejamos, com
comentários críticos, algumas opiniões de especialistas.

É corrente nos livros de História do Brasil considerarem­-se


“entradas” as expedições organizadas pelo Governo e “bandeiras”
as incursões de caráter puramente particular. Essa dicotomia,
divulgada por Basílio de Magalhães, em 1913, não deveria ser mais
adotada, depois que ficou provado que, em muitos casos,
confundem­-se a participação do poder público com a da iniciativa
privada. Alfredo Ellis Junior, cujas principais obras são da década de
1930, propôs, em tese que também não encontra mais aceitação
geral, que fossem consideradas entradas os pequenos grupos que
percorriam os sertões à procura de pedras e metais preciosos e
bandeiras os grandes corpos que guerreavam e escravizavam
índios.

O historiador espanhol Ramón Blanco, em seu Las “bandeiras”,


publicado em 1966, reconhecendo que a nomenclatura do
movimento é confusa, gasta mais de quinhentas páginas para tentar
provar que as bandeiras nada mais eram que unidades militarizadas
− algo como as companhias ou os batalhões dos exércitos de hoje −
que foram utilizadas em muitas das mais importantes incursões
territoriais feitas pelos luso­-brasileiros na América do Sul com a
finalidade de capturar selvagens. Em suas palavras: “Bandeira no es
otra cosa que la organización táctica de las instituciones esclavizadoras [...]
copiadas literalmente de la que presentaba el Ejército regular”116. Para
Capistrano de Abreu, ao contrário, a bandeira seria mais um hábito
tupi − levariam esses indígenas uma espécie de estandarte em suas
excursões bélicas e escravizadoras − imitado pelos portugueses.

A realidade é complexa, pois o movimento de penetração


territorial apresenta aspectos diferentes em lugares e tempos
diversos. Uma coisa são os grandes agrupamentos que adentravam
os sertões, divididos em unidades militares, bem armados, às vezes
até acompanhados pelos agentes básicos das comunidades
urbanas, como juízes, padres, tabeliães e policiais. Verdadeiras
“cidades em marcha”, na expressão de Cassiano Ricardo, tal como
a célebre bandeira de Manoel Preto e Raposo Tavares, de
novecentos brancos e mamelucos e dois mil e duzentos índios, que,
em 1629, destruiu reduções jesuíticas no Guairá.

Outra coisa são as expedições fluviais, de que é exemplo o


grupo de “118 pessoas, 30 armas de fogo e 88 índios de frechar”117,
que, chefiado por Francisco de Mello Palheta, a mando do Governo
de Belém, subiu em cinco grandes embarcações o Amazonas e o
Madeira em 1722, encontrando as frentes espanholas da Missão de
Moxos e descobrindo o rio Guaporé. Diferente ainda são os corpos
armados de sertanistas, como o de Domingos Jorge Velho,
contratado em 1694 pelo Governo­-Geral para guerrear os negros do
Quilombo de Palmares, em Alagoas. E, finalmente, de espécie
diversa são os grupos pequenos − quase nunca passavam de
cinquenta homens − que saíam à procura de pedras e metais
preciosos, carregando muito mais bateias e almocafres (enxadas
para mineração) do que flechas e arcabuzes, tal como o de Antonio
Dias de Oliveira, que descobriu ouro, em 1698, no local onde
nasceria Ouro Preto.

Capistrano de Abreu não se preocupa em classificar o


movimento, talvez porque em sua época ainda não tivessem sido
divulgados muitos documentos, nem houvesse suficientes
monografias sobre o assunto; ou talvez porque, sendo ele homem
de sínteses, preferisse unificar os diversos tipos de incursões
territoriais do período colonial num único gênero. Realmente
chama­-os todos de “bandeiras” e fala assim tranquilamente em
bandeiras amazonenses, maranhenses, pernambucanas, baianas e
paulistas. Seu discípulo Affonso d’Escragnolle Taunay, que escreveu
a mais completa obra sobre as incursões a partir de São Paulo, a
História Geral das Bandeiras Paulistas, também não se preocupa em
definir as várias formas assumidas pelo bandeirismo, em nenhuma
passagem dos onze volumes de sua magna obra. Nem o fez mais
tarde, quando a resumiu em dois volumes, embora aqui procure
concentrar os assuntos em capítulos, como “Ciclo da devassa das
terras”, “Ciclo do ouro”, “Os primeiros anos de Goiás”, etc.

Os historiadores contemporâneos brasileiros, por motivos


didáticos, esforçam­-se por encontrar um critério prático para
identificar os diversos aspectos do movimento, havendo tendência
em usar o vocábulo “entrada” para designar: a) na costa leste, as
campanhas geralmente oficiais de conhecimento da terra e pesquisa
de metais preciosos, especialmente as do século XVI, que tiveram
como origem as várias povoações litorâneas, Porto Seguro,
Salvador e Olinda em especial; b) na costa norte, as expedições
fluviais do século XVII que, depois da fundação de Belém, foram
desbravando as margens dos grandes rios da Amazônia. A palavra
“bandeira” ficaria, pois, reservada para o mais duradouro e o mais
importante conjunto de ações de devassamento do sertão: o que
teve por cenário a Capitania de São Vicente (Capitania de São
Paulo a partir de 1681), que, em certa época, chegou a abranger o
Sul e o Centro­-Oeste do Brasil; e, por foco irradiador, o povoado de
São Paulo de Piratininga.

É esse o critério, por exemplo, de Helio Vianna, que, ademais,


subdivide as “bandeiras” em cinco ciclos: o do apresamento dos
indígenas, ocorrido na própria capitania, no Guairá, no Tape e no
Itatim; o do ouro de lavagem, característico do primeiro século e que
se desenvolveu inteiramente nos atuais estados de São Paulo e
Paraná; o do sertanismo de contrato, caracterizado pelo
assalariamento de paulistas para combater, em nome do Governo,
índios ou negros rebeldes em outras regiões do país; o grande ciclo
do ouro, de que a descoberta de ouro e a consequente ocupação de
Minas Gerais é o principal resultado, mas que se estende também a
Goiás e Mato Grosso; e os ciclos de povoamento, assim designadas
as levas de paulistas que, em épocas diferentes, foram habitar
regiões litorâneas, como Paranaguá e Laguna, ou interiores, como o
vale do rio São Francisco, Curitiba e Palmas.
Cada ciclo tem sua época de predomínio, como explica Manuel
Maurício de Albuquerque: “As bandeiras se iniciam como
apresadoras de índios, passando depois a assumir um caráter
guerreiro no combate a indígenas rebelados ou negros
aquilombados. Na sua fase final, as bandeiras tornaram­-se
mineradoras, povoadoras e ligadas à abertura de novas vias de
comunicação”118.

Neste ensaio sobre a formação das fronteiras terrestres do


Brasil, todas situadas no lado espanhol da divisão de Tordesilhas,
interessa particularmente a parte das bandeiras paulistas que
ultrapassou de forma habitual o meridiano das 370 léguas, levando
os limites do território brasileiro até quase os contrafortes andinos.
Focalizaremos, neste capítulo − e quando estudarmos as monções
−, aspectos do grande ciclo do ouro e do ciclo de apresamento de
indígenas que se deram a oeste da linha de Tordesilhas. As
“entradas” pelo rio Amazonas e os esforços de ocupação do atual
estado do Rio Grande do Sul e do Uruguai, por se darem igualmente
a oeste de Tordesilhas, serão também estudados, em capítulos à
parte.

Minas Gerais, o mais importante cenário do grande ciclo do


ouro, e o interior do Nordeste, onde os bandeirantes, depois de
guerrearem índios e negros revoltados no ciclo do sertanismo de
contrato, transformaram­-se nos pecuaristas e boiadeiros do período
seguinte, ficam, pois, fora de nossas considerações. São episódios
fundamentais para a ocupação do território, mas, por se darem em
regiões intra­-Tordesilhas, não se relacionam diretamente com o
estabelecimento dos limites do Brasil.

5.2 Focalizando o movimento


Uma das poucas coisas certas sobre as bandeiras é que os
bandeirantes não denominavam assim suas incursões sertanejas,
pelo menos na época das grandes campanhas contra os jesuítas
missionários, quando era mais provável que os grupos armados
carregassem realmente uma bandeira (isto é, insígnia, pendão),
como faziam as unidades militares regulares; nem sabiam, muito
menos, que eram bandeirantes... Para designar uma bandeira, os
documentos portugueses da época usam vários vocábulos, como
“entrada”, “jornada”, “viagem” e, mais raramente, “frota”; às vezes,
no caso de grandes expedições contra os indígenas, “guerra”. O
padre Vieira, na carta que escreve a seu Provincial sobre a viagem
amazônica de Raposo Tavares, emprega a palavra “arraial”, que dá
bem ideia de aldeia, cidade em marcha. Os que participam dessas
jornadas não têm nome especial: são chamados simplesmente
homens, às vezes sertanistas ou soldados da vila. Os jesuítas das
missões espanholas referem­-se sempre aos “portugueses de San
Pablo”, ou, depreciativamente, aos “maloqueros” (de “maloca”, na
acepção dos dicionários espanhóis antigos, nome de uma tribo
indígena que praticava incursões escravagistas) ou mamelucos (do
árabe “mamluk”, “escravo”, dizem alguns; ou do tupi “mama­-ruco”,
“mistura”, donde mamaluco e, por corruptela, mameluco, dizem
outros).

Taunay documenta pela primeira vez a palavra “bandeira”, com


o sentido que aqui interessa, num documento do Conselho
Ultramarino de 1676; e “bandeirante”, só em 1740, quando já se
extinguira esse personagem histórico. Diga­-se de passagem que há,
entretanto, textos jesuíticos espanhóis do começo do século XVII
que falam em “vanderas” e que a chamada coleção De Angelis, que
contém importante material do Brasil Colônia, só mais recentemente
explorado, tem um documento que diz: “Este año 1636 están fuera de
esta villa [São Paulo] seis banderas contra los indios que nos ofenden”119. Fatos
como esses levam a supor que pelo menos o termo “bandeira”, com
o sentido de bando armado, deve provir do espanhol; “bandeirante”
já seria uma criação brasileira.

Infelizmente não existe um só documento iconográfico sobre o


efetivo uso da insígnia, ou sobre qualquer outro aspecto do
movimento. Imagem de bandeirante, não há nenhuma: toda gravura,
pintura, desenho, escultura que se vê hoje é uma interpretação
artística posterior. O que há são descrições de contemporâneos das
quais se pode tirar a seguinte imagem verbal. Os líderes da
bandeira, capitães, alferes e sargentos, eram portugueses ou
colonos da terra:

trajavam calças de algodão, protegidas de altas perneiras, um cinturão sobre o qual


caía a camisa, e um gibão [espécie de casaco] de couro ou uma vestimenta estofada
de algodão, que protegia o peito e o ventre. Andavam quase sempre descalços. Um
chapelão de palha de abas largas, uma bolsa de couro a tiracolo, uma cuia para o
rancho e um primitivo cantil de chifre completavam a farda e os aprestos desses
mateiros [...]120.

Quanto a armas, portavam as da época, “o trabuco, o arcabuz,


o mosquete”121. Alguns levavam machados, e todos usavam o
facão, ao passo que “os índios da tropa [a grande maioria,
marchando nus ou quase] iam armados de arco e flecha”122.

É muito comum ligar o movimento expansionista bandeirante à


existência das vias fluviais que, do planalto de Piratininga,
demandam o interior do continente. O Tietê, em especial, nascendo
nas proximidades de São Paulo, a 50 quilômetros do mar, e se
embrenhando nas matas do oeste, teria “empurrado” − essa ideia
recorrente − os paulistas ao sertão. Antes da chegada dos
portugueses, já era via frequentada pelos indígenas e, desde o
início da colonização, foi caminho para os colonizadores, como
ensina Capistrano de Abreu: “começaram a descer o Tietê desde os
primeiros tempos, provavelmente antes do meado do século XVI.
Uns foram subindo seus afluentes [...] Outros foram até o
Paraná”123. Os historiadores divergem, entre o Tietê e o São
Francisco, quanto ao primeiro rio em importância para a unidade
territorial do país: Capistrano prefere o São Francisco; Taunay, Mello
Nóbrega e Basílio de Magalhães, o Tietê. Todos reconhecem,
entretanto, a excepcional função povoadora do velho Anhembi dos
bandeirantes. Mas, apesar disso, é hoje em geral aceito que as
bandeiras foram um movimento basicamente terrestre.
Alfredo Ellis Junior foi dos primeiros a frisar que as rotas das
bandeiras eram antigas trilhas indígenas ou novas picadas abertas
nas matas e nos campos. A mais conhecida e possivelmente mais
importante trilha pré­-cabraliana, com cerca de 1.400 km de extensão
e, na linguagem de antigos documentos, oito palmos de largura, era
a que os índios chamavam “piabiru”, rebatizada pelos jesuítas de
caminho de São Tomé, que ligava São Paulo à Foz do Iguaçu (São
Vicente era o principal de três pontos de chegada na costa; Iguape e
a ilha de Santa Catarina eram os outros), cortando os rios
Paranapanema, Tibagi e Pequeri. Na verdade, os bandeirantes viam
os rios não como caminhos, mas como obstáculos a serem
transpostos. Isto não quer dizer que muitos rios não fossem
margeados ou servissem de pontos de referência nas longas
jornadas pelo sertão, como se vê nos mapas de sertanistas da
época. Quer dizer, apenas, que não eram habitualmente navegados
na época das bandeiras, como vários livros levam a supor. Só na
centúria seguinte à das bandeiras, isto é, no século XVIII, com as
monções, os rios do percurso entre São Paulo e Cuiabá tornam­-se
uma transitada entrada fluvial.

Um livro recente e importante sobre a sociedade que se formou


na vila de São Paulo e nos bairros adjacentes nos dois primeiros
séculos, Negros da terra, de John Manuel Monteiro, ressalta o fato de
que o chamado bandeirismo de apresamento deveu­-se menos ao
abastecimento de mão de obra para os engenhos de açúcar do
litoral, em especial do Nordeste, como geralmente se afirma, e mais
às necessidades da agricultura na região em torno de São Paulo, a
mais importante área produtora de trigo de toda a colônia, entre
1630 e 1680: “as frequentes incursões ao interior, em vez de
abastecerem um suposto mercado de escravos índios no litoral,
alimentavam uma crescente força de trabalho indígena no planalto,
possibilitando a produção e o transporte de excedentes
agrícolas”124.

Nos primeiros tempos da fixação dos brancos no planalto de


Piratininga, estes se aproveitaram das guerras intertribais para fazer
escravos. Os Tupiniquim de João Ramalho, para dar o exemplo
inicial, tinham frequentemente os portugueses como aliados no
apresamento de índios de outras tribos. Pouco a pouco, os
portugueses foram assumindo o comando das ações e estendendo
suas atividades cada vez mais longe da sede: “Ao longo do século
XVII, colonos de São Paulo e de outras vilas circunvizinhas
assaltaram centenas de aldeias indígenas em várias regiões,
trazendo milhares de índios de diversas sociedades para suas
fazendas e sítios na condição de serviços obrigatórios”125.

No começo do século XVII, os jesuítas haviam fundado missões


no Guairá (estado do Paraná, região de Foz de Iguaçu). A partir de
1610, elas passaram a ser o objetivo básico das incursões paulistas:
“até 1632, as sucessivas invasões haviam destruído boa parte das
aldeias Guarani e virtualmente todas as reduções do Guairá”126. Os
padres jesuítas deslocaram seus aldeamentos para o sul, a região
do Tape (centro do Rio Grande do Sul) e do rio Uruguai (oeste), mas
assim mesmo não ficaram protegidos dos avanços paulistas. A partir
de 1640, a situação ficou mais equilibrada quando conseguiram do
Papa e do rei espanhol autorização para se armarem. A partir de
então, começou a haver algumas derrotas de bandeirantes, a mais
importante tendo sido a de Jerônimo Pedroso de Barros, em
Mbororé, às margens do rio Uruguai, em 1641.

5.3 Controvérsias
Uma primeira controvérsia sobre as bandeiras refere­-se ao
período da União Ibérica (1580­-1640), considerado por alguns
fundamental para o surgimento e desenvolvimento do bandeirismo e
para a consequente ocupação das terras extra­-Tordesilhas. É
comum a ideia de que nesse período não havia fronteiras nas
Américas lusa e espanhola. Como diz Alfredo Ellis Jr.: “Os
moradores de ambas [...] regiões políticas não tinham [...] barreiras
para passar dos domínios espanhóis para os portugueses, pois
essas repartições políticas pertenciam a uma só nação”127. Na
opinião de Cassiano Ricardo, duas circunstâncias favoráveis teriam
então concorrido para estimular o bandeirismo: “a remoção do mito
jurídico [a linha de Tordesilhas], que era imobilizador, e a
exacerbação do mito do ouro [não havia obstáculos para se chegar
ao Eldorado], que era expansionista”128.

Há, entretanto, quem julgue ser um erro ver a União Ibérica


como causa importante do movimento bandeirante, pois que, nesse
período, as colônias americanas teriam permanecido tão separadas
quanto o eram antes: “Bem longe de formar com a Espanha uma só
nação, Portugal conservava todos os seus foros, liberdades e
privilégios, usos e costumes, formando reino e coroa à parte, tanto
na metrópole como nas províncias ultramarinas”129, explica Jaime
Cortesão, um dos defensores mais radicais da tese da separação
das colônias ibéricas durante o período filipino, para quem o Brasil
nunca foi espanhol.

Abundam documentos oficiais que justificariam essa opinião.


Na América, como na Europa, as nações ibéricas permaneceram
independentes, ligadas apenas pelo laço de terem um só monarca,
inicialmente Felipe II (1580­-1598), que, aliás, em Portugal se
chamava Felipe I, exatamente para marcar a separação. Há várias
cartas­-régias e outras instruções às colônias que se referem aos
interesses específicos de uma coroa, às vezes contrários aos da
outra; nas chamadas “leyes de Indias” do período, encontram­-se
diversas proibições aos contatos entre as colônias (“Recapilaciones”,
lei 27, tit. 3, liv. 4, é um exemplo). Mas, na prática o interior da
América do Sul, particularmente o Centro-Oeste do Brasil, era o
“sertão bravo” onde vagueavam tribos indígenas e quase nunca se
cruzavam portugueses e espanhóis. Os pontos de encontro, em
geral as missões jesuíticas espanholas, que ocupavam regiões no
centro do continente, eram exatamente os pontos de atrito. Nas
lonjuras desses sertões, ninguém tinha meios para fiscalizar, nem
antes da União Ibérica, nem durante ela, nem depois dela, o
cruzamento da fronteira, se é que se pode considerar como tal o
fugidio meridiano de Tordesilhas. É curioso observar que os autores
que seguem mais de perto as jornadas bandeirantes, como Taunay,
Basílio de Magalhães e Carvalho Franco, não mencionam o final da
União Ibérica como marco de alguma transformação no movimento.
Nada teria mudado naqueles sertões...

O que não se pode garantir é que o bandeirismo teria existido e


se desenvolvido da mesma maneira se não tivesse havido a União
Ibérica. Afinal, o movimento se iniciou nesse período e bem se pode
imaginar que, sem a anexação, os espanhóis teriam tomado mais
providências para defender as fronteiras orientais do Vice­-Reinado
do Peru e não seriam obrigados, como diz Georg Friederici, “a tratar
Portugal com peculiar deferência”130. Com Portugal independente,
ademais, os holandeses possivelmente não haveriam ocupado
Pernambuco e feitorias portuguesas na África, fato que, provocando
a escassez de escravos negros, estimulou o bandeirismo de
apresamento de indígenas. Essa menção aos holandeses nos faz
lembrar que, ao término da União Ibérica, a parte então mais rica do
Brasil, o Nordeste, estava ocupada. Se o período foi bom para a
nossa formação territorial no interior, onde as bandeiras
ultrapassavam facilmente o meridiano divisor, e, na costa norte,
onde houve a fundação de Belém (1616) e a criação da Capitania
do Cabo do Norte (1637), foi mau no Nordeste, a área mais valiosa
da Colônia. E não era nada certo em 1640 que os luso­-brasileiros,
representantes de um país já em declínio, venceriam pouco depois
os colonos das Províncias Unidas, que estavam passando pelo
momento mais glorioso de sua história.

Mais uma controvérsia sobre esse movimento de aspectos tão


díspares é o possível papel povoador que desempenharam as
bandeiras. É certo que as bandeiras “de povoamento” levaram
popu­lações a várias regiões do Brasil, o Sul principalmente. É
também indiscutível que as do ciclo do ouro povoaram muitos
pontos do interior. Aí estão para comprovar a afirmativa as cidades
históricas de Minas Gerais, cada uma nascida de uma descoberta
aurífera. Aqui interessa particularmente o exemplo, menos
importante e menos conhecido, da rede de povoações surgidas
diretamente da atividade de mineração, em Mato Grosso e Goiás,
isto é, a oeste de Tordesilhas, em torno de núcleos como Pirenópolis
(Meia Ponte), Goiás Velho (Vila Boa de Goiás), Cuiabá (Vila Real do
Senhor Bom Jesus de Cuiabá) e Vila Bela (Vila Bela da Santíssima
Trindade). Sem os garimpeiros aventurosos dos primeiros tempos,
vindos nas bandeiras descobridoras, e substituídos pouco a pouco,
como em Minas, pelos membros de uma sociedade mais
urbanizada, não se pode garantir que seria brasileiro o atual
Centro­-Oeste.

É, sim, discutível o papel povoador que teriam tido as bandeiras


cujo objetivo principal era o apresamento de indígenas. Vários
autores sublinham, ao contrário, seu caráter despovoador. As
primeiras bandeiras, do fim do século XVI, já haviam dizimado os
estoques indígenas do vale do rio Tietê; as grandes bandeiras, de
dois a três mil homens, que destruíram, nas primeiras décadas do
século XVII, as reduções jesuíticas espanholas do Guairá, Tape e
Itatim, são sempre apontadas como exemplos da ação
antipovoadora do movimento:

As bandeiras, de fato, devastaram grande parte do Império Guaranítico, causaram


pânico aos colonos espanhóis, afugentaram os derradeiros sobreviventes gentílicos
[...] As depredações chegaram a tal ponto que as regiões do Paranapanema, do
médio e do baixo Iguaçu e do Itatim ficaram despovoadas e ao abandono por dois
séculos131.

Com relação às tribos “reduzidas” pelos jesuítas, é preciso,


entretanto, lembrar que, do ponto de vista português, os
bandeirantes destruíam frentes de penetração adversas: há autores
que falam em “Império Guaranítico”, ou em “República Guarani”, o
que dá bem a ideia de um Estado rival. No caso das tribos “livres”,
estavam abrindo vácuos populacionistas que atrairiam o
expansionismo mais dinâmico, exatamente o luso­-brasileiro.
Mencione­-se, ademais, que são frequentes os casos de cidades que
se desenvolveram em torno de capelas fundadas por bandeirantes
desse período, geralmente nos locais onde se estabeleciam com
seus agregados e índios: para ficar com um só exemplo, e bem do
início do movimento nas primeiras décadas do século XVII,
lembremos os irmãos Fernandes, André, Domingos e Baltazar,
fundadores de três das mais antigas cidades paulistas, Parnaíba, Itu
e Sorocaba. É o caráter simultaneamente povoador e despovoador
do movimento, que aparece e reaparece...

A afirmação de alguns historiadores de que os bandeirantes


teriam consciência de que com suas ações estavam conquistando
para Portugal, à custa da Espanha, terras no centro da América do
Sul é questionável. Voltaremos a esse tema. Aqui basta assinalar
que vários episódios demonstraram que alguns bandeirantes,
embora não conhecendo os meandros da regra do uti possidetis...
parecem ter alguma ideia de que o descobrimento de certas regiões
e a frequência de suas viagens por elas criavam direitos à nação a
que pertenciam. Os jesuítas autores da Relación de los Agravios põem a
seguinte frase na boca de Raposo Tavares, antes de atacar uma
das missões do Guairá, em 1629: “Viemos aqui para expeli­-los
desta região inteira. Porque esta terra é nossa e não do rei de
Espanha”132. Taunay relata, a propósito, interessante episódio da
petite histoire das bandeiras, ocorrido no último quartel do século
XVII, com o grupo integrado por Pedro Leme, em documentos
espanhóis apelidado “el tuerto” por ter um defeito físico:

Certa vez viu sua bandeira detida no sertão de Vacaria, no sul de Mato Grosso, por
numerosa tropa espanhola. Intimou o chefe castelhano aos paulistas que
imediatamente deixassem aquelas terras que eram da coroa de seu soberano, o rei
católico [...] exigiu o espanhol que os intimados assinassem uma declaração de que
reconheciam os direitos do rei da Espanha, sobre aquele vasto território [...]
adiantou­-se Pedro Leme a bradar que não assinaria de forma alguma tal papel
porque aquelas campanhas eram e sempre haviam sido de El Rei de Portugal, seu
senhor, e pelos paulistas seguidas e trilhadas todos os anos a conquistar bárbaros
gentios133.

Cassiano Ricardo, tendo em vista esse episódio e outros


semelhantes, não titubeia em afirmar que alguns bandeirantes
tinham a consciência de que as regiões que perlustravam sem
oposição havia décadas passavam a ser portuguesas. É, aliás, esse
autor dos que mais frisam a relação entre bandeiras e fronteiras em
vários trechos de sua Marcha para Oeste, como este: “Todos os
tratados referentes a limites entre o Brasil e os países hispano­-
americanos estão [...] ligados ao bandeirantismo que levou nossa
fronteira móvel para Oeste. Não se pode falar em fronteira, sem o
argumento da penetração histórica”134.

5.4 Histórias
Apesar de boa parte da expansão geográfica do Brasil ter­-se
feito em torno das bandeiras, esse movimento, o “único aspecto
original de nossa história”, segundo Euclides da Cunha135, produziu
pouquíssima historiografia até a década de 1920. Duas razões
principais explicam essa situação. Em primeiro lugar, os
bandeirantes não documentavam suas viagens, nem escreviam
memórias; esporadicamente faziam testamentos, às vezes em pleno
sertão, à beira da morte “de uma frechada que lhe penetrou o
vazio”136, como diz em várias passagens Pedro Taques. Depois, por
serem em geral obscuras jornadas de mamelucos, não podiam as
bandeiras atrair a historiografia oficial do período colonial, de
tendência áulica e sempre “demasiada encantada com os aspectos
externos da defesa de Portugal, na América, contra a Holanda”137,
lembra José Honório Rodrigues. A situação não mudou muito no
período imperial, como se vê na obra daquele que é considerado o
maior historiador da nacionalidade, Varnhagen, em que o tema não
merece estudo mais profundo. “A visão do mundo de Varnhagen é
política” − explica um crítico contemporâneo −, “revela a
preocupação dominante na classe social dirigente do nosso país,
durante o século XIX”138. Desse ponto de vista que privilegia a ação
dos governantes, oriundos das classes altas, não há muito espaço
para ações de cidadãos comuns, mestiços e indígenas, em sua
maioria.

De contemporâneo do bandeirismo, o que há, em abundância,


é a literatura jesuítica antibandeirante, que se constitui em fonte
básica para muitos historiadores. Específicos sobre o tema foram os
inacianos espanhóis, cuja expansão missioneira se chocou
violentamente, nas três primeiras décadas do século XVII, com a
expansão bandeirante nos aldeamentos do Guairá (no oeste
paranaense), do Uruguai e do Tape (ambos no atual Rio Grande do
Sul), e do Itatim (no sudoeste de Mato Grosso do Sul). O livro mais
conhecido desse ciclo de literatura é Conquista espiritual, do limenho
Antonio Ruiz de Montoya, grande homem de pensamento e ação,
que era o Superior das reduções do Guairá, por ocasião das
agressões paulistas na segunda década do século XVII. É obra
importante, mas é obra de luta, de propaganda, como reconhece um
autor, tão simpático aos índios como John Hemming, em Red Gold
from Brazil: “A Conquista espiritual é um brilhante manifesto. Contém
suficiente exagero e embelezamento para despertar a total simpatia
e a indignação do leitor, e assim mesmo permanece essencialmente
acurado”139.

A historiografia hispano­-americana posterior deu curso amplo à


versão perversa das atividades dos sertanistas de São Paulo.
Alimentada adicionalmente pela frustração dos territórios perdidos
por causa da ação bandeirante, é pródiga em frases injuriosas para
com o bandeirismo, tais como estas, sonoras, catadas ao acaso em
importantes historiadores argentinos: “El espectáculo aterrador de aquel
infernal movimiento!” (Carlos Correa Luna); “[...] aquellas cacerías de
esclavos que contribuyeron a la ruina de las misiones y dejaron en las selvas del
Brasil y del Paraguay un recuerdo de horror” (Enrique de Gandía); “hordas
semi salvajes [...] a la busca de la carne humana” (Angel Scenna).

No período colonial, há apenas duas obras de valor com


compreensão da importância do bandeirismo na formação territorial
do Brasil: a Memória para a História da Capitania de São Vicente, de Frei
Gaspar da Madre de Deus, na qual há passagens em que refuta as
versões históricas dos jesuítas das missões, aos quais atribui a
criação da “leyenda negra” do bandeirismo; e um livro de Pedro
Taques, fundamental para o estudo do movimento, mas que ficou
mais ou menos esquecido até 1869, quando a revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro começou sua publicação (só um
terço de seu conteúdo sobreviveu). Trata­-se da Nobiliarchia paulistana
histórica e genealógica, redigida principalmente entre 1760 e 1770, isto
é, quando os bandeirantes já se haviam transformado nos
povoadores de Minas Gerais, do Mato Grosso, de Goiás, do Sul.
Apesar de ser um livro sobre genealogia, recolhe a tradição oral das
bandeiras e “é uma das maiores fontes de informação do Brasil e de
São Paulo, desde o descobrimento aos anos setenta do século
XVIII”140, diz José Honório Rodrigues, o último dos historiadores a
ser acusado de simpatias genealógicas paulistas...

Esses livros e uma ou outra poesia do movimento arcádico, em


especial “Villa Rica”, de Cláudio Manuel da Costa, formam a
primeira conceituação do bandeirismo, com valorização dos
personagens que asseguram para o Brasil a posse de seu imenso
interior. Quem o diz é Antonio Cândido:

Debruçados sobre o passado da terra, os três homens [o padre, o linhagista e o


poeta] procuram traçar a sua projeção no tempo, irmanados pelo sentimento de
orgulho ancestral e a consciência de dar estilo aos duros trabalhos que plasmaram
metade do Brasil. A verdade e a fantasia irmanam­-se igualmente no seu labor, e
dele sairá a primeira visão intelectual coerente da grande empresa bandeirante.
Contrariando as informações jesuíticas e de mais de um reinol agastado,
acentuam­-se a lealdade, a magnanimidade, a nobreza dos duros aventureiros de
Piratininga, traçando­-lhes o perfil convencional que passou à posteridade141.

Mais tarde, já no século XX, vê­-se a imagem mítica do


bandeirante perfeitamente formada em poemas como “O caçador de
esmeraldas”, de Olavo Bilac, em que Fernão Dias Paes, no final de
suas jornadas nas “minas gerais”, emerge da morte cheio de glória:
“Violador de sertões, plantador de cidades;/Dentro do coração da
pátria viverás!”

João Ribeiro, em 1900, escreveu sua História do Brasil, a


primeira em que é o povo, os anônimos mamelucos inclusive, o
agente principal da evolução nacional. Antes desse livro, os
historiadores davam excessiva importância à ação de governadores
e outros “figurões”, como diz Gilberto Amado. João Ribeiro

refletia entre nós um movimento renovador, cujo centro de eclosão foi a Alemanha
[...] Esse movimento veio liquidar o conceito restrito da história, ligado ao sucesso
político e administrativo. O campo da história é muito mais amplo. Abrange toda a
forma de cultura142.

As duas visões do bandeirismo, a depreciativa e a apreciativa,


convergem em Capistrano de Abreu, solidário com o sofrimento dos
índios e ao mesmo tempo entusiasmado com a ocupação do
território. Foi o primeiro historiador a dar a relevância devida à
“história do interior”, por oposição à “história do litoral”, e a ressaltar
o significado excessivo que sempre se deu à última. A unidade “O
Sertão”, de seus Capítulos de história colonial, publicado em 1907, é
trecho antológico para o conhecimento do Brasil e assim se inicia:
“A invasão flamenga constitui mero episódio da ocupação da costa.
Deixa­-a na sombra a todos os respeitos o povoamento do sertão,
iniciado em épocas diversas, de pontos apartados, até formar­-se
uma corrente interior, mais volumosa e mais fertilizante que o tênue
fio litorâneo”143.

A conquista do sertão, para Capistrano, era o mais importante


evento dos trezentos anos do período colonial. Embora seu tema
predileto fosse o sertão do Nordeste, em particular a zona entre o
São Francisco e o Parnaíba, onde pensava estar o “nó da História
do Brasil”144, a importância que atribuiu, de modo geral, ao interior
do país e aos caminhos da penetração foi o grande estímulo que
tiveram os historiadores da ocupação do território extra­-Tordesilhas.
Uma comparação da forma é bem representativa do espírito: das
menos de duzentas páginas dos Capítulos há setenta dedicadas ao
sertão e apenas trinta ao litoral (Guerras Flamengas);
aproximadamente o inverso da proporção existente na História geral
de Varnhagen.
5.5 A visão ortodoxa (vide Mapa 5)
Oliveira Viana, em Populações meridionais do Brasil, que já foi
classificado, com algum exagero, como sendo a Casa grande e senzala
do sul, descreve a sociedade bandeirante de tal modo, que a
impressão primeira que fica no leitor é a da riqueza e do fausto de
certos personagens da época. Fala, por exemplo, da abundância e
do luxo da fazenda do Padre Guilherme Pompeu de Almeida, em
Araçariguama, não longe de São Paulo, onde por volta de 1700
comia­-se muito bem a qualquer hora em que o viajante chegasse;
camas ricamente preparadas havia para mais de cem hóspedes; e a
biblioteca e a prataria eram de primeira qualidade. Esse aspecto do
livro, publicado em 1918, foi bastante criticado e o autor, a partir da
segunda edição, explica­-se em um Addendum, em que reconhece
que a riqueza dos paulistas da época das bandeiras era
excepcional: só existia em certos casos, em locais e tempos bem
determinados. Põe culpa pela impressão incorreta que dera em
Pedro Taques, sua fonte para esses episódios, a quem passa a
chamar de “fabulista imaginoso, pois suas descrições não condizem
com o testemunho que nos dão os inventários dos antigos
bandeirantes”145. E acrescenta a informação fundamental: “Estes
documentos históricos, numerosíssimos, revelam, ao contrário da
opulência e luxo, uma extremada modéstia no viver daqueles
antigos povoadores”146.

Não há dúvida de que a visão de Oliveira Viana, refocalizada


após as críticas e, provavelmente, após a leitura dos testamentos de
bandeirantes que estavam sendo publicados na década de 1920,
corresponde à ideia geral refletida pelas principais obras sobre
bandeirismo, publicadas depois de Populações meridionais. Afora
exceções, como a do citado padre­-fazendeiro­-banqueiro, a regra
geral é a exiguidade de bens dos bandeirantes e de seu núcleo
populacional básico, São Paulo. Se a essa característica do
movimento, a pobreza, aliarmos duas outras − sua independência e
o que se poderia chamar de atração pelo sertão − teremos os três
elementos básicos da visão ortodoxa do bandeirismo, isto é, aquela
que fica da leitura dos principais estudiosos do movimento, que são
também os que mais se apoiam nas fontes documentais publicadas
no começo do século XX.

Para atestar a pobreza de São Paulo e dos bandeirantes,


abundam documentos: “dos quatrocentos inventários seiscen­tistas,
há apenas vinte que delatam alguma abastança”147, o que é muito
expressivo se considerarmos que os que têm posses são
exatamente os mais interessados em deixar testamentos. Daí a
frase que se repete como uma ladainha nos testamentos da época,
a justificar as entradas pelo sertão afora: os bandeirantes iam
“buscar remédio para sua pobreza”148. Segundo Sérgio Milliet, do
estudo dos inventários da época das bandeiras, feito em Vida e morte
do bandeirante, Alcântara Machado teria tirado

um bandeirante pobre e analfabeto, grosseiro de modos e de haveres parcos,


vivendo quase na indigência, duro para consigo mesmo e com seus semelhantes,
austero e primário, em luta permanente contra as dificuldades de toda espécie,
amante apavorado do sertão, e por todas essas razões naturais, sensatas, lógicas,
capaz de arrancadas maravilhosas que não se lhe apresentavam como
oportunidades de glórias, mas sim como soluções de inexorável urgência149.

O povoado bandeirante, por sua vez, não passa, por longos


anos, “de miserável aldeia, simples entreposto à entrada do planalto
[...]”150. Teria apenas “mil e quinhentas almas”151 ao terminar o
século XVI, isto é, na época das primeiras bandeiras. Cem anos
depois, no final do ciclo, sua população não chegaria a mais de
cinco mil habitantes. A região onde se situava a cidade − o planalto
de Piratininga − era pobre, tanto no que se refere às riquezas
minerais, quanto à qualidade das terras, limitações fundamentais
para uma povoação interiorana da época, que geralmente tinha sua
economia baseada na agricultura ou na mineração. O que salvava
São Paulo era a posição estratégica, na encruzilhada das vias de
penetração terrestres e fluviais. São Paulo é um “nó de
comunicações”, como bem explica Caio Prado Júnior:
Será por aí sobretudo a saída do continente interior para o litoral, e o acesso deste
àquele. O primeiro sentido, do centro para a costa, será imemorialmente o de um
dos ramos dos tupis­-guaranis (os guaranis, propriamente) que partindo de seu foco
original e centro de dispersão, a região entre Paraná e o Paraguai, alcançará a costa
passando por São Paulo [...] Iniciada a civilização é por São Paulo que se farão as
primeiras penetrações do continente: para o altiplano central (Minas Gerais), para
a grande depressão interior (bacia do Paraguai) e para os campos do Sul152.

Quanto à boa dose de independência do movimento


bandeirante, em relação a Lisboa, a Salvador ou ao Rio de Janeiro,
é essa uma constatação de todas as fontes. Os jesuítas espanhóis
referem­-se sempre à liberdade de movimentos da população de São
Paulo: “Toda aquella villa es de gente desalmada y a levantada que no hace
caso ni de las leyes del Rey ni de Dios”153. Não faltam documentos da
administração colonial a frisar a insubmissão dos paulistas. A D.
Pedro II, dizia um Governador do Rio de Janeiro em 1691: “os
moradores de São Paulo não guardam mais suas ordens que
aquelas convenientes aos seus interesses”154. A D. João IV
informava o Provedor da Real Fazenda no Brasil: “com a maior
facilidade [os paulistas] se amotinavam e desobedeciam às mais
estritas ordens dos delegados régios”155. Em Lisboa, havia a mesma
visão da autonomia paulista: o Embaixador da Espanha em Portugal
informa Madri, em 1676, da impotência de Lisboa para atender às
reclamações espanholas de violações de fronteiras, porque os
paulistas, “gente sublevada y forajida”, eram incontroláveis: “Estos
portugueses de San Pablo viven sin freno del respecto y del terror del castigo de
los gobernadores del Brasil”156.

O “caminho do mar”, se pela sua simples existência assegurava


a ligação entre São Paulo e São Vicente, pela sua precariedade
garantia a independência do planalto. Pouco mais do que uma
íngreme trilha indígena, anterior à chegada dos portugueses, obra
dos Tupiniquim, tornava muito difíceis os contatos com a
“civilização”, isto é, com o litoral, estimulando a vida autônoma. Em
casos de ataque de índios, como o que ocorreu em 1595, quando
São Paulo foi quase destruída, seus habitantes só poderiam confiar
em suas próprias forças. Serpenteante, estreito e escarpado, o
caminho do mar era facilmente bloqueável, o que fazia dessa vila
uma fortaleza inexpugnável: “uma Rochela”, como diz um
documento de 1663, lembrando, para indicar a insubmissão de São
Paulo, a agressiva independência que, em certo período da História
da França, teve esse porto, bastião principal do protestantismo
francês, ante o catolicismo dominante.

Um exemplo final, muito divulgado, de quão incontrolável


parecia São Paulo, é o episódio da aclamação de Amador Bueno da
Ribeira, em 1641. Os paulistas, ao receberem a notícia da
restauração de D. João IV, preferiram dar base jurídica a sua
quase­-independência de fato e escolheram seu rei na pessoa de um
cidadão ilustre... que, para o bem da futura unidade nacional, teve o
bom senso de não aceitar o cetro e fugir dos seus aclamadores157.
Sérgio Buarque de Holanda, por esse e outros fatos, vê o
movimento bandeirante desenvolver­-se sobretudo por razões
endógenas:

A obra das bandeiras paulistas não pode ser bem compreendida em toda a sua
extensão, se a não destacarmos um pouco do esforço português, como um
empreendimento que encontra em si mesmo sua explicação, embora ainda não ouse
desfazer­-se de seus vínculos com a metrópole europeia, e que, desafiando todas as
leis e todos os perigos, vai dar ao Brasil sua atual silhueta geográfica158.

Uma palavra, agora, sobre a mais abstrata, embora igualmente


muito documentada, característica do movimento bandeirante, “a
atração do sertão”. Tirante a costa, quase tudo no Brasil colonial era
sertão. O vocábulo deriva, por aférese, de “desertão”, trazendo,
portanto, a ideia de amplitude geográfica e baixa densidade
populacional. É palavra portuguesa antiga, constando, por exemplo,
da carta de Caminha. No plural, entretanto, é brasileirismo. De uma
forma ou de outra, é vocábulo bem brasileiro porque talvez só aqui
se tenha consciência nítida do que é “sertão”, palavra intraduzível
com exatidão em outras línguas (os espanhóis usam o
portuguesismo “sertón”) e caracteristicamente repetida no título de
obras importantes de nossa literatura, como O sertanejo, de José de
Alencar, Os sertões, de Euclides da Cunha, Pelo sertão, de Afonso
Arinos, Sertão, de Coelho Neto, Grande sertão: veredas, de Guimarães
Rosa, ou de nossa música popular, como o antológico Luar do sertão,
de Catulo da Paixão Cearense, e até de nossa menos abundante
música erudita, como os movimentos “Lembranças do sertão” e
“Canto de sertão”, das Bachianas nº 2 e nº 4, respectivamente, de
Villa­-Lobos. O interior era o sertão de Cataguás (região histórica de
Minas), o sertão da Vacaria (no Mato Grosso do Sul), o sertão dos
Parecis (rio Tapajós), o sertão dos Patos (interior de Santa
Catarina), o sertão do Paraupava (região do Tocantins), o sertão da
Jacobina (na Bahia) e tantos outros sertões. E São Paulo era a
“boca do sertão”.

Da Vila de São Paulo, todos vão para o sertão:

Vão os adolescentes. Vão também os velhos. Cerca de noventa anos tem Manuel
Preto ao morrer de uma flechada em plena floresta. Sessenta e seis, o Governador
Fernão Dias Paes Leme, ao iniciar a jornada das esmeraldas, rematada pela morte
no arraial de Sumidouro, sete anos depois. Não se cansam jamais: vinte e quatro
vezes Manuel Campos Bicudo se interna no sertão159.

É a palavra mais comum nos documentos da época: “[...]


aparece e reaparece nos inventários paulistas dos dois primeiros
séculos, a denunciar que para o sertão está voltada constantemente
a alma coletiva como a agulha imantada para o polo magnético”160.

Teria a atração pelo sertão raízes no sangue indígena que


corria abundante nas veias paulistas? É uma causalidade difícil de
provar. O certo é que em São Paulo a miscigenação foi uma prática
constante. O patriarca João Ramalho, que tanto Martim Afonso de
Sousa, em 1532, como Anchieta, em 1554, já encontraram “com
seus filhos mamelucos dominando o Planalto de Piratininga”161, dera
o exemplo inicial. A influência indígena em São Paulo persistiu
durante todo o período das bandeiras, o que levou historiadores do
valor de um Georg Friederici a considerá­-las como fenômeno
tipicamente mameluco. Realmente, como ensina Teodoro Sam­paio,
até meados do século XVIII falava­-se em São Paulo mais a língua­-
geral do que o português. Há casos de bandeirantes, como
Domingos Jorge Velho, o brutal destruidor do Quilombo dos
Palmares, que precisava de um “língua”, como se dizia, isto é, de
intérprete, para se comunicar com quem falasse português. Foi esse
o idioma das bandeiras e por isso são tupis os nomes de muitas
localidades identificadas pelos bandeirantes, até mesmo em regiões
habitadas por indígenas de outras etnias162. Indígena era também a
alimentação e muitos dos costumes bandeirantes: o sistema
agrícola das queimadas, a construção de casas de pau a pique
(galhos entrelaçados e barro) com teto de sapé; o tomar o banho
diário, o dormir em rede, e, até, para forçar o pitoresco, o comer a
formiga içá...

5.6 A dimensão política (vide Mapa 6)


Na visão que consideramos ortodoxa do bandeirismo, a
impressão dominante é a da independência do movimento em
relação à Metrópole. Nos livros sobre bandeiras, não faltam
descrições de jornadas mostrando seus protagonistas como
representantes de um espírito puramente local, sem nenhuma
solidariedade com os objetivos do Governo português. “O paulista” −
é Paulo Prado quem o diz − “palmilhou a maior parte da “terra
inóspita e grande” dos sertões brasileiros quase só, na rudimentar
organização da bandeira, sem nenhum auxílio oficial, e muitas
vezes infringindo ordens severas do Ultramar”163. Não teriam,
entretanto, pelo menos alguns bandeirantes a ideia de que estavam
ocupando terras para Portugal? Não procurariam, ademais, os
governantes lusos influenciar o movimento bandeirante na direção
de suas metas expansionistas?

No estudo do bandeirismo como fator da ampliação territorial do


Brasil, é o enfoque de Jaime Cortesão o que mais privilegia a ação
orientadora da Coroa portuguesa. Esse enfoque, perceptível em
toda a obra do historiador português, é central em Raposo Tavares e a
formação territorial do Brasil, em que, ao estudar os feitos do
bandeirante, julga ver claramente a mens política da Metrópole
dirigindo o rude braço que destruiu as reduções jesuíticas
espanholas no Sul e no Oeste e planejando as largas passadas da
chamada “bandeira dos limites”, que, saindo de São Paulo em 1648,
depois de se embrenhar profundamente no Oeste, pelos rios
Madeira e Amazonas, chegou a Belém em 1651.

Português de nascimento, Raposo Tavares veio para São Paulo


com vinte anos. Nunca perdeu contato com os interesses da Coroa,
inclusive porque seu pai era o preposto do Conde de Monsanto,
donatário da Capitania de São Vicente e um dos grandes
estimuladores oficiais do bandeirismo. Um ano antes da bandeira
dos limites, esteve em Portugal, onde teria sido “encarregado de
uma missão em grande parte secreta”164. A parte ostensiva era
tentar descobrir metais preciosos; a outra seria conhecer melhor o
oeste do Brasil, para poder bem identificar os interesses de Portugal
na região. Mas Raposo Tavares não é a única exceção, embora
suas ações sejam excepcionais; é um exemplo entre vários. Outros
bandeirantes, quase todos portugueses de nascimento, como
Manoel Preto ou Fernão Dias Paes, também estavam interessados
em fazer passar à Coroa portuguesa, além do Prata e do
Amazonas, o centro da América do Sul, aquela região quase
desconhecida que, em antigos mapas espanhóis, figurava sob a
rubrica “provincias no descubiertas”.

Não chega Jaime Cortesão ao exagero de supor que a razão


geopolítica seja a causa de todas as bandeiras; mas não crê
igualmente que a caça ao índio ou a procura de metais preciosos
esgotem os objetivos do movimento:

Seria errado [...] supor que todas as bandeiras e todos os bandeirantes obedecessem
estritamente a objetivos econômicos, sem a menor consciência da política e das
realizações geográficas que a expansão das bandeiras entranhava. Houve também,
ora anterior ora conjuntamente com os ciclos da caça aos índios e da busca do ouro,
aquilo que poderíamos chamar uma política de realização da ilha­-Brasil [...]165.

Detenhamo­-nos nessa ideia.

Desde os primeiros tempos, teria tido o Governo português −


ora representado pelos melhores administradores do Conselho das
Índias, ora por governantes locais de tirocínio − a noção da
impropriedade do meridiano das 370 léguas como divisa de sua
colônia americana. Como diz Cortesão, “o Tratado de Tordesilhas,
atribuindo à soberania lusa uma base frustra e inviável de Estado,
serviu de estímulo à busca porfiada de novos lineamentos
geográficos, que lhe dessem formação orgânica e condições de
segurança”166. A ideia da base territorial insuficiente teria sido
adquirida dos Tupi­-Guarani, a grande nação que dominava a costa
leste e o atual Paraguai. Dos Tupi­-Guarani, o português não só
aprendeu a língua, percorreu as trilhas, adquiriu hábitos, mas
também, o que interessa particularmente aqui, assimilou a noção da
unidade do país que habitavam.

Povos dotados duma grande capacidade de expansão, não possuiriam os tupis­-


guaranis [...] [pergunta Cortesão, para depois responder afirmativamente] uma
cultura geográfica ainda que rudimentar, correspondente a sua área de deslocação?
E não haveriam comunicado [...] aos europeus [...] uma noção de unidade do
território, incompatível com o Tratado de Tordesilhas?167.

A essa ampla área, os índios dariam o nome de Pindorama,


segundo repetiam velhos manuais escolares, sem base nos
documentos.

E, assim, teriam os colonizadores entrado em contato com o


mito da ilha Brasil, expressão divulgada por Cortesão, mas já
encontrada em um ou outro autor do século XIX (o geógrafo Jaime
Batalha Reis, por exemplo, em obra de 1896, usa a expressão ilha
brasileira). O país dos Tupi­-Guarani, onde se falava o idioma que os
jesuítas gramatizavam na língua­-geral (conhecida também pelo
termo tupi “abeneenga”, língua de gente), seria uma ilha limitada no
interior pelo encontro de um grande rio do norte com o rio da Prata.
O encontro se daria numa lagoa que, em tempos e lugares
diferentes, teve muitos nomes: Xaraes, talvez o mais comum,
Eupana, Paytiti, Dourada, Manoa, etc. Nos primeiros tempos, o
grande rio do Norte foi identificado como o Tocantins e, dessa
maneira, a lagoa estaria no Planalto Central. A visão de uma ilha
Brasil alongada na direção norte­-sul e quase totalmente dentro do
meridiano das 370 léguas estava, aliás, bem de acordo com a ideia,
que persistiu por alguns anos, de que a América do Sul era bem
mais estreita do que é realmente. Isso explica os documentos
espanhóis que falam do perigo que poderiam significar as excursões
dos habitantes de São Paulo, situado a cerca de 50 km do Atlântico,
para Potosí, o centro da riqueza espanhola nos Andes, como se o
planalto de Piratininga ficasse perto do altiplano boliviano.

É curioso observar que há base física para o mito. Na área do


Distrito Federal (Brasília) encontram­-se, quase se tocando, as
nascentes de rios das bacias do Prata e do Araguaia­-Tocantins (e
também a do São Francisco). Nas proximidades de Planaltina, no
parque das Águas Emendadas, existe o que um folheto da
Secretaria de Agricultura do Governo do Distrito Federal, de 1979,
chama, provavelmente com exagero, “um dos mais extraordinários
fenômenos hídricos do mundo”. Nas extremidades opostas de um
pântano, estreito e comprido, nascem dois córregos que vão lançar
suas águas, um no rio Maranhão, tributário do Tocantins, outro no
rio São Bartolomeu, que pertence à bacia do Paraná. Caso se
quisesse forçar mais a coincidência do mito com a realidade,
poderia ser lembrado, primeiro, que o pântano pode ter sido um lago
e, depois, que bem próximo existe realmente uma lagoa, a histórica
lagoa Bonita, sempre mencionada por visitantes ilustres do planalto
Central, como Varnhagen e Luis Cruls.

Mas, com o correr do tempo e o melhor conhecimento do


território, o mito da ilha Brasil foi­-se dilatando para oeste e o “rio do
Norte” passou a ser identificado não mais com Tocantins, sim com a
linha fluvial Madeira­-Amazonas. Em outras palavras, a ideia do
Brasil foi­-se ampliando e o território imaginado foi adquirindo forma
vagamente parecida com a atual. A fundação de Belém, em 1616,
teria sido fundamental para a ampliação da ilha Brasil, pois “a posse
do vastíssimo delta amazônico fez compreender aos portugueses
quanto seria precária a soberania sobre esta área do território
brasileiro se o vale amazônico viesse a cair totalmente em mão dos
espanhóis”168. Aí está a razão da viagem de Pedro Teixeira, que, em
1637, subiu, pela primeira vez, o Amazonas e afluentes, até Quito.
Essa entrada teve duas consequências: a fundação de Franciscana,
no mítico rio do Ouro (talvez o Aguarico, em pleno Equador), o que
tendeu a dilatar a ilha Brasil na direção do oeste da América do Sul;
e o conhecimento do curso do Madeira, cujas nascentes pareciam
situar­-se na região argentífera de Potosí, o que estabeleceu “os
termos dum programa de geografia e soberania política a ser
resolvido por Antonio Raposo Tavares”169. Isso dez anos depois, na
bandeira de limites, a maior proeza da História das Bandeiras,
possivelmente uma das mais notáveis expedições geográficas do
mundo (o Padre Vieira, jesuíta, sem simpatia pelos bandeirantes,
pensa assim).

Como no caso anterior, também aqui existe uma realidade


geográfica a apoiar o mito da ilha Brasil dilatada, desde que se
considere como “rio do Norte” o arco fluvial contínuo formado pelos
rios Guaporé, Mamoré, Madeira e Amazonas. Realmente, no
sudoeste de Mato Grosso, os rios Alegre, afluente do Guaporé, e
Aguapeí, formador do Paraguai, correm paralelos e em sentido
oposto, por vários quilômetros, separados por uma estreita faixa de
terra de cerca de 7 km. Aí existem diversos varadouros, sempre
focalizados quando se discutem projetos de união das bacias do
Amazonas e do Prata, projetos existentes desde os tempos
coloniais e periodicamente reelaborados. A ideia antiga de um lago
de origem comum tanto do Amazonas como do Prata também pode
ter sido base concreta nas várias lagoas do alto rio Cuiabá,
próximas da região drenada por ambas as bacias, ou, com mais
probabilidade, no próprio Pantanal − um grande lago pontilhado de
ilhas, nos períodos de cheia.

Cortesão cita, em apoio de sua tese, trecho do Padre Simão de


Vasconcelos, cronista da Companhia de Jesus em meados do
século XVII, em que há ambas as concepções da ilha Brasil − a
estreita e a dilatada − e menção à origem indígena do mito.

Contam os índios versados no sertão que, bem no meio dele, são vistos darem­-se as
mãos estes dois rios [o Prata e o Tocantins] em uma lagoa famosa ou lago fundo de
águas que se ajuntam das vertentes das grandes serras do Chile e Peru, e demora
sobre as cabeceiras do rio que chamam São Francisco, que vem desembocar ao mar
em altura de dez graus e um quarto; e que desta grande lagoa se formam os braços
daqueles grossos corpos [...] que [...] abarcam e torneiam todo o sertão do Brasil
[...] Verdade é que, com mais larga volta, se avistam mais ao interior da terra [o
Prata e o Amazonas], encontrando não águas com águas, mas avistando­-se tanto
ao perto que distam somente duas pequenas léguas, donde com facilidade os que
navegam corrente acima de um destes rios, levando as canoas às costas naquela
distância entreposta, tornam a navegar corrente abaixo do outro: é esta a volta,
com que abarcam estes dois grandes rios duas mil léguas de circuito170.

É, entretanto, nas velhas cartas coloniais que Cortesão vê com


mais nitidez a intenção de ocupar a ilha Brasil. Estudando­-as em
sua História do Brasil nos velhos mapas, crê ter a confirmação de que os
lusos, desde o primeiro quartel do primeiro século da colonização,
procuraram moldar sua colônia americana numa forma geográfica
orgânica, com fronteiras naturais. Isso era geralmente conseguido
nos mapas deslocando­-se a foz do Prata para leste, de maneira a
incluí­-la, com a foz do Amazonas, na área limitada pela linha de
Tordesilhas. Esta, por sua vez, era empurrada para oeste, e quase
sempre passava perto de uma divisa natural constituída pelos
cursos norte e sul dos dois grandes rios continentais. Tudo
revelando o desejo português de que a ilha Brasil ficasse
inteiramente na sua parte do continente.
No notável mapa de Bartolomeu Velho, de 1561, vemos o Prata
e o Pará − na posição aproximada do Tocantins − ligando­-se na
lagoa de Eupana sobre a qual passa a linha de Tordesilhas, que
corta o delta do Amazonas e deixa a foz do Prata inteiramente na
área portuguesa. Uma ilha Brasil semelhante aparece em outros
mapas portugueses dos séculos XVI e XVII, como nos de Luís
Teixeira (1600) e de João Teixeira Albernaz (1640). Com o passar
do tempo e o melhor conhecimento da terra, os mapas vão ficando
ainda mais ousados, passando a representar uma entidade
cartográfica mais arredondada, mas também com divisas naturais. A
penetração portuguesa já tinha deixado para trás a velha raia das
370 léguas, nem representada mais em muitos mapas europeus do
século XVII, como no do francês Sanson d’Abbeville, de 1650, em
que as divisas fluviais do Brasil estão unidas na lagoa de Xaraes.

Façamos agora a crítica das ideias do historiador português


sobre a ilha Brasil e sua ocupação pelos bandeirantes sob
orientação da Coroa portuguesa. Depois que Cortesão divulgou a
ideia da ilha, é de perguntar por que não se falava mais dela antes.
Sem dúvida, é muito visível a fronteira fluvial que daria essa
conformação ao país em várias cartas antigas, primeiro
portuguesas, depois de outras nações europeias. Nos famosos
mapas­-múndi de Hondius (1608) e de Bleau (1650), por exemplo,
veem­-se claramente os rios que se ligam para formar o contorno
oeste da ilha Brasil.

Que os portugueses sempre procuraram dar uma forma


compacta e com limites nítidos à colônia, não há dúvida. Não
bastassem os resultados práticos dessa política expansionista, que
não seriam possíveis sem o Governo, há vários documentos oficiais
que provam a determinação estatal de expandir o Brasil até
fronteiras naturais convenientes: as bocas do Prata e do Amazonas
sempre foram assim consideradas (ou pelo menos desejadas) e, no
interior do continente, também sempre se buscaram limites fluviais,
no começo coincidindo com Tordesilhas, depois, com o avanço da
penetração, ignorando esse meridiano. Na verdade, o Brasil teria a
oeste limites totalmente fluviais − a linha Amazonas, Madeira,
Guaporé, Paraguai, Prata − se a penetração, por um lado, não
tivesse subido o rio Amazonas até Tabatinga e, por outro, não
tivesse sido rechaçada no rio da Prata.

Quanto à ação orientadora da Coroa portuguesa sobre o


movimento bandeirante, na verdade ela não transparece das obras
dos que estudaram os documentos mais de perto, como Taunay e
Alcântara Machado. Ao contrário, a ideia aí predominante é que o
bandeirismo foi um movimento espontâneo, provocado basicamente
por razões econômicas locais. Cortesão não afirma, é preciso frisar,
que o movimento teve na orientação da Coroa sua principal causa;
afirma, sim, que algumas bandeiras tiveram a finalidade política de
reconhecer ou ocupar território. E considera que dar às bandeiras
finalidades exclusivamente econômicas, como a caça ao índio e a
pesquisa de metais preciosos, é amputar o movimento da sua
dimensão mais nobre, a política.

O argumento é original e atraente, como muitos outros do


historiador português: mas aqui o pesquisador frio parece não
conter o poeta patriótico, apaixonado por mitos, envolto nas névoas
de um sebastianismo à Fernando Pessoa de Mensagem. Na verdade,
é possível que algumas bandeiras tenham tido a finalidade de
ocupar espaço, de apossar­-se de uma região que, de boa ou má­-fé,
acreditavam sua. No caso que mais estuda, a “bandeira de limites”
de Raposo Tavares, não consegue, entretanto, demonstrar
cabalmente sua tese: não prova, em outras palavras, que o Governo
português organizou a grande jornada, nem que a finalidade da
bandeira era tomar conta da terra. Publica até um comentário
contemporâneo do Padre Vieira, que dá à bandeira clara finalidade
escravagista:

partiram os moradores de São Paulo ao sertão em demanda de uma nação de índios


chamados serranos [habitavam a região de Santa Cruz de la Sierra] distante
daquela capitania muitas léguas pela terra adentro, com intento de ou por força ou
por vontade os arrancarem de suas terras e os trazerem às de São Paulo e aí se
servirem deles como costumam171.

Um historiador das bandeiras de nossos dias tem uma visão


não muito distante da que Vieira tinha há 350 anos, igualmente
dando à jornada de Raposo Tavares objetivos econômicos e não
geopolíticos:

na verdade, Raposo Tavares e seus companheiros, na maioria residentes em


Santana de Parnaíba, procuravam, desta vez, investigando a possibilidade de
assaltar as missões do Itatim, ao longo do rio Paraguai, reproduzir o êxito obtido
nas invasões do Guairá. Apesar de rechaçado pelos jesuítas e seus índios,
perseguido pelos irredutíveis Paiaguá e molestado pelas enfermidades do sertão,
Raposo Tavares seguiu viagem pelo Madeira até o Amazonas, chegando a Belém
após vagar por três anos na floresta172.

É certo, pois, que se pode ver uma ilha Brasil em vários mapas
antigos; é certo que o Governo português procurou ocupá­-la com
ações diretas, no Prata e no Amazonas e, em alguns períodos,
apoiou os bandeirantes no oeste (como em Mato Grosso, nas
décadas anteriores ao Tratado de Madri, de 1750). Não está
provado, entretanto, que as bandeiras paulistas, ou mesmo algumas
delas, tivessem, além de suas finalidades reconhecidas da caça ao
índio e da procura de metais preciosos, o objetivo de conquistar
territórios para Portugal. Motivação política, portanto, não; o que não
quer dizer que as bandeiras não tenham tido imensas
consequências políticas.

5.7 Julgamentos
Conhecedor de todas as fontes, porém mais humanista que
nacionalista, Capistrano de Abreu aceitou julgamentos sobre os
bandeirantes contidos nas obras dos jesuítas espanhóis. Sua gene-­
rosa simpatia pelos índios igualmente deve ter contribuído para a
dúvida moral que expressa sobre algumas proezas bandeirantes, da
fase do apresamento de indígenas, em conhecida passagem:
“Compensará tais horrores a consideração de que por favor dos
bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?”173.

A visão dos jesuítas, a postura de historiadores do prestígio de


um Capistrano certamente influenciaram os estudiosos e
divulgadores brasileiros que criaram uma versão negativa do
movimento bandeirante. É, embora de forma menos nítida, a “leyenda
negra” da colonização espanhola na América − a conquista para ela
seria um bárbaro episódio de destruição − transladada ao fato
básico da formação territorial do Brasil. Aliás, o capítulo LXXV,
“Entrada de los de San Pablo en Jesús María”, da Conquista espiritual, que
descreve a destruição de uma das missões do Tape pela bandeira
de Raposo Tavares (não mencionado pessoalmente, para que seu
nome não tivesse notoriedade, segundo Jaime Cortesão), rivaliza­-se
com as páginas mais eloquentes da obra poderosa e panfletária do
Bispo Las Casas, uma das fontes principais da lenda negra.

Com a divulgação das atas e outros documentos da edilidade


paulistana e de inventários e testamentos antigos, feita pelo Arquivo
Histórico do Estado de São Paulo nas duas primeiras décadas do
século XX, começou a haver material para as monografias de
Washington Luiz, Alcântara Machado, Alfredo Ellis Junior, Paulo
Prado, Basílio de Magalhães e Carvalho Franco e para os densos
trabalhos de Affonso d’Escragnole Taunay, especialmente sua
História geral das bandeiras paulistas, cujo primeiro tomo foi publicado
em 1924 e o décimo primeiro e último em 1950. Mais recentemente
outros historiadores, como Aurélio Porto em História das missões
orientais do Uruguai, começaram a explorar os documentos da
chamada “Coleção de Angelis” (adquirida pelo Governo em 1853 e
hoje depositada na Biblioteca Nacional), que, contrastando com a
versão dos jesuítas espanhóis, deixam os bandeirantes em melhor
posição perante o tribunal da História.

A verdade é que de muitos eventos históricos se podem tirar


uma lenda branca − no caso dos bandeirantes, o herói com
escassos meios e seus grandes trabalhos − e uma lenda negra − o
cruel caçador e suas vítimas indígenas. Bem pergunta o geógrafo
francês Pierre Monbeig, precisamente ao meditar sobre o
bandeirismo: “Mas que episódio da história gloriosa, em não importa
que país, deixará de estar manchado por algum crime?”174 Um
exemplo expressivo. O primeiro donatário da capitania do Cabo
Norte foi Bento Maciel Parente. Relatos jesuíticos o descrevem em
cores escuras; John Hemming, que não abusa de expressões fortes,
o vê como “o matador mais feroz dos índios do Maranhão”. Pois
este senhor é “um guerreiro distinto”, para Varnhagen, e um
“soldado, sertanista e administrador dos mais notáveis que o Brasil
possuía”, para Hélio Viana, que dele escreveu uma pequena
biografia. Provavelmente, filho de seu tempo e lugar, era tudo isso...

Autores importantes de nacionalidade neutra, como o alemão


Georg Friederici, não restringem qualificativos elogiosos ao tratar
dos feitos bandeirantes e das consequências territoriais de suas
ações, ao mesmo tempo em que carregam nas tintas ao descrever o
tratamento dado aos indígenas. Bastam dois parágrafos de seu
Caráter da descoberta e conquista da América pelos europeus para ilustrar
essa posição balanceada:

Quando, finalmente, chegou ao termo o período das bandeiras, os paulistas, tanto


os brancos como os mamelucos, tinham feito grandes descobertas geográficas e
encontrado quase todas as minas e jazidas de ouro e diamantes do Brasil. Deram
vida e impulso a amplas camadas da população e muito realizaram em prol da
expansão geográfica e do poder político e econômico do Brasil. Pelo caráter ímpar
de seus feitos e por seus méritos insuperáveis, sua ação ultrapassa a época em que
viveram, projetando­-se no futuro [...] Mas, durante todo esse tempo, os paulistas
deixaram atrás de si indelével traço de ruína e desolação [...] A indizível
calamidade, a dor e a desgraça que sua rapinagem e cativeiro causaram a essa
gente [os índios], as suas mulheres e crianças inocentes, são algo de que não se
pode fazer uma ideia exata175.

Em vários autores hispano­-americanos, há também, além da


condenação moral, a admiração pelo feito. Uma frase de Enrique de
Gandía ilustra a afirmativa: “Los terribles bandeirantes, cuyo sólo nombre
infundía pavor en las misiones jesuitas y en los poblados de Paraguay, fueron los
hacedores de una gran nación”176.

O que realmente ressalta dos documentos é a dureza dos


bandeirantes para com os naturais da terra, até a brutal violência de
um ou outro personagem. Nada a justifica. Lembre­-se, entretanto,
que “los conquistadores” da América hispânica, “les coureurs de bois” do
Canadá, os norte­-americanos do “farwest”, os holandeses nas
Índias, os ingleses na Austrália, os alemães da empresa comercial
dos Welser (que ocupou a Venezuela de 1529 a 1546), enfim, todos
os outros povos “civilizados” da Europa não foram mais “gentis” em
suas relações com os nativos. A violência dos fronteiriços de uma
civilização em contato com outra, tecnicamente inferior, é,
infelizmente, uma constante de todos os tempos, de todos os
lugares.

A verdade é que no tempo das bandeiras encontramos ações


violentas nos diversos segmentos sociais, inclusive entre os
jesuítas, certamente o grupo mais culto e generoso para padrões da
época e do local. Também eles usaram, na expressão de Anchieta,
“espada e vara de ferro”177 para ajudar os indígenas... a entrar no
Paraíso: “compelle eos intrare” (obriga­-os a entrar), como reza a
passagem bíblica. Também eles desprezaram os valores culturais
dos indígenas em sua política de aldeamentos. Hemming lembra
que os Carijó (tribo tupi das proximidades de São Paulo)
“marchando nas bandeiras escravizadoras eram provavelmente tão
felizes quanto seus primos guaranis no mundo seguro, piedoso e
artificial dos jesuítas”178. Seguir sertanistas nas trilhas do interior,
guerrear com tribos rivais, escravizar inimigos, talvez fosse até mais
próximo do mundo cultural silvícola, isto é, respeitava mais seus
valores, do que viver “reduzido” nas aldeias agrícolas dos jesuítas,
por melhor que fossem as intenções destes.

Os bandeirantes poderiam, quem sabe, beneficiar­-se do


reconhecimento de que viviam em outro tempo e em outra cultura,
rudes e intransigentes para os padrões atuais. Isso permitiria,
tangenciando a indagação de Capistrano, se valeu a pena a
conquista, perguntar até onde é correto julgar com valores de hoje a
ação dos homens de ontem. É o argumento usado pelo poeta
espanhol Manuel José Quintana para explicar a atitude dos
conquistadores: “Su atroz codicia, su inclemente saña/ Crimen fue del
tiempo, no de España”. Mas, na verdade, nenhum argumento desculpa
a violência comprovada de bandeirantes contra indígenas; nem
esconde o fato de que foram os jesuítas, com todos os possíveis
erros de seus métodos de aculturação, que verbalizaram a
consciência moral da época, na defesa constante das populações
autóctones. Às vezes com a eloquência barroca de um Vieira, que
ousava dizer para uma audiência de escravocratas em São Luís:
“Ah! fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se
torcerem, haveria de lançar sangue [...] Todos os senhores se
encontram em pecado mortal, todos os senhores vivem em estado
de excomunhão, e todos os senhores estão indo diretamente para o
inferno” (Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, em 1653).

Com o desenvolvimento atual de São Paulo, a visão ortodoxa


do bandeirismo, cujos traços principais tentamos identificar acima,
sofre deformação idealista. Começam a repetir, com frequência
irritante, expressões heroicas sobre os bandeirantes, pinçadas aqui
e ali, tais como “raça de gigantes”, uma frase traduzida de Saint­-
Hilaire, que serviu de título a uma obra de Ellis Junior. O
bandeirante, rude caçador de índios, virou herói de epopeias
infantis, ilustre ancestral das famílias paulistas “quatrocentonas”.
Altivo personagem das pinturas e estátuas que adornam o Museu
do Ipiranga, em São Paulo; sempre elegante, de chapelão, colete e
botas de couro. Nobre, forte, determinado, como na grande estátua
de mármore do Anhanguera (de Luigi Brizzolara) em frente ao
parque Trianon, na Avenida Paulista. O lema, esculpido no sopé da
obra, revela bem o propósito edificante: “acharei o que procuro ou
morrerei na empresa”.

O exagero provinciano provocou uma reação, também ex-­


cessiva, atualmente em moda, como se vê em livros de divulgação
de nossos dias, tais como Bandeirantismo: verso e reverso (1982), de
Carlos Davidoff, e Como o Brasil ficou assim (1982), de Enrique
Peregalli, nos quais os aspectos negativos do movimento − a
violência cultural contra os indígenas, a vitória desonrosa contra os
mais fracos − são privilegiados. Em recente tese de mestrado
(1994), Affonso d’E. Taunay e a construção da memória bandeirante, Paulo
Cavalcanti de Oliveira Júnior atribui a Taunay o papel fundamental
na construção do mito bandeirante: refletindo o ambiente de uma
São Paulo enriquecida, este historiador teria criado uma história de
valentes desbravadores, a partir de brutos rapineiros, com
medíocres motivações. Viana Moog, décadas atrás, já havia, aliás,
reparado que as dimensões excessivas dadas ao mito bandeirante
faziam com que absorvesse indevidamente características típicas do
imigrante, estas, sim, diretamente relacionadas com o
desenvolvimento industrial paulista. As críticas, umas mais
pertinentes, outras menos, são enriquecedoras: as excrescências
devem ser podadas, a boa história não é escrita com fantasias ou
invenções. O que não se pode, entretanto, é ignorar ou apequenar o
fato de que, durante dois séculos, sertanistas de São Paulo
trilharam e de certa forma ocuparam várias partes do interior da
América do Sul, que, por isso mesmo, ficaram brasileiras. O mito é
sempre uma construção fantasiosa; mas em muitos casos, como
neste, tem uma sólida base na realidade.

Na verdade, acabamos de ver isso, o personagem que se tira


dos autores “clássicos”, do movimento, de Alcântara Machado em
especial, pois foi quem mais estudou o “homo” bandeirante, é
basicamente um pobre mameluco, um rústico escravizador, que,
“descalzo de pie y pierna”179, como diz um documento de 1676 do
“Cabildo” de Assunção, percorre sem parar as trilhas do interior do
Continente. Dotado, no entanto, daquela vitalidade brutal que lhe
permitia, na esteira de seus antepassados paternos, navegar
confiante pelas tormentosas rotas do sertão sem fim.
Fechemos, finalmente, este capítulo sobre bandeirismo fazendo
nossas estas afirmações de Arno e Maria José C. de Wehling,
constantes de seu recente (1994) Formação do Brasil Colônia:

Às vezes, as bandeiras têm sido excessivamente valorizadas na historiografia e na


literatura do século XX como forma de justificar a importância ou mesmo a
primazia de São Paulo na federação brasileira. Nem por isso, entretanto, devem ser
minimizadas. Uma avaliação ponderada pode apontar, como suas principais
consequências, o alargamento territorial do país, embora ao preço da escravização
em larga escala dos indígenas e da destruição das missões jesuíticas espanholas; a
descoberta de metais preciosos em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso; o melhor
conhecimento orográfico e hidrográfico do interior do país; e a constituição de um
núcleo de poder autóctone, em geral bem menos dependente das autoridades e dos
comerciantes metropolitanos do que o representado pelos senhores de engenho180.
Capítulo VI
Rio da Prata: a fronteira desejada
As fronteiras luso­-espanholas da América [...] resultarão do entrechoque de forças
contrárias [...] fixando­-se afinal, depois de muitas oscilações, numa linha que
representa o justo equilíbrio entre os esforços colonizadores de ambas as potências
[...]. (Caio Prado Júnior, Formação dos limites meridionais do Brasil.)

6.1 Portugueses e espanhóis na boca do Prata


O rio Amazonas (lamentável que não se fixou o nome antigo,
“das” Amazonas, tão mais evocativo), provavelmente descoberto por
navegantes a serviço da Espanha, foi colonizado por portu­gueses,
depois da fundação de Belém, em sua foz, em 1616. No rio da
Prata, a história é oposta: descoberto por portugueses, foi ocupado
por espanhóis. Vespúcio, navegando numa expedição lusa em
1501, teria sido o primeiro a avistar o grande rio. Muitos
historiadores não creem, entretanto, que essa frota, provavelmente
comandada por Gonçalo Coelho, tenha atingido tal latitude. O certo
é que, em 1514, a armada organizada em Lisboa pelos financistas
Nuno Manuel e Cristovão de Haro e comandada por Estevão Fróis e
João de Lisboa chegou à foz do Prata, donde teriam levado a seu
rei o machado desse metal que deu ao rio seu nome definitivo181.

Em 1513, bem mais ao norte, cruzando o atual Panamá, já


tinha havido a notável descoberta do Mar del Sur, por Vasco Nunes
de Balboa. O fato estimulara a procura da passagem marítima, que
deveria existir e que alguns pensaram bem poderia ser pela fenda
continental do Prata: há mapas, como o do alemão Johanner
Schöner, de 1515, que colocam o litoral do Uruguai como o extremo
sul do continente.

Para pesquisar a passagem e também para assegurar a posse


de uma região que parecia estar a oeste da demarcatória de
Tordesilhas, a Espanha aprestou uma pequena armada sob o
comando do seu piloto mayor, o português João Dias de Solis,
conhecido, até em documentos oficiais, pelo pitoresco apelido Bofes
de Bagaço. Em janeiro ou fevereiro de 1516, entrou no rio que os
indígenas chamavam Paraná­-Guaçu e que Solis chamou “Santa
María de la Mar Dulce”, curiosamente o mesmo nome que Pinzón deu
ao Amazonas. Navegou até a ilha que denominou Martim Garcia
(um seu marinheiro que morreu e foi nela enterrado) e desembarcou
em algum ponto próximo na costa hoje uruguaia. Logo foi trucidado
pelos índios Guarani, uma tragédia vista por seus companheiros,
das caravelas próximas. A Espanha em todo caso ficou sabendo
que a possível passagem era na verdade um grande rio que
provinha do âmago do continente. A procura continuou mais ao sul,
até que Fernão de Magalhães, em 1519, encontrou o estreito que
hoje leva seu nome na primeira viagem de circum­-navegação do
globo.

Relaciona­-se indiretamente com Solis o descobrimento do rio


Paraguai. Morto o piloto­-maior, três naves de sua armada estavam
regressando à Espanha, quando uma delas naufragou perto da ilha
de Santa Catarina. Anos depois, um dos sobreviventes, Aleixo
Garcia, ouvindo falar em um império “en el cual había ciudades de piedra,
una sierra que brotaba plata, un lago donde decían que moría el sol y un rey que,
por estar cubierto de planchas de plata, lo llamaban blanco”182, organizou
com os indígenas da costa uma grande excursão que cruzou o rio
Paraguai, atravessou o Chaco e teria chegado aos contrafortes
andinos, onde os índios chiriguanos deram­-lhe provas da existência
de uma cultura adiantada (o Império Inca, mais tarde, em 1527,
descoberto por Pizarro). Na volta, Aleixo e quase todos os seus
companheiros, carregados de objetos de prata e de ouro, foram
mortos pelos índios Paiaguá, os famosos canoeiros do pantanal;
mas, sobreviveram alguns para contar a história, ocorrida em 1524.

Nos anos seguintes, houve outras expedições espanholas e


portuguesas a explorar o grande rio do sul. Fatos e lendas de uma
serra de prata e a possibilidade de o rio ser o caminho para se
chegar a ela continuavam a inflamar as mentes. Os espanhóis
relatam com pormenores a viagem de Sebastião Caboto que subiu o
rio em 1527, fundou um forte na confluência do Paraná com o
Carcaranha (Sancti Spiritus) e continuou águas acima pelo Paraguai e
Pilcomaio. Os portugueses descrevem mais a expedição de Pero
Lopes de Sousa que, em 1531, separando­-se de seu irmão, Martin
Afonso (o fundador, em 1532, de São Vicente, a primeira vila do
Brasil), explorou e colocou padrões portugueses na boca do Prata.
O fato de os portugueses não terem estabelecido aí nenhuma
feitoria e de, ao dividirem o Brasil em capitanias em 1534, terem
limitado a mais sulina delas na latitude de 28º, isto é, na altura da
ilha de Santa Catarina, é interpretado por alguns autores como o
reconhecimento da soberania espanhola na região do Prata.

O adelantado Pedro de Mendoza funda Buenos Aires,


originalmente Nuestra Señora del Buen Aire, em 1536. O sistema de
adelantados que a Espanha usou muito no século XVI lembra
vagamente o dos donatários portugueses e é uma espécie de
privatização do processo colonizador: a Coroa fazia um acordo com
um particular que tinha meios para se instalar e se defender em
algumas regiões e em troca dava­-lhe o governo destas. A jornada
de Mendoza e suas peripécias nas terras platenses são particular-­
mente bem documentadas pela participação nelas de um soldado
alemão, Ulderic Schmidel, que deixou uma das mais completas
crônicas desses inícios coloniais.

Mendoza enviou seu lugar­-tenente João Ayolas à procura da


serra da Prata. Este subiu o Paraná, o Paraguai, atravessou o
Chaco e chegou à região dos charcas, “donde voltou com boa
quantidade de ouro e de prata”. No regresso, a expedição foi
aniquilada pelos já mencionados índios Paiaguá. Algum tempo
depois, João de Salazar, mandado em socorro de Ayolas, funda em
1537, no rio Paraguai, em frente à foz do Pilcomayo, a cidade de
Assunção, destinada a ser a principal base regional da expansão
espanhola durante o século XVI. De lá partiu, por exemplo, a grande
entrada de Martínez de Irala, que chegou ao Peru em 1547, para
verificar, para grande decepção sua, que a terra dos incas já estava
ocupada por outros espanhóis que tinham vindo do Caribe,
atravessando o Panamá (Francisco Pizarro chegara a Cuzco em
1528).

Buenos Aires não sobreviveu por muitos anos e foi abando­nada


em 1541. De Assunção partiu a expedição de Juan Garay que, em
1580, repovoou a cidade que, algumas décadas depois, iria assumir
a liderança espanhola na área. O historiador argentino Ricardo
Levene assim explica o posterior declínio de Assunção:

El grado de crecimiento alcanzado y la enorme extensión del territorio que


correspondía a Asunción hizo que en 1617 se creara la gobernación de Buenos
Aires separándola totalmente del Paraguay. Desde entonces el distrito de Asunción
abandonado a sus propios elementos y privado de las corrientes vivificadoras de la
inmigración, precipitó su decadencia agravada por las devastaciones de los
portugueses del Brasil183.

6.2 A colônia da discórdia


Frustrado o estabelecimento de um “grande Paraguai” no
século XVI, o qual, se vingasse, teria costas atlânticas, e destruídas
as missões jesuíticas espanholas do Guairá, do Tape e do Uruguai
no começo do século XVII, o litoral que ia de Cananeia, em São
Paulo, ao rio da Prata, em meados desse século, não estava
ocupado em termos permanentes nem por portugueses, nem por
espanhóis. O ouro de alguns pontos da costa, a caça aos índios e o
gado abundante das vacarías começaram a atrair algumas levas de
paulistas: Paranaguá (1648), São Francisco (1650), a ilha de Santa
Catarina (1675) e Laguna (1676) são os pontos sucessivamente
ocupados no litoral, sempre na direção do sul. Depois, no atual Rio
Grande do Sul, era mais difícil, como esclarece Capistrano: “A
costa, pitoresca, elevada, opulenta de ilhas e portos até Santa
Catarina, abaixa­-se além, apresentando­-se nua, estéril e inóspita184.
A vontade de chegar ao Prata era grande em Lisboa e no Rio de
Janeiro. O Governador desta cidade, Salvador Correa de Sá e
Benavides, por exemplo, solicita à Coroa (e recebe em 1647) a
concessão das terras sulinas que estavam sem donatário, e que iam
até o rio da Prata. O documento mais citado pelos historiadores
brasileiros como prova de eventuais direitos portugueses para
ocupar o sul é, entretanto, de origem papal: a bula Romani Pontificis,
de 22 de novembro de 1676, que cria a diocese do Rio de Janeiro e
lhe atribui por limite meridional o Prata.

Por várias razões, o Governo português tinha decidido pouco


antes de 1680 fundar um estabelecimento na margem norte do
grande rio: ocupar uma área livre − toda a margem esquerda do
Prata − e concorrer com os lucros do próspero contrabando
efetuado por portugueses em Buenos Aires parecem ter sido os
alvos imediatos; criar “condições para ulterior conquista de Buenos
Aires”185 seria o objetivo mais remoto, segundo alguns autores. O
mau tempo impediu que fosse o Governador do Rio de Janeiro,
Jorge Soares, em 1678, o autor dessa façanha. Primeiro pensou em
ir por terra, mas, avisado pelos moradores de São Paulo de que
levaria uns dois anos para chegar ao Prata com a gente e as coisas
que queria levar, seguiu então por mar. Sua frota − trezentos
tripulantes, embarcados em sete sumacas (pequenas embarcações
de dois mastros) − sofreu muito com as condições do mar na costa
do atual Rio Grande do Sul. Não pôde prosseguir e acabou
retornando a Santos, avariada e com um barco a menos.

Enquanto a expedição de Jorge Soares enfrentava esses


percalços, chegou ao Rio de Janeiro Manuel Lobo, novo
Governador­-Geral, com instruções de preparar uma armada ainda
mais poderosa para ir ao Prata e fundar uma colônia “dentro da
demarcação e senhorio desta Coroa”. Será que Portugal de boa­-fé
acreditava que a foz do Prata estava dentro de sua metade
tordesilhana? Era possível que assim fosse: nessa época, não se
sabia marcar longitudes com precisão e, por maior que fosse a
rivalidade entre os dois países, o rei de Portugal, sem alguma base,
não desafiaria tão abertamente seu “irmão e primo” (como se
tratavam nas cartas), rei da Espanha.

A armada de D. Manuel Lobo partiu com cerca de quatrocentas


pessoas, em cinco embarcações. Em janeiro de 1680, quase em
frente a Buenos Aires, desembarcou na margem oposta e deu início
às primeiras construções da Nova Colônia do Santíssimo
Sacramento. Imediatamente perceberam os espanhóis de Buenos
Aires a chegada dos portugueses. Infrutíferas as tentativas de
desalojá­-los por bem, atacaram­-nos finalmente em agosto e, após
um cerco de 23 dias, tomaram o povoado nascente, fazendo mortos
e prisioneiros (entre estes, o governador Manuel Lobo).

Foi a primeira ocupação espanhola da Colônia. Portugal


protesta e obtém a restituição da praça, em 1681. Seria uma
situação provisória, até que uma arbitragem papal esclarecesse de
quem era a legítima posse da região. O que nunca foi feito... Em
1704 ocorreu o segundo ataque e a segunda vitória dos espa­nhóis
de Buenos Aires, desta vez após um cerco de cinco meses. A
permanência castelhana durou até 1715, quando o Tratado de
Utrecht mandou restituir pela segunda vez Colônia à soberania lusa
(a posse efetiva deu­-se dois anos depois). O Tratado devolveu a
Portugal, como dizia seu texto, “o território e a colônia”. As
autoridades espanholas de Buenos Aires interpretaram a expressão
apenas como a área coberta por um tiro de canhão, disparado da
fortaleza, diferentemente das portuguesas, que acreditavam que o
território da Colônia deveria incluir todas as terras situadas entre a
margem esquerda do rio Uruguai e o litoral, isto é, toda a chamada
Banda Oriental (o atual Uruguai).
Os portugueses, em 1723, tentaram de fortificar­-se no sítio
próximo, chamado Montevidéu, por sua situação privilegiada para o
domínio da região e por ser um passo importante na ligação
terrestre Colônia­-Laguna. Estabeleceram­-se nesse ponto, mas
meses depois tiveram de abandoná­-lo. Os espanhóis não
demoraram em ocupá­-lo, fundando definitivamente a cidade do
mesmo nome, em 1726. Esta foi­-se firmando como o núcleo da
futura nação uruguaia e, pouco a pouco, foi isolando Colônia do
resto do Brasil.

Aproveitando­-se de um incidente menor ocorrido em Madri (um


preso que se refugiou na Embaixada de Portugal) e que provocou
ruptura de relações diplomáticas, tropas de Buenos Aires tentaram
em 1735 tomar pela terceira vez Colônia, mas esta não cedeu ao
cerco, que durou vinte e três meses. Seu governador, Antonio Pedro
de Vasconcelos, “resistiu com um esforço e heroísmo que lembra
algumas das mais belas páginas da história portuguesa na Índia”186,
diz Capistrano de Abreu, que não costuma usar grandes palavras
em vão.

Falhando a ocupação de Montevidéu, os portugueses


estabeleceram­-se mais ao norte, em outro ponto intermediário de
importância: o escoadouro da lagoa dos Patos. Desta vez vieram
para ficar, com a fundação de Rio Grande de São Pedro (hoje
apenas Rio Grande), em 1737, origem do Estado do Rio Grande do
Sul. O primeiro nome dessa região foi “continente” de São Pedro,
para distingui­-lo da “ilha” de Santa Catarina.

O próximo passo é a assinatura do Tratado de Madri, em 1750,


pelo qual Portugal trocou a Colônia do Sacramento pelos Sete
Povos (o oeste do Rio Grande do Sul) e legalizou a posse das
grandes áreas ocupadas, o Centro­-Oeste e o Norte na atual divisão
regional do Brasil. Mas as divergências não cessaram. Portugal não
entregou Colônia porque não se pôde, com a guerra guaranítica,
pacificar os Sete Povos. Em 1762, os espanhóis tomam pela
terceira vez Colônia, para restituí­-la também pela terceira vez, no
ano seguinte, conforme prescrevia o Tratado de Paris. Em 1776,
retomam (a quarta vez!) Colônia, ocupam a ilha de Santa Catarina e
a parte sul do atual Estado do Rio Grande do Sul, inclusive a
povoação de Rio Grande. Esse período viu o adensamento
populacional da área conhecida como Viamão, ao norte da lagoa
dos Patos, sobretudo do seu núcleo, o Porto dos Casais − habitado
originalmente por famílias açorianas −, futura Porto Alegre.

Veremos, em capítulos posteriores, que o Tratado de Santo


Ildefonso atribuirá não só Colônia, mas também os Sete Povos à
Espanha e que, em 1801, tropas gaúchas reconquistarão os Sete
Povos; já no Império, haverá, entre 1821 e 1828, a chamada
“Província Cisplatina”, mas a independência do Uruguai, nesse
último ano, acabará definitivamente com as ilusões lusas da
fronteira natural do Prata.
Capítulo VII
Rio Amazonas: a fronteira conquistada
Nada nas conquistas de Portugal é mais extraordinário do que a conquista do
Amazonas. (Joaquim Nabuco, O direito do Brasil.)

7.1 A descida de Francisco de Orellana


Seja Américo Vespúcio, como querem alguns, seja Vicente
Yañes Pinzón, como afirmam majoritariamente outros, o fato é que o
rio Amazonas foi descoberto em 1499 ou 1500 por navegantes a
serviço da Espanha. A linha de Tordesilhas podia passar pela foz,
mas o leito do rio estendia­-se sem dúvida pelo lado oeste, isto é,
espanhol, do meridiano; mas, por motivos que serão vistos, foi
Portugal quem se apossou das duas margens e da maior parte da
enorme bacia do Amazonas.

O litoral norte da América do Sul no trecho hoje brasileiro e


guianense não foi ocupado no século XVI: apresentando dificulda-­
des para o estabelecimento humano, com costas quase desérticas
no Ceará, de baixios nas proximidades do delta amazônico e de
mangues nas Guianas, não revelou, ademais, nada que estimulasse
a conhecida ambição dos espanhóis e portugueses quinhentistas.
Estes últimos, no primeiro século, mal conseguiam consolidar os
núcleos urbanos com que haviam salpicado a costa leste, de São
Vicente (1532) a Olinda (1535). Aqueles, depois de chegarem ao
México (1514) e ao Peru (1527), o que queriam era assegurar­-se da
riqueza surpreendente dos astecas e dos incas; encontrariam,
pouco depois, em 1554, o célebre cerro de Potosí, donde sairiam as
milhares de toneladas de prata que iriam revolucionar a economia
europeia.

Talvez por isso, pelo abandono dessa região litorânea, a


primeira navegação completa do Amazonas foi realizada a partir dos
Andes e não, como se imaginaria, a partir do delta marajoara, a
entrada natural do continente. Feito excepcional para a época, foi
obra de um dos veteranos da conquista do Peru, Francisco de
Orellana, lugar­-tenente de Gonzalo Pizarro, Governador de Quito
(irmão de Francisco Pizarro). O rio, que teve vários nomes, como o
indígena Pará, o português Maranhão e os espanhóis São Francisco
de Quito e rio de Orellana, acabou ficando com o nome de rio (das)
Amazonas, pela impressão que deixou em seus leitores a história
das mulheres guerreiras, contada pelo cronista da expedição, Frei
Gaspar de Carbajal.

Vale a pena escutá­-lo diretamente. Em 1541, conta o clérigo,


saiu de Quito uma expedição, chefiada por Gonzalo Pizarro, à
procura da “terra da canela” (há quem ache que a expedição saiu de
Lima passando, apenas, por Quito). Em momento de grande
dificuldade no “rio dos Omáguas”, provavelmente o Napo, Orellana
separa­-se do grosso da tropa e começa a descer o rio à procura de
víveres. Por razões não contadas por Carbajal, mas que
provocaram a ira de Gonzalo, resolve não voltar ou, quem sabe, não
consegue fazer o percurso contra a corrente. Seu destino era seguir
as águas rumo ao desconhecido e entrar na relação parcimoniosa
dos protagonistas de grandes feitos. Tinha apenas dois barcos
(bergantins), ambos com cinquenta e sete pessoas. Durante a
viagem houve lutas constantes com as muitas tribos das margens, o
que faz supor que o vale amazônico fosse bastante povoado nessa
época e os indígenas, extremamente belicosos. Mas o grande
inimigo foi a fome. Como diz Carbajal, em certo trecho, “à falta de
outros mantimentos [...] comíamos couros, cintos e solas de sapatos
cozidos com algumas ervas, de maneira que tal era nossa fraqueza,
que não nos podíamos ter em pé”.187
Quanto às amazonas (do grego “a­-mazón”, “sem seio”), o
religioso afirma tê­-las visto combatendo à frente das tropas
indígenas, “como se fossem seus capitães”. Eram mulheres “muito
alvas e altas, com o cabelo comprido, entrançado e enrolado na
cabeça. São muito membrudas e andam nuas em pelo, tapadas as
suas vergonhas, com seus arcos e flechas nas mãos, fazendo tanta
guerra como dez índios”188. Um selvagem aprisionado pelos
espanhóis contou mais sobre essas mulheres: residiam a umas sete
jornadas da margem, em aldeias com casas de pedra;
sequestravam homens para com elas coabitar “de tempos em
tempos [...] quando lhes vem aquele desejo [...] Se têm filhos os
matam e mandam ao pai; se é filha a criam com grande solenidade
e a educam nas coisas da guerra”189. O relato de Carbajal fez fé;
seu autor era um religioso de prestígio, que poucos anos depois
seria eleito provincial dos dominicanos do Vice­-Reinado do Peru.

E, assim, talvez inspirado em fatos reais − é possível que


houvesse mulheres guerreiras; homens de cabelos compridos
poderiam também ser confundidos − mas certamente influenciado
pela mitologia clássica, cujos personagens os europeus queriam
encontrar na América, o nome enganoso ficou. Mas se ficou “índio”
para os naturais de uma terra que não eram as Índias, “América”
para o continente que Américo Vespúcio não descobriu, por que não
“Amazonas” para o maior rio de um mundo novo que nada tinha a
ver com a Grécia antiga?

Depois dessa primeira viagem, Orellana, já com o título de


“Governador e Capitão­-General das terras que descobrisse”,
organizou na Espanha, em 1546, uma expedição para conquistar e
povoar a região. Se tivesse tido êxito, talvez a Amazônia toda fosse
hoje dos herdeiros dos espanhóis; mas fracassou. Desde o início, a
má sorte o acompanhou. Já nas proximidades de Cabo Verde,
perdeu 98 dos trezentos tripulantes. Uma das naus desapareceu
para sempre, perto da costa norte do Brasil. Finalmente, o próprio
conquistador, tentando negociar os baixios da foz do Amazonas e ir
à ilha Margarita, onde pensava refazer sua frota, foi flechado e
morto pelos índios. Como diz emotivamente seu biógrafo Toríbio de
Medina: “Enterrado ao pé de uma das velhas árvores dos bosques
sempre verdes, banhados pela corrente do majestoso rio que havia
descoberto, encontrava por fim repouso a seus afãs e fadigas no
meio daquela luxuriante natureza, que era digno sepulcro do seu
nome imorredouro”190.

7.2 A subida de Pedro Teixeira


Setenta e cinco anos depois da viagem de Orellana, que provou
− o que não se sabia bem então − que o “Brasil era a continuação
do Peru”, fundam os portugueses, comandados por Francisco
Caldeira Castelo Branco, na foz do Amazonas, o Forte do Presépio,
origem da povoação de Nossa Senhora de Belém. Era 1616 e
acabavam os peninsulares de destruir o sonho francês de criar uma
“France Equinoxiale”, a partir do núcleo de São Luís, estabelecido
na ilha do Maranhão, por Daniel de la Touche, quatro anos antes. A
tomada de pé no imenso delta − “clef de tout système de navigation”,
como acentua Hervé Thery191 − garantiu a ocupação futura da maior
parte do rio e de seus afluentes.

Não foram fáceis as primeiras três décadas de Belém, anos de


lutas constantes com estrangeiros e índios hostis. Nas proximi­dades
da grande reentrância amazônica, havia estabelecimentos
holandeses, ingleses, franceses (tanto Jaime I da Inglaterra, como
Luís XIII da França haviam “doado” a seus nacionais terras entre o
Essequibo e o Amazonas). Só por volta de 1645, conseguiu­-se
expulsar todos os estrangeiros das proximidades do delta
marajoara. A região nunca foi prioritária para esses países, mais
poderosos que Portugal. Com os franceses estabelecidos na Guiana
(fundaram Caiena em 1634), bloqueou­-se a expansão portuguesa
pela costa norte; mas estava livre a entrada pelo Amazonas, que
conduzia até o âmago do Continente.

Para assegurar melhor apoio da metrópole à nova conquista,


havia sido criado, em 1622, o Estado do Maranhão, com capital em
São Luís, diretamente subordinado a Lisboa. Essa vinculação visava
a superar as enormes dificuldades de comunicações que havia entre
a costa norte e Salvador, por causa da direção contrária dos ventos
e das correntes marítimas. O Estado, que durou até 1774, passou a
se chamar do Grão­-Pará e Maranhão, quando Belém, por sua
melhor posição econômica e estratégica, tornou­-se capital em 1737.

Em 1637, quase cem anos após o feito de Orellana, deu­-se a


primeira viagem à contracorrente, até Quito, de grande relevo para a
expansão portuguesa pela bacia amazônica. Não há aqui dúvidas
(como pode haver sobre a viagem de Raposo Tavares, dez anos
depois) sobre a origem oficial do empreendimento: eram ordens do
Governador do Estado do Maranhão, Jácome Raimundo de
Noronha. A possibilidade de um empreendimento dessa
envergadura foi aberta pela chegada a Belém de dois leigos
franciscanos espanhóis, vindos da província de Quito, numa
pequena canoa. Ora, se duas pessoas e alguns poucos remadores
índios tinham podido descer todo o rio Amazonas, por que toda uma
armada bem equipada não poderia subi­-lo? Estímulos para a
viagem não faltavam; se bem sucedida, possibilitaria o comércio
com os espanhóis do Peru, o acesso a uma região onde havia
metais preciosos e a conquista de terras para Portugal.

O comando da armada de 47 canoas grandes, setenta


soldados, alguns religiosos e 1.200 indígenas coube a Pedro
Teixeira, um veterano dos primeiros tempos de Belém e da luta para
expulsar os estrangeiros da foz do Amazonas. O guia escolhido foi
um dos religiosos que haviam recentemente descido o rio, Frei
Domingos de Brieva. Pedro Teixeira levava ordens para fundar uma
povoação que marcasse o limite entre as terras portuguesas e
espanholas e para tomar posse da enorme região situada a leste
desse ponto, em nome do rei comum da Espanha e de Portugal,
mas − o que era fundamental − para sua Coroa portuguesa. Essas
instruções e a proximidade da data de separação das Coroas
ibéricas fazem Jaime Cortesão ver a viagem como ligada à
conspiração de que resultaria a independência de Portugal, em
1640: tratar­-se­-ia de assegurar a posse da maior parte do rio
Amazonas, antes que se efetivasse a separação, então já prevista e
desejada.

A povoação, fundada solenemente em 1639, chamou­-se


Franciscana e ficava “defronte das bocainas do rio do Ouro” (a foz
do Aguarico, no Napo, Equador, pensam alguns). Não há muitas
informações sobre Franciscana e dela não existem, hoje, traços
físicos. Discute­-se sobre a autenticidade da famosa “Ata de
Franciscana”, divulgada por Bernardo Berredo no século XVIII, que
a copiou dos arquivos de Belém, onde já não mais se encontra. Mas
o gesto ficou.

E é hoje considerado, como ensina Helio Vianna, “da maior


importância para a história da expansão territorial portuguesa na
América do Sul”192. Não conseguiram os portugueses, subindo o
Amazonas, manter a fronteira de Franciscana, mas conseguiram
fixá­-la no rio Javari, depois de superarem o obstáculo das reduções
jesuíticas espanholas do Solimões (braço leste das antigas Misiones
de Maynas), em seu momento mais exuberante, no final do século
XVII, lideradas pelo Padre Samuel Fritz, um dos maiores cate-­
quizadores da América.

A viagem de Pedro Teixeira teve também como cronista um


religioso espanhol. Desta vez, o jesuíta Cristóbal de Acuña, que
acompanhou a navegação de regresso desde Quito, aonde chegara
Teixeira, até Belém. Curiosamente, o Padre Acuña, bom observador
e bom escritor (ao contrário de Carbajal, prolixo e desatento,
segundo Melo Leitão), nada fala de Franciscana. Talvez, por ser
espanhol e escrever depois da separação das Coroas, tivesse o
interesse patriótico de omitir um fato que poderia, no futuro, ser
alegado − como realmente o foi − como prova da ocupação
portuguesa. É certo que tinha preocupações com a expansão
portuguesa na Amazônia, nítidas na memória que, após a viagem,
escreveu ao seu rei, aconselhando­-o a ocupar todo o vale do rio.
Com bons argumentos, aliás: impedir que se criasse uma porta
amazônica para o contrabando de metais, obter uma saída atlântica
para as possessões espanholas e prevenir uma possível aliança na
região dos portugueses com os holandeses, inimigos da Espanha;
“pois se unidos com o holandês, como o estão muitos do Brasil,
intensificassem semelhante atrevimento, já se vê o cuidado que
poderiam dar”193. Mas, felizmente para a formação territorial do
Brasil, o rei da Espanha não ouviu o Padre Acuña. Certamente não
considerava aquela região “a mais importante daquele novo mundo
descoberto”194, como afirmava com exagero o jesuíta.

7.3 Povoamento
Assegurados alguns pontos básicos da bacia amazônica,
percebeu a metrópole que teria dificuldades em ocupá­-la sem a
ajuda da Igreja: “desde os primeiros tempos, verificada a existência
de multidões infinitas de tabas indígenas, das mais variadas
famílias, o que permitiu a impressão de que se estava numa nova
Babel, apelou o Estado para a cooperação das Ordens
Religiosas”195. E, assim, a partir de 1657, quando jesuítas fundaram
seu primeiro estabelecimento do rio Negro, foram os religiosos
criando missões nas margens de vários rios da bacia do Amazonas.
Principalmente jesuítas, mas também franciscanos, carmelitas,
capuchinhos e mercedários.

Ernani Silva Bruno, no volume sobre a Amazônia de sua


História do Brasil, dá o título expressivo de “Droga, índio e
missionário” ao capítulo que trata da ocupação dos vales dos rios da
bacia amazônica entre 1640 e 1755, isto é, aproximadamente entre
a viagem de Pedro Teixeira e as demarcações do Tratado de Madri.
Tem razão, pois nesse período o que se vê principalmente é o
entrelaçamento desses três fatores. A obra de catequese religiosa,
fundamental para a ocupação portuguesa da Amazônia, foi
realizada nas missões; integradas por nacionais e apoiadas pela
Coroa, agiam como representantes dos interesses de Portugal. Mas,
sem as “drogas do sertão”, não haveria base econômica para se
estabelecer permanentemente; prova disso é que as missões que
prosperaram foram as que tiveram sucesso na exploração dessas
especiarias americanas, valorizadas ainda mais no século XVIII,
quando já estavam perdidas as possessões portuguesas no Oriente.

Para completar a menção aos agentes principais da penetração


pelo grande rio e seus afluentes, a partir do foco irradiador de
Belém, é necessário citar os colonos leigos, geralmente mestiços e
falantes da língua geral (como os mamelucos de São Paulo), que
eram os droguistas do sertão, às vezes integrantes das chamadas
tropas de resgate (ou tropas de guerra), verdadeiras bandeiras
fluviais voltadas principalmente para a preação dos selvagens.
Arthur Cézar Ferreira Reis lembra que essas tropas tinham
adicionalmente o objetivo militar de “sustentar o domínio lusitano
contra as incursões de franceses e espanhóis que se sucederam
aos ingleses e batavos nas tentativas de apossar­-se da
Amazônia”196. Mais um símile com as bandeiras paulistas.

Uma observação agora sobre o papel do Estado: a ocupação


da Amazônia não foi apenas consequência da geografia, que
proporcionou aos portugueses, após a fundação de Belém, o acesso
à magnífica avenida da penetração e às estradas fluviais dos
afluentes do grande rio; nem foi somente obra dos indivíduos, cujos
interesses, espirituais ou materiais, os levaram a entrar naquele
imenso sertão florestal. A conquista da Amazônia teve sempre, em
escalas variáveis no tempo e no espaço − mais nítida no norte,
menos no sul − a orientação e o apoio da Coroa portuguesa. Disso
não deixa dúvida o especialista da região acima mencionado:

A conquista do espaço, pelo que se constata do vasto documentário já divulgado, foi


empresa oficial. Podemos encontrar nas expedições que subiram e desceram rios,
montaram pequenos estabelecimentos civis ou aldeias missionárias, expedições
realizadas por civis, militares e religiosos, uma iniciativa privada ou uma
obediência a motivações imediatistas. Nem por isso, todavia, deve deixar­-se de
aceitar a tese de que a expansão e a consequente criação da base física foi empresa
estatal. A série de cartas régias, de instruções menores que se expediram de Lisboa,
concertando uma política decisivamente voltada para a ampliação territorial, não
admite dúvidas a respeito197.
Capítulo VIII
Monções: a ocupação do Oeste
No lugarejo de Araritaguaba, uma capela modesta, com invocação de Nossa
Senhora da Penha, marcava na Capitania, no ano de 1721, e ainda algum tempo
depois, o limite extremo do espaço de ocupação permanente além da vila de Itu [...]
Adiante começava um mato espesso, impenetrável em muitas partes [...]. (Sergio
Buarque de Holanda, O Extremo Oeste.)

8.1 As monções cuiabanas (vide Mapa 7)


É discutível a inclusão do tema monções no movimento
bandeirante. Alfredo Ellis Junior termina seu livro principal, o
Bandeirantismo paulista e o recuo do meridiano, no começo dos
setecentos, isto é, no instante em que se iniciava o episódio das
monções, fenômeno característico desse século, como as bandeiras
o foram dos seiscentos. Dá razões para isso: diferente das
bandeiras, as monções eram exclusivamente fluviais; seguiam
roteiros fixos, passando por pontos conhecidos, onde, com o tempo,
formavam­-se arraiais; e tinham um único objetivo: chegar às minas
de ouro dos rios Cuiabá e Guaporé. A própria sociedade em que
vivia o monçoeiro era já bem diversa daquela que favorecia a
existência do tipo individualista e aventureiro, tão caraterístico da
época das bandeiras. Era já uma sociedade que produzia padres,
militares, artesãos e, principalmente, mercadores. Como explica
Leandro Arroyo, em sua Relação do rio Tietê: “O rio e a sua disciplina
natural estavam em contradição com a mobilidade do bandeirante,
pre­ador de índios e caçador de ouro, mas se ajustavam à rotina do
povoador e do comerciante”198.

Há, entretanto, pontos comuns entre as bandeiras e as


monções, antes de tudo porque são basicamente movimentos de
expansão territorial: as primeiras levaram ao conhecimento da terra
em várias regiões do Brasil, as segundas garantiam o povoamento
do centro do continente. Sérgio Buarque de Holanda vê as monções
como as continuadoras das bandeiras: “A história das monções é de
certa forma um prolongamento da história das bandeiras paulistas
em sua expansão para o Brasil Central”199. Foram realmente as
monções que consolidaram a posse das terras entre o planalto de
Piratininga e os campos e as florestas do Centro­-Oeste, regiões há
muito trilhadas por bandeirantes e que correspondem a boa parte
dos atuais estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e
Rondônia. No início do movimento, os próprios bandeirantes − seus
descendentes mais tarde − eram os tripulantes e os passageiros
das canoas que demandavam Cuiabá. “As primeiras monções” −
continua Buarque de Holanda − “deveriam recrutar a mesma gente
fragueira e turbulenta que constituíra as bandeiras do século XVII”
200
.

A vida das monções, que durou mais de cem anos, começa


com o descobrimento de ouro em afluentes do rio Cuiabá, a cerca
de 800 quilômetros a oeste do meridiano de Tordesilhas. Várias
bandeiras haviam percorrido no final do século XVII o atual Centro­-
Oeste do Brasil. Mas foi a de Pascoal Moreira Cabral que, em 1718,
aí encontrou o metal precioso no rio Caxipó­-Mirim. Quatro anos
depois, Miguel Sutil descobriu, no local onde nasceria a Vila Real do
Senhor do Bom Jesus do Cuiabá, os riquíssimos aluviões, “as lavras
do Sutil”, que, se não foram as mais abundantes minas que se
descobriram no Brasil, certamente foram as que mais facilmente
produziram: os instrumentos de trabalho eram as próprias mãos. O
mineralogista alemão Eschwege compara “o ouro a aflorar da terra
com a nata sobrenadada ao leite”201.
Essa riqueza fácil e abundante explica o excepcional
deslocamento populacional para aquelas regiões, tão distantes dos
núcleos urbanos do Brasil Colônia. De São Paulo, ensina José
Barbosa de Sá, o primeiro cronista das minas de Cuiabá, “se
abalarão muitas gentes deixando casas, fazenda, mulheres e filhos,
botando­-se para estes Sertões como se fora a terra da promissão
[...]”202. E explica também o sistema de transporte tão original que se
desenvolveu para ligar São Paulo a Mato Grosso: as monções.

As monções, mais ainda que as bandeiras, que teriam símiles


na conquista russa da Sibéria, são um fenômeno exclusivamente
brasileiro, nada havendo de comparável − é Affonso Taunay quem o
diz − em outras regiões do mundo. O nome, que indica sua
periodicidade, é tirado das monções asiáticas, os ventos chuvosos
que sopram sempre no mesmo período do ano, no oceano Índico (a
palavra vem do árabe “mausin”, originalmente “estação”). Eram
caravanas de canoas, dez, vinte, trinta − em 1726 o Governador de
São Paulo liderou uma monção de “308 canoas e 3.000 pessoas”203
− que saíam do paredão calcário de Porto Feliz, então Nossa
Senhora da Mãe dos Homens de Araritaguaba (“parede das araras”,
em tupi), no rio Tietê, nos meses de abril e maio, quando as águas
estavam cheias e as chuvas começavam a escassear. Cinco meses
depois, no mínimo, chegavam a Cuiabá, no mesmo tempo da
famosa carreira da Índia, o comboio de navios que, por 350 anos, na
mais difícil e longa rota marítima da época, ligou Lisboa a Goa. A
volta era mais rápida porque as canoas estavam mais vazias;
durava dois meses.

O percurso não poderia ser mais difícil: corredeiras e


cachoeiras, onde era necessário desembarcar − às vezes carregar
as cargas e as canoas −, havia mais de cem; animais selvagens e
insetos hostis abundavam e, entre estes, os relatos monçoeiros que
sobrevivem destacam as várias espécies de mosquitos, dos quais
os viajantes tentavam defender­-se durante o dia com roupas
espessas − o que era um suplício numa região geralmente quente −
e à noite com mosquiteiros, dos poucos artigos de origem europeia
que usavam. Os índios da região navegada eram aguerridos e
muitas monções foram por eles dizimadas. Duas tribos criaram
legenda: os Paiaguá, excelentes canoeiros do Pantanal, que
destruíram, por exemplo, a monção de Diogo de Sousa, em 1725,
composta de seiscentas pessoas, da qual só houve dois
sobreviventes, e os Guaicuru, os terríveis índios cavaleiros,
originários do Chaco paraguaio­-boliviano, os mais agressivos índios
de que se tem notícia... talvez porque dos primeiros que
conheceram os brancos, citados que são desde Dom Álvar Nuñes
Cabeza de Vaca, nomeado Governador do Paraguai em 1540.
Sempre montados, deram origem à hipótese, hoje abandonada, de
que o cavalo seria autóctone do continente.

Sérgio Buarque recolhe uma história da mitologia guaicuru, bem


ilustrativa do temperamento desses índios. O “Grande Espírito”, ao
formar os seres humanos, teve o cuidado de dar a cada povo um
atributo particular, mas aos guaicurus nada. Percorria esta tribo os
desvãos inférteis do chaco interpelando bichos sobre o porquê de
sua sina, quando um dia ouviu a explicação reveladora do gavião
carcará: “Queixas­-te sem motivo, pois teu quinhão é o melhor. Uma
vez que nada recebeste, trata de tomar o que pertence a outros.
Esqueceram­-se de ti, e por isso deverás matar todos que surjam em
teu caminho”.204 Os Guaicuru não deixaram mais de seguir o sábio
conselho... e, para começar, mataram o próprio carcará a pedradas.

Nas canoas de um só tronco − “canoão monóxilo, escavado a


fogo, machado e enxó”,205 explica o especialista Mello Nóbrega −
iam até vinte pessoas. A madeira usada era principalmente a
peroba, mas outros gigantes da floresta também serviam, pois o
tamanho interessava mais que a resistência à umidade (a peroba,
por exemplo, é muito sujeita a rachaduras). Na proa, o piloto, o
proeiro (comandante), às vezes um prático, e cinco ou seis
remeiros, todos de pé. Na popa, sentados, o mesmo número de
passageiros que na frente; e no meio, sabiamente distribuída, a
carga que seria trocada por ouro em Cuiabá. Houve mais de um
roteiro para se chegar às minas, mas o mais percorrido foi o que,
depois de navegar o Tietê, descia o Paraná até o Pardo; subia esse
rio até o varadouro da fazenda de Camapuã, de cerca de 14 quilô-­
metros, que levava à bacia do rio Paraguai; descia então o Taquari e
subia o Paraguai e o Cuiabá, para chegar às minas e à cidade de
mesmo nome.

Era muito árdua a vida dos colonizadores nessas distantes


regiões de Mato Grosso, povoadas por várias nações indígenas.
Dois bandeirantes de Itu, pai e filho com o mesmo nome, Antonio
Pires de Campos, e com o mesmo apelido, Pai Pirá, destacam­-se
nos primeiros trinta anos de ocupação, pela liderança respeitada
que tinham sobre a nação dos Bororo, que funcionava como força
pacificadora nos frequentes conflitos entre o “gentio bárbaro”, como
dizem os documentos da época, e os, digamos, civilizados. O
segundo Pires de Campos é uma exceção entre os sertanistas pelos
documentos de valor que deixou sobre várias tribos, em especial
sobre os Pareci, um dos mais desenvolvidos e atraentes grupos
indígenas do Brasil.

Mais árdua ainda era a vida dos índios depois da chegada dos
brancos: “Os paiaguás resistiram ferozmente e foram mortos a tiros;
os parecis eram muito dóceis e maleáveis e foram escravizados. Os
bororós, que viviam a este de Cuiabá, tentaram uma política
diferente [...] alguns [...] recuaram profundamente na floresta [...]
outros decidiram aliar­-se aos portugueses”206. Mas os Bororo
também não viveram muito como nação, após a morte do segundo
Pires de Campos, em 1751, sofrida por eles como a de um grande
chefe legítimo. Só a fuga para o mato permitia a sobrevivência de
grupos diminutos e espaçados...

Mas voltemos às monções. No começo do século XIX, já


estavam agonizantes, em sintonia com a decadência da produção
aurífera. Em 1818, exatamente cem anos depois da descoberta de
ouro em Cuiabá, era muito difícil encontrar proeiros, práticos e
pilotos em Porto Feliz, como ensina Buarque de Holanda. Vinte
anos mais tarde, “houve uma epidemia de tifo no Tietê deixando
poucos sobreviventes entre os últimos mareantes [...]”207.

Vinculados às monções cuiabanas, há dois episódios de grande


importância para a ocupação do Oeste. Um deles foi a descoberta
de ouro em Goiás em 1725, pelo segundo Anhanguera, Bartolomeu
Bueno da Silva, na última bandeira típica de que se tem notícia. Era
o terceiro eldorado que se revelava no Brasil, depois das “minas
gerais” e das minas de Cuiabá. A descoberta preencheu o perigoso
vazio populacional que havia no Planalto Central, ao norte da rota
das monções, e justificou a abertura de um caminho terrestre para
Goiás, mais tarde prolongado por mais mil quilômetros até Cuiabá.
Introduziu na região o que alguns autores chamam de ciclo do muar,
que acabou por substituir o ciclo das monções. É essa a situação
que encontra, por exemplo, Saint­-Hilaire, que visitou São Paulo em
1819: “As viagens pelo Tietê, o Paraná e o Camapuã foram
substituídas por outras que não são menos penosas, mas deixam
maiores lucros. Parte­-se de São Paulo com mulas carregadas;
passa­-se por Goiás, chegando­-se a Mato Grosso, onde as
mercadorias transportadas são vendidas [...]”208. No correr do século
XIX, com o advento da navegação a vapor, voltou­-se a privilegiar a
rota aquática para chegar a Mato Grosso. Mas agora os meios de
transporte eram navios e os rios, outros − o Prata, o Paraná e o
baixo Paraguai; as canoas do velho Anhembi desapareceram e não
voltaram mais.

O outro episódio importante − que interessa mais do ponto de


vista da formação das fronteiras − foi a descoberta de ouro no rio
Guaporé, a cerca de 600 quilômetros a oeste de Cuiabá. Seu
protagonista foi o bandeirante Fernão Pais de Barros, que
atravessou, em 1734, a região então conhecida por mato grosso do
rio Jauru, indo encontrar o metal precioso nas margens do rio
Guaporé, não longe da missão jesuítica espanhola de Moxos.
Passados os primeiros tempos de isolamento e dificuldades, os
garimpeiros dessas franjas pioneiras passaram a receber da Coroa
portuguesa o apoio necessário para se manter na área, justamente
considerada castelhana pelos jesuítas espanhóis. Em 1742,
estabeleceu­-se a ligação fluvial com Belém, pelos rios Guaporé,
Madeira e Amazonas, e, quatro anos depois, criou­-se a capitania de
Mato Grosso, com a determinação de se fundar um povoado à
margem do Guaporé, por razões que hoje chamaríamos
geopolíticas. Anos antes, já se cogitava, em documentos
portugueses, o estabelecimento desse povoado para assegurar a
presença luso­-brasileira na margem direita do rio, o que só foi feito,
entretanto, em 1752, com a fundação, num remanso, de Vila Bela
da Santíssima Trinidade, imediatamente feita capital da capitania. O
Tratado de Madri, assinado dois anos antes, já legalizara a posse da
área. O núcleo criado objetivava consolidar a ocupação do extremo
oeste do território nacional, servindo de centro aos vários
ajuntamentos mineradores existentes naqueles confins do Brasil.

8.2 Conflitos de soberania


Nunca houve dúvidas na História do Brasil sobre a participação
governamental na ocupação do Norte e do Sul. Belém, fundada em
1616, e a Colônia do Sacramento, em 1680, são os padrões que os
portugueses visivelmente colocaram nas bocas dos dois grandes
rios continentais que sempre foram considerados (ou pelo menos
desejados como) as fronteiras naturais da sua colônia americana.
Ambas as cidades iniciaram sua vida como fortalezas, erigidas não
por movimentos espontâneos de indivíduos, mas por pensadas
decisões do poder público. Mas e no Centro­-Oeste? Onde estão aí
nossas fronteiras naturais? E em que lugar encontram­-se, no meio
das tropelias de bandeirantes, da mobilidade de garimpeiros, as
provas concretas da ação do Estado?

A “conquista do oeste” é vista geralmente pelos autores como


consequência, primeiro, das explorações bandeirantes, depois, da
fixação desses aventureiros, agora transformados em mineradores,
no interior profundo da América do Sul. Estudando­-se, entretanto, a
ocupação de ponto de vista que traga mais à luz documentos da
metrópole, também se podem encontrar marcos da ação do Estado,
embora bem menos nítidos do que no Sul e no Norte. Sem apoio
governamental, não é garantido que as remotas áreas balizadas
pelo rio Guaporé fossem hoje parte do território nacional. Sérgio
Buarque de Holanda interessou­-se pelo tema em algumas de suas
obras, mas, como ele mesmo lembra, o mais completo trabalho é
uma tese não publicada de David M. Davidson, Rivers and Empire: The
Madeira Route and the Incorporation of the Brazilian Farwest, 1737­-1808,
parcialmente reproduzido no capítulo “How the Brazilian West Was
Won”, da obra coletiva Colonial Roots of Modern Brazil, que serve de
base para os comentários que seguem.

No tempo da ocupação de Mato Grosso, o Brasil estava dividido


em dois Estados, sendo o Estado do Maranhão, com capital em São
Luís e, a partir de 1737, em Belém, ligado diretamente a Lisboa.
Não havia comunicação, nem física nem administrativa, entre
ambas as unidades coloniais. As ligações por mar eram
extremamente difíceis e por terra praticamente não existiam, pode­-
se dizer, ignorando­-se as pobres trilhas costeiras abertas por volta
de 1700, entre São Luís e o Recife. O centro da América do Sul era
o grande sertão desconhecido, onde, depois dos cerrados de Goiás
e de Mato Grosso do Sul, apareciam as florestas de Mato Grosso.
Vindos do leste os bandeirantes de São Paulo chegaram às águas
amazônicas do Guaporé em 1734, pela primeira vez afastando­-se
da área normal de suas atividades, a bacia do Prata. Era uma
consequência natural de suas antigas viagens seiscentistas pelas
“vacarias”, região de campos, ao sul da Amazônia; lembre­-se, por
exemplo, que já em 1647 Raposo Tavares, na famosa jornada de
São Paulo a Belém, demorara­-se nessa área, notável do ponto de
vista geográfico por ser onde quase se tocam os rios das duas
grandes bacias continentais.

De outra direção, a partir de Belém, havia menos iniciativas


para atingir o Centro­-Oeste porque toda a energia da conquista
concentrava­-se, nos primeiros tempos, na foz do grande rio, e, mais
tarde, na penetração pela calha principal. Em 1722, houve,
entretanto, a insigne viagem do Sargento­-Mor Francisco de Mello
Palheta, que subiu o rio Madeira e afluentes até a região das
missões de Moxos; teria sido o primeiro a navegar o Guaporé
(chamado Itenez pelos espanhóis). Mas foi uma viagem
exploratória, não colonizadora. Com as minas de Mato Grosso,
descobertas poucos anos depois, é que se foi fixando a população
brasileira na área. Sabia­-se que os espanhóis estavam por perto e
que as águas do Guaporé corriam para a bacia amazônica. Mas era
proibido tentar a viagem rio abaixo porque as autoridades
portuguesas tinham medo da evasão de ouro que poderia ocorrer
por essa rota.

Do lado espanhol, era antiga a penetração do continente,


subindo rios da bacia do Prata e, depois, descendo rios da bacia do
Amazonas. Assunção foi fundada em 1537, no rio Paraguai, e Santa
Cruz de la Sierra, bem mais ao norte, no rio Mamoré, em 1561. Mais
recentemente, os jesuítas estabeleceram missões nos territórios de
Chiquitos (fronteira com Mato Grosso do Sul) e de Moxos, que se
estendia até o rio Guaporé, com tendência a ultrapassá­-lo: houve
aldeamentos fundados na margem hoje brasileira.

É complicada, intrincada, às vezes contraditória a relação entre


o Governo e a Ordem de Santo Inácio, tanto em Portugal como na
Espanha, no período colonial. Como regra geral, pode­-se aceitar a
asserção de que os de mesma nacionalidade tendiam aos mesmos
objetivos. Em Chiquitos e Moxos, os missionários eram claramente
os defensores dos interesses do Estado espanhol, como mostra a
malha de correspondência existente entre os jesuítas e autoridades
governamentais espanholas da Metrópole e da Colônia, sobre o
perigo da invasão portuguesa na área e as medidas para contê­-la.

Em 1740, a Espanha não tinha dúvidas sobre os objetivos dos


portugueses, como se vê, por exemplo, na seguinte instrução real a
um novo Governador de Buenos Aires: “a intenção e o desígnio dos
portugueses tem sido, não somente em tempo de guerra, mas
igualmente em tempo de paz, empurrar e estender suas fronteiras
em meus territórios e domínios por todos os meios e violências
evidenciados por sua inteligência e sua malícia”209.

Naquele momento, os espanhóis poderiam enfrentá­-los:

Na verdade, uma invasão bem executada teria provavel­mente sido bem sucedida,
porque as comunidades de Cuiabá e Vila Bela, distantes dos principais centros
portugueses de poder, não eram tão populosas, ricas e bem defendidas, nem tão
agressivas como os relatórios espanhóis sugeriam210.

Mas os espanhóis não passaram dos preparativos: as zonas da


missão de Chiquitos ao sul e a de Moxos ao norte não eram
importantes para a Espanha do ponto de vista econômico e
perderam seu interesse estratégico uma vez descoberto que não
passava pelo Paraguai a melhor rota terrestre de saída (via Buenos
Aires) para as riquezas do altiplano boliviano: era pelas cidades
argentinas de Salta, Tucumán e Córdoba. Seu interesse era apenas
manter o status quo: não gostariam de que os portugueses entrassem
nessa área espaçosa que os isolava das grandes riquezas no Alto
Peru.

Ao terminar a chamada Guerra Platina (1735­-1737) pela


Convenção de Paris, o ponto de tensão entre os dois impérios
coloniais deslocou­-se do Sul para o Centro­-Oeste. Que a ocupação
portuguesa da margem direita do Guaporé era indevida pelo Tratado
de Tordesilhas, não haveria dúvidas: os espanhóis já tinham reagido
anteriormente na região vizinha de Chiquitos, que ficava mais a
leste. Isso, entretanto, sabemos nós hoje. Nesses longínquos
tempos coloniais, a situação não era tão nítida: os mapas eram
imprecisos e nenhum país tinha noção exata de sua posição no
terreno; sobretudo os rudes mineradores brasileiros que estavam
ocupando aquelas terras. Como diz Davidson: “neither Government
could locate the occupied territories of the interior with assurance,
both feared encroachment into their lands…”211
Ao chegar ao Guaporé, os portugueses atingiam afinal a
fronteira mais natural que se poderia ter nesse ponto central do
continente. O rio não era, como o Prata e o Amazonas, um marco
notável, desejado como limite desde o início da colonização; mas,
volumoso, navegável e desaguando no Madeira, parecia fechar o
contorno fluvial da ilha Brasil. Em 1742, houve a primeira viagem a
favor da corrente de Manuel Félix de Lima, que deixou bem clara a
possibilidade da comunicação entre as minas de Mato Grosso e
Belém. Em 1748, João de Sousa Azevedo, a partir de Belém, vai às
minas de Mato Grosso vender mercadorias e depois regressa à
origem, na primeira viagem de ida e volta de que se tem notícia. Seu
autor era um intrépido sertanista e um grande navegador que já
havia descido, dois anos antes, todo o rio Tapajós. Mas a
navegação pelo Madeira era proibida, tendo por pouco esse
primeiro monçoeiro do norte escapado à sina de seu precursor, Félix
de Lima, que havia sido enviado preso a Lisboa.

Apenas então os portugueses verificaram que o rio Guaporé


dos mineradores de Mato Grosso era o mesmo rio navegado por
Palheta em 1722; rio que não existia nem nos mapas nem na
cabeça dos planejadores portugueses. É ilustrativo ver como D. Luiz
da Cunha, um dos grandes estadistas portugueses do século,
propunha ainda em 1736, como fronteiras ideais do Brasil, o rio
Vicente Pinzón ao norte e o estuário do Prata ao sul; a oeste, o
Paraguai e, em lugar do Guaporé, ainda não perfeitamente
localizado, uma linha geodésica ligando as nascentes do Paraguai
ao Madeira. Em suas palavras: “As fronteiras interiores poderiam ser
o Paraguai que deságua no Prata, provindo da lagoa de Xaraes
(embora pareça ter suas nascentes muito mais longe); daí seguiria
uma linha para o oeste por uma distância de 100 léguas [...] até
encontrar o rio Madeira, cujas águas fundem­-se com as do
Amazonas”212.

Entre os núcleos portugueses de Cuiabá e do Guaporé, de um


lado, e os espanhóis de Moxos e, mais longe, Santa Cruz e
Chiquitos, de outro, as relações comerciais eram tênues, mas
existiam, quase que por necessidade de sobrevivência mútua e
contrariando instruções específicas das metrópoles. Leme do Prado,
por exemplo, companheiro da parte inicial da viagem inaugural de
Félix de Lima, esteve, em 1742, em tratativas com os jesuítas das
missões de Moxos e, na volta, encontra, na margem direita do
Guaporé, a missão de Santa Rosa, a primeira que os espanhóis
edificaram nesse lado do rio (depois criaram mais duas, São Miguel
e São Simão). Os portugueses, tentando contrabalançar a ofensiva
espanhola, enviam, pela primeira vez, em 1745, missionários,
também jesuítas, para a região. Outro exemplo: o ouvidor de
Cuiabá, João Gonçalves Pereira, tentou, em várias ocasiões,
comerciar com os espanhóis; não teve sucesso, mas nem por isso
deixou de ser admoestado pelo capitão­-mor de São Paulo: “não
provoque, ou permita seja provocada a menor comunicação e,
menos ainda, o comércio entre domínios de Portugal e Castilha,
pois nas presentes circunstâncias este assunto é muito mais
delicado do que Vossa Senhoria pode imaginar” 213.

Os principais atores do drama histórico apareciam claramente


em Mato Grosso, às vésperas do Tratado de Madri: os bandeirantes,
já agora transformados em comerciantes e mineradores, e os
jesuítas espanhóis; mas havia também, como coadjuvantes, os
Governos de Madri e Lisboa, com seus prepostos coloniais. E o que
acabou prevalecendo no tratado pouco depois assinado foi a
posição basicamente convergente de Portugal e dos free­-lancers
paulistas, na expressão de Davidson, que assim conclui: “O sucesso
português na defesa, definição e integração do Oeste foi claramente
o resultado da combinação dos esforços e das posições de força
assumidos por cada parte frente a sua contraparte internacional”214.

8.3 As monções do norte


Em 1752, revertendo a política anterior de proibição de navegar
das minas do Guaporé ao Amazonas, baseada meramente em
questões fiscais, o Governo português abriu a rota do Madeira. Mais
do que isso, passou a estimular as comunicações entre Vila Bela e
Belém. Era a oficialização das monções do norte, como se chama
essa navegação, para diferenciá­-la das anteriores, antiga­mente
chamadas de povoado, hoje cuiabanas ou simplesmente monções,
sem adjetivos. Articuladas, ambas as monções navegavam boa
parte do contorno fluvial da ilha Brasil: “A função histórica dessa
autêntica estrada fluvial de perto de dez mil quilômetros, que abraça
quase todo o território da América portuguesa” − ensina Buarque de
Holanda − “supera a de qualquer outra linha de circulação natural do
Brasil, sem exclusão a do São Francisco, chamado por alguns
historiadores o rio da unidade nacional”215.

As condições das monções do norte eram, entretanto,


diferentes. As ubás, como eram aqui chamadas as canoas, muito
maiores, carregavam vinte homens e podiam transportar até 3 mil
arrobas de carga, isto é, umas sete vezes o que transportavam as
canoas paulistas. Os rios, bem mais volumosos também, não
apresentavam tantas dificuldades como no Sudeste. No percurso
das monções cuiabanas, havia, vimos, cerca de cem trechos onde
era necessário desembarcar carga e passageiros e às vezes
transportar por terra a própria canoa; na rota do Madeira, o único
problema grave eram as corredeiras do alto Madeira, entre
Guajará­-Mirim e Porto Velho. Os traços característicos de ambos os
meios de transporte eram o comboio de canoas e a época propícia
às viagens, donde a denominação comum.

Essa ligação entre o Centro-Oeste e o Norte durante o meio


século que se seguiu ao Tratado de Madri foi importante para a
sobrevivência da primeira região, tão distante dos centros principais
da Colônia e com eles tão dificilmente conectada:

De 1752, quando o primeiro comboio de canoas formalmente autorizado navegou


corrente abaixo de Vila Bela a Belém, até a primeira década do século XIX, os rios
Guaporé­-Mamoré­-Madeira constituíram uma artéria indispensável do posto
fronteiriço de Mato Grosso216.
As monções do norte duraram menos que as cuiabanas; come-­
çaram depois e morreram juntas na segunda década do século XIX.
Nessa época, a ligação terrestre entre Vila Bela, Cuiabá e as
cidades da costa leste − sempre mais importantes do que Belém −
passaram a ser dominantes, o que provocou a dependência
econômica do Cento-Oeste para com o Sudeste.

O período de existência das monções do norte coincide


paradoxalmente com o período de decadência das minas de Cuiabá
e do Guaporé, quando a economia regional passou a assumir seu
caráter pastoril, predominante até há poucas décadas. Sem elas,
entretanto, teria sido difícil para Portugal manter o controle dessa
vasta área. Lembre­-se de que os tratados de Madri, Santo Ildefonso
e Badajós marcaram trechos de paz em um período de conflitos
entre a Espanha e Portugal.

Davidson, em seu estudo das monções do norte, divide­-as em


três fases: na primeira, entre 1752 e 1768, seriam responsáveis por
21% do comércio do Centro­-Oeste; na segunda, de apogeu, entre
1769 e 1788, quando florescia a “Companhia do Pará”, as monções
do norte transportavam 34% das mercadorias que chegavam a Vila
Bela e de lá saíam; a terceira fase, de 1788 a 1808, é de declínio:
“Durante a década de 1790, Vila Bela conduziu a maior parte de seu
comércio com os portos brasileiros [da costa leste], diretamente ou
através de agentes intermediários como Cuiabá”217. Não havia mais,
no final do período, o perigo de uma invasão espanhola: as missões
de Moxos e Chiquitos degringolaram com a expulsão dos jesuítas,
em 1767, e os portugueses já estavam fixados fortemente na região.
Perdeu­-se, pois, a razão estratégica da via do Madeira, que nunca
foi uma linha comercial de pleno sucesso, talvez porque Belém
nunca tenha chegado a ser um centro comparável com o Rio de
Janeiro.
TERCEIRA PARTE
As negociações dos limites
terrestres

Auriverde pendão da minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança [...].

(Castro Alves, Navio Negreiro.)


Capítulo IX
O mapa da Colônia
Partindo do litoral, os colonos foram aos poucos incorporando o território da
América portuguesa ao âmbito do Império: mundo sempre em movimento onde as
hierarquias sociais se superpunham com maior flexibilidade e rapidez; onde os
limites geográficos foram, até meados do século XVIII, fluidos e indefinidos. (Laura
de Mello e Souza, Formas provisórias de existência, in História da vida privada no
Brasil.)

9.1 Madri: um acordo favorável a Portugal?


Relembremos os traços básicos da conquista do território
brasileiro. O século XVI, o primeiro da colonização portuguesa na
América, basicamente dedicado à ocupação de pontos isolados no
litoral leste, viu surgirem as entradas pioneiras. O século XVII foi o
período das grandes bandeiras paulistas, trilhando o Sul e o
Centro­-Oeste; foi também a época da fundação de Belém, das
tropas de resgate e das primeiras missões de religiosos portugueses
no rio Amazonas e seus afluentes; em 1680, o Governador do Rio
de Janeiro funda a Colônia do Sacramento, na tentativa de
assegurar a fronteira natural do Prata. A primeira metade da
centúria seguinte foi o tempo das “minas gerais”, dos centros
mineradores de Goiás e de Mato Grosso e das monções cuiabanas
que ligavam Cuiabá a São Paulo; da consolidação da presença
portuguesa em vários rios da Amazônia e das monções do norte, a
navegação entre Vila Bela e Belém; e, também, das lutas pela
posse da Colônia e das tentativas de ocupação do território que hoje
se divide entre o estado do Rio Grande do Sul e o Uruguai.
Embora a Independência ainda tardasse 72 anos, a exata
metade do século XVIII, 1750, é uma boa data para dividir a História
do Brasil, como indica Charles Boxer, que precisamente naquele
ano termina seu clássico The Golden Age of Brazil. Dá várias razões
para individualizar 1750: atingido o auge, começa a diminuir a
produção aurífera do Brasil; morre D. João V, cujo reinado de 44
anos foi o mais longo da História de Portugal, e sobe ao trono D.
José I, inaugurando, com seu Primeiro­-Ministro, o futuro Marquês de
Pombal, a época portuguesa do despotismo esclarecido; completa­-
se, com a extinção das bandeiras paulistas, um ciclo muito
importante da ocupação do território brasileiro; e, o que mais
interessa aqui, assinam o Tratado de Madri as potências coloniais.

Curioso é o destino desse Tratado. Assinado, ratificado e


promulgado em 1750, já em 1761 era anulado pelo Tratado de El
Pardo. Retomado quase integralmente, à exceção da fronteira sul,
pelo Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, foi de novo anulado em
1801, quando se desfechou mais uma das muitas guerras
peninsulares. Ao se restabelecer a paz, nesse mesmo ano, pelo
Tratado de Badajoz, não se revalidou nenhum acordo anterior.
Durou, portanto, muito pouco para um tratado de limites, tipo de
acordo que visa a soluções permanentes. E, apesar dessa curta
vigência formal, é na História do Brasil o texto fundamental para a
fixação dos contornos do nosso território.

Realmente, fora o Acre; o triângulo formado pelos rios Japurá,


Solimões e a linha Tabatinga Apaporis; e pequenos acertos de
fronteiras − capítulos posteriores da formação territorial do Brasil −,
foi o Tratado de Madri que legalizou a posse do Rio Grande do Sul,
do Mato Grosso e da Amazônia, regiões situadas a ocidente da
linha de Tordesilhas. Além de dar título jurídico a essa grande área
ocupada pelos portugueses, o tratado permutou a Colônia do
Sacramento pela região dos Sete Povos, aldeamento jesuítico
situado no oeste do atual Rio Grande do Sul. Como dividiu um
continente, fato sem precedente e sem consequente no Direito
Internacional, ao fixar os limites brasileiros, estava também
estabelecendo as lindes terrestres básicas de todos os dez vizinhos
do Brasil.

Historiadores de nacionalidades neutras encontram no Tratado


de Madri as qualidades de equilíbrio e moderação que caracterizam
os bons acordos. O inglês Robert Southey assim se expressa:

Impossível teria sido semelhante convênio sem disposição amigável de ambas as


partes [...] A linguagem e o teor todo deste memorável tratado estão dando
testemunho da sinceridade e boas intenções das duas cortes. Parecem, na verdade,
os dois soberanos contratantes ter­-se adiantado ao seu século218.

O alemão Heinrich Handelmann tem o mesmo tom lisonjeiro:


“Este tratado de limites foi, no seu todo, razoável e vantajoso para
as partes contratantes”219.

No Brasil, a tendência é também elogiosa, sendo padrão de


muitas opiniões esta do Barão do Rio Branco:

O estudo do Tratado de 1750 deixa a mais viva e grata impressão da boá­-fé,


lealdade e grandeza de vistas que inspiraram esse ajuste amigável de antigas e
mesquinhas querelas, consultando­-se unicamente os princípios superiores da razão
e da justiça e as conveniências da paz e da civilização da América220.

Capistrano de Abreu é a voz divergente, pois acha o acordo


injusto pelos êxodos cruentos que determinou (os Sete Povos).

Os especialistas hispano­-americanos geralmente veem com


antipatia o Tratado de Madri − às vezes chamado com desprezo de
“tratado de permuta” −, pois o consideram prejudicial às colônias
americanas da Espanha e, em consequência, aos países sul­-
americanos em que aquelas se transformaram. O historiador
argentino Carlos Correa Luna, por exemplo, caracteriza Madri como
o tratado que “legitimó una magna usurpación territorial” 221. A rainha
espanhola, Dona Maria Bárbara de Bragança, que fora infanta
portuguesa, e o Primeiro­-Ministro, D. José de Carbajal y Lancaster,
o negociador principal pelo Governo espanhol, já receberam críticas
que raiam pela acusação de traição nacional.

Na realidade, ao se olhar um mapa do Brasil de hoje, com a


linha reta de Tordesilhas, tem­-se a impressão de que a Espanha
cedeu muito: afinal, cerca de dois terços do território nacional são
constituídos por terras extra­-Tordesilhas. A explicação corrente é
que houve uma compensação global: no Oriente foi a Espanha
quem legalizou a posse de regiões que seriam portuguesas pela
divisão de 1494 (e acordos posteriores), como as ilhas Filipinas e
Molucas. Tratou­-se, portanto, de um acerto mundial de contas. O
argumento é, aliás, consignado no próprio texto do Tratado, quando,
na introdução, Portugal alega que a Espanha violou a linha de
Tordesilhas na Ásia, e a Espanha, que Portugal a violou na América.

Capistrano acha, entretanto, que essa justificativa valoriza


excessivamente as possessões espanholas no Oriente, em relação
ao Brasil: “seria uma das ironias da história averiguar que, do mero
apego à posse das Filipinas, procederam todas as concessões por
parte da Espanha” 222. Para a finalidade deste estudo, não é
necessário enfocar a questão em seu aspecto universal; basta, para
explicar o acordo, comentar o que esse autor chama de
“superioridade relativa das posições portuguesas nas zonas
litigiosas” 223, expressão, aliás, que não é válida para a região
platina, onde os espanhóis sempre foram mais fortes. Como essa
superioridade é consequência da ocupação, voltaremos a tratar, sob
outra luz, do avanço luso­-brasileiro sobre a Amazônia, o Centro­-
Oeste e o Sul. Mas, antes, digamos uma palavra sobre o homem
que estava no comando das negociações do tratado na corte
portuguesa: Alexandre de Gusmão.

9.2 O desconhecido revelado


Em 1942, o historiador Affonso d’Escragnole Taunay assim se
referia ao nosso personagem: “O que sobre Alexandre de Gusmão
existe, fragmentário e sobretudo deficiente, apenas representa
parcela do estudo definitivo que, mais anos menos anos, se há de
fazer deste brasileiro imortal, figura de primeira plana de nossos
fastos” 224. Realmente, até então pouco se havia falado de Gusmão,
principalmente por parte dos historiadores. Os estrangeiros que, no
século XIX, melhor escreveram sobre a História do Brasil, Martius,
Southey e Handelmann, nada dizem a seu respeito. Mais tarde, já
no século XX, Capistrano de Abreu, que elaborou uma notável
síntese do período colonial, ignora­-o por completo. Assim também
Caio Prado Junior, cuja obra mais duradoura, Formação do Brasil
contemporâneo, é um valioso estudo sobre o povoamento e a vida
material e social do Brasil Colônia.

É interessante notar que nas histórias literárias e nas coleções


de clássicos – ao contrário dos livros propriamente de história –,
Alexandre está bastante presente. Em 1841, por exemplo, é publi-­
cado no Porto um volume intitulado Collecção de vários escritos inéditos,
políticos e litterários de Alexandre de Gusmão (reeditada em 1943, em São
Paulo, na conhecida série “Os mestres da língua”, como A. Gusmão −
Obras). As cartas do santista, em particular, notáveis pela ousadia e
irreverência com que tratava os poderosos de então, tiveram
sempre muito sucesso editorial (inclusive em 1981, no volume
Alexandre de Gusmão – Cartas, da coleção oficial “Biblioteca dos
autores portugueses”).

No final do século XIX, Camilo Castelo Branco, em seu Curso de


literatura portuguesa, equipara Gusmão aos maiores homens de
letras: “na esperteza da observação, na solércia da crítica e para
quem antepõe estudos sociológicos a perluxidades linguísticas, o
Secretário de D. João V excede a Antônio Vieira e D. Francisco
Manuel de Mello”225. Julgando­-o como político, Camilo não deixa por
menos: tudo o que o Marquês de Pombal fez tinha já sido pensado
por Alexandre... Em suas palavras: “Todas as encomiadas
providências de Sebastião de Carvalho acerca da moeda, das
companhias na América, das Colônias, das indústrias nacionais, das
obnóxias distinções entre cristãos novos e velhos, das minas do
Brasil, encontram­-se nos escritos de Gusmão”226. Há exagero,
seguramente, no julgamento camiliano, mas o fato a reter é que um
dos maiores escritores de Portugal põe o Secretário do Rei nas
alturas mais elevadas, comparando­-o a Vieira na literatura e a
Pombal na política.

Hoje, existem elementos para se fazer um julgamento mais


equilibrado da obra de Alexandre. Homem universal, que escrevia
com muita facilidade e graça, não é como literato que passaria à
posteridade, como bem explica Fidelino de Figueiredo: “A afoiteza
da linguagem, quase insolente, com que o Secretário se permitia
advertir e censurar os grandes do Reino, em nome do soberano, é
que fez as delícias de Camilo e de outros leitores do século XIX”227.
São, na verdade, suas ações de estadista, em especial na
concepção e negociação do Tratado de Madri, que lhe asseguram
um lugar de relevo na história diplomática luso­-brasileira.

Varnhagen é dos primeiros historiadores que se ocupam de


Gusmão. São só umas poucas linhas, mas que lhe fazem justiça. Ao
mencionar seu papel no Tratado de Madri, diz: “Do lado de Portugal,
quem verdadeiramente entendeu tudo nessa negociação foi o
célebre estadista brasileiro Alexandre de Gusmão”228. Nos últimos
anos do século XIX, o Barão do Rio Branco, em algumas de suas
Efemérides brasileiras publicadas no Jornal do Comércio, põe as coisas
no devido lugar. Escrevendo sobre Madri, por exemplo, é preciso e
conciso: “o verdadeiro negociador do tratado foi o ilustre paulista
Alexandre de Gusmão, embora seu nome não figure no
documento”229. Mais tarde, na defesa do Brasil na Questão de
Palmas, também não deixa dúvidas sobre a importância da obra de
Alexandre.

Em 1916, o Embaixador Araújo Jorge, antigo colaborador de


Rio Branco, reúne em livro vários ensaios históricos, entre os quais
“Alexandre de Gusmão – o avô dos diplomatas brasileiros”, em que
dá o destaque devido a ele nos assuntos do Brasil, nos últimos vinte
anos de D. João V. Nesse estudo há: uma pitoresca visão de
Portugal na época desse rei – em particular de Lisboa com seus
becos cheios de vida, de mistério e de sujeira, antes do terremoto
de 1755; um resumo dos trabalhos “brasileiros” de Gusmão; um
apanhado dos problemas da Colônia do Sacramento e dos conflitos
pela posse das terras do sul (Rio Grande do Sul e Uruguai); e uma
discussão sobre os pontos fundamentais do tratado de 1750.

Finalmente, na década de 1950, aparece a imponente obra


Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, do historiador português
especializado na formação territorial do Brasil Jaime Cortesão, a
qual, pela farta documentação que traz à tona, não tem paralelo em
nossa história. Resgata definitivamente a ação política e diplo­mática
de Gusmão. A obra tem cinco partes, distribuídas em nove volumes.
A primeira (dois volumes, recentemente republicados pela Fundação
Alexandre de Gusmão [Funag]), fundamental, trata de sua vida e
seus estudos sobre o Brasil; particular atenção merece a análise
dos antecedentes, das negociações e da execução do Tratado de
Madri. As outras quatro partes (sete volumes) contêm outros
trabalhos do diplomata e toda a documentação disponível sobre
Madri. Como seu próprio título indica, não é propriamente uma
biografia de Alexandre de Gusmão, mas, sim, um estudo, tão amplo
quanto possível, do “homem na medida em que interessa à maior de
suas criações; e esta durante o período em que estreitamente se
prende ao criador”230.

Vamos nos deter nesse ponto. Gusmão é um homem que não


tem propriamente uma biografia escrita, ao contrário, por exemplo,
de quase todos os outros personagens da recém­-publicada coleção
de pensadores e executores de nossa política externa, Pensamento
Diplomático Brasileiro. Não tem igualmente escritos ou discursos sobre
esse tema; na verdade, nem é brasileiro, pensam alguns
historiadores, como Fernando Novais... Nossa visão é a seguinte:
Alexandre de Gusmão é um português, nascido e criado na colônia
americana, que, por seus conhecimentos específicos e qualidades
de estadista, revelou­-se um articulado e bem sucedido defensor dos
interesses territoriais daquela parte do império luso que mais tarde
seria o Brasil.

Adiantemos, já agora, uma pergunta que leva à percepção


imediata da importância do Tratado de Madri. O que era o Brasil
antes dele? Um grande território amorfo, que não se sabia bem o
que incluía e onde terminava. Nos primórdios da colonização, se é
verdade que se ignorava em que lugar passava exatamente a linha
de Tordesilhas, pelo menos se tinha uma fronteira teoricamente
demarcável; depois, com a ocupação do vale do Amazonas, com a
fundação da Colônia do Sacramento e com as descobertas auríferas
no Centro­-Oeste, perdeu­-se completamente a noção de limite para
as terras brasileiras. Qual era, por exemplo, a área dos atuais
estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul?
Dependia de quem fizesse o mapa: para o conhecido geógrafo
francês Bourguignon d’Anville, na carta que fez da América do Sul,
em 1748, de território brasileiro, só havia na região uma
estreitíssima faixa litorânea, quase esmagada por um grande
Paraguai. Boa parte do Amazonas, do Amapá, de Roraima... nem
pensar.

O historiador português André Ferrand de Almeida assim vê o


território colonial da época: “já bem entrado o século XVIII, o Brasil
surge­-nos como um arquipélago de algumas ilhas [...] um espaço
imenso fragmentado em vários centros populacionais,
especializados em atividades econômicas diversas, e separados
entre si por distâncias enormes”231. Pode­-se, pois, facilmente
calcular a insegurança que provocava nos dirigentes lusos ter uma
colônia com território incerto e limites abertos; uma colônia que, já
por volta de 1730, tinha, além da tradicional cana­-de­-açúcar do
Nordeste, novas e abundantes riquezas, como o ouro de Minas
Gerais, de Cuiabá e de Goiás e, para o abastecimento interno, os
produtos pecuários das “vacarias”, como os antigos documentos
chamam várias áreas de pastagens existentes entre o rio Uruguai e
o litoral (hoje os territórios do estado do Rio Grande do Sul e do
Uruguai).
9.3 Madri: ocupação e transação
Ao negociarem o Tratado de Madri, dissemos que os
portugueses estavam em melhor posição no terreno, graças à
ocupação territorial realizada em terras extra­-Tordesilhas, na
Amazônia e no Centro­-Oeste; mas não no Sul, onde a força estava
do lado dos espanhóis. Reexaminemos agora como se deu a
ocupação dessa base física legalizada pelo tratado, privilegiando o
ponto de vista espanhol.

a) Amazônia
Tirante o Prata, uma história à parte, o império colonial
espanhol na América do Sul estava centralizado em Lima, sede do
Vice­-Reinado do Peru. Outros centros de importância, como Quito,
Bogotá e Chuquisaca (hoje Sucre), estavam situados nos Andes,
em alturas entre 2.500 e 4 mil metros. Fundada por Francisco
Pizarro, em 1530, Lima era o principal porto de saída das riquezas
minerais que os espanhóis descobriram na sierra, logo nos primeiros
contatos com os incas, uma típica civilização das montanhas, cujo
foco de irradiação era Cuzco. As comunicações com a metrópole
eram muito demoradas, inclusive porque a linha central Lima­-
Sevilha incluía o transbordo terrestre pelo Panamá.

A famosa mina de Potosí, descoberta no Alto Peru (atual


Bolívia) em 1545, com suas imensas reservas de prata, contribuiu
para que boa parte da população europeia se fixasse nas
montanhas: por volta de 1650, com cerca de 160 mil habitantes,
Potosí era o maior centro populacional das Américas. No planalto de
Bogotá, aonde os espanhóis chegaram já em 1534, região acima
dos 2.600 metros e distante centenas de quilômetros tanto do
Pacífico como do Atlântico, as terras férteis, o clima fresco e,
principalmente, o ouro dos muíscas também atraíam os europeus às
alturas.

Bem diferente sorte tiveram os portugueses, que durante dois


séculos percorreram em vão os sertões para achar um “outro
Peru”232 no Brasil; o que só viria a acontecer nos trinta primeiros
anos do século XVIII, com a revelação sucessiva de nossos três
eldorados, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Por que iriam,
então, os espanhóis dos seiscentos e dos setecentos descer a
montanha para aventurar­-se na selva amazônica, hostil, cheia de
febres e animais repulsivos, se tinham à mão as maiores riquezas
do universo?

Depois, tendo a atividade mineradora fixado os colonos nos


Andes em elevadas altitudes – lembre­-se de que no mundo só a
cordilheira do Himalaia apresenta cumes mais altos – de ar frio e
rarefeito, de certo modo os inutilizou para a vida nas terras baixas e
quentes. Os espanhóis nisso seguiram o precedente dos incas:
apesar de formarem o mais “geofágico” dos impérios pré­-
colombianos, esses indígenas nunca se aventuraram abaixo dos
2.500 metros no versante amazônico dos Andes (onde está, por
exemplo, a cidadela­-templo de Machu Picchu). O argumento da
inadaptação física, sem dúvida discutível, foi usado por Euclides da
Cunha, em Contrastes e confrontos, quando descreve a imensa
dificuldade que tinham os bolivianos das alturas de se adaptarem às
condições da floresta amazônica.

Certamente mais importante para explicar por que foram os


portugueses e não os espanhóis que ocuparam a Amazônia são as
razões da geografia fluvial. Desde o começo da colonização, os
portugueses haviam­-se apossado das melhores portas de entrada
da planície. Pelo sul, existiam as trilhas dos bandeirantes e, no
século XVIII, a rota das monções, que conduzia ao rio Cuiabá e,
depois de um percurso terrestre, ao Guaporé, isto é, ao sul da bacia
amazônica; pelo norte, ocupada a foz do Amazonas (Belém foi
fundada em 1616), estava assegurado o acesso, na expressão de
um historiador francês de nossos dias, à “voie royale”233 da
penetração.

Com os espanhóis ocorria o oposto: era extremamente difícil


deslocar­-se para a Amazônia a partir da costa do Pacífico e mesmo
dos centros urbanos das regiões andinas. Basta um exemplo,
embora tardio e individualizado, para se ter uma ideia das
dificuldades. Em 1886, o Governo do Peru nomeou Governador do
departamento de Loreto, que contém a maior parte da Amazônia
peruana, a José Benigno Samanez y Campo; como tinha urgência
para chegar a Iquitos, capital do departamento, optou o novo
Governador − um notável explorador dos rios amazônicos, é preciso
frisar − pelo caminho mais rápido: de Lima foi de navio ao Panamá;
atravessou o istmo de trem; tomou em Colón um navio para Nova
York; de lá, outro para Belém; e outro mais para Iquitos, aonde
chegou no prazo curtíssimo, para a época, de oitenta dias.

b) Centro­-Oeste
Aqui a situação foi diferente: houve alguma resistência à
ocupação portuguesa. Os espanhóis estavam mais perto, no
Paraguai, e especialmente nas missões jesuíticas. Em 1614,
ocorreram os primeiros choques entre as frentes bandeirantes e as
missões situadas ao sul da região que estamos estudando, no
Guairá (oeste do Paraná) e, depois, no Uruguai (às margens do rio
do mesmo nome) e em Tapes (no centro do Rio Grande do Sul).
Mais de cem anos depois, com a descoberta de ouro em Cuiabá
(1719) e no Guaporé (1736), os enfrentamentos se davam perto de
onde estavam as missões de Chiquitos (junto a Mato Grosso do Sul)
e de Moxos (junto a Mato Grosso).

Assunção, fundada em 1537, foi um poderoso núcleo de


expansão no início do processo colonizador. Uma ilustração: Santa
Cruz de la Sierra, no centro do continente, no alto Mamoré, foi
fundada por gente de Assunção já em 1561, logo depois da
fundação de São Paulo (1554), a primeira povoação portuguesa não
situada na costa atlântica (e assim mesmo a apenas 50 quilômetros
do litoral). Mas Assunção, “madre de ciudades”, como a chamam os
historiadores hispano­-americanos, e o Paraguai como um todo
perderam importância no sistema colonial espanhol depois que se
descobriu que o caminho de Buenos Aires ao Peru (especificamente
à prata de Potosí), isto é, a rota alternativa à do Panamá, não
passava por aí; era mais ao sul, por Tucumán. O tema, que mostra a
influência da Geografia sobre a História, é muito bem explicado por
Caio Prado Júnior, em seu ensaio “Formação dos limites meridionais
do Brasil”, do livro Evolução política do Brasil e outros estudos.

Houve um momento, no século XVI, em que parecia que a


futura região de Santa Catarina (e do Rio Grande do Sul,
consequentemente) seria paraguaia. Aí chegava uma das três
trilhas ancestrais dos guaranis que ligavam o litoral atlântico à área
do Guairá (e a Assunção), centro de dispersão das tribos que
ocupavam quase toda a costa brasileira. O célebre explorador
espanhol Don Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, autor de grandes
aventuras no México, foi nomeado governador do Paraguai em
1540, quando já tinha 61 anos. Ao chegar ao continente, deixa um
grupo de espanhóis em Cananeia, no litoral paulista, e desce de
barco até a ilha de Santa Catarina, onde encontra vários
conterrâneos. Cria, então, a Província de Vera, que, dependente de
Assunção, teria como limite leste o atual litoral de Santa Catarina,
do Paraná e de São Paulo até a latitude de 24º, isto é, acima de
Cananeia. Em alguns mapas dos séculos XVI e XVII, vê­-se, por
isso, um grande Paraguai, com costa atlântica; seria um país de
dimensões da Argentina, situado entre o Brasil (sem o sul) e a
Argentina (também diminuída de suas províncias de Entre Ríos,
Corrientes e Misiones) e que incluiria o atual Uruguai.

O grande Paraguai murchou junto com o esvaziamento da


colonização espanhola nessa região (Buenos Aires, ao contrário,
despontava). Não tivesse isso ocorrido, os bandeirantes, que quase
160 anos depois da fundação de Santa Cruz descobriram ouro
primeiro no rio Cuiabá (1718) e, depois, nas margens do Guaporé
(1734), possivelmente nem teriam chegado lá, ou se o tivessem
encontrariam essa região ocupada pelos espanhóis. Isso para não
falar de muito antes, dos trinta primeiros anos do século XVII,
quando bandeiras paulistas destruíram as missões jesuítas
espanholas do Guairá, do Uruguai e de Tapes: um forte Paraguai
provavelmente não teria permitido isso.
Mas por que será que os espanhóis, ao conhecerem a
penetração na zona de Cuiabá, não reforçaram militarmente a área?
Ignorariam que os luso­-brasileiros haviam ultrapassado Tordesilhas?
Na verdade era muito difícil até as últimas décadas do século XVIII
calcular longitudes − somente em 1765, com o cronômetro de
Harrison, descobriu­-se um método prático e preciso para fazê­-lo − e,
portanto, impossível para os primitivos garimpeiros de Cuiabá e de
Guaporé saber se estavam ou não a oeste da linha das 370 léguas.
Mas os Governos seguramente tinham noção de que houvera a
ultrapassagem; tanto que, em décadas anteriores, haviam­-se
enfrentado bem a leste dessa região, em Goiás.

O brazilianist David M. Davidson acha que faltou aos espanhóis


decisão. Ficaram trocando correspondência triangular entre os
núcleos jesuítas de Moxos e as cidades de Buenos Aires e Lima e
não invadiram o Mato Grosso num momento em que eram os mais
fortes: afinal, Cuiabá era um pequeno acampamento de
mineradores e os pontos de garimpagem no Guaporé eram ainda
mais desprovidos de recursos. Não se pode também ignorar que,
nos anos imediatamente anteriores à assinatura do Tratado de
Madri, a Espanha era um país enfraquecido por crises e guerras e
convencido de que na América do Sul não estava em condições de
povoar o centro do continente, nem de impedir que os portugueses
o fizessem: “no hay más remedio que ajustarse de modo que cada uno sepa lo
que es suyo, quedando por linderos los parajes más conocidos de aquellos países,
para que no se alteren en adelante; en cuya forma prevenimos la introducción
futura y evitamos más daños”234, diz desacorçoadamente um
administrador colonial.

É possível realmente que houvesse displicência e decadência,


mas é preciso também considerar que essa nova região mineradora,
o atual Centro­-Oeste do Brasil, não era muito importante para os
espanhóis. Com suas imensas riquezas nos Andes e um império
espalhado pelo mundo inteiro, estavam “fartados de terra”235 e só
reagiriam em pontos nevrálgicos, como o Prata.
c) Sul
Até agora, falamos do Norte e do Centro­-Oeste do Brasil, que
são na verdade as grandes extensões envolvidas no Tratado de
Madri. Agora trataremos de uma área bem menor, mas que, para os
dirigentes coloniais da época, era muito mais importante: a Colônia
do Santíssimo Sacramento. Sua história está ligada à de Buenos
Aires, a única possessão espanhola do lado atlântico da América do
Sul, teoricamente subordinada ao Vice­-Reinado do Peru, mas na
prática gozando de boa dose de autonomia. Em torno do Prata foi
que se deram os conflitos coloniais mais importantes; e, depois, no
Império, as únicas guerras que envolveram o Brasil, as do Uruguai,
1820­-1821, 1826­-1827 e 1864, da Argentina, 1850­-1852, e a do
Paraguai, 1865­-1870. A região da velha rivalidade platina – é
curioso observar – hoje é aquela onde mais se evidencia a
cooperação entre os vizinhos, principalmente depois do Mercosul.

Como já vimos, antigo era o objetivo português de fazer os


limites do Brasil chegarem ao Prata: Pero Lopes de Sousa, em 1531
(para usar um verbo também antigo), já “chanta” padrões na
margem esquerda do grande rio; Manuel Lobo aí funda Colônia, em
1680. Nunca conseguiram os luso­-brasileiros, entretanto, ocupar os
territórios que a uniriam ao resto do Brasil. Hoje, pode­-se dizer que
faltou capacidade de colonizar a região intermediária para que
Colônia tivesse uma base segura de sustentação; mas a verdade é
que não faltaram esforços de vária índole e que a estes se deve a
ocupação do atual Rio Grande do Sul, o que deu ao território
brasileiro uma fronteira sul de boas dimensões na direção leste­-
oeste e quase natural (rios e elevações).

Vejamos duas iniciativas portuguesas para fazer do rio da Prata


a divisa meridional do Brasil. A primeira, teórica, foi uma falsificação
geográfica tão convincente, que se difundiu por outros países
europeus. Desde os mapas de Pedro Reinel e Lopo Homem, ambos
de 1519, toda a região da foz do Prata foi deslocada para leste, de
tal maneira que ficasse integralmente na parte lusa da divisão de
Tordesilhas. Até os espanhóis, os naturais prejudicados por esse
fato, adotaram essa visão, como se vê, por exemplo, no mapa­-
múndi de Diogo Ribeiro, de 1529.

A outra, prática, foi a política de ocupação do atual sul do Brasil.


Antes da fundação de Colônia, foi muito relevante o estabelecimento
do núcleo irradiador de Laguna (1676); depois, houve a fundação,
em 1737, da colônia militar de Jesus, Maria e José (Rio Grande), no
único local possível − o canal de deságue da lagoa dos Patos − da
costa sem portos de 700 quilômetros. Igualmente notável foi a
grande imigração organizada pela Coroa, na década de 1740, que
previa o transporte de 4 mil casais açorianos para Santa Catarina e
o Rio Grande do Sul. A primeira área ocupada foi o norte da lagoa
dos Patos, onde se desenvolveu, perto da localidade já existente de
Viamão, o então chamado Porto dos Casais. Havia a ideia de que
os açorianos ocupassem as Missões, mas a Guerra Guaranítica
impediu que esse desiderato fosse atingido. Apesar desses
esforços, os luso­-brasileiros nunca povoaram o atual Uruguai e as
duas ocupações de Colônia, mais o grande cerco de 1735, eram
uma claríssima evidência de que os espanhóis, neste ponto do seu
vasto império americano, não cederiam.

Razões não faltavam, pois, para que, anos antes de 1750, os


dirigentes portugueses mais lúcidos, como nosso célebre Secretário,
já não tivessem muitas esperanças de fazer do rio da Prata a divisa
sul do Brasil. Colônia estava isolada e, apesar de os luso­-brasileiros
terem­-se fixado em Rio Grande (1737), os espanhóis dominavam a
maior parte da região intermediária, a partir de suas bases de
expansão, Montevidéu e Maldonado. Não podia haver mais dúvidas
sobre a importância que os espanhóis davam a Colônia, tanto pela
potencialidade de se transformar em ponta de lança de uma
possível ocupação portuguesa do território hoje uruguaio e quem
sabe até de Buenos Aires, quanto pela realidade de ser porto de
contrabando da prata andina.

9.4 Alexandre de Gusmão


Ao lado das vantagens no terreno, Portugal possuía, ao assinar
o Tratado de Madri, outros trunfos. Não se passou diretamente do
fato da ocupação ao direito do Tratado: os portugueses tinham
também títulos a apresentar. A capitania do Cabo Norte (o estado do
Amapá ampliado) foi criada para os portugueses em 1637, isto é, no
próprio período da União Ibérica: o rei comum fez isso não porque
quis ser gentil com seus súditos portugueses, mas, sim, porque
eram estes que estavam em Belém e, assim, a defesa contra
holandeses, franceses e ingleses na área só poderia provir deles.
Estabelecendo a capitania, entretanto, Felipe IV da Espanha criava
explicitamente direitos lusos ao setentrião amazônico.

Em 1668, 28 anos depois da separação entre Portugal e


Espanha, firmou­-se finalmente a paz. Uma das disposições do
tratado então assinado exigia a recíproca restituição das praças
tomadas “durante a guerra”. Ora, a máxima amplitude dessa
expressão seria considerá­-la equivalente a “de 1640 por diante”.
Não se discutia, pois, a ocupação da Amazônia, nem a de outras
regiões a oeste da linha de Tordesilhas, ocorrida sobretudo durante
a vigência da União Ibérica, isto é, de 1580 a 1640. Não era isso
uma implícita admissão da Espanha de que essas regiões eram
portuguesas?

Outros documentos favoráveis a Portugal são também dois


tratados, entre os vários assinados em Utrecht, ao final da Guerra
da Sucessão na Espanha. Um deles, de 1713, assegurou à nação
lusa a posse das terras à margem esquerda do Amazonas até o
“Japoc ou Vicente Pinzón”. Recorde­-se aqui que, para se conseguir
a conveniente fronteira do Oiapoque, região na verdade só
parcialmente ocupada pelos luso­-brasileiros, houve a sorte histórica
de os ingleses se aliarem nas negociações aos portugueses, por
não quererem ver os franceses na foz do Amazonas. O outro, de
1715, devolveu a Portugal a soberania sobre a Colônia do
Sacramento.
Seria fácil encontrar mais razões para explicar as vantagens de
Portugal ao assinar o Tratado de Madri: a prosperidade econômica
relativa de Portugal, propiciada pelo famoso ouro do Brasil, de que
tanto falam os historiadores portugueses e cujo período de maior
produção (média anual de 15 toneladas) vai de 1735 a 1755; a
estabilidade política do longo reinado de D. João V, durante o qual
“Portugal atingiu uma posição internacional de prestígio e
importância que não tinha desfrutado desde o reino de D. Manuel I”
236
; e a conjuntura de alianças pessoais na cúpula dos dois países,
favoráveis aos lusos. Mais oportuno, entretanto, é mencionar a
circunstância propícia de o Governo português contar no momento,
ocupando­-se dos assuntos brasileiros, com um servidor público que
conhecia como ninguém o problema das fronteiras brasileiras e
tinha grande habilidade diplomática.

Nascido na “Villa do Porto de Santos”, como então se dizia, em


1695, Alexandre de Gusmão era de uma família conhecida
localmente, mas de poucas posses, sendo seu pai, Francisco
Lourenço Rodrigues, cirurgião­-mor do presídio local. Entre doze
irmãos, três tomaram o sobrenome do amigo paterno e protetor
familiar, o jesuíta Alexandre de Gusmão, escritor e fundador do
Seminário de Belém, em Salvador. Alexandre, como se vê, tem o
nome e o sobrenome do renomado inaciano. Um de seus irmãos
mais velhos, Bartolomeu, o padre voador, foi famoso por suas
experiências com balões, uma delas, desastrosa, aliás, perante D.
João V e sua corte.

Com quinze anos, depois de ter estudado na Bahia, no colégio


de seu padrinho e homônimo, Gusmão vai a Lisboa, onde consegue
proteção real, segundo alguns autores porque D. João V gostou de
um poema do santista sobre sua “real pessoa” para usar outra
expressão da época. Proteção e certamente talentos, que então já
se revelavam, valeram­-lhe a nomeação para um posto diplomático
em Paris junto ao Embaixador português, D. Luís Manuel da
Câmara, Conde de Ribeira Grande. Na ida passa alguns meses em
Madri e ali se familiariza com o problema de que se ocupará
centralmente em sua vida profissional: as fronteiras coloniais na
América do Sul e a importância que o enclave da Colônia do
Sacramento tinha para o estabelecimento destas. Em Paris, onde
ficou cinco anos, frequentou escolas superiores, tendo­-se doutorado
em Direito Civil, Romano e Eclesiástico. Como curiosidade,
mencione­-se que durante sua estada na França, talvez para
aprumar finanças combalidas, abriu uma casa de jogos e teve
problemas com a polícia, o que, hoje, já não seria muito aceitável
para um diplomata na mesma situação...

Regressa a Lisboa e é de novo designado para uma missão no


exterior. Desta vez em Roma, onde permanece sete anos. Nesse
período, entre outros logros, conseguiu para seu Rei o título de
“Fidelíssimo”, emparelhando­-o, pois, às majestades da Espanha e
da França, que já tinham, respectivamente, os títulos papais de
“Católica” e “Cristianíssima”... A missão não foi um completo
sucesso, pois não obteve, conforme desejava D. João V, o capelo
cardinalício automático para os núncios em Portugal.

Volta definitivamente a Lisboa em 1722 e passa a ter intensa


atividade literária e acadêmica. Integra o grupo apodado de
“estrangeirados”, favoráveis a que Portugal se libertasse das
tradições anquilosadas e se abrisse aos novos ventos do iluminismo
e do racionalismo que vinham da França e da Inglaterra. Já então se
percebe o humor e a propensão à caricatura que caracterizam seu
estilo de se comunicar. Vamos, a seguir, dar três exemplos, tirados
de cartas escritas mais tarde, quando já estava no Governo.

Assim ironiza a reação da corte portuguesa, cheia de


superstições religiosas, às propostas de D. Luiz da Cunha,
Embaixador em Paris, para que D. João V tivesse um papel mais
ativo nas negociações de paz europeia, em 1745:

Procurei falar a S. Rvma. [o Cardeal da Mota, Primeiro­-Ministro] mais de três


vezes primeiro que me ouvisse, e o achei contando a aparição de Sancho a seu Amo,
que traz o Padre Causino na sua Corte Santa; cuja história ouviam com grande
atenção o Duque de Lafões, o Marquês de Valença, Fernão Martins Freire, e outros.
Respondeu­-me: que Deus nos tinha conservado em paz, e que V. Excia. queria
meter­-nos em arengas; o que era tentar a Deus. Finalmente, falei a El­-Rei, (seja
pelo amor de Deus!). Estava perguntando ao Prior da Freguesia, quanto rendiam
as esmolas das almas, e pelas Missas que se diziam por elas! Disse­-me: que a
proposição de V. Excia. era muito própria das máximas francesas, com as quais V.
Excia. se tinha conaturalizado; e que não prosseguisse mais237.

O Embaixador da França em Lisboa, que reclamava do rei


português a demora em dar sequência a um determinado assunto, é
admoestado, mas com graça:

Ainda que El­-Rei se ache desobrigado de dar satisfações a V. Excia. me ordenou


dissesse a V. Excia. que já respondera a S. Majestade Cristianíssima há mais de seis
meses, por haver falado na matéria o seu Ministro de Estado [o Primeiro­-Ministro
francês] ao Embaixador D. Luiz da Cunha. Pelo que não pode V. Excia. queixar­-se
dos procedimentos desta corte mas sim dos de França, cujo Ministro se esqueceu de
que V. Excia. era seu Embaixador[...]238.

A um grande do reino, D. Antônio de Almeida, Conde do


Lavradio, então governador de Angola, escreve uma dura carta, que
assim começa: “Vossa Excelência governa esse reino à maneira dos
pachás da Turquia [...]”239.

Alexandre é nomeado, em 1730, Secretário Particular de D.


João V (“Escrivão da Puridade”, grafam vários papéis da época).
Nesse mesmo ano, é feito membro do Conselho Ultramarino. A
partir de então, fica muito influente nas decisões do Governo
português, sobretudo nos assuntos de Roma (mas nestes havia em
Lisboa a concorrência de cardeais, núncios, capelães,
confessores...) e nos assuntos do Brasil (aqui, sim, era o “papa”). Já
chegou preparado para estas últimas funções: conhecia o Brasil
como ninguém – menos por lá ter nascido, mais por haver muito
estudado – e sabia como era importante para Portugal, que nessa
época já havia perdido para a Inglaterra e a Holanda várias de suas
possessões orientais, assegurar­-se firmemente da colônia
americana, dilatada muito além de Tordesilhas. Tomando posse de
seu cargo, começa o trabalho, completado em 1750, que lhe
garante permanência nos anais de nossa diplomacia: acordar com a
Espanha limites para o Brasil, de maneira que seu território incluísse
todas as terras ocupadas pelos luso­-brasileiros.

Gusmão é um polígrafo que pensou e escreveu sobre muitos


assuntos. Cortesão, ao estudar em todas as fontes disponíveis a
obra de nosso personagem, surpreende­-se com a extensão e
variedade dela:

correspondência oficial, oficiosa ou familiar; memórias políticas e geográficas;


ensaios sobre economia política, crítica literária, costumes sociais, e até um estudo
sobre uma nova ortografia da língua portuguesa; discursos acadêmicos e
panegíricos; libretos de ópera, poemas, traduções de poemas e rimários; pareceres
como conselheiro do Conselho Ultramarino ou como assessor de D. João V; e,
finalmente, as suas minutas de leis, portarias, alvarás, bulas, cartas e ordens
régias de toda a sorte, e, acima de tudo, instruções e correspondência diplomática
sobre atos ou tratados em negociações com a Santa Sé, a Espanha, a França e a
Grã­-Bretanha240.

E não é tudo: escreveu pelo menos uma peça teatral,


representada e traduzida, O marido confundido, de grande comici­dade
e assunto quase escabroso...

De sua extensa obra, o que tem para nós brasileiros particular


realce são seus estudos sobre o Brasil. A mão e a mente do paulista
veem­-se em todos os atos importantes da política da metrópole em
relação à colônia, nesses anos básicos para sua formação territorial,
isto é, entre 1730 e 1750: a emigração de casais açorianos para
ocupar o Rio Grande do Sul e Santa Catarina; a capitação, isto é, o
imposto per capita sobre a produção aurífera; a vinda ao Brasil de
especialistas em determinação de longitudes para se ter uma ideia
exata do que Portugal ocupara; a defesa escrita das ocupações
portuguesas na América do Sul...
Antecipemos que, assinado o Tratado de Madri, sua estrela se
apaga com a morte do rei, seu protetor, e a ascensão de D. José I,
com o futuro Marquês de Pombal como Ministro. Vêm agora os
tempos tristes dos ataques ao acordo e da perseguição política. Não
sobrevive muito: em 1753 morre − pobre, abandonado, frustrado.
Não faltaram amarguras em seus últimos anos, inclusive privadas,
como a morte da esposa e a perda de sua casa em um incêndio.

Hoje, entretanto, mais de 260 anos depois de sua morte, a


estrela está de novo brilhando, já não com a efemeridade da vida,
mas com a permanência da obra. Ao assumir funções na Corte,
seus conhecimentos da História e da Geografia do Brasil,
insuperáveis na época, davam­-lhe a convicção de que era
absolutamente indispensável assegurar com a Espanha a
manutenção da base física, tão arduamente conquistada por
bandeirantes, soldados, religiosos, simples moradores... Com esse
objetivo, pensou, agiu e teve a fortuna de completar seu trabalho. As
qualidades de negociador que então revelou, servidas por esses
conhecimentos, fizeram­-no o grande advogado dos interesses
brasileiros no século XVIII. Como o seria o Barão do Rio Branco, no
virar do século XX, sem esquecer a ponte que, entre esses dois
vultos, representa, no Império, o Barão da Ponte Ribeiro.

9.5 Ideias criativas


Para se fazer um acordo que dividisse todo um continente era
necessário preparar­-se tecnicamente, pois era muito pobre o
cabedal de conhecimentos geográficos que as nações ibéricas,
pioneiras dessa ciência na época dos grandes descobrimentos,
tinham então sobre o interior da América do Sul. Portugal soube
reagir: no segundo quartel do século XVIII, houve um verdadeiro
renascimento dos estudos geográficos, por estímulo direto da
Coroa. Especialistas de várias nações europeias foram a Lisboa e
dois deles, jesuítas, “os padres matemáticos”, como os chamam os
documentos da época, foram enviados ao Rio de Janeiro em 1729,
com a missão de elaborar um novo atlas da colônia. O que queria o
Governo português era ter ideia clara da localização dos territórios
ocupados, em relação à linha de Tordesilhas, em especial depois
dos recentes avanços no Centro­-Oeste (Mato Grosso).

Um fato serviu de acicate à reação. Foi a publicação, em 1720,


pelo geógrafo francês Guillaume Delisle, da primeira carta científica
da Terra, isto é, com latitudes e longitudes observadas por meios
astronômicos, com mapas da América do Sul que mostravam que a
Colônia do Sacramento, todo o vale do Amazonas e as minas de
Cuiabá e do Guaporé situavam­-se fora da parte atribuída a Portugal
pelo Tratado de Tordesilhas. D. Luiz Cunha, um dos maiores
estadistas portugueses do século, então em Paris, enviou os mapas
a Lisboa e certamente Alexandre de Gusmão deles teve
conhecimento. Não poderia deixar de ser chocante que um
especialista de outra nação pudesse realizar sobre a América do
Sul, onde o acesso de estrangeiros era difícil e as informações
geográficas segredos, um trabalho que nem os portugueses nem os
espanhóis, que com seus grandes impérios coloniais tantos
interesses tinham no assunto, estavam em condições de fazer.

Jaime Cortesão assim expõe a reação de Portugal:

O Rei e as classes cultas acordam para o estudo da geografia, da cartografia e, por


consequência, também da astronomia. Que os problemas da soberania [...] e o
desejo de afirmá­-la sobre novos, vastos e ricos territórios estavam na base desse
renascimento, não há como negá­-lo. Mas os mapas de Delisle foram o sinal de
alerta241.

De sua parte, o que fez a Espanha, sem dúvida interessada em


provar que seu território americano fora invadido, como certamente
tinha elementos para supor? Nada, ou quase nada, explica
Cortesão, que acrescenta: “E esse desnível cultural [entenda­-se,
cartográfico] vai pesar [...] na balança das negociações do Tratado
de Madri a favor de Portugal” 242.
Listemos as proposições sobre as quais se assenta o tratado
assinado em 1750: Portugal ocupou terras na América, mas a
Espanha se beneficiou no Oriente; as fronteiras não mais seriam
abstratas linhas geodésicas, como a de Tordesilhas, mas, sim,
sempre que possível, acidentes geográficos facilmente
identificáveis; a origem do direito de propriedade seria a ocupação
efetiva do território; e, em casos excepcionais, poderia haver troca
de territórios.

Provando a filiação direta dessas proposições nas ideias de


Alexandre de Gusmão, há um documento de 1736, de excepcional
interesse, em parte manuscrito por ele próprio, com correções e
adições de D. Luís da Cunha. Tem o título longo, como era então
habitual, de Dissertation qui détermine tant géographiquement que par les
traités faits entre la Couronne de Portugal et celle d’Espagne quels sont les
limites de leurs dominations en Amérique, c’est­-à­-dire, du côté de la Rivière de la
Plate, e foi escrito em francês, porque objetivava divulgar na Europa
a posição portuguesa na época de mais uma das divergências entre
Portugal e Espanha sobre a posse da Colônia do Sacramento (o
chamado Conflito do Prata, que durou de 1735 a 1737). A
Dissertation é uma completa antecipação do tratado; fácil é vincular­-
se artigos deste a parágrafos daquela.

A opinião dominante no Brasil e em Portugal julga, hoje, não


haver mais incertezas sobre o papel fundamental de Alexandre na
concepção e negociação do Tratado de Madri. Mas nem sempre foi
assim. No passado, seguramente influenciadas pelo fato de que
Gusmão nunca teve o título de Ministro de Estado, houve vozes
discordantes sobre o poder de decisão do santista nos últimos vinte
anos de D. João V. As controvérsias vinham desde sua própria
época: detestado pela parte “mais castiça e ortodoxa” da nobreza,
era, nesse período de exacerbada religiosidade, por ela acusado
sotto voce de ser cristão novo (o que se sabe ao certo é que tinha
amigos judeus e que seu irmão, o padre Bartolomeu, converteu­-se
ao judaísmo e foi perseguido pela Inquisição).
Mesmo em nossos dias, opiniões discordantes existem, como
se vê num livro relativamente recente do Professor Pedro Soares
Martinez, Historia Diplomática de Portugal. O autor não tem simpatia
pelos “estrangeirados” e irrita­-se com a personalidade irreverente de
Gusmão, que não poupa nem o rei a que serve. O historiador
justifica tantos papéis oficiais redigidos por Alexandre pelo fato dele
ser uma espécie de “escriba” de D. João V. Tira, ademais, a
importância de Gusmão nas negociações de Madri e afirma,
curiosamente, ser “duvidoso que o tratado de 1750 tenha sido
vantajoso a Portugal” 243: por ele, o país teria perdido a tão desejada
fronteira platina. Era o que pensava, aliás, o Marquês de Pombal,
que, em 1751, chega a dizer que se havia trocado um grande
território, que ia do rio da Prata ao rio Ibicuí, por “sete miseráveis
aldeias de índios”. Não era bem assim...

No governo absolutista de D. João V, tinha poder quem tivesse


a confiança do rei, não quem fosse investido de algum cargo oficial.
Vamos dar três exemplos sobre o prestígio e a importância de
Alexandre na corte. O primeiro, sobre seu prestígio, é uma
constatação de um estrangeiro que o conheceu bem e até teve
divergências com ele, o Conde de Baschi, Embaixador francês em
Lisboa (em despacho a Paris, quando da morte de Gusmão, em
1753): “Une perte considerable pour le Portugal [...] C’etait l’homme du
Royaume qui avait plus de genie”244. O segundo e o terceiro exemplos,
sobre seu poder, são julgamentos de dois respeitados historiadores
portugueses de nossos dias: “O rei viveu nos últimos anos paralítico
e os ministros eram, como ele, velhos e cansados. Havia uma
exceção: Alexandre de Gusmão, um ‘estrangeirado’ que em tempos
vira Portugal submerso pelas ondas da superstição e da ignorância
[...]”245; “Alexandre de Gusmão, nomeado secretário particular do rei
e primeiro­-ministro, praticamente, entre 1720 e 1750 [...]”.246 E
façamos um comentário nesse mesmo sentido: suas famosas cartas
de advertência ou reprimenda a importantes nobres e
administradores jamais poderiam ter sido escritas, durante anos e
anos a fio, sem que gozasse de plena confiança real.
Quanto ao território perdido (o Uruguai de hoje), é suficiente
constatar que os luso­-brasileiros nunca foram aí dominantes. Só
tinham de fato o controle de Colônia, cujo território, na visão
espanhola do Tratado de Utrecht, não ultrapassava o perímetro de
“um tiro de canhão”. E controle, assim mesmo, não absoluto, pois
Colônia − isolada dos núcleos portugueses da costa atlântica − era
indefensável, se os espanhóis de Buenos Aires e Montevidéu
estivessem realmente dispostos a tomá­-la. Nas palavras
expressivas de Gusmão, Colônia não era mais do que “um presídio
encravado no domínio da Espanha”247.

Já citamos bastante a obra de Jaime Cortesão, fundamental


para nos dar segurança sobre os grandes trabalhos diplomáticos de
Alexandre; queremos agora mencionar talvez o mais importante
especialista da formação de nossas fronteiras gaúchas, o historiador
português Luís Ferrand de Almeida. Seu último livro, Alexandre de
Gusmão, o Brasil e o Tratado de Madri, de 1990, é exatamente dedicado
ao tema de que estamos tratando. Revisa aí os fatos e as opiniões
existentes e igualmente não tem dúvida em dar grande
protagonismo político ao Secretário d’El Rei (para lembrar o título de
uma peça teatral de Oliveira Lima) e confirmá­-lo como o motor
básico do acordo que deu ao território brasileiro a forma que tem
hoje.

Em certo trecho, Ferrand de Almeida arrola e comenta onze


provas documentais, contemporâneas de Madri, que impõem “a
conclusão de ter sido, efetivamente, fundamental o papel de
Alexandre de Gusmão na preparação e no texto final do tratado”248.
Mencionemos uma só delas, escolhida por ser uma carta do
adversário dos portugueses, D. José de Carvajal; é de 1751 e se
refere ao novo ministro luso, o Marquês de Pombal, um crítico do
acordo: “consideró [Pombal] conveniente a sus particulares intereses destruir
la opinión de un Ministro togado de su corte [Gusmão] que por mui abil en tal
asunto [as fronteiras do Brasil] avia llevado la mano y la pluma en el curso de la
negociación” [do tratado]249.
Vamos sintetizar sobre Madri. Em que pese uma ou outra
opinião em contrário, o mainstream do pensamento histórico atual
está certo de que foi Alexandre de Gusmão o estadista que mais
claramente viu a conveniência de se utilizarem as regras do uti
possidetis e das fronteiras naturais para limitar as imensas áreas
coloniais do centro da América do Sul e teve a coragem de, depois
de tanto esforço, tantas lutas, tantas mortes, aceitar a troca da
Colônia do Sacramento e, portanto, abandonar o velho sonho do
Prata.

Mas não exageremos. As ideias de Alexandre de Gusmão não


surgiram assim do nada. Já estavam em forma embrionária
presentes em documentos de anteriores administradores coloniais,
como, com justiça, lembra o especialista norte­-americano David M.
Davidson:

Como os membros do Conselho da Índia da década de 1720, Gusmão suspeitava


que parte substancial do interior do Brasil estava a oeste da linha de Tordesilhas, e
tal como seus predecessores, considerava a ocupação uma base para a soberania
muito mais sólida do que a divisão tradicional, e os acidentes geográficos os únicos
marcos adequados para a demarcação territorial. Embora Gusmão fosse o primeiro
governante português a expressar com clareza e sofisticação os princípios do uti
possidetis e das fronteiras naturais, ele se apoiava em diretrizes já presentes no
pensamento oficial português250.

9.6 Madri: negociações (vide Mapa 8)


Pouco antes da metade do século, Portugal encontrava­-se,
pois, preparado para negociar com a Espanha. Capistrano de Abreu
é claro quanto à premência de um acordo de fronteiras: “A rápida
expansão do Brasil pelo Amazonas até o Javari, no Mato Grosso até
o Guaporé e agora no Sul, urgiu a necessidade de atacar de frente a
questão de limites entre as possessões portuguesas e espanholas,
sempre adiada, sempre renascente”251.
Faltava a oportunidade histórica, que surgiu com a ascensão ao
trono espanhol, em 1746, de Fernando VI, genro de D. João V.
Imediatamente começaram as tratativas. Nesse mesmo ano, houve
duas oportunas nomeações: o competente D. José de Carbajal y
Lancaster é feito ministro de Fernando VI; e Tomás da Silva Teles,
Visconde de Vila Nova da Cerveira, chega a Madri como novo
embaixador de D. João V. Não é porque se sabe, hoje, que o
principal articulador do Tratado de Madri foi Gusmão, que se deve
esquecer o papel importante que nas negociações teve “o
habilíssimo Tomás da Silva Teles”252, nas palavras do Almirante
Justo Guedes.

Entre os muitos documentos divulgados por Jaime Cortesão


sobre as posições de cada parte, destacam­-se dois conjuntos: uma
primeira proposta portuguesa com bases para um ajuste e a réplica
espanhola; uma nova proposta portuguesa, agora já articulando um
acordo, e a tréplica espanhola, melhorando aspectos formais e
introduzindo algumas novidades. Abrindo um parêntese, é
interessante notar que o sempre mencionado artigo 21 do futuro
tratado, que não permitia que houvesse guerra no continente sul­-
americano, mesmo que as matrizes europeias estivessem em
combate − considerado por vários autores como a semente do
futuro pan­-americanismo −, não é (segundo Cortesão) da autoria de
Alexandre, mas, sim, de Carbajal. A tese anterior, que vinculava o
santista a Monroe, foi aceita por vários historiadores brasileiros, Rio
Branco, inclusive, e divulgada internacionalmente pelo jurista
Rodrigo Otávio, em conferências pronunciadas em 1930, na
Sorbonne, sob o título geral de Alexandre de Gusmão et le sentiment
américain dans la politique internationale.

Vamos dar uma ideia desses documentos, mas comecemos


identificando os objetivos de cada parte. O que Portugal buscava
era negociar um tratado equilibrado, que, à custa de ceder no Prata,
se necessário, conservasse a Amazônia e o Centro­-Oeste e criasse,
no Sul, uma fronteira estratégica que vedasse qualquer tentativa
espanhola nessa região, onde a balança de poder pendia para
Buenos Aires. Alexandre, ao defender o Tratado mais tarde, em
1751, das acusações do Brigadeiro Antônio Pedro de Vasconcelos,
antigo governador da Colônia, diz que sua finalidade era “dar fundo
grande e competente [...] arredondar e segurar o país” 253. Já para a
Espanha, o alvo primeiro era parar de vez a expansão portuguesa,
que comia gradativamente pedaços de seu império na América do
Sul; depois, reservar a exclusividade do estuário platino, evitando o
contrabando da prata dos Andes, que passava por Colônia; e,
finalmente, com a paz proporcionada por um acordo, impedir que a
rivalidade peninsular na América fosse aproveitada por nações
inimigas de Madri, numerosas na Europa, para aí se estabelecerem.

As propostas portuguesas, elaboradas por Alexandre de


Gusmão, articulavam­-se em torno das seguintes linhas de força:

a. era necessário celebrar um tratado geral de limites e não fazer


ajustes sucessivos sobre trechos específicos, como queria
originalmente a Espanha;

b. tal tratado só poderia ser feito abandonando­-se o meridiano de


Tordesilhas, violado pelos portugueses na América e, mais ainda,
pela Espanha no hemisfério oposto;

c. as colunas estruturais do acordo seriam os princípios do uti


possidetis e das fronteiras naturais, assim referidos
respectivamente no preâmbulo: “cada parte há de ficar com o
que atualmente possui” e “os limites dos dois Domínios [...] são a
origem e o curso dos rios, e os montes mais notáveis”;

d. a Colônia do Sacramento e o território adjacente eram


portugueses, se não pelo Tratado de Tordesilhas, certamente
pelo segundo Tratado de Utrecht, de 1715;

e. poder­-se­-ia admitir [é clara a lembrança da Colônia do


Sacramento] “que uma parte troque o que lhe é de tanto
proveito, com a outra parte, a que faz maior dano que ela o
possua” 254.

As réplicas espanholas, por sua vez, argumentavam:

a. sendo complexas as circunstâncias históricas que levaram à


soberania espanhola várias ilhas do Pacífico, o melhor para a boa
evolução das tratativas era prescindir de qualquer alegação nesse
hemisfério;

b. sobre a Colônia do Sacramento, mais que qualquer eventual


direito, era intolerável para a Espanha ser ela “causa de la
disipación de las riquezas del Perú”255;

c. era aconselhável a troca da Colônia por uma área equivalente


“fácil de encontrar nos territórios de Cuiabá e Mato Grosso,
ainda que, à morte de Felipe V, o Governo espanhol estudasse os
meios para recobrá­-la”256 [sem troca nenhuma, presume­-se].

Com o correr das negociações, foi­-se singularizando o territó­rio


das reduções jesuíticas dos Sete Povos das Missões Orientais do
Uruguai (talvez “povoados” ou “aldeias” traduzissem melhor a ideia
de “pueblos” do nome espanhol “Siete Pueblos Orientales de Misiones”),
como a moeda de troca da Colônia do Sacramento. Os Sete Povos
foram fundados pelos jesuítas espanhóis, entre 1687 e 1707, no
oeste do Rio Grande do Sul; alguns em restos de velhas missões
que escaparam das destruições bandeirantes das primeiras
décadas do século XVII. A Espanha concordou, ademais, em ceder
os estabelecimentos que possuía na margem direita do Guaporé
(onde hoje está o Forte do Príncipe da Beira havia a missão
jesuítica de Santa Rosa), mas em compensação ficou com o ângulo
formado pelos rios Japurá e Solimões (neste rio havia um forte
português, ancestral de Tabatinga).
Pouco a pouco foi­-se precisando a descrição das fronteiras, o
que pode ser perfeitamente acompanhado pela leitura das
pormenorizadas cartas que Alexandre de Gusmão enviava ao
negociador português em Madri (assinadas, entretanto, pelo Ministro
Marco Antônio de Azeredo Coutinho). Os limites que emergem
dessas cartas são basicamente os que figuram no próprio Tratado,
cuja primeira versão, que pouco difere do texto definitivo, foi enviada
a Madri no final de 1748.

Logo depois, no começo de 1749, Gusmão despacha a Silva


Teles, para servir de apoio visual às negociações, uma carta
geográfica, elaborada sob sua supervisão, na qual estavam
desenhados os limites propostos nas negociações. É o primeiro
mapa do Brasil, com a forma quase triangular hoje familiar a todos.
Sob o nome de Mapa das Cortes, goza de merecida fama, pois foi
fundamental para que as tratativas chegassem aonde os
portugueses queriam. Nesse mapa, que combinava habilmente
cartas conhecidas e confiáveis da América do Sul, a área extra­-
Tordesilhas do Brasil era, entretanto, bastante diminuída, o que dava
a impressão de haver parcos ganhos territoriais, sobretudo o
Centro-Oeste. Apesar desse defeito, era o melhor que havia no
momento, pois incorporava os dados obtidos pelas penetrações
sertanistas mais recentes.

Aceito por ambas delegações, foi a base tanto para a nego-


ciação final, quanto para as posteriores campanhas de demarcação
(a Mapoteca do Itamaraty possui uma das cópias originais). O mapa
das Cortes é um complemento indispensável do Tratado de Madri. A
aceitação deste pela Corte espanhola só se compreende com a
presença daquele. Os limites descritos no tratado e mostrados no
mapa formam um só corpo.

Roberto Simonsen assim se expressa sobre o mapa:

A carta do Brasil está visivelmente deformada, apresen­tando Cuiabá sob o mesmo


meridiano da foz do Amazonas, próximo ao qual passaria a linha de Tordesilhas (um erro
de nove graus). Essa construção, mostrando ser menor a área ocupada, talvez tenha sido
feita visando facilitar a aceitação, pelos espanhóis, do princípio do uti possidetis, que
integrou na América portuguesa tão grande extensão de terras ao oeste do meridiano de
Tordesilhas257.

Cortesão é mais áspero: “O Mapa das Cortes foi proposita-­


damente viciado nas suas longitudes para fins diplomáticos”258.
Defende, entretanto, tal procedimento:

Alexandre de Gusmão representava então uma política de segredo, que o Estado


português vinha praticando sobre seus descobrimentos geográficos, desde o século de
quatrocentos. D. João V, no fio de uma tradição secular, conservava secreta a cartografia
dos Padres Matemáticos. O Mapa das Cortes não passava da consequência necessária
duma velha política praticada e oficializada ainda no seu tempo259.

Deixando de lado possíveis considerações éticas, o que se


pode dizer é que os espanhóis também adaptavam mapas a seus
interesses políticos, como o revelou, por exemplo, estudo publicado
em número recente da revista especializada Imago Mundi sobre o
grande mapa da América do Sul de Cruz Cano y Olmedilla, base do
futuro Tratado de Santo Ildefonso (mapa exposto na Secretaria­-
Geral do Palácio do Itamaraty, em Brasília).

O Tratado de Madri foi assinado em 13 de janeiro de 1750.


Legalizava­-se, assim, a ocupação da Amazônia, do Centro­-Oeste e
do Sul do Brasil, efetuada, em várias épocas, durante os 250 anos
de nossa vida colonial. E se abandonava o antigo sonho platino...
Ficou perto, mesmo assim, de dar ao Brasil limites naturais. O
geógrafo alemão Brandt assim se expressa:

A linha divisória é [...] considerada, como um todo, uma linha razoavelmente natural, em
correspondência com a configuração da superfície. No sul quase coincide com os limites
entre a montanha brasileira e a planície platina; no norte, com os divisores principais do
Amazonas, Orinoco e rios guianenses. No oeste não alcança a raia entre a planura
brasileira e o cinto montanhoso do Pacífico, ficando na bacia amazônica. Todavia,
também aí, dada sua frequente ligação com obstáculos fluviais, não desprende da
natureza. Pode­-se, sem grande inexatidão, dizer que ela se aproxima geralmente da
divisória continental da circulação fluvial260.

Era o mito da “ilha Brasil” que, com as imperfeições da


realidade, se corporificava...

9.7 O Tratado de Santo Ildefonso (vide Mapa 9)


Vários são os motivos que levaram à anulação do Tratado de
Madri. É certo que, no Sul, houve a Guerra Guaranítica e, no Norte,
as dificuldades de demarcação revelaram­-se insuperáveis. É
controvertido que a oposição jesuítica tenha representado papel
decisivo na falência do tratado. Autores há, da importância de um
José Carlos de Macedo Soares ou de um João Pandiá Calógeras,
que consideram a atitude contrária dos inacianos como a causa
primeira da anulação. Escutemos este: “Balanceados os fatores da
decisão [de anular Madri], parece que, no ambiente de má vontade
contra a obra precursora de Alexandre de Gusmão, o elemento
primacial foi a longa campanha dos jesuítas contra a cessão dos
Sete Povos das Missões”261.

Já para outros, como Helio Vianna, as acusações aos jesuítas


não encontram amparo nos documentos; seriam pretextos achados
na época para se atacar a Companhia de Jesus, que logo mais, em
1759, seria expulsa do Brasil. O historiador português Visconde de
Carnaxide, especialista das relações entre o Brasil e Portugal na
época do Marquês de Pombal (1750­-1777), chega a uma conclusão
intermediária que distingue as reações dos inacianos locais (os
dirigentes dos Sete Povos) da orientação da matriz europeia. Em
suas palavras: “Os jesuítas missionários opuseram­-se à
transmigração dos povos do Uruguai, ordenada no Tratado de
Limites de 1750; a Companhia de Jesus empenhou­-se tanto quanto
os governos de Portugal e da Espanha em que a transmigração se
fizesse”262.
A deterioração das relações entre as Coroas, provocada, na
Espanha, pela ascensão, em 1760, de Carlos III, um opositor do
acordo, e, em Portugal, pela consolidação do poder de outro, o
Marquês de Pombal, foi seguramente causa importante da rápida
morte (apenas aparente, como revelou o futuro) do acordo. Pombal
era contra o Tratado de Madri porque não concordava com a cessão
da Colônia do Sacramento, numa atitude apreciada então, mas
certamente exagerada em face da evidente vantagem da troca.
Talvez a antipatia que o poderoso ministro nutria por seu antecessor
em valimento, Alexandre de Gusmão, também contribuísse para
explicar sua posição.

O fato é que, em 1761, os dois países assinaram o Tratado de


El Pardo, pelo qual, como reza o próprio texto do acordo, o Tratado
de Madri e os atos dele decorrentes ficavam “cancelados, cassados
e anulados como se nunca houvessem existido, nem houvessem
sido executados”. Voltava­-se, assim, pelo menos em teoria, às
incertezas da divisão de Tordesilhas, tão desrespeitada no terreno,
quão alterada por acordos posteriores. Na prática, nenhuma nação
pretendia renunciar a suas conquistas territoriais ou a seus títulos
jurídicos. Tanto é assim, que foi exatamente no período pombalino
que se construíram ou reconstruíram os grandes fortes que até hoje
balizam as fronteiras do Brasil: Macapá, São Joaquim, São José de
Marabitanas, Tabatinga, Príncipe da Beira, Coimbra... O Tratado de
El Pardo apenas criava uma pausa durante a qual se esperaria o
momento propício para novo ajuste de limites.

E esse momento surgiu em 1777, ano no qual − fato sem


precedente na História de Portugal − uma mulher, D. Maria I, sobe
ao trono e inicia a política de reação ao pombalismo, que ficou
conhecida como “viradeira”. Já se vinha negociando um tratado,
mas a queda de Pombal e, na Espanha, a substituição do Primeiro­-
Ministro Grimaldi pelo Conde de Florida Blanca modificaram o
equilíbrio de forças “para pior quanto aos interesses portugueses”263
e precipitaram os acontecimentos. A Espanha fez exigências e
impôs a assinatura de um Tratado Preliminar de Limites, que ficou
com o nome de um dos palácios do rei espanhol, situado em San
Ildefonso, nas proximidades de Toledo. Por esse tratado, Portugal
conservava para o Brasil as fronteiras oeste e norte negociadas em
Madri (apenas mais precisadas em certos trechos). Cedia,
entretanto, a Colônia do Santíssimo Sacramento, sem receber a
compensação dos Sete Povos das Missões; o Rio Grande do Sul
acabava, pois, numa frágil ponta e tinha apenas a metade de seu
território atual (que praticamente é o do Tratado de Madri).

Não há dúvida de que, pelo Tratado de Santo Ildefonso,


Portugal perdia com relação ao que havia ganhado pelo Tratado de
Madri; não se pode, no entanto, garantir ter sido o tratado totalmente
mau para Portugal, pois confirmava a inclusão no território nacional
de quase toda a área dos dois terços do Brasil extra­-Tordesilhas. A
maioria dos historiadores brasileiros condena, entretanto, o acordo,
na linha de Varnhagen, que afirma terem sido seus artigos “ditados
pela Espanha quase com as armas na mão”264. Capistrano é a
exceção: sempre pensando por sua própria cabeça e acreditando
que nenhum patriotismo pode sobrepor­-se à justiça, acha­-o “mais
humano e generoso”265 que o de Madri, pois não impunha
transmigrações indígenas, que considerava odiosas.

Há historiadores hispano­-americanos que também condenam


Santo Ildefonso, mas por motivos opostos aos dos críticos
brasileiros: a Espanha poderia, segundo eles, ter obtido muito mais
naquele momento. O argentino Miguel Angel Scenna assim se
expressa, por exemplo: “San Ildefonso [...] lamentable [para os espanhóis]
en cuanto fué negociado cuando Espana tenía las cartas de triunfo en la mano y
estaba en condiciones de invadir militarmente el Brasil”.266 Naquele
momento, é verdade, o Vice­-rei Pedro de Ceballos, Governador de
Buenos Aires, havia ocupado a ilha de Santa Catarina e tinha
posição de força frente aos luso­-brasileiros no Rio Grande do Sul.

Talvez estejam mais perto do julgamento correto aqueles


historiadores hispânicos que, com Capistrano, julgam Santo
Ildefonso um acordo bastante satisfatório, que refletiu a situação de
poder do momento, mais favorável à Espanha do que à época de
Madri. O internacionalista argentino Carlos Calvo tem, por exemplo,
a seguinte opinião sobre o Tratado de Santo Ildefonso:

Más ventajoso a España que el de 1750, la dejó en el dominio absoluto y exclusivo


del Rio de Ia Plata, enarbolando su bandera en la Colonia de Sacramento y
estendiendo su dominación a los campos del Ibicuí [a região dos Sete Povos] en el
margen oriental del Uruguay, sin más sacrifício que la devolución de la isla de
Santa Catalina, de la cual se había apoderado por conquista267.

Há divergências entre brasileiros e hispano­-americanos sobre a


validade do Tratado de Santo Ildefonso, após a Independência. A
maioria dos autores de língua espanhola o vê, para empregar as
palavras de Raúl Porras Barrenechea, em sua Historia de los límites del
Perú, como “el que fijó definitivamente los límites inter­-coloniales”.268
Sigamos com o mesmo historiador:

El tratado de San Ildefonso fué el último convenio celebrado entre España y


Portugal, sobre delimitación de sus respectivas colonias. Era el tratado vigente al
proclamarse la independencia de Sur América. El Brasil, sin embargo, siguiendo la
tradición expansionista de los colonizadores portugueses, sobrepasó en muchos
lugares la línea del Tratado de San Ildefonso. En las discusiones diplomáticas en
las que países vecinos del Brasil intentaran hacer valer los derechos que les
concedía el Tratado de San Ildefonso, el Brasil negó la validez y subsistencia de este
Tratado269.

A doutrina brasileira, desenvolvida no Império, apegava­-se não


ao texto do Tratado de Santo Idelfonso, que era “preliminar” (como
diz seu título oficial) e fora anulado pela guerra de 1801
(argumentávamos sempre), mas, sim, a seu princípio fundamental,
que era o mesmo do Tratado de Madri, o uti possidetis. Santo
Ildefonso serviria, sim, mas só como orientação supletiva e naquelas
áreas onde não houvesse ocupação de nenhuma das partes
envolvidas, prosseguia a doutrina, formulada em sua versão mais
completa pelo Visconde do Rio Branco, em memorando
apresentado ao Governo argentino, em 1857. No fundo − e até que
tivéssemos, mais tarde, ao término dos grandes trabalhos do
segundo Rio Branco, fronteiras perfeitamente definidas em tratados
bilaterais −, era a posse que continuava a definir o território.

9.8 A incorporação dos Sete Povos


A paz entre Portugal e a Espanha, vigente desde 1777, foi
confirmada pelo casamento do príncipe herdeiro D. João com Dona
Carlota Joaquina, a filha mais velha do príncipe herdeiro espanhol,
D. Carlos. Com a subida ao trono deste, e a regência atribuída
àquele, parecia que as perspectivas de colaboração eram ainda
mais amplas. Mas não foi assim. A Revolução Francesa, primeiro,
havia unido as potências peninsulares, que até participaram de uma
invasão conjunta no sul da França; mas, depois, quando Madri
aderiu a Paris, em 1795, separou­-as perigosamente para Portugal,
que passou a ter o único e grande vizinho como inimigo.

Por exigência do Primeiro­-Cônsul Napoleão Bonaparte (seu


irmão Luciano era embaixador em Madri), a Espanha invade
Portugal com o objetivo de impedir que navios ingleses
frequentassem portos portugueses, nessa quadra do bloqueio
continental. A guerra foi rápida (maio e junho de 1801), mas teve
consequências importantes na América: ao contrário do que previam
as cláusulas pacifistas dos tratados de 1750 e 1777, os luso­-
brasileiros, menos com tropas regulares, mais com voluntários
gaúchos, invadiram a região dos Sete Povos, aproveitando­-se da
situação precária em que estes se encontravam, após a expulsão
dos jesuítas.

Vamos dar uma ideia de como se passaram os eventos. Ao


chegar ao sul do Brasil a notícia do novo conflito peninsular, o
Governador do Rio Grande, Veiga Cabral, em vez de esperar pelo
ataque que os espanhóis preparavam, resolve enviar tropas para a
área da lagoa Mirim e obtém vitorias nas proximidades do rio
Jaguarão. Houve também entreveros na fronteira oeste. E foi aí que
ocorreu o importante acontecimento que alterou de modo
substancial os limites de 1777. José Borges do Canto, um soldado
desertor do Regimento dos Dragões e, agora, conhecido “vaqueano”
(para usar uma palavra regional, que identificava os chefes de
grupos que apresavam o gado solto das vacarias), apresenta­-se ao
comandante dessa fronteira, em Rio Pardo, Coronel Correa
Câmara, oferecendo seus serviços para invadir o território espanhol
dos Sete Povos.

A proposta foi aceita e algum apoio foi dado. Suas tropas,


entretanto, não passavam inicialmente de quarenta homens
fracamente armados. Felizmente para o sucesso da ousada
empreitada, ele foi auxiliado por grupos indígenas locais e por
estancieiros gaúchos das proximidades (alguns autores dão um
papel importante a Manuel dos Santos Pedroso). Na verdade, houve
fraca resistência: as Missões estavam em plena decadência, a
população calculada em 20 mil pessoas, em 1750, não seria então
superior a 1,5 mil. E, assim, em poucos dias, um feito de enorme
significado para a formação territorial do Brasil foi realizado com
diminuta intervenção oficial. Conquistado o território, daí, sim, houve
esforço do Governo para ocupar a área, distribuindo terras e
atraindo colonos; esta a origem das estâncias que se foram
formando na região missioneira, as quais, junto com os núcleos
populacionais − novos ou reestabelecidos −, asseguraram que
ficasse brasileira a metade oeste do Rio Grande do Sul.

A guerra de 1801, chamada pelos espanhóis de “las naranjas”,


terminou nesse mesmo ano com a assinatura da Paz de Badajós.
As áreas invadidas pela Espanha na Europa foram restituídas a
Portugal, à exceção de Olivença e zona contígua (400 km2),
conservada a título de se estabelecer aí uma fronteira mais natural −
o rio Guadiana. Nada dispôs o acordo, entretanto, sobre a América,
e por isso a antiga área dos Sete Povos (de 90 mil km2, maior que
Portugal) continuou na posse dos luso­-brasileiros. Essa situação
não foi bem recebida em Buenos Aires e Montevidéu: durante
décadas, não faltaram tentativas de se voltar às disposições do
Tratado de Santo Ildefonso. Sem sucesso...
Terminemos este capítulo adiantando as linhas gerais da
evolução dos problemas de fronteira, depois do tempo dos vice­-reis
no Rio de Janeiro (1763­-1807), quando se passaram os eventos
aqui relatados. Ao chegar ao Brasil, em 1808, a corte portuguesa
encontrou um tratado, o de 1777, anulado pela guerra peninsular de
1801 (na doutrina brasileira), mas que continuava de qualquer forma
a ser o último texto completo sobre limites na América. No período
joanino, o Brasil apresentou suas máximas dimensões territoriais,
com a ocupação da Guiana Francesa (1809­-1814) e da Banda
Oriental do Uruguai (1821­-1828). A visão a posteriori revelou,
entretanto, que eram episódios temporários. A Guiana foi restituída
à França após a queda de Napoleão e o Uruguai ficou independente
ao final de uma guerra entre o Brasil e a Argentina.

Ambas ocupações deixaram algum benefício. Ao devolver a


Guiana, ficou consignado no tratado respectivo que o território desta
não ultrapassava o rio Oiapoque; ao concordar com a
independência uruguaia, o acordo brasileiro­-argentino dava ao novo
país os mesmos limites da Província Cisplatina, assegurando, pois,
ao Rio Grande do Sul fronteiras orgânicas e defensáveis.
Praticamente as do Tratado de Madri: descia do Ibicuí ao Quaraí, no
rio Uruguai, mas em compensação subia da ponta de Castilhos
Grandes ao arroio Chuí, no Atlântico.

O fato importante a reter é que, terminado o período colonial de


nossa história, ao se encontrar o Brasil independente e cercado por
dez vizinhos, se não havia propriamente acordos de fronteira, havia,
sim, uma ideia geral dos limites do território nacional que vinha dos
grandes tratados coloniais. Alguns autores pensam que havia mais
do que isso: “no fim do período colonial o mapa do Brasil estava
quase definido”, diz, por exemplo, Francisco Iglesias. Com boa dose
de razão: afinal, nosso mapa de hoje é praticamente o Mapa das
Cortes270. O que não se pode é deixar de reconhecer que havia
ainda muito a ser feito: negociar, concluir, assinar, aprovar, ratificar e
promulgar um tratado de limites com cada vizinho era uma tarefa e
tanto!
Capítulo X
As fronteiras do Império
Sendo o Brasil depois da Rússia o país de mais variada e complexa história de
fronteiras, é também aquele em que vários mapas mais e melhor serviram de
títulos justificativos de descobrimento, ocupação e posse, nos litígios de soberania
com os demais Estados da América do Sul. (Jaime Cortesão, O Brasil nos velhos
mapas.)

10.1 Incertezas amazônicas


Um dos milagres da História do Brasil é a Amazônia brasileira,
durante a maior parte de sua vida colonial o “Estado do Grão­-Pará e
Maranhão”, ter composto, com o “Estado do Brasil”, o relativamente
homogêneo Império que nasceu com o Grito do Ipiranga. Se é
verdade que a unificação já havia sido feita em 1774, pelo Marquês
de Pombal, é também verdade que as comunicações entre Belém e
Rio, à época da Independência, continuavam tão difíceis quanto em
1621, quando se criou, exatamente por essa razão, o Estado do
Maranhão. A própria unidade do Estado do Brasil já era um feito,
pela distância que havia entre os núcleos populacionais distribuídos
pela costa leste: eram eles tão separados uns dos outros que, por
exemplo, na Inglaterra essa parte lusa da América do Sul era
conhecida até o final do século XVIII como “os Brasis” (“the Brazils”).

A forma monárquica de governo que o Brasil assumiu, com o


representante legítimo da dinastia reinante a sua frente, tem sido em
geral apontada como uma das causas da unidade brasileira. Outras
causas seriam a unidade ideológica básica das elites, geralmente
formadas em Coimbra, e a união das classes proprietárias frente a
uma possibilidade de revolta da imensa população escrava (cerca
de 30% do total de uns 3 milhões). Talvez, no que concerne à
Amazônia, as comunicações fluviais, as monções do norte em
particular, tenham também contribuído para a unidade, ligando, pelo
interior, o Centro­-Oeste (dependente do Sudeste “civilizado”) ao
Norte. Eram essas monções e a navegação por outros rios
amazônicos as únicas alternativas às difíceis ligações marítimas
com o Rio de Janeiro, que só se tornariam regulares com a
navegação a vapor. É ilustrativo mencionar que, até meados do
século XIX, o correio Rio­-Belém seguia pelo rio Tocantins.

Os vínculos por rios com o Centro­-Oeste eram menos impor-­


tantes do que os havidos com Lisboa, o que a explica por que a
Independência, só conhecida, aliás, na Amazônia mais de um ano
após a proclamação (o que bem demonstra as dificuldades das
comunicações), não foi aí recebida com festas. Ao contrário, houve
resistências e revoltas durante as três primeiras décadas do
Império. “Por sua maior proximidade com Portugal”, lembra Ernani
Silva Bruno, “a Amazônia foi uma região brasileira que não se
libertou do domínio português no movimento histórico de 7 de
setembro de 1822, sendo mesmo evidente que uma parcela
numerosa de suas classes dominantes não escondeu então o
desejo de que o extremo norte permanecesse fiel ao Reino [...]”271.

Vieram tempos de “sangue e decadência”, como o autor citado


intitula expressivamente o capítulo em que trata do período de 1823
a 1853. Que foram de sangue, basta um dado estatístico: a
Cabanagem (1835­-1840), uma das primeiras revoltas populares do
Brasil, teria deixado 40 mil mortos numa população que não
passaria de 100 mil; que foram de decadência, a maioria dos
autores repete a opinião prestigiosa de Artur Cezar Ferreira Reis,
que, em vários trechos de suas obras amazônicas, compara
desfavoravelmente para o Império, em relação à Colônia, o estado
geral da região. Esse historiador explica o relativo abandono da
Amazônia no século XIX, pela importância que nesse período
assumiram as questões platinas, que atrairiam para o Sul as
energias governamentais. Alega também que os estadistas do
Império, homens predominantemente do Nordeste, no início, e,
depois, cada vez mais do Sudeste e do Sul, por não terem vivência
dos problemas amazônicos, não se interessavam suficientemente
em resolvê­-los. O argumento é discutível, mas a realidade não. E a
realidade é, como constata Capistrano de Abreu, que “em 1850, o
Pará e o Amazonas eram menos povoados e menos prósperos que
um século antes”.272

Por volta de 1850, ocorreram dois fatos que mudaram


fundamentalmente a vida econômica da região amazônica: a
navegação a vapor, que tornou mais acessíveis os pontos distantes
da grande bacia fluvial, e a crescente produção de borracha, que
atraiu contingentes expressivos de nordestinos, que se deslocavam
acompanhando a descoberta de novos seringais. No campo
internacional − que aqui nos interessa particularmente −, o período
que se iniciava viu o aparecimento de uma política de fronteiras que
consolidou ou alterou para melhor, nos casos específicos em que a
posse era indiscutível, os limites estabelecidos pelos tratados
coloniais. Vamos ver como se foi definindo essa política, que
desembocou nos tratados de limites amazônicos do Império – o
primeiro é o de 1851, com o Peru –, mas antes lancemos um olhar
sobre a situação dos nossos vizinhos regionais.

Liberadas as nações hispano­-americanas do vínculo colonial,


entre 1811 e 1824, teve o recém­-instaurado Império do Brasil
dificuldade em identificar qual era, em cada trecho da imensa
fronteira amazônica, o seu vizinho. Era incerta, entre as novas
repúblicas, a soberania sobre aquelas terras longínquas, cobertas
de florestas, impenetradas em sua maior parte.

Como se sabe, durante boa parte do período colonial, a


América do Sul hispânica confundia­-se com o Vice­-Reinado do
Peru, criado em 1542, com capital em Lima, subdividido em várias
audiências, e com uma unidade separada, a capitania Geral da
Venezuela (subordinada ao Vice­-Reinado de Nova Espanha, com
sede na cidade do México). Em 1717, foi criado o Vice­-Reinado de
Nova Granada, com sede em Bogotá, compreendendo
aproximadamente os territórios hoje pertencentes à Colômbia, à
Venezuela e ao Equador (extinto em 1723, foi restabelecido em
1759). Para melhor enfrentar a expansão portuguesa em direção ao
sul, os espanhóis estabeleceram, em 1776, o Vice­-Reinado do Rio
da Prata, com sede em Buenos Aires, incorporando, além do
Paraguai, a audiência de Charcas, também chamada Alto Peru
(atual Bolívia), e a Banda Oriental del Uruguay. A Capitania Geral do
Chile não foi incluída no Vice­-Reinado do Rio da Prata,
permanecendo subordinada (teoricamente, pois na prática gozava
de grande autonomia) ao Peru, embora deste separada fisicamente
pelo litoral que a Bolívia então tinha no Pacífico.

Com a independência, Nova Granada passou a chamar­-se


Grã­-Colômbia. O Peru e a Bolívia estiveram a ponto de se integrar
nessa unidade federativa, para formar os “Estados Unidos da
América do Sul” dos sonhos de Bolívar... Mas, já em 1830, as três
unidades da Grã­-Colômbia estavam separadas e com sérias
divergências de limites, algumas persistentes até hoje. A Bolívia
apartou­-se de Buenos Aires, conservando, como nação
independente, dúvidas sobre sua fronteira amazônica com o Peru,
derivadas da imprecisão das cédulas espanholas que delimitavam,
no interior do Vice­-Reinado, a audiência de Charcas. E o Equador,
independente, julgou­-se herdeiro da província de Mainas, lindeira
com o Brasil, e passou a disputá­-la com o Peru. A situação tinha sua
complexidade aumentada com as alternâncias de soberania sobre
as terras amazônicas. A Bolívia, para dar um só exemplo, formou
uma confederação com o Peru, entre 1836 e 1839.

A essas incertezas intra­-hispânicas, agregavam­-se as que


existiam entre o Brasil e os demais países amazônicos. Os tratados
de limites coloniais eram imprecisos, especialmente quanto às mal
conhecidas regiões das fronteiras amazônicas, o que abria margem
de atritos entre as comissões demarcadoras. Como diz Capistrano:
“Os termos dos tratados prestavam­-se às vezes a mais de uma
interpretação; os mapas trazidos do reino, muitos feitos a olho e
sobre informes infidedignos, aplicavam­-se mal aos terrenos”273. E,
para tornar a situação mais complexa, o Império estava inseguro
sobre a validade do último tratado de limite entre Portugal e
Espanha, o de Santo Ildefonso, e sobre a oportunidade de negociar
suas raias amazônicas.

10.2 O uti possidetis


Os livros de História do Brasil de nossos dias costumam dizer
que o tratado de 1777 não era válido porque, ademais de ser
preliminar, isto é, necessitando ser completado por tratado posterior,
definitivo, fora anulado pela Guerra de 1801 e não tivera suas
cláusulas operativas restabelecidas pelo Tratado de Paz de
Badajoz. Não havendo, pois, nenhum tratado em vigor sobre
fronteiras, foi preciso para estabelecê­-las recorrer­-se a algum
princípio regulador: o que se encontrou foi o uti possidetis, que
determina que cada parte fique com o que possui no terreno.

Na verdade, a doutrina da não validade de Santo Ildefonso e do


consequente recurso ao uti possidetis para resolver problemas de
fronteira foi pouco a pouco firmando­-se na diplomacia imperial,
depois de vários anos de indecisão, nos quais não faltam
documentos oficiais que defendam a vigência integral do Tratado de
Santo Ildefonso. Não faltam também pareceres assinados pelos
mais eminentes membros do Conselho de Estado, até pelo menos
1846, nos quais o uti possidetis não é considerado uma regra
conveniente para o Brasil. Exemplifiquemos: a Seção dos Negócios
Estrangeiros do Conselho em 1842 recusa o tratado assinado com o
Peru porque “nossos limites, longe de ficarem melhor definidos pela
cláusula do uti possidetis, são por ela inteiramente expostos”274 e não
aprova, em 1846, o tratado de limites pactuado com a Venezuela, já
que “não pode a Seção concordar em que seja a base do tratado
definitivo de limites o uti possidetis de 1810, porque não pôde
certificar­-se de quais eram esses limites, e não está habilitada para
asseverar se a adoção do uti possidetis não prejudicará o Império
em outras demarcações”275.

A Duarte da Ponte Ribeiro, Barão da Ponte Ribeiro, cabe à


primazia de ter aconselhado, no Império, o uso dessa regra para
resolver nossos problemas de limites. Isso ocorreu em 1837,
durante as discussões que manteve em La Paz com o Marechal
Santa Cruz, para negociar um tratado de amizade e limites.
Curiosamente foi o Governo do então Presidente da Confederação
Peruano­-Boliviana que, alegando a não vigência do Tratado de
Santo Ildefonso para seu país, sugeriu o princípio. Do Brasil, ao
contrário, recebeu nosso representante instruções para se cingir às
fronteiras descritas em Santo Ildefonso. O diplomata ponderou ao
Rio de Janeiro que a Confederação não reconhecia como
obrigatório para ela os tratados entre a Espanha e Portugal e propôs
que “em lugar de fazê­-los valer pela força, convém ao Brasil
aproveitar­-se daquela declaração e argumentar somente com o uti
possidetis”276.

Ponte Ribeiro, nesse mesmo ano, em despacho à sede do


então chamado Ministério dos Negócios Estrangeiros, assim
expande seu pensamento:

Convencido como estou de que é conveniente ao Brasil consentir na declaração feita


pelo Governo da Bolívia, de terem caducado os Tratados que ligavam as Potências
[coloniais] [...] segue­-se que toda questão de limites ficará reduzida ao princípio do
uti possidetis: a sanção deste princípio é de todo meu empenho, e o consignei como
acessório a ver se passa: chamando imediatamente a atenção sobre o
comprometimento de celebrar o tratado especial de navegação fluvial, que tanto
desejam277.

O princípio só passou a ser norma geral da diplomacia imperial,


a partir de 1849, quando assumiu a pasta dos Negócios
Estrangeiros Paulino José Soares de Souza, depois feito Visconde
do Uruguai. Tornou­-se, então, a coluna básica de uma construção
doutrinária, assim exposta em 1857 pelo Visconde do Rio Branco,
em memorando apresentado ao Governo argentino:

O Tratado de 1777 foi roto anulado pela guerra superve­niente em 1801, entre
Portugal e Espanha, e assim ficou para sempre, não sendo restaurado pelo Tratado
de Paz assinado em Badajoz aos 6 dias de junho do mesmo ano. A Espanha
conservou a praça de Olivença, que tinha conquistado pelo direito da guerra, e
Portugal, todo o território pertencente à Espanha, que, em virtude do mesmo
direito, ocupara na América. É, pois, incontestável que nem mesmo a Espanha ou
Portugal poderiam hoje invocar o Tratado de 1777, porque contra semelhante
pretensão protestaria a evidência do direito internacional. O Governo de S. M. o
Imperador do Brasil, reconhecendo a falta de direito escrito para a demarcação de
suas raias com os Estados vizinhos, tem adotado e proposto as únicas bases
razoáveis equitativas que podem ser invocadas: o uti possidetis onde esse existe e
as estipulações do Tratado de 1777, onde elas se conformam ou não vão de
encontro às possessões atuais de uma e outra parte contratante. Estes princípios
têm por si o assenso da razão e da justiça e estão consagrados no direito público
universal. Rejeitados eles, o único elemento regulador seria a conveniência e a força
de cada nação278.

Esta pequena digressão sobre os titubeios iniciais e a poste­rior


fixação de uma sólida doutrina de negociação de fronteiras mostra
que a não vigência de Santo Ildefonso e a consequente aplicação
do uti possidetis não foi uma “invariável orientação” da diplomacia
imperial, como dizem historiadores do relevo de um Helio Vianna279,
e nos introduz nos meandros do princípio de que, pela importância
na história da ocupação do território brasileiro, merece estudo.
Hildebrando Accioly define clara e simplesmente: “uti possidetis é a
posse mansa e pacífica, independentemente de qualquer outro
título”280. Parecida, apenas localizando­-o no tempo e
particularizando­-o para a Espanha, é a definição do jurista
venezuelano Andrés Bello: “El uti possidetis a la época de la
emancipación de las colonias españollas era la posesión natural de España, lo
que España poseía real y efectivamente con cualquier título o sin título alguno,
no lo que España tenía derecho de poseer y no poseía [...]”281.

A quase totalidade dos juristas e historiadores hispano­-


americanos fala também de um uti possidetis juris (ou de derecho),
diferente do que acabamos de definir, considerado, por esses
autores, como sendo o uti possidetis de facto (ou de hecho). O uti
possidetis juris − também chamado de princípio de los títulos coloniales −
deriva dos documentos territoriais que cada nação pudesse
produzir, quando de sua independência; sem dúvida, serviu para
resolver questões de limites entre nações hispânicas, em que se
discutia não a ocupação, geralmente inexistente, mas, sim, o valor
dos títulos apresentados.

O conceito do uti possidetis juris, na crítica de Accioly, “repousa


sobre uma afirmação contraditória”282. No fundo, significaria
comparar os documentos possuídos sobre certa região, por cada
um dos Estados em que foram transformadas as antigas unidades
administrativas dos Vice­-Reinados. Ora, isso seria determinar quem
tem mais direito a um território, e não quem tem dele realmente a
posse, o elemento essencial do princípio. Desde o Direito Privado
Romano, donde provém, quando o juiz determinava, em certos
casos de dúvida sobre a propriedade de um bem, que quem tivesse
a posse ficaria com ele até a decisão final: uti possidetis, ita possideatis
(como possuis, assim possuas) era a fórmula utilizada.

Façamos agora uma crítica do princípio. A utilização do uti


possidetis, tal como entendido pela nossa diplomacia, foi sem dúvida
uma vantagem para o Brasil, nação mais ativa na ocupação do
território do que seus vizinhos, como reconhecem autores de
nacionalidade neutra. Guy Martinière, historiador contemporâneo
francês, com vários trabalhos sobre o Brasil, em recente artigo, diz
que “o uti possidetis constitui o pacote ideológico ideal para justificar a
própria dinâmica do sistema expansionista de conquistas
fronteiriças”283. Na verdade, o princípio adapta­-se como uma luva
aos interesses da nação mais expansionista; é a resposta
diplomática dinâmica a uma política territorial também dinâmica.
“Diplomacia bandeirante”, na expressão de alguns divulgadores, de
conveniência duvidosa...

Não está, pois, o uti possidetis entre os princípios mais


universalmente aceitos do Direito Internacional. Vinculado ao ato da
ocupação, só é admissível no período de formação das fronteiras,
não mais o sendo quando o território nacional já está definido por
um tratado. Sua aplicação, como ensina Clovis Beviláqua, “é apenas
subsidiária e transitória: não se verifica senão na falta de convenção
válida, e uma vez fixados, por qualquer forma, os limites, já não tem
mais cabimento”284. Os fatos mostram, entretanto, que, tal como
conceituado pela diplomacia brasileira, funcionou no continente;
resolveu sem grandes traumas os potencialmente imensos conflitos
fronteiriços entre o Brasil e seus dez vizinhos. Na América do Sul o
Brasil é hoje o único país que não tem problema de limites. Seria o
princípio mais prático do que o do uti possidetis juris, utilizado pelos
nossos vizinhos; teria sido a diplomacia brasileira mais habilidosa;
ou estaria o país em mais forte posição negociadora? É possível
justificar resposta positiva a cada indagação; provavelmente houve
concorrência dos três fatos.

10.3 Duarte da Ponte Ribeiro


Sobre nossa personagem, quase nada havia sido escrito − fora
um estudo de Castilhos Goycochêa e umas notas biográficas de
Joaquim Manuel de Macedo − até 1952, quando José Antonio
Soares de Souza publicou Um diplomata do Império, uma biografia,
que se concentra sobre seus trabalhos diplomáticos, pesquisados
com denodo nas memórias, mapas, ofícios, despachos e telegramas
do Arquivo Histórico do Itamaraty.

Português de nascimento, veio ao Brasil com quatorze anos


acompanhando seu pai, um dos médicos da frota que para aqui
transportou D. João VI. Ele próprio formou­-se em medicina, tendo
tido aparentemente sucesso na profissão, pois, moço ainda, chegou
a ser o cirurgião­-mor de Niterói, por designação da Câmara local.
Talvez sua vocação diplomática tenha sido despertada pelas
viagens de longo curso, que, como médico de bordo, costumava
fazer com uma assiduidade que lhe permitiu visitar todos os
continentes. Um acidente de caça, no qual perdeu a mão e parte do
braço esquerdo, impossibilitando­-o de continuar a exercer sua
profissão, pode ter sido o fator conjuntural que levou o futuro Barão
da Ponte Ribeiro às lides internacionais285.

Por uma razão ou outra, entrou na carreira diplomática aos 31


anos, em 1825, e nela permaneceu por 52 anos, até sua morte aos
83 anos, em 1878; aposentado em 1853 e feito barão, continuou
trabalhando para o Ministério, como consultor. Embora tenha
começado a carreira na Europa, como Cônsul em Madri, foi a
América Latina o cenário principal de suas atividades, o objeto
constante de seus estudos. Serviu ou teve missões transitórias em
Montevidéu, Buenos Aires, Santiago, Lima, La Paz, Caracas e
México e, na Secretaria de Estado, foi o primeiro chefe da então
criada Seção dos Negócios Políticos da América. Essa vasta
experiência, aliada a profundos conhecimentos da história e da
geografia da América do Sul, fizeram­-no o grande especialista do
Império das relações do Brasil com seus vizinhos.

Goycochêa, autor de um capítulo sobre o diplomata, “O


Fronteiro­-Mor do Império” (incluído em seu livro Fronteiras e
fronteiros), assim comenta:

Assenhora­-se, como ninguém, do ambiente que se criara depois da independência


dos povos confinantes e, como ninguém, penetra no espírito reinante em cada qual
dos novos Estados. As idiossincrasias, os preconceitos, as aspirações, os pontos
nevrálgicos e as incompatibilidades das jovens nacionalidades deixam de ter
segredos para o diplomata brasileiro286.

Em sua época, o principal assunto do temário internacional do


continente eram os limites. Sobre o tema, escreveu cerca de cento e
oitenta memórias e elaborou ou orientou a elaboração de um
número ainda maior de mapas:

Às suas memórias, em regra, acompanhava um ou mais mapas, uma ou mais


cartas, esboços ou simples lineamentos. De toda a orla de fronteira do Brasil, do
Cabo Orange ao arroio do Chuy, longa de mais de 16.000 km, correndo sobre
cumeadas de serras, pelos “talvegues” de rios, pelas margens de lagoas, por
pântanos e terras enxutas, talvez não haja fração de metro que não tenha sido
objeto de estudo de Ponte Ribeiro, que por ele não tenha sido desenhada ou feito
riscar, sobre cujos direitos não tenha meditado à vista dos documentos que reuniu e
que prestassem a cotejo entre si ou com elementos que porventura possuíssem as
soberanias confinantes287.

Ter sido o primeiro, no Império, a aconselhar o uso do uti


possidetis para resolver questões de fronteira com nossos vizinhos já
seria um fato que colocaria Duarte da Ponte Ribeiro em posição de
relevo na História Diplomática do Brasil. Antes dele, em tempos
coloniais, Alexandre de Gusmão fizera do princípio a base do
Tratado de Madri, mas, agora, a situação era mais complexa.
Primeiro, já havia os tratados coloniais; segundo, as negociações
eram com vários países, que, ademais, tinham outra concepção do
princípio.

Ponte Ribeiro, além de formulador de políticas, foi um diplomata


prático... e frequente. Ao se estudar, no período imperial, qualquer
problema de limites do Brasil, seu nome quase sempre aparece, ou
como negociador, ou como redator de instruções ao negociador, ou
como autor de memória sobre o assunto, ou como elaborador do
mapa que o ilustra graficamente. Não será, pois, exagero destacá­-lo
entre os grandes diplomatas do Império, uma relação de homens
eminentes, que inclui estadistas do relevo do Visconde de Rio
Branco, para muitos o maior Primeiro­-Ministro de D. Pedro II, do
Visconde do Uruguai, talvez o mais notável Chanceler imperial, e do
Marquês do Paraná, nosso negociador principal no período auge do
Brasil no Rio da Prata (antes de presidir o Gabinete da Conciliação).
Entre os raros toques pessoais mencionados no livro de Soares
de Souza (que citaremos por pitorescos), encontram­-se
reclamações sobre os atrasos de pagamento do Itamaraty, queixas
das longas viagens em lombo de burro, para acompanhar, em trilhas
espremidas entre as montanhas bolivianas, o itinerante ditador
Belzu, a quem descreve como “soldado de tarimba que viveu
sempre nos quartéis e nas tavernas, sem jamais aparecer em
sociedade de gente decente, nem ter aberto um livro”288. Permeava
seus ofícios com observações coloquiais ou mordazes, tais como:
“Esta gente é mais velhaca do que se crê e só pode ser levada com
manha”289 ou

Não faltará quem deseje os oito contos que me dá o Governo Imperial, mas eu os
daria de boa vontade para ver­-me hoje nessa corte, trabalhando na Secretaria,
desde 9 até às 3, e mesmo todo o dia. O aspecto montanhoso e árido deste país [...]
o silêncio sepulcral, a incerteza de conseguir o objeto a que vim, tudo concorre para
o mau humor de que estou atacado; e o pior é mostrar cara prazenteira aos que vêm
importunar­-me com suas longas visitas290.

Como deu opinião por escrito sobre praticamente todos os


trechos de nossas fronteiras, é compreensível que haja casos em
que seu parecer não é considerado o melhor ou não foi
transformado em posição de Governo. Achava, por exemplo, que o
rio Japoc ou Vicente Pinzón do Tratado de Utrecht, não era o
Oiapoque, como depois julgaram, com acerto, Joaquim Caetano da
Silva e o Barão do Rio Branco. Diz Soares de Souza: “era
minudente em demasia”291. Assim, apesar de deixar estudos sobre
praticamente todos os trechos de nossa fronteira, nunca pensou em
“fazer um livro sobre [...] a expansão portuguesa no Brasil, assunto
que esmiuçara na documentação original, e que estudara melhor do
que ninguém”292.

Duarte da Ponte Ribeiro era um homem de gênio forte,


“peleador”, como se diz na América hispânica, onde viveu tantos
anos. Não tinha medo de enfrentar adversários, se achasse que
estavam em jogo interesses brasileiros ou sua honra pessoal. Até
ao poderoso Rosas − a quem chamava em cartas privadas “tirano
fanfarrão” − escreveu notas irreverentes (Rosas retribuía, aliás,
chamando­-o publicamente de “el Ministro sangrador,” numa referência
ferina ao seu acidente de caça...). Com seu próprio Chanceler usava
uma linguagem que, às vezes, aproximava­-se do limite admissível.
Ao enviar o tratado de 1851, com o Peru, por exemplo, advertiu: “Aí
vai a convenção, e se ela não agradar pode estar certo que é o
melhor que tem a esperar”.293

Terminou sua longa existência com poucos amigos; tornou­-se


quase intratável. E deve ter morrido triste, pois, como lembra
Goycochêa,

nada faltou na vida de homem público invulgar, toda ela dedicada ao serviço do
Brasil [...] nem mesmo a ingratidão [...] Até o dia 15 de abril de 1878, em
Petrópolis, havia trabalhado respondendo a consultas do Governo, quando lhe
chegou às mãos um Aviso do Ministro dos Negócios Estrangeiros comunicando­-lhe
que mandara cessar o abono da gratificação anual [...] e convidando­-o a recolher as
parcelas dessa importância que houvesse recebido até à data [...] Dentro de alguns
dias o Tesouro Nacional recebia de Ponte Ribeiro a restituição ordenada294.

Octogenário, morreria poucos meses depois. Mas a posteri­dade


reconheceu­-lhe os méritos e o considera, nas palavras de Pandiá
Calógeras, “um benemérito de nossa terra em todas as questões de
fronteiras”295.

O Barão da Ponte Ribeiro não foi homem de grande prestígio


internacional, como o seria depois Rio Branco, nem foi personagem
de decisiva influência em decisões governamentais, como havia
sido Alexandre de Gusmão. Não deixou um grande monumento,
como o Tratado de Madri, nem foi o condutor absoluto e
incontrastável da política externa. Não escreveu, igualmente, o livro
que dele se esperava sobre as fronteiras do Brasil. Com seus
muitos trabalhos sobre praticamente todas nossas divisas, com os
vários tratados que negociou ou assinou, teve, entretanto, papel
relevante na construção e execução da admirável política de limites
do Império.

10.4 O tratado de 1851 com o Peru


As fronteiras do Brasil com o Peru são as mais distantes da
costa atlântica. A linha, em certos pontos da Serra do Divisor, ao sul
da nascente principal do rio Javari, chega a estar a menos de 500
quilômetros do Pacífico e a mais de 4.300 do Atlântico. Os Tratados
de Madri e de Santo Ildefonso, fiéis ao princípio dos limites naturais,
estabeleciam nesse trecho uma fronteira totalmente fluvial, os rios
Javari, Solimões e Japurá. À leste do Javari, porque os rios correm
em direção basicamente perpendicular a qualquer linha paralela ao
equador, não se pode fugir ao estabelecimento de uma geodésica,
ligando a nascente desse rio a um ponto determinado no rio Madeira
(a meia distância entre a foz do Guaporé, considerada então − não
mais hoje − o início do Madeira, e a foz deste no Amazonas).

Note­-se que o rio Solimões (assim se chama no Brasil o


Amazonas, da foz do Javari à foz do Negro, isto é, de Tabatinga a
Manaus) e o rio Japurá, que deságua no Solimões, bem perto de
Tefé, eram os limites entre os dois impérios coloniais, tendo,
portanto, sua soberania compartilhada. Havia, pois, um triângulo de
terras hoje brasileiras, de dimensão equivalente à metade do Acre,
que pertencia ao Vice­-Reinado do Peru.

Nas demarcações posteriores ao tratado de 1777, o comissário


brasileiro não quis entregar Tabatinga, situada na margem norte do
Solimões, isto é, na parte espanhola do rio, porque os espanhóis
não haviam entregado postos que mantinham no alto rio Negro, que,
pelo acordo, deviam ser portugueses. Outra divergência foi relativa
à identificação da “boca mais ocidental do Japurá” de que fala o
tratado, já que esse rio se comunica com o Solimões por vários
braços. Assim, por essas e outras divergências, não se demarcou,
embora se tivesse conhecido melhor, essa grande área do extremo
noroeste do Brasil.
O final do século XVIII foi um período conturbado nas relações
entre Portugal e Espanha: disputas, lutas armadas e invasões
ocorreram não só na Europa, mas também na América, e o Tratado
de Badajoz, de 1801, que restabeleceu a paz entre os reinos
peninsulares, nada proveu sobre as fronteiras sul­-americanas. Ao
ficarem independentes, o Brasil e as então chamadas Repúblicas do
Pacífico (Peru, Colômbia e Equador), o que havia entre as duas
partes era, pois, uma enorme zona florestal, quase despovoada e de
limites incertos.

Nos cem anos que se passaram entre o Tratado de Madri e a


assinatura, em 1851, do tratado de limites com o Peru, luso­-
brasileiros − padres missionários, soldados ou simples colonos
leigos, às vezes “droguistas do sertão” ou membros de “tropas de
resgate” − pouco a pouco foram ocupando pontos na margem norte
do Solimões, inclusive no trecho que seria espanhol pelos tratados
coloniais. Muito importante foi a fundação, em 1766, bem em frente
à boca do Javari, num local notável do rio, do forte de, na linguagem
dos mapas antigos, São Francisco Xavier de Itabatinga, que se
tornou a âncora que fixou a soberania lusa naquela parte da
Amazônia (antecessor de Tabatinga na área era o forte de São José
do Javari). Mais de um século antes de Madri, em 1639, Pedro
Teixeira já havia lançado a semente de Franciscana (de São
Francisco de Assis), que não vicejou. Tabatinga, sim, criou raízes.

Limitar esses confins, pôr ordem nesse caos que separava o


Peru e o Brasil independentes, era a tarefa ingente que aguardava
diplomatas e demarcadores de ambas as nações. E que foi
realizada com o tratado de 23 de outubro de 1851, o primeiro
assinado e ratificado pelo Império e um país amazônico. Esse
tratado, cujo título oficial é “Convenção Especial de Comércio,
Navegação Fluvial, Extradição e Limites”, não tem sua importância
histórica devida­mente assinalada pelos autores de nossa história
diplomática. Apresenta, entretanto, características notáveis: a)
estabeleceu o padrão pelo qual todos os outros tratados de limites
com as nações amazônicas seriam negociados, introduzindo a
praxe de trocar facilidades de navegação pelo rio Amazonas, a porta
de saída de toda a bacia, por vantagens territoriais; b) adotou pela
primeira vez na região o princípio do uti possidetis, na versão
brasileira, para o estabelecimento dos limites bilaterais; c)
estabeleceu a prática salutar de se negociar apenas com uma
república de cada vez, embora houvesse sempre mais de uma
disputando a soberania sobre a região delimitada; d) incorporou ao
Brasil uma área de aproximadamente 76.500 km2 (os territórios
somados da Paraíba e de Sergipe).

Na década de 1830, o Peru já havia procurado negociar com o


Brasil um tratado de limites, o que não fora possível porque o
Governo imperial julgou que não se conhecia suficientemente a
área. Em 1842, o ubíquo Ponte Ribeiro firmou um tratado com o
Peru, pelo qual ambas as nações se comprometiam a demarcar a
fronteira de acordo com o uti possidetis de 1811. O tratado não foi
ratificado pelo Rio de Janeiro, mas serviu de base ao de 1851,
assinado também por Ponte Ribeiro e, de parte do Peru, por
Bartolomeu Herrera, Ministro das Relações Exteriores. A diferença
era que, agora, ao se falar em uti possidetis, não se colocava data
alguma, o que indicava reconhecer a posse efetiva, na data da
assinatura. O artigo pertinente diz:

[...] os limites do Império do Brasil com a República do Peru serão regulados em


conformidade com o princípio do uti possidetis; por conseguinte reconhecem
respectivamente como fronteira a Povoação de Tabatinga e de aí para o norte em
linha reta a encontrar o rio Japurá defronte da foz do Apapóris; e de Tabatinga
para o Sul, o rio Javari desde sua confluência com o Amazonas.

Ao sul de Tabatinga, o Tratado continuava com o limite colonial


do rio Javari. A grande novidade estava ao norte de Tabatinga, no
estabelecimento da nova fronteira pela linha geodésica Tabatinga­-
foz do Apapóris, que fazia passar à soberania brasileira o ângulo
formado pelos rios Solimões e Japurá (a foz do Apapóris já havia
sido escolhida como marco de inflexão da fronteira pelos
demarcadores do tratado de Santo Ildefonso).
No Peru e em seus vizinhos hispânicos, o tratado foi mal
recebido, suscitando veementes ataques ao que parecia uma
cessão de terras ao Brasil. O historiador Raúl Porras Barrenechea,
em sua Historia de los límites del Perú, assim resume as críticas que em
seu país se fizeram ao acordo: incluir num convênio fluvial
importantes questões de limites; admitir o princípio do uti possidetis de
facto, sem data, favorável ao Brasil; e não fechar completamente a
fronteira no trecho a leste do Javari, “dando con esta omisión origen a
nuevas expansiones del Brasil [...]”.296

Na realidade, ao se olhar em um mapa moderno o triângulo de


terras (Solimões­, Japurá, reta Tabatinga­-foz do Apapóris), tem­-se a
impressão de que o Império brasileiro teve grande vantagem ao
assinar o acordo. Seguramente foi um bom ajuste para o Brasil; mas
não se pode esquecer que foi também bom para a outra parte, como
reconhece, por exemplo, o diplomata peruano Victor Andrés
Belaunde, lembrando as facilidades fluviais que ele deu a seu país:

Claro está que de acuerdo con los límites teóricos del tratado de San Ildefonso
(desde el punto de vista territorial) la convención suscrita por Herrera en el 51 fue
un desastre diplomático; pero hay que tener en cuenta que lo único a que le
interesaba al Perú en esa fecha no era la mayor o menor extension territorial sino
la libre navegación en el Amazonas, navegación que el tratado de San Ildefonso
concedía exclusivamente al Brasil. De modo pues que para conseguir el objeto y
llenar la necesidad esencial del Perú, en ese tiempo, era necesario dejar el tratado
de San Ildefonso y atender el uti possidetis de facto. A eso se debió el
reconocimiento de las posesiones brasileñas en el ângulo Yapurá­-Amazonas. En
cuanto a la determinación de las fronteras a partir del Yavarí no fue error sino
prudencia el no pretender establecerla dada la falta de noticias exactas que se tenía
sobre la vasta región comprendida entre el Yavarí y el Rio Madera297.

Euclides da Cunha introduz outro argumento para explicar por


que, segundo crê, foi o acordo de 1851 antes de tudo uma troca de
favores: “Ali se vendeu a pele do urso equatoriano [...] O Império,
admitindo a divisão pelo Javari, fortaleceu, com o seu grande
prestígio, as pretensões peruanas, que se estendiam até aquele rio,
tendo só como elemento de prova a controvertida Cédula de 1802
[...]”298. Euclides só falava do Javari porque estava tratando de um
problema territorial ao sul do Amazonas, em seu Peru versus Bolívia.
Mas o argumento é igualmente válido ao norte do Amazonas, no
que concerne à reta Tabatinga­-Apapóris. Aqui a fronteira corria por
terras disputadas pelo Peru, Equador e Colômbia, e o acordo com o
Brasil também favorecia a posição peruana.

10.5 O tratado de 1859 com a Venezuela; negociações com a Colômbia


(vide Mapa 15)
É prático, no Império, tratar conjuntamente do estabelecimento
dos limites do Brasil com a Colômbia e com a Venezuela: primeiro
porque o tema começou a ser veiculado quando ambas as unidades
integravam a Grã­-Colômbia; segundo porque, ao se separarem,
ficaram indefinidos os limites entre as duas nações na Amazônia,
até o laudo arbitral pronunciado em 1891 pela Rainha Maria
Cristina, regente da Espanha. Os tratados de Madri e de Santo
Ildefonso eram particularmente vagos na região ao norte do rio
Amazonas, só muito mais tarde perfeitamente conhecida. Basta
lembrar que o Pico da Neblina, o ponto culminante do Brasil, com
2.993 metros de altura, só foi descoberto nas campanhas
demarcatórias de 1964.

Dizia o Tratado de Madri poucas palavras sobre o imenso arco


de limites que vai do Solimões ao oceano Atlântico:

[segue a fronteira] por este rio abaixo [o Solimões] até a boca mais ocidental do
Japurá que deságua na margem setentrional. Continuará a fronteira pelo meio do
rio Japurá, e por mais rios que a ele se juntam, e que mais se chegaram ao rumo do
norte, até encontrar o alto da cordilheira de montes que medeiam entre o Orinoco e
o das Amazonas ou Maranhão; e prosseguirá pelo cume desses montes para o
oriente, até onde estender o domínio entre uma e outra monarquia.

O Tratado de Santo Ildefonso procurou precisar um pouco mais


a linha, já mais conhecida agora, depois das campanhas de
demarcação que se seguiram ao Tratado de Madri, e especificar as
provisões que asseguravam aos portugueses os povoados por eles
fundados e os caminhos por eles percorridos; e aos espanhóis,
igualmente, seus estabelecimentos e comunicações.

Na realidade, ao norte do Japurá, o que ambos os tratados


pretenderam foi, preservando as posses de cada império, deixar
basicamente a bacia do Orinoco à Espanha e a do Amazonas a
Portugal, fazendo com que as lindes corram pela crista das
montanhas divisoras de águas. Nada dispuseram os tratados sobre
os rios que desaguam diretamente no Atlântico, não pertencendo a
nenhuma das duas bacias, como o Essequibo e o Courantine; nem
poderiam, aliás, fazê­-lo, pois as Guianas sempre estiveram fora da
soberania das nações ibéricas. Interessa guardar o fato de que era
excessivamente dilatada a margem de arbítrio dada aos
demarcadores, por mais instruções complementares que se
emitissem.

Logo depois da Independência, a Grã­-Colômbia e o Império do


Brasil tentaram, sem sucesso, negociar um tratado de limites, o que
não foi possível por não haver ainda uma ideia comum das bases
para uma negociação. O Embaixador da Grã­-Colômbia levava
instruções para “guiar­-se [...] por los artículos 109, 119 y e 129 del tratado
de 1777”299; o Conselho de Estado, por sua vez, achava que não se
conhecia suficientemente a região para se assinar naquele
momento um tratado de limites. Em 1850, quando foi tripartida a
república fundada por Bolívar, os entendimentos foram suspensos.
Entre 1849 e 1853, o Império teve um de seus maiores Ministros
dos Negócios Estrangeiros, Paulino José Soares de Sousa,
Visconde do Uruguai. Procurou ele resolver todos os nossos
problemas de fronteira. Encaminhou­-os bem, mas na região
amazônica só conseguiu firmar em 1851, por meio de Duarte da
Ponte Ribeiro, o acordo de fronteiras com o Peru.

Nos dois anos seguintes, conseguiu, também baseado no uti


possidetis, finalizar as negociações de acordos com a Venezuela, em
1852, e com a Colômbia, em 1853, ambos por meio do mesmo
plenipotenciário Miguel Maria Lisboa, o futuro Barão do Japurá
(autor de interessante livro sobre sua viagem à Colômbia, à
Venezuela e ao Equador). Os acordos não foram, entretanto,
ratificados pelos Congressos das duas repúblicas, contrários à
fixação das fronteiras pelo princípio do uti possidetis. A explicação da
recusa dada por um autor colombiano pode ser generalizada para
ambos os países: “En las estipulaciones de aquel pacto de 1853 se apartó el
negociador colombiano del princípio del uti possídetis legal de 1810, aceptando
el uti possídetis de hecho, conocido como princípio brasileño”300.

Em 1859, o Brasil celebrou com a Venezuela um tratado de


limites e navegação fluvial, que, sem mencionar especificamente o
princípio do uti possidetis, definia a mesma divisória do tratado de
1852, reconhecendo, portanto, posses portuguesas no alto rio Negro
(o Forte de São Carlos ficou, entretanto, em região venezuelana).
Desta vez, o acordo foi ratificado por ambos os Governos, embora,
como vimos, as demarcações tenham prosseguido por mais de cem
anos, nesses confins montanhosos dos dois países. A divisa fixada
começa a leste num ponto determinado do alto rio Negro (a pedra
de Cucuí, hoje a trijunção das fronteiras Brasil­-Colômbia­-Venezuela)
e segue por curtas e quebradas linhas geodésicas até a serra Imeri
(onde está o pico da Neblina); continua pela crista desta e das
serras Parima e Pacaraima até o monte Roraima: basicamente a
linha segue, pois, o divisor de águas Amazonas­-Orinoco, já previsto
em Madri.

Assim que o Brasil celebrou o tratado de 1859 com a


Venezuela, o Governo colombiano protestou, alegando que ele
dividia terras colombianas, na região do Negro. Era já a rotina de
protestos de nações vizinhas, após a celebração de tratado de
limites entre uma república amazônica e o Brasil, menos pelas
linhas de fronteira estabelecidas (seriam estas provavelmente
aceitas pelos países “protestantes”, como ocorreu em certos casos),
mais pelo fato de que se julgavam com direitos sobre a área
limitada. O Brasil seguia a regra geral de negociar com o vizinho
que tinha a posse efetiva da região; frequentemente informava o
outro país interessado de que respeitaria seus eventuais direitos à
área, se e quando fossem estes reconhecidos por negociação direta
ou arbitragem.

O Brasil, em 1867, enviou a Bogotá Joaquim Maria Nascente de


Azambuja, para tentar outra vez negociar um acordo de fronteiras.
Durante dois anos, sustentou ali um debate amigável com as
autoridades locais, em particular sobre o entendimento brasileiro do
princípio do uti possidetis. Também dessa vez não se chegou a um
acordo, mas pelo menos deu oportunidade ao plenipotenciário
brasileiro de escrever as memórias clássicas sobre esse trecho de
nossa fronteira. Houve ainda outras tentativas de acordo no Império,
que só foi conseguido na República, com Rio Branco, em 1907.
Como em quase todo tratado de limites, não deixou de haver na
Colômbia quem achasse que se poderia ter conseguido uma raia
mais favorável. Nesse caso, no Brasil também... como se vê por
esta opinião, de E. O. Chaves, em Fronteiras do Brasil: “O Tratado
negociado acertou uma linha a mais desvantajosa para o Brasil de
quantas foram apresentadas até então em nego­ciações
anteriores”301.

10.6 O tratado de 1867 com a Bolívia


As relações do Império com a Bolívia, no início de suas vidas
independentes, viram­-se prejudicadas pelo ressentimento boliviano
derivado da incorporação a Mato Grosso da província de Chiquitos,
proposta pelo seu Governador (contrário à independência da
Bolívia) e aceita em 1825 pelo Comandante da Guarnição e pela
Câmara de Vila Bela. Mesmo desautorizado pelo Governo do Rio de
Janeiro, o ato teve consequências deletérias no relacionamento
global do Império com as repúblicas hispânicas, constituindo­-se
inclusive num dos elementos causadores da antipatia de Bolívar
para com D. Pedro I, claramente identificada em certa fase de sua
vida, como demonstra Nestor dos Santos Lima, em O Brasil nas cartas
de Bolívar. Também dificultavam as relações bilaterais a instabilidade
política do país andino, centro da riqueza espanhola durante a maior
parte da Colônia, agora independente, mas empobrecido. Vimos
que, em 1837, Duarte da Ponte Ribeiro já se esforçava por
determinar nossos limites bolivianos, baseado, pela primeira vez no
Império, no princípio do uti possidetis. A queda do General Santa
Cruz e o fim da confederação peruano­-boliviana impediram a
conclusão do acordo.

Em 1860, Rego Monteiro, Ministro do Brasil em La Paz,


propunha, seguindo instruções do Ministro dos Negócios
Estrangeiros, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu (não se sabe
como os Embaixadores europeus pronunciavam seu sobrenome...),
novo tratado de limites, também baseado no uti possidetis, agora
transformado em doutrina oficial da Chancelaria brasileira. Não se
concluíram as negociações, porque a Bolívia insistia, agora, em que
o Tratado de Santo Ildefonso fosse tomado como base do acordo.
Em 1867, esse mesmo projeto de acordo foi reapresentado pelo
(depois) Barão de Lopes Neto, plenipotenciário em missão especial
a La Paz, e, dessa vez, foi possível concluir­-se a negociação, com a
assinatura do Tratado de Amizade, Limites, Navegação, Comércio e
Extradição, conhecido na Bolívia por “Tratado de La Paz de
Ayacucho”.

Sobre o princípio, o art. 2o era muito claro:

Sua Majestade o Imperador do Brasil e a República da Bolívia concordaram em


reconhecer, como base para demarcação da fronteira entre os respectivos
territórios, o uti possidetis, e, de conformidade com esse princípio, declaram e
definem a mesma fronteira do modo seguinte [...].

O artigo pormenorizava a seguir a linha divisória, que pode ser


dividida em três trechos distintos. Ao norte, região inabitada, só
conhecida por alguns intrépidos exploradores, era constituída por
uma única linha geodésica, ligando a foz do Beni (no rio Madeira) às
nascentes do Javari. Ao sul os limites corriam por uma série de
linhas quebradas que procuravam, ligando as lagoas de uma área
pantanosa, resguardar para o Brasil os estabelecimentos brasileiros
e o rio Paraguai; e reservar para a Bolívia os estabelecimentos
bolivianos (como San Matias, para dar um exemplo de um local
onde a linha praticamente contorna o povoado). No trecho
intermediário, o tratado de 1867 confirmava o tradicional limite do rio
Guaporé, estabelecido pelo Tratado de Madri. À exceção desse
segmento de fronteira, o único, aliás, das fronteiras amazônicas,
sobre o qual nenhuma dúvida houve no século XIX, os dois outros
foram muito criticados na Bolívia e em outros países de fala
espanhola.

Estudemos em primeiro lugar o trecho norte da fronteira, o mais


importante, do ponto de vista diplomático, pois que, anos depois,
estaria no âmago da “Questão do Acre”. O artigo XI do Tratado de
Santo Ildefonso rezava:

Baixará a linha pelas águas desses dois rios Guaporé e Mamoré, já unidos com o
nome de Madeira, até a paragem situada em igual distância do rio Maranhão ou
Amazonas e da boca do dito Mamoré; e desde aquela paragem continuará por uma
linha leste­-oeste até encontrar com a margem oriental do rio Javari [...].

No tratado de 1867, a definição da linha nesse setor da fronteira


Brasil­-Bolívia passa a ser a seguinte: “[os limites seguem pelo]
Guaporé e pelo meio deste e do Mamoré até o Beni, onde principia
o rio Madeira. Deste rio para o oeste seguirá a fronteira por uma
paralela, tirada da sua margem esquerda da latitude 10º20’ até
encontrar o rio Javari”. Logo abaixo havia o seguinte parágrafo: “Se
o Javari tiver as suas nascentes ao norte daquela linha leste­-oeste,
seguirá a fronteira desde a mesma latitude, por uma reta, a buscar a
origem principal do Javari”.

O Peru protestou imediatamente quanto ao estabelecimento da


linha Madeira­-Javari, por uma nota diplomática que expressa bem a
frustração que, em certo momento de sua história no século XIX,
cada país vizinho teve em relação ao estabelecimento dos limites
bilaterais com o Brasil. Reclamava o Peru contra o uti possidetis em
que se baseava o acordo (arrependera­-se de ter aceito o princípio
em 1851) e especialmente contra a linha Madeira­-Javari, que, em
seu entendimento, dividia, entre o Brasil e a Bolívia, terras que
considerava suas. E ainda dividia mal, segundo a nota, pois o ponto
de origem da linha no Madeira era levado ao sul (de uns bons 400
quilômetros em linha reta), o que significava importantes ganhos
territoriais para o Brasil. Realmente Santo Ildefonso falava numa
“linha leste­-oeste” que começava em uma “paragem” situada no
meio da distância entre a foz do Madeira (no Amazonas) e seu início
(ponto em que se unem o Mamoré e o Guaporé para formar o
Madeira), isto é, aproximadamente a latitude de 7º39’; e o acordo de
1867 deslocava essa “paragem” rio acima, pelo Madeira, até a
localidade de Vila Bela, junto à foz do Beni, situada a 10º20’ (não
confundir com Vila Bela da Santíssima Trinidade, no rio Guaporé).
Uma das razões alegadas pelo Brasil é que só aqui havia um marco
notável: a própria povoação.

É curioso notar que, quando surgiram os problemas acreanos, o


acordo de 1867 começou a ser atacado no Brasil por motivos
opostos. Julgavam alguns que os negociadores do Império, basea-­
dos na ocupação do rio Madeira e de outros afluentes da margem
direita do Amazonas, poderiam ter levado os limites muito mais ao
sul para incluir no território nacional as áreas dos formadores dos
rios Purus e Juruá. Rio Branco partilhava essa opinião, que se
apoiava na regra do Direito Internacional que assegura que a posse
do trecho inferior de um rio cria direitos sobre seu trecho superior,
caso não houvesse aí a ocupação efetiva da outra nação (watershed
doctrine). Há autores que atribuem a alegada moderação do Brasil à
necessidade de se fazer logo um acordo com a Bolívia, já que
estávamos em plena Guerra do Paraguai e queríamos resolver logo
os problemas fronteiriços. Rubens Ricupero acaba de publicar um
ensaio sobre o Acre (in Rio Branco − 100 anos de sua morte), em que diz
não ter encontrado nada, nos arquivos do Itamaraty, que relacione a
guerra ao acordo. De qualquer forma, se houve a intenção de
agradar a Bolívia, não deu certo, porque o acordo nunca foi ali bem
visto nem impediu que esse país se manifestasse sobre a guerra, de
modo desfavorável ao Brasil, já em 1868.

No trecho sul da fronteira (limites com Mato Grosso e Mato


Grosso do Sul), o acordo foi igualmente atacado por autores
hispano­-americanos, por ceder ao Brasil terras que eram da
Espanha pelo Tratado de Santo Ildefonso. Um estudioso boliviano
afirma: “por el artículo 29, deja Bolivia el dominio de las dos márgenes del alto
Paraguay desde la laguna Negra hasta el Jaurú, cede unas 16.000 leguas
cuadradas de su território”302. Realmente incorporávamos pelo tratado
uma faixa de terra a oeste do rio Paraguai, que era a fronteira nos
tratados coloniais. Uma ilustração: um ponto notável dos limites,
tanto em Madri, quanto em Santo Ildefonso, era a boca do Jauru (no
rio Paraguai), onde foi colocado, em 1754, um magnífico marco de
mármore, que hoje adorna a praça principal de Cáceres, em Mato
Grosso. Ora, a foz do Jauru está no território brasileiro, a mais de 60
km da fronteira atual (estabelecida em 1867).

Há livros hispano­-americanos em que o tratado de 1867 é


considerado um desmembramento territorial. Jorge Escobari
Cusicanqui assim concluiu, com humor negro, o capítulo que trata
do acordo em sua História Diplomática da Bolívia:

Los halagos del diplomático lusitano [trata­-se de Felipe Lopez Neto, que condecora
o Presidente Melgarejo com a Grã Cruz do Cruzeiro do Sul, acontecimento
excepcional para a época, e, segundo versões bolivianas, teria dado presentes
valiosos a altas autoridades desse país] culminaron con la firma del Tratado de 27
de marzo de 1867, por el que Bolivia entregó al Brasil 150.000 km cuadrados de su
territorio y sesenta leguas navegables del rio Madera. La indignación nacional que
produjo la repartija festinatoria de la heredad patria, fué acallada por la fuerza de
las bayonetas. La aprobación 7 del Tratado de 1867, suscrito por López Netto y el
Ministro de Relaciones Exteriores, Donato Muñoz, estuvo matizada en el Congreso
con el destierro y la persecución de los parlamentarios opositores y con la
intimidación de los que concurrieron a la asamblea convocada al efecto. La extraña
y sorprendente cesión al Brasil, de extensas regiones del territorio nacional, es
atribuida a la irresponsabilidad de los colaboradores de Melgarejo y la ignorancia
de este. Se refiere que, cuando en presencia de los negociadores brasileños se
indicaban en un mapa las localidades que quedarían en poder del Brasil, Melgarejo,
al escuchar la palabra San Matías, reaccionó súbitamente expresando: “San
Matías no, ese lugar es boliviano, pues allí estuve confinado en 1828”. Si así se
evitó que esa región fuese transferida al Brasil, no faltaron quienes desearon que
Melgarejo, antes de ponerse a discutir los términos de ese acuerdo, hubiese estado
desterrado en el punto medio del recorrido del rio Madera, para impedir que la
soberanía boliviana quedase concretada al origen de este rio303.

Sendo este o derradeiro tratado de limites amazônicos assinado


no Império, é oportuno fazer uma avaliação da política territorial
desenvolvida na região. Os historiadores brasileiros unanimemente
julgam­-na benéfica para o país. Mas o mais inte­ressante é ver que
autores de nacionalidade neutra ou de países que foram eventuais
opositores do Brasil têm também uma posição, talvez crítica em
algum aspecto, mas no fundo de bastante admiração. Dois
exemplos bastam.

O primeiro é de Vicente G. Quesada, importante historiador


argentino do final do século XIX:

en la historia de las cuestiones de límites en la América Latina, sea respecto de los


estados hispano­-americanos entre sí, sea entre estos con el Brasil, se renueva en
cada caso la cuestión legal de cuál es la base jurídica que debe servir de fundamento
en las negociaciones. Hay un principio internacional que todos respetan, que nadie
niega, al cual recurren con la base decisiva y resolutoria de la dificultad − el uti
possidetis del año diez tratándose de las demarcaciones entre los estados de origen
español. Pero si ese debate se refiere a los límites con el Brasil, la cuestión se
complica, puesto que generalmente se empieza por discutir sobre la abrogación o
subsistencia de los tratados de 1777 y 1778, celebrados entre las cortes de España
y Portugal. El Brasil sostiene su abrogación y funda su derecho territorial en el uti
possidetis actual [...] Los estados hispano­-americanos, tratando aislados los unos
respecto de los otros, se han encontrado en presencia de la unidad de plan, de
miras, y de tendencias, que oponía el Imperio del Brasil, que hábilmente ha
discutido con ellos sucesiva y separadamente estas cuestiones, pero con una
pertinacia verdaderamente notable. Subdivididas las antiguas colonias en estados
soberanos, entre ellos mismos surgieron cuestiones de límites, y su situación se
complicaba bajo este doble aspecto. Venezuela, Perú, Nueva Granada, El Ecuador y
Bolivia se disputan entre sí limites que convienen, en tratados parciales, sean la
frontera con el Brasil, y luego se suceden protestas y disputas [...]304.

O segundo exemplo é de Bradford Burns, historiador norte­-


americano de nossos dias: “Os hábeis diplomatas do Império
dedicaram muito de sua energia a esse problema de limites na
Amazônia. Uma vigorosa continuidade política, característica
notavelmente ausente nas vizinhas repúblicas hispano­-americanas,
facilitou­-lhes o trabalho”305.

10.7 Buenos Aires: o Vice­-Reinado e as províncias desunidas


Agora, tendo visto nossos acordos de fronteira no Norte e no
Centro­-Oeste, voltemos no tempo a fim de estudar o Sul do Brasil.
Inicialmente vamos nos deter um instante nos primórdios das
histórias da Argentina, do Uruguai e do Paraguai, isto é, dizer uma
palavra sobre o Vice­-Reinado do Rio da Prata e sobre a evolução
das províncias que o constituíam.

Até 1776, ano da criação do Vice­-Reinado, toda essa grande


área era subordinada ao Vice­-Reinado do Peru, cuja capital, Lima,
era a maior cidade do continente no final do século XVIII. A distância
e as dificuldades de comunicação entre Lima e Buenos Aires
davam, entretanto, grande autonomia a esta no trato dos problemas
regionais. Basta lembrar que praticamente não se fala de Lima nos
conflitos em torno da Colônia do Sacramento.

Nos meados do século XVIII, com Assunção já decaída,


Buenos Aires se afirmara como o núcleo da região platina. A “pampa
bonaerense”, no centro do país, começava a ser ocupada, mas a
Patagônia, no sul, ainda era totalmente desabitada; no norte, as
províncias de Entre Ríos e Corrientes, vizinhas do Uruguai, do Brasil
e do Paraguai, e as outras, vizinhas do Chile, do Peru e da Bolívia,
tinham uma vida quase independente de Buenos Aires. Esta cidade,
aliás, nada teve a ver com a formação dos centros regionais mais
importantes da atual Argentina, todos situados ao norte de Buenos
Aires: chilenos fundaram Santiago del Estero (1555) e Mendoza
(1562); peruanos, Tucumán (1565) e Córdoba (1573); paraguaios,
Corrientes (1588) e Santa Fé (1573), para dar expressivos
exemplos. Tucumán teve vida econômica mais intensa do que
Buenos Aires nos dois primeiros séculos da colonização, por ser o
polo da zona supridora das minas do Alto Peru; e Córdoba, com sua
influente universidade jesuítica, exerceu uma inegável liderança
cultural, entre 1650 e 1750, para fixar um período. Só no final do
século XVIII Buenos Aires assumiu papel preponderante também
entre as cidades do norte argentino, papel que não perderia mais,
tanto pela decadência das minas do Peru, como pela crescente
riqueza pecuária de seu entorno e a contínua prosperidade do seu
porto.

Não há dúvida de que os conflitos regionais com o Brasil foram


motivo importante para a criação do Vice­-Reinado, com Buenos
Aires como capital. Antes desse ato, Pedro de Cevallos, já com o
título de Vice­-Rei, tinha governado Buenos Aires “instruído e
equipado” (assim dizem as ordens reais) para enfrentar os
brasileiros. Cumpriu sua missão, tomando a ilha de Santa Catarina e
invadindo o Rio Grande do Sul, onde retomou os Sete Povos, em
1765, e chegou, na costa, até o sangradouro da lagoa dos Patos. O
domínio espanhol no Sul durou 13 anos. Data desse período a
fortuna de Porto dos Casais, hoje Porto Alegre.

A nova grande entidade administrativa sem dúvida acelerou o


crescimento e a importância de Buenos Aires: a população da
cidade, que não passaria de 2 mil almas em 1700, chegava perto de
50 mil em 1800. Cosmopolita, por estar em contato comercial com o
mundo, era também provinciana, por ser cercada por “los centauros de
la pampa”. A Argentina era um país vazio: algumas poucas
concentrações urbanas e o campo, rude e bárbaro, para usar
adjetivos típicos de Domingo Sarmiento, que via o mundo dos
gaúchos como “el desierto [que] circunda las ciudades y las oprime”306. Foi
nesse ambiente rural que apareceram as várias milícias
comandadas por caudilhos regionais, dos quais Facundo Quiroga,
da província de La Rioja, é o mais conhecido, pela clássica obra do
mesmo nome, publicada em 1845, pelo educador e futuro
presidente, acima mencionado. Na edição original, o livro tinha um
subtítulo, “Civilización y barbarie”, que bem reflete os problemas da
Argentina, em boa parte de sua história no século XIX. A própria
“civilización” (basicamente os brancos mais ou menos educados) não
era tanto assim, pois o país frequentemente se debatia entre
anarquia (1810­-1830) e ditadura (1830­-1850); só no final do século
foi possível criar uma sociedade e uma administração mais de
acordo com os padrões europeus da época.

Na Argentina, como nas outras colônias espanholas da Amé-­


rica, a intervenção de Napoleão Bonaparte na Península Ibérica
precipitou o movimento de independência. Na própria Espanha,
houve resistência ao reinado de José Bonaparte, sobretudo por
meio dos “cabildos abiertos” que apoiavam o rei deposto Fernando VII.
Na América, passou­-se coisa parecida: Buenos Aires em 25 de maio
de 1810 declarou­-se “cabildo abierto” e pretendeu governar todo o
Vice­-Reinado em nome do monarca espanhol. Não era ainda uma
declaração de independência, mas a posteriori foi essa decisão
considerada passo decisivo para tal: a Revolução de Maio. As
décadas seguintes foram de alianças e rivalidades entre correntes
de opinião que existiam em Buenos Aires, Montevidéu e Assunção
(a Bolívia sempre esteve fora do circuito do Prata).

Visto do Rio de Janeiro, o panorama político era confuso, os


conflitos, armados ou não, contínuos. A Princesa Carlota Joaquina,
estimulada por alguns próceres platinos, tentou colocar o Vice­-
Reinado sob sua regência, alegando a posição de irmã mais velha
de Fernando VII. Duraram anos as tratativas, mas foi tudo inútil.
Seria curioso ver o que aconteceria no continente, se fossem
reunidos, sob o mesmo casal real, a Argentina e o do Brasil...
Fernando VII, restaurado em 1814, pretendeu retroceder o
relógio da História no continente americano. Gesto inútil! No
Congresso de Tucumán, em 1816, foi proclamada a independência
do Vice­-Reinado, sob o nome de Províncias Unidas do Rio da Prata,
mas a luta só terminou em 1824, quando o último exército espanhol
foi vencido no Peru. O general argentino José de San Martín, que,
atravessando os Andes com suas tropas, teve uma participação
importante na independência do Chile e do Peru, é considerado, em
vários países, assim como Simón Bolívar, um dos grandes heróis
das gestas libertadoras da América do Sul.

Durante os longos anos de batalhas externas e divergências


internas (de 1810 a 1824), Buenos Aires tentou manter a integridade
do Vice­-Reinado. Não teve sucesso, entretanto, menos por razões
militares, mais por motivos sociológicos: o Uruguai e, mais ainda, o
Paraguai já tinham a essa altura, depois de quase trezentos anos de
vida colonial quase autônoma, as raízes de uma nacionalidade
própria, como veremos a seguir, primeiro no caso paraguaio, depois
no uruguaio. A política do Brasil, contrária ao estabelecimento de
um grande império ao sul, também contribuiu para que a unidade
das Províncias Unidas não se consolidasse.

Um dos mais prestigiados historiadores paraguaios de nossos


dias, Efraín Cardozo, é claro ao afirmar que na época da inde-­
pendência já era muito difícil que seu país se integrasse numa
unidade capitaneada por Buenos Aires: “El proceso de emancipación de
las colonias españolas sorprendió a la provincia del Paraguay en una etapa
avanzada de su evolución social y con los elementos constitutivos propios de una
nación”307. Buenos Aires bem que tentou: não faltaram, de 1810 a
1818, ano em que José Gaspar Rodriguez de Francia é nomeado
“Dictador Supremo de la República”, convites para participar de
congressos, missões diplomáticas, incursões bélicas. Mas nada
adiantou; a tendência à independência já era irreversível. É verdade
que em 1811 houve um acordo militar, que poderia ser um traço de
união entre os dois países. Significou, entretanto, na visão
paraguaia − que acabou prevalecendo − o reconhecimento de sua
soberania, a percepção de que era um Estado à parte.

Durante a longa ditadura de Francia (1818­-1842), o naciona-­


lismo paraguaio foi­-se impondo cada vez com maior nitidez. Para se
manter independente de Buenos Aires e preservar o país dos
atropelos e das guerras que agitaram a região platina, envolvendo
uruguaios, buenairenses, correntinos e entrerrienses (e até rio­-
grandenses), uns contra os outros, em alianças reversíveis, Francia
tomou a decisão de isolar o país. Seria, aliás, difícil proceder de
outra forma e manter alguma autonomia, com Buenos Aires
controlando o acesso ao Prata. E o fez com mão de ferro, sem
tolerar oposições, sem dar oportunidade a que estamento social
nenhum levantasse a cabeça, mesmo que fosse a Igreja, o Exército,
ou a classe dos ricos proprietários. Com ninguém de permeio − ele
mandava e o povo obedecia −, estabeleceu um governo que muitos
consideram “un reinado del terror”, mas que modernamente provoca
simpatia entre alguns historiadores, por ter sido Francia o modelo do
ditador austero, que manteve a independência, impôs uma ordem e
conseguiu que, na pobreza geral do país, não houvesse os bolsões
de miséria e criminalidade que existiam nos outros países do
continente.

A situação no Uruguai apresentava particularidades: sua


população rural era muito parecida com a do Rio Grande do Sul,
gaúchos aqui, “gauchos” ali. Vimos que a Espanha e Portugal
disputaram a posse da margem esquerda do Prata durante o
período colonial. A Colônia do Sacramento foi o primeiro núcleo
populacional fundado nesse lado (1680); depois, em 1723, Portugal
tentou também se fixar em Montevidéu, elevação privilegiada numa
ponta da terra que avança sobre o rio, mas não conseguiu. Os
espanhóis, sim, em 1726. As vacarias da região, como se chamam
as planícies cobertas de gramíneas, logo se encheram de uma boa
quantidade de gado bovino, cuja origem é incerta. Há os que
favorecem as primeiras missões jesuíticas, destruídas por
bandeirantes nos começos do século XVII; e há os que veem em
Colônia a fonte básica do grande rebanho.

Com o gado, surgiram os gaúchos, anteriormente chamados


gaudérios. Procedem de várias cepas, mas o que tinham em comum
é que todos eram bons cavaleiros e levavam uma vida livre e
indisciplinada. O historiador uruguaio Pablo Blanco Acevedo assim
vê as raízes do gaúcho:

Mezcla heterogénea de aborígenes, de españoles desertores de tropas regulares, de


criollos nacidos en el proprio suelo, de brasileños y portugueses, las condiciones de
vida errante en la inmensidad del campo, sin más sujeción que la autoridad de un
jefe o de un caudillo, le dieran al gaucho, producto típico de un ambiente así
integrado, los caracteres precisos y indelebles con los cuales ha pasado a la
posteridad308.

Vários viajantes coloniais contam, surpreendidos, que os


gaúchos matavam bois somente para se aproveitar dos cascos e
chifres, as primeiras partes que tinham valor comercial; às vezes,
faziam­-no apenas para comer um churrasquinho individual...
deixando o resto jogado nos campos. Sua fama não era boa entre
os sedentários citadinos, como Capistrano de Abreu, que os vê,
nesses inícios, como uma “prole sinistra [...] ainda não assimilados à
civilização”309.

Jaime Cortesão é dos historiadores que mais frisa estar nos


gaúchos a origem comum de atuais uruguaios e rio­-grandenses do
sul (antes da emigração de alemães e italianos, no fim do séc. XIX):
“desde os fins do século XVII e, mais que tudo, depois da terceira
fundação da Colônia, em 1716, os portugueses haviam criado no
Território da Colônia, vaga expressão que abrangia as regiões que
hoje se dividem entre o Uruguai e o Rio Grande do Sul, uma
economia nova e um gênero de vida próprio, dos quais, pela
colaboração com os espanhóis de Buenos Aires, Santa Fé e
Corrientes, veio a sair um tipo social específico − o do gaúcho, que
se tornou comum aos dois Estados uruguaio e rio­-grandense”310.
Dominava o gaúcho não as vilas, mas sim as vacarias (do
Uruguai, do mar, dos pinheiros...), numa região que se estendia
grosso modo do rio Uruguai até a costa atlântica. Uma terra de
ninguém, disputada em tempos diversos por jesuítas da província do
Paraguai, portugueses de Colônia, de Laguna e de Rio Grande de
São Pedro e espanhóis de Montevidéu, Buenos Aires, Santa Fé e
Corrientes.

Paremos um momento, para ver o continente sul­-americano


como um todo. A independência das colônias espanholas foi um
processo complicado pelos diferentes interesses em jogo: a
Espanha passava por períodos de guerra civil; na América havia
líderes que lutavam para formar grandes estados confederados,
como a Grã­-Colômbia de Bolívar e as Províncias Unidas do Rio da
Prata, e existiam os grupos que preferiam a independência das
províncias, os quais acabaram por triunfar. No Uruguai, a situação
era ainda mais complexa pela vizinhança do Rio Grande do Sul,
onde havia uma população de nacionalidade diferente, mas de
estrutura social muito parecida.

10.8 A Banda Oriental; a Cisplatina; o Uruguai e as fronteiras de 1851


Na linha do que pensaram seus antepassados, o Príncipe
Regente (D. João VI, em 1816), no Brasil depois de 1808, gostaria
que seu império americano incorporasse a Banda Oriental e tivesse,
por consequente, a fronteira sul no rio da Prata (é Oliveira Lima
quem o diz). No período em que a Espanha estava dominada por
Napoleão e era a inimiga próxima de Portugal, suas razões tinham
mais peso. A seu lado estava, ademais, Dona Carlota Joaquina,
filha mais velha de Carlos IV, mantendo intensas negociações com
líderes platinos. Não era totalmente desprovida de base a
reivindicação da Princesa: já no século XVIII, diferentes ministros
espanhóis tiveram ideia de dividir as colônias americanas entre os
infantes. Reassumindo o trono os Bourbons da Espanha, depois da
derrocada napoleônica, e recomeçando na América as guerras de
independência, a situação tornou­-se menos clara. Por um lado, a
motivação de atacar um inimigo diluiu­-se; por outro, na agitação das
águas turvas do rio da Prata, o arrasto da Banda Oriental ficava
mais viável.

Com a Revolução de Maio de 1810, Buenos Aires se declara


independente da Espanha, adota o nome de Províncias Unidas do
Rio da Prata, mas não consegue unir o antigo Virreinato. No
Paraguai, a independência fez­-se rapidamente: em 12 de outubro de
1813, a república − a primeira do continente − já era proclamada,
mas não reconhecida por Buenos Aires. No Uruguai, os espanhóis
ainda eram fortes. Em Montevidéu estava sua base naval e o Vice­-
Rei Xavier Elio fazia da cidade a sede de seu poder desvanecente.
No campo, entretanto, com auxílio de Buenos Aires, a resistência
aos espanhóis nunca se extinguiu, com José de Artigas no centro do
movimento insurgente.

O Brasil via com preocupação a guerra civil no Uruguai,


inclusive porque “a reconquista das Missões era uma ideia fixa de
Artigas [...]”311, como lembra Soares de Souza. Foi a convite do
Vice­-Rei espanhol que ocorreu a primeira invasão portuguesa em
1811; mas as tropas não chegaram até Montevidéu, seu objetivo,
por ter havido um armistício entre a Junta de Buenos Aires e o
Vice­-Rei. Não durou muito, pois poucos meses depois já estavam
peleando espanhóis de um lado e artiguistas, apoiados por Buenos
Aires, de outro. Enquanto houvesse o inimigo comum espanhol, a
última aliança vigeria, mas já se sentia a tensão entre uruguaios,
que pensavam na independência, e argentinos, que queriam
incorporar a Banda Oriental nas Províncias Unidas.

Artigas era um líder perigoso tanto para as classes dirigentes


conservadoras de Buenos Aires, quanto para a elite centralizadora e
escravocrata do Rio de Janeiro. Moniz Bandeira é um dos autores
que vê o caudilho uruguaio quase como um revolucionário social:

A luta de Artigas apresentava, na verdade, um caráter mais popular e colimava um


projeto de transformação ainda mais radical que o da Revolução de Maio. Era uma
insurrei­ção rural, conduzida pelos próprios homens do campo, com um programa
político que aspirava à constituição de uma república federal, respeitando­-se a
autonomia e a igualdade de todas as Províncias do Rio da Prata. A certa altura, ele
incitou os gaúchos do Rio Grande de São Pedro, inclusive os escravos negros, à
revolta contra Portugal, numa tentativa de atraí­-los para o seu lado, como já o
fizera anteriormente com os indígenas, particularmente os guaranis das Missões,
que formavam uma força especial do seu exército312.

O agravamento da situação − já sem os espanhóis no Uruguai


− foi o pretexto para que, em novembro de 1816, o general
português Carlos Frederico Lecor (futuro Visconde de Laguna), com
um forte exército de 6 mil homens, invadisse o Uruguai, tomando
Montevidéu, em 20 de janeiro de 1817. Mas, no campo, as
escaramuças entre as tropas luso­-brasileiras e os seguidores de
Artigas ainda duraram três anos, tendo sido esse líder derrotado
definitivamente só em 1820, na batalha de Taquarembó.

A região foi sendo pouco a pouco incorporada ao Império,


conservando a língua, os costumes, as leis e até as fronteiras
tradicionais. Estas, por acordo de 1821, eram os rios Quaraí e
Jaguarão − ligados pelo divisor de águas que une suas nascentes −
e a lagoa Mirim (que se comunica com o oceano pelo arroio Chuí),
na qual deságua o Jaguarão. Com esses limites, preservava­-se a
ocupação brasileira dos Sete Povos. No rio Uruguai, entretanto, o
território brasileiro não descia até o rio Arapeí, ao sul do Quaraí,
como fixava uma ata assinada por autoridades do município de
Montevidéu e pelo General Lecor em 1819. Um Congresso uruguaio
reunido em Montevidéu − de representatividade suspeita na visão
dos historiadores uruguaios e também de vários brasileiros − em 18
de julho de 1821 adota a resolução de incorporar a Banda Oriental
do Uruguai, a partir de então chamada Província Cisplatina, à
monarquia portuguesa. Chegava­-se, enfim, à desejada fronteira
natural do Prata; mas não por muito tempo... Como as demais
províncias do Império, a Cisplatina também enviou representantes à
Assembleia Geral de 1822.
Em julho de 1825, provindos da Argentina, desembarcam numa
praia do rio Uruguai, La Agraciada, perto de Colónia, os famosos
treinta y tres orientales da expedição de Juan Antonio Lavaleja, antigo
colaborador de Artigas. Reforçados localmente e sempre contando
com a ajuda de Buenos Aires, vão pouco a pouco ocupando
porções do território uruguaio. Em agosto, houve o Congresso de
Florida − este influenciado pelos argentinos −, que votou pela
incorporação de Montevidéu às Províncias Unidas, e o subsequente
ato de aceitação de Buenos Aires. Pressionado pelos fatos, D.
Pedro I assina em 1o de dezembro a declaração de guerra.

“Esta [...] não foi favorável ao Brasil. Foi uma guerra impopular
que se arrastou até 1827”313, diz claramente o historiador brasileiro
contemporâneo Boris Fausto. A esquadra imperial não perdeu o
controle do Prata, é verdade, mas as operações de terra em geral
tiveram maus resultados. A resistência crescia na zona rural
uruguaia e, em Passo do Rosário (Ituzaingó), no Rio Grande do Sul,
em fevereiro de 1827, um exército invasor argentino­-uruguaio
comandado por Alvear e Lavaleja derrota as tropas brasileiras
comandadas pelo Marquês de Barbacena. Houve outras batalhas
menos expressivas, algumas derrotas, algumas vitórias.

Menos pelos enfrentamentos bélicos − nenhum foi decisivo


para o resultado final da guerra − e mais porque ambos países
estavam com dificuldades políticas internas e economicamente
exauridos, começaram as negociações para uma trégua. Com a
intervenção britânica, em 27 de agosto de 1828, por uma
Convenção Preliminar de Paz, Brasil e Argentina dão por terminado
o conflito e reconhecem a independência do Uruguai. Pelo artigo 1o,
declarava o Imperador do Brasil considerar a Cisplatina separada do
Império, para que ela pudesse “constituir­-se em Estado livre e
independente de toda e qualquer nação”. O governo da República
das Províncias Unidas concordava, por sua vez, pelo artigo 2o, em
reconhecer “a independência da Província de Montevidéu, chamada
hoje Cisplatina”. O historiador argentino Ricardo Levene vê de
maneira equânime o surgimento do novo Estado: “La emancipación
uruguaya fué el desenlace del pleito secular entre las coronas de España y
Portugal y contempló en aquel momento históricos los anhelos de los hijos del
territorio y los intereses internacionales”314.

A província Cisplatina conquistou a independência, mas não a


paz. O que se seguiu no novo país, denominado República Oriental
do Uruguai, foram décadas de grande instabilidade política. Dois
partidos dividiam a opinião pública: os blancos, agrupação que se
formou originalmente em torno de Lavaleja, em geral simpáticos à
Argentina, e os colorados, mais propensos ao Brasil, cujo chefe inicial
foi o primeiro presidente do Uruguai, Fructuoso Rivera (havia
anteriormente aderido ao Império, após ter sido um dos principais
líderes do exército de Artigas...).

No Rio de Janeiro, a opinião dominante, depois de 1828,


favorecia à política de se conservar neutro nas disputas platinas.
Mas isso era difícil, pelas vinculações existentes entre facções do
Uruguai e do Rio Grande do Sul. Lembre­-se, ademais, que entre
1835 e 1844 essa província passou pela mais prolongada guerra
civil da nossa história, a chamada Revolução Farroupilha. Liderada
pelo estancieiro Bento Gonçalves, os revoltosos chegaram a
proclamar, em 1838, uma independente República do Piratini.
Embora não fosse certo que os revolucionários gaúchos quisessem
em definitivo a república e a independência, havia entre os líderes
mais responsáveis da Regência (1831­-1840) um grande temor de
que o Brasil se desagregasse, tal como ocorrera com as antigas
colônias espanholas. A integração do Rio de Grande do Sul em uma
possível unidade política platense não era, também, uma ideia
descabida. Boris Fausto assim vê o alcance internacional da
revolução gaúcha:

Há controvérsia entre os historiadores se os farrapos desejavam ou não separar­-se


do Brasil, formando um novo país com o Uruguai e as províncias do Prata. Seja
como for, um ponto comum entre os rebeldes era o de fazer do Rio Grande do Sul
pelo menos uma província autônoma, com rendas próprias, livre da centralização
do poder imposta pelo Rio de Janeiro315.
Outro fator da instabilidade uruguaia foi a ascensão de Juan
Manuel de Rosas do outro lado do Prata. Oriundo de família de ricos
proprietários de “saladeros” (charqueadas) de Buenos Aires, quer
como governador de sua província natal, quer como dirigente
máximo da Confederação, dominou com mão de ferro a política
argentina, de 1828 até 1852. Durante seu longo período de poder,
Montevidéu cresceu em razão do grande número de argentinos que
fugiam da pressão do partido de Rosas, o federalista, cujo lema bem
demonstra a violência com que impunha sua lei aos adversários:
“muerte a los salvajes unitarios”.

As relações entre os vários grupos políticos da Argentina, do


Uruguai e da província do Rio Grande do Sul eram mais
oportunistas do que − como poderíamos dizer hoje − ideológicas,
isto é, dirigidas por um conjunto de ideias e valores relativos à
ordem pública. Com esforço de abstração, pode­-se, entretanto,
considerar os unitários argentinos geralmente ligados aos blancos
uruguaios, e ambos partidos afinados com as ideias da burguesia
comercial dos portos; e os federalistas de Rosas próximos aos
colorados de Rivera, as duas facções vinculadas aos proprietários
rurais. Na prática, a situação era personalizada, complexa e,
sobretudo, cambiante.

Rosas e os gabinetes do Rio de Janeiro tiveram períodos de


relações calmas, mas de um modo geral elas foram tensas. O
ditador argentino, afinal, queria incorporar à Confederação as partes
dispersas do antigo Vice­-Reinado, e isso contrariava a linha básica
da política brasileira, favorável à independência do Uruguai e do
Paraguai (e também da Bolívia). Em 1843, chegou­-se a firmar um
acordo entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro contra Rivera, agora
apoiando os gaúchos revoltados. Como não foi ratificado por Rosas,
o Governo brasileiro passa a não mais reconhecer o bloqueio
argentino de Montevidéu. Esse ato, mais o reconhecimento da
independência do Paraguai, em 1844, elevavam o nível de
participação brasileira no Prata e foram interpretados por Rosas,
corretamente, como inamistosos.
Ao aproximar­-se o meio do século, os laços entre Buenos Aires
e o Rio de Janeiro vão se esgarçando cada vez mais. Em 1849, o
primeiro Lopez toma Corrientes, ação vista pelos argentinos como
contando com a concordância tácita brasileira; pouco depois, em
1851, firma­-se um tratado de aliança defensiva paraguaio­-brasileiro.
Como se acreditava que Rosas pretendia invadir Montevidéu, e,
depois, quem sabe, atacar o Rio Grande do Sul, o Brasil intensificou
seu apoio ao Governo uruguaio, já empalmado por Rivera, contra as
incursões de Oribe, agora um general de Rosas.

No interior da Confederação crescia, por sua vez, a resistência


ao ditador, até que o levantamento de Justo José Urquiza, chefe
inconteste da província de Entre Ríos e que contava igualmente
com o apoio de Corrientes, dispara a guerra civil. Não só rompe com
Rosas, como firma um tratado com representantes brasileiros e
uruguaios, com a finalidade de derrubá­-lo. A guerra foi rápida e, em
3 de fevereiro de 1852, na Batalha de Monte Caseros, não longe de
Buenos Aires, o ditador argentino é completamente derrotado.
Importantes contingentes de tropas brasileiras participaram dessa
batalha que levou Urquiza à Presidência da Confederação. Alguns
autores veem esse momento como o da máxima influência do Brasil
na região (o da máxima expansão, havia sido no período da
Província Cisplatina, 1821­-1828).

Já antes de Caseros, em 1851, no Rio de Janeiro se assinara


um tratado com o Uruguai, que conservava basicamente entre os
dois países os limites da província Cisplatina. Precisava­-se no seu
texto que a lagoa Mirim seria de uso exclusivo dos brasileiros, isto é,
não compartilhada pelos dois estados ribeirinhos. Esse tratado, se
bem que retomando termos da convenção de 1821, norteou­-se pelo
uti possidetis, princípio que já havia sido utilizado em tempos coloniais
e que continuaria a ser até o Barão do Rio Branco, o vetor principal
da política de fronteiras do Brasil. Depois de cada acordo de
fronteira, sempre aparecem os críticos... O de 1851 não fugiu à
regra, como se exemplifica com um importante diplomata uruguaio,
Virgílio Sampognaro: “El Tratado de Límites firmado en Río de Janeiro el 12
de octubre de 1851 es un instrumento injusto y defectuoso, que el
Plenipotenciario uruguayo tuvo que aceptar, en un momento sombrío para la
estabilidad nacional, por imposición de las circunstancias”316. O Uruguai mal
e mal se restabelecia de uma devastadora guerra civil e sua
economia só não afundava por causa dos empréstimos brasileiros.
Tudo verdade, mas o diplomata devia pensar também nos Sete
Povos e na Lagoa Mirim...

10.9 Limites e guerra: Uruguai − 1864


A queda de Rosas parecia propiciar uma oportunidade para se
pôr um ponto final nos conflitos internos da Confederação Argentina,
constantes desde a independência, e para se estabelecer um
regime estável no Uruguai. Com isso também ganharia o Brasil, pois
não veria mais o Rio Grande do Sul envolvido nas agitações
platinas. Não foi, entretanto, a paz externa e a ordem interna que
prevaleceram no Prata, no período que analisaremos neste item,
que trata das relações do Brasil com o Uruguai, desde a derrota de
Rosas, na Batalha de Caseros, em 1852, até a guerra civil uruguaia
de 1864.

Urquiza foi vitorioso em Caseros, mas não uniu o país. A


província de Buenos Aires, a mais rica, a dona das rendas
alfandegárias do grande porto platino, separou­-se da Confederação,
que passou a ser presidida da cidade de Paraná, capital de Entre
Ríos. Em 1861, depois da vitória de Mitre sobre Urquiza, na Batalha
de Pavón, a capital voltou a Buenos Aires, mas a unidade argentina
só se consolidou bem mais tarde, em 1880, quando foi criado o
Distrito Federal de Buenos Aires, passando a cidade de Santa Fé a
ser a capital da Província de Buenos Aires.

No Uruguai, apesar de os colorados terem sido o partido mais


ativo na guerra contra Rosas, foram os blancos que elegeram, em
1862, o novo Presidente Juan Francisco Giró, que durou muito
pouco, aliás, sendo substituído no ano seguinte por uma junta dos
três maiores caciques políticos do país, Lavalleja, Rivera e Flores.
Com a morte dos dois primeiros, Venâncio Flores, chefe dos
colorados, é eleito Presidente, mas, na tradição uruguaia de então, é
logo apeado do poder pelos blancos, que o substituem por Atanásio
Aguirre.

A situação uruguaia em 1864 era de virtual guerra civil. O líder


insurgente agora era Flores, que tinha a simpatia tanto do Brasil
como da Argentina. Esse estado de agitação refletia na vida do Rio
Grande, principalmente na região fronteiriça, onde havia muitos
brasileiros proprietários de estâncias no Uruguai. O roubo e o
contrabando de gado eram uma prática constante, e grupos
brasileiros várias vezes cruzavam a fronteira sob o pretexto de
recuperar o gado roubado; chamavam de “califórnias” suas
incursões, porque lhes lembravam a contemporânea corrida do ouro
nos Estados Unidos. Os chefes desses grupos eram estancieiros
locais, o mais conhecido deles o Barão de Jacuí.

A pressão gaúcha por uma intervenção no Uruguai contrariava


a linha central da política do Rio de Janeiro, que bem avaliava o
perigo da entrada do Brasil no vulcão uruguaio. Também adversa à
política não intervencionista do Império, era a prática de todo novo
Governo de Montevidéu de procurar apoio de alguma facção do Rio
Grande.

Quanto à Argentina, as relações e tensões uruguaias eram


ainda mais fortes. O Brasil, afinal, depois de 1828 não tinha mais
nenhuma intenção anexadora; a Argentina, sim, tinha, e essa
posição era abertamente defendida por líderes políticos da
importância de um Rufino Elizalde, então Ministro das Relações
Exteriores de Mitre. Montevidéu, ademais, estava agora repleto de
ex­-partidários de Rosas, que não cessavam de conspirar contra o
Governo argentino.

Em 1864, o General Antônio Neto, um veterano das guerras


sulistas, foi enviado à corte com as queixas dos estancieiros do Rio
Grande do Sul e o pedido de que o Governo central interviesse para
acabar com a agitação na fronteira uruguaia, que impedia a vida
normal da província. Neto teve êxito em convencer os ministros
liberais, então no poder, da validade dos argumentos gaúchos. Aí
está a origem da missão no Uruguai, atribuída ao Deputado José
Antonio Saraiva, já então uma presença destacada entre seus pares
e depois um dos estadistas mais importantes do Império.

As instruções dadas a Saraiva pelo Gabinete liberal presidido


por Zacarias de Gois e Vasconcelos conformavam um verdadeiro
ultimatum ao Presidente Aguirre: exigia­-se compensação econômica
pelos prejuízos e, em caso de desatenção, haveria o recurso à
força. A mensagem era dura, mas em compensação seu portador
era um homem suave: “a personificação da honra, da moderação,
do espírito de justiça e do amor aos meios suasórios”317, explica
Pandiá Calógeras. As notas diplomáticas de Saraiva ao Governo
Aguirre são realmente de uma cortesia e contenção exemplares,
que contrastam com a violência das respostas.

Articulado com o corpo diplomático de Montevidéu, Saraiva


tentou várias vezes chegar a um acordo, o que não foi possível pela
intransigência de Aguirre, afinado com o setor mais radical dos
blancos e com esperanças de obter respaldo de facções adversárias
de Mitre, em Entre Ríos e Corrientes, e também do Paraguai. Sem
alternativa, em 4 de agosto de 1864, entregou o ultimatum. Não
aceito este, o Brasil passava a participar da guerra civil uruguaia.

Em setembro de 1864, Saraiva se retira para o Brasil e é


substituído por outro grande nome da diplomacia e da política
imperial, José Maria da Silva Paranhos, o futuro Visconde de Rio
Branco, que só chegou a Buenos Aires em 2 de dezembro. No
intervalo, a direção dos acontecimentos recaíra no Almirante
Tamandaré, chefe militar de grande valor, mas pouco inclinado às
tratativas diplomáticas. De acordo com Flores, tomou Paissandu e
bloqueou Montevidéu. Calógeras, que admira a bravura do
Almirante, reconhece que se estava excedendo, mas não nega que
sua ação belicosa “seguia os sentimentos predominantes no Rio
Grande do Sul e no Rio de Janeiro, exacerbados pelas provocações
e pela diplomacia bifronte dos blancos”318.

Não tardou Paranhos em promover um entendimento na base


de três pontos: Governo provisório presidido por Flores; eleições
futuras; e reconhecimento das reclamações brasileiras. Essa a
essência da Convenção de Paz de 20 de fevereiro de 1865, que
evitou a possível destruição de Montevidéu, mas não a destituição
de Paranhos, considerado leniente por círculos políticos do Rio.

10.10 Guerra e limites: Paraguai − 1864­-1870 (vide Mapa 10)


Vejamos agora a situação paraguaia. O país era, ainda, apesar
de um pouco mais aberto no período de Carlos Antonio López
(1844­-1862), uma das nações mais fechadas do continente: não
participava do jogo político do Prata e, consequentemente, de suas
divergências e guerras. O segundo Lopez, Francisco Solano,
assume em 1862 com a clara ideia de ser mais ativo nas relações
regionais. Nos últimos anos, ocupara­-se do rearmamento do
exército e, portanto, conhecia bem a força que possuía (e a relativa
fraqueza militar dos vizinhos). As relações paraguaio­-brasileiras
podiam ser consideradas boas, apesar de o Paraguai ter uma
reivindicação de fronteira: do lado de Mato Grosso, pretendia que a
linha se situasse mais ao norte, não pelo rio Apa, mas pelo Branco.
Nas décadas de 1840 e 1850, tinha havido também alguma
dificuldade para a passagem de navios brasileiros pelo rio Paraguai
− a principal via de acesso a Mato Grosso −, mas isso fora superado
pelo convênio fluvial de 1858. Com a Argentina, o Paraguai tinha
divergências fronteiriças de maior vulto, tanto na região do
Pilcomaio, quanto no território de Misiones, considerado em
Assunção como paraguaio.

Quais as intenções do ditador ao provocar a maior guerra já


vista no continente? Para Pandiá Calógeras, criar um Paraguai­-
Maior, que incluísse as províncias argentinas de Misiones,
Corrientes e Entre Ríos e o Uruguai, “tornando­-se uma potência
Atlântica, em vez da República Central que era, sendo Montevidéu
elegida capital do novo Império, então, constituído”319. Claro que o
Rio Grande do Sul com suas periódicas veleidades autonomistas −
quem sabe exageradas por políticos e historiadores platinos −
poderia também integrar essa unidade. Esse o objetivo máximo; o
mínimo seria, com a força militar paraguaia reconhecida, ou quem
sabe vitoriosa, ter papel protagônico na região, inclusive para
resolver favoravelmente suas disputas fronteiriças com o Brasil e a
Argentina. Urquiza, que perdera a chefia do país em Pavón, mas
ainda era o chefe de Entre Ríos, bem poderia ser, junto com os
blancos de Montevidéu, um aliado do Paraguai: Solano López
mantinha contatos epistolares com Urquiza, que o faziam confiar no
apoio dessa província argentina.

Por razões várias e insuficientes − cita­-se muito a vaidade


ferida do ditador, recusado pelo Brasil como mediador no conflito
com o Uruguai −, o Paraguai desatou uma sequência de atos
bélicos que cada vez mais passaram a seguir uma lógica própria
que não tinha muito a ver com a Lógica. Captura, logo após zarpar
de Assunção, um vapor mercante brasileiro que transportava o novo
Governador do Mato Grosso. A alegação era de que se tratava de
uma represália à tomada de Melo, no Uruguai, por tropas brasileiras,
em outubro. Parecia a López que o momento era oportuno:
esperava a adesão de Entre Ríos, havia a aliança dos blancos e − o
que era o mais importante − tinha um exército disciplinado e bem
treinado de 64 mil homens. Para dar uma ideia do que isso
representava, lembre­-se que a força terrestre brasileira não passava
de 18 mil homens (a metade no Rio Grande do Sul), a da Argentina
estaria por volta de 8 mil, e a do Uruguai, só mil.

Solano López dividiu suas forças: pelo norte invadiu Mato


Grosso; pelo sul pretendia chegar a Montevidéu, então sitiada pelos
brasileiros. Cometeu, depois, dois erros graves: apesar da derrota
dos blancos no Uruguai, achou que podia reverter essa situação
marchando para Montevidéu; pediu autorização para atravessar
Corrientes e, não a conseguindo, invadiu essa província na
suposição de que Urquiza o apoiaria. Nem chegou a Montevidéu,
nem lhe foi a possível, mesmo com a ajuda de simpatizantes em
Buenos Aires, evitar a declaração de guerra da Argentina. Poucas
semanas depois, estava assinado o Tratado da Tríplice Aliança.

A invasão paraguaia em direção ao sul foi contida na Batalha


de Yatay, em 17 de agosto de 1865, e na rendição de Uruguaiana,
em 19 de setembro (esta cidade havia ficado um mês e meio em
poder das tropas paraguaias). Antes, em 11 de junho, Barroso
destruíra a pequena e improvisada frota paraguaia em Riachuelo.
Assim, menos de um ano depois de iniciada a guerra, ela estava
militarmente perdida para López, que, entretanto, prosseguiria
lutando durante mais outros quatro anos. O morticínio do povo
paraguaio só terminaria com a morte do ditador.

Antes de fazer alguns comentários sobre a Guerra do Paraguai,


cujas origens imediatas estão, como vimos, na guerra civil uruguaia
de 1864, lembremos sua cronologia básica. Em 11 de novembro de
1864, o Paraguai apreende o “Marquês de Olinda”, em Assunção: é
o começo da guerra. Em 13 de dezembro, o Paraguai invade o Mato
Grosso. Em fevereiro de 1865, Flores é o vencedor colorado da
guerra civil no Uruguai, com o apoio do Brasil e da Argentina: o
Paraguai perde o aliado. Em 18 de março, o Paraguai invade a
província de Corrientes, o que provoca a entrada da Argentina na
guerra. Em 1o de maio, é firmado o Tratado da Tríplice Aliança. Em
11 de junho, na batalha naval de Riachuelo, a improvisada marinha
paraguaia é praticamente destruída: o Paraguai fica bloqueado. Em
5 de agosto, as tropas paraguaias tomam Uruguaiana, mas, em 14
de setembro, rendem­-se, o que marca o fim da invasão paraguaia
em direção a Montevidéu.

A partir de 16 de abril de 1866, quando as tropas aliadas


cruzam a fronteira, a guerra é levada ao território paraguaio. Em 24
de maio, houve a vitória de Tuiuti e em 22 de setembro, a derrota de
Curupaiti. Em outubro, Caxias assume o comando das tropas
brasileiras (depois, substitui Mitre como Comandante das forças
aliadas em janeiro de 1868). 1867 é um ano de poucos eventos;
mais de preparação e cerco da grande fortaleza de Humaitá, só
tomada em 5 de agosto de 1868. Em dezembro daquele ano, houve
as vitórias de Itororó e Lomas Valentinas, perto de Assunção,
ocupada em 1o de janeiro de 1869. Em 15 de abril, assume o
comando o Príncipe d’Eu, que destrói o que restava do exército
paraguaio em 16 de agosto, na Batalha de Campo Grande (Acosta
Nu). López é perseguido, agora à frente de um “bando faminto e
esfarrapado de meninos, mulheres, velhos e inválidos, que deverá
seguir o chefe até o sacrifício final”320, o que ocorre em 1o de março
de 1870, quando, não querendo render­-se à tropa que o cercava, é
morto em Cerro Corá, quase na fronteira com o Mato Grosso.

A Guerra do Paraguai é um fato marcante na evolução política


do Império: provoca o crescimento do exército brasileiro e início de
sua atuação como força política interna; para alguns historiadores,
como Sérgio Buarque de Holanda, assinala o começo da longa
decadência do reinado de D. Pedro II, desgastado pelas dificuldades
e demoras para vencer um pequeno país vizinho. O problema da
escravidão ficou mais evidente com a contradição de as tropas
brasileiras, compostas em boa porcentagem por gente negra,
defenderem um sistema que as oprimia, ou com o Conde d’Eu,
comandante na fase final da guerra, abolir a escravidão no
Paraguai, em 1870.

Vejamos a origem da questão fronteiriça entre o Brasil e o


Paraguai. O Tratado de Santo Ildefonso fixava a fronteira comum
pelos rios Paraná e Paraguai. Entre eles nomeava como divisa um
afluente de cada rio (Igureí e Corrientes), cujas nascentes deveriam
ser ligadas “por uma linha reta pelo mais alto terreno”. Desde as
primeiras demarcações, surgiram dúvidas sobre a exata posição
desses afluentes. No século XIX, já com os países sul­-americanos
independentes, persistiam as divergências. O Paraguai reivindicava
a fronteira pelo rio Branco, para ele um dos mencionados no tratado
de 1777, e o Brasil, de acordo com o uti possidetis, julgava que o rio­-
divisa deveria ser o Apa.
Terminada a guerra, acentuaram­-se as divergências entre o
Brasil e a Argentina. Contrariando disposições do Tratado da
Tríplice Aliança, o Brasil resolveu fazer uma paz em separado, em
1872, e fixar definitivamente sua fronteira com o Paraguai. A linha
de limites começa na região das Sete Quedas, no rio Iguassu,
prossegue pelas serras do Amambai e Maracaju e termina no rio
Apa, que deságua no Paraguai. Mais próxima, pois, das reivindi-­
cações brasileiras. Com curiosidade, vamos lembrar que, cem anos
depois, na época da construção de Itaipu, ainda persistiam dúvidas
sobre a exata posição da fronteira nas Sete Quedas, dúvidas essas
alagadas pela grande represa. Quando se escolheu o lugar da
barragem, essa vantagem − eliminar o problema fronteiriço − foi
também considerada.

O Brasil passou a opor­-se às pretensões territoriais argen­tinas


porque estas, se atendidas, invibializariam o país guarani:
concordava que ao sul a Argentina chegasse ao Pilcomaio e que a
leste incorporasse o território de Misiones (na verdade, terra mais
paraguaia que argentina, pensava Rio Branco); mas não que
ocupasse o território ao norte Pilcomaio até o rio Verde. Essa
disputa foi afinal resolvida favoravelmente ao Paraguai, pelo
arbitramento do Presidente Hayes, em 1879.

Não foi bem vista a Guerra do Paraguai entre as então


chamadas repúblicas do Pacífico. Em 1868, Bolívia, Peru e
Colômbia protestam contra o que lhes parecia um desmembramento
da nação paraguaia. Foi uma sorte histórica que os excessos de
López levaram a Argentina a estar do lado brasileiro; caso contrário,
não seria descabido imaginar­-se uma coligação de repúblicas contra
o império “escravocrata e expansionista”, na visão de seus
adversários. Assumindo o Brasil o maior ônus da guerra, com a
retirada de Mitre da chefia das forças aliadas, em 1868, para
enfrentar revoltas internas na Argentina, até mesmo nesse país
aliado era importante a corrente antibrasileira, da qual Juan Bautista
Alberdi foi um dos principais porta­-vozes.
Na historiografia brasileira, tem variado a apreciação dos
especialistas sobre a Guerra do Paraguai, havendo uma tendência
moderna a ter maior compreensão pelas posições paraguaias; tem
variado menos, entretanto, do que na historiografia paraguaia, que
há algumas décadas considerava López o megalômano que
destruíra seu país e hoje o reverencia como um herói nacional. A
visão clássica brasileira vem das duas centenas de páginas que à
guerra dedica Joaquim Nabuco em Um estadista ao Império. Sem
dúvida refletem o ponto de vista das elites imperiais, mas têm o
equilíbrio dos bons livros de história. Nabuco reconhece sempre o
valor do povo paraguaio e, embora ache que a razão e a civilização
estão com o Brasil, faz afirmações que até surpreendem para a
época em que escreveu, quando ainda estavam abertas as feridas
da guerra, como esta: “o heroico, o patético, o infinitamente humano
que faz a epopeia está [...] do lado paraguaio”321. Ilustra bem esta
afirmação a frase final de um soldado paraguaio intimado a render­-
se: “no tengo órdenes...”.

O movimento republicano, que começou a se desenvolver


depois da Guerra do Paraguai (o Manifesto é de 1871 e a
Convenção de Itu de 1878), atribuía a guerra à política imperial no
Prata e achava que uma república se relacionaria com mais
facilidade com suas coirmãs.

A partir dos anos 70, mas agora do século XX, por influência do
marxismo, ou pelo menos de visões anti­-imperialistas da história,
começaram a aparecer livros, como o do argentino Leon Pommer, A
Guerra do Paraguai, um grande negócio, e o do brasileiro Júlio José
Chiavenato, Genocídio americano, que tendem a ver o conflito como
um choque entre uma república que se fechara para preservar sua
independência e as forças do imperialismo inglês, as quais, por
meio do Brasil e da Argentina, queriam abrir um novo mercado. Na
verdade, como explica o historiador inglês especializado em
América Latina Leslie Bethel, “não há qualquer evidência de que o
modelo econômico paraguaio (modificado por Carlos Antonio López
na década de 1850) era incompatível com os interesses
britânicos”322. Bem melhor do que esses livros é o recente (2002)
Maldita guerra, de Francisco Dorattioto, que, apoiado em vasta
documentação, do Brasil e também do Paraguai, apresenta uma
visão moderna e equilibrada do maior conflito bélico da América do
Sul e descarta por completo a ideia − igualmente posta em
circulação nas últimas décadas − de um subimperialismo brasileiro
interessado em ampliar ainda mais suas fronteiras, às custas da
isolada e aguerrida nação paraguaia.

Este ponto merece um comentário. Durante o período de D.


Pedro II, predominava, sim, nos círculos dirigentes, a ideia de que o
país deveria negociar bem suas fronteiras e não perder áreas
colonizadas por brasileiros; mas não havia ninguém de influência
política ou respeito intelectual que pensasse em ampliar ainda mais
um território que o Governo tinha dificuldades em administrar pela
sua extensão. O dito abaixo, atribuído ao Imperador, parece uma
dessas frases pseudo­-históricas, comuns nos antigos manuais, mas
reflete bem a política de fronteiras do Segundo Reinado: “ou o
território é nosso e não devemos alienar uma polegada deste, ou
pertence aos nossos vizinhos e então é justo não querermos uma
polegada do que não nos pertence [...]”323.

A fronteira com o Paraguai (1872) foi a última estabelecida no


Império. O período já havia visto sucessivos diplomatas negociarem
bons acordos com o Uruguai (1851), o Peru (1851), a Venezuela
(1859) e a Bolívia (1867). Quase sempre tínhamos a vantagem da
ocupação e, depois, existia uma doutrina bem articulada: a do uti
possidetis, associado à validade apenas ocasional de Santo
Ildefonso. Apesar de bem encaminhados, persistiam, no entanto,
problemas, para dar alguns exemplos, com a Argentina, a Guiana
Francesa e a Colômbia, que aguardariam a República para serem
resolvidos. De uma maneira geral, pode­-se dizer que os Gabinetes
imperiais desenvolveram uma política de limites coerente,
persistente e bem­-sucedida; elogiada, vimos, até por seus naturais
adversários.
Capítulo XI
O Barão da República
E qual é a razão da superioridade diplomática do Barão do Rio Branco? Será ele
dessas imponentes, insinuantes, irresistíveis figuras? Não... Sua força, seu
prestígio lhe advêm de outra parte: brotam de sua vasta cultura histórica e
geográfica, de seu profundo saber, acumulado por quarenta longos anos, da
corografia e dos anais pátrios, nomeadamente das lutas e pendências de guerra
havidas com as gentes vizinhas. (Sílvio Romero, História da literatura brasileira.)

11.1 Rio Branco: a obra de uma vida


Em 1876, com trinta anos, após dois mandatos de deputado,
uma missão diplomática transitória no rio da Prata e uma vida
boêmia no Rio de Janeiro − era o Juca Paranhos, o alto, forte e bem
apessoado filho de um dos maiores políticos do Império, o Visconde
do Rio Branco −, inicia uma longa e até certo momento obscura
carreira diplomática em Liverpool, o futuro Barão do Rio Branco,
José Maria da Silva Paranhos Jr.

Foi Cônsul ali durante 24 anos e, depois, nos dois últimos antes
de voltar ao Brasil, Ministro em Berlim (Embaixador, diríamos hoje).
Em verdade, viveu a maior parte de seus anos de exterior em Paris,
onde instalou sua família. Cumpria com seus deveres consulares,
mas todas as horas livres eram dedicadas ao estudo do Brasil, fiel
ao lema que adotara na mocidade: “Ubique patriae memor” (em toda
parte a lembrança da pátria). A vocação, aliás, começara cedo, pois
aos 23 anos já era professor de História do Brasil no prestigioso
Colégio Pedro II.
Estudou nossa História, nossa Geografia, os homens e as
circunstâncias que marcaram a vida nacional não só nos melhores
livros de então − sobre o Brasil, no século XIX, que já foi chamado o
século da história, publicaram­-se os livros do inglês Southey, do
alemão Handelmann e de nosso Varnhagen −, mas também em
obras raras, em todos os manuscritos e mapas que encontrasse nas
bibliotecas europeias, principalmente nas de Paris e de Londres. Em
1891, começou a escrever para o Jornal do Brasil, nesse ano fundado
por seu amigo, o Conselheiro Rodolfo Dantas, as “Efemérides
Brasileiras”, isto é, pequenos artigos sobre fatos históricos ocorridos
no dia da publicação, em anos anteriores. E, já antes de deixar o
Brasil, anotava com grande conhecimento de causa a História da
Guerra da Tríplice Aliança, do alemão Schneider. Não foi sem razão
que adquiriu a fama entre seus amigos de ser o brasileiro que mais
conhecia seu país: “O que o Barão do Rio Branco sabe sobre o
Brasil é uma coisa vertiginosa”324, diz, por exemplo, Eduardo Prado.

Em 1889, ano da Proclamação da República, houve um grande


evento internacional: a Exposição Universal de Paris. Nesse ano, o
Barão saiu do relativo anonimato com a publicação de artigos de Rui
Barbosa sobre o papel protagônico que teve na redação do verbete
“Brésil”, da Grande Encyclopédie, então publicada sob a direção de
Emile Levasseur. Coordenado pelo jornalista Santana Nery, outro
brasileiro que há muito vivia na Europa, foi publicado igualmente em
Paris o livro Le Brésil en 1889, do qual a parte histórica − que acabou
em separata se transformando na Esquisse de l’Histoire du Brésil (a
tradução tem o título Esboço da História do Brasil) − coube a Rio
Branco.

Dizem que escreveu esse pequeno livro de pouco mais de cem


páginas em quinze dias. É possível; há décadas estudava
intensamente o assunto. Depois, seu método de trabalho era
acumular informações, anotar pormenores em qualquer papel que
tivesse à mão e deixar a redação final para os últimos momentos,
quando trabalhava sem limite, dia e noite. A Esquisse foi um sucesso
imediato: a seriedade do trabalho − que já tinha a simplicidade e a
clareza que seriam a marca do estilo do Barão − contrastava com os
resumos de então, superficiais, declamatórios, infantilmente
patrióticos. Era, na verdade, mais que um esboço, pois trazia fatos
inéditos, corrigia datas, dava explicações novas, que seriam, aliás,
sempre repetidas nos manuais posteriores.

Esses e seus outros trabalhos históricos, como a biografia de


seu pai, são livros que chamaríamos, hoje, de “história factual”, pelo
número elevado de nomes, datas e eventos citados. O que é
perfeitamente compreensível, pois o século XIX é o século do amor
entranhado aos documentos, o século de Ranke, que dizia ser a
missão do historiador apenas a de mostrar os fatos “tal como
efetivamente ocorreram”. Gostaríamos em nossos dias que
houvesse mais comentários interpretativos.

Como lembra Celso Lafer, “o Barão não era um historiador


puro, só interessado na verdade factual, nem se colocava a Kant,
como um observador interessado no progresso da Humanidade”325.
Era um diplomata que achava que sua obrigação primeira era
defender os interesses nacionais: em Rio Branco, o homem de
pensa­mento nunca submergiu o servidor público. Duas ilustrações:
no artigo sobre o Brasil na Grande Enciclopédia, apresenta a Questão
do Amapá de modo favorável às posições brasileiras; nos
comentários a Schneider, o que procura é divulgar na Europa uma
visão simpática à participação do Império na Guerra do Paraguai
(pretendia, aliás, escrever um livro sobre o assunto).

Foi Rio Branco um grande historiador? Na verdade, foi um


conhecedor profundo da História do Brasil, que não escreveu a obra
que poderia ter escrito, comparável, para mencionar livros de
diplomatas seus contemporâneos, a Um estadista do Império, de
Joaquim Nabuco, ou a D. João VI no Brasil, de Oliveira Lima. Não há
em seus trabalhos nem aqueles panorâmicos quadros históricos dos
períodos estudados nem os bem delineados perfis que tanto
valorizam esses dois livros. O Barão compartilha com Varnhagen a
visão “política” (por oposição à “social”) da história e a mística da
unidade nacional feita em torno da monarquia legítima e
centralizadora.

Quando estava pronto para fazer seu livro (pensava escrever


uma história militar do Brasil, ou pelo menos da região Sul), foi feito
o advogado do Brasil, em 1893, na Questão de Palmas, com a
Argentina, e, depois, em 1895, na Questão do Amapá, com a
França. Redigiu ademais, em 1896, um importante estudo sobre
nossos limites com a Guiana Inglesa, muito elogiado por Joaquim
Nabuco, o advogado brasileiro no arbitramento da Questão do
Pirara.

Em 1902, já alçado ao patamar dos grandes servidores do


Estado por suas duas vitórias arbitrais, foi convidado por Rodrigues
Alves para ser Ministro das Relações Exteriores. Per­maneceu no
cargo durante quase dez anos, servindo a mais três Presidentes:
Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca. Aí, sim,
completou sua grande obra, não de historiador, mas de estadista: o
fechamento definitivo, por meio de acordos solenes e indiscutíveis,
das fronteiras do Brasil. Representado o Brasil, tivera sucesso em
duas dispustas territoriais; agora, Chanceler, assinaria tratados de
limites com a Bolívia (1903), com o Equador (1904), com a Holanda
(Guiana Holandesa, 1906), com a Colômbia (1907), com o Peru
(1909) e com o Uruguai (1909).

A chamada “Questão do Acre”, com a Bolívia, que estava em


fase explosiva quando assumiu o Ministério, foi seu teste de
estadista. Atuou, então, em múltiplos planos: mudou a interpretação
brasileira do tratado de 1867; criou fatos novos ao denunciar o
arrendamento da região a um sindicato anglo­-americano; e
conseguiu, finalmente, com grande habilidade negociadora, chegar
a acordo satisfatório em uma crise que parecia a muitos sem saída
pacífica.
Além da importância em si da bem­-sucedida política de
fronteiras de Rio Branco, é preciso lembrar que, do ponto de vista
da psicologia das nações, liberou as energias brasileiras para
campos mais férteis. Divergências sobre limites são, até hoje, uma
pesada carga na vida política internacional de várias nações do
continente; não do Brasil, que se limita com todos os países da
América do Sul, à exceção do Chile e do Equador.

O Barão do Rio Branco faleceu em 1912 em seu gabinete no


Palácio do Itamaraty, que era também seu quarto de dormir. Numa
fotografia famosa, tirada no dia seguinte ao de sua morte, veem­-se
várias mesas em desordem, abarrotadas de livros, mapas e papéis;
atrás delas, encostada numa parede, uma “modesta cama de
estudante”, isolada do resto da sala por uma improvisada cortina
semiaberta. Não é difícil imaginar que o Brasil era assunto de todos
aqueles escritos...

Sua morte foi uma comoção nacional e, hoje, passado mais de


um século, seria difícil encontrar­-se outro personagem da História
do Brasil que desfrutasse de maior prestígio. E tudo indica que
continuará, no futuro, pela solidez de sua obra, a ser das poucas
unanimidades nacionais. Em vida mesmo, foi tido como uma
espécie de herói, o “maior dos brasileiros”, na expressão
disseminada pelo então Deputado Dunshee de Abranches.

Companheiros da geração a que pertenceu, que produziu


alguns dos homens mais eminentes da vida política e intelectual do
país, não o viam, entretanto, nem como o mais culto, nem como o
mais brilhante. Talvez a Rui Barbosa e a Joaquim Nabuco,
respectivamente, aplicassem­-se melhor esses qualificativos. Três
opiniões de seus contemporâneos dão, quem sabe, as chaves para
decifrar a personalidade de Rio Branco. José Carlos Rodrigues,
diretor de O Correio da Manhã: “Este nosso amigo tem sorte! Grande
exemplo do que pode uma persistência indomável mesmo sem a
aliança de grande talento”326. Oliveira Lima: “O seu fundo de
conhecimentos especiais [...] foi a maior superioridade de Rio
Branco numa terra de instrução restrita”327. Euclides da Cunha: “É
lúcido, é gentil, é trabalhador, e traça na universal chateza destes
dias uma linha superior e firme de estadista”328.

Comentemos as qualidades atribuídas a Rio Branco, respecti-­


vamente por um amigo, um desafeto e um colaborador. Em primeiro
lugar, a sorte, ou, como se dizia em sua época, a estrela do Barão.
Diga­-se de início que não se refere à felicidade pessoal, mas, sim, à
vida política. Ganhando sempre o que disputava a serviço do Brasil,
ficou com fama de ser um protegido dos fados. Mas, em seu caso, a
sorte não era gratuita; recompensava uma excepcional capacidade
de trabalho, noites e noites mal dormidas ou, nos momentos
decisivos de sua carreira, não dormidas de todo. Era o “burro da
carga”, como a si mesmo se chamou mais de uma vez.

Dizer que não tinha grande talento é, entretanto, incorreto,


porque o tinha, sim, pelo menos nas atividades a que se dedicou. O
que parece é que não possuía os pendores artísticos ou literários
que distinguem vários homens intelectualmente superiores. Numa
pintura, interessava­-lhe mais o valor documental do que o estético.
De Eça de Queiroz, para dar um exemplo de autor muito lido pelos
companheiros de sua geração, “apenas conhecia A relíquia e isto
mesmo porque Eduardo Prado insistira muito para que a lesse”329.

O que conhecia era a História do Brasil, mas a conhecia


profundamente, não só dos livros, mas também dos velhos docu-­
mentos de arquivos, dos mapas, dos papéis privados de seus
personagens; do Segundo Reinado, privava da amizade (em vários
casos, desde a casa de seus pais) de vários líderes políticos e
militares, como o Duque de Caxias, para citar um só nome. Era um
erudito nesse campo e isso num continente em que a
superficialidade e o diletantismo imperavam. Valorizando seus
conhecimentos especiais, tinha uma capacidade incomum de se
concentrar sobre o trabalho do momento, o que o fazia imbatível em
seus domínios.
Sorte, trabalho, conhecimento, isso se sabia de Rio Branco
antes de ficar Ministro. Os resultados que obteve nesse cargo, no
momento difícil em que foi chamado a ocupá­-lo, se confirmaram
essas qualidades, revelam, ademais, sua estatura de estadista.

Durante a vida, teve alguns críticos, como Oliveira Lima, seu


rival na carreira diplomática, preterido em nomeações, mas maior
como historiador; Salvador de Mendonça, republicano histórico,
Ministro em Washington e precursor da aproximação com os
Estados Unidos da América; e Barbosa Lima, orador empolgado e
deputado oposicionista. Mas sempre, em qualquer momento, a
opinião pública lhe foi francamente favorável. Recebido
gloriosamente ao voltar da Europa, após 26 anos de ausência,
continuou admirado durante os quase dez anos em foi Ministro.
Tarefa bem mais difícil...

Homem de traços físicos e morais aristocráticos, tinha,


entretanto, facetas que o faziam popular: o tamanho das peixadas
que comia no “Minho” ou no “Brama”, o gosto de passear a pé pela
“rua Larga” (como se chamava a atual Av. Marechal Floriano, onde
está o Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro), respondendo aos
cumprimentos dos desconhecidos, a desarrumação antológica de
seu gabinete de trabalho... Tudo tinha sua base de verdade, mas
havia também a construção lendária. Sobre o lendário apetite, seu
filho Raul lembra que, irregular nas refeições e absorvido no que
fazia, havia dias em que só comia um prato; claro que este não
podia ser pequeno, para manter os cento e poucos quilos que
pesava...

O caos de seus livros e papéis era impressão dos outros; para


ele, era a ordem que convinha: “chegou a ter 14 mesas, redondas
ou quadradas, às vezes mesmo de cozinha. Sobre cada uma das
mesas ele trabalhava e remexia papéis relativos a questões
determinadas, de modo a ter na mão, imediatamente, tudo o que a
cada uma se referia”330. Escrevia em qualquer espaço que
encontrasse, sim, mas servido por uma excelente memória, sempre
tinha ideia de onde e o quê. Seus amigos costumavam receber
telegramas interconti­nentais com pedidos como este: “Procure à
página branca, no tomo tal do Relatório do Ministério do Interior,
uma nota de meu punho sobre o rio Vicente Pinzón e telegrafe o
teor”331.

Absorvente e centralizador, concentrava­-se no essencial − o


estudo pormenorizado dos assuntos de que se ocupava −, mas não
se descurava de pormenores ou formalidades que favorecessem a
causa defendida. No auge da redação de sua memória sobre o
Amapá, não se esquecia de enviar flores à filha do Presidente do
Conselho Federal Suíço, que iria arbitrar a questão. Sempre, por
mais ocupado que estivesse, cuidava pessoalmente das recepções
que dava no Itamaraty, escolhendo a dedo os convidados e até
fazendo planos de mesa. Gostava de se mostrar aos estrangeiros
cercado de intelectuais, de gente bonita e elegante porque achava
que seu prestígio refletia o do país. Algumas vezes saía de uma
festa no Itamaraty para a redação do Jornal do Comércio, onde, em
mangas regaçadas, a descrevia aos leitores de dali a pouco. Sobre
a utilização que fazia da imprensa, é preciso que se diga que não se
limitava a escrever crônicas sociais; deixou importantes artigos −
sempre com pseudônimo − de defesa da sua política externa em
periódicos da época. Era ator e crítico...

Seu sucesso como Ministro não poderia deixar de criar uma


corte a sua volta, que irritava até admiradores, como Euclides da
Cunha. Realmente, ao ler uma ou outra carta de seus
colaboradores, vê­-se que o tratavam como um semideus. Após uma
recepção ao então famoso pensador político italiano Guglielmo
Ferrero, Rio Branco recebeu um bilhete de Graça Aranha em que
era comparado a Péricles, sua filha a Minerva, Machado de Assis a
Platão...

Não foi bem servido pelas lembranças biográficas, excessi-­


vamente laudatórias, nas primeiras décadas após sua morte. Ficou,
assim, em pedestal de flores, muitas murchas, até 1945, centenário
de seu nascimento, quando apareceu uma biografia de valor, a de
Álvaro Lins, na qual, pela primeira vez, é seriamente estudada sua
vida pública, a partir de intensas consultas em fontes primárias,
principalmente os arquivos do Itamaraty e coleções de cartas
particulares. Nesse mesmo ano, começa a ser publicada sua obra
completa, precedida de um excelente volume de introdução, do
Embaixador Araújo Jorge.

Em 1959, Luís Viana Filho escreve a segunda biografia


importante, esta tratando igualmente da vida privada do grande
Ministro. Procura decifrar a personalidade complexa e contraditória
daquele a quem o amigo Joaquim Nabuco chama de “a esfinge” −
Rio Branco era muito reservado quanto aos assuntos pessoais − e
mostra como, com o passar do tempo, foi­-se esmaecendo o
indivíduo enquanto se afirmava o Ministro; no final da vida, ao se
procurar o homem, só se encontrava o grande Chanceler.

Apesar de sua formação intelectual predominantemente


francesa, há quem compare Rio Branco, pelo realismo na atuação
política, com o chanceler alemão Bismarck, como por exemplo José
Maria Bello, que o conheceu pessoalmente e traça dele o seguinte
retrato sem retoques:

Patriota e nacionalista sincero, Rio Branco era, como os homens da família de


Bismarck, robusto de alma e de corpo, oportunista sagaz, desdenhoso dos
idealismos declamatórios, tão espontâneos sempre no solo tropical da América
Latina, atento aos fatos, absorvente e autoritário sob aparências polidas, sabendo
servir­-se dos homens, de suas virtudes, como das suas fraquezas e seus defeitos, e
certo de que na diplomacia, mais do que alhures, as formas jurídicas apenas
importam quando servidas pelo dinheiro ou pela força332.

Não é muito diferente a ideia que Rubens Ricupero tem da


mentalidade de Rio Branco, influenciada pelo meio europeu, onde
viveu a maior parte de sua vida adulta:
Certas frases atribuídas ao futuro Barão, como, por exemplo, território é poder,
poderiam ter sido facilmente ditas por qualquer dos Estadistas europeus
contempo­râneos seus como Bismarck, Disraeli ou os expansionistas franceses,
russos, austríacos. Os valores e convicções que formavam seu universo moral não se
distinguem também dos desses mesmos contemporâneos. A política internacional
não passa de uma luta de poder definido em termos de interesses nacionais.
Embora se deva respeitar o patrimônio comum de valores éticos e jurídicos do
Ocidente cristão, ninguém deve iludir­-se: o que conta, em última análise, é a
correlação de forças333.

No plano nacional, Rio Branco era um típico homem da elite


política do Império. A contragosto aceitou a República, sempre
homenageou o Imperador deposto e nunca deixou de usar seu título
monárquico. Mas, curiosamente, foi a República que lhe deu as
melhores oportunidades, primeiro fazendo­-o advogado do Brasil nos
arbitramentos de Palmas e do Amapá e, depois, Chanceler. Nesse
período, começou a ser chamado “ilegalmente” de Barão, sem
qualificativos: sem dúvida, é o Barão da República.

A obra de Rio Branco tem sido muito estudada. Suas defesas


do Brasil contra pretensões territoriais da Argentina e da França
foram objeto de vários trabalhos importantes. Seus anos como
Ministro das Relações Exteriores são os mais divulgados de nossa
história diplomática, pelo notável sucesso de sua gestão. Fechou,
por meio de acordos bilaterais com oito vizinhos (as fronteiras com a
Venezuela e com o Paraguai vinham do Império), a longa linha de
limites do Brasil; deu relevo à aliança com os Estados Unidos da
América, deslocando da Europa para nosso continente o eixo da
política exterior brasileira; e propôs o estreitamento das relações
com os países do sul do continente, a Argentina e o Chile. Não
podia haver na época objetivos de política externa melhor
escolhidos.

Apesar dos bons estudos que existem sobre Rio Branco, que
analisam bem sua obra, o grande texto sobre os assuntos de que
tratou são seus próprios escritos, documentos concebidos e
redigidos exclusivamente por ele, sem o concurso de asses­sores.
Nítidos e desataviados, desenvolvem uma argumentação
irretorquível. Por isso, pode­-se dizer que a vida intelectual de Rio
Branco está concentrada em seus trabalhos como advogado do
Brasil e Ministro das Relações Exteriores.

Esgotando o tema e se defendendo de possíveis posições con-­


trárias, não deixa muita margem para comentários. Suas defesas e
exposições de motivos são clássicos da literatura diplomática
brasileira. Trechos característicos delas são, aliás, sempre copiados
em livros de história. A crítica possível seria a partir de bibliografia
especializada dos países envolvidos em problemas de fronteiras
com o Brasil, o que faremos em itens seguintes. Desse cotejo com a
“visão dos vencidos” sai, o mesmo admirado servidor do Estado,
acima de tudo, mas historiador convincente e diplomata sincera-­
mente interessado nas boas relações com os vizinhos.

Oliveira Lima, o anti­-Rio Branco na tradição diplomática


brasileira, reconhecia o peso da erudição histórica e a superio­ridade
da inteligência do Barão “toda banhada de luz”, como diz em artigo
que escreveu dias após a morte deste. Soube, então, apesar do
ressentimento que tinha, encontrar o tom justo: “Mais feliz do que
outros homens de Estado, Rio Branco lega à sua pátria uma obra
duradoura que o ocupou toda sua vida e que foi a fixação dos limites
do imenso país que é o Brasil”334.

11.2 A Questão de Palmas (1895) (vide Mapa 11)


A fronteira entre o Brasil e a Argentina é totalmente fluvial, à
exceção de um pequeno trecho terrestre de cerca de 24 quilômetros
que liga pelas cumeeiras as nascentes dos rios Peperi e Santo
Antônio, afluentes respectivamente do Uruguai e do Iguaçu. São os
quatro rios − o Uruguai é o maior segmento − que constituem a
divisória oeste dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina
e sudoeste do Paraná.
Essas divisas, como outras, vêm dos tempos coloniais,
definidas que foram pelo art. V do Tratado de Madri. Vale a pena
reler seu texto:

Subirá [a linha divisória] desde a boca do Ibicuí pelo alveo do Uruguay, até
encontrar o do rio Peperi ou Pequirí, que deságua na margem Occidental do
Uruguay; e continuará pelo alveo do Peperi acima, até a sua origem principal;
desde a qual prosseguirá pelo mais alto do terreno até a cabeceira principal do rio
mais vizinho, que desemboque no Rio Grande de Curitiba, por outro nome
chamado Iguaçu. Pelo alveo do dito rio mais vizinho da origem do Peperi, e depois
pelo do Iguaçu, ou Rio Grande de Curitiba, continuará a raya até onde o mesmo
Iguaçu desemboca na margem oriental do Paraná [...].

Em 1759, os comissários portugueses e espanhóis encarre-­


gados das demarcações subiram o Uruguai, rio já bem conhecido,
reconheceram o Peperi e descobriram e exploraram sua contra-­
vertente, a que deram o nome de Santo Antônio.

O Tratado de Santo Ildefonso mudou as fronteiras no sul do


Brasil. Colocando a região dos Sete Povos sob a soberania
espanhola, fez do Uruguai um rio exclusivamente espanhol até a foz
do Peperi. Não alterou, entretanto, o trecho da divisa que mais tarde
daria origem às divergências entre o Brasil e a Argentina, isto é, os
rios Peperi e Santo Antônio. A parte que interessa do art. VIII reza:

[...] a linha divisória seguirá águas acima do dito Peperi­-Guaçu até a sua origem
principal; e desde esta pelo mais alto do terreno continuará a encontrar as
correntes do rio Santo Antônio que desemboca no grande de Curi­tiba, por outro
nome chamado Iguaçu, seguindo este águas abaixo [...].

Em 1788, quando se procediam às demarcações nessa região,


os comissários espanhóis descobriram na margem direita do
Uruguai outro rio (mais a leste do Peperi) e a ele nomearam
“Peperi”; como consequência também nomearam “Santo Antônio” o
rio contravertente que deságua no Iguaçu. Esses rios figuram hoje
nos mapas respectivamente com os nomes de Chapecó e Chopim.
Criou­-se, pois, uma divergência sobre este trecho da fronteira, que
persistia quando estalou a guerra de 1801 entre a Espanha e
Portugal. A guerra provocou, no sul do Brasil, a ocupação dos Sete
Povos por tropas luso­-brasileiras, o que levou a fronteira mais para
jusante no rio Uruguai, ultrapassando a boca do Ibicuí (limite de
Madri) e chegando à boca do Quaraí (limite atual).

Com a Independência, as divergências centraram­-se nos


problemas políticos das margens do Prata... mas não se descuidou
do Peperi. Em 1857, o futuro Visconde do Rio Branco assina com o
Ministro das Relações Exteriores da Confederação Argentina um
tratado que não deixava dúvidas sobre a fronteira: era o rio Uruguai
desde a foz do Quaraí, ao sul, e o rio Iguaçu, ao norte; e, entre eles,
o Peperi e o Santo Antônio, definidos com precisão: “eram os rios
reconhecidos pelos comissários demarcadores do Tratado de
Limites de 13 de janeiro de 1750” (art. 2o). Parecia que tudo estava
esclarecido; o acordo, entretanto, não foi ratificado pelo governo
argentino (por motivos que nada tiveram a ver com o problema
Peperi/Santo Antônio).

Terminada a Guerra do Paraguai, em 1870, houve várias


tentativas de se resolver a questão, que se agravou em 1888,
quando a Argentina levou ainda mais para leste (e, portanto, mais
para dentro do território brasileiro) suas reivindicações, assinalando
como divisas os rios Chapecó e agora não mais o Chopim, e sim o
Jangada. Após anos de negociações, em que houve até uma
proposta argentina de divisão do território contestado, os governos
do Brasil e da Argentina finalmente assinaram em 7 de setembro de
1889 um tratado que submetia a questão à decisão arbitral do
Presidente dos Estados Unidos da América. Algumas semanas
depois, era 15 de novembro de 1889...

A proclamação da República foi muito festejada nas repú­blicas


sul­-americanas, em especial na Argentina. O governo provisório,
com Quintino Bocaiúva na pasta das Relações Exteriores, queria
começar seu período com um gesto de fraternidade para com os
vizinhos, que contribuísse para apagar resquícios do alegado
imperialismo brasileiro. E, assim, já em 25 de janeiro de 1890, os
Chanceleres de ambos os países assinam em Montevidéu um
tratado pelo qual dividiam o território contestado em duas partes
iguais.

Este não foi bem recebido no Brasil. Vários conhecedores do


assunto na imprensa e no Congresso começaram a divulgar os
argumentos que favoreceriam a posição brasileira, num eventual
arbitramento. As disputas foram intensas, como explica Araújo
Jorge: “Não havia antecedentes na história das relações
internacionais do Brasil de um debate diplomático mais solene: nele
tomaram parte toda a imprensa brasileira, Ministros de Estado,
plenipotenciários, geógrafos, publicistas e demarcadores de limites,
todos quantos nos últimos anos haviam intervindo na política
exterior do Brasil”335. A maioria das opiniões era contra o acordo, e o
resultado não se fez esperar: por 142 votos contra cinco, o
Congresso Nacional, em 10 de agosto de 1991 (seis meses depois
de assinado), refutou­-o e recomendou a volta ao recurso do
arbitramento.

Para defender os direitos do Brasil, foi nomeado inicialmente o


Barão de Aguiar de Andrada, que já tinha experiência na questão,
tendo sido um de seus principais negociadores no final do Império.
Faleceu, entretanto, sem ter terminado seu trabalho. Dias depois,
em 5 de abril de 1893, o Presidente Floriano Peixoto nomeava Rio
Branco para as mesmas funções. Ele também conhecia a questão.
Em 1870, fora secretário de seu pai na missão deste ao Prata e
desde então era considerado um especialista dos problemas
regionais.

Homem de estudo, via chegar sua hora de ação. A Argentina no


final do século XIX era o país mais próspero da América Latina: a
emigração europeia estava povoando grandes extensões de terras
vazias e férteis, o país não tinha o ônus de grandes massas pobres
e suas elites eram as mais preparadas do continente. O sistema
político estava funcionando bem, os Presidentes da época − Roca,
Pellegrini, Saenz Peña − são nomes ligados ao período áureo da
História da Argentina, chamado “das vacas e do trigo”.

O que a Argentina reivindicava era uma porção do nosso


território que, se obtida, deixaria o Rio Grande do Sul unido ao resto
do Brasil por uma estreita faixa de terra de pouco mais de 200
quilômetros. E esse era o estado que justamente merecia mais
cuidados: no começo do Império, houve a longa Guerra do Farrapos
(1835­-1845) e, agora, no começo da República, estava ocorrendo a
Revolução Federalista (1893­-1895). O envolvimento de tropas
gaúchas em problemas das nações platinas e vice­-versa, a
similitude das formações sociais entre os gaúchos do Uruguai, da
Argentina e do Rio Grande do Sul e a própria especificidade do
estado, tão defendida pelos republicanos “comtistas” de Júlio de
Castilho e consagrada na constituição de 1891, deixavam no ar um
perigoso cheiro de separatismo.

A responsabilidade de Rio Branco era muita e o tempo, pouco:


desembarcou em Nova York em 25 de maio de 1893 e apresentou o
trabalho em 10 de fevereiro de 1894, sendo que escreveu tudo nos
últimos dois meses. Claro que isso só foi possível por estudos de
toda uma vida. A defesa entregue ao árbitro compunha­-se de seis
volumes: o texto básico, sua tradução em inglês, e quatro outros, de
documentos e mapas.

É interessante conhecer a gênese do arrazoado, de cerca de


230 páginas. Ao chegar aos Estados Unidos, encontrou um trabalho
preparado pelo Itamaraty (do antigo e quase perene Secretário­-
Geral − chamava­-se Diretor­-Geral −, o Visconde de Cabo Frio, que
Rio Branco já conhecera de cabelos brancos, no tempo em que seu
pai fora Ministro) e outro em elaboração por um advogado norte­-
americano, baseado em informações e dados a ele fornecidos pelo
Barão de Aguiar de Andrade. Rio Branco quis fazer obra nova que
refletisse sua visão pessoal do assunto e incorporasse as
descobertas recentes por ele feitas. Foi, pois, o redator único da
memória, de cabo a rabo. Clara, precisa, sem nenhum preciosismo
ou empolamento − comuns na época −, apoiava­-se em argumentos
sólidos; e era ilustrada, nos volumes seguintes, por uma
impressionante coleção de mapas antigos favoráveis à tese
brasileira (a chamada “prova cartográfica”).

A crítica mais importante que se fez à defesa é do próprio


Barão, ao comentá­-la em ofício à Secretaria de Estado, antes da
decisão arbitral:

A preocupação de que o apuro do tempo me não deixar lugar para dizer tudo
quanto era preciso, levou­-me a ir acumulando na primeira parte os argumentos
mais fortes e decisivos e a ir, desde o princípio, refutando e eliminando as alegações
dos nossos contrários. A exposição saiu assim mal equilibrada: bastante
desenvolvida e carregada na primeira parte (tratado de 1750 e primeira
demarcação); resumida demais na segunda (tratado de 1777 e segunda
demarcação); incompleta e descosida na terceira [reduções jesuíticas do território
de Misiones], sobre que eu tinha, aliás, estudos originais e um precioso material;
deficiente e frouxa na parte final [descoberta e ocupação pelos brasileiros do
território contestado], que, segundo as boas regras, deveria ser a mais vigorosa336.

Ao redigir a memória, é evidente que Rio Branco usou


argumentação anterior; mas o enfoque era seu e, principalmente,
trazia provas nunca antes mostradas dos direitos do Brasil. Dois
documentos recém­-achados destacavam­-se: o “Mapa das Cortes”,
cujo original fora descoberto havia pouco em Paris e favorecia a
tese brasileira; e o texto autêntico das instruções aos demarcadores
do Tratado de Madri, redigido em 1758, que diferia da versão citada,
desde 1788, pelos argentinos. Estanislao Zeballos, o advogado
adversário − que já havia sido Chanceler e o seria uma vez mais na
época em que Rio Branco assumiria o Itamaraty − acentuava em
sua defesa a importância do trabalho dos demarcadores de 1788,
que teriam corrigido os erros dos anteriores demarcadores de 1758,
os quais não teriam cumprido corretamente as instruções que
receberam de seus Governos. Rio Branco, ao mostrar o texto
original, deixou sem base a argumentação de Buenos Aires.
O historiador argentino Luis Santiago Sanz diz que Zeballos
considerou esse confronto de provas o momento culminante da
decisão norte­-americana favorável ao Brasil:

El 1º de diciembre de 1894, el árbitro pidió a Zeballos que indicara el lugar donde


podría ser habido el texto por él citado [das instruções de 1758]. El
plenipotenciario argentino solicitó el dado a su Ministerio; en la respuesta se
indicaba el tomo VII, pág. 186, de las “Notícias Ultramarinas”, pero el original
transcrito en el alegato no fué encontrado. En esa oportunidad Zeballos cursó al
Canciller el despacho nº 38 del 11 de diciembre en que expresaba que la
imposibilidad de presentar las “Instrucciones” tantas veces invocadas constituía
una verdadera desgracia nacional. Brasil [...] adjuntó el documento y su versión
difería de la que tradicionalmente se aseveraba como auténtica337.

O território contestado tinha 30.621 km2 e se dividia entre Santa


Catarina e o Paraná. Chama­-se a questão “de Palmas” porque na
época pertencia à comarca do mesmo nome. Livros argentinos e
vários brasileiros dão ao diferendo o nome de Misiones (Missões), o
que não é apropriado porque, como Rio Branco provou, o território
contestado nunca pertencera a essa antiga província jesuíta
espanhola, só ocupado, aliás, pela Argentina depois da Guerra do
Paraguai.

No fundo, a questão que se submetia ao Presidente dos


Estados Unidos da América era saber se a fronteira era pelos dois
rios que o Brasil indicava, o Peperi e o Santo Antônio, ou se era
pelos que a Argentina indicava, com esses mesmos nomes, isto é,
os nossos Chapecó e Jangada. O árbitro não tinha, de acordo com
o compromisso arbitral, a possibilidade de escolher uma terceira
solução: precisava decidir se era uma ou outra.

A sentença arbitral do Presidente Grover Cleveland foi


conhecida no dia 6 de fevereiro de 1895 e era favorável ao Brasil. O
sentimento de frustração foi grande na Argentina e várias tentativas
de explicações foram oferecidas. O influente La Nación, de Buenos
Aires, dois dias após a decisão, toca a nota falha da diplomacia
profissional do país: “No hemos hecho el debido esfuerzo para formar una
falange de diplomáticos de escuela, colocando de este modo nuestra
representación exterior arriba de los caprichos del acaso y de los vaivenes del
espíritu partidarista”. Para o Barão, a vitória significou o passo
definitivo da obscuridade à notoriedade.

11.3 A Questão do Amapá (1900) (vide Mapa 12)


Fundada Belém em 1616, os portugueses lograram expulsar os
estrangeiros que tentavam fixar­-se em pontos estratégicos da
imensa e complexa foz do Amazonas. Para consolidar sua posição
na margem esquerda do baixo Amazonas, foi criada, em 1637, a
capitania do Cabo Norte, cuja área corresponderia à do atual estado
do Amapá, dilatado para o interior do continente. No litoral, a
capitania estendia­-se da foz do Amazonas até o rio Oiapoque, que
deságua no oceano, a oeste do cabo Orange.

Nessa época, os franceses já se haviam estabelecido na


vizinha Guiana (Caiena fora fundada em 1634) e pretendiam que os
limites de sua possessão sul­-americana fossem até o cabo Norte,
ao norte do rio Araguari, que deságua praticamente na foz do
Amazonas. O próprio nome da empresa então criada na França
para colonizar a região, Compagnie du Cap Nord, não deixa dúvidas
sobre as intenções gálicas.

Começaram muito cedo, portanto, as divergências entre


portugueses e franceses sobre a posse da região entre os dois
cabos (Orange e Norte). E cedo começaram os vários acordos que
precederam à decisão final, só conseguida nos primeiros anos da
República. Citemos os principais. Em 1700, houve um acordo que
neutralizou o território disputado, onde os franceses chegaram a
ocupar transitoriamente, em 1688, o forte de Macapá, bem na boca
do Amazonas. O acordo foi anulado pela Guerra da Sucessão na
Espanha. Em 1713, ao final da guerra, os países nela envolvidos
assinaram o Primeiro Tratado de Utrecht, pelo qual Portugal, graças
ao apoio de seu aliado britânico, conseguiu que a França
renunciasse formalmente a sua antiga reivindicação. O artigo que se
ocupa dessa matéria era claro: “[...] Sua Majestade Cristianíssima
desistirá para sempre [...] de todo e qualquer direito e pretensão que
pode, ou poderá ter, sobre a propriedade das terras chamadas do
cabo Norte, e situadas entre os rios Amazonas e Japoc ou de
Vicente Pinzón [...]”.

Parecia aos contemporâneos que esse importante tratado


multilateral resolvera de vez a questão; mas, tal não foi. Poucos
anos após sua assinatura, mais precisamente a partir de 1725, as
autoridades francesas de Caiena começaram a manifestar dúvidas
sobre a localização do rio “Japoc ou Vicente Pinzón” do Tratado de
Utrecht. Em 1797, no momento em que começa a ficar mais nítida a
fraqueza de Portugal ante o expansionismo da França napoleônica,
os dois países assinam um tratado pelo qual se estabelecia, como
limite da Guiana Francesa, o rio Calçoene, entre o Oiapoque e o
Araguari. Em 1861, pelo Tratado de Badajoz, Portugal concordou
com a fronteira do rio Araguari e, em seguida, pelo Tratado de Madri
(não confundir com o de 1750), cedeu mais ainda, aceitando que a
fronteira passasse pelo pequeno rio Carapanatuba, que deságua no
estuário do Amazonas, próximo ao Forte de Macapá. No ano
seguinte, o Tratado de Amiens, entre a França e a Espanha,
restaurou a fronteira pelo rio Araguari.

Todos esses atos posteriores a Utrecht foram declarados nulos


pelo então Príncipe Regente, em manifesto de 1806, quando ele já
se encontrava no Rio de Janeiro. Alegou que haviam sido obtidos
pela força e, na verdade, alguns, como o de Amiens, nem tiveram a
participação de Portugal. No ano seguinte, tropas do futuro D. João
VI invadem Caiena, onde os portugueses ficariam durante oito anos,
fazendo uma administração louvada inclusive por autores franceses
(o “Maurício de Nassau” da Guiana Francesa foi Maciel da Costa,
depois Marquês de Queluz). No Congresso de Viena, em 1815,
Portugal concordou em restituir a Guiana à França, mas apenas
depois que viu consignado no texto do tratado seu desejo de que a
restituição do território fosse “até o rio Oiapoque, cuja embocadura
está situada entre o quarto e o quinto grau de latitude Norte, limite
que Portugal sempre considerou como o fixado pelo Tratado de
Utrecht”338.

No século XIX, continuaram tentativas esporádicas francesas


de se apossar da região. Em 1836, por exemplo, tropas de Caiena
erigiram um forte no lago Amapá. Em novo esforço para resolver o
conflito, o Visconde do Uruguai foi a Paris em 1855. No curso das
negociações, chegou a oferecer o rio Calçoene como divisa, mas o
governo de Napoleão III, de tendência imperialista, só admitia então
a fronteira pelo Araguari.

Em 1861, é publicado, em Paris, o livro L’Oyapoc et l’Amazone, de


Joaquim Caetano da Silva, considerado unanimemente como a
maior contribuição − com os documentos e mapas que apresentou −
para a defesa dos direitos do Brasil ao Amapá, até o surgimento, 28
anos depois, da memória do Barão do Rio Branco. Caetano da Silva
nascera em Jaguarão, não longe do arroio Chuí, limite extremo sul
do Brasil, e curiosamente tornou­-se o autor da grande obra a
justificar a posse do Oiapoque, o limite extremo na costa norte. Uma
exceção extrema à “regra” de Arthur Reis de que os homens do
Império, nascidos fora da Amazônia, por ela não se interessa­vam
muito...

Finalmente em 1897, no Rio de Janeiro, depois que malo-­


graram as negociações na França, conduzidas, sem muito tato (na
opinião de Rio Branco) pelo Ministro Gabriel de Pizza, firmou­-se um
compromisso arbitral. Na região do rio Cunani, onde havia sido
descoberto ouro, estavam ocorrendo vários atritos entre guianenses
e brasileiros, entre os quais se inclui o pitoresco episódio da
proclamação da Republique du Cunani, com o escritor Jules Gros
assumindo a Chancelaria do novo Estado, e de seu apartamento
parisiense na rua de Rivoli, distribuindo fartamente condecorações
da honorífica ordem da Etoile de Cunani... Urgia resolver a questão.
Pela segunda vez, soava a hora de Rio Branco. Tirado do
relativo anonimato com a vitória total na Questão de Palmas, em
1895, o Barão fora novamente designado para advogado do Brasil
junto ao árbitro escolhido, dessa vez o Presidente do Conselho
Federal Suíço. O Presidente Campos Sales havia assumido em 15
de novembro de 1898, tendo como Chanceler Olinto de Magalhães,
que sucedera ao General Dionísio Cerqueira. Ambos foram, aliás,
colaboradores do Barão, quando da elaboração das memórias sobre
Palmas, mas a vitória separara os três. Cerqueira tornou­-se um
adversário declarado, e Magalhães, amigo, nunca mais o foi. Rio
Branco, entretanto, não poderia ser então preterido: terminada a
Questão de Palmas, começara a estudar o problema do Amapá, por
determinação do Governo, tendo colaborado nas negociações
conduzidas por Pizza em Paris; não se poderia, agora, confiar a
missão a outra pessoa, sem os conhecimentos e sem a aura
vitoriosa do Barão.

Rio Branco era partidário do arbitramento, pois achava que, por


negociações diretas, não se conseguiria uma fronteira melhor que o
Calçoene, já oferecida pelo Brasil em 1856 e recusada pela França.
Considerava a questão bem mais complexa do que a que tivemos
com a Argentina. Primeiro, por tratar­-se de um conflito com uma das
potências mundiais da época. Depois, por ter sido a posição de
Portugal, e mais tarde a do Brasil, demasiadamente mutável.
Cedeu­-se muito e chegou­-se a assinar documentos abdicando
formalmente dos limites de Utrecht. E, para remate dos males,
alguns autores brasileiros, como Ponte Ribeiro, São Leopoldo e
Baena, já tinham opinado publicamente que o “Japoc” de Utrecht
não era realmente o rio Oiapoque (um especialista de nossos dias,
Max Justo Guedes, também pensa assim).

Não ficou satisfeito Rio Branco com os termos em que foi


negociado, no Rio de Janeiro, o compromisso de arbitramento.
Achava que o Ministro Dionísio Cerqueira poderia ter conseguido
bases mais convenientes, que não permitissem aos franceses
alegar o precedente do Tratado de Amiens, nem lhes admitisse
reivindicar, pelo interior, terras até quase o atual estado de Roraima.
Talvez tivesse sido possível um compromisso melhor, mas não há
dúvida de que o objetivo básico, que era pôr em evidência o Tratado
de Utrecht, favorável ao Brasil, fora atingido: o árbitro, além de fixar
os limites no interior, deveria estabelecer os limites marítimos pelo
rio que identificasse como o “Japoc ou Vicente Pinzón” do
mencionado tratado. Poderia esse limite ser o Oiapoque, como
queria o Brasil, o Araguari, como pretendia a França, e também um
rio intermediário, mas deveria ser o rio do Tratado de Utrecht.

No fundo, como em Palmas, a questão básica era identificar


corretamente um curso d’água. A maioria dos negociadores
portugueses e brasileiros acreditava que ele fosse o Oiapoque,
embora alguns, por realismo ou fraqueza, tivessem assinado
acordos estabelecendo a fronteira por outros rios. Já os franceses,
agora fixados no Araguari, nos quase trezentos anos de
divergências, haviam escolhido, um de cada vez, quase todos os
rios que deságuam no Atlântico entre o cabo Orange e o cabo
Norte. Já haviam afirmado que o Japoc e o Vicente Pinzón eram rios
diferentes e até usaram o argumento etimológico de que “Oiapoque”
(ou Japoc) é palavra indígena que se traduz por “furo”; na linguagem
regional amazônica, qualquer rio que corra entre árvores.

Contrariamente à opinião do Itamaraty, que queria o Barão em


Berna, onde seria julgada a questão, ele preferiu ficar em Paris,
familiarizado que estava com as bibliotecas locais. Trabalhou dura e
continuamente como era seu costume: “sua capacidade de
concentração [...] era incomparável”339, diz Luís Viana Filho. Tendo o
hábito perigoso de deixar a redação para os últimos dias, na
esperança de descobrir algum novo e proveitoso documento, dormia
pouquíssimo no final do prazo de entrega de suas memórias. Nesse
período, quase baqueou, como ele mesmo diz, com humor, em carta
a Eduardo Prado: “No dia 5 fiquei fora de combate, ameaçado de
meningite, trocando as palavras quando falava ou tentava escrever
e invertendo as sílabas, como fazia o velho Brotero”340.
No dia 6 de abril de 1899, Rio Branco entregou, em Berna, a
Primeira memória do Brasil, acompanhada de dois tomos de
documentos e mais dois outros contendo a obra de Joaquim
Caetano da Silva. Oito meses depois, entregava a réplica à memória
francesa, acompanhada de abundantes mapas e documentos.
Conforme fizera nos Estados Unidos, só no último mês a redigiu, o
que lhe permitiu, aliás, incluir a “Anotação” do Padre Pfeil,
importante documento do século XVIII, na undécima hora
descoberto e claramente favorável à posição brasileira. Na questão
com a Argentina, descobrira nos últimos dias as verdadeiras
instruções de 1758, dadas aos demarcadores espanhóis; agora
localizava o documento do missionário. Era a “boa estrela” que
brilhava outra vez e que permaneceria cintilando até à morte.

O Barão acompanhou em Berna a elaboração da sentença,


com a discrição que sua posição de parte exigia, mas com todo o
interesse do mais diligente dos advogados. Desde que começou a
estudar oficialmente a questão, passou a contar com a ajuda de
Emílio Goeldi, cientista suíço, profundo conhecedor da fauna e da
flora amazônica, benemérito reorganizador do Museu Paraense, que
hoje, aliás, tem seu nome. Morando nesse período na Suíça (a
pedido de Rio Branco), Goeldi, de grande prestígio nos meios
acadêmicos de seu país, trazia preciosas indicações sobre as
opiniões dos especialistas que seguramente dariam o embasamento
técnico da sentença. Entregues as memórias, o que Rio Branco
queria evitar era a solução da “poire coupée en deux”, de que lhe havia
falado um prestigioso jornalista que lembrara que os árbitros têm
“decidida preferência pelas soluções intermediárias e só se
pronunciam por uma das partes quando verificaram que não podem
proceder de outro modo”341.

Finalmente, a 1o de dezembro de 1900, foi entregue a Rio


Branco, na sede de sua missão, a Vila Trautcheim, em Berna, a
sentença do árbitro. Rio Branco decora especialmente para o ato a
sala de visitas onde se daria a cena, não esquecendo nem o hino
nacional, nem o busto de seu pai. Em que pese uma ou outra
opinião em contrário (de Dionísio Cerqueira, por exemplo), a
sentença foi inteiramente favorável ao Brasil. Na costa atlântica, a
divisão foi fixada pelo Oiapoque − afinal reconhecido como o “Japoc
ou Vicente Pinzón” de Utrecht − e, no interior da Guiana, o limite
ficou sendo o divisor de águas, na serra de Tumucumaque. O
território atribuído ao Brasil era muito próximo das nossas
pretensões máximas e muito distante das da França (que reivin-­
dicava, diferentemente do que mostram alguns mapas da questão,
um território que ultrapassava a região do rio Trombetas). A Questão
do Amapá envolvia uma área de 500 mil km2, isto é, mais de três
vezes maior do que o atual estado do Amapá, que tem 140 mil km2.

Fazendo jus à fama da seriedade suíça, o laudo arbitral


consistia num volume de 838 páginas redigidas pelo Conselheiro
Eduardo Müller e assinado pelo Presidente do Conselho Federal
Suíço, Walter Hauser. Com a segunda vitória, Rio Branco via­-se,
agora, confirmado em sua posição de herói nacional. O “Colosso de
Rodes”, na expressão amical e brincalhona de Nabuco: um pé em
Palmas, outro no Amapá...

11.4 A Questão do Pirara (1904) (vide Mapa 13)


Ao contrário de nossas outras questões de limites levadas ao
arbitramento, os problemas com a Guiana Britânica não se iniciaram
na Colônia, mas, sim, no século XIX, no início do Segundo Reinado,
pela ação de um único homem, o geógrafo e explorador alemão,
naturalizado inglês, Robert Herman Schomburgk. Em 1835,
comissionado pela Royal Geographical Society, de Londres, entidade
privada que teve um papel importante no conhecimento de regiões
remotas da Ásia e da África, fez uma longa viagem de exploração
pelo interior da Guiana Inglesa. Até então, nem os ingleses, nem os
holandeses, antecessores daqueles na soberania sobre a atual
Guiana, manifestaram dúvidas sobre os limites com o Brasil.
Reconheciam como brasileira a região dos rios formadores do rio
Branco (o Pirara inclusive) e dos outros afluentes da margem
esquerda do Amazonas. Tal como reconhecíamos como inglesa a
região drenada pelos formadores do Essequibo e do Courantine,
rios que deságuam no Atlântico, não pertencendo, portanto, à bacia
hidrográfica do Amazonas.

Schomburgk, em sua segunda viagem à região (1837­-1838),


agora a serviço do governo inglês, encontra desarmado o posto
militar brasileiro no Pirara − região de grande beleza natural,
habitada por indígenas, com metais preciosos por perto − e muito
reduzida a guarnição do Forte São Joaquim, fundado em 1775 no
início do rio Branco (confluência dos rios Uraricuera e Tacutu), a
tradicional atalaia luso­-brasileira de nossas fronteiras. Era a época
da Cabanagem e o Pará passava por um período de imensas
dificuldades. Sob a alegação de proteger dos brasileiros
escravizadores as tribos que viviam na região − é verdade que as
tropas de resgate ainda existiam −, conseguiu Schomburgk, já
famoso na Europa como descobridor da vitória­-régia, não só que o
pastor anglicano Thomas Yond se instalasse no Pirara, mas também
que se formasse na Grã­-Bretanha um movimento apoiando a
apropriação da área. No livro que publicou em 1840, A Description of
British Guiana, passou a reivindicar para a Guiana a fronteira pela
Serra do Acaraí, no sul, e pelos rios Tacutu e Cotingo, a leste: a
chamada “Schomburgk Line”. Pequenas escaramuças na área e certa
mobilização da opinião pública inglesa para os aspectos
humanitários da questão... e estava, na prática, caracterizado o
conflito de fronteira.

Em 1842, ambos os Governos resolvem neutralizar a zona em


litígio, mas o fazem de forma prejudicial ao Brasil: não só a área do
Pirara era considerada litigiosa, mas também a dos rios Cotingo,
Maú e Tacutu, todos formadores do rio Branco. A partir dessa data,
foram feitas várias tentativas de acordo entre as partes, chegando a
haver propostas britânicas que o futuro revelou serem mais
favoráveis do que o laudo arbitral posteriormente pronunciado. Em
1898, Lord Salisbury, Primeiro­-Ministro e Ministro das Relações
Exteriores britânico, propôs uma fronteira natural, que deixava cada
país com praticamente metade da área contestada: não foi aceita
porque o Governo brasileiro achava então que tinha mais títulos de
posse que a Grã­-Bretanha. As últimas tentativas foram feitas por
intermédio de Souza Correia, Ministro do Brasil em Londres, entre
1890 e 1900.

Para serem aproveitadas nessas negociações diretas, havia


publicado o Barão do Rio Branco, em 1897, isto é, durante o tempo
em que já estudava a Questão do Amapá, uma memória sobre o
conflito com a Guiana Britânica. Nessa questão, sua
responsabilidade foi, entretanto, muito menor: apenas redigiu o
estudo como um consultor técnico do negociador brasileiro. De
qualquer forma, como nas que fizera para a Questão de Palmas e
faria para a Questão do Amapá,

o que impressiona, à primeira leitura [da memória sobre o Pirara] não são as
inúmeras citações de vetustos papéis desentranhados de bibliotecas e arquivos,
nem as páginas crespas de erudição, nem os veneráveis textos diplomáticos
trazidos à colação, nem mesmo a monumental documentação cartográfica que as
acompanha, mas a escrupulosa interpretação dos documentos, o bom gosto da
exposição, toda uma série de qualidades de clareza, harmonia, elegância e ordem
que se acreditaria incompatíveis com a austeridade de redação de arrazoados
concernentes a questões de fronteiras342.

Mas também nessa ocasião não foi possível chegar­-se a um


acordo, segundo os autores brasileiros, pela intransigência do
Ministro das Colônias, o imperialista Joseph Chamberlain.

Para sair do impasse, a Grã­-Bretanha e o Brasil decidiram pelo


arbitramento, entregando a questão ao Rei da Itália, Vítor Emanuel
III. Joaquim Nabuco, em 1899, foi designado como o advogado do
Brasil e, meses depois, com a morte de Souza Correia, acumulou
esse cargo com o de Ministro Plenipotenciário junto ao Reino Unido.
Ao elaborar sua memória, muito se aproveitou do trabalho anterior
de Rio Branco, conforme ele, generoso e cavalheiro como sempre,
expressamente reconhece, em vários documentos e cartas. A Rio
Branco, por exemplo, escreve: “Tenho estado a ler suas Memórias e
documentos. “Mais vous êtes un savant Monsieur”. V. faz sozinho, e
melhor, o que fazem, com imensos vencimentos, dezenas de
especialistas, geógrafos, advogados, etc. Franceses e ingleses
reunidos”343.

A defesa de Nabuco é trabalho de excepcional valor na opinião


dos entendidos, inclusive na de Rio Branco, digno do autor de Um
estadista do Império, provavelmente o melhor livro escrito sobre a vida
política do Segundo Reinado. A primeira memória, a que deu título
de O direito do Brasil, é obra até hoje básica para se estudar a
formação territorial brasileira, ao norte do rio Amazonas. Nela, expôs
a doutrina em que se baseava a defesa, centrada em dois
princípios: o do inchoate title (título nascente ou incompleto), que dá
ao possessor temporário ou intermitente direito contra terceiros; e o
do watershed (separação das vertentes), que dá ao ocupante de um
rio certos direitos sobre seus tributários não ocupados. Expondo os
fatos e os títulos da ocupação portuguesa dos rios Negro, Branco e
afluentes, demonstra que a Inglaterra não tinha nenhuma razão
válida para atravessar o Rupunini (afluente do Essequibo) e se
estabelecer na Amazônia; quanto à pequena área entre o divisor de
águas das bacias e a margem esquerda do Rupunini, justifica a
reivindicação brasileira “fundado na posse que Portugal exerceu por
mais de um século”344.

A decisão arbitral de 1904, no entanto, decepciona os


brasileiros e, obviamente, o próprio Nabuco: “Pelo prazer que você
teve” − escreve a Rio Branco − “calcule meu desprazer”345. Vítor
Emanuel dividiu o território contestado em duas partes, dando a
maior, de 19.600 km2 (60%), à Grã­-Bretanha, e a menor, de 15.500
km2 (40%), ao Brasil. A sentença, curta, de apenas duas páginas
(em contraste com as quase novecentas da do Amapá), diz que
tanto o Brasil como a Grã­-Bretanha não provaram a posse efetiva
do território disputado. Nessas condições, resolve fixar uma linha
arbitrária que corre do monte Roraima, junto à Venezuela, até a
nascente do rio Maú, desce esse rio até sua foz no Tacutu; sobe o
Tacutu até sua nascente; e daí segue pelo divisor de águas das
bacias do rio Amazonas, de um lado, e dos rios Rupununi,
Essequibo e Courantine, do outro.

Pela sentença, a Inglaterra ganhou mais do que havia proposto


anteriormente em negociações diretas e levou os limites da Guiana
aos rios Tacutu e Maú, da bacia amazônica. A área do Pirara,
origem do conflito, passou também à soberania inglesa. Autores
brasileiros costumavam dizer que a sentença abriu para a Grã­-
Bretanha as portas do Amazonas, o que parece hoje um exagero
geopolítico. Talvez na época se justificasse o temor de ter na bacia
amazônica a maior potência de então. O que procurou o árbitro,
alegando que os documentos exibidos pelas partes não constituem
títulos históricos e jurídicos suficientes, foi dividir a zona litigiosa
entre os contendores e adotar fronteiras naturais, rios e montes.
Preferiu, entretanto, aos divisores de água das bacias, o que
certamente seria mais justificável, os próprios cursos d’água. Para
defender essa preferência, foram alegadas razões secundárias, de
menores despesas e maiores facilidades de demarcação, já que os
divisores correriam por uma região de difícil acesso.

A sentença, aceita pelo Brasil sem protesto, foi criticada por


juristas de países neutros, como o francês A. G. Lapradelle que, em
1905, juntamente com N. Politis, publicou um longo artigo de cem
páginas na Revue du Droit Public e de Science Politique. Lapradelle
condena a decisão arbitral tanto pela alegação de que não podia
decidir pelo direito insuficiente das partes, quanto pelo seu
afastamento − uma vez recusada a decisão puramente jurídica − da
posição anterior de equilíbrio a que haviam chegado as partes:

ele [o árbitro] encontraria nas negociações diplomáticas outras linhas fluviais que
teriam permitido uma divisão mais igualitária, notadamente aquela que em 1898
Lord Salisbury havia proposto (16.790 km à Grã­-Bretanha, 16.410 ao Brasil) [...]
Já que a Inglaterra havia ela própria aceitado esta linha em 1898, por que, na
ausência de um direito certo, descartá­-la? E, para retornar ao princípio, não é um
dever do aimable compositeur de aproximar sua transação tanto quanto possível
da melhor entre aquelas que anteriormente foram, de modo espontâneo, aceitas
pelas partes?346

Num livro recente (2009), A Questão do Rio Pirara, José Theodoro


Menk reestuda as fontes inglesas, traz dados desconhe­cidos e dá
novas interpretações. Tira qualquer intenção imperialista do Reino
Unido e não vê a sentença como uma leviandade de um rei que
precisava agradar a grande potência da época (tese corrente por
aqui). Em Londres, o que pesou na época foi o problema da
escravidão dos índios da região do Pirara e a defesa das missões
anglicanas lá instaladas. Quanto à sentença, o árbitro aplicou −
erradamente, reconhece Menk −, para resolver um conflito
americano, diretrizes da Conferência de Berlim, de 1885, realizada
para resolver problemas coloniais africanos.

Completando as observações sobre as fronteiras do Brasil com


as Guianas, uma palavra sobre a Guiana Holandesa (hoje
Suriname). É o único trecho de nossas extensas fronteiras
amazônicas (sem falar do rio Guaporé) sobre o qual nunca houve
problema algum. Rio Branco, ao começar a elaborar sua memória
sobre o Amapá, em 1894, esforçou­-se para que o Brasil assinasse
tratados de limites com as Guianas holandesa e inglesa, o que
necessariamente limitaria as reivindicações francesas na região (as
terras entre os rios que deságuam no Atlântico e os afluentes da
margem esquerda do Amazonas). Nada conseguiu. A Holanda
preferia esperar a decisão dos conflitos com a França e a Grã­-
Bretanha.

Em 1908, exarados e executados os dois laudos arbitrais


referentes às fronteiras com a Guiana Francesa e a Guiana Inglesa
(Guiana, hoje), o Barão dá início a rápidas e simples negociações
com os Países Baixos, que levaram ao estabelecimento dos limites
pela Serra do Tumucumaque, o divisor de águas e a fronteira
tradicionalmente reconhecida por ambos países.

11.5 O Acre (1903) (vide Mapa 14)


O Barão do Rio Branco não veio para o Ministério − contra sua
vontade inicial, aliás − como um ministro qualquer. Era já respeitado
e admirado por suas duas vitórias arbitrais. E fora convidado pelo
presidente eleito, Rodrigues Alves, por ter “autoridade [...] para
propor [aos problemas externos] as melhores soluções”347.
Especificamente − pensava o Presidente − para resolver a grande
questão do momento, o Acre. E aí, acertou em cheio o Presidente,
fazendo justiça à fama que tinha de escolher bem seus
colaboradores: o historiador, o advogado do Brasil transformou­-se
num estadista, já nesse seu primeiro assunto, a mais grave questão
de fronteira que o Brasil teve em sua história.

Ao assumir a pasta das Relações Exteriores, em dezembro de


1902, a situação estava em seu ponto crítico. No atual estado do
Acre, viviam milhares de brasileiros, em sua maioria nordestinos,
que, pela segunda vez em um lustro, haviam­-se levantado em
armas contra a Bolívia, a quem pertencia toda a área, não por
velhos e imprecisos tratados coloniais, mas, sim, por um acordo
bilateral de limites, relativamente recente, de 1867. A opinião pública
brasileira era grandemente favorável aos revoltosos, agora
chefiados por um ex­-militar gaúcho, Plácido de Castro, e muitos não
compreendiam por que o Governo brasileiro não estava ao lado de
seus nacionais. A razão era simples: o governo achava − e nisso
estava correto − que o Acre era boliviano. Porto Acre (Puerto
Alonzo), onde a Bolívia pretendia estabelecer o centro administrativo
da região, tinha até um consulado brasileiro, prova contundente de
que não tínhamos dúvidas sobre a soberania boliviana. Mas os dois
países sabiam que o Brasil poderia ser levado à guerra se houvesse
enfrentamentos graves entre os revoltosos brasileiros e as tropas de
La Paz. Ideias múltiplas e contraditórias proliferavam, principalmente
no Rio de Janeiro e em Manaus, esta, passagem necessária de tudo
que ia para o Acre e do que de lá vinha.

Vamos recordar a formação das nossas fronteiras bolivianas na


região. Os tratados de Madri e de Santo Ildefonso não divergiam: a
divisa era uma reta do médio Madeira (7º39’ de latitude sul) à
origem do rio Javari, então desconhecida. Em 1867, assinamos um
acordo de limites que Rio Branco considerava favorável à Bolívia
(opinião oposta à dos historiadores bolivianos). Por ele, o ponto
inicial da reta no rio Madeira é deslocado quase três graus para o
sul: “Deste rio para oeste seguirá a fronteira por uma paralela tirada
de sua margem esquerda da latitude 10º20’ até encontrar o rio
Javari”. Pensava­-se, pois, que a nascente do Javari estivesse mais
ou menos nessa latitude e por isso fala­-se em paralela. Admitia­-se,
entretanto, que estivesse mais próxima do equador, já que esse
artigo tinha um parágrafo único que rezava: “Se o Javari tiver as
suas nascentes ao norte daquela linha leste­-oeste seguirá a
fronteira desde a mesma latitude, por uma reta, a buscar a origem
principal do Javari”.

Só depois da assinatura do tratado de 1867, é que os


seringueiros brasileiros, sobretudo cearenses que fugiam das secas
do Nordeste, foram pacificamente entrando nessas regiões dos
afluentes da margem sul do Amazonas, o Madeira, o Purus e o
Juruá, onde se encontravam as maiores concentrações da Hevea
brasiliensis. Calcula­-se que, no final do século, havia uma população
de cerca de 60 mil brasileiros trabalhando nos vários seringais, que
tinham sido pouco a pouco criados nas margem dos rios, então as
únicas vias de comunicação. Eles desconheciam onde passava a
divisa foz do Beni (no Madeira) − nascente do Javari, pois ainda não
se havia determinado onde estava exatamente esta (o que só seria
feito, em definitivo, décadas depois, em 1898, pela missão
demarcatória Cunha Gomes − o rio se originava no paralelo de 7º1’).
Praticamente não existiam bolivianos na região, o que se explica
não somente por aquele país ter uma população relativamente
pequena e concentrada no altiplano, mas também pela enorme
dificuldade de acesso dos altos andinos, onde estão La Paz, Sucre
e Potosí, à floresta amazônica.

Imediatamente após a posse, o Barão tentou comprar o


território. Já tinha, então, descartado a tese, defendida por alguns,
do arbitramento, que − pensava ele agora − nunca poderia nos dar
uma solução satisfatória: a maior parte dos brasileiros estava numa
região que seria difícil considerar “contestada” (ao sul da divisa).
Havia, ademais, uma complicação internacional: vendo as
dificuldades que tinha para administrar um território longínquo e
habitado por outros nacionais, a Bolívia havia assumido, em 1901,
um grande risco. Assinara um acordo com investidores ingleses e
norte­-americanos que dava à empresa criada por estes, o Bolivian
Syndicate of New York City, a completa administração do Acre, inclusive
com poderes de polícia. Era uma espécie de chartered company, uma
daquelas sociedades privadas cujas atuações precederam à
colonização direta de algumas regiões africanas e asiáticas pelas
potências europeias. O perigo de um neocolonialismo nas Américas
era evidente e esse fato foi usado por Rio Branco para fortalecer a
posição brasileira para com os governos e a opinião pública dos
demais países do continente.

Durante quase um ano, houve iniciativas, negociações,


discordâncias. Vamos fazer (neste parágrafo e no próximo) um
resumo factual e cronológico do que ocorreu entre janeiro e
novembro de 1903. Com a recusa da Bolívia de vender o Acre, Rio
Branco avança a ideia de uma permuta desigual de territórios, com
compensações financeiras. As tropas de Plácido de Castro tomam
Porto Acre. O Governo de La Paz prepara uma expedição militar
chefiada pelo próprio Presidente, o General Pando. Antecipando­-se
a esse ato, Governo brasileiro ocupa militarmente a região
conflagrada. Rio Branco dá uma nova interpretação do acordo de
1867, pela qual abandona a hipótese da obliqua e aceita a que julga
que a linha de limites deve correr pelo paralelo dos 10º20’. Declara,
então, litigioso todo o território ao norte desse paralelo (o Acre
setentrional). Consegue, em negociações em Londres e
Washington, que o Syndicate renuncie a seus direitos no Acre,
mediante uma indenização de 100 mil libras esterlinas. Em março,
firma­-se em La Paz um modus vivendi, isto é, um acordo provisório
que reconhecia a situação de fato no terreno e interrompia as
escaramuças (as tropas brasileiras ocupavam o norte do território e
policiavam o sul, isto é, o Acre meridional, em poder dos voluntários
de Plácido de Castro).

Afastados esses obstáculos e sem a pressão dos embates no


terreno, foi possível a retomada das negociações sobre os
fundamentos da questão. Rio Branco solicita, em julho, que o
Senador Rui Barbosa e o Embaixador Assis Brasil juntem­-se a ele
na condução das tratativas. Foram estas intensas e difíceis, mas,
após quatro meses, chegou­-se, em 17 de novembro de 1903, ao
chamado Tratado de Petrópolis. O Brasil ficaria com todo o território
do Acre (cerca de 191 mil km2). A Bolívia, por sua parte, incorporaria
uma pequena área habitada por bolivianos (de 2.300 km2); receberia
2 milhões de libras esterlinas; e se beneficiaria de três pequenos
ajustes de fronteiras, na região do rio Paraguai. Além disso,
comprometia­-se o Brasil a construir a ferrovia Madeira­-Mamoré, que
criava uma saída boliviana para o Atlântico.

A várias personalidades brasileiras, parecia que o país cedera


demais: entre outras, a Rui Barbosa, o grande nome da política e da
cultura de então, que se retirara das negociações por não concordar
com as concessões feitas. A uns poucos, como a Teixeira Mendes,
influente líder dos positivistas − grupo que era ainda poderoso −
parecia, ao contrario, que o Brasil havia espoliado um vizinho mais
fraco. O fato a ser retido é que a unanimidade que existia em torno
do Barão se desfez. Mas esse tumulto de opiniões díspares durou
poucos meses, apenas até acalmarem­-se as paixões que o assunto
provocara. Muito contribuiu para isso a notável exposição de
motivos com que explica e justifica o acordo.

Nas negociações com a Bolívia, há uma curiosidade que foi


muito discutida no passado. Era o célebre caso do Mapa da Linha
Verde, que − dizia­-se − teria sido propositalmente ignorado por Rio
Branco durante as negociações, por ser favorável à Bolívia, já que
admitia, desde o tratado de 1867, a possibilidade da linha Madeira­-
Javari ser uma oblíqua. Tratava­-se de um mapa que previa quatro
hipóteses de fronteira: a paralela, desenhada em linha verde, e mais
três linhas oblíquas, conforme a nascente ignorada do Javari fosse
colocada hipoteticamente cada vez mais ao norte. Sua existência
inviabilizaria a nova interpretação que o Barão deu, de fazer a divisa
correr pelo paralelo de 10º20’, até encontrar o meridiano da
nascente do Javari (seguiria pelos dois lados de um triangulo
retângulo, em vez de pela hipotenusa). E se dizia ainda mais. O
mapa apareceu só quando a exposição de motivos sobre o Tratado
de Petrópolis estava sendo discutida no Congresso e aí as vozes
oposicionistas predominantes eram as que achavam que se havia
cedido demais; ora, nesse momento, o mapa tornaria ainda mais
meritórias as tratativas brasileiras que desaguaram no acordo,
favorecendo sua aprovação.

A dúvida é, pois, se o Barão conhecia o mapa, colocou­-o de


lado quando era inconveniente e só o mostrou quando útil. Alguns
estudiosos da obra de Rio Branco dizem que sim. Em suas
memórias, Oliveira Lima afirma estar certo disso. Leandro Tocantins,
autor da mais completa história do Acre, também pensa dessa
forma: o Barão, tão erudito nesses assuntos, que descobrira velhas
cartas até em obscuras bibliotecas europeias, não ignoraria um
mapa que estava ali em frente, na Mapoteca do Itamaraty. Castilhos
Goicochéia, que escreveu sobre o Mapa da Linha Verde, é
peremptório: “Rio Branco não o encontrou porque não quis
encontrá­-lo”348. Seus dois principais biógrafos não são muito claros
nesse ponto: Álvaro Lins parece negar que o Barão conhecesse o
mapa (curiosamente acha que o Visconde de Cabo Frio não quis
mostrar) e Luis Viana Filho deixa dúvidas sobre o aparecimento
providencial: “Mera coincidência? Sonegação? Jamais se saberá”349.

O Barão afirma com todas as letras: não conhecia o mapa,


mencionado por vários autores e pelos seus dois antecessores na
pasta. Só depois de encaminhar a exposição ao Congresso − onde
fala que o mais antigo mapa que inclui a oblíqua é de 1870, numa
interpretação “equivocada” do espírito do tratado de 1867 − um
funcionário da Mapoteca mostrou­-o a ele. Certificou­-se, então, de
que na verdade existia o mapa com as linhas oblíquas: fora feito sob
a orientação de Duarte da Ponte Ribeiro e usado durante as
negociações de 1867. O Barão de imediato escreveu ao Deputado
Gastão da Cunha, relator do tratado no Congresso, uma carta onde
retifica declarações da exposição de motivos e pormenoriza as
circunstâncias da redescoberta do mapa.

Comentemos. Já antes de assumir seu posto de Chanceler, Rio


Branco havia escrito pelo menos uma carta pessoal (a Hilário de
Gouvêa) em que acha que se poderia perfeitamente desprezar a
hipótese da oblíqua e dar outra interpretação ao tratado de 1867 (a
que realmente deu); não diria isso se soubesse da existência do
Mapa da Linha Verde. Na correspondência oficial ao Congresso,
além de sua palavra, nomeia o funcionário da Mapoteca que lhe
mostrou o mapa. Pelo que se conhece da personalidade do Barão,
seria muito difícil admitir que faltasse à verdade; e ainda por escrito,
e com testemunhas... A favor dessa opinião, invoque­-se o
testemunho do Deputado Gastão da Cunha, que em suas memórias
não tem dúvidas de que Rio Branco ignorava a existência do famoso
mapa.

Na realidade, essa discussão, se ele sabia ou não do mapa,


não foi fundamental nas negociações de Petrópolis, pois ele não
tinha “nenhum valor probante [...] só encerrava hipóteses nas suas
linhas imprecisas”350. Se soubesse, não usaria a interpretação da
fronteira seguir pelos dois lados do triângulo retângulo, em vez de
pela hipotenusa. A estrutura do tratado teria de ser a mesma: o
fundamental em qualquer acordo era que ficassem brasileiras as
terras ocupadas por brasileiros. Há ainda outro ponto: se Rio Branco
conhecesse o mapa e omitisse o fato (nós não acreditamos nisso),
quem poderia acusá­-lo de alguma coisa? Qual negociador seria
atacado por não apresentar um documento desfavorável à posição
defendida?

Vamos ver agora a visão boliviana das negociações de


fronteira. Já tínhamos visto que o acordo de 1867 é considerado
como um desmembramento territorial. Sobre o Tratado de
Petrópolis, as opiniões não são mais edificantes... Citemos um
conhecido historiador (que foi um dos negociadores dos Acordos de
Roboré):

La pacificación no fué del agrado del Gobierno brasileño, el que alentó una segunda
rebelión encabezada, esta vez, por Plácido de Castro, en agosto de 1902. Entonces
el Brasil actuó desembozadamente enviando 8.000 soldados al Acre, rompió
relaciones diplomáticas con Bolivia, clausuró el tránsito del rio Amazonas y exigió
la rescisión del contrato con The Bolivian Syndicate [...] Inútiles resultaron las
propuesta del Gobierno boliviano − el Ejército brasileño se apoderó de las
localidades bolivianas y de Puerto Alonso [Porto Acre] el 2 de abril de 1903. A fin
de evitar la agravación del conflicto armado, Bolivia se vió obligada a suscribir
primero un Modus Vivendi y luego el Tratado de Petrópolis, de 17 de noviembre de
1903, por el cual resultó cediendo al Brasil todo aquel extenso y rico territorio, a
cambio de dos milliones esterlinas y de la construcción del ferrocarril desde el
puerto de San Antonio sobre el Madera, hasta Guyaramerín en el Mamoré [...]351.

Um especialista em fronteiras conclui suas observações sobre o


tratado com uma frase dura: “Es la más grande extorción cometida en
América”352. Os autores citados não são considerados na Bolívia
radicais e suas opiniões não são tão diferentes de outras que por lá
circulam...

Teriam razão? O que podemos dizer é que são opiniões de


estudiosos que amam seu país e se amarguram com as perdas
territoriais sofridas. Todos os países do nosso continente têm
motivos − alguns, mais justificados, outros, menos − de queixas. A
Bolívia seguramente é o país que mais perdeu: o litoral para o Chile,
na Guerra do Pacífico (1870­-1876), o Acre para o Brasil pelo
Tratado de Petrópolis (1903), parte do território do chaco para o
Paraguai na Guerra do Chaco (1933­-1935). Comentemos mais.
Antes de tudo, é preciso frisar que uma coisa é perder terras,
tragicamente, numa guerra; outra, bem diferente, cedê­-las, com
compensações, em negociações diplomáticas. Depois, constatemos
que, se o Brasil fosse um país sem restrições éticas − e disso não
faltam exemplos, inclusive nas Américas −, o Acre provavelmente
teria uma história bem próxima daquela do Texas: os revoltosos,
com nossa ajuda, ficariam independentes e, passado algum tempo,
pediriam sua anexação ao Brasil. Rio Branco é claro sobre o que
seria isto: “[...] uma conquista disfarçada, que nos levaria a ter
procedimento em contraste com a lealdade que o Governo brasileiro
nunca deixou de guardar no seu trato com todas as outras
nações”353.

O certo é o seguinte: muito bom conhecer e respeitar a história


dos outros, inclusive para compreender suas atitudes presentes;
melhor ainda é saber bem a nossa e poder dizer − como podemos −
que não temos nada a esconder e nada de que nos envergonhar.
Sempre defendemos bem nossos interesses, é verdade; mas nunca
perdemos um padrão digno de negociação e jamais quisemos
prejudicar um vizinho.

11.6 O tratado de 1904 com o Equador e o de 1907 com a Colômbia (vide


Mapa 15)
Os tratados de limites com o Equador e a Colômbia não
apresentaram as dificuldades de outros: o da Bolívia, já visto, e os
do Peru e do Uruguai, que ainda veremos. As exposições de
motivos sobre eles têm cada uma cinco páginas, o que contrasta
com as outras três, mais complicadas, com 28 páginas (Bolívia), 37
páginas (Peru) e 36 páginas (Uruguai). Como se referem à mesma
área geográfica, vamos tratar de ambos acordos conjuntamente.

A fronteira noroeste do Brasil, do rio Solimões ao rio Negro, por


razões práticas, pode ser dividida em três trechos: 1o) do Solimões
(Tabatinga) ao Japurá (foz do Apapóris); 2o) deste à nascente do rio
Memáchi; 3o) desta ao Negro (ilha de São José do Cucuí). A linha
de limites, muito irregular no segundo e terceiro trechos (conhecidos
em conjunto como “cabeça do cachorro”), era disputada no sul (1o
trecho), com o Peru, o Equador e a Colômbia; no centro (2o trecho),
apenas com a Colômbia; e, no norte (3o trecho), com esse último
país e a Venezuela. Com o Peru, o Brasil definira a geodésica
Tabatinga­-foz do Apapóris, em 1851 (1o trecho). Tentara, em
seguida, com a Colômbia (2o trecho) e a Venezuela (3o trecho)
igualmente assinar tratados de limite. Com ambos os países foram
negociados acordos, em 1853, os quais, por razões políticas
internas de cada um deles, não entraram, entretanto, em vigor. Mais
tarde, ainda durante o Império, houve novas tentativas de acordo
com a Colômbia, que também não tiveram resultado. Com a
Venezuela, sim, o Brasil assinou o tratado de limites de 1859,
definindo a fronteira no trecho norte (o 3º).

Em 7 de maio de 1904, o Barão do Rio Branco negocia com o


plenipotenciário equatoriano no Rio de janeiro um acordo que
reconhecia como limite de ambos os países a mesma linha do
tratado de 1851, com o Peru (Tabatinga­-Apapóris), no caso de se
concluir favoravelmente ao Equador o conflito fronteiriço que o país
mantinha com o Peru. O conflito, resolvido pelo Protocolo do Rio de
Janeiro, de 1942, teve solução considerada inexequível pelo
Equador, em 1951; mas, finalmente, com participação decisiva da
diplomacia brasileira, os dois países chegaram a um acordo, em
Brasília, em 1998. O que importa aqui é que o Equador não ficou
lindeiro do Brasil, como desejava. O acordo, portanto, perdeu sua
razão de ser.

Em 1907, chegando às negociações com a Colômbia a bom


termo, Rio Branco dá instruções a Eneas Martins, Chefe da Missão
Especial em Bogotá, para concluir o tratado de limites. Foi o último
país amazônico a aceitar um acordo baseado no uti possidetis, dado
seu tradicional apego ao tratado de 1777. O representante brasileiro
passa nota informando o Ministério das Relações Exteriores da
Colômbia de que estava habilitado a

cerrar inmediatamente la parte comprendida entre la Piedra del Cocuhí y la


confluencia del Apaporis y el Yapurá, dejando para ser discutidas y resueltas en
tiempo oportuno la parte comprendida entre el Apaporis y Tabatinga, en caso de
ser reconocida Colombia como propietaria de estos terreno, una vez resueltos sus
pleitos con el Perú y el Ecuador354.
O acordo foi assinado em 24 de abril, limitando, pois, a 2a e a 3a
das três seções da fronteira. Os limites da 1a seção (a linha
Tabatinga­-Apapóris) não puderam ser estabelecidos pelo tratado,
porque a Colômbia preferia que fosse solucionada antes sua
pendência com o Peru. A linha de limites então acordada
reproduzia, com as precisões trazidas pelo melhor conhecimento da
região e algumas concessões mútuas aconselhadas pelo uti
possidetis, a mesma que havíamos negociado em 1853. A 3a seção já
havia sido limitada pelo tratado de 1859, com a Venezuela; com a
decisão arbitral de 1891, a região passou à soberania da Colômbia,
que, pelo presente acordo, aceitava os limites de 1859.

O embaixador Araújo Jorge, colaborador de Rio Branco, assim


concluiu suas observações sobre o tratado de 1907, com a
Colômbia:

Este ato internacional, sem a transcendência dos celebrados com a Bolívia e com o
Peru, tem um significado especial na história das lindes territoriais na América do
Sul: o de haver fixado uma linha de limites através de territórios disputados por
quatro nações diferentes: Venezuela, Colômbia, Equador e Peru355.

Na exposição de motivos sobre o tratado, Rio Branco


manifestava a esperança de que, caso a Colômbia viesse a ter a
soberania sobre as terras contíguas à linha Tabatinga­-Apapóris (1o
trecho), esse limite fosse adotado. Ambas as situações ocorreram.
Em 1922, o Peru assinou um tratado em que cedia à Colômbia as
terras contíguas à linha de limites com o Brasil − o chamado
“trapézio de Letícia”. Por esse acordo (hoje geralmente considerado
no Peru como lesivo aos seus interesses), a Colômbia passou,
portanto, a ser ribeirinha do Amazonas; e, em 1928, esse país
aceitou como fronteira a geodésica Tabatinga­-Apapóris, isto é, o
limite brasileiro­-peruano de 1851.

Embora extravase o período do Barão, é interessante dar a


opinião de Francisco Andrade S., autor de conhecida obra sobre as
fronteiras da Colômbia, acerca do acordo de 1928, com o Brasil, por
ser um resumo de negociações passadas e não esconder
insatisfação pelos resultados obtidos:

Las anteriores afirmaciones [de que a linha Tabatinga­-Apapóris dava ao Brasil


territórios colombianos] son inatacables, pero con ellas no se quiso significar que el
tratado de 1928 haya sido un fracaso para Colombia. No lo fué, naturalmente,
teniendo en cuenta las condiciones desfavorables en que nos hallábamos. A estas
circunstancias llegamos por errores y descuidos de muy vieja data, como se ha
podido ver a lo largo del desarrollo de este estudio. España arrancó de la bula inter
caetera de Alejandro VI; retrocedió 270 leguas hacia el poniente en Tordesillas,
línea que sostuvo hasta la terminación de los Áutrias. Durante la unión de las dos
monarquías, imprudentemente, se adjudicó a Bento Maciel Parente la capitanía de
Cabo Norte, entre el Oyapoc y el Amazonas... por el tratado de Utrecht España
devuelve a Portugal en 1713 la colonia de Sacramento, fijando Portugal con esta
maniobra, puntos de posesión al occidente de Tordesillas, anulando completamente
este meridiano, labor completada por sus constantes avances en el río Negro y en el
Blanco, acompañados por el desalojamiento de los misioneros jesuitas del
Amazonas, todo como ya lo vimos atrás. Estas maniobras, muy apoyadas por la
labor diplomática portuguesa, llevaron al segundo Borbón de España a trazar su
lindero por la boca del Yavarí [Tratado de Madri, 1750]. El último paso ya nos tocó
a nosotros; los dimos de la línea Yavarí­-Amazonas [...] a la geodésica Tabatinga­-
Apaporis. Ellos heredaron de Portugal la habilidad, nosotros de España la
despreocupación356.

11.7 O tratado de 1909 com o Peru (vide Mapa 14)


Na República, nosso maior problema de limites na Amazônia,
pela extensão do território envolvido, foi com o Peru, e não com a
Bolívia, como se poderia pensar pela gravidade que chegou a
assumir a questão acreana. O Peru reivindicava no começo do
século XX um território imenso, de 442 mil km2, que incluía não
apenas o Acre, com seus 191 mil km2, mas também uma imensa
área contígua, todo o sul do estado do Amazonas.

Relembremos a origem do conflito. Pelo Tratado de Santo


Ildefonso, a divisa na região focalizada era a já referida linha que
une o ponto médio do Madeira à nascente do Javari; em seguida, o
rio Javari até foz no Solimões; depois, este rio até a boca do Japurá;
e, finalmente, o rio Japurá. O Tratado de Limites de 1851 confirmava
a divisa do rio Javari, mas introduzia a geodésica Tabatinga­-foz do
Apapóris, transferindo, portanto, à soberania brasileira o ângulo de
terras limitado pelos rios Solimões e Japurá.

Nada provia o tratado sobre a região, até então inexplorada, do


Acre, situada ao sul da linha Madeira­-Javari. Em 1867, acordamos
com a Bolívia a geodésica que ia da foz do Beni à nascente do
Javari. O Peru protestou contra a assinatura desse acordo. Em
1903, resolvendo de vez nossos problemas fronteiriços com a
Bolívia, assinamos o Tratado de Petrópolis, pelo qual o Acre, região
ao sul dessa linha, passou a ser território brasileiro. De novo
protestou o Peru.

O que reivindicava essa república, com mais precisão a partir


da obra Geografía del Perú, de Paz Soldán, publicada em 1863, era
toda a área situada ao sul da reta nascente do Javari − média
distância do Madeira, do tratado de 1777. Como a reivindicação
incluía o Acre, também por esse motivo foi o Tratado de Petrópolis
atacado no Brasil: incorporando­-o, teríamos implicitamente
comprado parte do conflito de limites entre o Peru e a Bolívia.

Em 1904, agravaram­-se as escaramuças entre caucheros peru-­


anos e seringueiros brasileiros nas regiões do alto Juruá e do alto
Purus, incluídas no recém­-adquirido território. Não era a primeira
vez que ocorriam conflitos entre os entalhadores de seringueiras
brasileiros, que subiam pelos rios formadores do Purus e do Juruá,
e os derrubadores de caucho (para se extrair o látex dessa espécie,
a Castilla elastica, é necessário derrubar a árvore), que passavam do
vale do Ucayali aos tributários do Purus e do Juruá. No auge da
crise, o Barão do Rio Branco negocia a neutralização de ambas as
áreas, os territórios do Breu e do Cataio (respectivamente no alto
Juruá e no alto Purus), e concorda, conforme à doutrina tradicional
brasileira, que duas comissões mistas fossem a essas remotíssimas
regiões para verificar quem delas tinha posse.

O chefe de uma das comissões que no ano seguinte visitam as


áreas conflitadas bem merece breve comentário. Era Euclides da
Cunha, já então famoso pela publicação, em 1902, de Os sertões. O
escritor procurou essa árdua missão impelido por sua sede de mato,
como explicou em carta a um amigo: “não desejo a Europa, o
boulevard, os brilhos de uma posição, desejo o sertão, a picada
malgradada e a vida afanosa e triste de pioneiro”357. A Amazônia
seria seu assunto predileto até a morte, que não estava distante: do
sertão árido do Nordeste passava ao sertão húmido do Norte. Já
havia lido boa parte da bibliografia sobre a região e queria fertilizar
seu conhecimento teórico com a vivência local para escrever um
livro que, pretendia, fosse o pendant de seu livro sobre Canudos.
Não queria morrer como o autor de uma só grande obra; mas não
conseguiu realizar seu intento, embora tenha escrito talvez as mais
antológicas páginas sobre a Amazônia, primeiro publicadas em
artigos de jornais e, depois, reunidas em Contrastes e confrontos e em
seu livro póstumo À margem da história.

Relacionando­-se com sua missão, publicou, em 1905, um


erudito estudo sobre o conflito de fronteiras aí existente, Peru versus
Bolívia, no qual toma partido, como era seu costume, adotando a
posição boliviana. A divergência foi arbitrada pelo Presidente da
Argentina, em 1909, de maneira diversa, aliás, da propugnada por
Euclides: o árbitro preferiu dividir a região, o que provocou grande
descontentamento na Bolívia. Meses mais tarde, entretanto, o Peru
e a Bolívia chegaram a um acordo que mantinha em grande parte a
decisão do árbitro, apenas retificando a linha divisória, de modo um
pouco mais favorável a La Paz, no trecho da fronteira que tocava o
Acre.

Só após o arbitramento, procurou Rio Branco resolver as


dúvidas entre o Brasil e o Peru. Nesse mesmo ano, com o
Chanceler peruano Hernán Velarde, assina no Rio de Janeiro, em
12 de julho, o tratado que completava afinal a linha de nossos
limites amazônicos. Ambas as zonas neutralizadas (39 mil km2)
passavam à soberania peruana, já que se verificou serem os
nacionais desse país que ocupavam as nascentes do Juruá e do
Purus. Dessa forma, o Acre diminuía seu território de 191 mil km2
para 152 mil km2, mas, em compensação, o Peru desistia de sua
persistente e sempre incômoda reivindicação, baseada no Tratado
de 1777, sobre os restantes 403 mil km2 da área contestada.
Parecia que o Brasil ganhava muito, mas na verdade era o Peru que
reivindicara excessivamente, como bem explica Rio Branco:

O confronto da enorme vastidão em litígio com pequena superfície dos únicos


trechos que passarão a ficar por nós reconhecidos como peruano [...] pode deixar a
impressão de que, pelo presente tratado, o governo brasileiro se reservou a parte do
leão. Nada seria menos verdadeiro ou mais injusto. Ratificando a solução que este
tratado encerra, o Brasil dará mais uma prova do seu espírito de conciliação,
porquanto ele desiste de algumas terras que poderia defender com bons
fundamentos em direito358.

Como exemplo da argumentação imbatível de Rio Branco,


transcrevamos um parágrafo da posição brasileira nas negociações
(retomado na posterior exposição de motivos), no qual põe a nu um
erro geográfico do Peru, que contribuiu para o excesso de sua
reivindicação:

A linha do Tratado de 1777, nos mapas oficiais peruanos, segue erradamente o


paralelo 6º52’15”. A verdadeira é a do paralelo de 7º38’45”, como indica o mapa de
Euclides da Cunha, porque esse limite provisório devia partir, na direção do oeste,
de um ponto no Madeira situado a igual distância do rio Amazonas e da boca do
Mamoré (Artigo 21). E o mesmo Tratado explica (Artigos 20 e 21), que o rio
Madeira é formado pela junção do Mamoré e do Guaporé: (“Baixará a linha pelas
águas d’esses rios Guaporé e Mamoré, já unidos com o nome de Madeira [...]”); de
sorte que naquele tempo o nome de Mamoré não era ainda dada à seção
compreendida entre a boca do Guaporé e do Beni359.
Todas as exposições de motivos de Rio Branco são
documentos valiosos, tanto pelas razões e provas apresentadas,
quanto pelo estilo descomplicado em que são vazadas. A relativa ao
Peru é a mais trabalhada e a mais longa: sua obra­-prima, diz Álvaro
Lins. Dir­-se­-ia que, por referir­-se ao tratado que fechou a linha de
limites do Brasil (lembrando que o ajuste posterior com o Uruguai,
sobre a lagoa Mirim, é uma pequena modificação de acordo
anterior), quis também amarrar o pacote dos argumentos com que
negociou, com tanto sucesso, todas as questões de fronteira.
Finalmente se enterrava definitivamente o Tratado de Santo
Ildefonso, e o Brasil se tornava o primeiro país sul­-americano a ter
seus limites reconhecidos por solenes e incontroversos tratados
bilaterais.

11.8 O tratado de 1909 com o Uruguai


Ao apresentar ao Congresso esse pequeno tratado que retifica
nossos limites na Lagoa Mirim e no rio Jaguarão − oferecemos
espontaneamente a linha média −, Rio Branco aproveita para fazer
um estudo da formação da fronteira sul, que, por já termos dele
utilizado, quando vimos o acordo de 1851, não retomaremos aqui.
Bastam agora poucas palavras.

O tratado sobre a lagoa Mirim é visto no Brasil como um ato de


generosidade do Barão. Vejamos. Os tempos eram outros: o
Uruguai tinha evoluído de uma forma notável, era agora considerado
a Suíça da América Latina. Acabaram­-se os tempos de violentas
disputas entre os dois tradicionais partidos, às vezes verdadeiras
guerras civis; como eram, então, fortes as conexões com os países
vizinhos, não era raro que estas se transformassem em questões
internacionais. Lembre­-se que a Guerra do Paraguai começou em
1864, quando Francisco Solano Lopez atacou o Brasil alegando que
havíamos invadido o Uruguai para derrubar o Governo blanco de seu
aliado Atanásio Aguirre. Agora, nessa nova conjuntura uruguaia, Rio
Branco percebeu que estava na hora de equilibrar o Tratado de
1851, propondo ao nosso vizinho o condomínio sobre a lagoa Mirim
e o rio Jaguarão.

Os autores uruguaios reconhecem o valor da iniciativa, mas


mencionam também uma circunstância regional: a Argentina
pretendia o domínio total da boca do Prata (esse fato não é
mencionado em livros brasileiros). Citemos um deles:

La acción de noble justicia que tuvo el valor de realizar Rio Branco [...] en 1909, en
momentos en que el Canciller argentino Zeballos proclama su tesis de “la costa
seca”, o en otras palabras, que la Argentina poseía soberanía sobre la totalidad del
Río de la Plata [...] Por iniciativa del Barón de Río Branco, el gobierno brasileño
cedió al Uruguay no sólo los derechos a navegar esas aguas [da lagoa Mirim e do rio
Jaguarão], sino la plena soberanía de una porción equitativa de las mismas, que
fueron divididas a través del criterio de la línea media, o el del thalweg, o por una
línea quebrada convencional, según los casos360.

Afinal, foi um gesto generoso de Rio Branco? Corajoso, sem


dúvida: quem propôs a modificação foi o Brasil, não o Uruguai, e um
chanceler que não tivesse seu prestígio não executaria um ato que,
bem ou mal, representava uma perda territorial. Já a generosidade
do Chanceler precisaria ser matizada com o interesse brasileiro em
não continuar com o regime da costa seca: era anacrônico e poderia
dar ideias à Argentina...

Esse foi nosso último acordo de fronteiras. Coincidentemente


começamos com o Uruguai, em 12 de outubro de 1851, e com ele
terminamos, em 30 de outubro de 1909. O que poderia haver no
futuro − como na verdade houve − eram pequenas correções, ou
modificações, quer nos tratados, quer nas demarcações. Dois
exemplos de fatos comuns: descobrir, com as precisas técnicas
contemporâneas de localização de um ponto no espaço, que um
marco antigo está colocado em lugar errado; verificar a mudança
espontânea da linha das maiores profundidades (talvegue) de um
rio­-divisa, o que pode trocar indevidamente a soberania de alguma
ilha.
Completemos este capítulo reforçando algumas observações
sobre a obra de Rio Branco. As defesas arbitrais e as exposições de
motivos em que justifica os acordos de limites assinados são bem
pensadas e bem escritas: não há palavras inabituais nem jargão
técnico. Historiam a questão, tornam inteligíveis as negociações,
explicam o texto acordado. Os livros brasileiros que tratam de
questões de fronteira o que fazem é repetir, resumir ou glosar o que
o Barão redigiu.

Ele é o homem que faz e escreve a história. Não omitindo fatos


relevantes e dando deles uma interpretação perfeitamente
defensável, sem dúvida escreveu um relato de valor. Não há no
Brasil outra versão das nossas questões fronteiriças. Para
encontrá­-la, é necessário ir aos livros de países vizinhos e disso
demos uma ideia. Os fatos indicados são quase sempre os
mesmos, mas as interpretações, frequentemente diferentes, em
alguns casos opostas.

O Barão do Rio Branco é das poucas unanimidades nacionais.


Não há quem não elogie seus trabalhos. Até nos países vizinhos,
naturais adversários, há manifestações de respeito e de admiração.
Um só exemplo, mas muito valioso, pois é da lavra do intelectual e
político que é considerado seu maior rival no continente, Estanislao
Zeballos: “Si el Brasil consolida la obra territorial de Rio Branco, le deberá el
título de su primer servidor y del más grande de los benefactores de su amor
proprio nacional y de su mapa”361.

Um ponto, agora, não sobre a eficiência, geralmente


reconhecida, mas sobre a correção da política de limites praticada
nos primeiros vinte anos da República, a época em que liquidamos
todas as questões remanescentes. Para bem avaliá­-la, é preciso
levar em consideração a personalidade do Barão, o agente
fundamental dessa política. Não que ele fosse um “idealista” em
relações exteriores − sabia bem que os países põem os objetivos
nacionais acima de tudo −, mas, sim, que seus parâmetros éticos
eram bem delineados. Usava frases como “fica bem ao Brasil e é
uma ação digna do povo brasileiro”362, e elas, em sua boca, faziam
sentido.

Digamos mais. Embora Rio Branco fosse um historiador fiel aos


fatos, era ele quem os escolhia e não esquecia nunca, ao
interpretá­-los, dos interesses do seu país. Sempre foi, ademais, um
hábil expositor e um respeitável negociador. Tudo isso é verdade.
Mas o que queremos destacar aqui é que ele considerava as boas
relações continentais uma prioridade de nossa política externa,
desejava sinceramente o progresso das nações da América do Sul e
jamais admitiria que o Brasil esbulhasse um país limítrofe.
Conclusão
Uma história que deu certo (vide Mapa 16)

Nos últimos cem anos (a partir da morte de Rio Branco, em


1912, para fixar uma data), não houve país do continente que não
se tivesse envolvido em algum problema sério de fronteiras. Com
uma exceção, o Brasil363. Com território de 8,5 milhões de km2,
praticamente a metade da América do Sul, e fronteiras terrestres de
15.719 km, não disputou limites com nenhum de seus vizinhos. Por
que se chegou a essa situação tão favorável?

Olhando de relance o passado de cinco séculos, pode­-se


afirmar que sempre houve soluções satisfatórias para os conflitos
territoriais que se foram constituindo com o correr do tempo.
Tordesilhas, antes da descoberta do Brasil, Madri e mesmo Santo
Ildefonso, na Colônia, os tratados de limites do Império e os
arbitramentos e os acordos da época do Barão são marcos miliares
de uma jornada exitosa.

O uti possidetis, o princípio básico das negociações dos tratados


coloniais, continuou a ser muito valioso para a diplomacia do Brasil
independente. Com a doutrina estruturada em torno dele e da
validade apenas supletiva do Tratado de Santo Ildefonso e,
ademais, com a prática homogênea e continua de um grupo de
diplomatas de relevo (cujos atos eram supervisionados pelo
Conselho de Estado e acompanhados pessoalmente por D. Pedro
II), conseguiu o Império assinar bons acordos de fronteiras. Na
República, essa tradição foi renovada, e o Barão do Rio Branco,
Chanceler de 1902 a 1912, é o nome tutelar que a história vinculou
ao fechamento definitivo da longa linha que separa o Brasil de dez
Estados (só não se limita com o Chile e o Equador).

As coisas não se passaram assim com nossos vizinhos. Todos,


sem exceção, uns mais outros menos, julgam­-se prejudicados por
ajustes de fronteiras que pactuaram quer entre si, quer com o Brasil.
A sensação de perda vem de longe, de Tordesilhas, que, diz um
especialista colombiano, “inicia la serie no interrumpida de éxitos de la
habilidad portuguesa contra el quijotismo español”364; mas, acentua­-se com
a assinatura do Tratado de Madri, quando, na linguagem forte de um
historiador paraguaio, “triunfo la astucia portuguesa sobre la torpeza y
venalidad de los diplomáticos españoles”365.

Após a independência, as novas nações hispano­-americanas


eram frequentemente abaladas por agitações políticas graves, que
po­diam provocar bruscas inflexões diplomáticas, o que contrastava
com nossa estabilidade nesse campo. Alguns conflitos de fronteira
entre elas eram, além disso, mais graves do que os existentes com
o Brasil, o que as fazia apresentarem­-se desunidas nas
negociações. Seus livros de história trazem textos que expressam
frustração por territórios perdidos e mapas que pretendem
testemunhar amputações sofridas. Nada disso acontece no Brasil.
Quanto à formação do território, temos uma história de sucessos.

Um último assunto. Alguns diplomatas brasileiros evitam tratar


publicamente dos problemas de fronteira: poderiam abrir antigas
feridas... Não parece que seja bem assim. Em primeiro lugar, as
feridas estão até exageradamente expostas nos livros de História
Diplomática; a omissão, ademais, poderia ser considerada tentativa
de evitar um tema constrangedor, o que não é o caso. Nossos
procedimentos foram, sempre, tão bons como os melhores da
época, e a história que hoje os relata (basicamente escrita pelo
Barão) nada deve, em equilíbrio e qualidade, às de nenhum outro
país.

E um ponto final. Ao se construir o Palácio do Itamaraty em


Brasília, resolveu­-se homenagear três diplomatas, colocando seus
bustos na Sala dos Tratados. A especialidade deles era a mesma,
fronteiras, o tema básico de nossa política externa até a primeira
década do século passado. De um lado, Alexandre de Gusmão e
Ponte Ribeiro; do outro, isolado, Rio Branco. Estão lá como
exemplos de estadistas que, com profundo conhecimento da
questão tratada, notável habilidade negociadora e ampla visão
política, muito contribuíram para que, no “grande sertão” da história,
fossem encontradas as melhores “veredas”366.
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APÊNDICE
Mapas
Mapa 1. Geografia real e imaginária
Se se prolongasse a rota da viagem descobridora de Colombo num globo de
sua época, ela tocaria em Cipango (o Japão). Colombo morreu pensando
que chegara no “mar das Índias”: chamou os habitantes das Antilhas de
“índios” e procurou em vão, nesta viagem e nas três seguintes, aportar em
Cataio (a China).
Mapa 2. Divisões do “mar oceano”
Os tratados de Alcáçovas (1479) e Tordesilhas (1494) dividiam áreas de
influência no Atlântico, o “mar oceano” dos europeus de então. O Pacífico,
“o mar do sul”, só ficou bem conhecido depois da viagem de circum­-
navegação de Fernão de Magalhães (1516­-1521). Pelo Tratado de Saragoça
(1529), portugueses e espanhóis concor­daram em estender o meridiano de
Tordesilhas ao outro lado do mundo (onde estavam as Molucas e as
Filipinas).
Mapa 3. Viagens de Vespúcio
Na opinião influente de Alberto Magnaghi, Vespúcio fez apenas duas
viagens: com Alonso de Ojeda, em 1499, e com os portugueses (Gonçalo
Coelho, possivelmente), em 1501. Nesta última – na ida informou­-se em
Bezeguiche (Dacar) com tripulantes da frota de Cabral, que voltava da
Índia – teve a certeza de que se estava descobrindo um mundus novus,
como é conhecida a carta em que fala das terras e das gentes da costa leste
do Brasil.
Mapa 4. Viagens portuguesas
A frota de Vasco da Gama, ao dar a “volta do mar” para evitar as calmarias
do golfo da Guiné, passou perto do Brasil. Álvaro Velho, o cronista da
expedição, anota que no dia 22 de agosto de 1497 foram vistas “muitas
aves”, as quais, quando chegou a noite, voaram rigidamente para sudoeste
“como aves que iam para Terra”. Cabral, no dia 22 de abril de 1500,
também viu umas aves a que os mareantes “chamam de fura­-buchos”, diz
Caminha; nesse mesmo dia, avistou “um grande monte” (o monte Pascoal)
e muita “terra chã” (o litoral de Porto Seguro, na Bahia).
Mapa 5. Algumas bandeiras
Em diferentes épocas, no começo mais à preia de índios, no fim mais à
procura de metais preciosos, muitas bandeiras incursio­naram em áreas
extra­-Tordesilhas. As reduções jesuíticas eram particularmente atraentes
pela mão de obra concentrada e adestrada que possuíam e por isso foram
atacadas já nas primeiras décadas do século XVII; os três grandes centros
auríferos do Brasil, Minas (1693), Mato Grosso (1718) e Goiás (1725),
foram o resultado tardio de uma busca de séculos.
Mapa 6. A ilha Brasil na carta de João Teixeira Albernaz (1640)
Em vários mapas antigos, primeiro portugueses depois de outras
nacionalidades, o território brasileiro é apresentado como uma ilha, com
fronteiras fluviais a oeste. Jaime Cortesão atribui à Coroa lusitana uma
política premeditada de ocupação da ilha Brasil.
Mapa 7. A rota das monções cuiabanas
Os comboios fluviais levavam cinco meses para ir de Araritaguaba (Porto
Feliz) a Cuiabá. Daí, atravessando a pé o “mato­-grosso do Rio Jauru”,
chegava­-se ao Rio Guaporé, donde, desde 1752, outras monções, as “do
Norte” ligavam Vila Bela (recém fundada) a Belém.
Mapa 8. O Mapa das Cortes
É o primeiro mapa a apresentar o Brasil com a forma próxima da que nos é
hoje familiar. A principal diferença é ser mais cinturado no Centro-Oeste,
para dar à Espanha a impressão de menos perdas na região. Note­-se que,
na Amazônia, destaca a ocupação das missões religiosas portuguesas como
justificativa para o uti possidetis.
Mapa 9. Variações da fronteira sul
O Tratado de Santo Ildefonso conservou as fronteiras oeste e norte do
Brasil, definidas em Madri; no sul, deslocou a linha para leste, de modo que
ficasse com a Espanha a região dos Sete Povos. Esta foi finalmente
retomada por tropas locais, em 1801, por ocasião de mais uma guerra
luso­-espanhola.
Mapa 10. Limites do Paraguai
Após a Guerra, o Paraguai teve que aceitar para as regiões disputadas os
limites impostos pelas potências vencedoras. O Brasil ficou aquém de sua
reivindicação máxima. A Argentina incorporou as regiões de Misiones e
Formosa, mas não a que se situa entre os rios Pilcomaio e Verde, por ela
também desejada (ficou paraguaia, por decisão arbitral de 1879).
Mapa 11. O arbitramento de 1895
A Questão de Palmas envolvia uma área bem menor que as do Pirara e do
Amapá, mas tinha uma importância geopolítica maior, pois, se a decisão
arbitral não fosse favorável, o Rio Grande do Sul ficaria ligado ao resto do
Brasil por uma estreita faixa de terra de pouco mais de 200 km.
Mapa 12. O arbitramento de 1900
A Questão do Amapá foi a segunda vitória total do Barão do Rio Branco,
que incorporou ao Brasil uma área onde a ocupação portuguesa não era
nítida e em relação à qual tratados anteriores tinham definido fronteiras
bilaterais favoráveis à França.
Mapa 13. O arbitramento de 1904
A Questão do Pirara foi a única em que houve uma decisão não totalmente
contrária, mas menos favorável ao Brasil: a área foi bipartida por uma
linha fluvial que pareceu ao árbitro a mais facilmente demarcável (60%
para a Inglaterra, 40% para o Brasil).
Mapa 14. Limites do Acre
O Acre, descoberto e povoado por brasileiros, é o único acréscimo
territorial do Brasil na República. Foi comprado da Bolívia em 1903 (por 2
milhões de libras, mais algumas compensações territoriais e uma estrada
de ferro).
Mapa 15. A fronteira noroeste
A linha com a Colômbia, no trecho Tabatinga­-Apapóris, tem a
peculiaridade de ter sido a primeira a ser negociada no Império (em 1851,
com o Peru), e a última a ser negociada na República (em 1928, quando a
área já era colombiana). Do Apapóris a Cucuí, a região é conhecida no
Brasil, por razões evidentes, como a “cabeça do cachorro”. Os limites
venezuelanos atravessam serras do Planalto das Guianas e contêm o ponto
culminante do Brasil, o Pico da Neblina, com 2.993m (dois outros pontos
estão entre os dez mais altos, o Pico 31 de Março e o Monte Roraima).
Mapa 16. A “expansão” do Brasil
Mapas deste tipo são às vezes mostrados para comprovar supostas
usurpações territoriais brasileiras (este é adaptado de um livro
venezuelano). A verdade é que, em cada uma das situações identificadas,
quanto à substância, existiam sólidas bases para a reivindicação brasileira
e, quanto à forma, houve decisão arbitral ou negociações diplomáticas,
com concessões mútuas, que levaram a acordos devidamente assinados e
ratificados.
1 Vide sobre o assunto FONSECA, Gelson. Academia e Diplomacia: um estudo sobre as análises
acadêmicas sobre a política externa brasileira na década de 70 e sobre as relações entre o
Itamaraty e a comunidade acadêmica. Brasília: FUNAG, 2011. Vide também LIMA, Sergio E.
Moreira. Diplomacia e Academia: o IPRI como instrumento de política externa, in: Política
Externa, vol. 22, n. 3, jan./fev./mar. 2014, IEEI, UNESP, GACINT, IRI, USP, p. 76­-77.

2 In: PEREIRA, Manoel Gomes (org.). Barão do Rio Branco: 100 anos de Memória. Brasília:
FUNAG, 2012, p. 620 a 650.

3 GOES FILHO, Synesio Sampaio. Alexandre de Gusmão: o Estadista que desenhou o mapa do
Brasil, in: PIMENTEL, José Vicente (org.). Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e
Agentes da Política Externa (1750­-1964), p. 53 a 85. Brasília: FUNAG, 2013.

4 Caminha data sua carta da “Ilha de Vera Cruz”; D. Manuel fala a seus sogros, os reis católicos,
da “Terra de Santa Cruz”; mas, com o passar do tempo, foi o nome comercial “Brasil” que
predominou. Derivado de brasa, a cor do pau­-brasil (há quem ache que provém de uma
velha palavra irlandesa que está na raiz de bless, benção), é também nome atribuído a
diferentes ilhas míticas do Atlântico, em vários mapas medievais.

5 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O extremo oeste. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, p. 26.

6 O missionarismo, principalmente jesuítico, foi fundamental para a ocupação da Amazônia,


mas não é objeto deste ensaio; como também não o é a atividade militar, soberbamente
representada na região pelos fortes do Príncipe da Beira e de Macapá.

7 GOYCOCHÊA, Castilhos. Fronteiras e fronteiros. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943,
p. 138.

8 Fronteiras, limites, raias, lindes, divisas são aqui considerados sinônimos; em trabalhos
técnicos, fronteira é faixa de terra – zona pioneira em vários casos – e os outros vocábulos,
linha divisória. As fronteiras são estabelecidas em tratados, riscadas em mapas de grandes
escalas e depois demarcadas por comissões binacionais no terreno. Em áreas não habitadas,
colocam­-se primeiro alguns marcos em pontos especiais, posteriormente os marcos
intermediários (adensamento chama­-se essa tarefa). O ideal é que de um marco se avistem os
dois mais próximos (intervisibilidade). As fronteiras são naturais (os especialistas falam em
arcifínios) quando ligadas a um acidente geográfico importante, como os rios e as
montanhas, ou artificiais, quando são linhas geodésicas (frequentemente um paralelo ou um
meridiano). O Brasil é um país de fronteiras em grande parte naturais, ao contrário de outros,
como os Estados Unidos, cuja longa fronteira com o Canadá é, em sua maior parte, um
paralelo. É útil também lembrar os conceitos de fronteiras viva e morta, isto é, habitada,
como a existente entre o Brasil e o Uruguai, e despovoada, a mais comum na região
amazônica, e de fronteira histórico­-cultural, como a existente entre Portugal e Espanha, cuja
única justificativa é a história dos países que divide.
9 O mais antigo exemplar da biografia escrita por Fernando Colombo é uma edição italiana,
publicada em Veneza, em 1571. Dela provêm todas as traduções hoje existentes em várias
línguas, inclusive em espanhol.

10 Las Casas é um autor muito apreciado modernamente pela defesa que faz dos indígenas
tanto na Historia quanto na Brevísima relación de la destrucción de las Indias. Esta última obra
é específica sobre a brutalidade dos espanhóis com os locais e contém frases emblemáticas:
“En estas ovejas mansas [...] entraron los españoles, desde luego que las conocieran como lobos
y tigres y leones cruelísimos [...]”. No bispo de Chiapas, encontra­-se a origem principal da
chamada “leyenda negra” da colonização espanhola, isto é, a visão da conquista através da
lente que focaliza primordialmente a violência dos “civilizados” para com os “bárbaros”,
provocada por sede de riqueza e arrogância cultural.

11 Na época de Colombo, houve pelo menos três corsários de sobrenomes iguais ao seu
(lembre­-se de que é Columbus em latim e inglês, Colón em espanhol, Coulon ou Colomb em
francês e Colombo em italiano e português).

12 As casas Di Negro e Centurione são frequentemente apontadas como promotoras das


viagens de Colombo, durante o período em que morou em Portugal.

13 Portugueses e espanhóis disputaram durante décadas a posse das Canárias, as “Ilhas


Afortunadas” dos antigos, que teriam sido primeiro avistadas pelos irmãos Vivaldi, famosos
navegadores genoveses do final do século XIII. Redescobertas por capitães do Infante Dom
Henrique, na primeira metade do século XV, foram em várias épocas visitadas e ocupadas por
castelhanos. A pendência foi resolvida pelo Tratado de Alcáçovas, de 1479, que atribuiu as
Canárias à soberania de Castela em troca de deixar para Portugal, com exclusividade, as rotas
próximas e as terras da costa da África (o Tratado fala da Guiné), bem como os arquipélagos
da Madeira, do Cabo Verde e dos Açores.

14 Historiadores portugueses, Jaime Cortesão em especial, explicam a ausência de


documentação sobre Colombo e outros navegadores pela chamada “política de sigilo”, que
fazia o Governo português esconder dos rivais tudo que lhes poderia ser útil para refazer os
caminhos descobertos.

15 Gil Vicente, menino na época em que Colombo vivia em Portugal, para dar um só exemplo,
escreveu muitas de suas peças em espanhol.

16 O estudo definitivo sobre o idioma de Colombo foi feito por Menendez Pidal em La lengua
de Cristóbal Colón. Provou que Colombo, além de falar e escrever normalmente o espanhol,
conhecia bem o português. Sabia latim, pelo menos o suficiente para ler obras de seu
interesse, falava o dialeto genovês, que aprendeu na infância, e deveria compreender o
italiano de Florença, a “língua geral” entre os habitantes da península Itálica.

17 “Ultima Thule” é um mito da antiguidade clássica. Na época de Colombo, a expressão


passara a ser aplicada às ilhas situadas a noroeste da Grã­-Bretanha, especialmente à Islândia,
então a mais remota terra conhecida pelos europeus.
18 O livro de Marco Polo – Viagens, na maioria das línguas – era muito conhecido na Idade
Média e formou a imagem que os europeus tinham “das Índias”, expressão que pode ser
tomada como significando o Oriente. Apesar de eivado de erros, exageros e acréscimos
posteriores – o que é compreensível, pois há 140 versões manuscritas em diferentes idiomas
– pode ser considerado autêntico, no sentido que descreve coisas realmente vistas e por
alguém perfeitamente identificado (ao contrário, por exemplo, das “viagens”, de Sir John de
Mandeville).

19 É curioso como o poder, os prazeres e o exotismo do monarca da China, muitas vezes


chamado Grande Khan ou Grão­-Mogol, impressionou gerações de escritores que fundiam
cenas da corte mongólica com vagos desejos pessoais de lugares remotos e paradisíacos. Para
ficar apenas no campo da poesia, lembre­-se dos antológicos poemas “Kublai Khan”, de
Coleridge, e “Mosca Azul”, de Machado de Assis.

20 Num local especial do complexo da Catedral de Sevilha, está exposta a biblioteca de


Fernando, de cerca de 5 mil volumes, enorme para a época; numa pequena estante estão os
poucos livros que pertenceram a seu pai.

21 As notas que Colombo escreveu nas margens de seus livros – apostilas, dizem os
especialistas – já foram objeto de muitos estudos. Serviram para identificar o idioma que
usava e as ideias cosmográficas que tinha. Quase todas estão escritas em espanhol, poucas
em latim e apenas duas em italiano. Não se sabe exatamente as que foram manuscritas por
Cristóvão e as que o foram por seu irmão Diego, de letra muito parecida.

22 PERES, Damião. História dos descobrimentos portugueses, p. 322.

23 A possível correspondência entre Colombo e Toscanelli é um dos mais controvertidos


aspectos da vida do navegante. José Honório Rodrigues aponta­-a como exemplo de
falsificação histórica.

24 O nome Antilha, como tantos outros do Novo Mundo, é revelador da vontade que os
europeus tinham de ver lendas antigas em realidades novas. Derivaria de “Thule” (anti­-Tule,
Antilha), como quer Pedro Calmon, ou simplesmente de ilha. As ilhas do mar Caribe (palavra
indígena que designava uma tribo, os caribes ou caraíbas, e da qual provém o vocábulo
“canibal”) agrupam­-se basicamente no arquipélago das Antilhas e no arquipélago das
Bahamas.

25 BARROS, João de. Ásia, p. 246.

26 Apud TAVIANI, Paolo Emilio. Christopher Columbus; the Great Design. Londres: Orbis, 1985,
p. 16.

27 Apud ibid., p. 164.

28 PERES, Damião, op. cit., p. 273.


29 DÍAZ­-PLAJA, Fernando. Otra Historia de España. Barcelona: Plazay Jones, 1972, p. 110.

30 MORISON, Samuel Eliot. The European Discovery of America – The Southern Voyages. New
York: Oxford University Press, 1974, p. 4.

31 A caravela é uma invenção portuguesa da década de 1440. Antes, os descobridores, como


Gil Eanes, que em 1434 ultrapassou o cabo Bojador, usavam “barcas”, embarcações de fundo
quase chato e um só mastro, provindas da pesca costeira. A caravela é o resultado do
cruzamento dos barcos árabes do Mediterrâneo de boa capacidade de carga – os caravos –
com as embarcações de velas triangulares, chamadas latinas, muito maleáveis, da região do
rio Douro. Era um barco relativamente pequeno (não transportava mais que 20 pessoas),
leve, raso, que enfrentava os baixios da costa africana e os ventos contrários do Atlântico de
maneira muito melhor que as outras embarcações então existentes. Mais tarde, depois de
Bartolomeu Dias – o grande caravelista – contornar em 1488 o Cabo da Boa Esperança,
aparecem as “naus”, bem maiores, típicas da “carreira da Índia”, desde a viagem precursora de
Vasco da Gama, e os “galeões”, menos bojudos, de vocação mais bélica que comercial. A
bússola (pequena caixa, em italiano) é uma adaptação da agulha imantada, cuja propriedade
de indicar o norte foi descoberta pelos chineses. O astrolábio, que mede a altura dos astros e
assim indica as latitudes, foi inventado pelos gregos e aperfeiçoado pelos árabes. Há dúvidas
sobre o instrumento que Colombo teria usado em sua viagem inaugural: parece que possuía
apenas o quadrante, uma forma simplificada do astrolábio.

32 Apud TAVIANI, op. cit., p. 131.

33 Apud MÁRQUEZ, Luis Arranz. Diário de bordo, p. 56.

34 Apud GRANZOTTO, Gianni. Christopher Columbus, the Dream and the Obsession. Glasgow:
William Collins Sous, 1985, p. 130.

35 Apud ibid., p. 136.

36 GRANZOTTO, Gianni, op. cit., p. 139. Colombo foi acusado nos famosos “pleitos”, que
descrevem as divergências jurídicas que seu filho Diego e seu neto Luis tiveram com a Coroa
sobre a posse das terras descobertas, de ter recebido fraudulentamente o prêmio devido a
Rodrigo de Triana.

37 Durante muitos anos, chamou­-se Watling e, em 1926, depois que Morison a identificou
como a primeira ilha avistada por Colombo, voltou a se chamar São Salvador. No passado,
outras autoridades identificaram como a primeira tocada por Colombo outras ilhas, como
Mayaguana (Varnhagen) e Grand Turk (Navarrete). Recentemente a National Geographic
Magazine, usando os mais modernos instrumentos para refazer a rota do navegante, chegou
à conclusão de que a ilha inicialmente descoberta na verdade é Samana Cai, bem próxima,
aliás, de São Salvador.

38 Apud GRANZOTTO, op. cit., p. 127.


39 Estudiosos de nossos dias estão achando que mais tribos do que se pensava praticavam o
canibalismo como hábito alimentar. Entre elas, os Tupi, que sempre gozaram de uma visão
mais favorável do colonizador português. Os inimigos dos Tupi – os Tapuia –, estes, sim,
passavam por habituais antropófagos.

40 As frases citadas são de trechos do Diário de bordo, tal como publicado por Luis Arranz
Márquez.

41 MORISON, Samuel Eliot. The Great Explorers. Nova York: Oxford Press, 1986, p. 429.

42 Na terceira viagem, Colombo enviou três barcos diretamente às Antilhas e foi com três
outros mais para o sul, o que o levou a tocar a costa norte da América do Sul.

43 Apud TAVIANI, op. cit., p. 219.

44 MORISON, Samuel Eliot. The European Discovery of America – The Southern Voyages. New
York: Oxford University Press, 1974, p. 155.

45 CORTESÃO, Jaime. Introdução à história das bandeiras. Lisboa: Portugalia Editora, 1964, p.
150. Lope de Aguirre é um personagem de biografia mal conhecida, mas que foi, desde os
tempos coloniais, considerado um exemplo extremado da violência de alguns
conquistadores. Em 1561, numa expedição pelas cabeceiras do rio Amazonas, lidera motins,
mata índios e todos os que se opunham a seus planos, inclusive o seu comandante, Pedro de
Ursua. Acaba preso pelas autoridades espanholas, o que é comum, e executado, o que é raro.

46 Apud ARRANZ, op. cit., p. 18.

47 MORISON, op. cit., p. 236.

48 GRANZOTTO, op. cit., p. 267.

49 Os tempos históricos não começam nem terminam em um exato momento, mas é didático
adotar um fato como marco terminal de uma era e inicial de outra. No caso do fim da Idade
Média, a Queda de Constantinopla (1453), a Invenção da Imprensa (1455) e a Descoberta da
América (1492) são datas preferidas por muitos autores – juntas ou separadas.

50 Os mapas­-múndi da Idade Média em geral tinham forma redonda (mapas de roda), na qual
o mar Mediterrâneo ocupava um “T” central, cercado por um “O”, de terras (por isso eram
também chamados mapas T.O.). Jerusalém quase sempre estava no núcleo. Em volta do “O”
havia, ainda, uma vaga faixa oceânica.

51 Apud TAVIANI, op. cit., p. 219. Colombo achava que esse “outro” mundo seria alguma grande
ilha junto da Ásia. Vespúcio, falando em “novo” mundo, teria sido o primeiro navegante a
afirmar que se tratava de uma parte desconhecida do orbe: a quarta.

52 GALLEZ, Paul., in Swissair Gazette, n. 10/1983.


53 Apud ARCINIEGAS, Germán. Biografia del Caribe. Bogotá: Planeta Editorial, 1993, p. 29.

54 Apud CORTESÃO, Jaime. Os descobrimentos portugueses. Lisboa: Livros Horizontes, 1981, vol.
IV, p. 944.

55 Id. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores,
Instituto Rio Branco, vol. I, p. 118.

56 Apud ALMEIDA, Paulo Roberto de. 1942 e o nascimento da moderna diplomacia.


Montevidéu. VI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 1991, p. 12.

57 Apud CORTESÃO, Jaime. Os descobrimentos portugueses. Lisboa: Livros Horizontes, 1981, vol.
IV, p. 978.

58 Ibid., p. 978.

59 VIANNA, Helio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1965, vol. I, p. 42.

60 ALMEIDA, Paulo Roberto de, op. cit., p. 16.

61 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos nos descobrimentos e
colonização do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p. 203.

62 Ibid., p. 203.

63 Apud CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. Rio de Janeiro: Instituto
Rio Branco, s.d., parte I, tomo I, p. 102.

64 Com o Tratado de Alcáçovas (1479) negociou­-se o casamento do Príncipe D. Afonso


(herdeiro de D. João II) com a Infanta D. Isabel (filha dos reis católicos); com o de Saragoça,
que estabeleceu o antimeridiano de Tordesilhas, em 1529, o de Carlos V com Isabel de
Portugal (filha de D. João III).

65 Outros autores identificam outros cabos. Max Justo Guedes julga que Pinzón chegou à
ponta de Mucuripe, no Ceará.

66 MORISON, op. cit., p. 185.

67 Apud ibid., p. 194.

68 Apud MAGNAGHI, Alberto. Amerigo Vespucci. Frotilli Trevesdi Roma, 1926, p. 1.

69 Apud ibid., p. 2.

70 LEVELLIER, Roberto. América la bien llamada. Buenos Aires: Guilhermo Kraft Ltda., vol. II, p.
273.
71 RAMBALDI, Pier L. Amerigo Vespucci. Firenze: C. Barbera Editori, 1898, p. 12.

72 BOXER, Charles. A política dos descobrimentos. In: Portugal – Brasil, a era dos
descobrimentos atlânticos, p. 264.

73 Apud MAGNAGHI, Alberto, op. cit., p. 4.

74 MARTINS, Luiz Renato. Américo Vespúcio, p. 97. Nesse livro estão todas as cartas de
Vespúcio, traduzidas das publicadas em espanhol por Levellier. Esta citação e as seguintes
deste capítulo provêm, igualmente, das cartas impressas, que não são consideradas
autênticas por Magnaghi. Servem, entretanto, para dar o tom das observações, às vezes
coloridas, às vezes pretensiosas, mas sempre interessantes.

75 Ibid., p. 109.

76 Ibid., p. 95.

77 Ibid., p. 110.

78 Ibid., p. 94.

79 Ibid., p. 109.

80 Apud LEVELLIER, Roberto, op. cit., p. 306.

81 Apud ibid., p. 306.

82 MARTINS, Luiz Renato, op. cit., p. 131.

83 Ibid., p. 89.

84 ALMEIDA, Luiz Ferrand de. Vespúcio e o descobrimento do rio da Prata. Revista Portuguesa
de História, Coimbra, 1955, tomo VI. (Separata)

85 MARTINS, Luiz Renato, op. cit., p. 49.

86 Ibid., p. 91.

87 Ibid., p. 69.

88 FRIEDERICI, Georg. Caráter da descoberta e da conquista da América pelos europeus. Rio de


Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1967, p. 94.

89 SOUZA, T. O. Marcondes de. Amerigo Vespucci e suas viagens. São Paulo: 1949, p. 177.

90 Apud BOORSIN, Daniel. The Discoverers. Nova York: Random House, 1983, p. 253.
Waldseemüller, em edições posteriores de sua obra, mais bem informado, tirou o nome
“América” do continente descoberto. Era tarde demais: as versões anteriores, cópias e
comentários destas já corriam mundo.

91 Apud FIGUEIREDO, Fidelino de. Literatura Portuguesa, p. 128.

92 GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Editora


Arcadia, 1975, p. 71.

93 Ao lado da corrente histórica majoritária que vê Colombo como herói defraudado e


Vespúcio como aproveitador malicioso, há outra que louva este como o homem das luzes do
Renascimento, enquanto relega aquele às sombras dos tempos medievais. Escute­-se, por
exemplo, Germán Arciniegas: “De Almirante del Mar Océano [Colombo], pasa a ser una figura
suplicante. El mundo luminoso que há descobierto, el mismo lo tapa con sus manos
temblorosas. Y llega Américo [Vespúcio], y sobre aquella nebulosa turbia pone la claridad de su
gracia” (Biografía del Caribe, p. 29).

94 HUMBLE, Richard. The Explorers, p. 147.

95 Texto central sobre o Brasil: “O dito meu capitão [...] chegou a uma terra que novamente
descobriu a que pôs o nome Santa Cruz, em que achou as gentes nuas como na primeira
inocência, mansas e pacíficas, a qual pareceu que Nosso Senhor milagrosamente quis que se
achasse porque é muito conveniente e necessária à navegação da Índia [...]”.

96 D. João I casou­-se com uma princesa inglesa, D. Felipa de Lancaster, e, filhos homens, teve
cinco. Estes são enaltecidos em Os Lusíadas (canto IV, estrofe 50), e mãe e filhos são também
cantados nesse tom por Shakespeare, em “Henrique IV”: “This nurse, this teeming womb of
Royal Kings / Fear’d by their breed, and famous by their birth / Renowed for their deads as far
from home / For Christian service and true chivalry”. Como se não bastasse, Fernando Pessoa,
em Mensagem, também louva a família: “Que enigma havia em teu seio / Que só gênios
concebia?”

97 CASTRO, Sílvio. A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: LPM Editores, 1985, p. 94.

98 SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. Lisboa: Europa­-América, 1989, p. 139.

99 CADINHO, Vitorino Magalhães. O que significa descobrir. In: A descoberta do homem e do


mundo, p. 78.

100 D. Pedro II, em 1871, visita o jazigo de Cabral em Santarém, o que passa a lhe dar grande
visibilidade. Uma urna com parte dos restos mortais do descobridor (e seguramente de
familiares seus, no mesmo carneiro enterrados) foi transportada, no começo do século, para
o Rio de Janeiro, onde se encontra na Igreja do Carmo, na rua Primeiro de Março; outra urna
foi para Belmonte, onde nasceu Cabral.
101 A carta de Caminha logo desapareceu. Os cronistas e historiadores dos séculos XVI, XVII e
XVIII ao falarem do descobrimento do Brasil têm como fonte primária básica a “Relação do
piloto anônimo”.

102 CASTRO, Sílvio de, op. cit., p. 98.

103 Ibid., p. 78.

104 Ibid., p. 81. Caminha, como os letrados de sua época, tinha uma educação bíblica:
“vergonhas” nessa tradição significam as chamadas “partes pudendas”, o sexo e os seios. Faz
humor referindo­-se a “vergonhas” significando seios, logo antes de “vergonha” com o sentido
mais corrente de pejo, pudor.

105 Ibid., p. 94.

106 Ibid., p. 97.

107 ABREU, João Capistrano de. O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1976, p. 41.

108 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Descobrimento do Brasil, in História geral da civilização
brasileira, tomo I, 1o vol., p. 38.

109 COUTO, Jorge. A construção do Brasil. Lisboa: Edições Cosmos, 1955, p. 151.

110 Apud ibid., p. 151. O trecho do Esmeraldo que se referiria ao Brasil é o seguinte: “no terceiro
ano do Vosso reinado, no ano de Nosso Senhor de 1498, Vossa Alteza nos mandou descobrir
a parte ocidental, passando além da grandeza do mar oceano, onde é achada e navegada
uma grande terra firme com muitas ilhas adjacentes a ela...”.

111 CARVALHO, Filipe Nunes de. Nova história da expansão portuguesa, vol. VI, p. 74.

112 COUTO, Jorge, op. cit., p. 182.

113 Desde que chegaram, geralmente sem mulheres, os portugueses se misturaram com índias
e, depois, negras. Só no final do século XIX vieram em quantidades ponderáveis outros povos,
italianos, alemães, japoneses, espanhóis, sírio­-libaneses e tantos mais, todos também
construtores da sociedade nacional brasileira. Aportes de muitas nações e raças,
principalmente a negra; mas a matriz cultural continua portuguesa.

114 Washington Luís. Na capitania de São Vicente, p. XVII.

115 VIANNA, Helio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1965, vol. I, p. 319.

116 BLANCO, Ricardo Ramón. Las “Bandeiras”. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1966, p.
317.
117 ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial e os caminhos antigos e o
povoamento do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963, p. 341.

118 ALBUQUERQUE, Manuel Maurício de. Formação territorial do Brasil. In: Curso de
conhecimento e informação sobre cartografia. Brasília: MRE, 1968, p. 13.

119 Apud CORTESÃO, Jaime. Introdução à história das Bandeiras. Lisboa: Portugalia Editora,
1964, p. 58.

120 FRIEDERICI, George. Caráter da descoberta e conquista da América pelos europeus. Rio de
Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1967, p. 180.

121 Ibid., p. 180.

122 Ibid., p. 180.

123 NÓBREGA Mello. História do rio Tietê. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, p. 83.

124 MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 8.

125 Ibid., p. 57.

126 Ibid., p. 73.

127 ELLIS JR., Alfredo. Raposo Tavares e sua época. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 65.

128 RICARDO, Cassiano. O Tratado de Petrópolis. Rio de Janeiro: Ministério das Relações
Exteriores, 1954, p. 34.

129 CORTESÃO, Jaime. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil. MEC, s.d., p. 78.

130 FRIEDERICI, Georg, op. cit., p. 191.

131 Apud BANDEIRA, L. A. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos estados na bacia
do Prata. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, p. 26.

132 HEMMING, John. Cambridge History of Latin America, vol. II, p. 335.

133 TAUNAY, Affonso. Guia do museu republicano “Convenção de Itú”. São Paulo: Indústria
Gráfica Siqueira, 1946, p. 28.

134 RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1970, p. 576. Só se compreende a afirmação de que todos os tratados de fronteiras do Brasil
ligam­-se ao bandeirismo se chamarmos os “entradistas” amazônicos, tais como Pedro Teixeira
e Mello Palheta, de “bandeirantes”, como o faz Capistrano.
135 Apud TAUNAY, Affonso. História das bandeiras paulistas. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1975, p. 13, v. 1.

136 TAQUES, Pedro. Nobiliarchia paulistana histórica e genealógica. São Paulo: Editora USP,
1980, tomo I, p. 261.

137 RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, s.d., p. 113.

138 ODÁLIA, Nilo. Varnhagen, p. 16.

139 HEMMING, John. Red Gold from Brazil. Nova York: Macmilan, 1978, p. 247.

140 RODRIGUES, José Honório, op. cit., p. 23.

141 CÂNDIDO, Antonio. Aspectos sociais da Literatura em São Paulo. In: Ensaios paulistas. São
Paulo, 1954, p. 201.

142 RIBEIRO, João. História do Brasil, p. III.

143 ABREU, João Capistrano de. Capítulos da história colonial. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1963, p. 121.

144 ABREU, João Capistrano de. Correspondência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, vol.
II, p. 82.

145 VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. São Paulo: Monteiro Lobato, 1922, p. 295.

146 Ibid., p. 295.

147 MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980, p. 18.

148 Ibid., p. 16.

149 Ibid., p. 17.

150 Ibid., p. 19.

151 Ibid., p. 49.

152 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1963, p.
61.

153 PRADO, Paulo. Paulística e retrato do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,
1972, p. 35.
154 TAUNAY, Affonso. História das bandeiras paulistas. São Paulo: Imprensa Oficial, 1931, vol. II,
p. 283.

155 Ibid., p. 283.

156 Ibid., p. 280.

157 Historiadores de nossos dias, como Arno Wehling, lembram a forte influência espanhola na
São Paulo de 1640. Vivia­-se numa verdadeira “guerra civil” entre Pires e Camargos, sendo os
últimos muito ligados ao comércio com Assunção e com a Espanha. Bartolomeu Bueno da
Ribeira representaria esse partido, mas não a ponto de rebelar­-se contra a decisão fulcral de
Lisboa. É, aliás, interessante notar, em várias antigas famílias paulistas, a frequência de
sobrenomes espanhóis, como Bueno, Toledo, Rendon, Piza, Godoy, Quadros, etc.

158 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, p. 68.

159 MACHADO, Alcântara, op. cit., p. 234.

160 Ibid., p. 231.

161 PRADO, Paulo, op. cit., p. 46. Há autores que, baseados no fato de que ao fazer seu
testamento em 1580 João Ramalho tenha declarado que “tinha alguns noventa anos de
assistência nesta terra”, admitem a hipótese de que teria chegado ao Brasil antes de Cabral,
como tripulante ou desertor de alguma ignorada caravela portuguesa.

162 Teodoro Sampaio explica esse paradoxo: “As bandeiras quase só falavam o tupi. E se, por
toda a parte onde penetravam, estendiam os domínios de Portugal, não lhe propagavam,
todavia, a língua, a qual, só mais tarde, se introduziria com o progresso da administração,
com o comércio e os melhoramentos. Recebiam, então, um nome tupi as regiões que se iam
descobrindo e o conservavam pelo tempo adiante, ainda que nelas jamais tivesse habitado
uma tribo de raça tupi. E assim é que, no planalto Central, onde dominam povos de outras
raças, as denominações dos vales, rios e montanhas e até das povoações são pela mor parte
da língua geral” (O tupi na geografia nacional, p. 71).

163 PRADO, Paulo, op. cit., p. 84.

164 CORTESÃO, Jaime. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil, p. 341.

165 Ibid., p. 133.

166 Ibid., p. 9.

167 Ibid., p. 21.

168 Ibid., p. 306.


169 Ibid., p. 247.

170 Apud ibid., p. 262.

171 Ibid., p. 440.

172 MONTEIRO, John Manuel, op. cit., p. 81.

173 ABREU, João Capistrano de. Capítulos da história colonial, p. 126.

174 MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Editora Hucitec, 1984, p.
120.

175 FRIEDERICI, Georg, op. cit., p. 200.

176 GANDÍA, Enrique de. Las misiones jesuíticas y los bandeirantes paulistas. Buenos Aires:
Editorial “La Faculdad”, 1936, p. 84.

177 DIAS, J. S. da Silva. Os descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. Lisboa:


Editorial Presença, 1993, p. 253. O trecho a destacar numa carta de Anchieta para o Geral dos
Jesuítas é este: “Parece­-nos agora que estão abertas as portas nesta capitania para a
conversão dos gentios, se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira com que sejam postos
debaixo de jugo, porque para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e
vara de ferro, na qual mais do que em nenhuma outra é necessário que se cumpra o compelle
eos intrare”.

178 HEMMING, John. Red Gold from Brazil, p. 25.

179 Apud HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras, p. 25.

180 WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. de. Formação do Brasil Colônia. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1994, p. 118.

181 BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados. Rio de Janeiro: Editora Objetivo,
1998, p. 116. Em livros espanhóis, a prioridade da descoberta do Prata é sempre dada à
viagem de João Dias de Solis, em 1516.

182 GANDÍA. Enrique de. Exploraciones y conquista. In: LEVENE, Ricardo. Historia de América.
Tomo IV, p. 139.

183 LEVENE, Ricardo. Virreinato del Río de la Plata. In: ______. (Org.). História de América.
Buenos Aires: W. M. Jackson Inc. Editores, 1951, tomo IV, p. 411.

184 ABREU, João Capistrano de. Sobre a Colônia do Sacramento. In: Ensaios e estudos, 3a série, p.
72.
185 BANDEIRA, L. A. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados da bacia do
Prata. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, p. 43.

186 ABREU, João Capistrano de. Sobre a Colônia de Sacramento, 3a série, p. 75.

187 LEITÃO, Melo. Descobrimento do rio das Amazonas. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1941, p. 19.

188 Ibid., p. 60.

189 Ibid., p. 66.

190 Toríbio de Medina, The Discovery of the Amazon, p. 152.

191 THÉRY, Hervé. Les conquêtes de l’Amazonie, Cahiers des Amériques Latines, n. 18, 1978, p.
133.

192 VIANNA, Helio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1965, vol. I, p. 300.

193 LEITÃO, Melo, op. cit., p. 293.

194 Ibid., p. 287.

195 REIS, Arthur Cesar Ferreira. A Amazônia que os portugueses revelaram. Manaus: Edições
Governo do Estado do Amazonas, 1966, p. 42.

196 REIS, Arthur Cesar Ferreira. História da civilização brasileira, tomo I, 1o vol., p. 262.

197 REIS, Arthur Cesar Ferreira. A Amazônia que os portugueses revelaram. Rio de Janeiro: MEC,
s.d., p. 39.

198 ARROYO, Leonardo. Relação do rio Tietê. São Paulo: Editora Obelisco, 1965, p. 30.

199 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo: Alfa­-Ômega, 1976, p. 47.

200 Ibid., p. 76.

201 Apud TAUNAY, Affonso. História das bandeiras paulistas. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1975, vol. II, p. 294.

202 Apud HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 49.

203 NÓBREGA, Mello, op. cit, p. 89.

204 HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 98.


205 NÓBREGA, Mello, op. cit., p. 123.

206 HEMMING, John. Red Gold from Brazil, p. 405.

207 HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 69.

208 NÓBREGA, Mello, op. cit., p. 23.

209 Apud DAVIDSON, David M. How the Brazilian West Was Won: Freelance & State on the
Mato Grosso Frontier, 1737­-1752. In: Colonial Roots of Modern Brazil, 1973, p. 80.

210 Ibid., p. 81.

211 Ibid., p. 87.

212 Apud ibid., p. 74.

213 Apud ibid., p. 87.

214 Ibid., p. 105.

215 HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 69.

216 DAVIDSON, David M. Rivers and Empires: the Madeira Route and the Incorporation of the
Brazilian Far West, 1737­-1808. Michigan: University Microfilms Int., 1983, p. 69.

217 Ibid., p. 208.

218 SOUTHEY, Robert. História do Brasil, tomo VI, p. 8.

219 HANDELMANN. H. História do Brasil, p. 245.

220 RIO BRANCO, Barão do. Obras completas, vol. VI, p. 21.

221 Apud SANZ, Luís Santiago. La cuestión de misiones. Buenos Aires: Editorial Ciências
Econômicas, 1957, p. 14.

222 ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1963, p. 201.

223 Ibid., p. 201.

224 TAUNAY, Affonso de E. Bartolomeu de Gusmão, p. 21.

225 Apud JORGE, A. G. de Araújo. Ensaios históricos. Rio de Janeiro: Serviço de Publicações do
Instituto Rio Branco, 1916, p. 114.
226 Apud Ibid., p. 119.

227 FIGUEIREDO, Fidelino de. História literária de Portugal, p. 300.

228 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1975, tomo IV, p. 84.

229 RIO BRANCO, Barão do. Obras completas, vol. I, p. 24.

230 CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. Rio de Janeiro: Instituto Rio
Branco, s.d., tomo I, p. 9.

231 ALMEIDA, André Ferrand de. A formação do espaço brasileiro e o projeto do Novo Atlas da
América Portuguesa. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1984, p. 44.

232 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso, p. 65.

233 MARTINIERE, Guy. Frontières coloniales en Amerique du Sud. Cahiers de l’Amerique Latine,
n. 18, p. 166.

234 Apud GIRALDO, Manuel Lucena. Francisco Requeña y otros: ilustrados y bárbaros. Madri:
Alianza Editorial, 1992, p. 11.

235 FRIEDERICI, Georg. A conquista da América pelos europeus, p. 62.

236 BOXER, Charles. The Portuguese Seaborne Empire. Nova York: Alfred A. Knopf, 1969, p. 160.

237 GUSMÃO, Alexandre de. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1981, p. 128.

238 Ibid., p. 49.

239 Id., Obras, p. 34.

240 CORTESÃO, Jaime, op. cit., vol. I, p. 9.

241 CORTESÃO, Jaime, op. cit., tomo II, p. 281.

242 Ibid., p. 299.

243 MARTINEZ, Pedro Sares. História Diplomática de Portugal. Lisboa: Editorial Verbo, 1992, p.
193.

244 Apud ALMEIDA, Luis Ferrand de. Alexandre de Gusmão, o Brasil e o Tratado de Madri, p. 49.

245 SARAIVA, op. cit., p. 247. (grifo nosso)


246 MARQUES, A. G. de Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1997, vol. II, p.
336.

247 GUSMÃO, Alexandre de. Obras, p. 132.

248 ALMEIDA, Luis Ferrand de, op. cit., p. 57.

249 Apud ibid., p. 54.

250 DAVIDSON, David M. Colonial Roots of Modern Brazil, p. 73.

251 ABREU, João Capistrano de., op. cit., p. 196.

252 GUEDES, Max Justo; GUERRA, Inácio. Cartografia e diplomacia no Brasil do século XVIII.
Lisboa: Comissão Nacional para os descobrimentos portugueses, 1997, p. 28.

253 Apud CORTESÃO, Jaime, op. cit., parte I, tomo I, p. 261.

254 Ibid., p. 285.

255 Ibid., p. 296.

256 Ibid., p. 297.

257 Apud ibid., p. 329.

258 Ibid., p. 332.

259 Ibid., p. 333.

260 Apud ibid., p. 381.

261 CALÓGERAS, J. Pandiá. A política exterior do Império. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1972, 1o vol., p. 224.

262 CARNAXIDE, Antonio de Souza Pedroso, Visconde de., O Brasil na administração


pombalina: economia e política externa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 10.

263 REIS, Arthur Cesar Ferreira. Os tratados de limites. In: História da civilização brasileira, vol. 1,
p. 376.

264 Apud VIANNA, Helio. História diplomática do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,
1958, p. 73.

265 ABREU, João Capistrano de, op. cit., p. 305.


266 SCENNA, Miguel Angel. Argentina­-Brasil; cuatro siglos de rivalidad. Buenos Aires: Ediciones
La Bastilla, 1975, p. 62.

267 Apud SOARES, José Carlos de Macedo. Fronteiras do Brasil no regime colonial. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora, 1938, p. 16.

268 BARRENECHEA, Raúl P.; REINA, Alberto W. de. Historia de los límites del Perú. Lima: Editorial
Universitaria, 1981, p. 23.

269 Ibid., p. 23.

270 Em livro recente, O mapa que inventou o Brasil, de texto qualificado e profusão de
ilustrações, Júnia Ferreira Furtado julga ser o “Mapa da América Meridional” (1742), de
Bourguignon d’Anville, aquele que pela primeira vez delineou o atual território brasileiro. O
mapa era realmente o mais preciso que havia quanto a latitudes e longitudes. Não incluía,
entretanto, no território brasileiro boa parte dos estados do Sul e do Norte nem tinha a linha
de limites vinculada a acidentes geográficos (era um traçado aleatório). Tudo ao contrário do
Mapa das Cortes, este, sim, o inventor do Brasil.

271 BRUNO, Ernani Silva. História do Brasil. São Paulo: Cultrix, 1966, vol. I, p. 92.

272 ABREU, João Capistrano de. Capítulos da história colonial, p. 187.

273 Ibid., p. 308.

274 REZEK, José Francisco. Conselho de Estado: consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros,
vol. I, p. 106.

275 Ibid., p. 224.

276 Apud SOUZA, José Antonio Soares de. Um diplomata do Império. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1952, p. 133.

277 Apud ibid., p. 114.

278 BRAGA, Sérvulo Lisboa; ENGEL, Juvenal Milton. Delimitação, demarcação e cartografia das
fronteiras do Brasil. In: Curso de conhecimentos e informações sobre cartografia, vol. III, p. 313.

279 VIANNA, Helio. História da República e História Diplomática do Brasil, p. 174.

280 Apud SOARES, José Carlos de Macedo. Fronteiras do Brasil no regime colonial. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora, 1938, p. 207.

281 RIO BRANCO, Barão do. Obras do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1974, vol. V, p. 78.
282 Apud SOARES, José Carlos de Macedo, op. cit., p. 207.

283 MARTINIERE, Guy. Les stratégies frontalières du Brésil Colonial, Cahiers des Amériques
Latines, n. 18, p. 65.

284 BEVILÁQUA, Clovis. Direito Internacional, p. 289.

285 É opinião de Goycochêa, que adotamos. Soares de Souza data o acidente com o braço em
1843, isto é, bem mais tarde na vida de Ponte Ribeiro, quando já era Ministro em Buenos
Aires; para ele também não seria o lado esquerdo o afetado, mas o direito.

286 GOYCOCHÊA, Castilhos, op. cit., p. 168.

287 Ibid., p. 310.

288 Apud SOUZA, J. A. Soares de. Um diplomata do Império, p. 310.

289 Apud ibid., p. 290.

290 Apud ibid., p. 304.

291 Apud ibid., p. 336.

292 Ibid., p. 336.

293 Ibid., p. 298.

294 GOYCOCHÊA, Castilhos, op. cit., p. 178.

295 CALÓGERAS, Pandiá, op. cit., p. 274.

296 BARRENECHEA, Raúl P.; REINA Alberto W., op. cit., p. 118.

297 Ibid., p. 118.

298 CUNHA, Euclides da. Peru versus Bolívia. São Paulo: Cultrix, s.d., p. 124.

299 CAVELIER, German. La política internacional de Colombia. Bogotá: Editorial Iqueima, 1959,
tomo I, p. 249.

300 ANDRADE S., Francisco. Demarcación de las fronteras de Colombia. Bogotá: Ediciones
Lerner, 1965, p. 219.

301 CHAVES, Emir Omar. Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Bedeschi, 1943, p. 19.

302 QUESADA, Vicente G. História diplomática latino­-americana. Buenos Aires: Talleres


Gráficos, 1920, vol. III, p. 39.

303 CUSICANQUI, Jorge Escobari. História diplomática de Bolívia. La Paz: Universidade


Boliviana, 1978, p. 214.

304 QUESADA, Vicente G., op. cit., vol. III, p. 274.

305 BURNS, E. Bradford. Relações internacionais do Brasil durante a Primeira República. In:
História da civilização brasileira, tomo III, 2o vol., p. 382.

306 Apud LEVENE, Ricardo (Dir.). História de América. Buenos Aires: W. M. Jackson Inc. Editores,
1951, tomo VI, p. 10.

307 CARDOZO, Efraín. Paraguay independiente. Asunción: s.n., 1967, p. 1.

308 Apud CORTESÃO Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, parte I, tomo II, p. 48.

309 ABREU, João Capistrano de, op. cit., p. 195.

310 CORTESÃO Jaime, op. cit., tomo II, p. 27.

311 SOUZA José Soares de. O Brasil e o Prata até 1828. In: História geral da civilização brasileira,
tomo II, vol. 1, p. 311.

312 BANDEIRA, L. A. Moniz, op. cit., p. 61.

313 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1994, p. 154.

314 LEVENE, Ricardo, op. cit., tomo VI, p. 170.

315 FAUSTO, Boris, op. cit., p. 170.

316 Apud LAPEYRE, Edison Gonzales. Los Límites de la República del Uruguay. Montevidéu:
Editorial Amalio M. Fernandez, 1986, p. 341.

317 CALÓGERAS, Pandiá. Formação histórica do Brasil. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello, 1930,
p. 304.

318 Ibid., p. 321.

319 Ibid., p. 313.

320 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à República. In: História geral da civilização
brasileira, tomo II, vol. 5, p. 110.

321 NABUCO, Joaquim. op. cit., p. 684.


322 BETHEL, Leslie. O imperialismo britânico e a Guerra do Paraguai. In:______et al. Guerra do
Paraguai − 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995, p. 143.

323 Apud SOARES, Teixeira. História da formação das fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro:
Conselho Federal de Cultura, 1972.

324 Apud JORGE, A. G. de Araújo. Introdução às obras do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1945, p. 23.

325 LAFER, Celso. A inserção internacional do Brasil. Brasília: MRE, 1993, p. 316.

326 Apud VIANA FILHO, Luís. Três estadistas: Ruy, Nabuco, Rio Branco. Brasília: Instituto
Nacional do Livro, 1981, p. 1.087.

327 LIMA, Oliveira. Obra seleta. p. 301.

328 Apud RABELLO, Sylvio. Euclides da Cunha. p. 319.

329 LIMA, Oliveira, op. cit., p. 299.

330 RIO­-BRANCO, Raul do. Reminiscências do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1942, p. 193.

331 Ibid., p. 194.

332 BELLO, José Maria. História da República (1494­-1895). Brasília: Instituto Rio Branco, 1980, p.
228.

333 RICUPERO, Rubens. Rio Branco – uma fotobiografia. Brasília: IPRI, 1997, p. 41.

334 LIMA, Oliveira. Memórias. p. 297.

335 JORGE, A. G. de Araújo, op. cit., p. 16.

336 Apud LOBO, Hélio. Rio Branco e o arbitramento com a Argentina. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1952, p. 97.

337 SANZ, Luis Santiago. La cuestión de Misiones. Buenos Aires: Editorial Ciências Econômicas,
1957, p. 85.

338 JORGE, A. G. de Araújo, op. cit., p. 74.

339 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 1.003.

340 Apud ibid., p. 1.009.


341 Ibid., p. 1.017.

342 JORGE, A. G. de Araújo, op. cit., p. 120.

343 Apud VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 1011.

344 NABUCO, Joaquim. O direito do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941, p. 20.

345 Apud LINS, Álvaro. Rio Branco. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1945, p. 460.

346 LAPRADELLE, A. G. de; POLITIS, N. L’arbitrage anglo­-brésilien, Revue de Droit Public et de


Science Politique, , Paris, 12e Année, Tome XXII, n. 2, p. 1905.

347 Apud VIANA FILHO, Luis, op. cit., p. 1042.

348 GOICOCHÊA, Castilhos, op. cit., p. 116.

349 VIANA FILHO, Luis, op. cit., p. 1084.

350 GOICOCHÊA, Castilhos, op. cit., p. 121.

351 CUSICANQUI, Jorge, op. cit., vol. II, p. 216.

352 Apud SOARES, Teixeira, op. cit., p. 220.

353 RIO BRANCO. Obras, vol. V, p. 62.

354 ANDRADE S, Francisco, op. cit., p. 228.

355 Apud JORGE, A. G. de Araújo, op. cit., p. 159.

356 ANDRADE S., Francisco, op. cit., p. 234.

357 Apud RABELO, Sylvio, op. cit., p. 254.

358 RIO BRANCO, Questões de limites, p. 109.

359 Ibid., p. 111.

360 LAPEYRE, Edison Gonzales, op. cit., p. 341.

361 ZEBALLOS, Estanislau. Revista de Derecho Internacional, tomo XLII, Buenos Aires.

362 Apud RICUPERO Rubens; ARAÚJO, João Hermes Pereira de. O Barão do Rio Branco − uma
fotobiografia. p. 81.
363 Sejamos bem precisos. Borders and Territorial Disputes, em sua mais recente edição (2004),
arrola três minúsculos problemas de fronteira envolvendo o Brasil. Um deles, com o Paraguai,
situa­-se na região de Sete Quedas, no rio Paraná (foi inundado pela barragem de Itaipu). Os
outros, com o Uruguai, dizem respeito a duas microrregiões no rio Quaraí: um marco, no
município de Santana do Livramento, que o Uruguai acha que está mal colocado, e uma
ilhota, na boca desse rio (há poucos anos tinha um só habitante, brasileiro, aliás).

364 ANDRADE, Francisco. Demarcación de las fronteras de Colombia. Bogotá: Ediciones Lerner,
1965, p. 54.

365 CARDOZO, Efraín. El Paraguay Colonial, p. 210.

366 A alusão a Grande sertão: veredas é uma homenagem ao Embaixador João Guimarães Rosa,
por onze anos chefe da Divisão de Fronteiras do Itamaraty.

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