O Que Se Aprende - Vol 2

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 314

O que se

ensina
e o que se
aprende
em História
A historiografia didática em debate
VOLUME 2
Organizadoras
Juliana Teixeira Souza
Margarida Maria Dias de Oliveira

O que se
ensina
e o que se
aprende
em História
A historiografia didática em debate
VOLUME 2
Copyright © by Organizadores
Copyright © 2022 Editora Cabana
Copyright do texto © 2022
Todos os direitos desta edição reservados

O conteúdo desta obra é de exclusiva


responsabilidade dos autores.

Projeto gráfico: Eder Ferreira Monteiro


Edição e diagramação: Helison Geraldo Ferreira Cavalcante
Coordenação editorial: Ernesto Padovani Netto
Revisão: Os autores
Capa: José Dias Belo Neto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

Q3 O que se ensina e o que se aprende em história [livro eletrônico]: a historiografia


didática em debate: volume 2 / Organizadoras Juliana Teixeira Souza,
Margarida Maria Dias de Oliveira. – Ananindeua: Cabana, 2022.
314 p. : il.
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-89849-49-0
1. História – Estudo e ensino. 2. Prática de ensino. 3.Professores de história –
Formação. I. Souza, Juliana Teixeira. II. Oliveira, Margarida Maria Dias de.

CDD 371.72

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

[2022]
EDITORA CABANA
Trav. WE 11, N º 41 (Conj. Cidade Nova I)
67130-130 — Ananindeua — PA
Telefone: (91) 99998-2193
[email protected]
www.editoracabana.com
Conselho Editorial

DRA. MARIETA DE MORAES FERREIRA (UFRJ/FGV)

DRA. MARIA AUGUSTA DE CASTILHO (UCDB)

DR. WESLEY GARCIA RIBEIRO SILVA (UFPA)

DR. DILTON CÂNDIDO SANTOS MAYNARD (UFS)

DRA. CARMEM ZELI DE VARGAS GIL (UFRGS)


Sumário
Apresentação......................................................................................................8
Juliana Teixeira Souza
Margarida Maria Dias de Oliveira

Os trabalhadores pobres livres e a luta


por cidadania na historiografia escolar................................................17
Juliana Teixeira Souza

História e Cultura dos Afrodescendentes.


O que a historiografia pode nos contar?..............................................56
Carlos Eduardo Moreira de Araújo

Visualidades e racializações: o PNLD e as imagens nos livros


de História do Ensino Médio (2008-2018) ............................................86
Maria Telvira da Conceição
Túlio Henrique Pereira

Representações dos africanos escravizados no Brasil


em livros didáticos de História (1980-2010)........................................118
Zenaide Inês Schmitz

Mulheres negras em lugares visíveis: contribuições


da pintura para a segunda escrita da África................................157
Susana Guerra

A cultura de histórias negras na busca


de uma narração ..........................................................................................189
Francisco das Chagas F. Santiago Júnior

Entre soadas e silêncios: desafios ao tratamento da História


das Mulheres em livros didáticos no âmbito do PNLD..............204
Flávia Eloisa Caimi
Letícia Mistura
Direito à diferença: História e culturas indígenas........................236
Lígio Maia

Por outras narrativas históricas escolares: povos indígenas e


narrativa histórica em livros didáticos ............................................269
Mauro Cézar Coelho

O desafio da renovação do que se ensina e do


que se aprende em História ...................................................................300
Magno Francisco de Jesus Santos
Apresentação

A crítica dos professores universitários ao conteúdo dos livros


didáticos de História já não é novidade em nossa área de conhecimen-
to, e entre os principais problemas apontados, destaca-se a distância
entre a abordagem de seus conteúdos e aquilo que é produzido na
academia. Nem sempre se considera, no entanto, que a forma que o
conhecimento acadêmico é produzido e difundido não auxilia os pro-
fissionais responsáveis pela produção, revisão e crítica dos livros didá-
ticos, nem tampouco os professores que utilizam os livros, reconhe-
cido como o principal recurso didático disponível nas salas de aula.
Isto porque os trabalhos acadêmicos são de caráter monográfico, os
objetos de pesquisa têm uma delimitação temática e temporal muito
precisa, e a difusão do conhecimento por meio da produção livresca e
artigos científicos é dispersa e fragmentada. A dificuldade é que essa
forma de estruturação da produção e difusão do conhecimento não é
incompatível com a proposta dos livros didáticos, que a tradição es-

8
colar consagrou com o formato de sínteses dos conhecimentos de um
campo de conhecimento aliado a uma proposta de desenvolvimento
do ensino e avaliação.
Os livros didáticos ainda se organizam de acordo com a perio-
dização hegemônica, quadripartite, perseguindo a proposta de uma
história total, dando conta das dimensões política, econômica, social e
cultural. Como a demanda por produção qualitativa e qualitativa, assim
como a dinâmica de organização do campo de conhecimento, com sua
ênfase na valorização de especialistas, já não permite que os historiado-
res se empenhem na produção de grandes sínteses, os livros didáticos
continuam, em grande medida, repetindo uma história política e eco-
nômica, embora enxertada por informações, em geral, complementares
aos textos principais, que procuram atender as demandas seja das políti-
cas públicas ou dos docentes que reclamam do aspecto ainda tradicional
das narrativas, embora muito atuais nos projetos gráficos.
Diante do desafio de contribuir de forma propositiva para a di-
minuição da distância entre o conhecimento acadêmico e o conheci-
mento escolar, a universidade e a escola, convidamos profissionais de
diversas áreas do conhecimento e de diversas regiões do país para res-
ponder as seguintes questões: quais os avanços e quais as fragilidades
que persistem na produção historiográfica escolar? No âmbito de suas
especialidades e frente ao atual estágio do debate historiográfico, quais
os conceitos, informações e abordagens que podem ser revisados e atu-
alizados nos livros didáticos? Considerando que o objetivo da Educação
Básica é contribuir para a formação cidadã de crianças e jovens, capaci-
tando-os para a construção de uma sociedade democrática e inclusiva,
quais informações, noções e conceitos devem ser priorizados? Em que
precisamos avançar, e por qual motivo?
Por meio das respostas a essas provocações, a ideia é colaborar com
os autores de livros didáticos e professores da Educação Básica no sentido

9
de fornecer subsídios para revisar criticamente e renovar as análises dos
livros didáticos, propondo temas e abordagens que podem contribuir para
atualizar as grandes sínteses que caracterizam os livros didáticos.
Esta publicação teve origem na provocação que enviamos para
um conjunto de colegas, formadores de professores, a qual responderam
com um resumo inicial do que eles consideraram como uma resposta
plausível. Esta proposta inicial transformou-se por meio do trabalho de
cada um em pesquisa – alguns acessando a historiografia, outros aces-
sando os livros didáticos1 e, outros ainda, acessando tanto um quanto
outro. Escritos os textos eles foram compartilhados com os colegas e
debatidos no evento, O que se ensina e o que se aprende em História:
a historiografia didática em debate, ocorrido nos dias 09 e 10 de se-
tembro de 2020 por meio remoto em função da pandemia causada pela
COVID-19. Após o debate com o público e os comentadores durante
o evento, os autores reviram seus textos e são o resultado deste longo e
educativo processo que se encontra aqui publicado.
Diante da quantidade de textos e autores, foram organizadas
duas publicações. Uma que respeitou os recortes temporais, espaciais
e de conteúdo consagrados pela tradição escolar e adotada pela Base
Nacional Comum Curricular para organização dos capítulos. Dito isso,
justifica-se haver capítulos sobre História Antiga, História Medieval,
História Moderna e História Contemporânea, assim como sobre Histó-
ria do Brasil, História da América, História da África e História Geral,
com ênfase na Europa. Adotar essa organização não significa que os au-
tores da coletânea concordem com essa organização dos conteúdos do
componente curricular História, mas sendo estes recortes amplamente
utilizados nas organizações curriculares da Educação Básica, optou-se
por evidenciar que correções, revisões, atualizações e inovações tam-
bém são possíveis respeitando esse recorte.
1 Contamos para isso com o acervo do Memorial do PNLD (https://cchla.ufrn.br/pnld/) e externamos aqui
nossos agradecimentos à equipe de bolsistas que forneceram as obras solicitadas.

10
E há um volume da publicação em que foram produzidos capítu-
los especialmente dedicados a contemplar temas que se tornaram obri-
gatórios por força de dispositivos legais, tais como a Lei Nº 10.639/2003,
que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura da África e dos
Afrodescendentes como parte das políticas públicas contra o racismo, a
Lei Nº 11.645/2008, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura
dos povos indígenas como parte das políticas de valorização da diversi-
dade e respeito à diferença dos povos indígenas, e a Lei Nº 11.340/2006,
conhecida como Lei Maria da Penha, que propõe a inserção, nos currícu-
los escolares, de conteúdos relativos às questões de gênero como parte das
políticas públicas de combate à violência contra a mulher.
Haja vista as especificidades da educação escolar, não se trata de
elencar todas as novidades da frente pioneira da produção acadêmica,
nem tampouco os modismos ou as temáticas que são muito específicas.
Era uma questão importante a ser considerada, pois a crítica aos livros
didáticos também deve enfrentar o problema da dificuldade em se esta-
belecer critérios para seleção de conteúdo, pautando-se nas finalidades
da Educação Básica e função social da História ensinada. Por conta disso,
o foco foi identificar os conhecimentos já consensuados ou amplamente
aceitos, avaliados como imprescindíveis para a compreensão das experi-
ências, formas de pensar e sentir das sociedades pretéritas, como também
os conhecimentos que foram avaliados capazes de oferecer uma contri-
buição efetiva para a formação cidadã de nossas crianças e jovens.
O livro que o leitor tem em mãos foi dedicado aos temas que se
tornaram obrigatórios por força de dispositivos legais.
O capítulo que abre este volume foi escrito por Juliana Teixeira
Souza e propõe uma revisão da História da cidadania no Brasil, conside-
rando as lutas empreendidas pelos trabalhadores pobres livres por aces-
so a direitos políticos e, sobretudo, direitos sociais, desde as lutas pela
independência. Dessa maneira, propõe-se romper os marcos de perio-

11
dização comumente utilizados nos livros didáticos, que tendem a con-
siderar que a história dos trabalhadores livres teria se iniciado somente
após a Abolição. A partir da análise das coleções didáticas aprovadas
no Programa Nacional do Livro e do Material Didático – PNLD 2018,
Ensino Médio, confrontadas com os conhecimentos consensuados pe-
los especialistas de História do Brasil Império, Juliana Teixeira Souza
sugere aproximações entre a historiografia escolar e a historiografia aca-
dêmica por meio da atualização na abordagem de fatos históricos e con-
ceitos estruturantes da História como componente curricular escolar,
tais como sujeito histórico, trabalho, relações de poder e cidadania.
O capítulo escrito por Carlos Eduardo Moreira de Araújo tam-
bém problematiza o 13 de Maio de 1888 como marco de periodização
nos livros didáticos de história, que frequentemente silenciam sobre a
história e cultura dos afrodescendentes após esse fato histórico, como
se não tivessem lugar, nem ocupação, na história do Brasil republicano.
Confrontando os significados desse silenciamento, o autor destaca a de-
manda do movimento negro contemporâneo por revisão dessa narrati-
va historiográfica, que estigmatiza os negros como sujeitos escravizados
e marginalizados. Em sua análise sobre a apropriação da historiografia
acadêmica por parte da historiografia escolar, Carlos Eduardo Moreira
de Araújo mostra que se, por um lado, os livros didáticos têm se empe-
nhado significativamente na atualização da história dos afrodescenden-
tes no cativeiro, não se pode afirmar o mesmo para a história dos ne-
gros no pós-Abolição, muito embora a historiografia acadêmica tenha
produzido nas últimas décadas conhecimentos que certamente podem
subsidiar a inclusão da população negra na história política, social e cul-
tural do Brasil republicano.
A crítica histórica do movimento negro contra as representações
desse grupo étnico-racial nos livros didáticos também é abordada no
capítulo de Maria Telvira da Conceição e Túlio Henrique Pereira, pro-

12
blematiza a narrativa visual sobre a população negra apresentada nos
livros didáticos. Os autores procuram mostrar como as avaliações do
PNLD impulsionaram mudanças estruturais, textuais, visuais e teóricas,
encaminhadas pelas editoras de livros didáticos em razão dos critérios
de aprovação estabelecidos nos editais do PNLD. Sesse sentido, o obje-
tivo de Maria Telvira da Conceição e Túlio Henrique Pereira foi avaliar
em que medida essas mudanças efetivamente atenderam as demandas
da população negra que tem se mobilizado com o intuito de consolidar
uma política pública de Educação Étnico-racial para o Brasil.
Zenaide Inês Schmitz escreveu um capítulo sobre a representa-
ção dos africanos escravizados, buscando compreender os dispositivos
pelos quais são apropriados os saberes produzidos pela historiografia,
que resultam na escrita de livros didáticos de História destinados aos
estudantes e professores da Educação Básica. Os livros didáticos de
História analisados pela autora, publicados entre 1980 e 2010, foram
tomados como objeto e fonte de pesquisa, e a análise contemplou cin-
co categorias temáticas: Diáspora Africana, Resistência, Cotidiano
dos Escravizados, Abolição da Escravatura e o Contexto Pós-abolição.
A partir desse recorte, o objetivo de Zenaide Inês Schmitz foi buscar
evidências que permitissem perceber como a temática dos africanos
escravizados repercute nas obras didáticas, e como estas estabelecem
o diálogo com o debate historiográfico.
O capítulo escrito por Susana Guerra sobre mulheres negras na
África critica a persistência, na literatura didática, de uma escrita histo-
riográfica que privilegia a perspectiva das elites brancas masculinas, de
modo que a inclusão de narrativas sobre os africanos continua sendo
uma imagem redutora e empobrecida de sua realidade. Contudo, a au-
tora pondera sobre as mudanças efetuadas nos últimos anos em razão
da implantação da Lei Nº 10.639/2003, que tem estimulado a ampliação
das imagens afirmativas dos povos africanos, apesar de não serem majo-

13
ritariamente produzidas por artistas e intelectuais negros. Diante disso,
Susana Guerra destaca a potencialidade dos usos didáticos de imagens
produzidas por artistas negras no ensino da História da África e da Di-
áspora, com o fim de problematizar as visões de mundo hegemônicas
que excluem as mulheres, e especialmente as mulheres negras africanas,
das narrativas históricas.
Flavia Caimi e Letícia Mistura situam a temática da história
das mulheres nos livros didáticos de História numa perspectiva tam-
bém instigante, considerando os livros como documento que eviden-
cia a articulação entre os critérios do PNLD, uma política de Estado,
e a produção de narrativas históricas para o ensino. A análise das au-
toras avança no sentido de conhecer os alcances e restrições da abor-
dagem dessa temática nos livros didáticos, explorando as presenças e/
ou ausências das discussões acerca do tema, assim como estabelecer
um diálogo com o campo historiográfico que tem se dedicado à pes-
quisa acerca das relações de gênero e história das mulheres no Brasil.
Deste modo, Flavia Caimi e Letícia Mistura salientam a importância
de leis e políticas afirmativas serem acompanhadas de processos edu-
cativos escolares que promovam o conhecimento e a reflexão sobre as
lutas históricas das mulheres do passado e da contemporaneidade por
igualdade de gênero e representação social.
Lígio Maia reforça a importância da Educação na luta por direi-
tos constitucionais, desta feita considerando a mobilização dos povos
indígenas pelo reconhecimento estatal de sua condição diferenciada, de
modo que lhes seja garantida uma política educacional também dife-
renciada. Com o objetivo de avaliar o efetivo alcance das políticas públi-
cas para e sobre os índios, o autor propõe uma reflexão sobre a temática
indígena a partir dos enunciados da Lei N° 11.645/2008, apresentando
perspectivas de abordagens que contribuam para a ampliação de no-
ções e/ou conceitos pertinentes à história ensinada nos livros didáticos

14
sobre os índios no Brasil. Lígio Maia aponta, então, para cinco aspectos
que considera imprescindíveis de serem tomados em consideração pela
produção didática: pluralidade cultural, cultura histórica, protagonismo
indígena, tempo presente e saberes indígenas.
O capítulo produzido por Mauro Cezar Coelho encerra o vo-
lume discutindo a abordagem das temáticas relativas aos povos in-
dígenas nas narrativas histórica escolares, norteando-se pela preocu-
pação em propor encaminhamentos e propostas de contribuam para
a superação das fragilidades e lacunas comumente identificadas nos
livros didáticos. De acordo com o autor, para que os livros didáticos
cumpram com seu potencial, é fundamental que a Diferença seja reco-
nhecida como condição indispensável para o convívio pacífico e res-
peitoso na sociedade, e que a Diversidade seja reconhecida como um
valor inegociável. Neste sentido, Mauro Cézar Coelho defende que in-
corporar as ações e agendas dos povos indígenas na narrativa histórica
escolar é uma obrigação a ser assumida por todos(as) os(as) profissio-
nais de História comprometidos com a construção de uma sociedade
democrática, inclusiva e combativa.
Expressando o debate que propusemos realizar, o livro con-
ta ainda com dois textos escritos por Francisco das Chagas Fernandes
Santiago Júnior e Magno Francisco de Jesus Santos, que participaram
como comentadores do evento O que se ensina e o que se aprende em
História: a historiografia didática em debate, é de autoria dos mesmos
os textos de comentários e fazendo um balanço do evento, considerando
suas propostas e resultados.
Ao fim dessa jornada, esperamos ter mostrado que, mesmo ad-
mitindo que sejam mantidos o modelo quadripartite e a proposta de
uma história total, o avanço nos estudos históricos nas diversas áreas de
conhecimento, assim como a emergência, desde início dos anos 2000,
de um conjunto de dispositivos legais que impactou fortemente a de-

15
finição dos objetivos precípuos da do ensino escolar, tornaram forçoso
reconhecer há saberes consolidados no campo da pesquisa que podem
ser apropriados pela historiografia didática, de modo a favorecer a re-
novação dos conhecimentos históricos a serem construídos pelos es-
tudantes no processo de formação cidadã promovido pelas escolas da
Educação Básica. Nesse sentido, os trabalhos aqui reunidos evidenciam
de forma consistente que, apesar dos avanços, os livros didáticos preci-
sam aprofundar o processo de revisão, de modo a apresentar conteúdos
condizentes com o atual estágio da pesquisa acadêmica e contribuir de
forma propositiva para a consecução do projeto de formação cidadã que
é demandado atualmente pela sociedade brasileira.

As organizadoras

16
Os trabalhadores pobres livres e a luta
por cidadania na historiografia escolar
Juliana Teixeira Souza1

1 Doutora em História Social pela UNICAMP. Professora do Departamento de História da Universidade


Federal do Rio Grande do Norte e do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Ensino de
História (ProfHistória – UFRN).

17
A proposta desse capítulo é contribuir para o debate sobre a
história da luta por direitos de cidadania no Brasil, considerando es-
pecialmente as agências dos trabalhadores pobres livres no século XIX,
confrontando o peso da narrativa historiográfica escolar hegemônica,
que institui o 13 de Maio de 1888 como marco inicial da história dos
trabalhadores no Brasil, a necessidade de atualização do conhecimento
escolar na área de História, referenciado pela produção historiográfica
acadêmica, e as demandas sociais que pesam sobre o ensino escolar por
meio das mobilizações da sociedade civil organizada.
Para a análise das lutas pelo direito à cidadania no Brasil Império
apresentada nos livros didáticos, utilizamos como fonte as obras aprova-
das no PNLD 2018 – Ensino Médio. Nessa avaliação foram aprovadas 13
coleções de História, e por meio de pesquisa realizada no Memorial do
PNLD, foi possível o acesso a 12 coleções: Caminhos do homem (Base
Editorial), Cenas da História (Palavras Projetos Editoriais), Conexões
com a História (Moderna), Contato # História (Quinteto Editorial),
Das cavernas ao terceiro milênio (Moderna), História (Saraiva), His-
tória: passado e presente (Ática), História em debate (Editora do Bra-
sil), História Global (Saraiva), Oficina de História (Leya), Por dentro
da História (Escala Educacional), e História: sociedade & cidadania
(FTD).2 A partir da análise dessas obras, elaboramos indicadores quali-
tativos e quantitativos que permitam recortar as unidades comparáveis
dos textos, para proceder a análise temática e codificação para registro
de dados (BARDIN, 2002). Por meio da organização dos indicadores
e da confrontação dos dados, pudemos inferir sobre as condições de
produção e recepção da escrita historiográfica escolar, atentando espe-
2 A pesquisa ao acervo do Memorial do PNLD foi realizada no primeiro semestre de 2020, em meio à
pandemia do COVID-19. A obra que não foi possível acessar, por problemas técnicos que só poderiam ser
resolvidos por meio de uma visita presencial ao Memorial PNLD foi Olhares da História: Brasil e Mundo
(Editora Scipione). A visita presencial não foi realizada em respeito às medidas de isolamento social. Apesar
desse pequeno percalço, agradeço imensamente à equipe de apoio técnico do Memorial do PNLD, formada
pelos estudantes de graduação em História da UFRN – Danielle Pereira Romeiro Silva, Diego Higor Fer-
nandes Silva, Vivian Mikaelly da Silva Pereira e Wesley Silva Bandeira Xavier –, que me auxiliaram de forma
gentil e eficiente no acesso às obras em meio à crise sanitária.

18
cialmente para os conceitos e noções que contribuem mais diretamente
para a construção de conhecimentos essenciais para a formação cidadã,
tais como sujeito histórico, trabalho, relações de poder e cidadania.
Para identificar possibilidades de aproximação entre a historiogra-
fia escolar e a historiografia acadêmica – considerando as especificidades
de cada produção, o público-alvo e os objetivos perseguidos –, propomos
sintetizar os conhecimentos consensuados pelos especialistas de História
do Brasil Império e identificar os saberes que podem ser incorporados à
produção do conhecimento histórico no âmbito escolar, mostrando em
que medida a atualização desses conhecimentos pode contribuir signifi-
cativamente para a construção dos conceitos já mencionados, que tam-
bém são estruturantes da História como componente curricular escolar.
A ideia, portanto, não é fazer um levantamento exaustivo de no-
vos temas e teses para difundir entre o público da Educação Básica as
últimas propostas surgidas nos programas de pós-graduação, pois con-
sideramos que o objetivo do ensino de História no âmbito escolar não
“corresponde nem à justaposição nem à simplificação da produção aca-
dêmica” (NADAI, 1993, p. 159). Diferente disso, a produção do conhe-
cimento histórico no ensino objetiva “construir coletivamente conheci-
mentos históricos (que serão novos apenas para os alunos) a partir do
conjunto de saberes aceitos pela tradição historiográfica” (OLIVEIRA,
2010, p. 11). A seleção dos conteúdos a serem ensinados passa, portan-
to, pela definição dos saberes que já foram relativamente consensuados
entre os especialistas da área.
Detectadas as conexões e discrepâncias entre as produções his-
toriográficas acadêmica e escolar, de forma propositiva, o que pretende-
mos é elaborar uma pauta de temas e saberes que podem ser tomados
como referência, pelos autores de materiais didáticos e professores do
Ensino Básico no processo de atualização do conhecimento sobre a His-
tória do Brasil Império ensinada na Educação Básica.

19
REVISANDO OS SIGNIFICADOS DOS REGISTROS DE
PROTESTO NA HISTÓRIA DO BRASIL IMPERIAL

Ao propor maior aproximação da historiografia escolar com os


estudos no campo da História Social, o que sugerimos não é necessa-
riamente uma nova pauta de conteúdos substantivos, mas principal-
mente a revisão dos temas já tradicionalmente abordados no currículo
escolar. A História Social oitocentista tem se notabilizado nas últimas
décadas pelo esforço em evidenciar a dimensão política dos conflitos
nos quais se envolveram os trabalhadores livres e escravizados, desde
a Independência até o fim da Monarquia, propondo novas abordagens
para velhos temas. Nos referimos à vertente que vem contribuindo
para o incremento dos estudos sobre os mundos do trabalho elegen-
do, como objeto de estudo, eventos que a tradição historiográfica con-
sagrou como marcos notáveis na cronologia do Brasil Império. São
“grandes acontecimentos” – como decisões de governo e conflitos ar-
mados – cuja abordagem esteve por muito tempo restrita à análise de
ações e interesses das elites, mas que passaram a ser revisados pela
História Social, privilegiando a experiência histórica de outros sujei-
tos que participaram e tiveram suas vidas afetadas por esses aconte-
cimentos. São os sujeitos que, no dizer de Ilmar R. de Mattos (2004),
compunham o mundo do trabalho e o mundo da desordem, quais se-
jam: os homens e mulheres escravizados e pobres livres, predominan-
temente pretos e pardos, além dos indígenas convertidos em caboclos,
que atemorizavam a “boa sociedade” composta pela elite senhorial.
Assim, a história da Independência do Brasil foi deixando de
se restringir às intrigas palacianas nas Cortes e aos interesses de pro-
prietários de terra e negociantes radicados no centro-sul (MOTA,
1986), passando a incorporar novos problemas, como a ameaça à
ordem escravista representada pela participação do “partido negro”

20
nas lutas pela Independência na Bahia (REIS, 1989; KRAAY, 2006), a
busca por melhores condições de vida motivando a ação de escravi-
zados e pobres mestiços nas sangrentas batalhas pela Independência
no Piauí (DIAS, 2015), ou a presença de negros despossuídos, assim
como de pretos e pardos egressos das tropas de linha e dos terços
auxiliares, nos movimentos políticos pernambucanos (SILVA, 2003).
O que esses estudos trouxeram de novo foi a percepção de que os ho-
mens e mulheres que participaram dessas batalhas não foram coop-
tados como massa de manobra das elites, tendo interesses próprios a
defender por meio daquelas lutas.
Nos livros didáticos analisados, a Independência ainda figura
como “resultado de uma negociação entre a elite nacional, a monarquia
portuguesa e a Inglaterra”, uma “ruptura sem participação popular” (AL-
VES; OLIVEIRA, 2016, p. 148), “sem intensos conflitos armados e com
quase nenhuma participação dos grupos populares” (GRANGEIRO,
2016a, p. 278), assumindo-se que “a maior parte da população, sobretudo
as pessoas pobres e os escravizados participou dessa história apenas pela
porta dos fundos” (GRANGEIRO, 2016b, p. 279) . Ainda assim, todas as
coleções fazem referência aos embates que contaram com ampla partici-
pação popular ocorridos nas províncias do Norte, como Pará, Maranhão,
Piauí e Bahia. Mas em função da abordagem ainda preocupada com os
interesses das elites e a identificação dos “grandes homens”, as narrativas
tendem a enfatizar a resistência portuguesa e a participação de mercená-
rios estrangeiros no comando das tropas formadas pela população.
Nas breves referências à participação de pobres livres e escra-
vizados nas lutas pela Independência, estes não figuram necessaria-
mente como sujeitos de suas histórias, prevalecendo a preocupação
em salientar que a “maioria dos escravos que participaram das guerras
de independência na Bahia foi confiscada e recrutada à força” (BRAI-
CK; MOTA, 2016, p. 154), ou ser “comum que senhores de engenho

21
mandassem seus escravos para as guerras no lugar de seus filhos e de si
próprios”, além de “os portugueses também utilizaram tropas formadas
por escravos africanos e afrodescendentes contra os brasileiros” (PEL-
LEGRINI; DIAS; GRIMBERG, 2016, p. 253). Desse modo, o esforço
em salientar as estratégias de poder mobilizadas pelas elites resulta em
anulação da capacidade de ação autônoma por parte dos escravizados.
É difícil encontrarmos narrativas que se ocupem das agências dos ho-
mens e mulheres negros que participaram das lutas pela Independência,
lembrando que “empunharam armas na esperança de usar seus serviços
de guerra como moeda de troca para obterem a alforria” (COTRIM,
2016, p. 177). E esse é um avanço necessário para que sejam identifica-
dos como sujeitos históricos, cujas agências não podem ser deduzidas a
partir da imposição dos “de cima”.
A preocupação em construir uma narrativa da História do Bra-
sil oitocentista vista a partir debaixo também renovou o interesse pe-
las revoltas regenciais, cujos estudos por muito tempo estiveram mais
atrelados ao debate sobre centralização e descentralização do poder, ou
ocupados em enfatizar as disputas entre diversas facções das elites no
interior das províncias. Essa pauta foi mudando o foco e passando a
se ocupar também das motivações de escravizados, vaqueiros, artesãos,
lavradores e pequenos fazendeiros, indígenas, negros e mestiços, que
participaram da Balaiada no Piauí, Maranhão e Ceará (DIAS, 2002); dos
protestos na Corte protagonizados por liberais exaltados, pela tropa, a
plebe e escravizados, logo após a Abdicação (BASILE, 2004, 2007); e das
sedições lideradas por homens pretos e pardos das milícias e das tropas
que se opunham aos privilégios de cor, terminando no massacre de por-
tugueses durante as “rusgas” de Cuiabá (LIMA, 2016).
A participação popular nas revoltas regenciais foi abordada
em todas as coleções analisadas, mas desenhando-se quase sempre
um mesmo percurso, em que elas figuram inicialmente como massa

22
de manobra e são abandonadas à própria sorte quando ousam esca-
par ao domínio dos grandes proprietários de terra, como se observa
nos exemplos abaixo
Normalmente, as elites locais se mobilizavam contra o governo
central em defesa de certos ideais políticos liberais e convoca-
vam as massas populares para participarem dos movimentos.
Em um segundo momento, perdiam o controle sobre essas ca-
madas populares, pois estas tinham suas próprias reivindica-
ções, como melhor distribuição da terra e abolição da escravi-
dão (BERUTTI; MARQUES, 2016, p. 233).

Em princípio, a população mais pobre participou desse cenário


entrando pelas "portas do fundo" e assumindo um papel secun-
dário - quase sempre como instrumento de manobra de deter-
minados grupos de elite, que desejavam se fortalecer diante do
opositor. Com o passar do tempo, porém, o que era conflito
das elites começou a se transformar em rebelião popular: nesse
instante, quase invariavelmente, os grupos de elite recuaram,
uniram-se e a repressão aos movimentos provinciais fez-se vio-
lenta, com o método das armas e do massacre sendo legitimado
pelo discurso da ordem e da unidade nacional (GRANDEIRO,
2016c, p. 35).

A população mais pobre entrou nessas lutas, muitas vezes, como


instrumento de manobra dos grupos de elite, que procuravam
se fortalecer. O quadro social, marcado pela escravidão, não
era nada animador. Como resultado, o conflito entre as elites
tornou-se rebelião popular, pessoas escravizadas, trabalhadores
empobrecidos, pequenos comerciantes que viram no desarranjo
do poder uma oportunidade para conquistar melhores condi-
ções de vida. Naquele momento, as elites recuaram, temendo
perder terras, escravos e poder (SANTIAGO; CERQUEIRA;
PONTES, 2016, p. 161).

23
O período regencial é apresentado, dessa forma, como o mo-
mento de “reafirmação da ordem imperial e a consolidação do Esta-
do nacional brasileiro” (ALVES; OLIVEIRA, 2016, p. 198), conquistas
realizadas às custas da violenta repressão, massacre e perseguição da
população pobre livre e escravizada que pretendeu desafiar a hegemo-
nia das elites. A vitória dos grupos capitaneados pelo governo central
é sempre representada de forma a pontar para uma vitória total, es-
pecialmente quando se refere à Guerra dos Cabanos, Balaiada, Caba-
nagem e Revolta dos Malês, identificadas como insurreições de cará-
ter popular. Nesse sentido, é comum o uso das expressões: contra os
grupos desfavorecidos, “caberia aos regentes reverter essa situação, a
ferro e logo!” (GRANDEIRO, 2016c, p. 33); a maior parte das rebeli-
ões foi “violentamente reprimida” (ALVES; OLIVEIRA, 2016, p. 198);
“a maioria dos rebeldes, provenientes das camadas pobres, foi presa
ou executada” (BRAICK; MOTA, 2016, p. 190); “o governo regencial
reprimiu a rebelião com máxima violência” (VAINFAS et al., 2016, p.
160); “os que sobreviveram aos combates e as perseguições acabaram
presos” (COTRIM, 2016, p. 198); “estima-se que 30% da população da
província, de cerca de cem mil pessoas, tenham sido dizimadas nessa
verdadeira guerra civil vencida pelas forças leais ao governo do Rio de
Janeiro” (CAMPOS; PINTO; CLARO, 2016, p. 184).
Nesses casos, chama atenção a forma como a violência prati-
cada pelo Estado é naturalizada. Os rebeldes aparecem perseguidos,
violentamente reprimidos, massacrados, dizimados e executados sem
que se problematize a legitimidade dessas ações, especialmente frente
à posição ocupada pelos sujeitos responsáveis por essas ações dentro
do Estado. Além disso, os conflitos armados protagonizados por pes-
soas despossuídas, em busca de uma vida melhor, parecem não apenas
fadadas ao fracasso, mas também como incapazes de propiciar qual-
quer legado que não seja destruição e morte. A importância da luta

24
empreendida por esses sujeitos na formação de uma cultura política,
na construção de uma noção de justiça e cidadania, ou para o tensio-
namento de conflitos étnico-raciais, não são tomados em considera-
ção. E são reflexões que já vêm sendo feitas pela historiografia, mos-
trando como a abordagem de questões relacionadas à classe e origem
étnico-racial tem contribuído para a renovação da historiografia da
Independência e das revoltas regenciais.
Exemplo disso são os estudos de Marcus J. C. de Carvalho
sobre a participação de indígenas, quilombolas, pretos, pardos e es-
cravizados nos conflitos ocorridos em Pernambuco durante o ciclo
de revoltas liberais (1817-1848). Em seus textos, Carvalho mostrou
como as manifestações de oficiais de baixa patente pretos e pardos
repercutiu na resistência quilombola em 1823; como a participação
de gente modesta da zona da mata na Cabanada, embora tivesse o
objetivo expresso de apoiar a volta de D. Pedro I, antes significava a
defesa da posse de terra, da integridade das famílias e de um modo
de vida que propiciasse relativa autonomia; e como a carestia e falta
de oportunidades de trabalho, culminando no antilusitanismo e na
defesa da nacionalização do comércio à retalho, favoreceu a adesão
popular à liderança dos praieiros (CARVALHO, 2003, 2006, 2011).
Os estudos de Marcus J. C. de Carvalho fazem notar que, por um
lado, as elites debatiam a instauração de um novo Estado nacional
e os diferentes projetos para seu arranjo institucional, mas por ou-
tro também enfrentavam as ameaças dessa população despossuída
que procurava tirar algum proveito das lutas travadas entre as cama-
das dominantes, fosse angariando seu apoio ocasional, integrando
as malhas clientelares das facções em confronto, ou engrossando a
participação popular em protestos urbanos e guerrilhas na zona da
mata. Representavam, portanto, uma ameaça real, um aspecto que
não poderia deixar de ser considerado nas ações e ideias de homens

25
do governo, como também nas ações e declarações de intenções de
homens com projeto de participação no mundo do governo.
Apesar de grandes conflitos serem temas privilegiados nas cole-
ções didáticas, nenhum dos livros didáticos de História consultados para
essa pesquisa abordou os movimentos sociais ocorridos no campo na se-
gunda metade do século XIX. Trata-se, entretanto, de um tema consolida-
do e reconhecidamente relevante no debate acadêmico, e que tem propos-
to um conjunto de discussões que pode contribuir de forma significativa
para uma melhor compreensão da História da Cidadania no Brasil.
Há uma tradição de estudos sobre os movimentos sociais rurais
ocorridos nas províncias do Norte (JOFFILY, 1977; MAIOR, 1978), em-
bora não tivesse muita repercussão entre os historiadores do eixo Rio-
-São Paulo. No início dos anos 1980, Hamilton de Mattos Monteiro já
chamava atenção para a necessidade de a historiografia brasileira supe-
rar o “provincialismo intelectual” que lhe induzia a privilegiar a história
das elites vitoriosas no eixo econômico dentro do território nacional,
negligenciando a história da população empobrecida e explorada de ou-
tras regiões, “acusada de ignorante, fanática e indolente”. Não obstante
recorresse a termos parecidos e não acreditasse que a população pobre
rural pudesse julgar as decisões do governo por si só, afastando-se da
cultura das elites, Monteiro (1981) se dedicou a estudar as insurreições
ocorridas nas províncias do Norte no século XIX, salientando que ti-
nham em comum a perda de confiança nos meios legais de reclamação
e a proposta não-revolucionária de atingir objetivos pontuais e específi-
cos, como a exigência de suspenção de medidas legais implantadas após
1850, dentre as quais destacou o Ronco da Abelha, o Quebra-Quilos e as
mobilizações contra o recrutamento forçado.
O estopim da revolta conhecida como Ronco da Abelha ou Guer-
ra de Marimbondos foi a aprovação dos decretos 797 e 798 de 1851, que
instituíram o censo geral do Império e o registro civil de nascimentos e

26
óbitos, contra os quais se opuseram os trabalhadores rurais de Alago-
as, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e
Sergipe. Diante da aprovação anterior da Lei de Terras e Lei Euzébio de
Queiróz, entre a população camponesa, majoritariamente composta por
homens e mulheres pretos e pardos, correu o boato de que a elite senho-
rial utilizaria as informações recolhidas para tornar mais severo o recruta-
mento militar ou para suprir a demanda por mão de obra, reduzindo toda
a população livre de cor ao cativeiro, gerando os violentos protestos que
culminaram com adiamento do censo e suspensão do registro civil.
Em seus estudos sobre a Guerra dos Marimbondos, Guiller-
mo de J. Palacios y Olivares descartou a suposição de que essa popu-
lação havia sido manipulada em meio aos conflitos entre liberais e
conservadores, sob o argumento de que, ocupando a linha de frente
da reserva de mão obra na conjuntura que marcava o início da crise
do escravismo, as medidas legais adotadas pelo governo represen-
tavam para esses camponeses “sinais evidentes de que uma grande
mudança estava a caminho, e que essa mudança, seria no fundo con-
cretizada às suas próprias expensas” (OLIVARES, 2006, p. 14). Sid-
ney Chalhoub (2012), por sua vez, destacou que o crédito dado pela
população ao boato de que o governo pretendia reduzir toda gente
de cor ao cativeiro não resultava de ignorância ou desvario, pois se
tratava de um medo pautado nas experiências históricas vivenciadas
há décadas pela população preta e parda livre, que convivia cotidia-
namente com o risco de ser escravizada ou re-escravizada ilegalmen-
te. Essas práticas seriam resultado da suspeição generalizada de que
todos os negros fossem cativos, e da conivência das autoridades com
o comércio ilegal de escravizados após a primeira lei de extinção
do tráfico, em 1831. A revolta contra a chamada “Lei do Cativeiro”
torna-se, assim, expressão da luta da população negra contra a pre-
carização do direito à liberdade (CHALHOUB, 2012).

27
Estendendo-se pelas províncias de Alagoas, Bahia, Ceará, Minas
Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo, as au-
toridades do governo também tiveram dificuldade em controlar o mo-
vimento conhecido como Revolta do Quebra-Quilos (1874-1876), que
se opunha à cobrança de impostos considerados indevidos, à uma nova
lei sobre o recrutamento militar, e à adoção do sistema métrico-decimal.
A ação dos revoltosos se pautava numa noção de justiça própria aos tra-
balhadores do campo, cuja lógica era expressa, como indicou Luciano
Mendonça de Lima, na oposição ao recrutamento, chamado de imposto
de sangue, que desestruturava as famílias alijando-as da força de tra-
balho masculina, e na crítica à sobrecarga de impostos (LIMA, 2011,
p. 470). A imposição de novos padrões alterava aspectos essenciais do
cotidiano da população pobre rural, cujos valores eram construídos e
expressos por meio de tradições e costumes. Nesse sentido, a quebra de
pesos e medidas tem sido interpretada como indício de uma forte opo-
sição entre a economia moral sertaneja e as reformas modernizadoras,
que foram vistas como novas formas de exploração econômica, política
e social (SECRETO, 2011).
Outro evento que marcou a história das populações rurais das
províncias do Norte naquela década foi a Grande Seca de 1877, impac-
tando fortemente as relações de trabalho no campo, que foi devastado
pela longa estiagem, e nas cidades, afetadas pela chegada da multidão
de retirantes. Com as autoridades premidas pela necessidade de des-
pender recursos com a população esfaimada, o governo, grandes pro-
prietários e comerciantes empregam essa multidão em obras públicas,
na expectativa de afastá-los dos “vícios da ociosidade” e submetê-los à
nova disciplina do trabalho. Tais medidas, no entanto, não asseguraram
o controle da multidão, havendo registros de distúrbios como invasão às
cidades, saques em estabelecimentos comerciais e do governo, protestos
na distribuição de socorros públicos, tumultos nos canteiros de obras

28
para “melhoramento” das cidades e confrontos violentos em colônias
agrícolas. Esses protestos eram motivados pela revolta da população
contra a corrupção e especulação com o preço dos alimentos, contra os
maus-tratos impostos às famílias sertanejas, e contra falta de assistência
aos pobres em época de escassez (CÂNDIDO, 2011; BRITO, 2015).
Além disso, os serviços e rotina de trabalho impostos aos reti-
rantes seguiam uma lógica incompatível com os costumes que regiam
as relações de trabalho no campo, a partir das quais se procuravam
resolver os conflitos com os proprietários de terra. E foi por meio de
petições e ações violentas que a população se opôs à falta de assistên-
cia das autoridades responsáveis por socorrer os pobres em tempos de
escassez, assim como se opôs às novas formas de exploração de sua
mão-de-obra. Tomando como referência estudos clássicos da História
Social (RUDÉ, 1991; THOMPSON, 1998), o historiador Frederico de
Castro Neves, uma referência nos estudos sobre os protestos dos reti-
rantes no Ceará, há tempos têm evidenciado que a ação da multidão
não deixa dúvidas sobre a capacidade dos trabalhadores rurais agirem
de forma autônoma e coletiva, sobretudo em tempos de crise (NEVES,
2000). A seca, contudo, tornou as relações de trabalho ainda mais pre-
cárias, na medida em que os retirantes se viram submetidos a longas
jornadas de trabalho em troca de água de má qualidade, alimento es-
casso e eventual doação de alguma peça de vestuário.
A análise das demandas populares nessas diferentes revoltas
mostra que os trabalhadores urbanos e rurais tinham suas próprias lei-
turas sobre as medidas tomadas pelas autoridades do governo, e faziam
questão de expor o que entediam como seus direitos através de diferentes
ações. Os registros de protesto, em especial, nos trazem indícios daquilo
que os trabalhadores entendiam como justiça, à qual reivindicavam na
qualidade de súditos e cidadãos, o que justifica estes homens e mulheres
serem reconhecidos pela historiografia como sujeitos de direito. Como

29
salientou María Verónica Secreto, o que as revoltas populares mostram
é que “nem toda política acontecia nas instituições. E nem toda a políti-
ca do Império acontecia na Corte” (SECRETO, 2011, p. 117).

NOVAS PERSPECTIVAS PARA O “VELHO”


PROBLEMA DA TRANSIÇÃO DO TRABALHO
ESCRAVO PARA O TRABALHO LIVRE

Outros eventos da História do Brasil Império que têm passado


por um processo de revisão são a implantação da Lei de Terras e da
Lei Euzébio de Queiróz, dispositivos complementares aprovados em
1850, num intervalo de apenas duas semanas. A Lei de Terras foi con-
sagrada pela historiografia como um marco do domínio senhorial, por
determinar que a posse da terra só poderia ser feita através da compra,
vetando seu acesso aos homens pobres livres (MARTINS, 1990), e pela
recusa dos barões em dar execução à lei, favorecendo a continuação da
posse ilegal e profusão de grandes propriedades improdutivas no Bra-
sil (CARVALHO, 2010). Já o debate sobre a lei que extinguiu o tráfico
atlântico de escravizados esteve focado, sobretudo, em determinar o
peso da ação britânica e dos interesses internos na execução da medi-
da (BETHELL, 2002; RODRIGUES, 2000). Retomados pela História
Social, esses eventos têm sido pensados sob o ponto de vista dos pe-
quenos proprietários, que lutavam pelo direito à terra sob a constante
ameaça de se tornarem despossuídos.
Estudando o interior do Rio de Janeiro, Marcia Menendes
Motta procurou reavaliar o impacto da Lei de Terras nas disputas em-
preendidas no campo jurídico entre proprietários e posseiros, entre os
quais se incluíam os pequenos lavradores, que aproveitaram os recur-
sos disponibilizados pela lei para tentar de regularizar o acesso à terra,
enfrentando os grandes proprietários (MOTTA, 1998). Hebe Mattos, a

30
partir de estudos sobre o município de Capivari, na baixada litorânea
fluminense, estudou a luta dos camponeses contra a subordinação aos
grandes proprietários e o risco de proletarização na segunda metade
do século XIX. Com o aumento do preço dos cativos após a extin-
ção do tráfico atlântico, esses camponeses passaram a contar sobre-
tudo com a mão de obra familiar, utilizando os poucos recursos que
amealhassem para comprar terras na fronteira agrícola das regiões de
plantation. De acordo com Mattos, apesar do acesso à terra ter se tor-
nado mais difícil após 1850, os pequenos lavradores reagiram à nova
situação valorizando ainda mais sua autonomia, o acesso legal à terra e
o controle sobre a força de trabalho familiar, a partir das quais se con-
formou uma ética do trabalho que esteve presente na base de muitos
movimentos sociais rurais (MATTOS, 2009).
Na maioria das coleções didáticas analisadas há uma clara articu-
lação entre a extinção do tráfico atlântico e a Lei de Terras, considerando
seu impacto sobre os trabalhadores nacionais, especialmente os ex-es-
cravizados que fariam parte da massa crescente de homens e mulheres
pobres livres no país. Em Conexões com a História afirma-se que “a
legislação criava dificuldades para os trabalhadores (ex-escravos, imi-
grantes e pobres em geral) conseguirem a própria terra, obrigando-os a
trabalhar nas grandes propriedades cafeicultoras” (ALVES; OLIVEIRA,
2016, p. 204). Em Das cavernas ao terceiro milênio se registra que a Lei
de Terras “impediria que posseiros mais pobres, imigrantes e ex-escravos
obtivessem a propriedade legal das terras que cultivavam, garantindo,
assim, a oferta de mão de obra barata para as lavouras, principalmente de
café” (BRAICK; MOTA, 2016, p. 201). Essa abordagem também aparece
na coleção História em debate, na qual afirma-se que a “legislação ob-
jetivava impedir que imigrantes, brasileiros pobres, posseiros e ex-escra-
vos adquirissem terras”, assegurando que “os mais pobres constituiriam
a mão de obra assalariada necessária para suprir a demanda nos lati-

31
fúndios espalhados pelo Brasil” (MOCELLIN; CAMARGO, 2016, p. 83).
Em Oficina da História também se explicou que “os imigrantes que vies-
sem ao Brasil – pobres em sua esmagadora maioria –, os ex-escravizados
e os homens livres brasileiros não teriam acesso à base da agricultura
e, portanto, seriam forçados a trabalhar nas propriedades já existentes”
(CAMPOS; PINTO; CLARO, 2016, p. 222). Em Por dentro da História
se destacou que a lei “impossibilitava sua aquisição por milhares de ex-
-escravos e qualquer outra pessoa pobre” (SANTIAGO; CERQUEIRA;
PONTES, 2016, p. 201). Em História: sociedade & cidadania, também
se afirmou que “as imigrantes, as ex-escravizados e as homens livres e
pobres ficavam excluídos do acessa a terra, cujas preços eram elevados
demais para eles” (BOULOS JUNIOR, 2016, p. 256). Apenas a coleção
História Global apontou que Lei de Terras como uma medida direcio-
nada especificamente os trabalhadores pobres negros, afirmando que a
norma fora adotada numa “fase de transição do trabalho escravo para a
trabalho livre, quando as populações que iam conquistando a liberdade
mais necessitavam de terras para se instalar e trabalhar, a fim de conse-
guir seu sustento” (COTRIM, 2016, p. 213).
Contudo, houve quatro coleções que avaliaram o impacto da Lei
de Terras considerando apenas a história dos trabalhadores imigrantes.
Na coleção Caminhos do homem afirma-se que a Lei de Terras invia-
bilizou “o acesso à propriedade rural por parte dos imigrantes recém-
-chegados, em contraposição à estrutura agrário-latifundiária existente
no país” (BERUTTI; MARQUES, 2016, p. 217). Em Contato # História
afirma-se que a lei visava separar terras públicas e privadas e “impedir
que os imigrantes recém-chegados se tornassem proprietários de terras”
(PELLEGRINI; DIAS; GRINBERG, 2016, p. 277). A coleção História
também enfatiza que a exigência de pagamento para o acesso à terra
era uma “estratégia do Estado para dificultar a ocupação de terras por
parte de trabalhadores livres, principalmente imigrantes”, pois no caso

32
de a terra ser “passível de ser ocupada pela simples posse, os imigran-
tes poderiam se tornar pequenos lavradores com mão de obra fami-
liar” (VAINFAS et al., 2016, p. 209). Em História: passado e presente,
afirma-se de forma contundente que “temendo que os imigrantes aban-
donassem o trabalho nas fazendas e ocupassem as terras devolutas, o
governo e a Assembleia Geral instituíram a Lei de Terras, que restringia
o acesso da população à terra” (AZEVEDO; SERIACOPI, 2016, p. 252).
Na perspectiva desatualizada adotada por essas coleções, anula-
-se qualquer possibilidade dos estudantes da Educação Básica identifi-
carem os trabalhadores nacionais, e sobretudo os trabalhadores pretos
e pardos, como pequenos proprietários rurais. Naturaliza-se, dessa for-
ma, a imagem do trabalhador negro rural submetido à escravidão, invi-
sibilizando a longa experiência da população negra com o trabalho livre
no campo. Além disso, essa narrativa sobre o processo de instauração
da Lei de Terras e suas consequências induz os estudantes a avaliarem
que a ideia de haver trabalhadores nacionais livres e ex-escravizados
com expectativas de se tornarem pequenos proprietários inexistia não
somente para os homens das elites, que não teriam considerado essa
possibilidade nas suas decisões, como também para os próprios traba-
lhadores. Assim, esse projeto de acesso à terra de forma autônoma acaba
senso excluído da história das lutas dos trabalhadores nacionais livres e
ex-escravizados, apesar de ser uma experiência fundamental na história
das disputas pelo avanço dos direitos de cidadania no Brasil.
Essa discussão está estreitamente articulada ao debate sobre a
transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil. Da mesma
forma que prevaleceu durante muitas décadas no discurso historiográfi-
co acadêmico, se verifica que na literatura didática ainda é comum que,
no lugar de se discutir a mudança no regime de trabalho, o argumento
sugira que o trabalhador escravo tenha sido substituído pelo trabalha-
dor imigrante, mais uma vez reiterando a imagem dos trabalhadores

33
negros exclusivamente como escravizados, invisibilizando a experiência
histórica da população negra com o trabalho livre no oitocentos. Outra
tendência é tomar a experiência de São Paulo como única referência,
desconsiderando-se a especificidade do processo de transição no res-
tante do país, sobretudo nas províncias que resolveram suas demandas
por mão de obra sem investir na atração de imigrantes.
São vários os exemplos de alinhamento a esse discurso desatu-
alizado nas coleções didáticas. Em Das cavernas ao terceiro milênio
afirma-se categoricamente que “a partir de 1850, o trabalho escravo foi
lentamente substituído pelo imigrante” (BRAICK; MOTA, 2016, p. 196).
Em História Global também se explica que “com a proibição do tráfico
negreira, em 1850, e a necessidade de conseguir mão de obra para a
lavoura, os cafeicultores viram-se abrigados a recorrer ao trabalho de
imigrantes europeus” (COTRIM, 2016, p. 211). Em História: passado e
presente, a afirmação é que “antes de 1850, alguns fazendeiros do Oeste
paulista já tentavam substituir a mão de obra escravizada pela de imi-
grantes europeus” (AZEVEDO; SERIACOPI, 2016, p. 251), pois “os ne-
gros, que durante quase quatro séculos construíram praticamente tudo
que o existia no Brasil, eram agora taxados de preguiçosos, incapazes e
incultos” (AZEVEDO; SERIACOPI, 2016, p. 253). Na coleção Histó-
ria: sociedade & cidadania também se explica que “no Parlamento, as
poucas vozes que defendiam a aproveitamento do trabalhador nacional,
livre ou liberto, eram abafadas pelo coro da maioria dos políticos do
Império em favor da imigração europeia” (BOULOS JUNIOR, 2016, p.
256). Em Caminhos do Homem afirma-se que “muitos fazendeiros, em
especial do setor cafeeiro, então em franca expansão, se interessaram
em trazer imigrantes europeus para substituir a tradicional mão de obra
escrava” (BERUTTI; MARQUES, 2016, p. 256). Embora a imigração
maciça tenha ocorrido somente na última década do século XIX, a co-
leção Conexões com a História afirma que após a extinção atlântico de

34
escravizados, “os fazendeiros procuraram alternativas para o problema
da mão de obra. A solução veio de uma política de subvenção do Estado,
criada para financiar a chegada de imigrantes às fazendas de café” (AL-
VES; OLIVEIRA, 2016, p. 205).
Em outras coleções, essa abordagem vai corroborar com uma
determinada narrativa da história da classe trabalhadora no Brasil, pro-
tagonizada quase que exclusivamente por homens brancos de origem
europeia. Exemplo disso, em Cenas da História, há comparação das
formas de resistência e luta, pois as “pessoas escravizadas reagiam com
práticas corno fugas ou destruição de plantações”, enquanto os “novos
imigrantes, por sua vez, trouxeram práticas características dos movi-
mentos operários europeus, entre elas, manifestações públicas e greves”
(GRANGEIRO, 2016c, p. 94). Em Contato # História afirma-se que par-
te dos imigrantes foi empregada “nas indústrias, constituindo a base do
operariado brasileiro” (PELLEGRINI; DIAS; GRINBERG, 2016, p. 277).
Apenas a coleção História em debate, que traz a proposta de
história temática, apresenta uma abordagem diferenciada, afirmando
que “durante todo o período escravocrata, já havia trabalhadores livres,
porém eles estavam integrados a uma ordem maior: a relação senhor-
-escravo”. O texto salienta que, ao longo do século XIX, as relações de
trabalho eram diferentes, pois nem sempre havia remuneração por salá-
rio ou dinheiro, situação que teria se alterado apenas com a chegada dos
imigrantes, que teria provocado “uma gradativa mudança na forma de
entender o trabalho”, gerando uma série de conflitos, “pois o padrão vi-
gente, do trabalho escravo, era sujeitar-se aos mandos do senhor” (MO-
CELLIN; CAMARGO, 2016, p. 202). Uma explicação parecida também
é apresentada na coleção Oficina de História, em que se afirma que
“os imigrantes que não se adequassem aos padrões de trabalho vigen-
tes no Brasil poderiam ser substituídos por outros” (CAMPOS; PINTO;
CLARO, 2016, p. 222), padrão que teria se estabelecido a partir das es-

35
tratégias de disciplina e controle impostas aos trabalhadores escraviza-
dos. Nesses dois casos percebe-se que, muito embora a abordagem seja
distinta das demais coleções, persiste a dicotomia entre o trabalhador
imigrante e o nacional, prevalecendo o argumento em que o primeiro
é identificado como um sujeito ativo, capaz provocar mudança nas re-
lações de trabalho, enquanto o “padrão” estabelecido pelo trabalhador
negro, escravizado, seria a sujeição passiva aos senhores proprietários.
Trata-se, contudo, de uma abordagem que há muito vem sendo
revisada pela historiografia. Para a mudança de perspectiva foi essencial
que, nos anos 1980, a luta dos escravizados – pela liberdade, pela ma-
nutenção da família, pelo acesso à terra, contra os castigos considerados
injustos, pela melhoria nas condições de cativeiro, pelas suas crenças e
cultura – fosse reconhecida como parte da história dos trabalhadores
brasileiros, e não somente da escravidão no Brasil. Foi igualmente fun-
damental que as pesquisas sobre a formação da classe operária começas-
sem a chamar atenção para as conexões entre as experiências e rotinas
de trabalho, práticas culturais e formas de associação vivenciadas no
Império e primeiras décadas da República. Diante das evidências, An-
tonio Luigi Negro afirmou: “já é hora de investigarmos outros modos,
historicamente particulares, pelos quais o século 19 informou o 20 no
Brasil” (NEGRO, 1996, p. 57-58).
A abertura dessa nova linha de investigação exigia que se co-
locasse em pauta as premissas do velho debate sobre a transição da
escravidão para o trabalho livre no Brasil, a começar pelos marcos de
periodização. Em texto amplamente repercutido, Silvia Hunold Lara
contestou a “teoria da substituição” do escravo (negro) pelo trabalha-
dor livre (branco e imigrante), que excluía escravizados e ex-escra-
vizados da história social do trabalho, negligenciando “o sentido da
luta secular pela cidadania empreendida por homens e mulheres de
pele escura que, mesmo cativos, lutaram para ser e foram sujeitos de

36
sua própria história” (LARA, 1998, p. 38). Diante da crítica, espera-
va-se que houvesse o rompimento do tabu cronológico representado
por 1888, além de maior investimento no estudo das relações entre a
formação da classe operária no século XX e as experiências dos traba-
lhadores urbanos no século XIX.
Foi com essa proposta que se desenvolveu o estudo de Arthur
José Renda Vitorino (1999) sobre uma das primeiras greves operária do
país, em 1859. Protagonizada pelos compositores tipográficos do Rio de
Janeiro, o estopim da greve foi a recusa dos proprietários dos três prin-
cipais jornais da Corte em aumentar o salário dos empregados em meio
a uma crise de carestia. Os compositores tipográficos reagiram à decisão
dos patrões paralisando o trabalho e publicando seu próprio jornal, no
qual procuravam angariar o apoio do Imperador e da opinião pública,
certos da justiça de suas reivindicações. Ao refletir sobre o significado
desse movimento grevista na história dos trabalhadores, Vitorino expli-
citou a improcedência da periodização tradicionalmente adotada para
a história do operariado, recuando para a década de 1850 a discussão
sobre a constituição de identidades coletivas forjada a partir das asso-
ciações de trabalhadores qualificados. Afinal, não eram superficiais as
relações entre as experiências dos trabalhadores urbanos nos séculos
XIX e XX (BATALHA, 2010), reconhecendo-se haver entre esses sujei-
tos “profundas conexões e influências mútuas” (GOMES, 2004, p. 160).
Sidney Chalhoub e Fernando Teixeira da Silva (2009) reforça-
ram a importância da derrubada do “muro de Berlim historiográfico”
representado por 1888, que vinha impedindo a articulação entre os
estudos sobre escravizados e movimento operário. Como salientaram,
as duas vertentes compartilhavam a crítica aos referenciais teóricos da
escola sociológica paulista que desqualificava os trabalhadores escravi-
zados e nacionais como sujeitos históricos. Já a nova História Social do
Brasil Império adotava o princípio de que os subalternos são sujeitos de

37
sua história, tendo a preocupação de conferir inteligibilidade e sentido
político às experiências dos dominados, e investir no estudo da parti-
cipação dos trabalhadores numa cultura legal, lutando sobretudo por
direitos civis e sociais. A proposta, então, era que se mobilizasse maior
esforço no sentido de construir uma história do mundo do trabalho que
identificasse como objeto de análise as experiências de trabalhadores
livres, libertos e escravizados, nacionais e estrangeiros, urbanos e rurais,
por meio da apropriação e reelaboração do aparato teórico da História
Social, sobretudo para investigar a dimensão classista dos protestos e
movimentos sociais, e o problema da formação de identidades.
Procurando dar vigor a essa proposta surgiram na UNICAMP
projetos temáticos que articularam debates promovidos por professo-
res e alunos de pós-graduação, com pesquisas sobre vários estados do
Brasil, tendo em comum o interesse por discutir formação de iden-
tidades, práticas culturais e o cotidiano de trabalhadores no século
XIX e primeiras décadas do século XX (AZEVEDO et al., 2009), como
também as estratégias de resistência, experiências associativas e laços
de solidariedade estabelecidos entre trabalhadores (BATALHA; MAC
CORD, 2015), sempre procurando “distinguir sem seccionar” os tra-
balhadores escravizados, pobres livres e operários. Iniciativas como
essa surgem em vários estados. Para integrar os estudos da escravidão
e pós-abolição, os historiadores de Florianópolis criaram em 1999 o
Grupo de Trabalho regional Mundos do Trabalho, iniciativa repetida
em São Paulo e que logo contou com a adesão de pesquisadores de
outras partes do país, contribuindo para a institucionalização do GT
nacional junto à ANPUH já em 2000.
Em 2009, os historiadores comprometidos com essa agenda e
associados ao GT criam a Revista Mundos do Trabalho (Santa Catari-
na), que se tornou um dos principais meios de divulgação de pesquisas
vinculadas a esse debate, fazendo notar as mudanças promovidas pela

38
a História Social do século XIX, que progressivamente deixava de se
restringir ao Sudeste e de ser povoada somente por homens e mulheres
escravizados, também passando a adotar uma concepção cada vez mais
alargada de sujeito histórico e ação política. A criação de cursos de pós-
-graduação em vários estados e o interesse crescente pelos acervos de
história local, sem dúvida alguma, contribuíram nesse processo.
Em texto anterior sobre a atuação das câmaras municipais na
regulação dos mercados e outras atividades econômicas locais, enfati-
zando seu impacto sobre a rotina de ganhar o sustendo dos trabalha-
dores das cidades, já havíamos chamado atenção para a emergência
de uma produção historiográfica empenhada em discutir o papel do
poder público na organização do mundo do trabalho, e em investigar
as mudanças no comportamento político dos trabalhadores urbanos
que se identificavam não apenas como súditos, mas também como su-
jeitos de direitos (SOUZA, 2013). Procurando redimensionar o papel
desempenhado pelas vereanças na estrutura político-administrativa
do Estado imperial, procurávamos destacar que essas pesquisas con-
vergiam para a documentação referente às histórias locais, produzi-
da pelas instituições camarárias, principais responsáveis pelo gover-
no das cidades (ABREU; MAGALHÃES; TERRA, 2019). E foram nas
disputas cotidianas sobre a organização da economia local que novas
dimensões e experiências da luta dos trabalhadores nacionais, em es-
pecial os negros, foram sendo descobertas.
Em seus estudos sobre história social do poder local, João José
Reis tem mostrado que os trabalhadores urbanos lidavam com as deter-
minações da Câmara por meio de diferentes estratégias de ação, como
a greve promovida em 1857 pelos trabalhadores negros de Salvador. A
paralização foi motivada pela criação de uma postura municipal que
obrigava os trabalhadores a se matricularem na instituição, declaran-
do nome, endereço, nome do senhor (caso fosse escravizado) e o tipo

39
de trabalho que realizava. A mobilização contra a postura culminou na
greve dos carregadores negros, escravizados e livres, que paralisou a ci-
dade por vários dias, combinando a mobilização defensiva contra a in-
tervenção do Estado nos costumes tradicionalmente estabelecidos, com
“um método de luta típico do trabalhador urbano moderno, sobretudo
do trabalhador fabril” (REIS, 1993, p. 29). Reis atribuiu um caráter clas-
sista ao movimento, e concluiu que aqueles trabalhadores tinham um
forte senso de identidade étnica e consciência sobre sua importância
num mercado monetarizado.
No ano seguinte, em 1858, outro protesto tumultuaria a
cidade de Salvador. Para controlar a prolongada crise de carestia,
os vereadores tentaram controlar o preço da farinha de mandioca,
medida revogada pelo presidente da província por contrariar as leis
que protegiam a liberdade do comércio. Insatisfeita com a decisão
do presidente de província, a população foi às ruas gritar: “quere-
mos carne sem osso e farinha sem caroço”. Para João José Reis e
Márcia Gabriela de Aguiar, o protesto “se mesclou com a luta mais
ampla em torno de direitos políticos adquiridos, ganhando uma
linguagem de defesa da cidadania” (1996, p. 157).
A ênfase conferida ao sistema escravista na formação da socie-
dade brasileira também impôs sérias restrições à pauta de problemas a
serem investigados pela História Social, por muito tempo induzindo os
historiadores a pressupor haver incompatibilidade entre a vigência do
trabalho cativo e o trabalho livre, inibindo a formulação de questões
referentes à luta de trabalhadores nacionais, livres e escravizados, por
direitos de cidadania antes da Abolição. Mas essa é uma abordagem já
superada. A profusão de projetos de posturas e regulamentos propostos,
encaminhados, debatidos, aprovados, modificados e revogados nas câ-
maras municipais, por exemplo, são indícios de que as leis não serviram
em proveito dos dominantes de forma tranquila. E apesar da dificul-

40
dade dos trabalhadores terem seus direitos reconhecidos pela lei, esses
estudos revelam a habilidade dos trabalhadores urbanos do século XIX
articularem uma retórica baseada na ideia de concessão e favor, prática
consagrada no Antigo Regime, com reivindicações típicas dos Estados
liberais, na medida em que os conteúdos tratavam de direitos de cida-
dania, exigindo que fossem reconhecidos por meio dispositivos legais,
inclusive atribuindo ao Estado o papel de mediador dos conflitos entre
patrões e empregados (SOUZA, 2019).

SEJAMOS PROPOSITIVOS...

Como temos mostrado, desde meados dos anos 1980, houve um


incremento quantitativo e qualitativo nos estudos sobre a História do
Brasil no século XIX, mas os dados apontam uma defasagem significa-
tiva entre os conhecimentos já consensuados entre os especialistas em
História do Brasil Império e os saberes difundidos nos materiais didáti-
cos. Constatar essa defasagem é lugar comum nos estudos sobre livros
didáticos. A dificuldade maior é propor reflexões e ações que efetiva-
mente contribuam para a superação desse desafio. Por isso, vamos dedi-
car esta última parte do texto a reunir elementos que possam contribuir
para a compreensão das dificuldades desse avanço.
Ao iniciar essa análise sobre as temáticas mais estudadas nos li-
vros didáticos, a primeira característica que nos chamou atenção foi o
peso ainda conferido à história política. Esse é um dado que aparece
de forma destacada nos conteúdos substantivos referentes à História do
Brasil Império (1822-1889) nos livros didáticos aprovados pelo PNLD
2018 – Ensino Médio. Apenas uma coleção, História em debate, apre-
senta uma abordagem diferenciada. Trata-se também da única coleção
com proposta de história temática, com ênfase em conflitos sociais e
relações de poder que, na perspectiva dos autores, poderiam contribuir

41
para uma melhor compreensão dos problemas contemporâneos. Na
abordagem proposta por essa coleção sobre os temas relativos ao Brasil
Império, é evidente não apenas o esforço em integrar, de maneira equi-
librada, as diferentes dimensões da experiência histórica, como também
em explicar os processos histórico a partir das lutas entre as elites polí-
ticas e econômicas, e os trabalhadores livres e escravizados.

Quadro 1 - Tema dos conteúdos substantivos relativos ao Brasil Império nas coleções
de História aprovadas no PNLD 2018 – Ensino Médio

Conteúdo Substantivo
Nome da Coleção História História História História
Política Econômica Social Cultural
Caminhos do Homem 45,5% 32% 13,5% 9%
Cenas da História 73% 15% 8% 4%
Conexões com a História 52% 16% 13% 19%
Contato # História 53% 16,5% 25% 5,5%
Das cavernas ao terceiro milênio 61,5% 18% 16% 4,5%
História 54,5% 21% 21% 3,5%
História: passado e presente 62% 10% 26% 2%
História em debate 28,5% 28,5% 28,5% 14,5%
História Global 71% 11,5% 17,5% 0%
Oficina de História 53% 15% 15% 17%
Por dentro da História 60% 11,5% 18,5% 10%
História: sociedade & cidadania 55% 20,5% 16,5% 8%

Fonte: desenvolvida pela autora

Todas as demais coleções optaram por uma “história total”


– da Pré-História ao Mundo Contemporâneo –, organizando a nar-
rativa de forma cronológica, articulando a História da Europa, Amé-
rica, Brasil, África e/ou Ásia em capítulos ou unidades integradas
ou intercaladas. É nessas coleções que a história política prevalece
como conteúdo substantivo na abordagem de Brasil Império, como
se observa no Quadro 1. Para a formulação desse quadro, privile-
42
giando os textos principais que aparecem nas coleções, subdivididos
em capítulos, tópicos e subtópicos, assim como os pequenos textos
complementares que são apresentados em seções do tipo Saiba mais.
O resultado nos mostra que, muito embora as coleções didáticas in-
diquem explicitamente a pretensão de abordar a totalidade das ex-
periências humanas – de qualquer modo impossível de ser realizada
– o que se constata é que há o predomínio quase absoluto da História
Política sobre as demais dimensões da experiência histórica, a des-
peito da suposta diversidade de orientações teórico-metodológicas e
critérios para seleção de conteúdos adotado por cada coleção.3
Como é possível verificar no quadro 1, nas coleções anali-
sadas, entre 45,5% e 73% dos textos principais e complementares
sobre História do Brasil Império se dedicaram à narrativa das ações
e ideias de homens do governo, ou das ações e declarações de inten-
ções de homens com projeto de participação no mundo do governo,
elegendo o Estado imperial como principal espaço de ação. Trata-
-se, portanto, de uma abordagem marcada pela opção de identificar
como sujeitos históricos, privilegiadamente, as elites que atuam em
espaços de poder institucionalizados, conferindo maior importância
aos grupos radicados nas províncias do Rio de Janeiro e São Paulo,
reconhecidas como principais centros econômicos do Brasil Impé-
rio. Na medida em que essas elites protagonizam os acontecimentos
narrados em 45,5% a 73% dos textos do livro didático, os estudantes
são induzidos a reconhecê-las como únicas ou principais responsá-
veis pelo devir histórico, que desse modo se reduz a narrativa reite-
rada das vitórias dos grupos dominantes.
Essa tendência é reforçada nas cinco coleções que elegeram a
História Econômica como segundo principal tema dos conteúdos subs-
tantivos pois, na abordagem dessa dimensão da experiência histórica, os
3 O Edital do PNLD 2018 foi lançado em 2016, ou seja, antes da aprovação da Base Nacional Comum Cur-
ricular.

43
livros didáticos privilegiaram a análise das ações e interesses dos grupos
economicamente dominantes – grandes proprietários rurais, comer-
ciantes importadores e exportadores, grandes investidores e industriais
–, numa narrativa que tende a não lhes distinguir da elite política. Essa
abordagem, que reforça o protagonismo e a visibilidade das elites em
detrimento da participação de outros grupos sociais nos processos his-
tóricos, evidencia a dificuldade de as coleções didáticas superarem al-
guns marcos descritores dos antigos manuais didáticos, sempre critica-
dos por serem centrados nos “grandes homens”.
Nas obras didáticas atuais, os nomes dos “grandes homens” po-
dem aparecer com menor ênfase, mas isso não significa que a narrati-
va histórica tenha se tornado menos elitista ou menos comprometida
com o domínio de classe. Contudo, os livros distribuídos gratuitamente
pelo PNLD não têm as elites como público-alvo. Os livros do PNLD
são consumidos por crianças e adolescentes de escolas públicas, filhos
de trabalhadores, e o que a maioria desses livros têm ensinado é que o
devir histórico se explica por meio das descrições das ações e intenções
das elites, permeadas pelas sucessivas derrotas dos trabalhadores livres
e escravizados, pobres, excluídos e marginalizados.
Nesse texto propomos que a atualização dos materiais didáti-
cos seja promovida por meio de maior aproximação com a produção
da História Social porque é esse campo que tem se dedicado de forma
sistemática a analisar os conflitos entre diferentes grupos sociais, tendo
particular interesse pela trajetória dos “de baixo” (HOBSBAWM, 1998).
E uma educação que se pretende inclusiva precisa trazer para o debate,
urgentemente, as experiências dos grupos historicamente excluídos da
sociedade (BRASIL, 2013). Essa não é uma proposta nova para o deba-
te acadêmico, não é uma proposta nova nos debates sobre educação e
livros didáticos, e a fragilidade de sua apropriação pela historiografia
escolar requer algumas reflexões.

44
Pressupomos que a atualização das obras didáticas demandem o
trabalho de especialistas, e a análise empreendida mostra que todas as cole-
ções contarem com pelo menos um autor com formação de graduação e/ou
pós-graduação na área de História, como se observa no Quadro 2. No es-
forço de impedir que as coleções sejam desqualificadas como obras de não-
-especialistas, nas breves informações sobre os autores que são apresentadas
em todas as coleções, obtemos a informação que 80,7% deles tem pós-gra-
duação em História (especialização, mestrado e/ou doutorado), de modo
que todas as coleções contam com pelo menos um profissional que pode ser
descrito como pesquisador(a) de História. Trata-se de um critério de qua-
lificação significativamente valorizado na área de conhecimento, inclusive
entre os professores da Educação Básica, e contribui para que esses autores
sejam identificados como agentes qualificados para o estabelecimento de
um diálogo entre a universidade e a escola.

Quadro 2 – Formação e área de atuação dos autores dos livros didáticos de História
aprovados no PNLD 2018 – Ensino Médio

Formação4 Atuação
Pós-Graduação em História

Graduação em outras áreas

Pós-Graduação em outras
Graduação em História

Docência na Educação

Docência no Ensino

Nome da Coleção Autores


Superior
Básica
áreas

Caminhos do Homem Adhemar Marques * * *


Flávio Berutti * * *

4 Quanto aos autores com formação em outras áreas, as coleções didáticas trazem as seguintes informações:
Myriam Becho Mota é mestre em Relações Internacionais; Reinaldo Seriacopi é bacharel em Língua
Portuguesa e Jornalismo; Renato Mocellin é bacharel em direito e mestre em Educação; Regina Claro, na
época da publicação, era doutoranda em Educação; Célia Cerqueira é bibliotecária; Maria Aparecida Pontes
é pedagoga; e Alfredo Boulos Júnior é mestre em Ciências (área de concentração: História Social) e doutor
em Educação.

45
Cenas da História Cândido * * * *
Grangeiro
Conexões com a História Alexandre Alves * *
Letícia de Oliveira * *
Contato # História Marco César Pel- * *
legrini
Adriana Machado * * *
Dias
Keila Grinberg * * *
Das cavernas ao terceiro Patrícia Ramos * *
milênio Braick

Myriam Becho * * * *
Mota

História Ronaldo Vainfas * *


Sheila de Castro * *
Faria
Jorge Ferreira * *
Georgina dos * *
Santos
História: passado e presente Gislane Azevedo * * *
Reinaldo Seriacopi *
História em debate Renato Mocellin * * * * *
Rosiane de * * *
Camargo
História Global Gilberto Cotrim * * *
Oficina de História Flavio de Campos * * *
Júlio Pimentel * * *
Pinto
Regina Claro * * *
Por dentro da História Pedro Santiago * * *
Célia Cerqueira *
Maria Aparecida *
Pontes

História: sociedade & Alfredo Boulos * *


cidadania Júnior

Fonte: desenvolvida pela autora

46
A ideia de que as obras são produzidas ou tiveram a elaboração
de seus textos supervisionada por profissionais qualificados é reforçada
pelo fato de 50% desses autores também declararem que atuam no ensi-
no superior, em vários casos como professores efetivos de universidades
públicas, identificadas pela comunidade acadêmica como espaços pri-
vilegiados de produção de conhecimento e núcleo duro da intelligentsia
(LECLERC, 2004, p. 75). De acordo com as informações apresentadas
nos livros didáticos, são professores de universidades públicas os au-
tores das coleções Contato # História, História e Oficina de Histó-
ria. Poderíamos supor que as obras assinadas por esses autores fossem
atualizadas e inovadoras nos mais variados aspectos, mas a abordagem
proposta por essas coleções com relação à História do Brasil Império
não discrepa das abordagens propostas pelas demais coleções.
Apesar de tendermos a identificar esses pesquisadores/profes-
sores de universidades públicas como sujeitos particularmente capaci-
tados a forjar estratégias para a superação da enorme defasagem en-
tre os conhecimentos construídos pela historiografia acadêmica e pela
historiografia escolar, os indícios apontam que os critérios para seleção
de conteúdo adotados em suas obras priorizam, fundamentalmente, as
mesmas preocupações que norteiam as demais coleções, assinadas por
profissionais que não tem graduação em História, que têm pós-gradu-
ação em outras áreas de conhecimento, ou que não lecionam em ne-
nhum nível de ensino. Nos referimos às preocupações das editoras com
a venda de sua mercadoria, que seguramente continuarão investindo
nos produtos já comprovadamente aceitos pelo mercado. Portanto, não
faz muito sentido esperar que ocorram mudanças nos livros didáticos
por iniciativa das editoras de livros didáticos, a despeito de quem esteja
assinando pela autoria das obras.
As universidades, por outro lado, podem assumir um papel
fundamental nesse processo. Mas, antes, nós precisamos admitir com

47
franqueza – nós, os profissionais de História que formam professores
da Educação Básica e pesquisadores acadêmicos, e não apenas aqueles
que elegeram o ensino de História e os livros didáticos como objeto
de estudo –, que não é possível demandar a mudança desse quadro ao
mesmo tempo em que insistimos na organização eurocentrista do co-
nhecimento histórico, apresentado por meio de uma narrativa crono-
lógica, linear e de inegável viés evolucionista, privilegiando temas e re-
cortes espaço-temporais historicamente comprometidos com o saber/
poder dos grupos dominantes. Esse é o formato do conhecimento his-
tórico que temos naturalizado como único possível nos currículos dos
cursos de graduação em História, contribuindo decisivamente para a
rejeição a qualquer inovação no ensino de História, seja na Educação
Básica ou no Ensino Superior.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No texto aqui apresentado procuramos mostrar que, ao longo do


período imperial, na pauta de luta dos trabalhadores estavam os direitos
sociais, que se referem ao bem-estar econômico e segurança por meio de
participação na herança social; os direitos civis, que dizem respeito à liber-
dade individual, de ir e vir, manifestação de fé e pensamento, livre expressão
por meio da imprensa, direito à propriedade e justiça; e os direitos políticos,
que asseguram a participação dos cidadãos no exercício do poder político,
de forma direta ou por meio de seus representantes (MARSHALL, 2002).
Os estudos aqui referidos mostram que os trabalhadores livres e libertos,
assim como os escravizados, encontraram maneiras de lutar pelo que jul-
gavam como justiça, e tentaram alargar seus direitos desde que o processo
de Independência – com sua promessa de instauração de um Estado libe-
ral, constitucional e representativo – colocou no horizonte desses homens e
mulheres a perspectiva de ser tornarem cidadãos.

48
Desde os anos 1980 há um volume significativo de pesquisas
no campo da História Social que não deixa dúvidas quanto à adoção
dos princípios liberais pelo Estado imperial, e se é verdade que os cri-
térios de participação nas eleições excluíam boa parte da população
do acesso voto, é importante considerar que essa cidadania excludente
também é característica de outros países ocidentais que adotaram o
liberalismo, na Europa e na América. Os trabalhadores livres e liber-
tos, reconhecendo-se como súditos e como cidadãos, insistiam para
que a justiça de suas queixas e reclamações fosse reconhecida por seus
representantes no mundo do governo, com frequência requisitando
a mediação do Estado nos conflitos entre capital e trabalho, uma de-
manda que seria atendida somente na década de 1930. E quando as
negociações com os patrões e o governo falhavam, os trabalhadores
promoveram greves, motins e revoltas que puseram as elites em so-
bressalto ao longo de todo o século XIX.
Longe de serem meros expectadores da História, esses su-
jeitos participaram ativamente do devir histórico, se mobilizando,
se associando e protestando em favor de seus interesses, e agindo
em oposição às decisões políticas que consideravam incidir de for-
ma injusta sobre seus ofícios, sobre suas práticas culturais e sobre
suas vidas cotidianas. Diante disso, o que tem sido consensuado
pela História Social é que a luta dos cidadãos e trabalhadores pelo
reconhecimento de seus direitos, inclusive no âmbito legal, tem um
lastro histórico que seguramente recua ao oitocentos. O tabu repre-
sentado pelo ano de 1888 na história do mundo do trabalho já foi
superado, e o provam as investigações empreendidas nas últimas
décadas, demonstrando que as experiências vivenciadas por tra-
balhadores livres e escravizados no período imperial informaram
significativamente a luta dos trabalhadores urbanos e rurais nas
primeiras décadas da República.

49
Lamentavelmente, o que não podemos negar é que esse his-
tórico de luta no oitocentos está indissociavelmente atrelado a dois
aspectos que ilustram de forma precisa o projeto de sociedade optado
por nossas elites: a instauração de um governo liberal, constitucional
e representativo, mas “naturalmente” conciliado com a manutenção
do sistema escravista. Forjado sob essas balizas, as únicas marcas in-
deléveis no longo caminho da cidadania no Brasil foram e continuam
sendo a desigualdade e a exclusão.
Formar cidadãos capazes de superar essa desigualdade e ex-
clusão é a função dos professores da Educação Básica, e formar pro-
fissionais capacitados a realizar esse trabalho é função dos professores
do ensino universitário. Por isso, é urgente e necessário problemati-
zar na formação inicial de professores e pesquisadores, em todos os
componentes curriculares, e não apenas em História do Brasil Im-
pério ou qualquer outro, discutindo quais os objetivos da Educação
Básica, quais as especificidades do livro didático e qual sua função.
Discussões sobre a atualização dos livros didáticos de História não
podem perder de vista, de modo algum, a especificidade fundamental
dessa mercadoria: os livros didáticos são os principais recursos didá-
ticos disponíveis, por vezes o único, para os professores de História
da Educação Básica realizarem seu trabalho precípuo, que é a forma-
ção cidadã de crianças e jovens. E discutir cidadania numa perspecti-
va histórica implica, necessariamente, entende-la como um processo
marcado por intensos conflitos, negociações e acomodações, e dife-
rentes formas de protesto postas em ação por pessoas que, mesmo
derrotadas, legaram experiências e aprendizados fundamentais para
as sucessivas gerações de trabalhadores, homens e mulheres, nacio-
nais e estrangeiros, brancos e negros, pardos e caboclos, da cidade e
do campo, qualificados e não-qualificados, nos grandes centros eco-
nômicos ou nas regiões periféricas desse país de dimensões conti-

50
nentais. Com suas formações e trajetórias diversas, com suas pautas
e táticas de ação diversas, todos foram protagonistas da História do
Brasil e, em especial, da História da Cidadania no Brasil.

REFERÊNCIAS

Fontes – Livros didáticos

ALVES, Alexandre; OLIVEIRA, Letícia Fagundes de. Conexões com a história. 3. ed. São
Paulo: Moderna, 2016. v. 2.

AZEVEDO, Gislane; SERIACOPI, Reinaldo. História: passado e presente. 1. ed. São Paulo:
Ática, 2016.

BERUTTI, Flavio Costa; MARQUES, Adhemar. Caminhos do homem: da Era das Revoluções
ao Brasil no século XIX. 2º ano, Ensino Médio. 3. ed. Curitiba: Base Editorial, 2016.

BOULOS JUNIOR, Alfredo. História: sociedade & cidadania, 2º ano. 2. ed. São Paulo: FTD. 2016.

BRAICK, Patrícia Ramos, MOTA, Myriam Brecho. História: das cavernas ao terceiro milênio!
4. ed. São Paulo: Moderna, 2016. v. 2.

CAMPOS, Flavio de; PINTO, Júlio Pimentel; CLARO, Regina. Oficina de história. 2. ed. São
Paulo: Leya, 2016. v. 2.

COTRIM, Gilberto. História global. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. v. 2.

GRANGEIRO, Cândido. Cenas da história: Ensino Médio. 1. ed. São Paulo: Palavras Projetos
Editoriais, 2016a. v. 1.

_____. Cenas da história: Ensino Médio. 1. ed. São Paulo: Palavras Projetos Editoriais, 2016b. v. 2.

_____. Cenas da história: Ensino Médio. 1. ed. São Paulo: Palavras Projetos Editoriais, 2016c. v. 3.

MOCELLIN, Renato; CAMARGO, Rosiane de. História em debate. 4. ed. São Paulo: Editora
do Brasil, 2016. v. 1.

PELLEGRINI, Marco César; DIAS, Adriana Machado; GRINBERG, Keila. Contato # História.
2º ano. 1. ed. São Paulo: Quinteto Editorial, 2016.

SANTIAGO, Pedro; CERQUEIRA, Célia; PONTES, Maria Aparecida. Por dentro da História. 4.
ed. São Paulo: Escala Educacional, 2016. v. 2.

51
VAINFAS, Ronaldo et al. História 2: Capitalismo em marcha: liberalismos, nacionalismos, im-
perialismos. Ensino Médio. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

Referências Bibliográficas

ABREU, Martha; MAGALHAES, Marcelo Souza; TERRA, Paulo Cruz; (Orgs.). Os poderes

municipais e a cidade: Império e República. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019.

AZEVEDO, Elciene et al. (Orgs.). Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de

Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002.

BASILE, Marcello. Revoltas regenciais na Corte: o movimento de 17 de abril de 1832. Anos 90,

Porto Alegre, v. 11, n.19-20, p. 259-298, jan./dez. 2004.

_____. Revolta e cidadania na Corte regencial. Tempo, Rio de Janeiro, v. 22, p. 31-57, 2007.

BATALHA, Claudio H. M. Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro do século XIX:

algumas reflexões em torno da formação da classe operária. Cadernos AEL, Campinas, v. 6, n.

10/11, p. 42-68, 1999.

BATALHA, Claudio; MAC CORD, Marcelo. Organizar e proteger: trabalhadores, associações e

mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX). Campinas: Editora Unicamp, 2015.

BETHELL, Leslie. A Abolição do comércio brasileiro de escravos. Brasília: Senado Federal,

Conselho Editorial, 2002.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB,

DICEI, 2013.

BRITO, João Fernando Barreto de. Colônia agrícola Sinimbú: entre a regularidade do espaço

projetado e os violentos confrontos do espaço vivido (Rio Grande do Norte, 1850-1880). 2015.

185 f. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,


Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015.

CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Operários das secas: retirantes e trabalhadores de ofício em obras de

socorro público (Ceará, 1877-1919). Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 3, n. 6, p. 176-193, jul./dez. 2011.

CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras:

a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

52
CARVALHO, Marcus J. M. de. Os nomes da revolução: lideranças populares na Insurreição Praieira,

Recife, 1848-1849. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 209-238, jul./2003.

_____. O outro lado da Independência: quilombolas, negros e pardos em Pernambuco (Brazil),

1817-1823. Luso-Brazilian Review, v. 43, n. 1, p. 1-30, 2006.

_____. Um exército de índios, quilombolas e senhores de engenho contra “jacubinos”: a

Cabanada, 1832-1835. In: DANTAS, Monica D. (Org.). Revoltas, motins, revoluções: homens

livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.

CASTELLUCCI, Aldrin. Muitos votantes e poucos eleitores: a difícil conquista da cidadania

operária no Brasil Império (Salvador, 1850-1881). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 30, n. 52,

p.183-206, jan./abr. 2014.

CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São

Paulo: Companhia das Letras, 2012.

CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando Teixeira da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos

e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas, v. 14,

n. 26, p. 11-50, 2009.

DIAS, Claudete Maria Miranda. Balaios e Bem-te-vis: a guerrilha sertaneja. Teresina: Instituto

Dom Barreto, 2002.

_____. O outro lado da Independência do Brasil. Teresina: EDUFPI, 2015.

_____. Questão social no Brasil do pós-1980: notas para um debate. Estudos Históricos, Rio de

Janeiro, n. 34, p. 157-186, jul./dez. 2004.

GRAHAM, Sandra Lauderdale. O motim do Vintém e a cultura política do Rio de Janeiro, 1880.

In: DANTAS, Monica D. (Org.). Revoltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos

no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.

HOBSBAWM, Eric. Da história social à história da sociedade”. In: Sobre História. São Paulo:

Companhia das Letras, 1998.

JOFFILY, Geraldo Irineo. O Quebra-Quilo. A revolta dos matutos contra os doutores (1874).

Revista de História, São Paulo, v. 54, n. 107, p. 69-145, 1976.

KRAAY, Hendrik. Muralhas da independência e liberdade do Brasil: a participação popular nas

lutas políticas (Bahia, 1820-25). In: MALERBA, Jurandir (Org.). A Independência brasileira:

novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

53
LARA, Sílvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História,

São Paulo, n. 16, p. 25-38, 1998.

LECLERC, Gérard. Sociologia dos intelectuais. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2004.

LIMA, André Nicácio. Rusga: participação política, debate público e mobilizações armadas

na periferia do Império (Província de Mato Grosso, 1821-1834). Tese (Doutorado em História

Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

LIMA, Luciano M. de. Quebra-Quilos: uma revolta popular na periferia do Império. In:

DANTAS, Monica D. (Org.). Revo-ltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos no

Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.

MAIOR, Armando Souto. Quebra-Quilos. Lutas sociais no outono do Império. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1978.

MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1990.

MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania e classe social: leituras sobre cidadania. Senado

Federal, MCT/CEE, Brasília, 2002.

MATTOS, Hebe. Ao sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. Rio de

Janeiro: Ed. FGV, Faperj, 2009.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: Huicitec, 2004.

MIRANDA, Sonia Regina; LUCA, Tania Regina. O livro didático de hoje: um panorama a partir

do PNLD. Revista Brasileira de História, v.4, n. 48, p. 123-144, 2004.

MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Nordeste Insurgente (1850-1890). São Paulo: Editora

Brasiliense, 1981.

MOTA, Carlos Guilherme. 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1986.

MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas Fronteiras do Poder: conflito e direito à terra no Brasil do

século XIX. Rio de Janeiro: Vício de leitura, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998.

NADAI, Elza. O ensino de História no Brasil: trajetória e perspectiva. Revista Brasileira de

História, v.13, n. 25/26, p. 1453-162, set.1992/ ago.1993.

NEGRO, Antonio Luigi. Imperfeita ou refeita? O debate sobre o fazer-se da classe trabalhadora

inglesa. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol.16, n. 31/32, p. 40-61, 1996.

NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará.

Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

54
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. (Org.) História: Ensino Fundamental. Brasília: Ministério

da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. v. 21. (Coleção Explorando o Ensino).

OLIVARES, Guillermo de J. Palacios. Revoltas camponesas no Brasil escravista: a ‘Guerra dos

Marimbondos’ (Pernambuco, 1851-1852). Almanack Braziliense, São Paulo, n. 3, p. 9-39, 2006.

REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.

São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

_____. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP. São Paulo, n. 18, 1993.

REIS, João José; AGUIAR, Márcia Gabriela de. “Carne sem osso e farinha sem caroço”: o motim

de 1858 contra a carestia na Bahia”. Revista de História, São Paulo, n. 135, p. 133-159, 1996.

RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de

africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Ed. da UNICAMP, 2000.

RUDÉ, Georges. A multidão na História: estudo dos movimentos populares na França e na

Inglaterra (1730-1848). Rio de Janeiro: Campus, 1991.

SECRETO, María Verónica. (Des)medidos. A revolta dos quebra-quilos (1874-1876). Rio de

Janeiro: Mauad, Faperj, 2011.

SILVA, Luiz Geraldo. Negros patriotas, raça e identidade social na formação do Estado Nação

(Pernambuco, 1770-1830). In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação.

São Paulo, Ijuí: Hucitec, Ed. UNIJUÍ, Fapesp, 2003.

SOUZA, Juliana Teixeira. As câmaras municipais e os trabalhadores no Brasil Império. Mundos

do Trabalho, Florianópolis, v. 5, n. 9, p. 11-30, 2013.

_____. O governo da cidade. Poder local, cidadania e a polícia dos mercados na Corte imperial.

Natal: EDUFRN, 2019.

THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.

São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro; JESUS, Ronaldo Pereira de. A experiência mutualista e a

formação da classe trabalhadora. In: FERREIRA, Jorge, REIS, Daniel Aarão. As esquerdas no

Brasil. A formação das tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v.1.

VITORINO, Artur José Renda. Escravismo, proletários e a greve dos compositores tipográficos

de 1858 no Rio de Janeiro. Cadernos AEL, Campinas, vol. 6, n. 10/11, p. 70-108, 1999.

55
História e Cultura dos Afrodescendentes.
O que a historiografia pode nos contar?

Carlos Eduardo Moreira de Araújo1

1 Doutor em História Social pela UNICAMP. Professor de Ensino de História e Educação para as Relações
Étnico Raciais da Universidade Federal de Uberlândia.

56
A data de 13 de maio não merece as comemorações que recebe,
como dia da Abolição da Escravatura, ou dia da Raça, porque o
negro não tem por que se ufanar dela. O verdadeiro dia nacional
do negro é o 20 de novembro, aniversário da morte heroica do
Zumbi dos Palmares, símbolo da capacidade criadora e orgulho
da raça. (NEGRO..., 1973, p. 27)

Foi assim que no início da década de 1970 a imprensa nacional


registrou a contestação do dia 13 de maio como o dia da liberdade do
negro no Brasil. Em plena ditadura civil-militar, estudantes universitá-
rios e jovens graduados, todos negros, se reuniram no Grupo Palmares
na cidade de Porto Alegre, em luta contra a discriminação racial no país.
Fundado em 1971, os militantes tinham como finalidade:
levantar o patrimônio histórico e cultural do negro, para [que]
se conhe[cesse] a verdadeira história do seu povo no Brasil, e,
sacudindo seus complexos, passe a participar de outra maneira
na sociedade brasileira, consciente do seu valor – o que [seria]
diferente de uma integração à custa da sua alienação cultural.
(NEGRO..., 1973, p. 27)

A matéria está numa página ocupando duas colunas inteiras e


disputando espaço com um edital licitatório para a venda de uma usina
de beneficiamento de minérios e uma enorme propaganda do “Festival
de Copa e Cozinha” da Sears, uma importante loja de departamentos já
extinta no país. Em destaque, a foto de quatro integrantes do grupo, três
mulheres e um homem sentados à mesa com algumas xícaras e o que
parece livros. Na legenda está registrado: “O Grupo Palmares propõe 20
de novembro como o verdadeiro dia nacional do negro”.
A década de 1970 foi fundamental para a formação dos chama-
dos “movimentos negros contemporâneos” (PEREIRA, 2013). Homens
e mulheres, jovens estudantes secundaristas e universitários, trabalha-
dores, alfabetizados ou não, que entendiam ser a educação e o conhe-
cimento da verdadeira história de lutas dos negros o único caminho

57
possível para superar o racismo e estabelecer, de fato, uma democracia
racial no país. A promulgação da lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
tornou obrigatória a inclusão no currículo oficial das redes de ensino a
História e Cultura Afro-brasileira foi o resultado dessa luta. Venceram
muitas barreiras e “complexos” vivenciados pelos negros no Brasil. Por
tais complexos, apontados pelos militantes, podemos entender como
uma auto-inferiorização do negro, uma reação à discriminação racial.
Franz Fanon sugere que essa baixa estima estaria ligada a um
sentimento de impotência social. O negro, não conseguindo sair do
lugar de subalternidade imposto pela sociedade racista em que estava
inserido, voltava-se para dentro, como que se escondendo – ou se pro-
tegendo – do mundo hostil que o cercava. Somente o rompimento das
barreiras impostas pelo “outro” e pelos próprios negros é que a liberdade
seria de fato algo concreto.
Queria simplesmente ser um homem entre outros homens.
Gostaria de ter chegado puro e jovem em um mundo nosso,
ajudando a edificá-lo conjuntamente. Mas rejeitava qualquer
infecção afetiva. Queria ser homem, nada mais do que um ho-
mem. Alguns me associavam aos meus ancestrais escravizados,
linchados: decidi assumir. Foi através do plano universal do in-
telecto que compreendi este parentesco interno – eu era neto
de escravos do mesmo modo que o Presidente Lebrun o era de
camponeses explorados e oprimidos pelos seus senhores. Na
verdade, o alarme parava rapidamente. Na América, os pretos
são mantidos à parte. Na América do Sul, chicoteiam nas ruas
e metralham os grevistas pretos. Na África Ocidental, o preto é

um animal. (FANON, 2008, p. 106)

A luta política de Fanon e sua obra, em especial Pele negra, más-


caras brancas ([1952] 2008) e Condenados na Terra ([1961] 1968) in-
fluenciaram a luta dos movimentos negros mundo afora nas décadas
de 1960 e 1970. Por aqui, o impacto de seus escritos se deu mais tardia-
mente, entre outros fatores, pela ausência de centros de pesquisa que

58
pensassem a temática do racismo e da identidade negra na perspectiva
fanoniana. Conforme aponta Guimarães (2008), ainda que as relações
raciais entre brancos e negros fossem objeto de análise de autores como
Roger Bastide, Florestam Fernandes, Octávio Ianni, Clóvis Moura, entre
outros, estes não fizeram nenhuma menção à obra de Fanon, então já
amplamente discutido na Europa e nos Estados Unidos.
No Brasil dos anos 1950 e 1960, entretanto, esses dois eixos não
se encontravam: liberais e marxistas, brancos e negros, igual-
mente, tinham o mesmo projeto antirracista de construção de
uma nação mestiça brasileira e pós-europeia que ultrapassasse
a polaridade entre brancos, de um lado, e negros e indígenas, de
outro. O que os dividia era apenas a defesa da ordem burguesa
ou a aposta na luta de classes. As raças desapareciam, assim, na
superexposição conceitual e política das classes sociais. Passa-
va-se o mesmo em toda a América Latina, inclusive na Cuba

socialista (GUIMARÃES, 2008, p. 102).

A edição portuguesa de Pele negra, máscaras brancas (1963)


e Condenados na Terra (1968) pode ter circulado pelas mãos dos es-
tudantes brasileiros ainda na segunda metade da década de 1960. É
provável que os militantes gaúchos do Grupo Palmares tenham tido
contato com a obra de Fanon, ou lido de forma transversal através das
obras de Jean-Paul Sartre ou mesmo Paulo Freire que trouxe em sua
Pedagogia do Oprimido (1979) alguma influência das ideias do marti-
nicano. (GUIMARÃES, 2008).
Longe de pregarem uma revolução política, num momento de gra-
ve recrudescência da ditadura civil-militar brasileira, os jovens do Grupo
Palmares viveram um efervescente debate na área das Humanidades em
geral, e na História em particular. A crise do socialismo político e dos
partidos de esquerda a partir da década de 1950 fomentou o surgimen-
to de novos grupos e escolas historiográficas também dentro do campo
marxista, trazendo inúmeras contribuições aos debates daqueles tempos.

59
A questão da cultura para formação da classe operária, tão bem analisada
pelo historiador inglês E. P. Thompson, desde a sua obra seminal A For-
mação da Classe Operária Inglesa ([1963] 1988), fez parte daquele quadro
de disputas teóricas que o campo das esquerdas enfrentava naquele mo-
mento (FORTES et. al, 2001). Voltaremos à Thompson mais adiante. Por
ora, teremos como ponto de partida o cenário historiográfico em que os
jovens militantes entrevistados pelo Jornal do Brasil estavam inseridos.
A historiografia no Brasil era dominada pelas teorias marxistas
nas suas mais variadas vertentes. Tais análises, grosso modo, estariam
alicerçadas na ideia de passividade das camadas populares, em especial
dos escravos, que não teriam tido condições de reagir à dominação do
branco (BARREIRO, 1995). Neste contexto, o “13 de maio” poderia ser
considerado mais uma vitória do branco sobre os homens e mulheres
negros escravizados por mais de três séculos no país. A luta em torno
do “20 de novembro” visava destacar a agência de Zumbi contra a domi-
nação branca e sua “morte heroica” como um “símbolo da capacidade
criadora e orgulho da raça [negra]” (NEGRO..., 1973, p. 27).
A atuação do Grupo Palmares e de outros grupos que consti-
tuíram o movimento negro contemporâneo vai marcar uma virada na
atuação de tais movimentos no século XX. Se a historiografia insistia
em deslocar o negro da condição de escravo para condição de margina-
lizado – e em alguns casos, passivos - as organizações negras da época
queriam destruir este estigma.
Devido às características e limitações impostas pela natureza
deste texto, fizemos escolhas na construção do percurso analítico e di-
vidimos em três temporalidades nomeadas como: “No Cativeiro”, “Na
Liberdade” e “O negro no processo de redemocratização”. Na primeira
parte resgataremos, de forma panorâmica, a produção nas Ciências So-
ciais ao longo do século XX e como ela foi fundamental para alimentar a
luta dos movimentos negros contemporâneos a partir da década de 1970.

60
NO CATIVEIRO

A presença africana no Brasil contou com inúmeras pesquisas


ao longo de todo o século XX. No período entre guerras (1918 – 1939)
ainda vigorava no país a ideia de que as relações entre senhores e es-
cravizados foram baseadas no paternalismo e na benevolência dos pri-
meiros. A partir dos estudos de Gilberto Freyre, com destaque para o
livro Casa-Grande & Senzala (1992), a suposta suavidade da escravi-
dão brasileira tornou-se interpretação predominante na historiografia
nacional, internacional e no imaginário popular. Publicado em 1933, a
obra serviu, entre outros propósitos, a construção da identidade nacio-
nal levada a termo pelo governo de Getúlio Vargas (1930 – 1945), onde
ser brasileiro significava a junção cultural das três raças que compu-
nham o país, o branco, o negro e o índio, num amálgama social lidera-
do pelos homens brancos (KOIFMAN, 2012). Aos indígenas e negros o
lugar de destaque nos aspectos culturais, entretanto de subalternos em
termos sociais, econômicos e políticos. E assim, a invasão do território
pelos portugueses e a escravização de nativos e africanos importados à
força – apesar de violenta – trouxe a miscigenação racial e cultural num
clima de suposta harmonia, um trunfo brasileiro, se comparado com a
situação de diversos países, em especial, dos Estados Unidos.
Do final do século XIX aos anos 1930, nenhum conflito étnico
foi considerado com tal, nenhuma lei teria sido promulgada no senti-
do de segregar racialmente os negros brasileiros. Entretanto, o “conflito
passa[va] para o terreno do não dito, fica[ndo] cada vez mais difícil ver
no tema, um problema” (SCHWARCZ, 2012, p. 44). Antonio Guima-
rães sintetiza muito bem esse período:
Vargas, na política; Freyre, nas ciências sociais; os artistas e lite-
ratos modernistas e regionalistas, nas artes; esses serão os prin-
cipais responsáveis pela “solução” da questão racial, diluída na

61
matriz luso-brasileira e mestiça de base popular, formada por
séculos de colonização e de mestiçagem biológica e cultural,
em que o predomínio demográfico e civilizatório dos europeus
nunca fora completo a ponto de imporem a segregação dos ne-
gros e mestiços. Ao contrário, a estratégia dominante sempre
fora de “transformismo” e de “embranquecimento”, ou seja, de
incorporação dos mestiços socialmente bem-sucedidos ao gru-
po dominante “branco”. (GUIMARÃES, 2001, p. 124)

No início da década de 1950, a Organização das Nações Unidas


para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) financiou diversas pesquisas
sobre as relações raciais no país. O objetivo principal do projeto foi anali-
sar como se deu a experiência brasileira reconhecida internacionalmente
até então como vitoriosa neste quesito. Os resultados não confirmaram
o mito (NOGUEIRA, 1985). Fernando Henrique Cardoso (1962), vin-
culado ao grupo que ficou conhecido como Escola Sociológica Paulista,
sob a liderança de Florestan Fernandes (1955), ainda que buscassem de-
nunciar o racismo em detrimento da suposta democracia racial brasileira,
reforçaram que a situação precária a que os negros estavam submetidos
no século XX devia-se, em última análise, a uma inadaptação do próprio
negro e não uma consequência da falta de políticas públicas para minora-
rem os séculos de escravização e os desafios enfrentados pelos negros no
Pós-abolição, principalmente na Primeira República.
Fernandes (1978) reconstruiu, com base em dados empíricos,
o drama que o negro vivera na difícil adaptação ao trabalho livre no
Pós-abolição, fruto de um passado degradado social, cultural e moral-
mente. Concluiu que essa situação criou um “déficit negro”, um desajus-
tamento social dos ex-cativos na sociedade capitalista e que esse fator
impediria a criação da suposta democracia racial tão impregnada nos
estudos históricos e sociológicos desenvolvidos até então.
A tese de Fernandes tornou-se hegemônica naquele contexto
político de ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) e de perseguição

62
à ideologia marxista. Os estudos posteriores reafirmaram a incompa-
tibilidade entre escravidão e capitalismo e se dedicaram às relações de
produção no período colonial e imperial, em especial, à sociedade cafe-
eira do século XIX e à rebeldia escrava. Essa corrente historiográfica da
escravidão pautada na violência e crueldade, não deixava espaço para os
diversos processos sociais vividos pelos cativos, em outras palavras, o
escravo continuava passivo, alheio à sua própria história.
Segundo essa corrente, para sair da sua condição de passividade
frente à exploração a que estava submetido, o cativo deveria participar de
um quilombo ou de um confronto direto com o sistema (únicos eventos
considerados resistência), o que reduziria a sua ação a uma simples reação à
condição imposta pelos senhores. A resistência escrava era encarada como a
forma extrema de negação ao sistema escravista. Um dos pontos favoráveis
a esse tipo de análise foi o levantamento minucioso das revoltas e das for-
mações quilombolas dos séculos XVII ao XIX. Contudo, nesses estudos o
escravo ainda estava preso a uma análise circular, como em um enigma. Que
a escravidão era cruel não se discutia mais, agora a questão era outra: a escra-
vidão era cruel, e por isso o escravo “reagia” ou os cativos “reagiam” por que
ela era cruel? Saía de cena o escravo “passivo” e entrava o “rebelde” (CAR-
DOSO, 1962; IANNI, 1962 e 1978; COSTA, 1966; CHALHOUB, 1990).
A expansão dos programas de pós-graduação no país a partir
década de 1970 ampliaram as pesquisas sobre o fenômeno escravista em
vários pontos do território brasileiro. Houve expansão no campo dos
estudos históricos e novos temas e regiões foram incorporados às análi-
ses: tráfico negreiro, família escrava, processo de abolição, produção de
gêneros para o mercado interno, resistência escrava, entre outros. Esses
novos estudos questionaram as posições teóricas e as linhas explicativas
que defendiam a “anomia social” dos ex-cativos e seus descendentes.
Desta forma, os escravizados, além de vítimas da opressão cruel de seus
senhores, tornam-se também agentes de sua própria História.

63
Por muito tempo, as relações de dominação que se estabelece-
ram na sociedade escravista no Brasil foram pensadas exclusivamente
dentro de um quadro marcado pelo binômio submissão-resistência. Em
outras palavras, a imagem dos escravos mais difundida pela historiogra-
fia era a de um conjunto de homens e mulheres inteiramente subjugados
por sua própria condição, anômicos, impedidos de pensar a si mesmos
de outro modo que não como coisas. Partindo da definição estritamen-
te legal que considerava o escravo como mercadoria, isto é, objeto de
transação e dos desígnios de seu proprietário, concluía-se que ele vivia
esta alienação integralmente, como se, uma vez reduzido à condição de
objeto, fosse anulado como sujeito, incapaz de qualquer ação autônoma,
com exceção da reação “espontânea” da violência e da fuga (SLENES,
1999). A ênfase na submissão brutal dos escravos e na sua impossibili-
dade de combater a partir de dentro as consequências do cativeiro aju-
dou a demolir o mito da “democracia racial” no Brasil entre as décadas
de 1950 e 1960 (COSTA, 1979), mas esta perspectiva sobre a escravidão
também deixou em aberto muitos problemas que foram enfrentados
nas décadas seguintes pelos historiadores.
Se contrapondo ao quadro que considerava a ação escrava
como pouco relevante para as transformações que ocorreram na so-
ciedade escravista – incluindo aí a própria abolição da escravidão –
surgiu uma contestação sistemática, em especial a partir da década
de 1980 (MATTOSO, 1982; REIS, 1986). Combatia-se, fundamental-
mente, a imagem do “escravo-coisa”, a partir de um conjunto expres-
sivo de estudos empíricos. Assim, por exemplo, Sidney Chalhoub
(1990, p. 35), estudando as últimas décadas da escravidão através
dos processos civis e criminais que envolviam escravos e senhores
na cidade do Rio de Janeiro, demonstrou como os cativos explora-
vam ativamente, em seu proveito, as brechas legais que a sociedade
escravista deixava em aberto, lhes permitindo lutar pela conquista de

64
direitos. Ao abordar o período inaugurado pela lei de 28 de setembro
de 1871, ele discute como as contradições contidas nos novos dispo-
sitivos legais – que rearticulavam e tornavam, de certo modo, mais
ambíguas as relações entre o Estado, a classe senhorial e os escravos
– eram percebidas e manipuladas pelos cativos.
Assim, os escravos articulavam suas próprias concepções de li-
berdade, daquilo que poderiam considerar como um cativeiro justo ou
pelo menos tolerável, os limites dos seus próprios deveres e seus “direi-
tos” frente aos senhores e se voltavam para a Justiça constituída, impe-
trando processos contra seus algozes, recorrendo à lei para conseguir
sua liberdade ou para negociar – mesmo que dentro de limites bem pre-
cisos – as condições de seu cativeiro.
Disposta a refutar as teses que desconsideravam a cultura polí-
tica expressa cotidianamente por africanos e seus descendentes no Bra-
sil, a historiografia social da escravidão, sob influência da obra de E. P.
Thompson, articulou experiências individuais e coletivas aos valores e
normas sociais, aos costumes e tradições africanas. Os casos de resistên-
cia ao regime escravista – diretos ou não – deixam de ser interpretados
como atos extremos e passam a fazer parte de um mosaico ampliado
de relações de dominação que também estavam inseridas em contextos
de violência, conflitos, mas também de negociação (REIS, 1986, 1989;
LARA, 1988; REIS; GOMES, 1996).
As grandes interpretações do processo social e os debates so-
bre os modos de produção deram lugar ao interesse pelo ponto de vista
dos cativos, seus modos de viver, agir e sentir, suas práticas cotidianas,
conflitos e solidariedades, revelando novas dimensões da experiência
negra sob a escravidão. Esta historiografia mostrou como os cativos
mantinham – apesar da escravidão – seus valores e projetos próprios,
lutando por eles das mais variadas formas: pelo confronto direto, por
negociações, nem sempre tão óbvias, pelo estabelecimento de relações

65
familiares e comunitárias. Essas ações individuais ou coletivas ao longo
do tempo transformaram as relações de dominação escravista desde o
período colonial (REIS, 1986).
Os estudos atuais sobre a escravidão no Brasil em todas as regi-
ões e ambientes (rurais e urbanos) descortinam a amplitude das fontes
documentais, imagéticas e até mesmo arqueológicas proporcionando a
pulverização do conhecimento sobre a presença negra nos mais recôndi-
tos lugares do país, demonstrando ser possível acompanhar a trajetória de
livres e libertos, aproximando-se de suas práticas culturais, econômicas,
religiosas e sociais construídas, muitas vezes, desde o período em cativei-
ro e preservadas na liberdade (REIS, 2008; REIS et. al., 2010; SAMPAIO,
2009). Da mesma forma, os significados da liberdade têm sido matizados
em pesquisas que apontam outras possibilidades para além do “paradig-
ma paulista” de substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre imi-
grante no período pós-abolição (CHALHOUB, 1990; MATTOS, 1998).
Nas duas primeiras décadas do século XXI, a historiografia da
escravidão no Brasil avançou na multiplicidade de temas, períodos e
regiões analisadas. A produção, principalmente nos programas de pós-
-graduação país afora é vasta e com grande potencial de circulação de-
vido aos recursos tecnológicos disponíveis atualmente e que proporcio-
nam a qualquer um de nós acesso a pesquisas desenvolvidas não apenas
aqui como no exterior. Dar conta dessa produção não é nossa intenção
e não caberia nos limites propostos em textos dessa natureza. O mais
importante a se destacar é que as linhas mestras, os caminhos analíticos
que se encontram consolidados estão aqui apontados. São facilmente
encontrados nos livros didáticos que a cada Programa Nacional do Li-
vro e do Material Didático (PNLD) se mostram mais atualizados com
as obras aqui apontadas. O percurso historiográfico de análise do negro
na escravidão já foi minimamente cumprido nestas primeiras páginas.
Agora avançaremos em direção à liberdade.

66
NA LIBERDADE

Após a abolição da escravidão em 1888, os ex-cativos e livres


afrodescendentes praticamente desaparecem dos livros didáticos, seja
no ensino fundamental, seja no ensino médio. Há pouco espaço para o
negro em liberdade, principalmente no século XX. Nesta seção aponta-
remos como o pós-abolição está amplamente contemplado na historio-
grafia há mais de duas décadas.
Como podemos verificar numa rápida conferência nos ma-
teriais pedagógicos editados, a narrativa sobre a Abolição ocorrida
em 1888 já incorporou a agência dos escravizados e libertos nas lutas
contra a escravidão (MACHADO, 1994). Ainda que se mantenha o
destaque da imprensa (CAPELATO, 1988; PINTO, 2010) e da atua-
ção dos profissionais liberais nos movimentos abolicionistas, as fugas
em massa, a formação de quilombos urbanos como o do Jabaquara
e do Leblon (MACHADO, 1994; SILVA, 2003), e a atuação firme de
negros livres como Luiz Gama (AZEVEDO, 1999), André Rebouças
(ALONSO, 2002, 2015) e José do Patrocínio (PINTO, 2018) estão con-
templados. As fronteiras entre trabalhadores livres e escravizados fo-
ram matizadas por essa historiografia fossem nas suas condições civis
(livres ou escravos), étnicas (africanos, europeus ou brasileiros) ou de
ocupação (operários, carregadores, comerciantes).
O fim da escravidão é arrolado pela historiografia como um
dos motivos que teria levado ao golpe de estado que derrubou a mo-
narquia no país e consideramos que essa tese também está incorpo-
rada aos livros didáticos. Igualmente contemplados estão as questões
políticas que envolviam a sucessão do trono, o movimento republica-
no e a ausência de qualquer indenização para os antigos senhores. En-
cerrava-se o período imperial e saía de cena o negro como trabalhador
escravo (COSTA, 1979; CARVALHO, 1987, 1990).

67
Na Primeira República (1889 – 1930) as questões de imigração,
racialização e embranquecimento do brasileiro se misturam e marcam
as relações étnico-raciais num processo que tem início ainda na década
de 1870 (SCHWARCZ,1993). No final do século XIX, já sob o regime
republicano, a questão racial desaparece dos livros didáticos retornando
apenas na Revolta da Chibata de 1910 (Nascimento, 2008). Apesar da
grande participação negra na Revolta da Vacina de 1904, o que foi incor-
porado pelos livros didáticos gira em torno da moralidade da população
pobre e seu deslocamento do centro da capital federal, o “bota abaixo”
do prefeito Pereira Passos e suas consequências, retirando o fator raça
das análises (SEVCENKO, 1984; CARVALHO, 1987; BENCHIMOL,
1992). Mesmo que a pesquisa de Chalhoub (1996) tenha trazido a ques-
tão racial ao processo, os livros didáticos ainda não incorporaram tal
presença da mesma forma com que outros eventos ocorridos durante o
cativeiro negro já foram. O que mais se destacou na Revolta da Vacina
foi a organização dos operários das diversas fábricas que participaram
do movimento e sua mobilização meses antes do conflito em torno de
uma greve que afetou a capital federal. Os operários em questão não
tinham cor, embora as lideranças fossem jocosamente identificadas nos
periódicos em caricaturas que realçavam as marcas raciais desses parti-
cipantes, construindo sua imagem como desordeiros e criminosos con-
tumazes (CARVALHO, 1987).
Em torno desse movimento popular e político diversos grupos
organizados ou não, tiveram participação ativa nos protestos e nos con-
frontos com as autoridades policiais. Ao longo da revolta, seus partici-
pantes foram variando segundo a imprensa da época. Se no início os en-
volvidos eram estudantes, comerciantes, militares, operários e “pivetes”,
passada a tentativa de controle da revolta pelos militares, os operários
das grandes empresas e as “classes perigosas” lideraram as principais
ações que marcaram historicamente o movimento. O local onde se de-

68
senrolaram as principais ações do levante popular, na zona portuária
do Rio de Janeiro, conhecida como “Pequena África”, lugar de Tia Ciata
e das rodas de samba (LOPES, 2008) e dos estivadores, em sua maio-
ria negros, de comerciantes, em grande parte imigrantes portugueses,
e de todas as categorias de trabalhadores que vivenciaram a passagem
do século XIX para o século XX, o momento em que as classes domi-
nantes impunham uma inversão da ideia de trabalho. Antes associado
à escravidão, o trabalho seria encarado como dignificador da existência
humana (CHALHOUB, 1986; AZEVEDO et. al, 2009).
Não apenas nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo os afro-
descendentes enfrentaram grandes desafios. Em várias partes do país,
famílias inteiras que haviam passado pela experiência do cativeiro se
reorganizaram para viver em liberdade. Uma liberdade hostil à sua cul-
tura, ao seu tom de pele e à sua presença. A cidade de Salvador, por
exemplo, também foi palco dessa disputa entre o “antigo”, “ultrapassa-
do”, “monárquico”, e o “moderno”, “civilizado” e “republicano” daqueles
tempos. Mesmo que as elites soteropolitanas tentassem, nos momentos
de festa as classes populares tomavam às ruas e atribuíam significados
étnicos próprios e concorrentes aos novos padrões “civilizados”. Era o
caso do “Dois de Julho”, de festa cívica em comemoração à indepen-
dência da Bahia à exaltação de elementos étnicos que estavam longe da
forma como as elites baianas se reconheciam e gostariam de ser reco-
nhecidas nacionalmente (ALBUQUERQUE, 1999).
O Pós-abolição foi marcado como um tempo em que os ali-
cerces legais da dominação dos negros pelos brancos foram solapa-
dos de vez com a lei Áurea. O mundo agora precisava ser recons-
truído para que se mantivessem os atores em seus antigos papeis de
dominadores e dominados. A racialização e a consequente inferio-
rização dos afrodescendentes fazia parte de um projeto maior de
manutenção do status quo senhorial, num mundo já sem escravos

69
(ALBUQUERQUE, 2009). Os papeis hierárquicos precisavam ser
mantidos intactos. Ocorria nas cidades, mas também em áreas ru-
rais como o Recôncavo Baiano.
No final do século XIX a região do recôncavo era ocupada por
engenhos de produção de açúcar e densamente povoada de trabalha-
dores escravizados que, com a crise açucareira do período, foram ne-
gociados no tráfico interprovincial e vendidos para as regiões cafeeiras
do Sudeste (MATTOS, 1998). O clima de tensão gerado por esse des-
locamento forçado criou tamanho desequilíbrio nas relações de traba-
lho então estabelecidas entre senhores e escravos remanescentes que os
conflitos eram constantes, principalmente pelo retrocesso dos ganhos já
conquistados nas negociações de folgas e de acesso à terra para produ-
ção de subsistência. A abolição foi seguida de festa e contestação. Segun-
do os antigos proprietários de gente, a liberdade teria trazido “entusias-
mo” em demasia, “deslumbramento” e a recusa veemente das condições
de trabalho oferecidas, o que provaria estarem os negros “despreparados
para a liberdade” (FRAGA FILHO, 2006).
A defesa do suposto despreparo nada mais era do que a tentativa
de manter a hierarquia e o comando dos tempos do cativeiro. Traba-
lhadores agora livres não toleravam mais a dominação nos termos es-
cravistas. Rejeitavam a tudo que lembrava o passado recente. As novas
relações de trabalho foram arduamente negociadas, fossem nas antigas
lavouras canavieiras do Nordeste, fossem nas lavouras de café do Sudes-
te (MATTOS, 2009) ou no litoral rio-grandense (WEIMER, 2015). Mi-
grar para os grandes centros urbanos foi uma das alternativas seguida
por diversos afrodescendentes, independente de terem vivenciado ou
não o cativeiro. Ao chegarem aos grandes centros urbanos da Primeira
República, homens e mulheres negros, nascidos no cativeiro ou na liber-
dade enfrentaram grandes disputas por postos de trabalho, lugares de
moradia e por educação formal.

70
Os desafios daqueles tempos impuseram a reativação dos laços
associativos do passado. Desde o período colonial era comum irman-
dades religiosas católicas fazerem parte da vida de toda a sociedade, da
classe senhorial aos escravos, passando pelos “pardos” e livres pobres.
Tais instituições ofereciam auxílio espiritual e também material, garan-
tindo aos irmãos uma ajuda financeira em casos de extrema necessida-
de, espaço de sociabilidades, um enterramento digno e, para muitos ca-
tivos, a sua alforria. (SCARANO, 1976; BOSCHI, 1986; ABREU, 1999).
Avançando no tempo e chegando às primeiras décadas do século
XX, temos alguns estudos mostrando a importância das mais variadas
associações negras constituídas em diversas partes do país, com desta-
que para o estado de São Paulo. Fossem organizando festas beneficentes,
clubes, times de futebol ou grêmios literários, homens e mulheres ne-
gros construíram poderosas redes de apoio mútuo para se recolocarem
socialmente, destruindo assim qualquer estigma que a história do cati-
veiro os tenha legado (ANDREWS, 1998).
Motivados por arregimentar o maior número possível de adep-
tos, esses “homens de cor” intensificaram a divulgação de seus projetos
e interpretações do mundo a partir da imprensa negra. Também tribu-
tária do final do século XIX, nascida nas lutas pela abolição (PINTO,
2010), a imprensa negra no século XX ocupou lugar de destaque no
modelo de luta contra o racismo e a “discriminação de cor”. São Paulo,
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais contaram
com inúmeros jornais ao longo da Primeira República dedicados à cau-
sa negra, geralmente porta-vozes das associações ou lideranças que os
mantinham (DOMINGUES, 2004).
Em 1930 inaugura-se uma nova República após a derrubada do
último representante das oligarquias que assumiram o poder ainda no
final do século XIX. Getúlio Vargas e sua revolução prometeram uma
mudança radical, estabelecendo um projeto nacionalista que poderia

71
contemplar os interesses das lideranças negras da época. Surge em São
Paulo no ano de 1931 a Frente Negra Brasileira (FNB) e em 1933 o seu
veículo de comunicação, o jornal “A Voz da Raça”. Em seu primeiro nú-
mero, logo abaixo do título, os dizeres de um dos fundadores, Isaltino
Veiga dos Santos: “O preconceito de cor no Brasil só nós os negros o
podemos sentir” e o lema da FNB: “Deus, Pátria, Raça e Família”.
A expansão da Frente Negra país afora foi um fenômeno. Surgi-
da num período de crise econômica e severas transformações políticas, a
instituição soube captar os anseios da população negra e entendeu que a
questão racial deveria ser politizada. Foram fundadas sedes em diversas
cidades brasileiras e as estimativas mais otimistas apontam para o número
de aproximadamente cem mil filiados em todo o país. Muito do que se
sabe sobre a FNB está registrado nas páginas de seu periódico. Em seus
editoriais e matérias é possível perceber que não era apenas a denúncia do
racismo o seu objetivo, mas também “aproximar os setores da população
negra em uma organização que manifestava desejos, intenções e expecta-
tivas mais amplas de cidadania e participação”. (GOMES, 2005, p. 53).
As disputas entre os grupos políticos do país e no interior da
FNB ao longo da década de 1930 são fascinantes para entendermos com
a vida da população negra e suas lutas ganharam novas dimensões na-
quele momento. Algumas de suas lideranças, inspirando-se em movi-
mentos associados à direita do espectro político, passaram pelo inte-
gralismo brasileiro e o apoio ao nazifascismo europeu. Ainda tiveram
forças para se organizarem em um partido político, porém, sem muito
êxito nas urnas. Com a decretação do Estado Novo em 1937 tiveram seu
registro cassados e a organização extinta.
Na década seguinte, com o fim da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) e associado ao momento democrático vivido no país de-
pois da queda de Vargas surge um novo movimento no Rio de Janeiro, o
Teatro Experimental do Negro (TEN). O grupo foi fundado por Abdias

72
Nascimento, Sebastião Rodrigues Alves e Agnaldo Camargo como um
protesto contra o uso de atores brancos pintados de preto para encena-
rem personagens negros nos palcos. Mas não apenas isso. Seus funda-
dores constataram que atores e atrizes negros não tinham as mesmas
oportunidades cênicas que os brancos, não encontrando espaço para
exercerem o seu ofício e mostrarem os seus talentos. Como todo o mo-
vimento racial e político da época, o TEN sofreu diversas críticas de
parte da opinião pública, contrários ao seu posicionamento intransigen-
te contra a discriminação e o racismo (MARTINS, 1995).
Nascido em defesa da arte, não demorou muito para o TEM es-
praiar a sua atuação em diversas áreas. Como outras organizações ne-
gras anteriores, fundaram um jornal para a divulgação de suas ideias.
Intitulado “Quilombo” (1948), em seus editoriais ou matérias escritas
por membros e convidados, a defesa da educação dos negros e a obri-
gação do Estado em garantir seu acesso aos diversos níveis de forma-
ção eram temas recorrentes. A discriminação racial também era sempre
denunciada em suas páginas. O grupo teve grande projeção artística,
social e política. Na área da cultura encenou inúmeras peças com atores
e atrizes negros como personagens principais, promoveu concurso de
artes plásticas; organizou concursos de beleza negra em resposta aos
concursos de misses que na época não davam espaço para as mulheres
negras. Seus membros ajudaram a fundar o Instituto Nacional do Ne-
gro, liderado pelo importante sociólogo Guerreiro Ramos, participou
efetivamente ou ajudou a organizar eventos acadêmicos com a temática
das relações raciais no Brasil e, através de Abdias Nascimento, mantive-
ram contato com diversas lideranças negras e intelectuais estrangeiros
da África, dos Estados Unidos e Europa. Para Domingues:
Apesar de ser um agrupamento inserido no movimento negro,
o TEN teve a perspicácia de entender que a luta antirracista é
uma tarefa de caráter democrático, tendo que ser travada pelo

73
conjunto da sociedade brasileira. Daí a estratégia de capitalizar
o apoio dos setores mais democráticos e comprometidos com
as causas sociais. Com esse espírito o agrupamento selou uma
política de aliança com alguns artistas e intelectuais brancos,
[...]. A aliança ou solidariedade ativa de artistas e intelectuais
brancos fez com que o projeto de combate ao racismo do TEN:
primeiro não caísse no sectarismo; segundo, tivesse maior re-
presentatividade; e terceiro, adquirisse visibilidade para a socie-
dade mais abrangente (DOMINGUES, 2006, p. 153).

A ditadura civil-militar instalada no Brasil em 1964 dificultou


muito a atuação do grupo, acusado de pregar o conflito racial no país. Às
vésperas do recrudescimento do regime de exceção decretado pelo Ato
Institucional Nº 5 (AI-5), Abdias Nascimento segue para os Estados Uni-
dos em autoexílio, desarticulando o TEN. Na década seguinte os movi-
mentos negros brasileiros ressurgem no contexto repressivo da época. Em
1971 é fundado o Grupo Palmares, cuja reportagem abre este capítulo.
Chegamos à terceira e última parte do nosso percurso, o negro no proces-
so de redemocratização e na defesa de antigas e novas bandeiras de luta.

O NEGRO NO PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO



Após o golpe de estado de 1964 e ao longo de todo o período
de recrudescimento do regime de exceção instalado no Brasil, a orga-
nização e atuação dos movimentos sociais foram dificultadas ou mes-
mo interditadas com perseguições, prisões, torturas e morte de suas
lideranças e membros (FICO, 2001). Lideranças negras como Abdias
Nascimento e Guerreiro Ramos foram forçados a saírem do país. Novas
formas de luta foram construídas para aqueles sombrios novos tempos.
O Grupo Palmares foi constituído em um momento de ree-
laboração da identidade negra frente ao Brasil da década de 1970 e
os desdobramentos dos diversos movimentos raciais ocorridos pelo

74
mundo na década anterior (CAMPOS, 2006). Naquele momento fazia
sentido o resgate de uma tradição de resistência do negro contra as
opressões de uma sociedade dominada pelos brancos. Para isso era
necessário reinterpretar um passado recente que havia tentado cons-
truir uma “aliança” ou uma “solidariedade ativa” com os não negros,
indo mais longe, ao passado colonial e resgatando a figura do líder
quilombola Zumbi dos Palmares.
Ao longo dos primeiros anos de fundação, o Grupo intensifi-
cou suas atividades de pesquisa histórica, produziu materiais de divul-
gação, fórum de discussões com temáticas negras, e procurou sempre
a imprensa para divulgar suas ações. As dificuldades de contato com
instituições congêneres em outras regiões do país foram contornadas
a partir do momento que passaram a figurar na imprensa nacional. O
empenho em celebrar figuras negras contrapondo-se ao 13 de maio
e construindo o 20 de novembro como o verdadeiro dia de celebra-
ção da liberdade e da importância do negro para a formação do país
trouxe importantes resultados. Diversas organizações do movimento
negro aderiram às ideias do Grupo Palmares que, em 1976, lançou um
pequeno livro intitulado “Mini história do negro brasileiro”. Segundo
Campos (2006, p. 64), “a adesão ao 20 [de novembro] configura[va]-se
na elaboração do grupo, como uma exaltação dessa resistência em seu
exemplo maior que foi o quilombo de Palmares”.
Em várias cidades o movimento negro se reorganizava com os
jovens estudantes universitários, sindicalistas e simpatizantes que enten-
deram ser importante lutar por uma “autêntica democracia racial” num
período nada democrático vivido no país (GONZALEZ; HASENBALG,
1982). Em julho de 1978 em frente ao Teatro Municipal de São Paulo
diversos grupos e associações negras protestaram contra a morte de Ro-
bson Silveira da Luz que havia sido preso, torturado e morto numa de-
legacia na cidade de São Paulo e também pela discriminação sofrida por

75
quatro jovens negros no Clube de Regatas Tietê, onde foram barrados
ao tentarem participar de um jogo naquele espaço (PEREIRA, 2013).
Esse ato deu origem ao movimento negro contemporâneo e só
foi possível devido ao processo de abertura política que então ocorria
no Brasil. Nos meses anteriores, as greves no ABC paulista e a atuação
de diversos grupos políticos davam o tom efervescente da época. A ma-
nifestação nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo marcou o
início da atuação do Movimento Negro Unificado Contra a Discrimina-
ção Racial (MNUCDR). No ano seguinte o grupo passou a se intitular
Movimento Negro Unificado (MNU), e “sua formação parece ter sido
responsável pela difusão da noção de ‘movimento negro’ como desig-
nação genérica para diversas organizações e ações construídas a partir
daquele momento” (PEREIRA, 2012, p. 112).
O Grupo Palmares durante quase uma década fomentou ativida-
des e manifestações em torno da história do negro no Brasil, resgatando
personalidades negras importantes e fazendo da luta contra o 13 de maio
e a favor do 20 de novembro a bandeira mais importante do movimento
gaúcho. As matérias nos jornais, o clima de redemocratização do final dos
anos 1970 e as diversas mobilizações negras pelo país, culminando com
a fundação do MNU em 1979, ajudou na construção de uma rede de luta
contra o racismo e o mito de uma democracia racial.
Os jovens negros gaúchos, que apareceram na reportagem da
edição nacional do Jornal do Brasil em 1973, articulados com os movi-
mentos negros de outros estados propuseram o 20 de novembro como o
Dia Nacional da Consciência Negra. Proposta aprovada ainda em 1978,
as comemorações em torno de Zumbi dos Palmares tornaram-se insti-
tucionalizadas pelo movimento negro – agora sim – nacional.
A década de 1980 foi marcada pela consolidação do movi-
mento negro contemporâneo. Com o retorno do pluripartidarismo
e a fundação de diversas legendas ocorreu a distribuição de alguns

76
militantes em diversas agremiações políticas. As eleições diretas para
governadores de estado, a campanha das Diretas Já e a eleição dos
membros da Assembleia Constituinte de 1986 também impactaram de
várias formas o movimento negro. Foi nesta década que ocorreram as
primeiras iniciativas estatais em defesa das lutas do movimento negro
com a criação de secretarias e órgãos de estado em prol da causa. Um
novo problema se colocava. Parte da militância via com desconfiança
a entrada de seus membros em partidos políticos ou assumindo postos
nos governos, principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo, capitais
que elegeram opositores ao regime militar nas eleições de 1982 (CAM-
POS, 2006; PEREIRA, 2013).
A atuação burocrática de diversas lideranças criou tensões polí-
ticas entre os militantes. O movimento negro contemporâneo não só se
espalhou pelo Brasil como se consolidou pautando a luta política nos
tempos de retorno da democracia, das discussões e lutas na Constituição
de 1988 e, como ponto alto, o centenário da abolição da escravidão. As
pesquisas historiográficas que ajudariam a construir a mudança interpre-
tativa da experiência dos negros no processo histórico brasileiro foram
publicadas neste período. A denúncia do movimento negro contra “a far-
sa da abolição” daria o tom das ações empreendidas nos anos seguintes.

CONCLUSÃO

A promulgação da lei 10.639/2003 foi resultado de uma árdua


luta de décadas do movimento negro brasileiro para incluir nos currícu-
los escolares a história dos africanos e seus descendentes no Brasil. Des-
de a década de 1990, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), e a inclusão da
História no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 1997, os
livros e demais materiais didáticos têm procurado atender aos dispositi-

77
vos legais e incluir temas e abordagens mais condizentes com os avan-
ços historiográficos. É neste ano também que a responsabilidade sobre o
PNLD passa ser integralmente do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), o que amplia as disciplinas (alfabetização, língua
portuguesa, matemática, ciências, estudos sociais, história e geografia)
para todos os alunos da então 1ª a 8ª séries (atuais 1º ao 9º do ensino
fundamental). Recentemente, nova mudança no programa. O Decreto
nº 9.099, de 18 de julho de 2017, uniu as ações de aquisição e distribui-
ção de livros didáticos e literários em um único programa com nova
nomenclatura – Programa Nacional do Livro e do Material Didático – o
que possibilitou a inclusão de outros materiais didáticos além dos livros,
no apoio à prática educativa (BRASIL, 2020).
A cada edital do PNLD, os livros didáticos foram ampliando
a sua abordagem sobre a história e a cultura dos africanos e seus des-
cendentes e hoje, quase duas décadas depois da lei nº 10.639/2003,
consideramos que o período colonial e imperial da história do Brasil
esteja privilegiado a contento. O problema ainda reside no Pós-aboli-
ção, na presença do negro na Primeira República, na Era Vargas, no
período democrático de 1945 a 1964 e além. É flagrante a ausência das
lutas negras e de personalidades negras no conteúdo. Pelo menos até
o período década de 1990, consideramos que a historiografia acadê-
mica tem produção suficientemente sólida para oferecer aos autores e
editores de materiais didáticos subsídios para continuarem a inclusão
do negro do século XX ao abordarem os assuntos políticos, sociais e
culturais da história brasileira.
A promulgação da BNCC (Base Nacional Comum Curricular)
em 2017 para o ensino fundamental e em 2018 para o ensino médio
trouxe novos desafios. Os estados e municípios ainda estão se adequan-
do ao documento, fazendo as adaptações que considerarem necessárias.
Os avanços tecnológicos também estão chegando às escolas. Aplicativos

78
de mensagens, canais de conteúdo na internet e até jogos com temáticas
históricas estão sendo utilizados, em grande medida, por escolas das
classes médias e altas. Para grande parte das escolas públicas, que aten-
dem a maioria dos jovens brasileiros, ainda teremos por muito tempo a
presença dos livros didáticos. Aí reside a necessidade de continuarmos
com a luta pela inclusão das histórias dos agentes que durante séculos
estiveram à margem: negros, mulheres, indígenas, gays e todos aqueles
que foram silenciados por tanto tempo.

POST SCRIPTUM

Como textos dessa natureza, este nasceu de um recorte específi-


co de análise: o que a historiografia produziu sobre a história e cultura
dos afrodescendentes no Brasil, mas que ainda não chegou aos livros
didáticos. Do convite à produção, as etapas de revisão e publicação do
texto, muitos assuntos importantes e que têm ligação direta com a te-
mática aconteceram numa proporção que nunca havíamos vivenciado
nessas duas décadas de atuação profissional na educação.
As eleições de 2018 levaram ao poder um grupo político que não
tem outro compromisso a não ser retroceder nas conquistas políticas,
sociais, econômicas, dos direitos humanos, do meio ambiente e, prin-
cipalmente das conquistas raciais de várias gerações, como procuramos
demonstrar ao longo deste capítulo.
A pandemia do COVID – 19 que já matou milhares de pessoas
pelo mundo, tornou evidente a discriminação racial em meio à maior crise
sanitária em mais de um século. Negros morrendo mais do que não ne-
gros. No campo internacional, a violência policial – tão conhecida dos jo-
vens negros das periferias de todas as cidades do país – atingiu um homem
negro que se tornou símbolo da mais recente onda de protestos raciais que
teve início nos Estados Unidos e se espalhou por todos os continentes.

79
De volta à realidade brasileira, crianças negras continuam
sendo mortas por balas “perdidas”. Patroas exigem que suas em-
pregadas domésticas quase todas negras, trabalhem em plena pan-
demia mesmo indevidamente acompanhadas de seus filhos peque-
nos; mesmo que a negligência leve à morte do menino negro, e que
isso corresponda a um valor irrisório de fiança. E por fim, porém,
não menos importante, a exclusão de grande parte dos alunos que,
impedidos pela doença de estarem nas escolas, não conseguem ter
acesso ao ensino remoto por não possuírem internet de banda larga
ou um lugar apropriado para estudarem.
Sabemos que a historiografia ainda não tem uma interpreta-
ção mais consistente para os fatos da história mais recente. Entretanto,
todos os acontecimentos narrados neste post scriptum reforçam o que
significou para as gerações passadas as lutas raciais e o quanto a nossa
geração tem um compromisso, não com o passado, mas com o futuro.
Um futuro em que a cor da pele, o gênero ou a classe social não sirva de
justificativa para nos matar. Precisamos conseguir respirar.

REFERÊNCIAS

ABREU, Martha. O império do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro,
1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

ABREU, Martha et. al (Orgs.). Histórias do Pós Abolição no mundo Atlântico. Niterói: EdUFF,
2013. v. 1-3.

ALBERTI, Verena. PEREIRA, Amílcar. Histórias do movimento negro no Brasil. Rio de


Janeiro: Pallas, 2007.

ALBUQUERQUE, Wlamyra. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São


Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ANDREWS, George R. Negros e brancos em São Paulo (1888 – 1988). Bauru/ SP: Edusc, 1998.

ALONSO, Angela. Ideias em movimento. A geração 1870 na crise do Brasil-Império. São


Paulo: Paz e Terra, 2002.

80
_______. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868 – 88). São Paulo:
Cia das Letras, 2015.

AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luís Gama na Imperial cidade de São
Paulo. Campinas/SP: Ed. da Unicamp, 1999.

AZEVEDO, Elciene et al (Orgs). Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro


e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas/SP: Ed. da Unicamp, 2009.

BARREIRO, José Carlos. “E. P. Thompson e a historiografia brasileira: revisões críticas e


projeções”. Projeto História, São Paulo, n. 12, p. 57-75, out. 1995.

BENCHIMOL, Jaime L. Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação urbana da cidade


do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Turismo e Esportes: Biblioteca Carioca, 1992.

BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas
Gerais. São Paulo: Ática, 198 São Paulo: Ática, 1986.

BRASIL. Ministério da Educação. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. D.O.U. de 10 de janeiro de


2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 24 de set. 2021.

BRASIL. Ministério da Educação. PNLD. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/busca-


geral/318-programas-e-acoes-1921564125/pnld-439702797/12391-pnld>. Acesso em: 20 de
maio de 2020.

CAMPOS, Deivison Moacir Cezar de. O grupo Palmares (1971-1978): um movimento negro
de subversão e resistência pela construção de um novo espaço social e simbólico. 2006. 196 f.
Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2006.

CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na História do Brasil. São Paulo: Contexto/
EDUSP, 1988.

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: Paz e Terra, 1962.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Cia das Letras, 1987.

_______. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

CHALHOUB, Sidney. Lar, trabalho e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de


Janeiro na Belle Epoque. São Paulo: Brasiliense, 1986.

81
_______. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.

_______. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: UNESP, 1966.

_______. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Livraria Editora


Ciências Humanas, 1979.

CUNHA, Olívia Maria Gomes da; e GOMES, Flávio dos Santos. Quase cidadão: Histórias e
antropologias do pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São
Paulo no pós-abolição. São Paulo: SENAC, 2004.

_______. “Os descendentes de africanos vão à luta em terra Brasilis. Frente Negra Brasileira
(1931 – 37) e Teatro Experimental do Negro (1944 – 68)”. Projeto História, São Paulo, n. 33, p.
131 – 158, dez. 2006.

_______. A nova abolição. São Paulo: Selo Negro, 2008.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 3. ed. [1ª edição


1955] São Paulo: Ática, 1978.

_______. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007.

FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia
política. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.

FORTES, Alexandre; NEGRO, Antonio Luigi; FONTES, Paulo. “Peculiaridades de E.P.


Thompson” In: THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. NEGRO,
Antonio Luigi; SILVA, Sérgio (Orgs.). Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2001. p. 21-57.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade. História de escravos e libertos na Bahia


(1870 – 1910). Campinas: Ed. Unicamp, 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. A Formação da família Brasileira sob o Regime da
Economia Patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1992.

GOMES, Ângela de Castro. Questão social no Brasil do pós-1980: notas para um debate.
Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, n. 34, jul.-dez. 2004.

82
GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888 – 1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. A questão racial na política brasileira


(os últimos quinze anos). Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, v. 13, n. 2,
p. 121-142, nov. 2001.

________. A recepção de Fanon no Brasil e a identidade negra. In: Novos Estudos, CEBRAP,
n. 81, p. 99-114, jul. 2008.

IANNI, Octávio. As metamorfoses do escravo. Apogeu e crise da escravatura no Brasil


meridional. São Paulo: Hucitec, 1962.

_______. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978.

LARA, Silvia H. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro,


1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

LOPES, Nei. História e cultura africana e afro-brasileira. São Paulo: Barsa-Planeta, 2008.

KOIFMAN, Fábio. Imigrante Ideal: o Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil


(1941-1945). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2012.

MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da


Abolição. São Paulo: Ed. UFRJ/EDUSP, 1994.

MARTINS, I. M., A cena em sombras. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995.

MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista
- Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

MATTOS, Hebe Maria. Ao sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. 2.
edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora FGV, Faperj, 2009.

MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.

NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na Revolta dos Marinheiros
de 1910. Rio de Janeiro: FAPERJ / Mauad X, 2008.

NEGRO no Sul não quer mais Abolição como data da raça. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 13 de maio de 1973. Disponível em: <http://memoria.bn.br/docreader/
DocReader.aspx?bib=030015_09&pagfis=83798>. Acesso em: 24 de set. 2021.

NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T.A.
Queiroz, 1985.

83
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. (Org.). História: Ensino Fundamental. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. v. 21. (Coleção Explorando o
Ensino).

PEREIRA, Amílcar Araújo. Por uma autêntica democracia racial!: os movimentos negros nas
escolas e nos currículos de história”. In: Revista História Hoje, v.1, n. 1, p. 111-128, 2012.

_______. O mundo negro. Relações Raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo


no Brasil. Rio de Janeiro, Pallas/Faperj, 2013.

PINTO, Ana Flávia Magalhães. A imprensa negra no Brasil do século XIX. São Paulo: Selo Negro, 2010.

_______. Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista.


Campinas/SP: Ed. Unicamp, 2018.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo:
Brasiliense, 1986.

REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Cia das Letras, 1989.

REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

REIS, J. J; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. O alufá Rufino.


Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c.1822-c.1853). São Paulo: Cia
das Letras, 2010.

SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: um pai-de-santo na Corte Imperial. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2009.

SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
no distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1976.

SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil,
1870 – 1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

_______. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira.
São Paulo: Claro Enigma, 2012.

SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo:
Brasiliense,1984.

SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de


história cultural. São Paulo: Cia das Letras, 2003.

84
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

THOMPSON, E.P. A Formação da Classe Operária Inglesa. A árvore da liberdade. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1988. v. 1.

WEIMER, Rodrigo A. Felisberta e sua gente: consciência histórica e racialização em uma


família negra no pós-emancipação rio-grandense. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.

85
Visualidades e racializações: o PNLD
e as imagens nos livros de História do
Ensino Médio (2008-2018)

Maria Telvira da Conceição1


Túlio Henrique Pereira2

1 Doutora em História Social pela PUC-SP. Professora do Departamento de História da Universidade Regio-
nal do Cariri (URCA) e do programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Ensino de História com
pós-Doutorado em História Social pela Universidade Federal do Ceará/UFC.
2 Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com Pós-Doutorado em His-
tória do Brasil pelo Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí
(PPGHB/UFPI). Professor do Departamento de História da Universidade Regional do Cariri (URCA) e do
Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória/URCA).

86
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A relação entre o Estado brasileiro e os materiais didáticos ini-


ciada no final dos anos 1930 ultrapassou mais de oito décadas. Nes-
sa conjuntura o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), com a
chancela de Programa de Estado, constituiu um marco indiscutível não
apenas para as políticas de aquisição e distribuição desses materiais nas
escolas públicas do território nacional, mas também no que diz respeito
à obrigatoriedade da avaliação pedagógica, iniciada em 1996.
A política de avaliação pedagógica, cujo marco se encontra
no final dos anos 1990, dispõe de uma significativa cobertura em
relação a quantidade de áreas, disciplinas e níveis de ensino em toda
essa trajetória. De modo que, ao se tratar dos livros didáticos de his-
tória do Ensino Médio, o ano de 2008 constitui o ponto de partida da
inclusão deste componente curricular como objeto de avaliação nos
marcos dessa política estatal.
A construção, portanto, das políticas de avaliação pedagógica
para os livros didáticos de história do Ensino Médio no Brasil tem se
dado no confronto com demandas históricas e políticas de grupos e for-
ças sociais, as mais diversas e constantes, as quais disputam representa-
ções e o direito às suas narrativas nesse artefato. Nesse sentido, as de-
mandas da população negra e indígena amparadas nas leis 10.639/2003
e 11.645/20083, constituem uma problemática de suma relevância como
3 Embora a Lei 1.390, de 03 de julho de 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos, tenha incluído a prática
de preconceitos de cor e raça como contravenção penal, a única menção feita ao mundo da escola estava no
artigo 5º, com a seguinte redação: Art. 5º - “Recusar inscrição de aluno em estabelecimentos de ensino de
qualquer curso ou grau, por preconceito de raça ou de cor. Pena: prisão simples de três meses a um ano ou
multa de Cr$500,00 (quinhentos cruzeiros) a Cr$5.000,00 (cinco mil cruzeiros). Parágrafo único. Se tratar
de estabelecimento oficial de ensino, a pena será a perda do cargo para o agente, desde que apurada em in-
quérito regular”. Em 1985, como se sabe, a Lei Afonso Arinos foi alterada pela Lei nº 7.437, de 20 de dezem-
bro de 1985, conhecida como Lei Caó. No texto desta lei que referenda a lei anterior, em relação ao universo
escolar, não houve alteração do teor. Há apenas uma reprodução do artigo 5º no conteúdo do artigo 7º, com
a seguinte redação: “Recusar a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, por
preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil. Pena prisão simples, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e

87
plataforma e parâmetro para mensurar os materiais didáticos destina-
dos ao Ensino Médio avaliados pelo PNLD ao longo desses dez anos.
Compreendemos que entre as demandas postuladas pela lei
10.639/2003 para a construção de um projeto antirracista no Brasil está
a tarefa de repensar os materiais didáticos, conforme texto “divulgação
de bibliografias e materiais sobre a história e a cultura afro-brasileira
nas escolas de todo país” (Parecer 003/2004, p. 23-24). Nessa perspecti-
va, entendemos que problematizar a narrativa visual sobre a população
negra nesses materiais implica questionar uma tradição longa e cris-
talizada, tanto do ponto de vista epistemológico quanto racializante,
responsáveis por auxiliarem na estruturação das tradicionais bases do
currículo escolar. Em que medida o PNLD apontou perspectivas para
vislumbrarmos mudanças que interessam as demandas da população
negra no âmbito dos materiais didáticos ao longo dos últimos dez anos?
É considerável pontuarmos a dificuldade em sintetizar em um
texto todas as dinâmicas que impulsionaram dez anos de mudanças es-
truturais, textuais, visuais e teóricas na editoração de livros didáticos
aprovados pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) destinados
aos docentes e discentes de escolas públicas do Ensino Médio no Brasil.
Desse modo optamos por selecionar quatro coleções de livros de histó-
ria de três editoras diferentes, a ver: História, Volume Único, Ed. Ática,
PENLEM (2009); Ser Protagonista História, volumes 1, 2 e 3, Ensino
Médio, Edições SM (2013); História das cavernas ao terceiro milênio, vo-
lumes 1, 2 e 3, Ensino Médio, Ed. Moderna (2016); e Olhares da Histó-
ria, Brasil e mundo, volumes 1, 2 e 3, Ensino Médio, Ed. Scipione (2017).
Esta seleção foi realizada com o objetivo de analisar em que me-
multa de 1 (uma) a 3 (três) vezes o maior valor de referência (MVR). Parágrafo único - Se se tratar de esta-
belecimento oficial de ensino, a pena será a perda do cargo para o agente, desde que apurada em inquérito
regular”. Fora isto, em 1968, o Brasil ratificou a Conferência da UNESCO, intitulada Convenção relativa à
Luta contra a Discriminação no campo do Ensino, através do Decreto nº 63.223 de 6 de setembro de 1968. A
Convenção havia sido realizada em 1960; portanto, apenas oito anos depois, o Brasil ratificou-a. Importante
frisar que o conteúdo da Convenção tem como teor principal a questão da prevenção da discriminação, no
sistema de ensino, e não se constituiu como uma lei. CONCEIÇÃO, 2015, p. 29.

88
dida o PNLD apontou perspectivas para vislumbrarmos mudanças que
interessam as demandas da população negra no âmbito dos materiais
didáticos ao longo dos últimos dez anos, no tocante as narrativas visuais.
Nesse sentido, teremos como foco a riqueza dos conteúdos visuais inseri-
dos nos referidos livros didáticos e, também, a preocupação das editoras
e de seus autores, produtores de conteúdo em se adequarem a proposta
do PNLD para a consolidação da Educação Étnico-racial no Brasil.

O PNLD E A RACIALIZAÇÃO
DOS CONTEÚDOS PEDAGÓGICOS E VISUAIS

Embora seja uma das políticas mais antigas de distribuição de


livros no país, desde 1937, o PNLD se configurou por diversas nomen-
claturas e sofreu adequações em suas diretrizes. Porém, ao longo dos
80 anos de sua vigência a proposta de inclusão de conteúdos voltados
para a Educação Étnico-Racial ocorre somente a partir do início dos
anos 20004, com a aprovação da Lei 10.639/2003 e das Diretrizes Cur-
riculares Nacionais para a Educação das Relações étnico-raciais, em
4 Criado, através do Decreto nº 91.542, de 19/8/85, em substituição ao antigo Programa do Livro Didático
para o Ensino Fundamental/PLIDEF, o PNLD, a partir de 1996, assume nacionalmente a prerrogativa da
avaliação pedagógica dos livros escolares a serem adotados, no sistema nacional de ensino básico no país.
No tocante a questão dos afro-brasileiros, essa política de avaliação, sobretudo a partir de 2003, vem, a cada
edital, alargando seus critérios e exigências em relação à questão. Em linhas gerais, os critérios de avaliação
pedagógica do programa, para mensurar as formas de tratamento e abordagem das questões pertinentes ao
ensino da História da África e afro-brasileira, constam como critérios comuns a todas as disciplinas e nos
específicos da área de História. No primeiro momento, a avaliação desse aspecto constituía apenas critério
qualificador, e o foco era a questão em torno dos estereótipos. Com a aprovação da Lei 10.639/2003, esses
critérios vêm, de certo modo, sendo ampliados. Portanto, a partir do edital de 2003, a avaliação do tema
passa a ser considerado como critério eliminatório. E, a partir de 2007, a própria legislação (no caso, a Lei
10.639/2003 e o parecer 003/2004), passou a constituir critério sumário de eliminação, caso a obra não
tenha atendido. Atualmente, a inserção da temática está dimensionada em três principais aspectos a serem
tomados em consideração, nos critérios de avaliação: na abordagem da temática; na dinâmica do conteúdo;
na observância da legislação; e nas questões específicas sobre a Representação. Essas três dimensões estão
articuladas, tanto nos critérios comuns a todas as disciplinas, incluindo a disciplina história, como também
nos critérios específicos para a disciplina história. Com isto, não significa dizer que esse conjunto de me-
canismos possa garantir mudanças significativas e capazes de reconfigurar o tema, e principalmente seus
pressupostos, no contexto dessa nova produção. Mas talvez possamos, a partir daí, dispor de um panorama
maior, em termos de dados, e, também, de construções a este respeito, como também de fortalecimento
das indagações que deverão continuar sendo postas sobre esse tema. Fontes: Editais do PNLD dos anos de
2004, 2005, 2007. Disponível em: http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-editais/
item/3014-editais-anteriores Acesso em: set. 2012. Cf. CONCEIÇÃO, 2015, p. 29.

89
2004. Esse fato, portanto, levou editores, pesquisadores, autores, histo-
riadores, fotógrafos e gráficas a adequarem seus livros às diretrizes das
ações afirmativas nas quais foram postulados, como objetivos, forta-
lecer as políticas de equidade e a diminuição dos déficits educacionais
da população não-branca no espaço escolar.
No processo de luta antirracista o Movimento Negro Unificado
(MNU), profissionais da educação, docentes de história em todos os
níveis de ensino, e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento
perceberam que, antes da leitura e interpretação dos textos, as ima-
gens são os primeiros elementos a serem percebidos e lidos pelo corpo
discente (SILVA FILHO, 2005; BRANCO, 2005; CARVALHO, 2006;
OLIVEIRA, 2009; SILVA, 2008; PASSOS, 2010; MÜLLER, 2013, 2015;
PEREIRA; SANTOS, 2018; PEREIRA; SOUZA, 2019), e essas são res-
ponsáveis por educar o olhar, permitindo integração ou afastamentos
e negação ao conteúdo visual apresentado.
As imagens são lidas mais rapidamente que os textos, elas atin-
gem maior número de estudantes, despertam atenção e produzem efei-
tos de realidade, identificações e distanciamentos. Os livros didáticos
da disciplina História são tomados por imagens de múltiplas origens,
culturas e temporalidades. Muitas dessas imagens são produzidas na
atualidade, mas em diálogo com o passado, elas nos revelam as referên-
cias, e sensibilidades de seus autores nos contextos de suas produções. A
partir da leitura e interpretação dos conteúdos visuais somos capazes de
perceber, nos vestígios e nos símbolos, as articulações sociopolíticas e
culturais nas quais esses documentos visuais se constituíram referência.
A proposta do nosso capítulo, apesar da pequena amostra-
gem, tem um caráter de balanço e, também, de investigação na bus-
ca de compreendermos de que modo o PNLD apontou perspectivas
para vislumbrarmos mudanças que interessam as demandas da po-
pulação negra no âmbito dos materiais didáticos ao longo dos últi-

90
mos dez anos. Essa investigação foi amparada na descrição e análise
das questões relacionadas aos movimentos da experiência do vivido
e suas identificações com a corporeidade, as identidades e às me-
mórias reificadas de personagens brancos e negros retratados nas
histórias apresentadas por esses livros didáticos.
Autores, pesquisadores, literatas e estudiosos da diáspora afri-
cana transformaram ao longo de gerações o modo de pensar, escrever,
editar, distribuir e publicar pesquisas sobre a população negra ao re-
dor do globo. Essas obras e suas potências político-ideológicas provo-
caram rupturas e estabeleceram deslocamentos nos modos de narrar
a história sobre o colonialismo, introduzindo as histórias anteriores a
ele e mudando a utilização de termos considerados pejorativos. Des-
tacamos alguns nomes de africanistas que inspiraram e outros nomes
que sistematizaram a ideologia do pan-africanismo, sendo eles o his-
toriador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986), o
sociólogo afro-americano Edward Burghardt Du Bois (1868-1963), o
filósofo jamaicano Marcus Mosiah Garvey (1887-1940), o escritor e
político senegalês Léopold Sédar Senghor (1906-2001), o sociólogo
britânico-jamaicano Stuart Hall (1932-2014).
Esses nomes juntamente com pesquisadoras e literatas de África
e da diáspora africana, tais como a escritora maranhense, Maria Fir-
mina dos Reis (1822-1917), a escritora mineira Maria Carolina de Je-
sus (1914-1977), a antropóloga mineira Lélia Gonzalez (1935-1994),
a historiadora sergipana Maria Beatriz do Nascimento (1942-1995), a
professora e ativista do movimento feminista negro, a afro-americana,
Gloria Jean Watkins “bell hooks”, a escritora mineira Maria Conceição
Evaristo, a pesquisadora dos estudos feministas negros, afro-america-
na Tracy Deneah Sharpley-Whiting, a escritora e historiadora afro-a-
mericana Kim Butler, a britânica Catherine Ugwu, diretora artística de
performances visuais, a autora e pesquisadora afro-americana Michelle

91
Wallace, a pesquisadora e artista afro-portuguesa Grada Kilomba, a es-
critora tutsi ruandesa Scholastique Mukasonga, e a escritora e feminista
nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, representam no seu conjunto
epistêmico a emergência de mudanças contínuas na forma dos negros
escreverem, e de quem escreve sobre os negros.
Desse modo, ao lançarmos nossos olhares sobre essas quatro co-
leções de livros didáticos mencionadas acima, não o faremos com o ob-
jetivo de qualificar essas imagens como boas ou ruins, mas de observar,
descrever e analisar a composição visual e os sentidos alegóricos que
essas imagens provocam no pensamento referencial inerente aos nossos
valores de um universo social, na busca por identificar os sentidos in-
tencionais ou não do uso de determinadas imagens em uma página, seja
ela ilustrativa ou parte do conteúdo teórico apresentado no livro.
Ao nos questionarmos reiteradamente, a maneira com que o
PNLD apontou perspectivas para vislumbrarmos mudanças que inte-
ressam as demandas da população negra no âmbito dos materiais di-
dáticos ao longo dos últimos dez anos, nos indagamos qual a função de
imagens alegóricas em livros didáticos da História do Ensino Médio, em
face de uma nova proposta de conteúdos para reconhecimento, integra-
ção e identificação multicultural do alunado do sistema de educação
pública básica no Brasil.

SOBRE A METODOLOGIA E OS PROCEDIMENTOS


DE ANÁLISE DO REPERTÓRIO VISUAL
NAS COLEÇÕES SELECIONADAS

É importante enfatizarmos que trabalhar com quatro coleções


de livros didáticos de história do Ensino Médio é um amplo material
para se analisar em apenas um capítulo de livro. Para tanto optamos por
contemplar apenas os conteúdos que abordem as questões do continen-

92
te africano, indígena e afro-diaspórico. Essa seleção não foi realizada
considerando somente títulos em que seções e subseções mencionassem
palavras-chave como: raça, África, negro, escravidão, escravagismo, co-
lonialismo, pós-colonialismo, indigenismo, indígenas, abolição etc. Ti-
vemos o cuidado de observarmos em cada página se havia o uso de ima-
gens relacionadas a questões étnico-raciais mesmo que o texto principal
não tenha tido qualquer relação com as palavras-chave mencionadas.
Nosso texto reconhece a leitura de textos e imagens em conjun-
to, percebendo o acúmulo de referências, de modo que possamos obser-
var rupturas e permanências na abordagem dos conteúdos tanto textuais
quanto visuais. Para tanto, as abordagens teórico-metodológicas adotadas
seguem aos modos de Simon Schama (1996; 2012), que nos ensina a des-
crever os usos, as apropriações e as representações simbólicas das paisa-
gens, de modo que o nosso olhar seja lançado para além das técnicas de
leituras, mas de maneira que consigam estabelecer-se por entre a técnica
e a estética, e desse modo fazendo observar as formas e os conteúdos.
Quando lançamos nossos olhares sobre a diversidade de textos
e imagens presentes nessas quatro coleções, um conjunto com dez li-
vros didáticos muito ricos em imagens, notamos haver uma dificulda-
de técnica em selecionarmos uma pequena amostra para a produção
de um capítulo, sendo assim, optamos por apresentarmos e analisar-
mos quatro imagens, sendo três delas correspondentes a temática da
origem ou evolução da espécie humana, utilizada para colaborar in-
tertextualmente com o conteúdo estudado na seção do livro didático,
e uma imagem ilustrativa de introdução aos conteúdos teórico-meto-
dológicos de uma unidade temática.
Mas, como é possível a seleção de quatro imagens apenas –
sendo três delas correspondentes ao mesmo tema: a origem da espécie
humana e o evolucionismo, e uma delas basicamente alegórica –, e, de
que modo elas podem abarcar ou dialogar com as dezenas de informa-

93
ções e imagens presentes nesse conjunto de livros?
Entendemos que, ao considerarmos o pensamento do historia-
dor alemão Aby Warburg (1866-1929) e sua leitura dos movimentos
para a percepção, apreensão e interpretação das imagens para a escri-
ta da história, é possível estabelecermos um modo de ler as imagens
a partir da análise proposta por esse autor acerca do movimento vivo
presente nas referências da pintura O nascimento de Vênus de Sandro
Botticelli, estabelecendo comparação com as múltiplas referências da
Antiguidade (WARBURG, 2012). A análise de Warburg nos auxilia a es-
tabelecermos comparações com fontes heterogêneas e de múltiplas tem-
poralidades, de modo que não se caracteriza erro de extemporaneidade,
haja vista que a busca comparativa de Warburg se centra nas referências
que representam os detalhes do movimento impressos nas pinturas e
nos textos. Todavia, não objetivamos criar uma análise exatamente ao
modelo warburguiano nesse capítulo, mas sim, justificarmos os nossos
usos, a partir da compreensão daquilo que nos interessa: o residual.
Poderíamos chamar o residual de outra maneira “aquilo que
resta” em uma imagem, esse exercício foi concebido por outro teórico
das imagens, o também alemão Philippe-Alain Michaud, que nos re-
força a ideia de que Warburg “se volta para a Antiguidade a ponto de se
identificar com ela, não é para encontrar ali um repertório de imagens,
mas para injetar nela as fórmulas expressivas que representarão a vida”
(MICHAUD, 2013, p. 79). Desse modo, temos quatro imagens que, em
diálogo com um repertório de outras dezenas de textos e imagens, ob-
servados das coleções didáticas selecionadas por nós, será capaz de nos
dar evidências de como seus usos podem ser contraproducentes ou pro-
blemáticos no que se refere ao ensino de história.
A partir dessas quatro imagens visuais em diálogo, percebere-
mos o caráter de reprodutibilidade técnica, os símbolos mnemônicos a
compor cada uma dessas imagens, sua autoria, sua disposição nas pági-

94
nas, os capítulos onde elas se apresentam e a intenção dos organizadores
dos livros ao utilizarem determinada imagem para compor o capítulo,
ou seja, sua função pedagógica na escrita escolar da história. Em segui-
da questionamos o que nos dizem as referências dessas imagens, os ca-
minhos de sua autoria até a sua reprodução na página imprensa de um
livro didático de História do Ensino Médio, o que essa imagem nos fala,
como ela estabelece o saber histórico relacionado aos conteúdos textu-
ais do livro, e de que maneira os autores do livro fazem os direciona-
mentos para a apreensão dessas imagens. Também relacionamos essas
imagens com seus textos e com outros documentos de temporalidades,
formas e materialidades diferentes delas, observando especialmente os
conteúdos sobreviventes que restam nelas.

UM BREVE PANORAMA SOBRE A NARRATIVA


ICONOGRÁFICA DA ESCRITA DIDÁTICA5 DA HISTÓRIA
NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS (2008-2018)

A literatura oficial ou anedótica criou tantas histórias de pretos,


que não podemos mais ignorá-las. Porém, ao reuni-las, não se
avança na verdadeira tarefa, que é mostrar seu mecanismo. O
essencial para nós não é acumular fatos, comportamentos, mas
encontrar o seu sentido. (FANON, 2008, p. 145).

O processo de inteligibilidade da História do Brasil ensinada nas


escolas desde o século XIX, nasceu de uma exitosa confluência entre o
“ícone e o logos”, cujo principal suporte foi sem dúvida os livros didáti-
cos6. O gosto e o apreço pelas imagens na narrativa da História do Brasil e
5 A expressão “escrita didática da História” (FREITAS, 2006, p. 2009), e “escrita escolar da História” (GATTI
JR., 2004), tem sido utilizada, com certa recorrência, na produção acadêmica recente, ainda que em estu-
dos com diferentes preocupações. De todo, sobressaem naqueles trabalhos, cujo enfoque são os materiais
didáticos de História, para acentuar as peculiaridades do conhecimento histórico que tomam forma e são
mobilizadas, na construção de uma escrita escolar. Neste trabalho, o termo é utilizado para demarcar as sin-
gularidades do conhecimento histórico escolar, de forma geral, e, por sua vez, o entendimento desta escrita,
em particular. CONCEIÇÃO, 2015, p. 40.
6 Os primeiros manuais escolares, destinados ao ensino de História no Brasil, são do século XIX e, naquele

95
do mundo ocidental, portanto calcificou, sem dúvida, aquilo que foi pos-
sível nos diferentes modelos de ensino de História no Brasil até o presente.
O que coube nessa narrativa teve uma ancoragem iconográfica. O que não
coube, ficou de fora dessa narrativa. Ainda que pareça categórica demais
a afirmação, ela constitui no caso da história ensinada no Brasil, uma das
características de maior relevo na memória da nossa disciplina.
No caso especificamente da inclusão das histórias da popula-
ção afro-brasileira e indígena na narrativa iconográfica – que por ve-
zes ancorou os textos canônicos da história ensinada –, costuma ser
uma disputa, às vezes teórica, noutras vezes acadêmica, e sobretudo
política, porém todas resultado de reivindicações históricas7 dos que
ficaram de fora. Nessa perspectiva é que se apresentou as postulações
legais das duas primeiras leis aprovadas no Brasil até o presente mo-
mento, cuja reivindicação recaiu sobre a história da população negra e
indígena, como obrigação de inclusão e abordagem no mundo escolar
e por vezes, na escrita escolar da História.
Porém, ao adentrar o mundo icônico, imagético ou visual enfim,
que amparou essa longa narrativa da História do Brasil, assim como da
História Ocidental, apresentamos duas questões norteadoras, que é: em

contexto, objeto de lei do então Império. O Decreto 9.397 de 7 de março de 1885, Rio de Janeiro, é um exem-
plo da anuência do governo imperial. No caso do mencionado decreto, estabelecia-se que “nenhum livro,
mapa ou objeto de ensino seria adotado, nas escolas públicas do Império, sem prévia aprovação do ministro
do Império, ouvido o Conselho diretor, que dava parecer fundamentado; a adoção dos livros ou compêndios
que continham matéria de ensino religioso, precisava também da aprovação do bispo diocesano” (BITTEN-
COURT, 1993, p. 15). Os debates que cercaram o contexto da produção desses primeiros manuais, segundo
evidencia o estudo de Bittencourt (1993), teriam se desenrolado em dois momentos distintos: na primeira
metade do século XIX, corresponderam às propostas das autoridades políticas e educacionais, de reprodu-
ção e/ou adaptações de compêndios estrangeiros, nesse caso, franceses e alemães. E a segunda fase, que a
autora denomina de nacionalização da literatura escolar, só ocorreu na segunda metade do referido século.
É importante chamar a atenção, conforme o mencionado estudo, de que os debates em torno dos manuais
escolares, no Brasil oitocentista, têm base nas concepções iluministas, sobre as quais assentaram não só os
debates, mas a própria produção. Nesse sentido, recupero uma citação do referido debate que considero
expressiva dessa relação tão premente e dos argumentos quanto à adaptação de manuais europeus: “mesmo
traduzir-se alguns, que há nas outras nações cultas, particularmente a alemã, que mais tem assinalado nesta
espécie de instrução, apropriando-os ao sistema estabelecido neste plano”. BITTENCOURT, 1993, p. 18.
7 Exclusivamente sobre as reinvindicações políticas do movimento negro acerca da estereotipação e da au-
sência da história da população negra nos livros didáticos brasileiros. Cf. GONÇALVES; SILVA, 2000, p.
134-158.

96
que medida a questão em torno da racialização fortemente impregnada
na constituição da sociedade brasileira, alcançou a narrativa visual que
ancorou a história ensinada no Brasil, em particular nos últimos dez
anos? Quais foram as mudanças que a referida escrita escolar apresen-
tou no período em questão, no tocante as imagens étnico-raciais?
O primeiro aspecto que nos exige a questão acima é não perder de
vista nesse exercício, a centralidade da iconografia, cujo campo de maior
interseção se dá em torno da visualidade –, na escrita didática da história,
nesse sentido, chamamos atenção para minha pontuação anterior:
Quando colocamos em discussão, no caso da escrita escolar,
os usos de uma determinada visualidade, distinta nos recortes
temporais e conjunturas em que foi produzida e nos universos e
objetos por ela representados, somos inevitavelmente obrigados
a transcender o próprio uso e levar em conta as conexões que
atravessam seus contextos e historicidades. Ou seja, antes de ser
pensada numa função didática - no caso em questão -, a visu-
alidade presente nessas escritas participa da construção de um
pensamento e de uma narrativa ocidental, norteada pelo pres-
suposto de uma visão centrada unicamente neste universo. Ou,
como bem discute Macedo (2014), um ocularcentrismo que foi
gestado no Ocidente e dele se “impregnou”, como infere o autor.
(CONCEIÇÃO, 2015, p. 86).

Para Macedo, o ocularcentrismo “diz respeito ao ato de atribuir


um valor afetivo e absoluto a um olhar sobre o mundo e, ao mesmo
tempo, negar que esse olhar era fruto de uma experiência cultural, lo-
cal e historicamente constituída” (MACEDO, 2014, p. 13). Recuperar
o visual, sob este parâmetro, pressupõe considerar e levar em conta as
historicidades sobre as quais se fundamenta a imagética alusiva a po-
vos africanos e afro-brasileiros, e obriga-nos a deslocar as questões para
imaginários, discursos, cognições e leituras de mundo que os suporta,
enquanto signos. (CONCEIÇÃO, 2005, p. 86).
O segundo aspecto a partir do qual queremos nortear o nosso olhar

97
para os materiais didáticos dos últimos dez anos diz respeito à compreensão
acerca da relação de imbricamento entre as imagens e os discursos raciali-
zantes que puderam chegar nas nossas salas de aula através dos livros didá-
ticos de História. Ou seja, qual é a relação entre íconografia e racialização?
Talvez possamos começar esse diálogo retomando Gilroy. Para
esse autor, a história da escrita científica sobre as raças foi construída
sob a “morfologia física” (GILROY, 2007, p. 56) e, ao mesmo tempo,
como elemento de construção cognitiva. Assim, para o autor, o processo
de racialização do negro não foi um “processo exclusivamente linguís-
tico, envolvendo, desde o princípio, um distintivo imaginário, óptico e
visual (CONCEIÇÃO, 2015, p. 87).
A plenitude total dos ícones e imagens racializadas transmite algo
profundo sobre as formas de diferença engendradas por esses discursos”
(GILROY, 2007, p. 57), afirma o autor. Portanto, para ele, há uma conver-
gência entre ícone e logos que, como tal, serviu de esteio à produção da
ideia de ‘raça’, conforme afirma: a atividade de produção de ‘raça’ exigiu
uma síntese do logos com o ícone, da racionalidade científica formal com
algo mais – algo visual e estético, em ambos os sentidos desta palavra es-
corregadia. Eles resultaram conjuntamente numa relação específica com
o corpo e num mundo de observação do corpo (GILROY, 2007, p. 57).
Na interseção desses entendimentos, a imagética alusiva a povos
africanos e afrobrasileiros na escrita escolar da História analisada inter-
pela, por certo, um ângulo talvez indissociável das tessituras da questão
racial, na interseção dessas duas dimensões – do escrito e do visual, do
“ícone e do logos”. Nesse sentido, é importante não perder de vista ou-
tro aspecto em relação à problemática da visualidade, como suscitada
por Gilroy: os imbricamentos entre imagética, cognição e racialização
(CONCEIÇÃO, 2015, p. 87).
No caso especificamente da escrita didática dos últimos dez
anos, algumas problemáticas constitutivas de um panorama geral acer-

98
ca da base iconográfica sobre os afro-brasileiros, que gostaríamos de
assinalar: a manutenção dos recortes temporais clássicos da História
Ocidental, cuja permanência marca todas as coleções analisadas, com
alguns poucos adendos, como é o caso da coleção Olhares da História:
Brasil e mundo que traz no v. 2 um capítulo dedicado ao tema “A diás-
pora africana”. No seu conjunto, as cinco coleções abordam o conteúdo
historiográfico ancorado no que Trouillot denomina de “narrativa da
dominação global” cuja singularidade é a relação entre a narrativa e os
discursos da História e o poder, conforme afirma: “A história é fruto do
poder, mas o próprio poder nunca é transparente a ponto de sua análise
ser supérflua. A marca infalível do poder pode bem ser sua invisibilida-
de; o desafio inescapável será expor suas raízes” (TROUILLOT, 2016, p.
18.). Desse ponto de vista, é importante afirmar que o conjunto de regis-
tros imagéticos disponibilizados pelas cinco coleções ocupa um espaço
técnico-pedagógico e, também, narrativo de destaque tanto na arquite-
tura da organização dos conteúdos historiográficos quanto na sua abor-
dagem pedagógica, marcadamente atravessado por uma perspectiva do
que Trouillot chama de “historicidade em um só lugar”.
Do ponto de vista da narrativa visual, todas as coleções apre-
sentam um rico acervo imagético marcado pela diversidade de técni-
cas e diálogos temporais: esculturas, pinturas, litografias, ilustrações,
cartazes, estampas, representações iconográficas, afrescos, manus-
critos, desenho, aquarelas, murais, propagandas, com a prevalência
de registros em forma de gravuras e fotografias. Ou seja, as imagens
que configuram o que denominamos nesse texto de imagens raciali-
zadas e/ou que potencializam esse discurso, são estruturantes da es-
crita escolar da história produzidas nos últimos dez anos, dão conta
de articular uma narrativa conectada e coesa em relação às singula-
ridades da permanência da perspectiva da História local da Europa
em seus marcos cronológicos clássicos, com pitadas da História dos

99
outros continentes (África, América).
Outro aspecto que configura o discurso racial no aporte imagético
da escrita escolar que vai de 2008 a 2018, diz respeito ao enquadramen-
to temporal ao qual esses registros imagéticos se remetem: em sua imensa
maioria à chamada época moderna e contemporânea, com predominâncias
dos séculos XVI ao XIX. E, por último, o século XX. São nesses três mar-
cos temporais delimitados pelos acontecimentos e processos da História do
Ocidente, os quais se localiza as narrativas raciais de cunho imagético nessa
produção. Da constatação desse aspecto, emerge um dado importantíssimo
para entendermos a problemática da racialização ancorada na escrita esco-
lar da história: a intrínseca relação entre a manutenção de uma narrativa
histórica eurocêntrica, atrelada a seleção sistemática dos marcos temporais
europeus e do respaldo de um conjunto de registros visuais centralizados na
modernidade europeia. Compreender a construção desse discurso é sem
dúvida uma chave de leitura fundamental para compreender a permanên-
cia dessa narrativa, conforme chama atenção Trouillot:
O mais importante é o processo e são as condições de pro-
dução dessas narrativas. Somente focalizando esse processo
será possível desvelar as formas em que se entrelaçam num
dado contexto os dois lados da historicidade. Somente atra-
vés dessa sobreposição poderemos descobrir o exercício di-
ferencial de poder que viabiliza certas narrativas e silencia

outras. (TROUILLOT, 2016, p. 55).

Desse ponto de vista, percorrer a literatura didática da História


no Brasil, além de ser um elemento importante para acompanhar suas
permanências e mudanças no que se refere a manutenção desse discur-
so de silenciamento sobre os povos africano e afro-brasileiro, igualmente
nos possibilita ampliar a compreensão que vai além de constatar se essa
literatura é exígua – o que não é analisado nessa amostra –, em relação ao
quantitativo de recursos visuais alusivos à história desses coletivos, e mais

100
o peso da episteme que alimenta a historiografia que praticamos:
Combater o consenso de que os livros didáticos, na condição de
artefatos, são por si só conspiradores de uma repulsa a histórias
e universos afro-indígenas, por exemplo, constitui entendimen-
to que atrasa e enquadra nossas sentenças. Substanciar uma crí-
tica aos fundamentos epistemológicos da ideia de história, que
guarnece as abordagens de livros didáticos/da literatura escolar,
constitui um dos principais desafios, se não uma interpelação,
para continuar pautando a problemática da racialização, no âm-
bito dos livros didáticos de História, tanto no Brasil (CONCEI-
ÇÃO, 2015, p. 240).

No caso das coleções selecionadas, gostaríamos de explorar es-


pecificamente essa relação a partir dos conceitos que permeiam a ideia
de evolução explicitadas em um conjunto de quatro imagens: (Figura 1,
Figura 2, Figura 3, Figura 4), sendo a primeira delas, Figura 1. A cons-
trução do saber histórico, uma fotografia a parte dos aspectos evolucio-
nistas, mas que nos aponta o elemento indígena do sexo masculino a
ocupar um lugar de instrução, reconhecido tanto pelos seus fenótipos
indígenas quanto por adornos relacionados à sua nação. A imagem nos
despertou interesse por trazer um homem não-branco a ilustrar a capa
de um capítulo cujo conteúdo a ser abordado não é inerente às questões
étnico-raciais de forma direta.
No capítulo introdutório denominado “A construção do saber
histórico”, somos convidados enquanto leitores a conhecer como se deu
a sistematização de um saber teórico. E quem nos convida é o homem
indígena a manusear um computador de mesa, num espaço com vários
computadores e estantes contendo livros.
As três imagens seguintes: Figura 2. A evolução do ser humano,
Figura 3. A evolução da espécie humana, e Figura 4. A origem da huma-
nidade, sintetizam um passado discursivo acerca das alegorias criadas
para representar a ideia de evolução, colocando a África e os africanos

101
em um lugar de atraso perdido no passado pré-histórico, além de con-
fundir nos leitores em processo de aprendizagem, a ideia de que o grau
máximo da evolução tenha atingido apenas as pessoas brancas, confor-
me nos é sugerido por essas imagens ao trazerem um homem caucasoi-
de para representar o Homo sapiens sapiens.

SÍNTESES DE UM PASSADO PRESENTIFICADO:


O RACISMO E A ESTRUTURAÇÃO DE SUAS
REPRESENTAÇÕES VISUAIS E DISCURSIVAS

A primeira imagem selecionada por nós diz respeito a Figu-


ra 1. A construção do saber histórico. O capítulo de apresentação da
coleção Olhares da História: Brasil e mundo, aborda conteúdos teó-
ricos e metodológicos acerca do surgimento da História enquanto
um saber científico, seus usos, as compreensões sobre fontes histó-
ricas e relação entre tempo e espaço.
A imagem, uma fotografia colorida traz um homem indígena
da nação Pataxó vestido com camiseta de malha na cor rosa e calça
colorida. Nos punhos o homem traz pulseiras coloridas, certamente
produzidas por sua nação, penacho de penas adornando a cabeça
e colares pataxós revestindo o pescoço. O homem se concentra no
computador que apresenta fotografias ou frames na tela de um com-
putador de mesa preto. O ambiente em que o homem habita pode ser
um laboratório de informática pelo número de computadores dispo-
níveis, ou até mesmo uma biblioteca em razão das estantes cheias de
livros no plano de fundo da imagem.

102
Figura1 - A construção do saber histórico. Fotografia. Cor. Pulsar Imagens, 2014.

Fonte: VICENTINO, 2016. p. 11

103
Na fotografia encontramos ainda a seguinte legenda:
cada vez mais os indígenas procuram ter voz em nossa socie-
dade, expondo seus relatos e suas interpretações a respeito da
própria história e da história do Brasil, construindo, assim,
versões diferentes da tradicional. Indígena da comunidade
Pataxó da Aldeia Velha, Porto Seguro (BA). Foto de 2014.

(VICENTINO, 2016. p. 11).

Despertou-nos atenção o fato de o autor do livro didático


fazer uso de uma imagem fotográfica de um indígena em um lugar
de instrução na abertura de um capítulo a discorrer sobre ques-
tões teóricas, comumente defendidas pelo senso comum como sen-
do assuntos não atravessados pelo racialismo, haja vista que não
aprendemos a racializar os brancos, a ponto de compreendermos
que a ideia de universalismo e neutralidade seriam uma verdade
inquestionável. Discutir esses aspectos acerca da branquitude re-
quer um debate aprofundado e específico, que infelizmente não
contemplaremos aqui.
A imagem retrata uma ruptura com a estereotipia quando
representa um indígena no interior de uma sala ou laboratório des-
tinado à produção do saber, na folha introdutória de um capítulo
voltado para estudos teóricos e metodológicos da disciplina histó-
ria. A mesma fotografia também faz uso da estereotipia ao trazer os
adornos Pataxó para identificarmos com facilidade que se trata de
um indígena no ambiente de instrução. Desse modo, compreende-
mos que a estereotipia nos auxilia na produção da catarse e que nem
sempre ela é utilizada para enfatizar o negativo.
Os corpos dos indígenas e as representações síntese sobre
eles seguirão explorados ao longo do capítulo nos mesmos moldes
em que livros didáticos antigos os traziam como os “selvagens” a

104
tratar com os portugueses no princípio do século XVI. Percebe-
mos isso ao observarmos o desenho gráfico de Theo Szczepanski,
a imagem d’A Primeira Missa no Brasil [entre 1859 e 1861] de Vic-
tor Meireles, e a figura com a representação de dança de mulheres
indígenas de Camanacami, do livro Le costume ancien et modern
[entre 1817 e 1834], as figuras 1 e 2.
O uso dos costumes indígenas, seja ameríndios ou africanos,
geralmente são tomados em discussões teóricas que discorrem sobre o
conceito de memória e história, momento em que pesquisadores costu-
mam comparar as ideias do presentismo e também da dualidade pro-
posta na discussão do tempo, comparando o presente-passado a partir
de uma perspectiva evolucionista do tempo, cunhando, muitas vezes, a
ideia do atraso vinculado aos grupos humanos que viveram o passado
em África e Américas, enquanto interpretam como avançadas e evolu-
ídas as populações pertencentes ao Ocidente, quase independente do
tempo de suas vivências.
Apesar de fazer uso de imagens que possam nos remeter a essa
ideia obsoleta, o livro didático nos traz as considerações textuais, em
destaque, de Edward Adamson Hoebel, Everett Frost, e François Laplan-
tine, com o intuito de demonstrar que é preciso cuidado ao pensarmos
o passado de alguns grupos enquanto primitivos, haja vista que, é con-
senso entre etnólogos que todas as sociedades diferentes são humanas
e, portanto, diferentes, mas nunca inferiores ou superiores, portanto, as
ideias de certo e errado são valores correspondentes a cada grupo hu-
mano e suas especificidades e costumes.
A Figura 2. A evolução do ser humano pertence ao mesmo livro
da Figura 1. E nela temos as representações de 12 cabeças a retratarem
as espécies de hominídeos e humanos, e demarcar o período de sua exis-
tência na terra. Além de outras três representações de corpos de homi-
nídios em um vale, no plano superior da imagem.

105
Figura 2 - A evolução do ser humano. Figura (Desenho). s/d.

Fonte: VICENTINO, 2016, p. 38-39

Das 12 cabeças observamos que apenas três delas correspondem


à personagens não-negras, ou menos retintas, sendo elas pertencentes
às espécies do Homo sapiens, surgido nas savanas da África entre 200
e 130 mil anos atrás; do Homo neanderthalensis, que teria surgido na
região da Europa e Ásia ocidental entre 135 a 30 mil anos; e, finalmente,
do Homo sapiens sapiens, cuja origem não é demarcada na legenda da
foto, mas sim a sua chegada à América do Sul, entre 50 e 13 mil anos.
Essas figuras permitiram com que eu, Túlio Henrique Pereira,
me lembrasse de uma ocasião em que indiquei para meus alunos que as-
sistissem a uma entrevista do doutor Cheik Anta Diop. Essa experiência
na docência ocorreu em 2019 no ensino superior de uma universidade
pública federal, em que eu ministrava a disciplina de História da África.

106
Na ocasião, uma turma noturna de maioria jovem, um aluno branco
questionou as ideias trazidas por Diop sobre a origem dos povos egíp-
cios. O aluno em questão queria saber mais detalhes sobre o surgimento
dos homens brancos, ele não acreditava por nada nesse mundo que a
África foi o berço de nascimento de todas as espécies de hominídeos, até
mesmo do Homo sapiens sapiens, e que esses possuíam em sua ancestra-
lidade aspectos negroides e não caucasoides. O aluno então ponderou
o fato de que, sendo assim, os homens brancos representariam o grau
máximo da evolução da espécie humana e que, por conseguinte, a cor da
pele branca poderia ser lida como a cor da evolução.
O que esse aluno não conseguiu assimilar mesmo com o auxí-
lio das explicações, é que a ideia evolucionista decorre sobre adaptação,
condicionantes climáticos, alimentares e geográficos que ocasionarão a
perda da pigmentação da pele, por exemplo, e que essa perda de pig-
mentação não pode ser considerada como um fenômeno de superiori-
dade, mas de condicionamento, assim como a abertura das pálpebras,
afunilamento do nariz e encrespamento capilar. A aula, portanto, não
era sobre genética, e faltou-me subsídios para tratar a coisa em seus as-
pectos biológicos mais exatos, respeitando linguagem e leituras especi-
ficas. Creio que o aluno se frustrou ou não concordou, ele desistiu da
disciplina para cursar outra que considerava melhor.
Esse tipo de pensamento é constantemente trazido em nossas
experiências docentes, reforçados pela ausência desse debate no Ensino
Médio e até mesmo nas universidades. Nossos alunos e alunas se veem
confusos ao terem contato com uma disciplina de 60 horas/aulas acer-
ca do conteúdo de História da África pela primeira vez. E professores
se veem compartimentados ao precisar selecionar uma perspectiva de
abordagem que corresponda ou à política, fatores históricos, antigos,
contemporâneos, arqueológicos, biológicos ou econômicos sobre África.
As quatro coleções de livros didáticos aqui selecionadas pos-

107
suem conteúdos correspondentes aos três anos do Ensino Médio. Os
saberes relacionados ao evolucionismo da espécie humana são traba-
lhados nos primeiros volumes de cada uma, com exceção da coleção
de volume único, em que o conteúdo sobre as origens humanas foi
dedicado à primeira unidade.
Importante se faz entender que essa ideia de raça biológica foi uma
construção dos ocidentais europeus no século XIX. Ela advém de teses
produzidas na Europa neste período e diz respeito aos seres humanos em
suas diferenças. Sendo os humanos parte integral da natureza, pensado-
res, biologistas e médicos europeus recorreram a critérios físicos-naturais
para medir as diferenças entre os povos (HOFBAUER, 2000, p. 9). Essa
ideia de raça se transformou ao longo da história, através dos estudos da
sociologia, antropologia e medicina, passando de uma categoria biológica
inerente aos fatores de determinação climáticos e geográficos, e, também,
independente destes, até se configurar em uma concepção que legitimaria
a compreensão dos indivíduos enquanto raças superiores (evoluídas) e
raças inferiores (primitivas), fortalecendo o propósito da dominação hu-
mana por meio da escravização. Foi ao final do século XVIII que filósofos
europeus começaram a desenvolver teorias que classificaram humanos
em cinco posições hierárquicas, favorecendo os brancos europeus na pri-
meira posição no grau de evolução, seguidos por asiáticos, ameríndios,
negros e aborígenes. (PEREIRA, 2016).8
A Figura 3. A evolução da espécie humana (subsequente) e Figu-
ra 4. A origem da humanidade corroboram com a representação trazida
na Figura 2. A evolução do ser humano, exceto pelo fato de a terceira
figura não trazer rostos com peles pretas ou brancas, mas sim crânios.
8 Em 1757, o filósofo anglo-irlandês Edmund Burke (1729-1795), lançou o livro Investigação filosófica sobre
a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo, ensaio no qual se tem as primeiras ideias sobre a cor enquanto
uma qualidade inerente aos valores positivos e negativos na natureza humana e selvagem. Na perspectiva
do ensaio de Burke, a cor preta e/ou o negro estaria relacionada ao medo, ao terror e a fealdade. O filósofo
prussiano Immanuel Kant corroborou com as concepções burkeanas e deu sequência às suas ideias, ofe-
recendo teorizações, inclusive, favoráveis à escravização, entendida como uma ação socialmente natural.
PEREIRA, 2016, p. 20.

108
Poderíamos considerar que, neste caso, a associação da evolução ine-
rente à branquitude se vê cerceada. Nessas duas gravuras também não
se vê tópicos textuais que deem conta da origem de cada um desses ho-
minídeos até o protótipo do homem moderno. O que percebemos como
positivo, todavia, na Figura 3. A evolução da espécie humana, é que os
quatro primeiros protótipos concentram coloração escura em decorrên-
cia da pelagem simiesca dos primos australopitecos, enquanto o restan-
te apresenta entintagem clara.

Figura 3 - A evolução da espécie humano.

Fonte: BRAICK, 2016, p. 24-25.

Na figura acima também aparece na legenda, em tamanho me-


nor, os seguintes dizeres: “linha do tempo ilustrativa. Os acontecimen-
tos não foram representados em escala temporal”. E traz no rodapé da
gravura referências de onde a imagem e os textos foram retirados, como
Fiorenzo Facchini, Jill Bailey, Tony Seddon e Yohannes Heile-Selassie.
As duas figuras exploram as evidências que dão os anos 6 a 7 milhões de
anos, como sendo os responsáveis pelo surgimento dos primeiros pri-
mos hominídeos, Sahelantropus. Mergulham numa jornada de sínteses
e reificações que inundam o nosso imaginário.
Não há considerações que deem conta da discussão acerca do nas-
cimento da ideia das diferenças e do discurso sobre raças, haja vista que essa
discussão se concentra ao final do século XVIII e se consolida no XIX.
O conceito de raça, por conseguinte, parte da percepção darwi-

109
nista relacionada à classificação de plantas e animais, e com o advento
da modernidade e a descoberta do novo mundo, passou a ser utilizado
na classificação de pessoas. As sociedades escravistas entre os séculos
VII, destacando-se os árabes e os ibéricos, se amparavam em interpreta-
ções do sagrado, como os mitos de Cam e Caim, para reforçarem a ideia
de que africanos eram amaldiçoados e condenados ao escravagismo.
Desse modo, houve a transformação compulsória de africanos das regi-
ões norte e nordeste do continente em escravos (M’BOKOLO, 2009).
Dos séculos XVI ao XIX com a expansão transatlântica, a pseu-
dociência antropométrica, a sociologia, a medicina e a biologia prota-
gonizaram nomes como dos médicos franceses François Bernier (1625-
1688), Peter Paul Broca (1824-1880), responsáveis por desenvolverem
estudos que justificassem a diferença entre os humanos, estabelecendo
classificações raciais no sentido biológico. O antropologista Francis Gal-
ton (1822-1911), primo de Charles Darwin, se encarregou de equiparar
a ideia da seleção natural das espécies animais à espécie humana. Esses
estudos foram utilizados para justificar o que a interpretação sagrada
dos mitos de Cam e Caim não conseguiam mais, a ideia da inferiori-
dade entre humanos, segundo critérios biológicos. Eles reforçaram as
ideias racialistas e preconceituosas acerca dos não-brancos (M’BOKO-
LO, 2009; HOFBAUER, 2006; PEREIRA, 2016).
Do final do século XIX ao começo do século XX a sociologia, a
antropologia e a medicina reconheceram a partir de estudos, incluindo a
decodificação do DNA humano, que a raça humana é apenas uma. Per-
cebeu-se que não existem diferentes raças humanas no sentido biológico,
mas sim sociológico, haja vista que, a partir de toda a exploração compul-
sória do escravagismo desde o século I, foi definido um lugar social para
os negros na sociedade, modos de tratá-los e padrões de interação.
A definição do negro como raça pôs em xeque as identidades
e as culturas das populações negras, que passaram a ser consideradas

110
como algo não-humano. O arquétipo de humanidade era voltado para
o indivíduo da raça branca, de forma que essa delimitação fez com que
a humanidade dos negros nunca fosse reconhecida, e suas individuali-
dades e características físicas fossem tidas como algo “a ser superado”,
domesticado ou extinguido (FANON, 2008). Nesse sentido, introjetou-
-se no negro o sentimento de não ser socialmente igual ao branco, de
ser uma existência faltante e incompleta, pois a sociedade não o enxer-
gava como indivíduo. Essa estrutura era sustentada pela sociedade colo-
nial, que como forma de dominação, imprimia o branco como superior
(MACHEREY, 2014).

Figura 4 - A origem da humanidade

Fonte: VAZ, 2013, p. 26.

Esse processo acaba por ocasionar uma violenta fragmentação

111
na formação da identidade do negro, pois o branco nunca era o não-
-negro, somente o negro era o não-branco, legitimando socialmente o
status do branco como superior (FUSS, 1999). A presença negra é então
entendida como ausência, e a presença branca é associada a presença,
confrontando o corpo negro, entendido como faltante, e impondo um
caráter social enviesado para os indivíduos por conta de sua cor, fazen-
do com que regras aplicadas aos indivíduos brancos sejam diferentes ao
serem aplicadas a indivíduos negros (STREVA, 2015).
Essa inferiorização faz parte da extinção da originalidade do
negro, pois o processo de exploração contou com a desvalorização
de seus costumes para elevar a cultura europeia (FANON, 2008). Se-
gundo Neusa Santos Sousa, “o negro tomou o branco como modelo
de identificação, como uma possibilidade de tornar-se gente” (SOU-
SA, 1983, p. 16). Temos então, como afirma a autora, o sujeito negro
deslocado, vivendo em uma sociedade de estética, expectativas, exi-
gências e comportamentos brancos.
Todas essas considerações acerca da raça e da construção de lu-
gares sociais para negros e brancos, são sintetizadas nas imagens sobre
o evolucionismo da espécie humana, demarcando um lugar de atraso
para corpos retintos, perdidos no passado remoto do atraso, e um lugar
de evolucionismos para os corpos brancos, representados como o topo
da linha imaginária do tempo. Desse modo, mesmo quando as imagens
não trazem entintagem retinta ou pelagem simiesca para representar os
primeiros hominídeos, é comum a associação dos crânios com testas
mais ou menos fungidas, grandes arcadas supraciliares, mandíbulas ma-
ciças e ausência de queixo (KI-ZERBO, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao tentarmos responder a pergunta sobre em que medida o

112
PNLD apontou perspectivas para vislumbrarmos mudanças que inte-
ressam as demandas da população negra no âmbito dos materiais di-
dáticos ao longo dos últimos dez anos, encontramos respostas conside-
ráveis a serem trazidas à tona, como o ponto de junção entre rupturas
e permanências para a produção e uso de novas imagens e inserção de
visualidades e textualidades a corroborar com um discurso antirracista
na formação dos estudantes do Ensino Médio. Não há perfeição em se
tratando de currículos escolares, nem mesmo dos materiais utilizados
como suporte teórico, conteudístico e pedagógico para aplicação das
aulas, como no caso dos livros didáticos de história.
Percebemos com muita dificuldade a sintetização dos últimos
dez anos de mudanças estruturais, textuais, visuais e teóricas na edito-
ração de livros didáticos aprovados pelo PNLD. Mas observamos que, é
perceptível a produção e uso de novas linguagens, tanto visuais quanto
textuais na composição desses livros. Entendemos que mudanças mais
urgentes virão apenas com a reformulação estrutural do pensamento
acerca da teoria, que precisa ser compreendida também como uma pers-
pectiva racial, assim como as metodologias nas ciências, especificamen-
te a história. A inserção de mão de obra negra, de homens e mulheres de
realidades distintas na confecção de imagens e no desenvolvimento de
novas metodologias para produção visual também foi percebida como
um caminho propositivo para o aceleramento de rupturas com o racia-
lismo estrutural presente em nossos livros didáticos.
Todas as coleções aqui analisadas apresentam rico acervo visu-
al marcado pela diversidade de técnicas e diálogos temporais: escultu-
ras, pinturas, litografias, ilustrações, cartazes, estampas, representações
iconográficas, afrescos, manuscritos, desenho, aquarelas, murais, pro-
pagandas, com a prevalência de registros em forma de gravuras e foto-
grafias. Essas imagens que configuram o que denominamos nesse texto
de imagens racializadas e/ou que potencializam esse discurso, são estru-

113
turantes da escrita escolar da história produzidas nos últimos dez anos,
e dão conta de articular uma narrativa conectada e coesa em relação
as singularidades da permanência da perspectiva da História local da
Europa em seus marcos cronológicos clássicos, com pitadas da História
dos outros continentes (África, América).
Pensar a História na literatura didática a partir do seu conjun-
to de textos e imagens, é imprescindível porque pudemos observar as
permanências, assim como as mudanças no que se refere a manutenção
dos discursos em favor dos silenciamentos que soterraram as histórias
das civilizações simples e complexas do continente africano e da difusão
e historicidade dos afro-brasileiros. Observar, selecionar e analisar essas
imagens nos permitiu ampliar o olhar para além da constatação do quan-
to esses materiais didáticos poderiam ser pobres ou não. Não nos ampara-
mos por essa possibilidade quantitativa dos recursos visuais, mas sim pelo
qualitativo epistemológico que esses conteúdos oferecem para continuar a
alimentar a historiografia praticada até o tempo presente.

REFERÊNCIAS

Fontes

BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio.

4. ed. São Paulo: Moderna, 2016. 3 v.

BRASIL. Ministério da Educação. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. D.O.U. de 10 de janeiro

de 2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da

Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Disponível

em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 24 de set. 2021.

BRASIL. Senado. Lei 1.390 de 03 de julho de 1951. Lei Afonso Arinos. Inclui entre as contravenções

penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de côr. Disponível em: <https://

legis.senado.leg.br/norma/543053/publicacao/15638639>. Acesso em: 27 de set. 2021.

BRASIL. Senado. Lei nº 7.437 de 20 de dezembro de 1985. Lei Caó. Incluí, entre as contravenções

114
penais, a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil,

dando nova redação à Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951 - Lei Afonso Arinos. Disponível em:

<https://legis.senado.leg.br/norma/549313/publicacao/15716020>. Acesso em: 27 de set. 2021.

SERIACOPI, Gislane Campos Azevedo. História. 1. ed. São Paulo: Ática, 2005.

VAZ, Valéria et al (Orgs.) Ser protagonista: História, 1º ano. Ensino médio/obra coletiva

concebida. 2. ed. São Paulo: Edições SM, 2013. (Coleção ser protagonista 1)

_______. Ser protagonista: História, 1º ano. Ensino médio/obra coletiva concebida. 2. ed. São

Paulo: Edições SM, 2013. (Coleção ser protagonista 2)

_______. Ser protagonista: História, 1º ano. Ensino médio/obra coletiva concebida. 2. ed. São

Paulo: Edições SM, 2013. (Coleção ser protagonista 3)

VICENTINO, Claudio; DORIGO, Gianpaolo. História para o ensino médio: história geral e

do Brasil. São Paulo: Spicione, 2001. (Série Parâmetros)

VICENTINO, Cláudio; VICENTINO, José Bruno. Olhares da história: Brasil e mundo. 1º ano:

ensino médio. 1. ed. São Paulo: Scipcione, 2016. 3 v.

Referências Bibliográficas

BARRETO, M. A. et al. P. Estudos sobre imagem do negro no livro didático. In: MÜLLER, T. M.

P.; COELHO, W. Relações étnico-raciais, formação de professores e currículo. São Paulo: Ed.

Livraria da Física, 2015.

BRANCO, R. C. O negro no livro didático de História do Brasil para o Ensino Fundamental II

da rede pública estadual de ensino, no Recife. 2005. 174 f. Dissertação (Mestrado em Educação)

- Programa de Pós-Gradução em Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.

CARVALHO, A. A. de M. C. de. As imagens dos negros em livros didáticos de História. 2006.

139 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Ciências da Educação, Universidade

Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.

CONCEIÇÃO, Maria Telvira. Interrogando discursos raciais em livros didáticos de História:

entre Brasil e Moçambique – 1950-1995. 2015. 271 f. Tese (Doutorado em História Social) -

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC, São Paulo, 2015.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador:

115
EDUFBA, 2008.

FUSS, D. Interior Colonies: Frantz Fanon and the Politics of Identification. In: GIBSON, Nigel

C. (Org.). Rethinking Fanon – The Continuing Dialogue. New York: Humanity Books, 1999.

GASPARELLO, A. M. Construtores de identidade: a pedagogia da nação nos livros didáticos

da escola brasileira. São Paulo: Iglu, 2004.

GILROY, Paul. Entre campos: nações, cultura e fascínio da raça. Tradução de Célia Maria Ma-

rinho de Azevedo et al. São Paulo: Annablume, 2007.

GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Movimento negro e

educação. Revista Brasileira de Educação, n. 15, p. 134-158, set.-dez. 2000.

HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo:

Editora UNESP, 2006.

KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. 4. ed. Mem Martins: Portugal, 2009.

M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa

das Áfricas, 2009.

MACEDO, Rafael Gonzaga de. Paulo Harro-Harring: visualidade melancólica da escravidão

no Rio de Janeiro – 1840. 2014. 135 f. Dissertação (Mestado em História) – Pontifícia Universi-

dade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.

MACHEREY, P. Figures de l'assujettissement: “Tiens, un nègre!”: être (un) noir (Fanon).

In:______. Le sujet des normes. Paris: Éditions Amsterdam, 2014.

MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Tradução de Vera Ri-

beiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

MÜLLER, T. M. P. O Negro no Livro Didático: o que nos contam as imagens? In: BARRETO, M.

A. et al. Africanidade(s) e Afrodescendência(s): perspectivas para a formação de professores.

Vitória: EDUFES, p. 57-70, 2013.

OLIVEIRA, M. S. A representação dos negros em livros didáticos de história:

mudanças e permanências após a promulgação da Lei 10.639/03. 2009. 128 f. Disser-

tação (Mestrado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

Belo Horizonte, 2009.

PASSOS, M. C.; CHAMPLIAU, R. B. S. O colonizado vai à escola do colonizador: reflexões

sobre as imagens em um livro didático da escola colonial francesa na Argélia. Revista Teias, v.

116
11, n. 21, p. 89-106, 2010.

PEREIRA, Túlio Henrique. Que coisa é essa, Yôyô?: cor e raça na imprensa ilustrada da Bahia

(1897-1904). 2016. 370 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Uberlândia,

Uberlândia, 2016.

PEREIRA, Túlio Henrique; SANTOS, Vanessa Nunes dos. O que pode nos falar uma imagem?

Uma representação racial no livro didático de história. Vozes, Pretérito & Devir – Dossiê temá-

tico: História e Ensino, v. VIII, n. 1, p. 89-106, jan.-jun. 2018.

PEREIRA, Túlio Henrique; SOUZA, Ramon Queiroz. Memórias da (des)territorialização indí-

gena: A colonização como centro irradiador das vilas. Cadernos do Lepaarq, v. XVI, n. 31., p.

79-93, jan.-jun. 2019.

SCHAMA, Simon. O desconforto da riqueza: a cultura holandesa na época de ouro. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992.

______. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SILVA FILHO, J. B. da. Os discursos verbais e iconográficos sobre os negros em livros didá-

ticos de história. 2005. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Minas

Gerais, Belo Horizonte, 2005.

SILVA, P. V. B. da. Racismo em livros didáticos. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

SOUSA, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenso

social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

STREVA, J. M. Teoria Descolonial de Frantz Fanon: anti-racismo, novo humanismo e luta. Con-

versações: Política, Teoria e Direito, PUC-Rio, p. 120-150, 2015.

TROUILLOT, Michel-Rolpf. Silenciando o passado: o poder e a produção da História. Tradução

de Sebastião Nascimento. Curitiba: Huya, 2016.

WARBURG, Aby. O nascimento de Vénus e a primavera: Sandro Botticelli. Lisboa: KKYM, 2012.

117
Representações dos africanos
escravizados no Brasil em livros
didáticos de História (1980-2010)

Zenaide Inês Schmitz1

1 Doutora em Educação pela Universidade de Passo Fundo. É professora da Educação Básica em Santa Ca-
tarina e atua em cursos de Pedagogia em instituições privadas de ensino.

118
INTRODUÇÃO

Neste texto queremos analisar as relações estabelecidas entre a
historiografia e o livro didático de História (LDH), ou seja, compre-
ender os dispositivos pelos quais são apropriados os saberes produ-
zidos pela historiografia, que resultam na escrita de LDH destinados
aos estudantes e professores da educação básica, no que diz respeito
às representações construídas em torno da temática dos africanos es-
cravizados no Brasil, considerando que o livro didático é o principal
material voltado para a escolarização formal e, possivelmente, o prin-
cipal artefato que promove o acercamento entre a academia e a escola.
A escolha do livro didático como fonte se deu, sobretudo, por ser ele
o material impresso que está mais próximo das práticas escolares, de
maneira a influenciá-las diretamente.
Enquanto parte de políticas oficiais do Estado brasileiro, os li-
vros didáticos se constituem num suporte de interlocução que veiculam
valores e ideologias e, por isso, não estão deslocados do contexto político
e cultural da época em que foram produzidos. Logo, como mediadores
de representações políticas e culturais de uma determinada sociedade e,
como fonte de pesquisa, permitem conhecer o modo como determina-
da sociedade estabelece relações com sua história e seu passado.
Nessa perspectiva, a análise dos LDH não pode ser reduzida me-
ramente ao estudo do texto, mas como fonte/objeto material produzido
em diálogo com as dimensões sociais, políticas e culturais de uma deter-
minada época/ contexto. Com esse entendimento, parece possível en-
contrar estratégias metodológicas dedicadas à análise dos mecanismos
de produção, circulação e apropriação, expressos nas representações, na
materialidade do texto, no domínio das práticas sociais de apropriação.
O corpus documental desta pesquisa se constituiu de LDH do
Brasil compreendidos entre o período de 1980 a 2010, sendo composto

119
pelos livros: Brasil colônia de Elza Nadai e Joana Neves (1988), História
do Brasil: da Pré-história do Brasil à Nova República de Nelson Pilet-
ti (1989), História e Consciência do Brasil de Gilberto Cotrim (1994),
História do Brasil: colônia de Alfredo Boulos Júnior (1997), História de
Divalte Garcia Figueira (2003) e Nova História Crítica de Mario Furley
Schmidt (2008). Os LDH, aqui tomados como objeto e fonte, foram ana-
lisados de forma qualitativa segundo cinco categorias: Diáspora Africa-
na, Resistência, Cotidiano dos Escravizados, Abolição da Escravatura e
o Contexto Pós-abolição.
O suporte teórico-metodológico adotado contempla abordagens
da História Cultural, principalmente a contribuição de Roger Chartier
(1990, 1991, 2010), que, ao debruçar-se sobre este campo, opera com os
conceitos de representações e apropriações. O aporte teórico da História
Cultural traz, em seu bojo, a perspectiva de ampliação dos objetos, das
abordagens e das fontes de pesquisa, bem como o tratamento dessas
fontes, oferecendo a possibilidade de múltiplos olhares sobre os aspec-
tos constituintes das práticas educativas, explicitando sua dinâmica e
sua complexidade. A abordagem metodológica aqui adotada busca es-
tabelecer um elo epistemológico entre os LDH e a Historiografia.

MODOS DE VER E NARRAR OS AFRICANOS


ESCRAVIZADOS: DEBATES HISTORIOGRÁFICOS
BRASILEIROS

A escravidão é tema consagrado da historiografia, ampla-


mente revisitado e carregado de interpretações. Nesse sentido, exis-
tem perspectivas distintas de escrita da História do Brasil sobre a
escravidão. A proposta é analisar as diversas narrativas na tentativa
de diferenciá-las no tempo e no espaço, de maneira a compreender
as possíveis influências na composição de seus desígnios narrativos,

120
seus métodos e seus assuntos privilegiados. Para tal intuito são des-
tacados alguns autores como sendo os representantes das principais
perspectivas que a temática da escravidão tem assumido nas aborda-
gens historiográficas contemporâneas.
Nos debates historiográficos brasileiros apresentamos três pers-
pectivas temáticas: a perspectiva clássica, a perspectiva revisionista e a
perspectiva dos escravos como sujeitos de transformações (Quadro 1).
Os autores que compõem essas perspectivas – aqui consideradas cená-
rios historiográficos da nossa pesquisa – revelam posições divergentes
que se sustentam em distintas concepções teórico-metodológicas.

Quadro 1 - Perspectivas historiográficas sobre o tema dos africanos escravizados no Brasil

Denominação Período Características Principais autores


Perspectiva clássica: Final do séc. XIX até Inferioridade do Nina Rodrigues
a amenidade da meados de 1950 negro culturalmente Oliveira Viana
escravidão e biologicamente
Harmonia e Gilberto Freyre
democracia racial
Perspectiva Décadas de 1960 e Coisificação do Florestan Fernandes
revisionista: 1970 escravo: escola Emília Viotti da
coisificação do paulista Costa
escravo e resistência Octávio Ianni
Fernando Henrique
Cardoso
Resistência e Clóvis Moura
heroísmo dos cativos Luís Luna
José Alipio Goulart
Décio Freitas
Perspectiva dos Década de 1980 até Cativos como João José Reis
escravos como os dias atuais sujeitos de Flávio dos Santos
sujeitos de transformações Gomes
transformações históricas Sidney Chalhoub
Silvia Hunol Lara
Robert Slenes
Leila Mezan Algranti

Fonte: Sistematização da autora a partir de Proença (2006).

121
A Perspectiva clássica: a amenidade da escravidão, esteve
muito alicerçada em explicar as diferenças sociais pelas diferenças bio-
lógicas. Os debates do final do século XIX até a metade do século XX o
negro, enquanto objeto de estudo, vai estar baseada às discussões sobre
identidade nacional, alicerçada principalmente no interesse de definir
os fundamentos histórico-sociais capazes de fornecer os elementos da
identidade, por isso o interesse inicial em definir a procedência, as ca-
racterísticas físicas e culturais das raças presentes no país.
No final do século XIX o negro era o ex-escravo e para pensar a
desigualdade entre os brancos e os ex-escravos buscava-se elementos da
biologia. Estudiosos, como Oliveira Viana e Nina Rodrigues, são exem-
plos de difusores de estudos que conferiam à inferioridade do negro o
motivo de sua contribuição negativa para a formação do povo brasileiro.
Para superar preconceitos a respeito da inferioridade racial dos
negros, procurando lembrar a mestiçagem e a influência africana na for-
mação cultural brasileira, foi de suma importância a obra Casa-Grande
e Senzala (2003) de Gilberto Freyre, que elaborou um quadro idealiza-
do para a escravidão brasileira instituindo a ideia de que, no Brasil, a
escravidão teria se constituído como uma boa escravidão, com relação
paternal dos senhores para com seus escravos fiéis e amigos. No entanto,
tal obra pode ser considerada o marco inicial da tendência patriarcalista
na historiografia brasileira sobre a escravidão. Colocando visibilidade à
sociedade patriarcal, Freyre apresenta a ideia de empatia entre as raças e
amenidade na relação entre senhor-escravo, características estas que ex-
plicariam a miscigenação e seriam peculiares no quadro geral do escra-
vismo. As práticas escravistas em sua obra são idealizadas e os castigos
justificados como necessidade para a educação e a disciplinarização do
escravo (QUEIROZ, 2014).
A partir dos anos de 1960 e 1970 na denominada Perspectiva
Revisionista: coisificação do escravo e resistência/heroísmo a produ-

122
ção historiográfica voltou-se para estudos com ênfase na história social
e na ação dos escravizados e libertos. Nessa perspectiva, dois enfoques
são evidenciados. De um lado, a ideia de “coisificação do escravo” des-
tacada pela chamada escola paulista representada por Florestan Fernan-
des, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Emília Viotti da Costa;
do outro lado, na perspectiva da “resistência e heroísmo dos escravos”
estão Clóvis Moura, Luís Luna, José Alípio Goulart e Décio Freitas. A
inclinação predominante dessa historiografia era “definir a resistência
negra nos quilombos como negação do regime de cativeiro por meio da
criação de uma sociedade alternativa livre” (REIS; GOMES, 2012, p. 14).
A teoria da “coisificação do escravo”, difundida na produção his-
toriográfica, estava ligada à visão do cativo como um ser coisificado, in-
capaz de pensar e agir por conta própria. Vítimas de um sistema que os
priva de tudo, impossibilitando-os inclusive de ter laços familiares e co-
munitários, sendo desta forma, incapazes de lutar pela liberdade, assim
como de exercê-la. Além disso, os escravizados apareciam como sujeitos
incapazes de definir projetos e práticas independentes do Estado.
Na perspectiva da resistência, as visões de cativeiro “brando”
passaram a ser contestadas. O protesto dos cativos passou a ter novas in-
terpretações, ao mesmo tempo em que as imagens de submissão e pas-
sividade foram também desmascaradas. Nessas novas interpretações, a
escravidão brasileira passou a ser analisada como essencialmente cruel e
violenta. De uma visão de escravo-coisa, surge o escravo-rebelde. Surge
uma narrativa que descreve os escravizados com seus atos de bravura.
Assim, muitos estudiosos passaram a analisar a questão quilombola no
Brasil a partir de uma nova corrente, a corrente materialista.
Porém, a partir dos anos de 1980 a historiografia sobre a escra-
vidão brasileira sofreu um deslocamento na Perspectiva dos Escravos
como sujeitos de transformações. Se, antes, os escravizados apareciam
como sujeitos subordinados, sem dinâmica própria que emergisse de

123
suas práticas, agora floresceu uma variada produção acadêmica empe-
nhada em captar nas experiências dos escravizados a clareza de suas
práticas, havendo a incorporação historiográfica do escravizado como
sujeito histórico. Os novos estudos passaram a investigar e a compreen-
der a escravidão sob outras perspectivas, valorizando as ações e experi-
ências cativas, reafirmando o protagonismo e reconhecendo o impacto
das ações dos escravizados, sejam elas individuais ou coletivas.
A partir de novas perspectivas da historiografia, outros olhares são
dirigidos sobre as fontes, no intuito de perceber os escravizados enquan-
to sujeitos das transformações históricas ao longo da escravidão. Autores
como João José Reis (1992), Flávio dos Santos Gomes (1997), Sidney Cha-
lhoub (1990), Sílvia Hunold Lara (1998a), Robert Slenes (1999) e Leila Me-
zan Algranti (1993) passam a enfatizar a relevância dos escravizados como
agentes históricos manifestados no plano da resistência social da cultura.

REPRESENTAÇÕES DOS AFRICANOS
ESCRAVIZADOS EM LDH DE 1980 A 2010

Analisar as representações criadas sobre a temática dos africa-
nos escravizados nos LDH no período compreendido entre 1980 e 2010,
tributários das apropriações realizadas a partir da historiografia, nos faz
recorrer à História Cultural.
A História Cultural, na perspectiva de Chartier (1990, p. 16-
17), tem como objeto “identificar o modo como, em diferentes lugares
e momentos, uma determinada realidade é construída, pensada, dada a
ler”. Uma tarefa que, segundo o autor, supõe vários caminhos. Num pri-
meiro momento, se reportaria às classificações, delimitações e divisões
que realizaram um levantamento do mundo social enquanto categorias
essenciais de uma nova apreensão e análise do real. As variáveis, con-
forme as classes sociais ou os meios intelectuais, produzem-se a partir

124
de disposições estáveis e partilhadas de determinado grupo. São estes
esquemas intelectuais que, incorporados, são capazes de criar figuras ou
representações que possibilitam conferir um sentido ao presente, uma
inteligibilidade ao outro, bem como a decifração de um espaço.
Entendida nessa perspectiva, a História Cultural busca o estu-
do dos objetos com os quais os sujeitos constroem sentidos sobre suas
ações. Entender as significações das práticas cotidianas de uma época,
ou seja, a maneira como as pessoas liam o mundo, requer estudar o
passado por meio das representações criadas para exprimir a visão, os
valores e os códigos criados e utilizados pelos homens e mulheres de
uma determinada época. Essas práticas são transcritas em textos através
de representações que foram acessadas pelo historiador por meio dos
documentos e das fontes que, por sua vez, também se constituem como
representações, já que se colocam no lugar do acontecido.
Ao referir-se à noção de “representação”, Chartier recorre ao An-
tigo regime articulando três modalidades da relação com o mundo social:
em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação
que produz as configurações intelectuais múltiplas, através dos
quais a realidade é contraditoriamente construída pelos dife-
rentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reco-
nhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de
estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma
posição; por fim, as formas institucionalizadas e objectivadas2
graças às quais uns ‘representantes’ marcam de forma visível e
perturbada a existência do grupo, da classe ou da comunidade
(CHARTIER, 1990, p. 23).

Ao trabalhar com o conceito de representação, analisa o livro


como um objeto cultural e o que representa aos seus leitores. Neste pro-
cesso analítico, significa atentar para dispositivos textuais que dão sen-
tido à realidade construída e expressa no impresso, buscando apreender
o universo sociocultural retratado pelo autor.
2 Durante todo o trabalho optamos por deixar o texto sempre na escrita original.

125
Assim, evidenciar as representações sobre os africanos escraviza-
dos presentes na historiografia e perceber a forma como estas representa-
ções foram apropriadas por autores de LDH é utilizar-se das possibilida-
des que a Nova História Cultural oferece. É possibilitar um deslocamento
do foco de análise, do campo da produção para recepção (apropriação).
O conceito de apropriação adotado por Chartier (1990) está ba-
seado nos estudos de Michel de Certeau (1994), que o define como o
consumo cultural pelas maneiras de se utilizar os produtos que lhe são
impostos. A apropriação proposta por Chartier (1990) distancia-se da
apropriação social dos discursos de Foucault e da formulação proposta
pela Hermenêutica. A proposta de Chartier parte de uma história cultural
do social, no sentido de que “a apropriação tem por objetivo uma história
social das interpretações, remetidas ao viés social, institucional e cultural,
e inscrito nas práticas que as produzem” (CHARTIER, 1990, p. 26).
A ideia de apropriação para Chartier não é tarefa fácil de se
conseguir, pois cada sujeito “a partir de suas próprias referências, in-
dividuais ou sociais, históricas ou existenciais, dá um sentido mais
ou menos partilhado” (CHARTIER, 1996, p. 20) aos textos de que se
apropria. Cada sujeito atribui uma intencionalidade na produção de
sentidos e reconhece-se desta forma a apropriação como sendo a pos-
sibilidade de formas variadas de interpretação onde o receptor ganha
autonomia na elaboração de sentidos.
Se até aqui procuramos tecer algumas aproximações entre os
conceitos oferecidos pelo historiador francês Roger Chartier numa
perspectiva ancorada no horizonte teórico oferecido pela Nova Histó-
ria Cultural, a meta a partir de agora consiste em colocar em discus-
são as representações presentes sobre a temática dos africanos em LDH
do período compreendido entre 1980 a 2010, tendo como referência
de análise as categorias: Diáspora Africana, Resistência, Cotidiano dos
Escravizados, Abolição da Escravatura e o Contexto Pós-abolição.

126
Dentre os debates atuais da historiografia encontra-se, a diáspora
africana, ou seja, o comércio atlântico de africanos escravizados no Brasil.
Ao estudar as origens dos africanos escravizados no Brasil, decerto, depara-
-se com um tema bastante amplo e complexo que ao longo de décadas vem
suscitando inúmeras discussões. Os primeiros estudos sobre a formação
étnica do Brasil consideravam a influência de dois grupos específicos de
origem africana na composição étnica do Brasil. De um lado, os Sudaneses
que teriam ocupado a Bahia e para as demais áreas do país, foram os Bantos.
No corpus documental desta pesquisa, os livros de Nadai e
Neves, 1988; Piletti, 1989; Cotrim, 1994 e Boulos Júnior, 1997 quan-
do mencionam a origem dos africanos escravizados no Brasil, citam
os grupos: Sudaneses e Bantos.
Vários são os autores (NADAI; NEVES, 1988; PILETTI, 1989;
COTRIM, 1994; BOULOS JÚNIOR, 1997; SCHMIDT, 2008) que trazem
em seus livros a imagem do mapa que indica as rotas da diáspora africana.
Assim, além de situar a posição geográfica dos locais de origem, apresen-
tam o destino dos africanos que foram escravizados no Brasil.
De fato, os africanos provenientes das etnias Bantos e Sudaneses,
foram deslocados para o Brasil em larga escala, porém, várias outras
etnias africanas aqui desembarcavam dos navios negreiros, como apa-
rece no LDH de Figueira (2003, p. 157) “os escravos eram originários
de várias partes da África. Pertenciam a diversas etnias, com formas de
organização social e manifestações culturais diferentes”.
No século XVII, os escravos que chegaram no Brasil vieram
principalmente do Congo e da Angola. No século XVIII, os es-
cravos que vieram ao Brasil eram originários da Costa do Ouro,
mais ou menos onde hoje estão Gana e Togo, Benin e Nigéria.
Especialmente a Bahia recebeu escravos que vinham de Benin.
No século XIX, a tendência era trazer os escravos para o Brasil
diretamente das colônias portuguesas em Angola e Moçambi-
que (SCHMIDT, 2008, p. 197).

127
Desta forma, observa-se que a maioria dos LDH afirmam
que a origem dos escravizados estaria ligada aos grupos Sudaneses
e Bantos. No entanto, como destacam Figueira (2003) e Schmidt
(2008), muitos outros povos africanos foram forçadamente trazidos
ao Brasil. Munanga (2012) comenta que todos os africanos levados
ao Brasil passaram pela rota transatlântica. Sendo desta maneira en-
volvidos povos de três regiões geográficas:
África ocidental, de onde foram trazidos homens e mulheres
dos atuais Senegal, Mali, Níger, Nigéria, Gana, Togo, Benim,
Costa do Marfim, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo
Verde, Guiné e Camarões; África centro-ocidental, envolvendo
povos do Gabão, Angola, República do Congo, República De-
mocrática do Congo (ex-Zaire) e República Centro-africana e
África austral, envolvendo povos de Moçambique, da África do
Sul e da Namíbia (MUNANGA, 2012, p. 87).

Azevedo, alerta para a necessidade de se observar as várias re-


des de relações comerciais, econômicas, militares e políticas que rei-
teram sobre uma pluralidade de “memórias e vivências” que tecem
a história do Atlântico Sul como um espaço aberto, descontínuo, de
múltiplas tensões e disputas, de diferentes saberes e com dinâmicas
temporais específicas de africanos, europeus, brasileiros-indígenas
(2013, p. 367-368). Este autor cita as mudanças que vêm ocorrendo
na historiografia, e que atualmente procuram evidenciar a contribui-
ção que a África Central tem sobre o Mundo Atlântico. Nesse sentido,
destaca que quase metade dos escravizados que saíram da África para
as Américas eram pertencentes aos reinos dessa região.
A respeito da justificativa presente nos LDH sobre a questão
do comércio atlântico de africanos escravizados no Brasil, por mui-
to tempo se perpetuou como explicação a inadaptabilidade do índio
frente ao trabalho agrícola e a adaptabilidade do africano. A perspec-
tiva clássica da historiografia perpetuou a ideia de que os indígenas

128
eram inaptos ao trabalho e por isso não aceitaram a escravidão. Essa
posição distancia-se dos conhecimentos históricos produzidos mais
recentemente. Além disso, passou a imagem da suposta adaptação do
africano à condição de mão de obra escrava.
Cotrim (1994, p. 56), critica essa visão e acaba mencionando que
a historiografia tradicional aponta várias causas para explicar o desin-
teresse pela escravização dos indígenas em contraposição ao interesse
pela escravidão negra. Nesse sentido, cita os argumentos usados, como
a “inadaptação do índio para o trabalho agrícola”, além do argumento
de que “os negros eram tecnicamente mais avançados do que os ame-
ríndios brasileiros” e “os indígenas eram mais “selvagens” e inconforma-
dos com a escravidão, enquanto os negros revelavam um temperamento
mais passivo e subserviente”.
E, por fim, apresenta suas conclusões sobre a preferência pelo
trabalho escravizado do africano. Recorre ao historiador Fernando No-
vais para argumentar que a preferência tinha relação com os lucros de
tal atividade e que essa preferência só poderia ser compreendida como
“mais um componente dentro da engrenagem do sistema de exploração
colonial”. Isso porque o tráfico negreiro abria um novo e importante se-
tor do comércio colonial, enquanto o apresamento de indígenas era um
negócio interno da colônia” (COTRIM, 1994, p. 56).
Assim, o argumento para a escravização dos africanos, no Bra-
sil, nos LDH analisados, se explica em função dos interesses comer-
ciais portugueses no comércio de cativos, ou seja, o escravizado foi
conduzido da África para o Brasil porque os mercados portugueses
lucravam com este comércio que, por sua vez, possibilitou uma acu-
mulação virtuosa de capital na metrópole. Nesse sentido, “o tráfico
negreiro, isto é, o comércio que tinha por objetivo comprar o africano
nos portos de origem e revendê-lo nos portos brasileiros, era uma ati-
vidade bastante lucrativa” (NADAI; NEVES, 1988, p. 60). “A explora-

129
ção da costa africana em busca de caminho para as Índias permitiu aos
portugueses a captura, em 1441, de um pequeno grupo de negros. Nos
anos seguintes, o tráfico negreiro tornou-se uma atividade sistemática
e lucrativa” (PILETTI, 1989, p. 63).
Por sua vez, Schmidt (2008)3 faz questão de salientar que “os ín-
dios não eram preguiçosos” e enfatiza os “motivos reais” da substituição
do escravo índio pelo africano, quais sejam “o primeiro motivo foi o fato
de que muitos índios morreram”. Morreram porque foram “expulsos de
suas terras e massacrados pelos homens brancos, por causa das doenças
que os europeus trouxeram da Europa e porque foram escravizados”
(SCHMIDT, 2008, p. 196).
Para Schmidt (2008, p. 197), o emprego do trabalho escravo afri-
cano ocorreu em virtude dos “latifundiários, que precisavam da mão-
-de-obra e os traficantes que lucravam um bocado”, ficando evidente
desta maneira que o viés econômico se sobressai.
As justificativas apresentadas para a escravização dos africa-
nos revelam o lado mais perverso de um ser humano, o fator de privar
um outro ser de sua liberdade, do direito de escolher onde queira vi-
ver, constituir uma família e praticar sua cultura. Na maioria das vezes
a escravidão é inclusive apresentada como mero recurso técnico para
prover a falta de mão-de-obra e, como tal, ela é, supostamente, neutra,
parecendo, até, que a escravidão seria culpa dos próprios negros que
não possuíam um nível de civilização comparável ao europeu.
Com relação aos aspectos que revelam a dinâmica do desloca-
mento de africanos escravizados pelo Oceano Atlântico, desde sua saída
da África até o dissabor de chegar ao Brasil, observa-se que as condições
vividas pelos africanos durante a travessia eram desumanas. Como se
3 O autor e a obra receberam várias críticas do jornalista Ali Kamel que, em um artigo intitulado O que
Ensinam às Nossas Crianças, publicado no jornal O Globo de 18 de setembro de 2007, deu início a uma série
de discussões na imprensa brasileira sobre a qualidade do livro didático de História. As críticas do jornalista
se dirigiam à abordagem dada ao sistema capitalista e ao modelo socialista, a forma como foram tratados
os ideais marxistas, as revoluções culturais chinesa e cubana, o título de grande estadista atribuído a Mao
Tse-tung e os motivos apontados para a derrocada da URSS no livro didático de História.

130
tratava de uma comercialização, os africanos eram tratados como mer-
cadoria. Piletti (1989) ressalta que inicialmente era realizada uma “caça-
da” em busca de africanos para serem escravizados e somente mais tarde
se envolveu a questão de compra e venda com o viés de lucro.
Boulos Júnior (1997, p. 79), enfatiza que no começo eram os
próprios portugueses que desembarcavam no litoral africano e, com
a utilização de armas de fogo, acabavam apavorando, perseguindo e
capturando os negros para vendê-los. Com o crescimento desse negó-
cio “essa tarefa passou a ser feita pelos azenegues, homens de diversas
cores e origens que se especializaram em capturar negros no interior
da África para vendê-los aos comerciantes”.
Além disso, cita que com o tempo esses traficantes de escravos
passaram a incentivar os africanos a lutarem entre si e que depois,
“compravam os prisioneiros de guerra, conseguindo assim muitos es-
cravos de uma só vez” (BOULOS JÚNIOR, 1997, p. 80). Na mesma
linha, Cotrim (1994) cita uma outra prática adotada para conseguir
africanos, além de se aproveitar da rivalidade entre as tribos africa-
nas. Nesse sentido, menciona que muitos traficantes “obtinham a co-
laboração dos chefes e feiticeiros para a captura das aldeias inimigas
inteiras e, muitas vezes, de seus próprios súditos e seguidores; com a
colaboração de nativos, arquitetaram a sedução de homens inocentes
por muitas mulheres” (COTRIM, 1994, p. 58).
Tal ideia também é compartilhada no LDH de Schmidt (2008, p.
198) quando aborda que a maneira mais comum de obter trabalhadores
escravizados era quando “os povos africanos faziam guerras uns com os
outros e os vencidos eram vendidos como escravos para os europeus. O
tráfico escravista enriqueceu muitos reinos africanos”.
Não se faz muitas especificações em relação ao cotidiano da via-
gem, uma vez que os textos observados nos LDH ficam limitados às
descrições dos africanos nos porões dos navios negreiros, descrevendo,

131
na maioria das vezes, um africano que não resiste, como um sujeito to-
talmente passivo que se sujeita a condições insalubres de viagem.
As viagens realizadas nos “navios negreiros”, são descritas
como uma “viagem para o inferno” (COTRIM, 1994, p. 76) e que,
antes do embarque havia a necessidade de se passar pelo ritual de
batismo. O ritual do batismo significava a libertação do pecado ori-
ginal, segundo a crença cristã.
Após a chegada ao Brasil seguia-se um ritual de humilhação e
maus tratos. Como uma mercadoria, o africano era colocado à venda
em mercados e examinado por possíveis compradores. Piletti (1989, p.
63), inclusive, utiliza o título “caçados como bichos e vendidos como
coisas”, para descrever o tratamento que recebiam.
Expressões como “carga” utilizado por Cotrim (1994) no LDH,
podem ser compreendidas dentro de um contexto de naturalização que
se instalou por muito tempo na escrita da história da escravidão, ao se
referir ao deslocamento de africanos escravizados ao Brasil. No entanto,
precisamos nos atentar para a expressão, uma vez que o autor está se re-
ferindo ao deslocamento forçado de seres humanos e não ao transporte
de uma mercadoria, de uma coisa e muito menos de animais. O autor
reverbera uma concepção de “cativo” como coisa.
Sobre o cotidiano dos africanos escravizados no Brasil, há
uma representação do cativo nos LDH sempre condicionado ao de-
senvolvimento de atividades ligadas aos engenhos de açúcar, aos tra-
balhos na mineração, nas fazendas de café, nas atividades domésticas,
em trabalhos desenvolvidos nas cidades, e comenta-se sobre as condi-
ções de vida às quais os cativos eram sujeitados. Comumente, os LDH
mencionam que a sociedade colonial era caracterizada como latifun-
diária, escravocrata e patriarcal.
Observou-se que o trabalho estava sempre relacionado a situa-
ções de angústia e sofrimento quando direcionado ao cativo. O traba-

132
lho sempre é apresentado como um tormento aos negros, como a única
atividade que lhes era permitida fazer e à qual estavam submetidos em
qualquer lugar que estivessem ressaltando, assim, sua limitada condição
de mão de obra. Nessa perspectiva, o trabalho era entendido como algo
a ser desempenhado por pessoas pertencentes às classes inferiores.
Diante dos livros didáticos analisados, observa-se um discurso
sobre cativos que os considerou como mercadorias, apenas como instru-
mentos de trabalho. Essa condição reforça a hipótese da ausência de uma
história de mulheres e homens, crianças e jovens negros. O binômio se-
nhor/escravo permeou historiografia brasileira e está contida nos LDH.
Muitos autores, em seus LDH, adotam a célebre afirmação do
religioso jesuíta André João Antonil, autor da obra Cultura e Opulência
do Brasil (1982) de que os escravos se tornaram “as mãos e os pés dos se-
nhores de engenho” (NADAI; NEVES, 1988; COTRIM, 1994; SCHMI-
DT, 2008), figurando como os verdadeiros responsáveis pelo progresso
produtivo durante os séculos de escravidão. Também há uma grande
ênfase na agricultura de exportação, baseada na monocultura, que ini-
cialmente consistia na atividade açucareira e no trabalho escravocrata.
O trabalho nos engenhos era desenvolvido sempre pelos afri-
canos escravizados e o engenho colonial é descrito em vários LDH, re-
presentado como “um núcleo de vida econômico e social do Brasil por
mais de 300 anos” (NADAI; NEVES, 1988, p. 52), ou como o “centro
das atividades de uma grande propriedade rural” (PILETTI, 1989, p. 42)
composto pela casa-grande e pela senzala.
A senzala é descrita por vários autores como um local com con-
dições degradantes, enfatizando o que entendem como uma certa “pro-
miscuidade” dos cativos nas senzalas, como a habitação dos escravos:
“em geral uma única peça onde se amontoavam todos, sem distinção de
idade ou sexo” (NADAI; NEVES, 1988, p. 53). Piletti (1989, p. 64), por
sua vez, ressalta que essas “habitações tinham um único compartimen-

133
to, abafado, quase sem janelas, para facilitar a vigilância dos guardas.
Nessas condições a promiscuidade era inevitável”.
Além disso, perpassa nos LDH uma representação do cotidiano
do escravizado sempre condicionado a “uma vida muito dura” com o
desenvolvimento de diversas atividades (COTRIM, 1994, p. 72), numa
rotina exaustiva que iniciava ainda de madrugada e se estendia até ao
anoitecer (BOULOS JÚNIOR, 1997).
Figueira (2003), cita em seu LDH que as péssimas condições de
trabalho provocavam doenças frequentes, o que fazia com que a vida
produtiva de um escravo fosse muito curta, e enfatiza que “por isso, a
importação de escravos cresceu muito no século XVIII. Considerando
as características da atividade, os mineradores davam preferência aos
escravos do sexo masculino, o que provocou forte desequilíbrio entre
homens e mulheres na região das minas” (FIGUEIRA, 2003, p. 184).
O termo “importação” utilizado por Figueira de maneira natu-
ral em seu texto, pode ser analisado à luz do conceito de representa-
ção de Chartier (1990). Segundo Chartier (1990), a representação num
primeiro sentido, nos permite ver o “objeto ausente” (coisa, conceito
ou pessoa), substituindo-o por uma “imagem” capaz de representá-lo
adequadamente ou não. Nesse sentido, representar, portanto, é fazer co-
nhecer as coisas imediatamente “pelas palavras e gestos”. Ao utilizar, o
termo “importação”, Figueira (2003) representa o africano como uma
simples mercadoria, como definida inclusive na legislação do século
XIX, onde o escravo não poderia ter nenhuma atuação que não fosse
a “força de trabalho”. O africano como um ser humano, um sujeito his-
tórico, é substituído por uma imagem de algo que pode ser comerciali-
zado, transportado. Privado de sua condição humana, em razão de sua
condição de cativo, o escravizado foi representado como coisa.
No contexto de uma sociedade escravista, Schmidt (2008),
interessado em compreender os escravizados enquanto sujeitos

134
históricos, menciona outras formas de trabalho que podiam de-
senvolver e não necessariamente estavam vinculadas às atividades
realizadas para seus donos.
A maior parte dos escravos trabalhavam nas lavouras dos gran-
des proprietários de terras. Mas existiam outras formas de tra-
balho escravo, igualmente importantes. Para começar era muito
comum o latifundiário ceder um pedacinho de terra para os
escravos. Nos poucos momentos de descanso (por exemplo no
domingo um dia em que a igreja exigia que os escravos tivessem
folga) os escravos e suas famílias podiam usar aquela terrinha
para plantar alguma coisa (milho, feijão, mamão, abóbora, man-
dioca) e criar alguns animais (porcos, galinhas, cabras) com isso
melhoraram a alimentação. Também podiam, acredite nisso,
vender o que tinham produzido e obter uma pequena fonte de
renda (SCHMIDT, 2008, p. 201).

Com isso, quer mostrar que, apesar de toda essa estrutura que
estabelecia uma desigualdade social entre brancos e negros, os escra-
vizados lutavam para serem sujeitos de sua própria história e procu-
ravam superar várias barreiras, utilizando-se de diversos mecanismos
para melhorar suas condições de vida e de trabalho para garantir sua
sobrevivência perante o sistema social escravagista.
O autor também refere os diversos trabalhos desenvolvidos
pelos escravizados nas cidades. Nesse sentido, cita aqueles que se
dedicavam ao serviço doméstico, como limpar a casa, cozinhar,
tratar os cavalos, trazer água da rua (dos chafarizes); bem como
aqueles que eram utilizados pelo governo nas obras públicas, para
construir prédios, calçar as ruas com pedra, colocar óleo nos lam-
piões dos postes, e levar os barris cheios de excrementos humanos
para jogá-los no mar. Também trabalhavam no ofício de ferreiros,
carpinteiros, açougueiros, alfaiates etc. Schmidt (2008), ainda re-
gistra que os escravizados urbanos tinham uma vida “um pouco
menos presa” do que no campo.

135
No que tange à questão dos castigos, no corpus documental ana-
lisado, os textos que tratam sobre os castigos dispensados aos negros
contém praticamente as mesmas palavras, logo, as mesmas ideias. As-
sim, após descreverem o árduo cotidiano dos escravizados na lida diá-
ria, os autores apresentam um rol dos principais tipos de castigos apli-
cados aos cativos considerados “indisciplinados” pelos seus senhores.
Os escravos estavam sob permanente vigilância dos capatazes.
Qualquer deslize era castigado com o máximo de severidade.
Alguns dos castigos mais conhecidos foram o tronco, em que
os negros eram presos pelas canelas para serem açoitados com
o bacalhau, espécie de chicote que abria fendas profundas em
seus corpos, onde muitas vezes se colocava sal; o viramundo,
instrumento de ferro que prendia mãos e pés; a gargalheira, co-
lar de ferro com vários braços em forma de gancho. A castração,
a amputação dos seios, a quebra dos dentes com martelo e o
emparedamento vivo também eram empregados para castigar
as faltas consideradas graves (PILETTI, 1989, p. 64).

No corpus documental analisado, a justificativa usada para ex-


plicar os castigos que aparecem, está diretamente ligada a erros come-
tidos durante as exaustivas horas de trabalho. A estas faltas cometidas,
vinham os castigos e punições que eram, por exemplo, o uso de um chi-
cote de couro “cru” chamado bacalhau, a máscara de flandres, o tronco,
a gargalheira e aquele que fugia era marcado na testa com um F (fujão),
inscrito com ferro em brasa. Quando o escravo marcado tentava nova
fuga, sua orelha era cortada (BOULOS JÚNIOR, 1997).
Bem, você sabe que, se o escravo se empenhasse pouco no tra-
balho, o capataz homem livre que vigiava o escravo dava logo
uma surra no infeliz. Esse era o primeiro recurso para dominar
os escravos: a violência física. A escravidão foi uma história de
brutalidades. Um dos castigos mais comuns era o tronco. O es-
cravo ficava amarrado nele, de costas, totalmente nu. Com um
chicote de cinco pontas de couro molhadas, o bacalhau, o feitor
(empregado que fiscalizavam os escravos) surrava as costas e as

136
nádegas até a carne rasgar e sangrar. Sobre a carne viva passa-
vam coquetel de sal pimenta e urina (SCHMIDT, 2008, p. 199).

Depois de apresentadas as crueldades cometidas com os cativos,


cabe fazer uma reflexão de como se sentem os estudantes negros em es-
colas ao lerem essas situações a que seus antepassados eram submetidos,
uma vez que já se observou a ausência e/ou limitação de abordagem
de uma imagem do negro associada a outras condições que não sejam
as relacionadas à escravidão. No cotidiano da sala de aula, tais leituras
podem gerar situações de constrangimento ou produzir entre os estu-
dantes negros sentimentos de não pertencimento à sociedade brasileira.
A ênfase em mostrar sempre os diversos castigos a que eram
submetidos os africanos escravizados e a ausência de referenciais po-
sitivos voltados aos negros nos materiais didáticos pode causar conse-
quências bastante negativas, tanto aos alunos negros quanto aos alunos
brancos. Aos alunos negros, os danos podem ser sentidos na baixa da
sua autoestima, ao se sentirem inferiorizados e podendo levá-los inclu-
sive ao abandono da escola, como evidenciado na pesquisa de Meinerz
(2019); aos alunos brancos, a partir do momento em que estes somente
têm contato com materiais didáticos que mostram o negro na escravi-
dão, não tem possibilidade de re(criar) outras imagens, referenciais e
valores que propiciem o devido re(conhecimento) e respeito aos negros.
Essas informações fortalecem nossa hipótese sobre o predo-
mínio de um discurso que atua exclusivamente na lógica da drama-
tização, envolvendo estruturas simplificadas, mas impactantes e de
fácil apreensão pelo senso comum, pouco voltado, para a reconstru-
ção da vida dos negros. Lara (1988, p. 20), aponta para um fato im-
portante, “ao insistirem na afirmação da violência [...] transforma-
vam o escravo (ou ex-escravo) num ser incapaz e amorfo, anômalo
e patológico no mundo dos homens livres, e impediram sua plena
integração na sociedade de classes”.

137
Desta maneira, os açoites, a tortura, a violência sexual e outros
tantos aspectos negativos ligados aos negros faziam parte de um con-
junto de instrumentos e “técnicas” de tortura e castigo para subjugar
os cativos. E além, da dominação, o castigo cumpria a função de fazer
com que os escravizados absorvessem uma ideia negativa de si mesmo
e de sua raça. Alguns autores da historiografia, como Florestan Fernan-
des (1978), Emília Viotti da Costa (1989), Fernando Henrique Cardoso
(1962) e Octavio Ianni (1978), interpretam como passividade esse com-
plexo de inferioridade incorporado ao negro.
Todos nós sabemos sobre as atrocidades cometidas com os
africanos escravizados. Em algum momento de nossas vidas tivemos
informações sobre os diversos castigos sofridos por eles. Não se pode
rescindir essas informações porque os fatos realmente aconteceram e
estão registrados na história brasileira. Entretanto, não podemos tor-
nar essas histórias as mais importantes desses indivíduos. É preciso
evidenciar o esforço e a capacidade desses seres humanos em criar e
recriar condições e estratégias para sobreviverem em meio à bárbara
vida que levavam. É interessante fazer prevalecer muitas outras passa-
gens no cotidiano dessas pessoas como dignidade, honra, persistência
e, acima de tudo, a luta por dias mais amenos, menos sofridos, em prol
da liberdade tão almejada.
Tomemos como exemplo o cotidiano dos escravizados, cuja his-
toriografia tem evidenciado as várias maneiras que eles encontraram
para criar e recriar o seu dia a dia, como os laços de solidariedade, as
negociações, as estratégias de sobrevivência, dentre outras formas de
viver, estar e ser um trabalhador escravizado no Brasil. O único LDH
do corpus documental analisado que ressalta as contribuições culturais
e étnicas dos africanos escravizados na constituição do povo brasileiro
e na sua diversidade e pluralidade cultural é a obra de Schmidt (2008).
O autor mostra os elementos da cultura africana presentes ao longo

138
da História do Brasil, contribuindo decisivamente para a formação da
identidade nacional: na culinária, na música, na religiosidade, na língua
portuguesa falada no país.
As representações dos africanos escravizados nos LDH ana-
lisados fora de um contexto escravista são mínimas. Representações
dos aspectos culturais ligados ao cativo aparecem sempre de forma
secundária e restrita a mencionar as contribuições desses povos para
a cultura brasileira.
Para Chartier (1990), as representações não são discursos neu-
tros, pois tendem a impor uma autoridade. O sistema social escravista,
na medida em que coloca sobre os africanos escravizados suas convic-
ções, impunha seus métodos de trabalho e a igreja católica impunha
a religião, por exemplo, mostra as diferentes formas utilizadas para se
criar um sentimento comum em torno de um projeto colonizador.
Segundo Chartier, a representação está intimamente ligada à
posição social ocupada pelos indivíduos, sendo, nesse sentido, históri-
ca, visto que são construídas ao longo do tempo. A representação fun-
ciona, na prática, como uma disputa e nessa lógica, a identidade é uma
representação construída pela disputa dos grupos que têm interesses em
impor sua visão, e esta precisa se tornar universal dentro do contexto
que está inserida para que seja legitimada.
Com relação às práticas de resistência no corpus docu-
mental analisado, observou-se que os autores se enquadram numa
perspectiva dos escravos como sujeitos de transformações, que está
baseada na Nova História Cultural, onde o conceito de resistência
é revisitado. Qualquer estratégia empregada pelo escravizado para
tornar sua vida menos sofrida e melhorar sua condição, é entendi-
da como resistência. Dentro dessa perspectiva, até mesmo o estabe-
lecimento de vínculos afetivos e o sincretismo religioso podem ser
consideradas formas de resistência.

139
Os autores mostram que por intermédio de várias práticas, in-
clusive por meio de negociação em um sistema caracterizado, sobretu-
do, pela violência e opressão, os cativos buscavam estratégias de resis-
tência. Citam também a formação de quilombos, rejeitando a ideia de
quilombos como um suposto isolamento dessas comunidades. O qui-
lombo, nessa perspectiva, surge do fato histórico da fuga, a partir do
momento em que o homem não se reconhece mais como propriedade
do outro e é o lugar onde os africanos que foram escravizados procuram
reviver a sua origem, a sua cultura, fortalecer sua identidade. Desta for-
ma, o quilombo passa a ser o núcleo, o ego do negro.
Tais constatações aparecem em Piletti (1989), quando menciona
que o quilombo não foi um fenômeno isolado na História do Brasil, es-
tando presente em todas as regiões brasileiras. Para respaldar essa afir-
mação, cita que tal levantamento foi feito por Clóvis Moura, que identi-
ficou quase uma centena de quilombos.
Além disso, novas orientações historiográficas fizeram com
que os escravizados passassem a ser retratados como seres sociais ati-
vos e sujeitos históricos e “ao contrário do que dizem alguns livros an-
tigos de História do Brasil, o negro lutou muito, reagindo de diversas
formas contra sua condição de escravo” (BOULOS JÚNIOR, 1997, p.
85). “A escravidão negra é uma história cheia de violência do senhor
de escravos. Cheia de revoltas e lutas do negro, que procurava a liber-
tação” (COTRIM, 1994, p. 74).
Os escravizados eram pessoas que, dentro de suas condições
e limitações, controlavam suas vidas, seja por meio da resistência
ou da acomodação, capazes de elaborarem e se apropriarem de es-
tratégias dos mais variados tipos para a aquisição de algumas van-
tagens ou mesmo para a conquista de sua alforria. Constatou-se tais
ideias no LDH de Schmidt (2008, p. 195), quando menciona que “o
escravo fazia corpo mole, para trabalhar o menos possível, roubava

140
uma comidinha na cozinha, fingia-se de doente. Algumas escravas
grávidas preferiam abortar (de propósito, impediam o nascimento
da criança) a ter um filho sem liberdade”.
A historiografia contemporânea tem mostrado vários níveis de
autonomia dos escravizados e suas possibilidades de negociação. Pes-
quisas recentes (CHALHOUB, 1990; REIS; GOMES, 2012) têm mos-
trado a existência de laços familiares, estratégias de resistência e sobre-
vivência entre escravizados e libertos, acordos envolvendo senhores e
escravizados para obtenção de alforrias, acordos entre antigos senhores
e seus ex-escravos para permanência em suas terras, dentre outros.
Schmidt (2008) expressa uma tendência alinhada com os recentes tra-
balhos sobre escravidão produzidos pela historiografia desde os anos 1980. Este
autor cita os historiadores João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (2012) para
dizer que “hoje não se aceita mais a tese de que os quilombos eram forma de
reproduzir o modo original da África. Afinal, os quilombos abrigaram diversas
etnias africanas e a própria cultura colonial” (SCHMIDT, 2008, p. 195).
Mesmo citando o “controle pela violência” dos escravizados, o
autor aborda também as “formas sutis de controle”, diz que o medo dos
castigos não era a única forma de convencer o escravizado a aceitar a
sua condição. Também argumenta sobre a existência de certo “consenso
em torno da escravidão”, dentro das circunstâncias sociais e mentais da
época e que os cativos souberam “produzir mais brechas, mais espaços
de resistência do que pensamos” (SCHMIDT, 2008, p. 201).
Para Schmidt (2008, p. 201), é possível compreender as negocia-
ções entre senhores e escravizados como forma de resistência escrava, e
ele cita que a “alforria poderia ser o resultado de uma negociação entre
o senhor e o cativo”. Aos cativos, havia a possibilidade de constituírem
família. Ponto inovador apresentado pela historiografia da escravidão,
que passou a enxergar e dar visibilidade para as relações familiares e que
foi apropriado pelo autor em seu livro didático.

141
Ao entendermos os africanos escravizados como sujeitos his-
tóricos, nos alinhamos com a perspectiva historiográfica dos escra-
vos como sujeitos de transformações. À luz da perspectiva dos escra-
vos como sujeitos de transformações, as pesquisas são feitas sob o
prisma dos escravizados em suas múltiplas experiências cotidianas e
formas de resistência, bem como das ações pela liberdade. As ações e
as lógicas construídas pelos escravizados tornam-se mais importan-
tes que as perspectivas dos senhores escravistas. Os africanos escra-
vizados são os personagens centrais.
Mostrar aos alunos que houve resistência por parte dos cativos
é uma transformação didática pertinente e positiva. Os alunos precisam
compreender que resistir não é apenas fugir ou agir com violência, e
sim, que existem outras formas de resistência praticadas.
Com relação a abolição da escravatura, constatou-se que não
incorporam o assunto em suas narrativas os livros de Nadai e Neves
(1988) e Boulos Júnior (1997). Os LDH de Nadai e Neves (1988) e
Boulos Júnior (1997) trazem a história do Brasil contada de maneira
cronológica linear. Os livros narram a história do Brasil colônia, a
partir da chegada dos portugueses ao Brasil (1500), até o processo de
independência brasileira (1822), por isso, acreditamos que o assunto
abolição da escravidão (1888) não esteja contido nesses livros, por
ser de um período posterior.
Notadamente, alguns LDH do corpus documental atribuem
os fatores externos como os que mais contribuíram para deflagrar a
abolição da escravidão, podendo-se citar “as pressões internacionais
para a supressão do trabalho escravo, sobretudo da Inglaterra, se in-
tensificaram [...] os ingleses alegavam que o trabalho escravo era uma
vergonha para a humanidade” (FIGUEIRA, 2003, p. 277-278). Sch-
midt (2008) salienta que os ingleses pressionaram muito o governo
brasileiro para que acabassem com a escravidão.

142
Lima (2017, p. 207) afirma que muitos LDH problematizam de
forma insuficiente o impacto das leis no processo abolicionista. Nesse
sentido, cita o reducionismo dado à “Lei Feijó” de novembro de 1831 a
denominada “lei para inglês ver”, como se tivessem sido inócuas todas
as suas determinações. A autora chama a atenção para as consequências
dessa lei, na medida em que “faz desviar para outras áreas o desem-
barque de cativos, produz uma reordenação dos espaços urbanos das
cidades portuárias que antes recebiam embarcações trazendo gente e
mercadorias”. Com isso, houve o aumento do tráfico interno e o sur-
gimento de novos locais de desembarque em regiões portuárias, bem
como alterando rotas e caminhos de entrada de escravizados, propician-
do inclusive focos de resistência à escravidão.
A afirmação de Lima (2017) pode ser constatada em análise no
corpus documental desta pesquisa. A lei de 1831 citada, é, geralmen-
te uma afirmação de que foi somente realizada para os ingleses verem,
uma vez que ficou no papel. Ainda, conforme destacado por Lima
(2017), as consequências dessa lei não são citadas pelos autores em suas
narrativas. Tal constatação, pode ser observada no corpus documental
analisado, também em relação a Lei Eusébio de Queirós.
Com relação a forma de abordagem da abolição, encontramos di-
versas versões no corpus documental analisado. Autores como Piletti (1989),
colocam que a abolição teria resultado da conjugação de vários fatores:
a rebeldia negra que, desde o início da escravidão, nunca deixou
de se manifestar, tanto através de fugas quanto de movimentos
organizados, como a Guerra dos Palmares (1635-1695); os fa-
tores socioeconômicos, como a escassez de escravos a partir do
fim do tráfico e sua consequência lógica, o aumento do preço
do escravo [...] as campanhas abolicionistas, em meio às quais
se distinguiram duas correntes: de um lado a chamada corrente
moderada, que pretendia a libertação dos escravos sem riscos
de uma participação mais ativa do povo, [...] de outro a corrente
radical, que chegou a pregar claramente a violência justa, a vio-

143
lência do escravo contra o senhor, a insurreição aberta contra o
sistema escravista (PILETTI, 1989, p. 117).

Já para Cotrim (1994), a abolição seria o resultado de uma cam-


panha abolicionista de muitos intelectuais, como Joaquim Nabuco, José
do Patrocínio, Raul Pompéia, Luís Gama, Castro Alves etc. No entan-
to, salienta ainda, que a abolição não foi obra somente dessa elite de
intelectuais, segundo o autor “o fim da escravidão era uma exigência
do capitalismo industrial e do desenvolvimento econômico do país. Na
prática do dia a dia, ninguém mais lutou e resistiu à escravidão do que
os próprios negros escravos” (COTRIM, 1994, p. 214-215).
Figueira (2003) também menciona em seu texto o “clamor po-
pular” contra a escravidão, cita a importância das províncias do Ceará e
da Amazonas em abolir a escravidão em seus territórios e isso também
contribui de certa forma para o declínio do regime imperial. Também
ressalta que a Igreja Católica passou a apoiar o fim da escravidão e que
em meio a esse clima de desintegração do sistema escravista é que foi
assinada a Lei Áurea.
Em sua narrativa, Schmidt (2008) cita a participação das mu-
lheres e diferentes classes sociais na luta pela abolição da escravatura.
Segundo o autor, “o abolicionismo contou com as mulheres. Desde as
que preparavam doces e arranjos de flores para levantar grana para o
movimento, até as que escreviam artigos em jornais antiescravistas”
(SCHMIDT, 2008, p. 450). Ainda destaca que:
O movimento abolicionista atingiu quase todas as classes sociais
e empolgou milhares de pessoas no país inteiro. [...] Comícios,
panfletos, chás, debates, jornais, encontros em bares, quermes-
ses, festas e bailes, discussões entre estudantes, livros, palestras,
tudo valia a pena difundir o ideal do fim da escravatura. [...] Era
o nascimento de uma força extraordinária: a da opinião pública
(SCHMIDT, 2008, p. 450).

144
Reitera, ainda, que o abolicionismo foi um movimento tipica-
mente urbano, embora reconhecesse que a porcentagem da população
urbana era baixa. Usa as ideias do historiador José Murilo de Carvalho
para justificar o processo de abolição, ou seja, associa a escravidão a um
obstáculo que o Brasil precisaria superar para se tornar uma nação de-
senvolvida. O fim da escravidão abriria o caminho para o capitalismo e,
com ele, a indústria, a cidade, o progresso (SCHMIDT, 2008).
Na perspectiva dos escravizados como sujeitos de transformação,
constata-se que o processo de abolição é resultante de movimentos sociais
plurais e que o “discurso abolicionista unificou os grupos mais diversos e
deu expressão aos interesses mais variados. A conivência de amplos setores
da sociedade permitiu às camadas populares e aos escravos se mobilizarem
na luta contra a escravidão. Foi essa mobilização que levou à aprovação da
Lei Áurea” (COSTA, 2010, p.129). Assim, a lei teria apenas corroborado o
que na prática já ocorria, a derrocada do sistema social escravagista.
Sobre as representações do negro no contexto pós-abolição, ob-
servou-se a ausência dessa temática nos LDH de Nadai e Neves (1988),
Boulos Júnior (1997). Como o negro desapareceu do texto histórico di-
dático, poderíamos pensar que ele embranqueceu.
No corpus documental analisado, os caminhos percorridos pe-
los ex-cativos após a abolição da escravidão é um tema que apresenta
diferentes graus de complexidade em sua abordagem. No entanto, ainda
lhe é reservado pouco espaço, uma vez que, o assunto é narrado nos
LDH em poucos parágrafos. As narrativas nos LDH abordam temáticas
relacionadas aos afrodescendentes, que vão além dos aspectos econômi-
cos e políticos. Nesse sentido, temos autores que abordam o preconceito
racial e social, a discriminação e o racismo, bem como aqueles que ci-
tam a luta desses povos pela ampliação de direitos.
Piletti (1989), com o subtítulo: “O despertar da consciência
negra”, denunciou o preconceito baseando-se na produção marxista

145
da Escola de Sociologia de São Paulo. Procura mostrar a existência
do racismo, da discriminação e do preconceito e, também, comenta
sobre as condições de vida dos negros na atualidade. Nesse sentido,
recorre ao sociólogo Florestan Fernandes para demonstrar que, “ao
contrário das proclamações oficiais, o Brasil não constitui uma de-
mocracia racial. O preconceito existe. A discriminação existe. [...]
‘Negro não nasce, aparece’; ‘Negro não almoça, come”; ‘Negro na
casa, ajunta’; ‘Negro não dorme, cochila’” (PILETTI, 1989, p. 66).
O autor menciona ainda que “a marginalização do negro só ter-
minará quando existir uma efetiva igualdade social, política e econô-
mica para todos os participantes da sociedade” (PILETTI, 1989, p. 66),
mas que isso efetivamente não vem acontecendo no país, uma vez que,
os melhores cargos políticos são sempre ocupados por brancos.
No entanto, como mencionado no subtítulo, estaria havendo um
despertar da consciência negra no Brasil que estaria lutando contra a mar-
ginalização, pela valorização do negro em todos os campos da vida social
e pessoal, e ainda, o reconhecimento de sua dignidade como ser humano.
Cita o Movimento Negro Unificado como uma organização de luta.
Encerra o capítulo com um texto de análise para os estudantes
que traz como título “A questão negra no Brasil”, onde escreve sobre
todas as dificuldades enfrentadas pelos negros ao longo da história.
Finaliza o texto com um trecho escrito por Décio Freitas, publicado
na Folha de São Paulo, em 1980.
Observa-se que o protagonismo negro empreendido por ações
como a organização de Movimentos Negros é mencionado na referida
obra didática. Neste sentido, a interpretação construída ao dar visibili-
dade ao processo de “contestar essas relações e a impulsionar a luta con-
tra o preconceito”, capitaneado por alguns afro-brasileiros, destacando
ações de associativismo como a organização de diferentes grupos afro-
descendentes, propõe caminho interpretativo em que o protagonismo

146
negro torna-se um dos aspectos que compõem a teia histórica do ime-
diato pós-abolição, conferindo, assim, a esses protagonistas afro-des-
cendentes, um lugar como sujeitos históricos.
Cotrim (1994, p. 215) procura desenvolver o espírito crítico dos
estudantes ao apresentar um texto que busca fazer a reflexão do leitor
sobre a efetivação ou não da liberdade dos ex-escravizados. Refletir so-
bre isso requer uma análise profunda sobre ser livre numa sociedade
do início do século XX. Para aqueles que tinham dinheiro, a liberdade
remonta às possibilidades que o dinheiro pode comprar, desde os diver-
sos bens, o direito irrestrito ao voto e participação na vida política do
país, ou até mesmo o acesso aos melhores empregos. No entanto, para
os ex-escravizados, a visão de liberdade era outra:
A liberdade pode ter representado para os escravos, em primei-
ro lugar, a esperança da autonomia de movimento e de maior
segurança na constituição das relações afetivas. Não a liberda-
de de ir e vir de acordo com a oferta de empregos e o valor de
salários, porém a possibilidade de escolher a quem servir ou
de escolher a quem não servir. [...] havia modos radicalmente
distintos de conceber a vida em liberdade. Para os negros, não
podia significar a necessidade de existir só para produzir dentro
de determinadas condições (CHALHOUB, 1990, p. 80).

Observa-se que Cotrim deixou de perceber a discrepância do


que é ser livre para indivíduos tão diferentes, em sua narrativa. Dei-
xou isso vago ou para ser realizado pelos professores em sala de aula.
Além disso, o autor apontou que existiram dificuldades vivenciadas pe-
los ex-escravizados, que não tiveram garantidos meios para melhorar
sua existência, mas não expressou ideias sobre como essas dificuldades
foram sendo vivenciadas por esses sujeitos.
Além do mais, não trouxe as diversas organizações que os pró-
prios grupos formaram pelos laços de solidariedade, agremiações ou
redes de amizade e a própria mobilização dos Movimentos Negros, des-

147
de sua origem até as organizações atuais, possibilitando aos estudantes
reflexões positivas relacionadas às populações negras.
Sobre o contexto pós-abolição, Schmidt4 (2008, p. 453) assim se manifesta:
Pronto. Tinha acabado a escravidão. Na corte, deram um baile
comemorativo. Os negros só puderam entrar como criados. De-
pois da abolição, a data era comemorada ostensivamente pelas
elites, com banquetes para senhores e senhoras bem-vestidas,
sem um único ex-escravo para discursar. A liberdade da fala
ainda espera sua lei Áurea... A lei não previa nenhuma proteção
social. Não houve reforma agrária, não indenizaram os ex-cati-
vos, e o governo sequer se preocupou em construir escolas. De
escravos os negros se tornaram trabalhadores muito pobres [...]
instalados numa sociedade cheia de preconceitos.

Como observado pelo autor, não houve realmente nenhuma inde-


nização ou reparação aos ex-cativos, e o autor também menciona as inúme-
ras adversidades que o ex-cativo teve que passar logo após a sua libertação.
Outra questão importante de ser analisada na abordagem de
Schmidt, é quando menciona que “de escravos os negros se tornaram
trabalhadores muito pobres”. Lara (1998, p. 27) afirma que a teoria da
substituição da mão-de-obra escrava para a imigrante silenciou a traje-
tória dos negros dentro da historiografia brasileira:
Assim, a abundante historiografia sobre a “transição”, apesar de
sua diversidade, efetua um procedimento comum: pretende es-
tabelecer uma teoria explicativa para a “passagem” do mundo
da escravidão [...] para o universo do trabalho livre, assalariado
[...]. Em sua modalidade mais radical, a historiografia da tran-
sição postula a tese da “substituição” do escravo pelo trabalho
livre; com o negro escravo desaparecendo da história, sendo
substituído pelo imigrante europeu.

4 Atentamos ao longo da análise ao fato de o autor estar em constante atualização com a historiografia.
Acreditamos que sua visão de mundo tenha sido um dos fatores que influenciou em suas escolhas historio-
gráficas.

148
Em Schmidt (2008, p. 205) há um breve comentário sobre as
condições dos negros na contemporaneidade:
A escravidão marcou a sociedade brasileira. Os negros e os
mulatos de hoje, que descendem dos antigos escravos, são a
maioria dos pobres. São também a maioria dos que moram
nas favelas, dos que não puderam ir à escola, dos que ocupam
pavilhões carcerários (...). Os sentimentos raciais e a discri-
minação contra a população negra continuam existindo no
Brasil. Sem dúvida, são uma cruel herança do tempo da es-
cravatura e mostra que o passado morto ainda pode ser um
pesadelo para os vivos do presente.

Com relação às imagens referentes ao período pós-abolição, es-


colhemos imagens do LDH de Cotrim (2003) e Schmidt (2008), pois são
as únicas encontradas que mostram os negros fora do contexto da escra-
vidão. As demais imagens dos negros que perpassam os LDH analisados
se referem ao sistema social escravagista.
Schmidt (2008) traz a mulher negra, que foi tão pouco represen-
tada nos LDH. As imagens no livro didático de Cotrim representam as
crianças negras em situações de pobreza. Na primeira imagem, o autor
traz um texto relativo ao cotidiano na história, onde pondera-se que o
Brasil, no limiar do século XXI, vive uma democracia na aparência em
virtude das desigualdades historicamente construídas e que o problema
no Brasil não é racial, mas um grande “Apartheid Social”. A segunda
imagem está vinculada a um texto que trata do governo Itamar Franco
e dos graves problemas socioeconômicos que recebeu como herança. A
imagem vem acompanhada da legenda: “a miséria social atingindo as
crianças brasileiras” (SCHMIDT, 2008).
Nessa categoria é importante refletirmos sobre a nomeação dada
a ler nos LDH aos sujeitos históricos recém-saídos da condição de es-
cravizados. Com isso, vamos selecionar alguns trechos do corpus docu-
mental analisado, evidenciando os conceitos nominativos construídos:

149
“Confinados nos porões da sociedade brasileira, econômica
e socialmente discriminados e excluídos, quais párias modernos, os
negros na realidade passaram a ser tratados como cidadãos de se-
gunda classe” (PILETTI, 1989, p. 68, grifos nossos). Cotrim (1994,
p. 333, grifos nossos), logo abaixo da imagem (figura 18) descreve-
-os como “famintos urbanos”. “Para os ex-escravos, a abolição sem
dúvida representou uma conquista. [...] Eram trabalhadores livres,
mas não dispunham de terras para cultivar [...] a nova situação aca-
bou se mostrando extremamente perversa com os escravos liber-
tos, que não conseguiram competir em igualdade de condições” (FI-
GUEIRA, 2003, p. 279, grifos nossos). “Não houve reforma agrária,
não indenizaram os ex-cativos, e o governo sequer se preocupou em
construir escolas. De escravos, os negros tornaram-se trabalhadores
muito pobres” (SCHMIDT, 2008, p. 453, grifos nossos).
Marginalizados, desempregados, cidadãos de segunda classe,
famintos urbanos, ex-escravos, trabalhadores livres, escravos libertos,
ex-cativos, trabalhadores muito pobres. Como pode ser constatado, são
várias as denominações nos LDH direcionados para o ensino-apren-
dizagem da História escolar. São várias as representações em torno da
conceituação de tais personagens históricos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo nos propusemos a analisar as relações estabeleci-
das entre a historiografia e o LDH, ou seja, compreender como as dife-
rentes formas de produção e circulação de abordagens historiográficas
sobre a temática dos africanos escravizados foram sendo apropriadas
pelos LDH no período compreendido entre 1980 e 2010. Para tanto, o
corpus documental desta pesquisa passou a ser composto por dois livros
de cada década, formando assim um conjunto de 6 livros didáticos.

150
Operando com os conceitos de Chartier (1990), temos o LDH
como o lugar de representação e ao mesmo tempo de apropriação. Ali-
ás, melhor falar em apropriações, no plural, do que em apropriação, no
singular, na medida em que admitimos que o material didático advém
de várias leituras anteriormente realizadas pelos seus autores e, destas
leituras, advêm as diversas apropriações.
Quando analisamos a diáspora africana, observamos que os
LDH (Nadai; Neves, 1988; Piletti, 1989; Cotrim, 1994; Boulos Júnior,
1997) ainda dão ênfase sobre a origem dos africanos escravizados aos
povos Bantos e Sudaneses, esquecendo todos os demais povos que fo-
ram forçadamente trazidos ao Brasil. Tais povos são destacados nos
LDH de Figueira (2003) e Schmidt (2008).
Com relação às justificativas adotadas para a imposição da
escravidão africana no Brasil, os autores dos LDH analisados se en-
quadram na perspectiva dos escravizados como sujeitos de transfor-
mações, uma vez que se argumenta que a escravização de africanos
se deu fortemente marcada pelo discurso da ordem econômica, sob
a perspectiva de lucro, tanto pelo comércio de seres humanos, como
pela exploração de seu trabalho.
Sobre o cotidiano que se desenhava a bordo dos navios que faziam
o translado forçado de africanos ao Brasil, não se faz muitas especifica-
ções. Todos os LDH ficam amarrados à perspectiva clássica e à perspec-
tiva revisionista, ancorando-se na ideia da coisificação do escravo, uma
vez que ficam limitados às descrições dos africanos nos porões dos cha-
mados “navios negreiros”, descrevendo, na maioria das vezes, um africa-
no que não resiste, como um indivíduo totalmente passivo, que se sujeita
a condições insalubres e degradantes de viagem. Termos como “carga”
(COTRIM, 1994) aparecem no texto para se referir ao deslocamento de
africanos escravizados ao Brasil, evidenciando-se a reverberação de uma
concepção do cativo como coisa, um objeto e/ou mercadoria.

151
Com relação ao cotidiano dos africanos escravizados durante
a vigência do sistema social escravagista, a maioria dos LDH analisados
estão amparados, predominantemente, em uma narrativa histórica que
apresenta uma sociedade latifundiária, escravocrata e patriarcal, onde
o trabalho sempre esteve associado ao cativo de forma angustiante e de
sofrimento. Aparece uma visão binária de sociedade colonial (senhores
do engenho e escravizados) que ausenta outras composições sociais que
integravam o contexto daquela sociedade. Somente o LDH de Schmidt
(2008) insere em sua narrativa a perspectivas da historiografia dos es-
cravizados como sujeitos de transformações ao retratar as contribuições
culturais e étnicas dos africanos escravizados na constituição do povo
brasileiro, reconhecendo as positividades presentes na sua diversidade
e pluralidade cultural. Tal obra mostra os elementos da cultura africana
presentes ao longo da história do Brasil, contribuindo para a formação
de identidades plurais que ensejam noções de pertencimento a diferen-
tes culturas étnicas, linguísticas, religiosas, por meio da culinária, da
música, da religiosidade, da língua portuguesa falada no país.
A partir do levantamento realizado sobre a temática da resis-
tência encontrada no corpus documental analisado, todos os autores
mostram que, por intermédio de várias práticas, inclusive por meio
de negociação em um sistema caracterizado, sobretudo, pela violência
e opressão, os cativos buscavam estratégias de resistência dentro do
sistema social escravagista.
Sobre o processo de abolição da escravidão, observou-se que os
LDH trazem a valorização da atuação dos cativos na pressão social que con-
tribuiu para o fim da escravidão, bem como uma abordagem que se insere
na análise histórica sob a perspectiva de que o ato da abolição faz parte de
um processo. Porém, tal menção comparece timidamente na narrativa di-
dática, sem um aprofundamento nesse quesito, mostrando, por exemplo, as
diferentes estratégias utilizadas pelos cativos para tal importante conquista.

152
Sobre o contexto pós-abolição no corpus documental analisado,
constatou-se que os autores tratam das consequências do processo de
libertação dos escravizados além das questões econômicas e políticas
e trazem questões sociais, culturais, relativas aos ex-cativos e aos afro-
descendentes. Nesse grupo os autores destacam o processo de exclusão
racial e social do ex-cativo como um dos grandes males que o atinge
profundamente, além de impactar toda a sociedade.
Observou-se que, em grande medida, a história dos cati-
vos nessas obras didáticas está associada ao contexto da escra-
vidão, mas a presença desses sujeitos históricos nos LDH mais
recentes é abordada quando se trabalham as questões associadas
à pobreza, miséria e fome.
As diferentes formas de interpretar o passado estão ligadas pe-
las diferentes possibilidades de compreendê-lo, assim como as moda-
lidades de representação acerca dos sujeitos, fatos, contextos e relações
travadas em um tempo passado. A dimensão a respeito das formas
pelas quais os sujeitos históricos são nomeados traz indícios para a
compreensão de como tais personagens do passado são apropriados e
dados a ler em diferentes momentos da história. Diante disso, é preci-
so refletirmos sobre a nomeação atribuída aos sujeitos históricos nos
LDH, dentro do nosso período de análise.
Ao longo da pesquisa, chamou-nos atenção os termos utilizados
para definir e caracterizar os africanos escravizados. Foi possível perce-
ber que, muitas vezes, a denominação adotada expõe o modo como os
esses sujeitos eram percebidos pelos autores dos LDH na perspectiva da
situação de subserviência em que se encontravam.
Em linhas gerais, podemos perceber, através das nomeações
exemplificadas no Quadro 1, que a incidência de nomeações negati-
vas relacionadas aos afro-brasileiros nos LDH. Nomeações negativas
se sobrepõem a nomeações positivas.

153
Quadro 1 - Representações dos africanos escravizados em LDH de 1980 a 2010

Autores de LDH Denominações


Piletti (1989) Cidadãos de segunda classe
Cotrim (1994) Famintos urbanos
Figueira (2003) Negros, ex-escravos, trabalhadores livres, escravos libertos
Schmidt (2008) Negros, cativos, ex-escravos, ex-cativos, trabalhadores muito
pobres

Fonte: Sistematização da autora

Desta maneira, precisamos evidenciar que o livro didático sofre


influências advindas da historiografia, porém, também recebe interven-
ções da cultura histórica e das práticas sociais vigentes. Aliás, estas tam-
bém incidem sobre a historiografia.

REFERÊNCIAS

ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas, mulheres na colônia: condição feminina nos
conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822 1993. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1993.

ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia: Edusp,
1982. (Coleção Reconquista do Brasil)

AZEVEDO, Amailton Magno. Imagens da África: entre a violência discursiva e a produção da


memória. Boletim do Tempo Presente, n. 06, p. 1-10. set. 2013.

BOULOS JÚNIOR, Alfredo. História do Brasil: colônia. Edição Renovada. São Paulo: FTD,
1997. v.1.

BRASIL. Câmara dos deputados. Lei de 7 de novembro de 1831. Lei Feijó. Declara livres
todos os escravos vindos de fora do Império, e impõe penas aos importadores dos mesmos
escravos. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37659-
7-novembro-1831-564776-publicacaooriginal-88704-pl.html>. Acesso em: 27 de set. 2021.

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo:


Paz e Terra, 1962.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

154
CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.

_______. O mundo como representação. Estudos Avançados, v.11, n. 5, p. 172-191, abr. 1991.

_______. Escutar os mortos com os olhos. Estudos Avançados, v. 24, n., 69, p. 7-30, jan. 2010.

COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 8. ed. [1. ed. 1989]. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

COTRIM, Gilberto. História e Consciência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 3. ed. [1. edição


1955]. São Paulo: Ática, 1978.

FIGUEIRA. Divalte Garcia. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2003

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da eco-
nomia patriarcal. 48. ed. rev. São Paulo: Global, 2003

GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (sécs.
XVII-XIX). 1997. 773 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Huma-
nas, Universidade Estadual de Campinas, 1997.

KAMEL, Ali. O que ensinam às nossas crianças. O Globo, Rio de Janeiro, p. 7, 18 set. 2007.

IANNI, Octávio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978.

LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988a.

_______. Escravidão, cidadania e história do trabalho social no Brasil. Projeto História, São
Paulo, n.16, fev. 1998b.

LIMA, Mônica. Negra é a raiz da liberdade. Narrativas sobre a escravidão no Brasil


em livros didáticos de história. In: ROCHA, Helenice; REZNICK, Luís; MAGALHÃES,
Marcelo de Souza (Orgs.). Livros Didáticos de História: entre políticas e narrativas.
Rio de Janeiro: FGV, 2017.

MEINERZ, Carla Beatriz (Org.). Um equívoco bem-intencionado: possibilidades


para pensar o uso do livro didático de história e a educação antirracista. Porto Alegre:
Diadorim Editora, 2019.

MUNANGA, Kabengele. Origens africanas do Brasil contemporâneo: histórias, línguas, cul-


turas e civilizações. 3. ed. São Paulo: Gaudi Editorial, 2012.

155
NADAI, Elza; NEVES, Joana. História do Brasil. 1 Brasil Colônia: 1º grau. 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 1988.

PILETTI, Nelson. História do Brasil: da Pré-História do Brasil à Nova República. 9. ed. São
Paulo: Ática, 1989.

PROENÇA, Wander de Lara. Escravidão no Brasil: debates historiográficos contemporâneos.


In: XXIV SEMANA DE HISTÓRIA: "Pensando o Brasil no Centenário de Caio Prado Júnior”,
2006. Anais ..., Unesp, São Paulo, 2006.

QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra em debate. In: FREITAS, Marcos Cezar de.
Historiografia Brasileira em perspectiva. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2014.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo: Companhia das letras,1992.

REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um fio. História dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

SCHMIDT, Mario Furley. Nova História Crítica. 1. ed. São Paulo: Nova Geração, 2008

SLENS, Robert. Na Senzala uma Flor: Esperanças na Formação da Família Escrava. Brasil Su-
deste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

156
Mulheres negras em lugares visíveis:
contribuições da pintura para
a segunda escrita da África

Susana Guerra1

1 Doutora em História pela Universidade do Porto. Professora de História da África do Departamento de


História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

157
Todas essas histórias fazem de mim quem eu sou. Mas insistir
somente nessas histórias negativas é superficializar minha ex-
periência e negligenciar as muitas outras histórias que me for-
maram. A “única história” cria estereótipos. E o problema com
os estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam
incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história.

Chimamanda Adichie (2009)

Achille Mbembe chama de consciência ocidental do negro a


primeira versão do conjunto de representações intelectuais articu-
ladas em torno da ideia de raça (MARCUSSI, 2018, p. 185), aquela
que, produzida pela ciência colonial, consiste num “sistema preten-
samente erudito de narrativas e discursos [...] cujo objeto são a coisa
ou as pessoas ‘de origem africana’” (MBEMBE, 2018, p. 60-61). Com
gênese na Antiguidade, reelaborada na Era Moderna e consolidada
no contexto da dominação europeia, a constituição dessa razão e da
sua autoridade assumiu múltiplas manifestações por via da ciência
colonial e propagou-se por diversos meios, dando lugar a histórias e
imagens sobre o outro com as quais capturou e inscreveu a figura do
negro como o diferente2. Não sendo uma estrutura imutável, opera
todavia permanentemente. Constitui o que Mbembe chama de “de-
lírio do pensamento ocidental”: a fantasia paranoica da supremacia
do branco sobre o ser humano reduzido à cor da pele.
Delirante, porém eficaz, a primeira escrita do negro compre-
ende “um trabalho cotidiano que consiste em inventar, contar, repe-
tir e promover a variação de fórmulas, textos e rituais” (MBEMBE,
2018, p. 61), que tem como resultado, entre outras coisas, uma série
de representações presentes em todas as sociedades. Representações
que propiciam atos de opressão constantes, como a violência cultural

2 Com relação aos documentos e às instituições (narrativas de viajantes, exploradores, soldados e aventu-
reiros, mercadores, missionários e colonos; sociedades eruditas, exposições universais, museus, coleções
amadoras de “arte primitiva), Cf. MBEMBE, 2018, p. 61.

158
produtora de estereótipos, para a qual o cinema, a mídia, a publici-
dade, a arte, a academia e a educação contribuíram grandemente,
criando, consentindo e estimulando tanto as desigualdades como
a discriminação3. Representações que, por outro lado, secundam a
violência estrutural própria das nossas sociedades, pela subordina-
ção de uma parte em benefício da outra. Representações, por fim,
que subjazem outras tantas violências, mais visíveis, como a física e
a sexual, cujas manifestações dão conta do vivo desprezo para com
o corpo negro, materializando de forma inexorável aquilo que até
poderia passar (como tantas vezes passa) dissimulado4.
A situação extrema de confronto diário gerada pela discrimina-
ção racial configura uma opressão constante sobre a população negra
– uma opressão que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva, psíquica
e social, física e espiritual. Em uma entrevista de 1968, James Baldwin já
denunciava não apenas a violência física exercida sobre os negros mas
também a simbólica, a redução da sua realidade a uma “versão insultu-
osa” que “violentava todo o seu ser” (BALDWIN, 2017). As eminentes
manifestações de racismo – potenciadas pelo machismo, no caso das
mulheres negras – carregam em si uma destruição moral, de tal forma
interferem na autoestima e na perceção da identidade. No seu ensaio
Olho no olho, de 1984, Audre Lorde, por exemplo, dá conta do modo em
que essa experiência, ao mesmo tempo traumática e ordinária, marcou
a sua vida, assim como marca a das suas irmãs negras pelo mundo5.

3 Sobre a discriminação no cinema e na televisão, Cf. ARAÚJO, 2000.


4 Testemunhadas pelos altos índices que nos revelam as estatísticas, com as quais se contabilizam os estu-
pros e o sexismo, os crimes de ódio e mesmo as mortes ocasionadas por negligência na saúde pública e pela
violência policial, estas formas de repressão (frequentemente endossadas pelo Estado) são o cenário visível
da angústia que, diariamente, a população negra se vê obrigada a administrar. Sobre as taxas de homicídio
como reveladoras da magnitude da desigualdade, o Atlas da Violência no Brasil observava, em 2018, que a
disparidade da violência letal entre negros e não negros fazia com que parecesse que viviam em países com-
pletamente distintos. Com metade da sua população convertida em objeto de abusos e violências de todos
os tipos, podemos encontrar-nos testemunhando uma limpeza étnica no contexto semelhante ao de uma
guerra civil. Cf. CERQUEIRA, 2018, p. 40.
5 Cf. LORDE, 2018.

159
Tudo isto se reflete ao nível das estruturas e superestruturas das
sociedades em que vivemos, na cultura e nas instituições. A falta de refe-
rências, seja pela ausência de figuras de identificação ao nível do poder, da
inteligência e da beleza (VEIGA; BERNARDO, 2019) – calcadas sobre o
ideal vazio do padrão maioritário branco –, coloca limites rígidos à capa-
cidade de imaginar-se, bem como à potência de projetar-se no mundo.
A segregação também se inscreve nos livros didáticos, inclusive
quando abordam a história da África ou dos negros6. Com efeito, os
livros didáticos perpetuam, muitas vezes, essa primeira escrita do negro
- branca e ocidental - assinalada por Mbembe, contribuindo para que a
escola continue a ser um transmissor de estereótipos e desigualdade, de
forma mais ou menos explícita, no quadro de uma educação que privi-
legia invariavelmente o papel das elites brancas e masculinas.
O modo desigual em que brancos e negros se incorporam na vida
escolar comporta diversas formas7 e encontra-se largamente estudado,
à semelhança dos estudos sobre a estruturação do conteúdo dos livros
didáticos e a sua influência na difusão de imagens que remetam para os
papéis que a sociedade reserva para negros e brancos. Os livros didáticos,
de fato, não apenas negligenciam a inclusão do negro, ignorado, oculta-
do, evitado ou excluído, mas quando o representam, pontualmente, o fa-
zem de maneiras redutoras, que oferecem imagens empobrecidas da sua
realidade humana: muitas vezes trazido à luz apenas na figura do escra-
vizado, em geral é considerado como parte de uma história que ignora as
individualidades (um personagem negro raramente é considerado como
sujeito, nunca é visto na sua singularidade, senão como parte de um gru-

6 Dezassete anos após a promulgação da lei 10.631, que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura
Afro-Brasileira no Brasil, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, pode observar-se que a
institucionalização da lei, no âmbito das iniciativas relacionadas à educação das relações étnico-raciais na
educação brasileira se encontra incompleta e de implantação lenta. Apesar de tudo, não deixa de verificar-
-se, por parte das escolas que aderiram às diretrizes, uma preocupação com a reestruturação dos currículos
escolares. Para indicadores Cf. FONSECA; ROCHA, 2019.
7 Desde as relações pessoais até aos materiais didático-pedagógicos.

160
po – dos escravizados, da força de trabalho etc.)8. Ao mesmo tempo, o
negro também não é verdadeiramente tematizado como povo autônomo
ou coletividade diferenciada, mas sempre em relação à história branca na
qual se inscreve. No fundo, a negação do negro é tanto individual como
coletiva, e a sua representação sempre se oferece como suplemento da
representação do branco (da mesma forma em que, nas histórias da lite-
ratura ou do cinema, a existência das mulheres aparece na esmagadora
parte das vezes indexada à existência dos homens). Esta situação relega o
protagonismo negro a uma posição subalterna, parte secundária e silen-
ciosa de uma narrativa que concentra todo o seu valor, por oposição, na
experiência e nas contribuições da classe dominante. Não deixa de ser, e
isto não deve ser esquecido, uma história escrita, maioritariamente, por
homens brancos, que conta aquilo que estes consideram válido, e ganha
forma em função dos silêncios sobre os quais se constitui.
Podemos encontrar um grande número de reflexões, feitas logo
após a promulgação da Lei N° 10.639, e na esteira do que vinha sen-
do pensado anteriormente, que confirmam esse diagnóstico acerca da
dimensão inexplicável (e da casualidade discutível) do apagamento do
protagonismo negro nos manuais de História – tanto pela via da sua
inserção na História do Brasil como pelo tratamento dado à História da
África, para não falar da sua completa ausência em outros componen-
tes curriculares (na filosofia, nas disciplinas artísticas ou técnicas etc.),
ou até mesmo na própria investigação académica. Ana Célia da Silva,
por exemplo, concluía as suas observações sobre a escassa presença de
negros nos livro didáticos, colocando o acento nas consequências de
uma abordagem fundada, essencialmente, na ideia de desigualdade e na
demonstração de poder:
8 No que diz respeito aos negros, a sua inclusão nos manuais didáticos não é recente, mas data do século
XIX, como afirma Hebe Mattos: Menções positivas a personagens históricos afrodescendentes já podem ser
localizadas no primeiro livro didático de história do Brasil, o Compêndio de história do Brasil (1843), de
José Inácio de Abreu e Lima. [...] Essa presença descortina uma faceta antiescravista e antirracista, mas não
abolicionista, do pensamento historiográfico do período. (MATTOS apud SILVA, 2016, p. 251).

161
O livro didático, de modo geral omite o processo histórico e cul-
tural, o cotidiano e as experiências dos segmentos subalternos
da sociedade, como o negro, o índio, a mulher, entre outros. Em
relação ao segmento negro, sua quase total ausência nos livros
e a sua rara presença de forma estereotipada concorrem, em
grande parte para o recalque de sua identidade e autoestima.
(SILVA, 2004, p. 51)

Por outro lado, ao avaliar a produção da literatura didática no


que respeita ao ensino da História da África no Brasil, Anderson Oliva
afirmava que, durante muito tempo “os livros didáticos incorporaram a
tradição racista e preconceituosa de estudos sobre o continente e a dis-
criminação à qual são submetidos os afrodescendentes” (OLIVA, 2003).
A reprodução acrítica dessas imagens negativas pelo material didático
– em que pessoas brancas apareciam exclusivamente como referências po-
sitivas, por oposição às pessoas negras, que surgiam para ilustrar situações
de subserviência ou de desprestígio social – configurava a anuência a um
modelo de abordagem branco-eurocêntrico e etnocêntrico, que historica-
mente enaltece apenas imagens de indivíduos brancos (CAVALLEIRO,
2005, p. 13). Essas imagens são vetores racistas de um dispositivo esco-
lar que, como verificou Eliane Cavalleiro, provocam no aluno negro
auto-rejeição, desenvolvimento de baixa auto-estima com au-
sência de reconhecimento de capacidade pessoal; rejeição ao
seu outro igual racialmente; timidez, pouca ou nenhuma par-
ticipação em sala de aula; ausência de reconhecimento positivo
de seu pertencimento racial; dificuldades no processo de apren-
dizagem; recusa em ir à escola e, consequentemente, evasão es-
colar. (CAVALLEIRO, 2005, p. 12).

A importância do reconhecimento positivo de pertença racial


levou Baldwin a denunciar, em 1979, os limites impostos pelo racismo,
presentes também na relação com o professor:
Uma criança não pode ser ensinada por alguém que a despreza
[...]. Uma criança não pode ser ensinada por alguém cuja exi-

162
gência é que a criança repudie a sua experiência, e tudo o que
lhe dá sustento, e entre num limbo no qual ela não será mais
negra, e no qual ela sabe que nunca poderá tornar-se branca.
(BALDWIN, 1979)

Uma vez que, por força da repetição destas representações, a


mensagem final implícita nos livros didáticos pode conter a reafirmação
da superioridade branca (tendo como contraponto a ameaça de um lu-
gar subalterno reservado ao negro), a necessidade da reescrita dos seus
conteúdos assegurada por valores inclusivos e igualitários volta a afir-
mar-se hoje como crucial, também no que respeita à urgência da des-
colonização da história. Como recordava na década de 80 o historiador
guineense9 Djibril Tamsir Niane, se não procedermos a desmontar o
conjunto das “falsas teorias e todos os preconceitos criados pelo colo-
nialismo para melhor assentar o seu sistema de dominação e exploração
[...] [e] a presença das teorias pseudo-científicas que ainda são veicu-
ladas nas publicações didáticas utilizadas nas escolas” (NIANE, 2010,
p. 15), implicando também uma visão renovada que inclua o fim da
justificação da violência que tem origem no racismo, de nada servirão
as sucessivas revisões dos livros didáticos.
Embora a inclusão da história da África nos livros didáticos bra-
sileiros tenha começado em meados dos anos 9010, é a partir da edi-
ção da Lei n. 10.639 que começa um lento processo de mudanças. Essa
transformação não significou de imediato a revisão total dos conteúdos
racistas ou redutores, muito menos a assunção por parte dos professores
e intelectuais negros da edição dos conteúdos de história da África nos
manuais escolares. Mas a inclusão gradual de um novo paradigma veio

9 Da República da Guiné.
10 Segundo Anderson Oliva: “Se a presença da História da África nos currículos e nos livros escolares brasi-
leiros, até meados dos anos 1990, pode ser considerada insignificante, já que o continente africano aparecia
sempre retratado de forma secundária, associado ao périplo marítimo dos séculos XV e XVI, ao tráfico de
escravos e aos processos históricos do Imperialismo, Colonialismo e das Independências na África, esse
quadro passou a sofrer uma evidente modificação a partir de 1996. (...) Antes daquele ano não localizamos
nenhuma coleção de livros didáticos com essa característica.”. (OLIVA, 2009, p.144-145).

163
abrir uma possibilidade real de questionar as representações da teoria
da inferioridade africana, no marco do que Mbembe chamou de “a se-
gunda escrita do negro” (MBEMBE, 2018, p. 62).
A segunda escrita do negro é uma resposta à consciência ociden-
tal do negro, e, segundo Mbembe, tem início no final do século XVIII,
“desenvolvendo uma linguagem própria, [com os negros] reivindicando o
estatuto de sujeitos plenos do mundo vivo” (MBEMBE, 2018, p. 14). Tes-
temunhos dessa escrita são todas as formas de resistência assumidas pelos
negros “desde as revoltas de escravos às lutas pela independência do Haiti
em 1804, [passando] pelos combates pela abolição do tráfico, pelas desco-
lonizações africanas e pelas lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos”
(MBEMBE, 2018, p. 14). De um modo mais geral, a segunda escrita é a
consciência negra do negro, isto é, “gesto de autodeterminação, modo de
presença perante si mesmo, olhar interior e utopia crítica”; compreende
uma declaração de identidade que procura fundar um arquivo que restitua
os negros à sua história e dar lugar a uma comunidade forjada a partir de
restos dispersos por todos os cantos do mundo. A importância desta cons-
ciência negra está na possibilidade de escrever uma história que reabra
para os descendentes de escravos a possibilidade de voltarem a ser agentes
da história propriamente dita e da participação plena e integral na história
empírica da liberdade (MBEMBE, 2018, p. 62-65).
Atualmente, na produção dos livros didáticos, as imagens subser-
vientes e normalizadas dos negros vão, cada vez mais, perdendo espaço,
dando lugar a imagens afirmativas; porém, muitas vezes são limitadas por
novos estereótipos, que apenas reforçam lugares-comuns, insistindo na
ideia de que existem lugares próprios: a imagem do desporto, a da riqueza
ou a da cultura pop; imagens que, em última análise, apagam a violência
presente nas relações inter-raciais11, perpetuando-as sob formas renovadas.
11Citando Nilma Gomes (2005), Liliane Santos afirma que “essa relação bastante frequente com trabalhos e
alguns esportes está ligada à ideia de que o negro possui força física e agilidade, necessárias para sua realiza-
ção. Esse discurso minimiza a sua competência para realizar atividades que requerem maiores habilidades
e conhecimento aprimorado para a sua realização. (SOUSA, 2016, p. 58). Tânia Pacífico e Rozana Teixeira

164
Por outro lado, a autoria das imagens e dos textos dos livros di-
dáticos ainda não pertence, majoritariamente, a artistas e intelectuais
negros12. Pelo contrário, o que encontramos é a reprodução, reiterada
em conteúdo e limitada em número, de imagens elaboradas por bran-
cos, que ora remetem a épocas distantes, ora aos lugares que parecem
estar reservados aos negros nas nossas sociedades13.
A importância das imagens produzidas por artistas negras con-
temporâneas para uma aproximação à História da África e da Diás-
pora, portanto, se justifica por várias razões: 1) as imagens que temos
dos negros foram, historicamente, produzidas por outros (brancos e,
sobretudo, homens); 2) a experiência das mulheres foi historicamente
silenciada e ocultada; 3) o desempenho dos negros em áreas conectadas
ao trabalho intelectual é, em geral, negado ou negligenciado.
Assim, as obras das artistas negras contemporâneas podem vir a
permitir, por um lado, reconhecer a presença da mulher negra no con-
apresentam a mesma conclusão: “Os espaços sociais permitidos para o sucesso da população negra, que
são as artes, música e esporte são enfatizados. Aos homens negros foi dado o direito de ocupar a posição
de jogador de futebol, com altos salários, pela desenvoltura física e habilidade ao desempenhar está função.
Mas a capoeira dificilmente é estudada com maior aprofundamento teórico, sendo por vezes folclorizada.”
(PACÍFICO; TEIXEIRA, 2014, p. 18).
12Em um artigo sobre o perfil dos autores dos livros didáticos, Maria Aparecida Castro e Antonieta Miguel
trazem uma reflexão importante no que toca ao número de autores negros presentes na concepção dos
textos para os conteúdos da história e cultura dos povos africanos, de quatro coleções de manuais do Ensino
Fundamental: “Acredita-se que um livro que pretende valorizar a diversidade, deve primar em trazê-la no
seu processo de composição. Nesse sentido, outro aspeto que precisa passar pelo crivo da análise diz respeito
à plêiade de autores, cujas vozes são ecoadas nesses artefatos culturais. Identificar o fenótipo dos autores
dos textos literários inseridos e ou sugeridos nos livros didáticos analisados, pode contribuir para ampliar a
percepção sobre as razões da negligência na inserção da literatura negra neles.” (CASTRO; MIGUEL, 2019,
p. 212). Por outro lado, é digno de nota a “quase completa exclusão de autores pertencentes a regiões con-
sideradas subdesenvolvidas, em particular a África”, bem como “um padrão na escolha dos lugares de onde
se originam os autores com textos sugeridos ou inseridos nos livros. Portanto, configura-se mais como uma
operacionalização do racismo geográfico e particularmente sutil a se manifestar [...] “que pode configurar
uma ação de invisibilização de autores negros nos livros didáticos para além de uma simples predisposição
do mercado que não dar voz à alteridade. (CASTRO; MIGUEL, 2019, p. 214-216)
13Como afirma Fernanda Françoso: “Em alguns materiais didáticos ainda permanecem representações este-
reotipadas e reduzidas sobre este grupo social [as mulheres negras]. Algumas imagens presentes nos mate-
riais foram utilizadas para apresentar e ilustrar o tema, sem questionamentos e reflexões. [...] A seleção das
imagens que compõem os materiais didáticos é afetada por questões mercadológicas, onde em grande parte
das vezes, são selecionadas aquelas que foram produzidas há mais de cem anos, uma vez que já podem ser
utilizadas pelas editoras de maneira gratuita. É importante salientar que os referidos materiais apresentam
imagens mais recentes, mas em número reduzido. Muitas delas não são escolhas dos autores e não estão ali
por uma convicção histórica. Muitas vezes, os autores não usam determinadas imagens que poderiam ser
interessantes, porque nem todas são de domínio público”. (FRANÇOSO, 2017, p.164)

165
texto artístico contemporâneo, e por outro, colocar em causa a prolife-
ração e repetição de uma visão do mundo que excluí as mulheres – e,
muito especialmente, as mulheres negras. As suas obras, com efeito,
respondem à necessidade de desconstruir essas imagens hegemônicas
herdadas, que continuam a reproduzir-se até hoje, sob a forma redutora
do estereótipo14. Nesse sentido, a nossa proposta visa somar, ao traba-
lho historiográfico, o estudo de algumas obras produzidas por mulheres
negras que contestam, desafiam e desconstroem as representações do-
minantes, e redutoras, da diversidade feminina negra.
De um modo geral, as imagens produzidas por artistas ne-
gras abrem uma perspetiva imponderável que relança a questão da
identidade negra e problematiza as figuras de identificação propostas,
ora pela ciência colonial e suas continuações, ora pelo mercado e a
propaganda. Referimo-nos, por um lado, a artistas que 1) se afirmam
cada vez mais em espaços que tradicionalmente segregaram, e ainda
segregam, as mulheres; 2) produzem imagem problemáticas, que não
se reduzem à mera representação de um ideal identitário; 3) exigem a
colaboração ativa daqueles a quem as imagens estão dirigidas para ga-
nhar sentido e valor; 4) abrem autênticos horizontes de reflexão sobre
a identidade negra, a emancipação etc.
Em resumo, acreditamos que a experiência a partir das suas
obras permite colocar em variação as imagens normalizadas, dando lu-
gar a uma segunda escrita das mulheres negras e pelas mulheres negras.
Vejamos então como as imagens que as mulheres negras propõem da

14O estudo feito por Fernanda Françoso, em 2017, sobre os lugares que as mulheres negras ocupavam nos
materiais didáticos de História didáticos da SEE/SP e do PNLD, conclui que, apesar de registrado “um per-
ceptível avanço [n]o modo como os livros focalizam a história das mulheres negras, se comparados a livros
didáticos mais antigos [...] “Tradicionalmente e em acordo com o próprio andamento teórico historiográfico
e curricular, as mulheres foram mencionadas de maneira reduzida em tais materiais. No caso das mulheres
negras, temos a mesma situação demarcada por especificidades raciais, étnicas e de gênero. Elas são mi-
nimamente aparentes em relação à presença do homem negro e ambos em relação às mulheres brancas e
aos homens brancos, seguindo esta ordem no destaque dado. Na maior parte das vezes, quando se fizeram
presentes, foram representadas, notadamente, em condições subalternas e/ou como vítimas, ocultando a
história de suas ações e participação na vida social brasileira.” (FRANÇOSO, 2017, p.166, 160)

166
experiência negra, mas também da experiência específica das mulhe-
res negras, desconstroem ou deslocam as representações que, historica-
mente, herdamos da tradição. Imagens plurais e singulares que, ao por
em causa o cânone, abrem a uma visão do negro, e sobretudo, das mu-
lheres negras, como seres plenos, livres, abertos ao mundo e à história.

ROSANA PAULINO: A LUZ E A SOMBRA

Em 2018, Rosana Paulino dizia que, ao pensar como artista, ti-


nha sempre uma questão primeira, um “nó na garganta”, feito de coisas
não ditas, coisas que não se discutem no Brasil como gênero e identi-
dade negra (PAULINO, 2018, p. 150). Demasiadas representações de
negros feitas por brancos, demasiadas representações de mulheres feitas
por homens, sufocam qualquer um, pela clausura que impõem. Mas isso
não a impediu nunca de expressar-se. Desde 1990 que não parou de
tecer, costurar, esculpir e pintar imagens singulares que reclamam uma
forma alternativa de aparecer e manifestar-se como negra, como mu-
lher, como artista. Familiares, estas imagens são, contudo, inquietantes,
porque procuram dar visibilidade a experiências silenciadas, que ainda
hoje exigem justiça.
Costurar, tal como bordar, é um procedimento familiar para as
artistas do século 20, e também para boa parte das mulheres, mas para
Rosana Paulino, é mais que isso: é uma ferramenta para unir pedaços
que se encontram desmembrados – e nesse sentido é algo violento, pois
o que os separou provém de uma agressão. A sua costura comporta for-
mas diversas: oculta bocas, prende movimentos, mas também cria cara-
paças, e origina o mundo. Por vezes, inclusive, a costura deixa a superfí-
cie dos tecidos e ganha o espaço, como na obra Ainda a lamentar, onde
uma mulher, enlaçada por cordas que a sujeitam pela cintura, parece
prestes a quebrar-se pelo meio. Estas linhas, ainda que continuem a jun-

167
tar duas partes, não as unem, pois a tensão que armam sugere uma ru-
tura, ainda não consumada, porém iminente. Esta mulher, que caminha
presa aos objetos, ela arrasta-os, ou ela foge deles? As cordas, ajudam a
união ou impedem a separação? Ela deseja ambas as situações, por isso
está presa pela metade do seu corpo? Ela pode abdicar de uma metade
em prol da outra e ainda assim sobreviver inteira? Ela pode viver ampu-
tada, como amputados já estão os braços? Como num pesadelo, senti-
mos vívida a dificuldade da caminhada que se empreende para fugir de
algo, que não sabemos bem o que é, enquanto lutamos com um peso que
aumenta e que nos faz afundar. No final, nada se revela – lutamos, não
perdemos, contudo, não saímos do lugar.
A representação das mulheres negras e a sua desconstrução e
ressignificação pelas imagens atravessam toda a obra de Paulino. Ainda
que não se reconheça como tal quando instada a inscrever-se na par-
ticularidade de ser artista mulher e negra, Paulino tece com a sua arte
uma visão particular das mulheres negras, em imagens que se contra-
põem às representações historicamente dominantes.
Podemos identificar, nas suas obras, o modo em que, parale-
lamente ao avanço dos europeus em África, foi construída uma nar-
rativa infame, ao mesmo tempo imagética e discursiva. Houve um
momento em que a cor negra passou a ser relacionada com o mal, a
tragédia e o perverso. Por outro lado, a associação destas caracterís-
ticas à cor da pele projetou sobre a pessoa negra uma condição de
inferioridade que lhe retirava a sua dignidade humana, tornando-a
um ser privado de toda a forma de inteligibilidade. Estavam funda-
das as bases para a discriminação. A fantasia da hierarquia das raças
atribuiu ao branco a legitimidade para impor ao negro o lugar da
servidão. Séculos depois, quando a escravidão foi finalmente abo-
lida no Brasil, as imagens da segregação estavam já profundamente
enraizadas no imaginário e nas práticas, e os danos por elas gerados

168
se revelariam duradouros. Foi assim que homens e mulheres negras,
uma vez livres, nem por isso deixaram de carregar o estigma visível
da subalternidade, brutalmente inscrito na sua pele.
Numa sociedade hostil à sua presença fora das senzalas, estas
pessoas antes escravizadas se tornaram peças sem função, como vestí-
gios obsoletos e incompreensíveis de uma ordem desmoralizada. Como
um legado cruel, viam as suas existências negadas, e, apesar do fim for-
mal do sistema escravista, continuavam (e continuam a enfrentar hoje)
um desprezo que implica a renovação diária, permanente, sem fim à
vista, dessa violência original. Nessa medida, parece não haver espaço
para outra existência possível, que não seja aquela que as representações
consolidaram ao longo do tempo, aquela que assignava e continua a de-
terminar um lugar servil para o negro.
Outra violência associada à negligência com que se encaram as
demandas por uma existência plena da pessoa negra é aquela que, por
outro lado, consolida a posição favorecida da população branca, uma
outra face desta recuperação permanentemente do imaginário colonial
nas relações sociais. Os privilégios da população branca são evidentes.
Neste cenário, a existência da população negra afigura-se, nas palavras
de Paulino, a uma sombra, a uma falta de nitidez das formas, a tudo
aquilo que não é visto, não é notado, que não chegamos sequer a ter em
conta (PAULINO, 2018, p. 151). É uma não-existência, é a invisibilidade
de um corpo excessivo e desnecessário. Duzentos anos não foram sufi-
cientes para que o Estado brasileiro adotasse medidas que assegurassem
à sua população negra uma inclusão social total e definitiva. Como pode
ser que o racismo ainda seja a matriz das relações sociais de um país de
duzentos milhões de pessoas?
O fato é que, à mercê do excesso ou da força das representa-
ções que temos do negro e que compõem o onipresente arquivo co-

169
lonial15, a informação que retiramos das pessoas que vemos, aquilo
que nos chega daquelas pessoas nessas imagens é escasso, simplifica
abusivamente quem está representado. E constatamos, como Pauli-
no, que fora dessas representações, não conhecemos nada daquelas
pessoas (PAULINO, 2019, p. 25).
Assaltada por estas questões, Paulino procura uma forma para
entender a sua própria contribuição à arte. Isto porque, para Paulino,
a arte é uma manifestação das suas inquietações (PAULINO, 2017,
p. 233). Desde que começou a sua carreira tem vindo a pesquisar no
sentido de levantar rastros, de destapar qualquer vestígio que abra
a existência dessas imagens a algo distinto. É por isso que recorre à
presença das sombras nos seus trabalhos, para se referir a essa grande
perturbação que a acompanha sempre e, como não podia deixar de
ser, se reflete no seu trabalho: é assim quando tenta entender a razão
pela qual a população negra não é vista como sendo composta por
pessoas, mas por sombras de pessoas.
Uma obra do século 19, de Agostino Brunias, pode servir para
entendermos esta diferença no tratamento das imagens; nela, os indiví-
duos negros retratados se encontram imersos nas sombras, por oposição
às figuras centrais, brancas, banhadas pela luz. Em Um mercado de linho16,
luz e sombras determinam o lugar de cada um: ao centro, duas mulheres
brancas, vestidas de branco, parecem comentar sobre os têxteis expos-
tos; ao redor, pessoas negras estão entregues às tarefas mais variadas; ao
fundo, dois rapazes lutam, observados pelos demais. O nosso olhar é cap-
turado pelas figuras das duas mulheres brancas, que condensam toda a

15Nas palavras de Paulino: “Essas imagens do século 19 continuam nos afetando; toda essa produção das
fotografias, pinturas continua moldando quem nós somos. [...] O campo da imagem é poderoso, e estamos
perdendo para essa ingenuidade de que a imagem não possui poder. A imagem possuiu e muito, elas nos
moldam.” (PAULINO, 2019, p. 38).
16De Agostino Brunias, Um mercado de linho com uma barraca de linho e vendedor de legumes nas Índias
ocidentais, c. 1780. Disponível: <https://www.theglobeandmail.com/resizer/ZqZ5L6PZJtsD_pzLPAk8UM-
pGfbM=/1200x0/filters:quality(80)/arc-anglerfish-tgam-prod-tgam.s3.amazonaws.com/public/KBYLUJ-
FR7NH37B5WDUTHJX5264.jpg>. Acesso em: 28 set. 2021.

170
claridade do quadro, e dir-se-ia que delas (da brancura da sua pele e das
suas roupas) emana o brilho que vemos estender-se pelo chão, como um
reflexo dessa poderosa fonte de luz. Por outro lado, nos extremos da tela
(pois entre as duas mulheres brancas e os demais retratados há um amplo
espaço vazio, que os separa), predomina uma penumbra tão escura como
as figuras com que se mistura, e que quase as faz desaparecer17.
De que maneira a obra de Paulino quebra com a exibição des-
sas pessoas negras, que costumam aparecer representadas nas funções
que lhes foram tradicionalmente assignadas? Como as arranca da som-
bra desses lugares onde contribuiu para colocá-las a história da arte?
De fato, as sombras marcam a obra de Rosana Paulino. Em Parede da
memória, as sombras encarnam sob a forma de dezenas de rostos de
homens e mulheres negras, oriundos de pequenos retratos do álbum de
família de Paulino, estampados numa impressão quase translúcida, em
pequenas bolsas como patuás18. Contudo, os olhos destes rostos desva-
necidos na cor e nos contornos são encontrados pelos nossos em algum
momento. O resultado desta experiência dá lugar a um constrangimen-
to inexplicável mas efetivo. Sobre Parede da memória, Paulino diz:
Pensei na imagem que é banalizada, em como a população ne-
gra não é vista; nós não somos vistos, não somos percebidos.
Podemos ignorar um par de olhos sobre você, mas você não
ignora mil e quinhentos pares de olhos. Então estamos aqui,
não seremos mais ignorados, impomo-nos pelo volume. (PAU-

LINO; 2019, p. 17)

Esta obra, que de longe se assemelha a uma grande mancha, só


necessita que ultrapassemos essa primeira impressão e nos acerquemos
para conhece-la melhor; então damo-nos conta das particularidades de
17 O recurso à sombra para representar o negro pode ser encontrado, à semelhança de Brunias, na obra Fes-

ta-ritual escrava em uma plantação de açúcar no Suriname, de Dirk Valkenburg (Países Baixos, 1706-1708),
e Grupo familiar numa paisagem, de Frans Hals (1645-1648).
18“Tecnicamente, iria perder a nitidez. Mas conceitualmente era isso que eu queria, gerar a dúvida de quem
foi essa mulher, de onde ela veio, qual língua ela falava. Não podia ser nítido. Muitas pessoas você trabalha
pelo avesso.” (PAULINO, 2019, p. 24).

171
cada um destes rostos negros, que deixaram as margens para ocupar o
centro da cena, declinando simultaneamente as tarefas às que habitu-
almente encontram-se associados, prescindindo dos lugares e funções
que historicamente lhes foram assignadas, para manifestar-se sem obje-
to, simples retratos, singulares, únicos.
Representações assim ainda são invulgares no mundo da arte
– as coisas continuam sendo difíceis19. A própria Paulino, tendo come-
çado a sua carreira nas artes visuais nos anos 90, apenas teve a sua pri-
meira exposição individual em 200720. Como artista mulher e negra,
sabe que a arte brasileira é excludente e parte de pontos de vista que não
representam a maioria da população (PAULINO, 2018, p. 156).
Nas suas obras, aborda de forma marcante a representação his-
tórica da mulher negra. Numa série de 1997, recorre a uma prática
tradicionalmente associada ao feminino e com uma linha preta so-
bre os rostos impressos de mulheres negras, encerradas em armações
de bordar, fecha olhos e bocas. Em Bastidores, Paulino revê, a partir
de uma ressignificação do próprio material de costura, uma violência
esquecida: entendemos que estas mulheres negras foram, metaforica-
mente, silenciadas pela cozedura grosseira. Não nos faltam imagens
que reproduzam os castigos aplicados aos escravos, muitos deles feitos
para impedir que falassem, mas neste caso, além da imagem explicita
e ilustrativa, o que amplia o significado dessa sutura21 é que agora tapa
a boca de mulheres livres, sobre fotografias recentes. É que, se bem sa-
bemos que essas mulheres não carecem de voz, o certo é que raramen-
te lhes é reconhecida a palavra. E disso não se fala. Mas as imagens de
Paulino falam, sobretudo do desprezo votado àqueles que antes foram

19“Só estar dentro do espaço em que você não deveria estar muitas vezes já é o suficiente para levantar ques-
tionamentos, levantar discussões, e que são absolutamente necessárias num país que nunca se olhou, nunca
se viu, um país que não se enxerga, que trabalha com nichos em que pessoas são colocadas. Só a presença do
corpo no nicho “errado” já traz questionamentos nunca feitos. (PAULINO, 2019, p. 10).
20 Paulino foi, também, a primeira mulher negra com uma retrospectiva na Pinacoteca.
21 Como prefere chamar à costura. (PAULINO, 2018, p. 154).

172
privados da voz, e cuja palavra hoje continua a ser ignorada, como se
o espaço da sua existência fosse reiteradamente sequestrado.
Uma perspectiva desconstrucionista faz-se não só pela enume-
ração simples do que está representado, mas também do que nos dá a
pensar. No caso de Paulino, a representatividade das mulheres negras
no contexto do colonialismo e do patriarcado. O que representam ou
podem chegar representar essas imagens, enquanto elementos resignifi-
cados, sobre o horizonte de emancipação da mulher negra? Da mesma
forma que em Bastidores, em Ama de leite e Babel encontramos imagens
que questionam a situação destas mulheres, e as representações que a
sociedade faz delas, menos no sentido de resolver o seu destino que no
de problematizar o que sabemos e não sabemos, o que dizemos e cala-
mos, o que lembramos e sonhamos.
Ama de leite é uma instalação de 2008. Nos tecidos, novamente
unidos por pontos de linha preta, estão estampadas sombras de antigas
representações de mulheres negras, recuperando formas esquecidas ou
deturpadas de antigas fotografias etnográficas do século 19. Nos marcos
pictóricos da ciência colonial – uma luz que produz sombras –, as mu-
lheres negras sequer são vistas (não verdadeiramente). Ao torná-las lite-
ralmente sombras, paradoxalmente, Rosana Paulino as torna finalmente
visíveis: a silhueta da anciã escravizada montada pela criança branca, a
jovem escravizada despojada das suas roupas, as mães escravizadas que
carregam os seus filhos nas costas. Das sombras a negro, cintas brancas
de tecido ligam o peito das mulheres escravizadas às garrafas. Privadas
da liberdade até na disposição do alimento que produzem para os seus
filhos, estas mulheres são dispostas como sempre, sem nome, sem alu-
são de outra espécie que a da sua função. São amas de leite, cuja força
vital lhes é expropriada para benefício dos que as escravizam.
Em Babel, de 2010, vemos novamente a identificação das mu-
lheres negras como uma sombra. A forma como Paulino sobrepõe estas

173
mulheres, em diversas escalas de negro, põe em destaque algo naturali-
zado, ressaltando os estereótipos que determinam as funções e os luga-
res que estas mulheres deveriam ocupar. Vemos estes estereótipos numa
sucessão de silhuetas de mulheres escravas, faxineiras, prostitutas, sem
rostos. Mas a sombra agora é o objeto, ocupa o centro, é o tema princi-
pal da obra: não é sombra de nada, fora da sombra que constitui em si
mesma. Dispostas desta forma, estas mulheres deixam as margens para
tornar-se um tema em si mesmo: levantam questões, colocam proble-
mas, nos fazem pensar – se dirigem, não apenas à cabeça, mas também,
e de forma direta, ao coração.

ELLEN GALLAGHER: A BELEZA E A CRÍTICA

Ellen Gallagher nasceu em Providence, nos EUA, em 1965, e,


segundo a própria, era criança quando tomou consciência da sua cor,
de ter uma cor que a determinava. Desde 1996 que expõe individual-
mente. Pouco antes de ser reconhecida como artista, aos trinta anos,
trabalhava como pescadora e dedicava-se a enfrentar o mar navegan-
do orientada pelas estrelas (MCGEE, 1996). Hoje, vem traçando o seu
itinerário na arte, entre a pintura e a multimídia, por caminhos mais
sinuosos: mergulha profundamente nas raízes históricas do racismo
norte-americano, e trás à superfície os estereótipos comumente atri-
buídos ao negro pela cultura popular.
A obra de Gallagher é uma forma de repetir estereótipos, e re-
petindo-os, revelar o absurdo destas representações. Para isso, faz uso
recorrente das formas com que a comédia do Minstrel se apoderou da
imagem do negro22. Nos rostos transformados pela “cara-preta”, usada
22O Minstrel foi um espetáculo teatral popular nos EUA, com origem em 1830 e que se consagrou após
o período da Guerra Civil, em 1830, tendo decaído de popularidade gradualmente até se extinguir com a
emergência dos movimentos antirracistas. Era composto por situações cômicas, protagonizadas por artistas
brancos com recurso ao rosto pintado de preto, que exageravam os seus rasgos faciais e ridicularizavam as
suas origens e condições de vida. (BOSKIN, 1986, p.198, 199).

174
pelos atores brancos, olhos e bocas eram ressaltados com tinta branca,
para provocar o riso. Ellen Gallagher constrói as suas obras a partir des-
sa caricatura grotesca, que resultava ao mesmo tempo redutora e ofen-
siva aos afro-americanos.
Anfitrião, de 1996, é uma obra de Gallagher onde essa repetição
assume um papel singular. Trata-se de uma tela de grandes dimensões,
que combina formas ovais e alongadas, semelhantes a bananas. O objeto
nesta e em outras obras de Gallagher remete para os olhos espantados e os
esgares das bocas desses comediantes, recortados de antigas fotografias.
Ao mesmo tempo, se tomamos distância e observamos a pin-
tura como um todo, vemos uma abstração, algo semelhante a uma
tapeçaria (uma grande mancha amarela, como dizia Paulino referin-
do-se à sua Parede da Memória), que inclusive nos recorda algumas
obras de referência da pintura contemporânea ocidental. Pensamos
em Paul Klee e nas formas geométricas que fazia derivar em composi-
ções abstratas, como é o caso de Estradas e Caminhos; ou mesmo nas
cores ocre e dourado e nas composições em degraus de Gustave Klimt,
como o pormenor do vestido em Retrato de Adele Bloch-Bauer. Isto
significa que, para aproximar o espectador da crítica, Gallagher se vale
da beleza, propondo uma pintura perante a qual é fácil deter-se, sem
que para isso seja necessário estar engajado.
O mesmo se pode dizer, também, de Sem Título, de 2000,
onde pequenos círculos de cores pastel sobre a tela dão origem a um
misterioso padrão minimalista que prende o olhar. Porque a aproxi-
mação aos problemas levantados pela representação dos negros não
é simples, porque pressupõe um incómodo e pode ser constrange-
dora, tanto para negros como para brancos, Gallagher coloca todos
os recursos da pintura contemporânea como pontes para conduzir a
esse momento. Do mesmo modo procede Paulino, cuja Parede faci-
lita a aproximação à obra, para depois derrubar a simples aparência

175
da beleza, dando lugar ao encontro com o que compõe essa mancha,
que mais não é que milhares de olhos - uma vez capturados, não te-
mos como não reconhecer aqueles rostos23.
Os monumentos da cultura, como dizia Walter Benjamin, foram
sempre formas de justificar e ocultar a barbárie. Invertendo esse fun-
cionamento tradicional como Rosana Paulino, Ellen Gallagher utiliza
os monumentos da cultura para revelar e denunciar a barbárie. Deste
modo, o lúdico e o visual servem de conduto para o questionamento
e a crítica: em Anfitrião, pequenos símbolos como olhos e bocas repe-
tem-se desordenados, desagregando-se das formas iniciais dos rostos
distorcidos, para em seguida restarem somente os olhos, que passam a
dominar a tela e se alternam em padrões maiores e menores, uma teia
exaltada que conduz o nosso olhar numa torrente que desagua próxima
do chão. Na base da tela, por fim, nada: as pequenas formas desapare-
cem, a pintura aniquilou o estereótipo, não restando nenhuma imagem
minimamente identificável, a não ser nas linhas do papel que serve de
suporte à obra. Nesse sentido, como afirma Gallagher, experimentamos
a transformação de algo sem importância em uma coisa muito impor-
tante (GROSENICK, 2002, p. 146).
Gallagher vai da representação redutora e estereotipada à nega-
ção da representação. No caso de Paulino, a sua obra parte da sombra
(da não-representação) em direção a uma representação mais adequa-
da, colocando a pintura ao serviço da ressignificação da imagem das
mulheres negras. Gallagher, por outro lado, amplia o problema: nega
nas suas telas qualquer valor à representação – do negro, assim como
de qualquer pessoa, não é possível representação alguma sem redução –
nem mesmo por meio da pintura. Ninguém merece ser reduzido a uma
representação, e quiçá por isso Gallagher escolhe a abstração.
23Na pintura Sem Título (1999) de Ellen Gallagher, o que se vê é já algo diferente: uma mancha de borracha
derretida sugere a silhueta de um corpo e de um rosto negros. Esta obra encontra-se assim diretamente in-
dexada à representação do negro, esboçado no borrão preto de borracha, como algo que se dilui ou deforma.
Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/38703>. Acesso em: 29 set. 2021.

176
LUBAINA HIMID: O BANAL E O EXTRAORDINÁRIO

Lubaina Himid, nascida em 1954, no Zanzibar, relata que o


fascínio pelas cores e padrões presentes nos tecidos trabalhados pela
mãe, fizeram-na decidir-se por uma carreira nas artes (BISWAS,
2019). Não tardou a ser confrontada com a hostilidade que suscitava
a sua presença nas galerias e recorda-se do dia em que lhe disseram
que pessoas negras não faziam arte24. Mais tarde, como curadora,
procuraria lutar contra a marginalização das artistas negras, privile-
giando o seu trabalho. Como artista, por outro lado, explora as pos-
sibilidades de operar mudanças que contribuam para a construção
de uma sociedade inclusiva, que reconheça as contribuições cultu-
rais da diáspora negra (HIMID, 2020).
A sua obra suscita uma aproximação às questões relacionadas
com o poder e o controlo intrínsecos ao ato de representar o negro.
Himid identifica, para em seguida denunciar, a relação estabelecida
entre aquele que, ao deter o poder de representar o outro, captura a
sua imagem e associa-a sistematicamente a ideias degradantes e ofen-
sivas, despojando-o da sua individualidade.
Para quebrar esse dispositivo, por um lado, de produção e
reprodução (tanto pela arte como pela mídia e o cinema), Himid
oferece, através da pintura, o que está ao seu alcance – a transfi-
guração dessas imagens, redefinindo o seu sentido e abrindo-as ao
que permanecia ocultado25. Diz: “Eu não sinto que vá chegar a lugar
24Himid deixa entrever o mesmo tom de deceção quando se refere ao Prémio Turner de Arte
Contemporânea, que ganhou em 2017, e que classifica como como um evento agridoce, pelo
fato de ter sido não só tardio (aos 62 anos, tornou-se a artista mais velha a recebê-lo) como raro
(foi a primeira e, até hoje, única artista negra contemplada). (HIMID, 2019).
25Para tentar perceber como se encontrava a população negra representada na imprensa britânica (e de que
forma as decisões das redações afetariam negativamente a imagem dos negros), Lubaina Himid recortou
diariamente, e guardou, ao longo de vários anos, as imagens de negros publicadas no jornal britânico The
Guardian. Himid detetou um padrão de disposição da presença do negro no jornal (mais além da ausência
evidente), que fazia com que as imagens das pessoas negras noticiadas (tão pouco numerosas como cerca de
uma por dia), fossem acompanhadas de legendas depreciativas (como o uso de metáforas de caráter animal

177
nenhum tentando pintar o argumento [...] eu preciso pintar a pessoa
de volta à sua dignidade” (ARMITSTEAD, 2018).
Assim, por exemplo, Himid devolve as cabeças e os rostos
a dois atletas negros, cujas fotografias haviam sido publicadas por
um jornal deixando ver apenas os seus corpos, pintando-as sobre re-
produções da página da notícia. Por outro lado, Himid propõe uma
outra forma para as narrativas do Atlântico negro, descobrindo his-
tórias não contadas sobre o tráfico e o colonialismo, protagonizadas
por quem foi sistematicamente ignorado.
Parte do seu projeto de dar a ver a população negra centra-se
na figura feminina. Das mulheres negras presentes na sua obra, Himid
diz que pinta as partes das suas vidas que nunca foram objeto da arte –
as emoções da sua existência cotidiana, trespassada regularmente pelo
trauma e pela tragédia, sem que isso signifique um obstáculo para que
as mulheres, consideradas como um todo, tenham continuado, histori-
camente, a seguir adiante (NEWBOLD, 2018). A importância desse ges-
to na pintura, essencialmente relacionado com as questões levantadas
pela omissão e a sub-representação das mulheres ao longo da história,
está na rutura que exerce sobre as narrativas tradicionais.
Em Seremos, de 1983, Himid preenche o contorno de uma figura
feminina, recortada em um material que se assemelha a madeira. Sobre
o seu corpo robusto, semelhante a um tronco, inscreve-se um rosto alti-
vo e desafiante, alinhado com a determinação dos seus braços cruzados.
Sobre o tecido que compõe a saia, estão dispostas fotografias dos princi-
pais protagonistas dos movimentos de libertação, bem como de artistas
para os atletas), ou de notícias de catástrofes e violência (até mesmo com o recurso à dupla folha que une
a primeira página à página final, e que aberto o jornal, permite a quem está à frente percebe-las como uma
única página), o que concorria para alterar o significado original da imagem publicada. Lubaina Himid faria
mais tarde, em 2018, uma exposição alusiva com o título Coincidência Aleatória (Random Coincidence),
cujo sentido explica: confrontando a direção do The Guardian com a sua suspeita, Himid é desconsiderada
e recebe explicações sobre como a redação funciona, como se confrontando a artista com especificidades
técnicas próprias do jornalismo, fosse possível dissimular o viés racista da imprensa. Diz Himid, sobre a
exposição: “Porque todos continuam a dizer-me que é uma coincidência. É aleatório. E eu tenho a certeza
que acreditam nisso.” (ARMITSTEAD, 2018).

178
da diáspora. Podemos observar igualmente algumas mulheres - e aqui,
mais uma vez, somos obrigados a acercar-nos à obra para poder ver
e tentar reconhecer estes rostos. Mas reconhecemos todos? Quem são
estas mulheres e qual o seu lugar nesta narrativa anti-colonial? Ao lado,
cartas coloridas mostram pratos com comida sobre as quais se pode ler
Não, obrigada. Do outro, oposto, podemos ver um grande leque, objeto
com dupla função (em tempos serviu uma linguagem própria), apoiado
num Espelho de Vénus, de onde parecem sair as palavras de ordem ins-
critas no tecido que envolve a figura. Também a kanga26, peça de vestuá-
rio feminino tradicional, é capaz de assumir diversas funções, inclusive
a da comunicação, e esta mulher ostenta, na sua, uma mensagem clara:
o destino das mulheres somente a elas pertence.
A justaposição de imagens é uma forma de atuar sobre o sen-
tido geral da representação, para provocar uma revisitação dessas
imagens que, retiradas do contexto, encontram-se agora dentro de
um corpo feminino negro. A nova urdidura desses símbolos já não é,
agora, o relato de carácter nacional que evoca os heróis, mas o tecido
que envolve essa mulher e que acaba por carregar-se de um duplo
sentido: são, para Himid, parte da história da industrialização, do
trabalho feminino e da migração, que oferece detalhes sobre a vida
que leva a gente (FIGES, 2019).
Identificar os silêncios, regatá-los e partilhá-los, são movimen-
tos com os quais podemos fazer proliferar as histórias até aqui não es-
cutadas. Daí a importância fundamental da circulação de ideias e de
conhecimento entre as mulheres negras, tão cara a Himid, para quem
o segredo da mudança está em que as mulheres invistam num relacio-
namento mais próximo entre si (SHERLOCK, 2018). Mulheres devem
conversar mais, diz, sobre as suas experiências, as suas estratégias, os er-
ros e as soluções alcançadas, transpor a divisão histórica suscitada pela
26Mensagens que podem incluir desejos de prosperidade, declarações de amor ou preces reli-
giosas, entre outras.

179
concorrência e assumir a potência com a qual se construirá uma saída.
Nas suas palavras: “Contar histórias sobre a experiência negra que se-
jam ao mesmo tempo banais e extraordinárias” (WHITLEY, 2018) .

A HISTÓRIA, O MUNDO, AS IMAGENS

Estas artistas não esgotam, nem muito menos, a extensa lista de


mulheres negras que assumiram por conta e cargo a revisitação e res-
significação da sua imagem e da imagem do negro. As performances de
Priscila Rezende e Valérie Oka, as colagens e instalações de Renée Green
ou as pinturas de Virginia Chihota também permitiriam leituras produ-
tivas da subjetividade das mulheres negras e a crítica das representações
que, em geral, delas oferecem os livros didáticos. Todas, sem dúvida,
nos convidam a um exercício crítico e criativo do olhar e, nesse sentido,
deviam ocupar o espaço das gastas ilustrações escolares. Não apenas
porque assim renovariam a sensibilidade e o ideário que durante anos
pesou sobre as suas imagens, mas também porque, fazendo espaço para
aqueles que até aqui não tiveram voz na história, não apenas dão a ouvir
novas histórias, como toda a história é relançada a partir de novas bases
– mais largas, mais inclusivas, mais igualitárias. Uma história assim não
apenas deve contar a história de todos e todas – deve também ser conta-
da por todos e todas. As imagens coloniais, que muitas vezes ainda são
reproduzidas acriticamente nos livros didáticos, estão redobradas pelo
branqueamento dos autores e ilustradores dos próprios livros.
Numa entrevista de 1998, Kara Walker falava sobre o incô-
modo que sentia ao constatar a presença constante e a consequente
naturalização dos estereótipos racistas e sexistas na vida cotidiana, e
comparava o esforço investido para mudar os comportamentos raciais
à dificuldade de agarrar uma enguia molhada (OBRIST, 1998). O ra-
cismo é sinuoso, não-assumido, e por isso resiste a ser fixado. Assim,

180
quando identificado, tem a capacidade de esvair-se, para depois re-
novar-se em outro lugar. E, como a hidra, regenera as cabeças que
lhe cortamos duplicando-as, lembrando-nos que é preciso mudar de
tática, para que o golpe não seja superficial, para que o corte seja cau-
terizado, destruindo o tecido de que é feito.
Se as imagens subalternas dos negros continuarem a ser repro-
duzidas pelos livros escolares, continuará a perpetuar-se também a na-
turalização dos lugares e das funções que são assinados aos negros na
sociedade. Se, em lugar de sermos educados a partir dessas imagens
redutoras ou gastas fossemos educados a partir das imagens extraor-
dinárias e singulares produzidas por artistas mulheres negras, ver a re-
produção de uma imagem estereotipada ou redutora, na mídia ou na
publicidade, nos chocaria com uma força difícil de imaginar (tal é a
medida em que as imagens estereotipadas nos determinam).
As imagens artísticas, ao contrário das ilustrações, requerem
a colaboração ativa daqueles que as observam, que aceitam o desafio
que estas compreendem. O seu sentido depende das experiências in-
dividuais e coletivas que suscitam. Não ilustram apenas, por exemplo,
o que a mulher negra é ou poderia ser, mas nos convidam a participar
da construção desse devir tornado evidente – porque a mulher negra
não é algo estabelecido ao nível do lugar que ocupa, ou da função
para a qual está vocacionada, ou da capacidade que a sociedade lhe
reconhece. Pelo contrário, estas imagens são imagens da desmistifi-
cação, que apelam à singularidade de cada um para ganhar sentido e
significação. De alguma forma, em cada uma delas ecoa a resistência
à redução ao sistema da representação que Audre Lorde denunciava:
“Porque sou negra, porque sou mulher, porque não sou negra o sufi-
ciente, porque não sou uma fantasia particular de mulher, porque eu
SOU.” (LORDE, 2018, p. 57). Como ela, essas imagens tentam rom-
per o silêncio desde sempre imposto às mulheres negras, duplamente

181
imposto pelo racismo e pelo machismo. Não apenas não se colocam
como representações ou figuras de identificação; elas interrompem o
funcionamento das imagens que circulam. E não apenas abrem uma
margem nas representações dominantes como são a manifestação efe-
tiva de um avanço significativo na luta por lugares até aqui negados às
mulheres, aos negros, e em maior medida, às mulheres negras.
Estas e outras mulheres assumem assim, por conta própria, as
interrogações que Mbembe afirma darem consistência à consciência
negra do negro: “Quem sou eu?”; “Serei eu, de verdade, quem dizem
que sou? Será verdade que não sou nada além disto - minha aparência,
aquilo que se diz e se vê de mim?”; “Qual o meu verdadeiro estado civil
e histórico?” (MBEMBE, 2018, p. 62).
O trabalho da segunda escrita é algo fundamental e indeter-
minado, que não diz tanto ao ser negro como ao devir negro, uma
vez que não se trata apenas de alargar o leque de figuras alterna-
tivas para a identificação, mas de dar lugar a uma experiência não
determinada da existência como projeto subjetivo e abertura aos
outros. As obras de todas estas artistas nos colocam a todos, negros
ou não, homens ou mulheres, perante a experiência de ser barrado
por proibições e vetos e, ao mesmo tempo, encarar a tarefa de viver
seguindo a própria razão, guiando-se pela própria sensibilidade,
negando o mundo para alargá-lo.
As suas imagens nos provocam e convidam a tomar distância
de todo e qualquer estereotipo negativo ou positivo, e encarar a huma-
nidade como ideal que, mesmo colocada em causa por tantas violên-
cias, desigualdades e injustiças, sobrevive na imaginação dessas artistas
e, através delas, em todos nós - isto é, como um convite a ver e rever o
mundo em que vivemos, a história que fazemos, as vidas que levamos. E
é um convite estendido não apenas aos negros, mas a todos aqueles com
um mínimo de boa vontade para tornar este mundo menos desigual.

182
A multiplicidade das experiências negras condensadas nestas
imagens subvertem as relações de saber e de poder, e obrigam a rever o
que até aqui se encontrava subordinado à estrutura de sentido herdei-
ra da ciência colonial. Uma multiplicidade incomensurável de corpos e
ideias, rostos e vozes, gestos e palavras necessita ser então reorganizada,
repensada, resignificada. Não se trata, portanto, apenas de uma pers-
pectiva feminista negra sobre a história. Trata-se de uma perspectiva
aberta pelas mulheres negras na luta pela emancipação que força a re-
fazer a história como um todo. E isso a partir de imagens singelas nas
quais se espreitam os contornos de um outro mundo possível.

REFERÊNCIAS

Fontes
ADICHIE, Chimamanda. Chimamanda Adichie: o perigo de uma única história. Palestra da
Conferência Anual – TED Global 2009 – 21 a 24 de jul. 2009. Oxford, Reino Unido. Trad. Erika
Barbosa. Revisão Belucio Haibara. Portal Geledés, 16 de fevereiro de 2010. Disponível em: <
https://www.geledes.org.br/chimamanda-adichie-o-perigo-de-uma-unica-historia/>. Acesso
em: 29 set. 2021.

BRUNIAS, Agostino. Um mercado de linho com uma barraca de linho e vendedor de legumes
nas Índias ocidentais, c. 1780. The Globe and mail. Disponível: <https://www.theglobeandmail.
com/resizer/ZqZ5L6PZJtsD_pzLPAk8UMpGfbM=/1200x0/filters:quality(80)/arc-anglerfish-
tgam-prod-tgam.s3.amazonaws.com/public/KBYLUJFR7NH37B5WDUTHJX5264.jpg>.
Acesso em: 28 set. 2021.

BRASIL. Ministério da Educação. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. D.O.U. de 10 de janeiro de


2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 24 de set. 2021.

GALLAGHER Ellen. Anfitrião, Host (1996). Disponível em: <https://wordsinspace.net/shan-


non-archive-2017/wpcontent/uploads/2013/06/97.6_01c.jpg>. Acesso em: 29 set. 2021.

183
_______. Untitled (1999). Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/38703>.
Acesso em: 29 set. 2021.

HALS, Frans. Grupo familiar numa paisagem (1645-1648). Disponível em: <http://www.
spainisculture.com/export/sites/cultura/multimedia/galerias/obras_excelencia/grupo_
familiar_hals_thyssen_mu179x1934.8x.jpg_1306973099.jpg>. Acesso em: 29 set. 2021.

HIMID, Lubaina. We Will Be - Black Woman Time Now (1983). Disponível em: <https://i2.wp.
com/lubainahimid.uk/wp-content/uploads/LH_We_Will_Be_-_Black_Woman_Time_Now_-_
Battersea_arts_centre_1983_ed_2.303103145_large.jpg?w=750>. Acesso em: 29 set. 2021.

KLEE, Paul. Estradas e Caminhos, Hauptweg und Nebenwege (1929). Disponível em: <https://
www.wikiart.org/en/paul-klee/highway-and-byways-1929>. Acesso em: 29 set. 2021.

KLIMT, Gustave. Retrato de Adele Bloch-Bauer, Adele Bloch-Bauer I, (1907). Disponível em:
<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/84/Gustav_Klimt_046.jpg>. Acesso em:
29 set. 2021.

PAULINO, Rosana. Ainda a lamentar. Blog da Criticamarginal, São Paulo, 22 de outrubro de


2011. Disponível:<https://criticamarginal.files.wordpress.com/2011/10/foto0366.jpg?w=1524>.
Acesso em: 28 de set. 2021.

_______. Ama de leite (2008). Disponível em: <http://www.rosanapaulino.com.br/blog/wp-


content/uploads/2018/09/ama-de-leite-visao-frontal-da-obra-2007.jpg>. Acesso em: 29 set.
2021.

_______. Babel (2010). Disponível em: <https://www.geledes.org.br/wpcontent/


uploads/2016/09/babel.jpg>. Acesso em: 29 set. 2021.

_______. Bastidores (1997). Disponível em: <https://static.todamateria.com.br/upload/ba/st/


bastidores-cke.jpg>. Acesso em: 29 set. 2021.

_______. Parede da Memória (1994-2015). Disponível em: <https://www.buala.org/sites/


default/files/imagecache/full/2017/10/parede.jpg>. Acesso em: 29 set. 2021.

VALKENBURG, Dirk. Festa-ritual escrava em uma plantação de açúcar no Suriname,


1706-1708. Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/be/
Dirk_Valkenburg_-_Ritual_Slave_Party_on_a_Sugar_Plantation_in_Surinam_-_KMS376_-_
Statens_Museum_for_Kunst.jpg>. Acesso em: 29 set. 2021.

184
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, J. Z. A negação do Brasil - o negro na telenovela brasileira. São Paulo: Editora Senac, 2000.

ARMITSTEAD, Claire. You keep telling me it's a coincidence: Lubaina Himid's week at
The Guardian. The Guardian, 3 de dezembro de 2018. https://www.theguardian.com/
artanddesign/2018/dec/03/lubaina-himid-guardian. Acesso em: set. 2019.

BALDWIN, James. How to cool it. Esquire Magazine, agosto de 2017. Originalmente publicada
em Julho de 1968. Disponível em: <https://www.esquire.com/news-politics/a23960/james-
baldwin-cool-it/>. Acesso em: dez. 2019.

________. If black english isn’t a language, then tell me what is?. New York Times, julho
de 1979. Disponível em: <https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/98/03/29/
specials/baldwin-english.html?mcubz=1>. Acesso em: dez. 2019.

BENNETT, Sophia. Getting to know Lubaina Himid - Tate Art and Artists- (26 Mar 2019).
Disponível em: <https://www.tate.org.uk/art/artists/lubaina-himid-2356/getting-know-
lubaina-himid.>. Acesso em: setembro 2019.

BEVILACQUA, Juliana Ribeiro da Silva et al. Rosana Paulino: a costura da memória. São
Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018.

BISWAS, Allie. Lubaina Himid – Interview: ‘It is my intention to create artworks that examine
ideas about how to invent new rules by which to live’. Studio International, 25 de junho de 2019.
Disponível em: <https://www.studiointernational.com/index.php/lubaina-himid-interview-it-
is-my-intention-to-create-artworks-that-examine-ideas-new-rules-by-which-to-live>. Acesso
em: set. 2019.

BITTENCOURT, Circe Maria. Livros e materiais didáticos de História. In:_____. Ensino de


História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.

BOSKIN, Joseph. Sambo: The rise and demise of an american jester. Nova York: Oxford
University Press:1986.

CASTRO, Maria Aparecida Dias; MIGUEL, Antonieta. Indícios de uma falta: sutilezas na
ausência negra nos livros didáticos. ODEERE, v. 4, n. 7, p. 199-220, jun. 2019. Disponível em:
<http://periodicos2.uesb.br/index.php/odeere/article/view/5099>. Acesso em: dez. 2019.

CAVALLEIRO, Eliane. Introdução. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal
nº 10.639/03 / Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília:
Ministério da Educação, 2005.

CERQUEIRA, Daniel et al (Orgs.). Atlas da violência de 2018. Brasília: IPEM: FBSP, 2018.

185
FIGES, Lydia. Lubaina Himid: celebrating the history of black creativity. Disponível em:
<https://artuk.org/discover/stories/lubaina-himid-celebrating-the-history-of-black-creativity>.
Acesso em: set. 2019.

FONSECA, Marcus Vinícius; ROCHA, Laura Rodrigues da. O processo de institucionalização


da lei nº. 10.639/2003 na rede federal de educação profissional, científica e tecnológica. Educ.
rev., Belo Horizonte, v. 35, p. 1-19, out.-abr. 2019.

FRANÇOSO, Fernanda Gomes. Os lugares de mulheres negras em materiais didáticos


de História da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. 2017. 184 f. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual
Paulista, Presidente Prudente, 2017.

GARCIA, Cynthia. Artist of the Suture: How Rosana Paulino became the first woman of color
with a retrospective at the Pinacoteca. NewCityBrasil - Visual Art Culture of São Paulo and
Beyond, 15 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.newcitybrazil.com/2019/01/15/
artist-of-the-suture-how-rosana-paulino-became-the-first-woman-of-color-with-a-
retrospective-at-the-pinacoteca/>. Acesso em: jun. 2019.

GROSENICK, Uta (Org.). Mulheres artistas nos séculos XX e XXI. Koln: Lisboa: Taschen,
2002.

HIMID, Lubaina. Lubaina MBE. Disponível em: <https://lubainahimid.uk/about/>. Acesso em:


set. 2019.

_______. Turner Prize: Lubaina Himid told 'black people don't make art'. BBC News, 2 de
junho de 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/entertainment-arts-48485172.>
Acesso em: Set. 2019.

LORDE, Audre. Olho no olho: Mulheres negras, ódio e raiva. Trad. Stephanie Borges. Serrote,
São Paulo, n. 29, p. 48-83, jul. 2018.

MARCUSSI, Alexandre Almeida. A raça como fantasma no século XXI. AbeÁfrica: Revista da
Associação Brasileira de Estudos Africanos. Rio de Janeiro, v.01, n.01, p. 181-186, out. 2018/mar. 2019.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.

NEWBOLD, Alice. Lubaina Himid: "I am painting parts of black women's lives that nobody
paints". Vogue, 6 de março de 2018. Disponível: <https://www.vogue.co.uk/article/lubaina-
himid-interview>. Acesso em: set. 2018.

NIANE. Djibril Tamsir. Introdução. In: ______ (Org.) História geral da África: África do
século XII ao XVI. Brasília: UNESCO, p. 15, 2010 (1984). v. 4.

186
OBRIST, Hans Ulrich. All cut from black paper, by the able hand of Kara Elisabeth Walker... Art
Orbit. n. 4, 1998. Disponível em: <http://www.artnode.se/artorbit/issue4/i_walker/i_walker.
html>. Acesso em: Jun. 2019.

OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares: Representações e


imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, 2003.

________. A história africana nas escolas brasileiras: Entre o prescrito e o vivido, da legislação
educacional aos olhares dos especialistas (1995-2006). HISTÓRIA, São Paulo, v. 28, n. 2, 2009.

PACÍFICO, Tânia Mara; TEIXEIRA, Rozana. Relações entre gênero e raça: negritude e
branquidade em livros didáticos de história, língua portuguesa e educação física. In: X ANPED
SUL, 2014. Anais... Florianópolis: UDESC, 2014, p. 1-22.

PAULINO, Rosana. A propósito da passagem de Rosana Paulino pela Unicamp - entrevista com
a artista. Resgate - Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas, v. 26, n. 2, jul./dez. 2018.

________. Entrevista a Rosana Paulino. Revista do Centro de Pesquisa e Formação do


SESCSP, São Paulo, set. 2017. Entrevista concedida a Revista do Centro de Pesquisa e
Formação. Disponível em: <https://www.sescsp.org.br/files/artigo/0494111c/c343/4429/b5b7/
c902f89bee30.pdf>. Acesso em: jun. 2019.

________. Você não passa por um objeto, por dez anos, sem ser tocada por ele, sem pensar
sobre o que será que tem lá. Arte & Ensaios: Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, n.37, mar. 2019.
Entrevista concedida a Rafa Éis et al.. Disponível em:<https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/
article/view/24597/15027>. Acesso em: jun. 2019.

SHERLOCK, Amy. Women in the arts: Lubaina Himid on the long road to winning the 2017
Turner Prize. Frieze, 17 de setembro de 2018. Disponível em: <https://frieze.com/article/
women-arts-lubaina-himid-long-road-winning-2017-turner-prize>. Acesso em: set. 2019.

SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2004.

SILVA, Humberto de Andrade. Como o negro aparece? Formulações gerais sobre a presença do negro
nos livros didáticos de história do Ensino Médio. História Unicap, Recife, v. 3 , n. 5, jan./jun. 2016.

SOUSA, Liliane Pereira. A representação do negro nos livros didáticos do componente


curricular - História - Fundamental I. Revista de História Bilros. Fortaleza, v. 4, n. 7, p. 36-63,
jul.- dez. 2016.

VEIGA, Lucas. A Psicologia Preta e a saúde mental dos negros no Brasil. Veja Saúde – Blog
Saúde é pop, 25 de novembro de 2019. Entrevista concedida a André Bernardo. Disponível
em:<https://saude.abril.com.br/blog/saude-e-pop/a-psicologia-preta-e-a-saude-mental-dos-
negros-no-brasil/>. Acesso em: jan. 2020.

187
WHITLEY, Zoe. Lubaina Himid: Telling stories of the black experience that are both everyday
and extraordinary is what I’m here to do. ArtBasel, 15 de maio de 2018. Disponível em: <https://
www.artbasel.com/news/lubaina-himid---telling-stories-of-the-black-experience-that-are-
both-everyday-and-extraordinary-is-what-i-m-here-to-do->. Acesso em: set. 2019.

188
A cultura das histórias negras
na busca de uma narração

Francisco das Chagas F. Santiago Júnior1

1 Doutor em História pela UFF. Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação Mestrado
Profissional em Ensino de História.

189
É com alegria que agradeço o convite de Margarida Oliveira e
Juliana Souza para participar deste livro, ainda mais buscando tratar
das “Relações étnico-raciais – ensino e escrita da história”. Os temas
das relações étnico-raciais me chamam a atenção desde que ingressei
no candomblé de tradição congo-angola, em uma Casa de Santo de
Hangolo, conhecido como Oxumaré, na tradição ioruba, e acabei por
engrenar numa pesquisa de doutorado sobre a apropriação dessa reli-
gião de matriz africana no cinema brasileiro. Desde então tenho tenta-
do sensibilizar meu olhar, minha escuta e meu trabalho num processo
que sei que é interminável, uma vez que forte e irrevogável é minha
branquitude compulsória, bem como sem fim são as possibilidades
de escuta das experiências sociais das populações negras brasileiras.
Minhas grandes guias intelectuais têm sido a poesia negra de pessoas
como Oliveira Silveira e a obra de Maria Beatriz Nascimento, além dos
grandes autores negros brasileiros e estrangeiros como William Du
Bois, Aimee Cesaire, Achille Mbembe, Paul Gilroy, Muniz Sodré, Toni
Morrison, Franz Fanon, entre tantos.
A leitura dos textos de Juliana Teixeira Souza, Maria Telvira da
Conceição e Túlio Henrique Pereira, de Carlos Augusto de Araújo, Ze-
naide Schmitz e Susana Guerra tocaram profundamente em questões
pertinentes que me são caros. Contudo, escolhi fazer um comentário
a partir de diagnósticos gerais e encaminhamentos do que uma apre-
ciação das falas em si mesmas. Entendo que os autores não precisam
de minha baliza ou reconhecimento. Trago para o debate algumas im-
pressões que me inquietam e ao mesmo tempo incorporam um pouco
a minha experiência como avaliador do PNLD2. Entendo em especial
que os textos tocaram em pontos fulcrais do processo de interrogação,
de uma perspectiva racial, da historiografia didática em diálogo com a
historiografia acadêmica, considerando duas novas pedras-de-toque, a

2 Trabalhei como parecerista do PNLD em muitos anos seguidos, desde o ano de 2011.

190
historiografia e as artes e histórias negras (as quais explico adiante). Pre-
tendo ao final, acrescentar algo relativo ao espaço escolar.
Estou imaginando meu comentário a partir das perspectivas que
assumidos quando pensamos o aluno como protagonista do aprendiza-
do, em diálogo com a sociedade na elaboração do conhecimento histó-
rico. Isso significa que uma pessoa (o/a/e aluno/a/e) ocupa uma posição
central no aprendizado histórico no qual o LDH é um dos agentes, um
dos suportes, bem como a historiografia acadêmica é outro agente – este
mais ligado aos professores – e as diversas culturas de histórias (ABREU,
2019) mais amplas sendo o terceiro componente deste campo de traba-
lho. A posição do professor neste quadro é sempre a de mediador, como
sugere Paulo Freire – expressão consolidada dos estudos de educação e
de ensino de história, e, que, atualmente, tem tido seus sentidos anga-
riados pelo termo “curador”, expressão de Valdei Araújo Lopes (2017) –
entre as várias narrativas que emergem na historiografia didática, da his-
toriografia acadêmica, mas também das histórias de outras procedências,
elaboradas por comunidades, movimentos sociais e agentes individuais,
como escritores, cineastas e pintores e os próprios alunos.
No que se refere ao tema das relações étnico-raciais, chama aten-
ção a necessidade de pensar a partir das grandezas que foram mobili-
zadas pelas seis autoras e autores. Eu diria que elas são duas: primeiro
uma indagação do papel das imagens nas narrativas dos LDH em suas
dimensões raciais; a segunda, o diálogo entre historiografia acadêmica
e historiografia didática. No primeiro quesito, Telvira Conceição, Túlio
Pereira e Suzana Guerra indagam sobre o uso de imagens nos LDH e to-
das invocam uma perspectiva pan-africanista e pós-colonial. Conceição
e Pereira chamam atenção ao fato de que as narrativas visuais se apre-
sentam também como tradição cristalizada e funcionam como formas de
identificação de “corporeidade, as identidades e às memórias reificadas
de personagens brancos e negros retratados nas histórias” (página 91). As

191
imagens nos LDH funcionam como alegorias de condições raciais, reite-
ram não apenas estereótipos, mas condensam sínteses históricas e são mar-
cadas frequentemente por uma iconografia repetitiva numa dialética entre
logos e ícone. Caso prestemos atenção às inúmeras aparições das aquare-
las de Jean-Baptiste Debret, às pinturas de Pedro Américo, as fotografias
de Martin Luther King, ou as ilustrações de antepassados pré-históricos,
percebemos uma certa iconografia básica didática que tende a funcionar
como sintetizadoras do saber histórico.
No caso específico do livro didático tratando com história bra-
sileira, as imagens são formas de narrar e construir o tempo que fun-
cionam como alegorias da racialidade e negritude que compõe a so-
ciedade brasileira. Neste sentido, Susana Guerra chama atenção a uma
peculiaridade: a maioria das imagens apresentadas pelos LDH, aquelas
que funcionam como “ilustrações”3 e fontes, são de autoria não-negra.
Guerra lança o questionamento da autoria das imagens e dos textos dos
livros didáticos, as quais ainda não pertencem, majoritariamente, aos
sujeitos negros. A autora recorda que ocorre a reprodução reiterada das
“imagens elaboradas por brancos, que ora remetem a épocas distantes,
ora aos lugares que parecem estar reservados aos negros nas nossas so-
ciedades” (página 165). Se Telvira da Conceição e Túlio Pereira questio-
nam as maneiras de alegorizar a historicidade dos negros na historio-
grafia didática, Guerra pede que estes tragam “imagens produzidas por
artistas negras contemporâneas para uma aproximação à História da
África e da Diáspora” (página 165), enfatizando a incorporação de pro-
duções femininas transatlânticas. O confronto dos textos destes autores
evidencia a necessidade de reconhecer (ainda) um problema na forma
como as populações africanas e afro-descendentes são alegorizados e
abrir a historiografia didática para o não-mostrado. Trata-se de temati-
zar a representação e a auto-representação na historiografia didática.
3 No final das contas essa dicotomia ilustração/fonte é uma armadilha conceitual mal resolvido nos estudos
da historiografia didática.

192
Guerra pede pela incorporação dos sujeitos negros em sua pró-
pria autorrepresentação, deslocando o eixo de análise do LDH para a
produção de imagens e discursos do passado usados como ilustrações/
fontes históricas ou como gesto capaz de gerar conhecimento. Em ou-
tras palavras: reconhecer que a imagem é conhecimento na historiografia
didática, e que, ela, por vezes, entra em contraste com o texto histórico
(SANTIAGO JR., 2019); bem como reconhecer que para a compreensão
do LDH, o uso e papel das imagens no ensino de história é fulcral. Isso
nos leva a própria análise da historiografia didática em diferentes níveis.
Dos mais silenciosos (os sujeitos negros não identificados) aos mais ex-
plícitos (as obras e ações de negros identificados), ampliando os hori-
zontes da cultura visual por meio da negritude na produção e na (auto)
representação. Isso revela que estamos lidando com níveis de produção
racial que contempla negros e mulheres negras em condições igualmen-
te subalternas, acrescentando que estas sejam mais agressivas, quando,
em dimensão interseccional, abordamos a mulher negra.
Isso nos leva a segunda pauta desenvolvida pelos autores: a his-
toriografia didática face a historiografia acadêmica. Juliana Teixeira
Souza explora a tão conhecida exigência de atualização da historiogra-
fia didática a partir dos avanços da historiografia acadêmica. A autora
busca “elaborar uma pauta de temas e saberes que podem ser tomados
como referência” (página 19), tanto por produtores de materiais didá-
ticos como por professores do Ensino Básico, entendendo que mais do
que incorporar temas da historiografia acadêmica como fim em si mes-
mo, se “atualiza” para promover a formação cidadã de crianças e jovens
que são majoritariamente afro-indígenas. Souza analisa coleções apro-
vadas no PNLD 2019 e evidencia como estas não só não incorporaram
os temas cadentes produzidos pela historiografia social do trabalho para
o século XIX, como ainda focam nas narrativas da opressão e violências
das ações populares. Ou seja, os livros até abordam estas experiências,

193
mas frequentemente desvalorizam o legado histórico de luta dos traba-
lhadores por direitos sociais, de comunidades por direitos civis e sujei-
tos individuais/coletivos por direitos políticos que se estenderam por
todo o século XIX. Tais temas são mais do que conteúdos substantivos:
Souza demonstra que se trata de tradições de lutas de sujeitos históri-
co afro-indígenas que atuaram na produção de suas experiências e que
permitem dimensionar melhor as lutas atuais por cidadania.
O ponto fulcral a tomar da reflexão de Juliana Souza incide na
compreensão de que nem todos os temas e todas as experiências histó-
ricas que foram catalogadas na historiografia recente precisam migrar
para o espaço escolar. Antes de tudo, importa compreender para serve o
ensino de história na escola, como componente da formação do cidadão.
O aluno que pode ser compreendido como sujeito de direito cuja vida
tem por legado os desejos e ações reais do passado de reinvindicações e
conquistas para além da derrota e da violência narrados nos LDHs sen-
tido. Atualizar seria assim incorporar o que dialoga diretamente com as
demandas do ensino. Trata-se de levar ao LDH e à sala de aula os temas
que dialogam diretamente com as demandas do presente, o que implica,
não apenas, repensar o livro didático ou o ensino na escola, mas a pró-
pria formação de professores historiadores.
Zenaide Schmitz, por sua vez, ajuda a compreender os LDH
como dispositivos “pelos quais são apropriados os saberes produzidos
pela historiografia” (página 119). Ela parte do que chama de história
das representações para abordar como seis coleções, em 3 décadas,
representaram processos históricos: Diáspora Africana, Resistên-
cia, Cotidiano dos Escravizados, Abolição da Escravatura e o Con-
texto Pós-abolição. Pessoalmente chamaria isso de uma história de
conceitos históricos, os quais Zenaide encontra formulados a partir
de 3 matrizes historiográficas. A primeira é a “perspectiva clássica”
da amenidade da escravidão, advinda dos debates do final do século

194
XIX, até a metade do século XX, e, que marcou os ideais modernistas
de mestiçagem e as democracias raciais. A segunda é a “perspectiva
Revisionista”, que refuta a anterior ao realizar a “coisificação do es-
cravo e acento da resistência/heroísmo”. Por fim, a “Perspectiva dos
Escravos como sujeitos de transformações” que corresponde a uma
historiografia renovada dos anos 1980 em diante. Destaque-se, os dois
primeiros se confundem com o que já foi chamado de “pensamento
social brasileiro”, cuja tradição era marcadamente ensaísta; enquanto a
terceira é engendrada essencialmente como historiografia acadêmica,
especialização historiográfica que emergiu do sistema de produção de
pós-graduação dos anos 1980 em diante (GOMES, 2004). Esta é tam-
bém a produção explorada nos estudos da história social do trabalho
para o período imperial, abordados acima por Juliana Teixeira Souza.
As coleções abordadas por Schmitz caem ainda no débito que os
LDH teriam com os avanços propostos. Em coleções recentes ela iden-
tifica ainda os usos de palavras como “Marginalizados, desempregados,
cidadãos de segunda classe, famintos urbanos, ex-escravizados, trabalha-
dores livres, escravos libertos, ex-cativos, trabalhadores muito pobres”
(página 150) que ainda permeiam a caracterização do passado que não
passa para populações afro-brasileiras, uma vez que a manutenção de tais
termos não permite superação dos estereótipos. Ela enfatiza ainda que o
livro didático é etnicamente redutor, pois não reconhece as diferenças
das tradições culturais afrodescendentes e que boa parte da história dos
negros está ligada e associada ainda ao contexto da escravidão.
Carlos Eduardo Araújo chega em conclusão parecida. Mas
este faz um outro acento. Realizando uma mediação entre as tradi-
ções tratadas por Schmitz, mas usando como referência e ponto de
partida os avanços dos movimentos negros, o autor assevera que os
LDH conseguiram incorporar muitas das inovações historiográficas
dos anos 1980 em diante, no que se refere às vivências de sujeitos

195
afro-brasileiros. Ainda que ocupando uma posição de mediação com
a historiografia acadêmica, principalmente, após a Lei 10.639, de 9
de janeiro de 2003, os LDH melhoraram tematicamente no que se re-
fere ao tratamento dos processos históricos até a abolição, mas ainda
estão longe de incorporar o que fora desenvolvido na historiografia
sobre o contexto do pós-abolição.
O que mais me chama atenção na contribuição de Araújo, po-
rém, é outra coisa. Como em Schmitz se percebe a importância do cha-
mado “pensamento social brasileiro” na formulação da síntese da histó-
ria racial brasileira, sobre o qual ainda precisaremos refletir muito sobre
qual o impacto no ensino de história. Ou seja, grande parte da síntese
elaborada nos mitos modernistas (miscigenação, o mito das e raças etc.)
no pensamento social, com a raça como subsumida por outras instân-
cias sociais (classe, cultura, etc..), informa as sínteses históricas contidas
nos LDH e esta síntese é brancocêntrica embora não seja facilmente per-
cebida como racializada. Como chamam atenção Conceição e Pereira,
a branquitude tenta apagar as marcas de sua racialização. Nas partes
finais de seu texto, contudo, Araújo convoca as perspectivas elaboradas
pelo movimento negro brasileiro, bem como sua prática e historiografia
como produtora de outra síntese da história do negro no Brasil ainda
que não aprofunde este tema cadente.
Quero chamar aqui de historiografia negra ou cultura de his-
tória (NICOLAZZI, 2019) – ou cultura de passado (ABREU, 2019) ou
cultura histórica dos movimentos negros – como o conjunto de ver-
sões do passado elaboradas por memorialistas, historiadores, artistas e
intelectuais negros sobre as trajetórias de populações africanas e afro-
descendentes que vão desde ensaios seminais como Por uma história
do homem negro, de Maria Beatriz Nascimento (2007), publicado em
1974, a livros como Mini história do negro no Brasil, de Oliveira Silveira,
de 1976, e, Genocídio do negro Brasileiro, de Abdias do Nascimento, de

196
1978, bem como a denúncia e a campanha do MNU ampla da “Farsa da
Abolição” no decorrer da década de 1980, iniciativas que resultaram em
filmes como Abolição (1987), de Zózimo Bulbul, ou na exposição A Mão
Afro-brasileira de Emanuel Araújo (1987), no Museu de Arte Moderna
de São Paulo, para citar alguns exemplos.
Ressalta-se, portanto, a tensão que se instaura entre essas cultu-
ras históricas: a historiografia tout court e a historiografia negra, a qual,
parece ter ocupado uma posição lateral em relação aos debates com a
historiografia didática em tantos trabalhos, embora os movimentos ne-
gros tenham historicamente pautado questões relativas à educação, ao
livro didático em geral, e ao de história em particular, sendo a própria
Lei 10.639 um dos efeitos de sua iniciativa. A alternativa frequentemen-
te arrolada na tentativa da versão negra da história tem sido a escri-
ta de novos textos didáticos, que é um fenômeno particular do livro
didático, com a história das populações afro-brasileiras. Lembro aqui,
rapidamente, do livro Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Junior, de
2006, Uma história do negro no Brasil, voltado ao ensino médio4. A tí-
tulo de exemplo, dos 12 capítulos deste livro, 1 é dedicado à África e 5
são dedicados ao pós-abolição. Trata-se de outra síntese histórica, cujas
unidades não são territoriais (Brasil, África, Europa), cronológica-line-
ar ou política (colônia, império, república) e o enfoque em unidades
de factualidade histórica são montadas a partir dos sujeitos-processos
históricos: escravização, família, resistência e revoltas explícitas, coti-
dianidade e cultural de escravizados, cultura negra e nacionalidade,
desigualdades e lutas antirracistas, etc. A maioria destes trabalhos, até
alguns anos atrás, sequer figurava como referências fundamentais da
renovação historiográfica que se dizem que ocorreram no Brasil com os
avanços dos cursos de pós-graduação. Estes textos tentam romper com
a organização eurocentrista, a narrativa cronológica, linear, política,
4 Poderíamos citar ainda os livros de Leila Hernandez A África na sala de aula (2008) ou de Marina de Mello
e Souza África e Brasil Africano (2007).

197
evolucionista e que privilegia temas e recortes espaço-temporais histo-
ricamente comprometidos com o saber/poder dos grupos dominantes,
justamente o que pedia acima também Juliana Souza.
Ressalte-se, evidentemente, que o livro didático de história na
educação básica precisaria ser mais abrangente, ou seja, não basta que
ele seja apenas sobre a história de populações afro-brasileiras, mas con-
templar múltiplos sujeitos históricos de várias perspectivas. A síntese
didática do LDH ainda repete quadros históricos consolidados, citadas
pela professora Juliana Souza, os quais, ainda que críticas, afirmam a
matriz nacionalista pretensamente não-racial da experiência histórica
brasileira. Desta perspectiva, se a denúncia da “farsa da abolição” foi
a primeira vitória histórica do MNU, e, esta foi, em alguma medida,
incorporada ao LDH, este parece ainda não ter desenvolvido uma pers-
pectiva racial capaz de desmontar o dispositivo brancocêntrico.
O diagnóstico é o de sempre: o LDH precisa mudar! Mas o que
se fazer com essa informação já que inclusive ela não guarda novidades?
Isso quer dizer que falhamos como historiadores na educação antirracis-
ta? Absolutamente é o contrário. Não podemos cair nos hábitos de anti-
gas análises do LDH a partir de lugares comuns tais como: o livro didáti-
co como inútil, ruim, sem possibilidades de uso, como suporte limitado,
não contemplando os temas pertinentes, etc. Precisamos sair do proble-
ma da perspectiva “da falta”, como chamou atenção Margarida Oliveira
(2017). Juliana Souza, Carlos Araújo, Zenaide Schmitz, Túlio Pereira e
Maria Telvira Conceição, em alguma medida, mostram que algo “falta”
ao livro didático de história, mas também permitem observar, o que eles
têm como temas, bem como as demandas que se abrem dali.
Uma importante questão é entender o que as histórias que foram
mobilizadas – ou para ser mais preciso, requisitadas e exigidas – nos tex-
tos abordados nos colocam em posição de atentar para o grande poder
que tem o LDH como dispositivo para onde ele deveria funcionar: a sala

198
de aula. Na educação antirracista, as orientações empreendidas não po-
dem confundir os problemas: o LDH como o dispositivo racial mal re-
solvido, do ponto de vista de uma narrativa racialmente informada, des-
colonizada, não inviabiliza o ensino como construção de uma sociedade
antirracista. Assume-se que a educação antirracista só se faz na sala de
aula, e, o papel do professor é articular o espaço escolar mediando seu
funcionamento em outra direção. Se o LDH fosse suficiente, não have-
ria necessidade do professor de história, profissional que consegue inserir
a historiografia didática no diálogo com a comunidade escolar, a histo-
riografia acadêmica e o conjunto de histórias e memórias que circulam
no espaço público (aquilo que hoje se chama hoje, por vezes, de história
pública). O LDH é um suporte de trabalho que não se confunde com a
totalidade da cultura de história elaborada na sala de aula. O professor de
história como mediador das várias tradições de passado que foram men-
cionadas move o aprendizado antirracista em um dado ambiente escolar
usando o LDH e outros recursos como suportes para trabalho.
Os LDHs precisam mudar redesenhando os antigos e desen-
volvendo novos discursos. No mínimo, tornar as sínteses históricas
apresentadas racialmente expressivas e conscientes além de investirem
mais na incorporação das experiências das populações afro-brasilei-
ras como material para a sala de aula. Como chamaram atenção Túlio
Pereira e Telvira Conceição, a historiografia didática apresenta uma
abordagem (s) racialmente montada que não reconhece a perspectiva
da branquitude eurocêntrica que a embasa. Sabemos que no espectro
racial, pessoas brancas e a branquitude têm sua racialidade invisibili-
zada, enquanto os grupos excluídos, subalternizados e assediados pela
estrutura racial são imediatamente reconhecidos como tal. Racializar,
neste sentido, é uma operação de opressão que engloba populações
negras e não-negras, mas que apaga o polo do olhar branco que a em-
basa (MBEMBE, 2014), operação que precisa ser deslocada.

199
É ponto pacífico que a historiografia didática está mudando e
ainda precisa mudar. O LDH é um dispositivo5 que diz e faz ver as raças.
Ou seja, ele continua eurocêntrico e brancocêntrico, sendo que precisa-
mos racializar mais ainda o debate e provincializar (CHAKRABARTY,
2020) o eurocentrismo da própria ideia de uma síntese histórica perti-
nente. A provincialização se tornou hoje tão famosa via os estudos pós-
-coloniais de Chakrabarty ou a decolonialidade de autores como Walter
Mignolo. Contudo, racializar e provincializar o que se ensina e o que
se aprende em história é uma demanda antiga da construção do saber
brasileiro: Lélia Gonzalez (1988), Maria Beatriz do Nascimento (2007)
e tantos outros intelectuais e historiadores negros já falavam disso em
outros termos. Compreender – e por consequência, aprender – a partir
da amefricanidade, para usar o termo de Gonzalez, ou seja, incorporar
as memória e vivências afro-brasileiras como foco da própria recons-
trução da perspectiva da história do Brasil; questão pela qual também
clamava Beatriz Nascimento, são alternativas viáveis e antigas de escuta
e indagação sobre as experiências raciais de nossos alunos colocando-os
inclusive para falar de suas posições nos meios escolares.
Racializar e provincializar são atitudes docentes e políticas de
atuação públicas, com foco mais no aprendizado antirracista do que nos
temas em si mesmos. Cumpre-se como agenda apenas na medida em
que realiza a escuta das necessidades dos grupos e populações afro-bra-
sileiras, de suas memórias e tradições, de suas perspectivas de mundo e
do tratamento de suas impressões e relações com a realidade.
Não basta apenas incorporar novos temas afro-brasileiros e in-
dígenas. A despeito das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, ainda sobrevive
no currículo reconhecível, inclusive na BNCC, a predominância de ob-
5 Dispositivo é uma relação na qual algo “tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, deter-
minar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, condutas, as opiniões e os discursos dos seres
viventes” (Agamben, 2009, p. 40). Numa perspectiva de uma arqueologia das mídias (Santiago Jr., 2019) o
LDH é uma mídia histórica, uma tecnologia que articula um leitor/espectador (alunxs e professorxs leem e
veem textos e imagens) a partir de padrões culturais como raça, gênero, região, nacionalidade, orientação
sexual, etc..

200
jetos do conhecimento euro-ocidentais. Não se trata de termos “mais”
África ou “mais” comunidades indígenas. Precisamos de novas autorias
nos LDHs, não apenas na escrita, mas na divulgação dos patrimônios
materiais-imateriais e trajetórias de sujeitos e comunidade afro-brasi-
leiros. Mas se essas questões são alguns dos elementos, as demandas do
espaço escolar decidem o que de fato precisaria ser feito, sendo que tais
necessidades são identificadas pela e na escola, pelo professor e seus sa-
beres práticos, que realiza uma escuta do seu alunado e da comunidade
e realiza a mediação com as narrativas cujo princípio é a experiência
social dos sujeitos do aprendizado, usando o LDH como um dos muitos
instrumentos para construir a cidadania.
Aqui a relativização dos instrumentos didáticos – inclusive o
LDH – e o investimento do professor como mediador dos saberes mo-
bilizados em sala de aula e a apropriação dos conhecimentos dos estu-
dantes como agentes e proprietários de saberes fundantes do próprio
aprendizado são centrais. Acima de tudo, racializar e provincializar são
atitudes docentes e políticas de atuação públicas, com foco na prática
antirracista. A escuta das necessidades dos grupos e populações afro-in-
dígenas, de suas memórias e tradições, de suas perspectivas de mundo
e do tratamento de suas impressões e relações com a realidade permite
apropriar as lutas e temas históricos da construção da cidadania, esta
que é talvez a mais importante função da escola.

201
REFERÊNCIAS

ABREU, Marcelo. Cultura de história, história pública e ensino de história: a investigação e


formação de professores de história. História Hoje, São Paulo, v. 8, n. 15, p. 111-134, 2019.

AGAMBEN, Giorgio; AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios.


Chapecó: Argos, 2009.

BRASIL. Ministério da Educação. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. D.O.U. de 10 de janeiro de


2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 24 de set. 2021.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Inclui no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2008/lei-11645-10-marco-
2008-572787-norma-pl.html>. Acesso em: 29 set. 2021.

CHKRABARTY, Dipesh. A pós-colonialidade e o artifício da história. Práticas da História, n.


11, p. 247-277, 2020.

GOMES, Ângela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980. Estudos


históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 34, p. 157-186, jul.-dez. 2004.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de


Janeiro, ns. 92/93, p. 69-82, jan./jun. 1988.

HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. A África na sala de aula: visita à história
contemporânea. São Paulo: Ed. Selo Negro, 2008.

LOPES, Valdei Araújo. O Direito à História: o(a) historiador(a) como curador(a) de uma
experiência histórica socialmente distribuída". In: GUIMARÃES, Géssica; BRUNO, Leonardo;
PEREZ, Rodrigo (Orgs.). Conversas sobre o Brasil: ensaios de crítica histórica. Rio de Janeiro:
Autografia, 2017, p. 191-216.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2006.

NASCIMENTO, Maria Beatriz. Por uma história do negro no Brasil. In: RATTS, Alex. Eu sou
atlântica. São Paulo: Imprensa oficial, p. 93-98, 2007.

NICOLAZZI, Fernando. Culturas de passado e eurocentrismo: o périplo de Tláloc. In: AVILA,


Arthur Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo. (Orgs.). A história (in)disciplinada.
Teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico. 1. ed. Vitória: Milfontes, p. 211-244, 2019. v. 1.

202
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; FREITAS, Itamar de. A qualidade do livro didático de
história no Brasil, na França e nos Estados Unidos da América. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

SANTIAGO JR., Francisco das C. F. Dimensões historiográficas da virada visual ou o que


pode fazer o historiador quando faz histórias com imagens? Revista Tempo & Argumento,
Florianópolis, n. 11, v. 28, p. 402-444, set.-dez. 2019.

203
Entre soadas e silêncios: desafios ao
tratamento da História das Mulheres
em livros didáticos no âmbito do PNLD

Flávia Eloisa Caimi1


Letícia Mistura2

1 Doutora em Educação (UFRGS) e Pós-Doutora em Educação (Flacso-Argentina). Professora titular apo-


sentada do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo/RS.
2 Mestre em Educação. Professora da rede pública estadual de ensino de Passo Fundo/RS.

204
Nas últimas cinco décadas visualizamos importantes mudanças,
que se traduziram em conquistas das mulheres no acesso ao mundo do
trabalho e à educação, no exercício de direitos, respeito às diferenças
e equalização de oportunidades. Entretanto, a despeito do muito que
se avançou, persistem acentuadas desigualdades entre homens e mu-
lheres em variadas instâncias e sob distintas dimensões de análise. Os
indicadores sociais de gênero3 no Brasil têm apontado características
estruturais para explicar tais desigualdades, como raça/etnia, idade, es-
colaridade, deficiência, residência em áreas urbanas ou rurais, regiões
geográficas, lugar social de nascimento, dentre outros.
Segundo dados disponibilizados no documento Estatísticas de
gênero: indicadores sociais das mulheres4 (BRASIL, 2018), quanto ao
tempo dedicado aos afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas, em
2016 as mulheres brasileiras cumpriram cerca de 73% de horas a mais
do que os homens (18,1 horas contra 10,5 horas). O recorte por cor ou
raça indica que as mulheres pretas ou pardas (assim nominado pelo
IBGE) são as que mais se dedicam a esses afazeres, com o registro de
18,6 horas semanais em 2016.
Os índices concernentes ao acesso à escola no ano de 2016 re-
velam que não há significativas discrepâncias entre homens e mulheres.
A frequência à escola das pessoas de 15 a 17 anos independentemente
do nível de ensino, apresenta valores muito próximos para mulheres e
homens, de 87,1% e 87,4%, respectivamente. Para a faixa etária de 18
a 24 anos, o percentual de mulheres na escola é 2,5 pontos superior ao
dos homens. O mesmo ocorre em relação à taxa de frequência escolar
líquida no ensino médio, que era de 63,2% entre homens de 15 a 17
anos e de 73,5% entre as mulheres da mesma idade. Todavia, a diferença
3 Não obstante a crescente relevância e a ampliação conceitual do tema “gênero”, enfoques concernentes
à orientação sexual, à diversidade e às novas identidades de gênero circunscritas para além dos binômios
mulher/homem e feminino/masculino, não serão tratados no escopo deste trabalho.
4 Todos os dados apresentados nos parágrafos subsequentes foram extraídos da seguinte fonte: BRASIL,
2018.

205
percentual mais expressiva ocorre no nível superior completo, eviden-
ciando que entre pessoas de 25 a 44 anos de idade, 15,6% dos homens
completaram a graduação frente a 21,5% de mulheres, o que correspon-
de a um indicador de 37,9% superior ao dos homens.
Não obstante as mulheres apresentarem a melhor média nos re-
sultados educacionais, ainda não alcançamos resultados compatíveis no
mercado de trabalho e na administração pública. No item relativo ao
rendimento médio do trabalho, as mulheres seguem recebendo salários
cerca de 25% menores do que os homens. Quanto à participação das
mulheres em cargos gerenciais, ainda que constituam a maior parcela da
população, em 2016, no Brasil, 60,9% desses cargos eram ocupados por
homens e 39,1% pelas mulheres. Se tomamos o indicador que monitora
a participação das mulheres na vida política do país, especialmente sua
presença na alta administração do governo, os dados mostram que em
07/03/2020, das 22 pastas ministeriais, apenas duas eram ocupadas por
mulheres – o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento –, o que con-
substancia um percentual de 9,1%.
Dados relativos à violência contra a mulher e feminicídio são
extremamente alarmantes, a despeito da lei de combate à violência
doméstica e familiar contra a mulher (Lei n. 11.340/2006, conhecida
como Lei Maria da Penha). Em 2014, apenas 7,9% dos municípios
brasileiros contavam com delegacia especializada no atendimento à
mulher, por exemplo.
Essa breve sinopse estatística anuncia que há muito por fazer no
esforço de criar um cenário de maior igualdade de gênero no Brasil, de
modo que homens e mulheres logrem direitos e oportunidades iguais.
Consideramos que as leis e políticas afirmativas são extremamente ne-
cessárias, mas que devem ser acompanhadas por processos educativos
escolares que promovam conhecimento, reflexão e conscientização so-

206
bre as lutas por igualdade de gênero e representação social das mulheres
no passado e na contemporaneidade. Como afirma Louro (2014, p. 62),
“a escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma
o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa
o ‘lugar’ dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas”. Por
outro lado, sendo um espaço que agrega as mais diversas vozes sociais, a
escola é um locus privilegiado de debates, de conflitos, de controvérsias,
que são elementos essenciais à formação cidadã.
O estudo que ora propomos circunscreve-se nos debates acerca
da história das mulheres, situando a temática na análise do livro didá-
tico de História (LDH) disponibilizado no âmbito do Programa Nacio-
nal do Livro e do Material Didático - PNLD. Adentramos um universo
extremamente complexo ao tratarmos do livro didático de História, um
objeto de cultura multifacetado, impossível de ser vislumbrado por um
único enfoque. Embora o recorte deste estudo não se enverede por es-
ses caminhos, ressaltamos que as temáticas das políticas públicas para a
educação, do currículo, do ensino-aprendizagem, da avaliação e do uso
do LDH em sala de aula inevitavelmente transversalizam as discussões
sobre o livro didático. Nessa oportunidade, nos detemos a compreender
o LDH como um documento, fonte de evidência da articulação entre
os critérios de uma política de Estado, o PNLD, e a produção de uma
narrativa histórica “didatizada”, julgada “ensinável”.
Assim, importa-nos conhecer os alcances e restrições da abor-
dagem dessa temática nos livros didáticos de História e explorar as
presenças e/ou ausências das discussões acerca das relações de gênero
e da história das mulheres. Para a consecução de tais propósitos, de-
bruçamo-nos sobre três conjuntos de fontes documentais, a saber:
(1) três editais do PNLD Ensino Médio, correspondentes aos anos de
2012, 2015 e 2018; (2) o Guia Nacional do Livro Didático do Ensino
Médio, nas respectivas edições de 2012, 2015 e 2018 do PNLD; (3) dis-

207
sertações e teses que focalizam a história das mulheres no livro didático,
produzidas no âmbito da pós-graduação brasileira, entre 2005 e 2018.
Ainda, faz-se necessário travar um diálogo com o campo his-
toriográfico dedicado à pesquisa acerca dos temas que aqui agregamos
sob o termo “história das mulheres” no Brasil. Nas seções a seguir, nos
dedicaremos a essas tarefas, buscando avançar para uma sistematização
do atual posicionamento do tema na articulação PNLD/LDH e tecer
reflexões que levem a assinalar caminhos para uma continuidade ao tra-
tamento da história das mulheres nos livros didáticos de História.

LOCALIZANDO O TOM: A HISTÓRIA


DAS MULHERES NO BRASIL

Pode-se dizer que o campo historiográfico que tem se dedica-


do à pesquisa relativa à história das mulheres, deriva-se de, ao menos,
duas principais perspectivas teóricas, que participaram da construção
do tema no mundo ocidental. A história das mulheres constituiu uma
vertente de estudo da História Social, que encontrou propulsão e voz
na academia, na relação entre dois processos a partir da década 1960 e
das subsequentes décadas: (a) o movimento ideológico-feminista, espe-
cialmente nos Estados Unidos e (b) o desejo das mulheres presentes nas
universidades por uma nova história, construída no bojo da crise epis-
temológica e paradigmática da História, que ampliou as concepções de
objeto e sujeito de estudo, no sentido de reconhecer as mulheres como
agentes históricos legítimos. No entanto, a história “das mulheres” pro-
duzida na progressão destes dois grandes contextos encontrou outras
restrições, na medida em que foi relegada a um (ou mais) domínio se-
parado da história-narrativa. A “história das mulheres” pertenceria à
outra natureza que não à “história dos homens” – esta, sim, a narrativa
histórica dominante. Esses problemas inspiraram a busca por um termo

208
que não condicionasse a história das mulheres a um núcleo igualmente
normativo e exclusivo de presença na narrativa histórica.
Segundo a historiadora Michelle Perrot, autodesignada “teste-
munha e atriz” (PERROT, 2007, p. 13) do movimento de desenvolvi-
mento da história das mulheres na França, nos anos 1970, a expectativa
por uma história “das mulheres” tornou-se uma demanda real mediante
a tomada de consciência da dimensão sexuada da sociedade ou da his-
tória, ou seja, da diferença entre os lugares dos sexos e das relações entre
eles no relato histórico. O “silenciamento” das mulheres pela narrativa
histórica escrita não era apenas um espaço vazio, mas uma opção legi-
timada pela definição do que era a história, protagonizada por homens,
pelo espaço público a que pertenciam e pelas representações que cons-
truíram, como personagens ou escritores, do que valia como “história”
– a história de viés político e econômico, orientada apenas pelos espaços
públicos. As relações entre os sexos, no relato histórico e na socieda-
de, ditaram o que era possível conhecer sobre as mulheres, ao longo do
tempo. Era preciso achar uma forma de historicizar a experiência das
mulheres no tempo, coletivamente. A historiadora estadunidense Joan
Scott propôs, para esse problema, o uso do termo “gênero”.
Scott (1995, 1998), desde a perspectiva de estudos antropológicos
e culturais, defendeu a utilização do termo “gênero” como categoria de
análise que permitiria alçar os estudos históricos sobre as mulheres ao in-
terior da narrativa histórica, já que gênero diz respeito às formas históricas
e sociais de construção, representação e relação entre muitos “femininos”
e “masculinos” em multitemporalidades e multiespacialidades. Tratava-se
também de uma forma legítima de combate ao formato descompromis-
sado de dar sentido ao passado das mulheres incluindo-as pontualmente
como personagens na narrativa histórica, excepcional e arquetipicamen-
te, já que não podiam aparecer na cena pública “a não ser como figurantes
mudas, penetrando por arrombamento ou a título de exceção – as mulhe-

209
res ‘excepcionais’, heroicas, santas ou escandalosas – relegando à sombra a
massa das outras mulheres” (PERROT, 2009, p. 112).
O termo “gênero”, portanto, encontra relevância dentro do caminho
percorrido pela história das mulheres: trata-se de (re)conhecer a história
das mulheres, como coletivo, como gênero, em sua formação política, psi-
cológica, social, cultural, sexual, ao longo da história da humanidade, e não
de (certas) mulheres. Desde a tomada de consciência e da consequente de-
manda por uma história das mulheres nas décadas de 1960 e 1970 e a pro-
posição do termo “gênero”, muitos esforços se acumularam no sentido de
dar continuidade e visibilidade para estudos multidisciplinares envolvendo
essa premissa no âmbito da academia, motivada e acompanhada pelos mo-
vimentos sociais. Estudos de gênero envolvem a investigação de diferentes
experiências de representações, disseminações, concepções e simbolismos
acerca dos gêneros, em dimensão histórica e atual, abarcando a compre-
ensão sobre como impactam e informam instituições, políticas públicas,
movimentos sociais etc. A escola, como instituição, também atua, mais ou
menos diretamente, na operacionalização e na validação ou manutenção
das representações e relações de gênero, por meio dos processos de ensino
e aprendizagem – e de toda a experiência social que nela se desenrola, in-
cluindo atores (professores, estudantes, gestores, famílias), currículo e prá-
ticas da cultura escolar. Portanto, a escola pode se constituir em um espaço
tanto de afirmação de normativas de gênero – expectativas, papéis homo-
geneizantes – quanto de problematização e de construção de relações mais
saudáveis entre identidades de gênero e sociedade.
É nesse patamar que inserimos este estudo acerca do livro
didático de História, ferramenta e, não raro, protagonista do conhe-
cimento presente majoritariamente nas salas de aula brasileiras. Se
há uma história das mulheres como gênero na formação do Brasil, é
preciso que esteja na educação básica, tal como está nos ambientes
acadêmicos e nos movimentos sociais.

210
EXPLORANDO OS RUÍDOS E OS SILÊNCIOS:
A HISTÓRIA DAS MULHERES E O LDH NOS
DOCUMENTOS DO PNLD E NA PRODUÇÃO ACADÊMICA

Nesta seção, nos dedicaremos à análise da documentação –
editais de lançamento e Guias Nacionais do Livro Didático – das
edições do PNLD Ensino Médio, de 2012, 2015 e 2018, e também
incursionaremos sobre a produção acadêmica dedicada ao tema
ao longo das últimas duas décadas. Selecionou-se, para esse úl-
timo conjunto documental, a produção acadêmica elaborada em
formato de dissertações e teses em programas de pós-graduação
stricto sensu. Reservamos, a cada um dos conjuntos documentais,
uma seção própria, a seguir, de onde nos debruçamos a reconhe-
cê-los em suas características formais e em seu conteúdo acerca
da temática proposta.

OS EDITAIS DO PNLD ENSINO MÉDIO (2012-2018)

Os editais do PNLD mantêm, nas últimas três edições referentes


ao Ensino Médio, um formato consistente. Seu objetivo central é reger
o processo de seleção e estabelecer os critérios de avaliação das coleções
de livros didáticos inscritas no programa. Nos interessou, no exercício
de leitura dos documentos, localizar menções à história das mulheres e
aos estudos de gênero pelos editais, perscrutando se neles há critérios
claros a respeito do tema e que domínios cumprem no processo de ava-
liação e seleção dos LDH.
Nosso escopo de análise recai, notadamente, na seção do edital
dedicada à especificação dos critérios de avaliação – invariavelmente,
para as três edições, no Anexo III, intitulado “Princípios e critérios para
a avaliação de obras didáticas destinadas ao Ensino Médio”.

211
O texto introdutório dos três editais em análise tem a mes-
ma estrutura: trata-se de um texto que focaliza os objetivos do Ensino
Médio e da função da escola nesta etapa de escolarização. Nesta seção
do texto, não há menção a relações de gênero, a temáticas alusivas à
história ou aos direitos das mulheres nos editais das edições de 2012
e 2015 do PNLD. Na edição de 2018, o edital traz, no item (1.1) os re-
quisitos gerais de qualificação das obras5, indicando que devem “con-
tribuir efetivamente para a construção de conceitos, posturas frente ao
mundo e à realidade, favorecendo, em todos os sentidos, a compreen-
são de processos sociais, científicos, culturais e ambientais” (BRASIL,
2015, p. 32), acompanhado de oito subitens. Os três subitens iniciais
mencionam pela primeira vez o tema nesse conjunto documental. Os
livros didáticos deveriam, portanto,
1.1.1. promover positivamente a imagem da mulher, consi-
derando sua participação em diferentes trabalhos, profis-
sões e espaços de poder, reforçando sua visibilidade e pro-
tagonismo social;

1.1.2. abordar a temática de gênero, visando à construção de


uma sociedade não-sexista, justa e igualitária, inclusive no que
diz respeito ao combate à homo e transfobia;

1.1.3. proporcionar o debate acerca dos compromissos contem-


porâneos de superação de toda forma de violência, com especial
atenção para o compromisso educacional com a agenda da não-
-violência contra a mulher. (BRASIL, 2015, p. 32).

Vemos reconhecido, nessa seção, o princípio da promoção, pe-


los materiais didáticos veiculados pelo PNLD, da imagem da mulher
como grupo social coletivo, da abordagem de gênero e do combate
5 Embora apareça pela primeira vez, em nosso conjunto documental, nos editais do PNLD (Ensino Médio)
de 2018, esta mesma formulação ocorre nas introduções dos editais referentes aos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental de 2007 e 2010 e dos Anos Finais do Ensino Fundamental de 2008 e 2010, documentos situa-
dos em período anterior ao de nosso recorte, sob diferentes denominações.

212
à homofobia e à transfobia e, em especial, da necessidade de debate
acerca da violência contra a mulher.
A seção dedicada aos critérios universais de exclusão das obras
é a próxima a explicitar, no edital, posicionamento claro em relação à
temática. Nas três edições do PNLD – 2012, 2015 e 2018 –, não há alte-
ração no texto dessa seção, permanecendo a seguinte formulação:
Serão excluídas do PNLD 2018 as coleções que:

• veicularem estereótipos e preconceitos de condição social, re-


gional, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de idade
ou de linguagem, assim como qualquer outra forma de discri-
minação ou de violação de direitos humanos;

• fizerem doutrinação religiosa ou política, desrespeitando o ca-


ráter laico e autônomo do ensino público;

• utilizarem o material escolar como veículo de publicidade ou


de difusão de marcas, produtos ou serviços comerciais. (BRA-
SIL, 2015, p. 33-34).

Novamente, nessa seção, vemos legitimados os princípios


antes anunciados, aqui explicitados em forma de combate aos es-
tereótipos e preconceitos de gênero. A próxima seção em análise,
no edital, diz respeito à especificação dos critérios de avaliação à
disciplina de História. Não há, nesses, nenhuma menção específi-
ca ou explícita à inclusão da temática de gênero e da história das
mulheres nos materiais didáticos para o ensino de História. É pos-
sível dizer, portanto, que, apesar de vermos claramente menções
– especialmente na última edição do PNLD Ensino Médio, de 2018
– à necessidade de promover ações, por meio dos livros didáticos,
de representação e valorização da mulher e da temática de gênero,
esse princípio não encontra semelhante direcionamento nos cri-

213
térios específicos de avaliação para a disciplina de História, nos
limites dos editais do PNLD Ensino Médio de 2012 e 2015 e 2018.
Não obstante a ausência desses critérios nos editais de 2012 e
2015, observamos que nas Fichas de Avaliação das coleções, publicadas
junto aos respectivos Guias do componente curricular História, todas es-
sas questões são contempladas. No Guia de Livros Didáticos referente ao
PNLD 2012, por exemplo, no item que avalia se a coleção contribui para
o desenvolvimento de ações positivas à cidadania, consta a questão 45,
redigida nestes termos: “Promove positivamente a imagem da mulher,
considerando sua participação em diferentes trabalhos, profissões e es-
paços de poder. Aborda a temática de gênero e da não violência visando à
construção de uma sociedade não sexista, justa e igualitária, inclusive no
que diz respeito ao combate à homofobia” (BRASIL, 2011, p. 134). Esta
situação se repete na Ficha de Avaliação dos Guias subsequentes.

OS GUIAS DE LIVROS DIDÁTICOS


DO ENSINO MÉDIO (2012-2018)

O Guia de Livros Didáticos resulta do processo de avaliação das


coleções no âmbito do PNLD e nele são expostas as características, po-
tencialidades e limitações das coleções avaliadas, para subsidiar a es-
colha dos professores a cada edição do programa. Na geração de dados
para este estudo, debruçamo-nos sobre os guias das três últimas edições
do PNLD Ensino Médio – História, correspondentes aos anos de 2012,
2015 e 2018, buscando localizar informações acerca do tema da história
das mulheres, com base nos seguintes termos descritores: mulher, gêne-
ro, feminino, homem, masculino, homofobia, transfobia, LGBT.
Num primeiro movimento, bem singelo, voltamo-nos para a
imagem das capas do livro do 1º ano do Ensino Médio das obras aprova-
das em cada edição, constatando que a presença de figuras femininas vai

214
crescendo ao longo das três edições. Em 2012, foram aprovadas 19 cole-
ções, com duas capas estampadas por mulheres; em 2015 foram aprova-
das 19 coleções, com seis capas e em 2018 foram aprovadas 13 coleções,
com 5 capas ilustradas por mulheres. Parece não se tratar de coincidên-
cia, mas de um tímido esforço editorial em observar o debate social e as
ações afirmativas no âmbito das políticas públicas vigentes no período.
Interessante observar também o movimento na ausência/presença
de termos referentes à diversidade de gênero. No guia de 2012 há diversos
livros que se referem à história da humanidade como sendo a história do
homem, adotando expressões como a identidade do homem americano;
a origem do homem; a nova medida do homem; das origens do homem
ao neolítico. Nos guias de 2015 e 2018 já não se encontra essa forma de
nomear conteúdos no sumário dos livros, optando-se por expressões mais
inclusivas da diversidade humana. Por fim, no guia de 2018, cujo edital é
bem mais enfático em relação ao tema da diversidade de gênero, há quatro
menções à homofobia, três à transfobia e três referências aos termos LGBT
e LGBTI. No guia de 2012 essas expressões estiveram completamente au-
sentes, ao passo que no guia de 2015 aparecem timidamente na avaliação
de duas coleções. Ainda que mereçam destaque, essas alusões são iniciativas
demasiadamente acanhadas para o enfrentamento das questões de gênero
nos livros didáticos. Vejamos o que mais é possível encontrar nos guias.
No que diz respeito à incorporação da história das mulheres no
conjunto da produção didática, os guias ressaltam, de modo geral, que
as coleções manifestam diferentes graus de aderência, de acordo com
cada projeto editorial. A maioria das coleções apenas cumpre os requi-
sitos mínimos do edital, de modo a garantir a aprovação no processo
avaliativo. Nestes casos, o movimento é no sentido de inserir imagens
esparsas de mulheres em diferentes atividades profissionais; de acres-
centar boxes com algum destaque feminino, do presente ou do passado,
como, por exemplo, o papel da Princesa Isabel no fim da escravidão;

215
o sucesso das atletas Marta e Hortência no esporte; a atuação de Joa-
na d’Arc na Guerra dos Cem Anos; a visibilidade de Carlota Pereira de
Queiroz, primeira mulher a se eleger deputada federal no Brasil, ou de
Dilma Rousseff, a primeira mulher a se tornar presidente da República,
dentre outros. Também se vê a incorporação de seções especiais que
mostram as mulheres na Revolução Francesa, na Revolução Industrial,
na Segunda Guerra Mundial, na Revolta Constitucionalista de 1932, etc.
Nos exemplos relatados, a abordagem acerca da presença das mulheres
na história nunca aparece como eixo central da narrativa, e sim em bo-
xes, seções, atividades, ou seja, em situações esparsas e pontuais. Ade-
mais, como não transversaliza a proposta da coleção, invariavelmente a
abordagem fica mais localizada em um dos três volumes.
Há um pequeno conjunto de coleções, todavia, que demonstra
um esforço mais vital de renovação historiográfica, expresso no movi-
mento de destacar a presença orgânica das mulheres no processo his-
tórico, realçando-as como agentes e sujeitos atuantes na conquista de
direitos políticos, sociais e culturais. Em tais casos, não se trata de inser-
ções avulsas e casuais para cumprir o edital, mas de um projeto peda-
gógico e historiográfico que se espraia para outros elementos que com-
põem a proposta de formação para a cidadania. À pauta das relações de
gênero juntam-se temas contemporâneos, de natureza ética e social, que
também dizem respeito à aprendizagem histórica, tais como manipu-
lação genética, aquecimento global, inteligência artificial, extremismos
políticos, fundamentalismos religiosos, usos das redes sociais, novos
arranjos familiares, fobias de diversas naturezas, aborto, dentre outros
(BRASIL, 2017). Também se distingue, nestes casos, um expressivo in-
vestimento em temas relacionados à educação e cultura em direitos hu-
manos, afirmando-se os direitos de crianças, adolescentes e idosos, e à
educação para as relações étnico-raciais com vistas à construção de uma
sociedade antirracista, solidária, justa e igualitária.

216
Outro aspecto a ser destacado, quando a renovação historiográ-
fica está efetivamente integrada ao plano global da proposta pedagógica
da coleção, é a presença de orientações específicas e materiais comple-
mentares no Manual do Professor, que subsidiem o trabalho com essas
temáticas sensíveis, contribuindo para a formação docente. Nesse sen-
tido, o professor é amparado com indicações teóricas, historiográficas,
metodológicas e didáticas que possibilitam o aprofundamento dos te-
mas e a condução qualificada dos trabalhos em sala de aula.
A despeito do pouco que se tenha avançado no tratamento deste
tema, há que se registrar a crescente superação de abordagens estereoti-
padas das representações femininas e masculinas nos livros de didáticos
de História. Invariavelmente, as mulheres eram retratadas em posições
sociais e profissionais claramente subalternas, em seus atributos de be-
leza e docilidade, vocacionadas aos afazeres domésticos. Era muito co-
mum, por exemplo, encontrarmos nos LDH situações de estereótipo a
respeito de Carlota Joaquina, tida como uma mulher geniosa, propensa
a intrigas e ambiciosa, ou abordagens que conferiam a D. Maria I, Rai-
nha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, o título de “rainha
louca”. Em muitos casos, o tratamento das mulheres é identificado com
o inusitado, o anedótico, o que se distancia dos padrões de normalidade.
Cada vez mais, os livros didáticos vêm abandonando aborda-
gens dessa natureza e ampliando a visibilidade das mulheres nos espa-
ços públicos, em eventos culturais, na atuação política, na guerra, no
trabalho, na universidade etc. São mulheres de diversas etnias, grupos
sociais, tempos e espaços históricos, retratadas em diferentes profissões
e espaços de poder. Vê-se, portanto, contornos de um avanço na tarefa
de ampliar o potencial de representatividade e a inclusão da narrativa
histórica das relações de gênero no âmbito do LDH.

217
A PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE
A HISTÓRIA DAS MULHERES NO LDH

No que diz respeito ao campo do Ensino de História, são re-


centes os estudos dedicados sistematicamente a investigar as relações
entre o livro didático de História e a história das mulheres, no âmbito
das pesquisas produzidas em programas brasileiros de pós-graduação
stricto sensu. Com o propósito de constituir um estado do conhecimen-
to sobre as temáticas mencionadas, efetuamos uma busca no Catálogo
de Teses e Dissertações da Capes e na Biblioteca Digital Brasileira de
Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia (BDTD/IBICT). O resultado permitiu reunir seis trabalhos,
todos oriundos de dissertações de mestrado.
Na busca, os termos descritores “livro didático de His-
tória” e “história das mulheres” foram combinados, em todas as fle-
xões possíveis, aos termos “manuais didáticos de história”, “manual
didático de história”, “livros escolares”, “manuais didáticos”, “mate-
rial didático”, para ampliar as possibilidades de procura. No Catá-
logo da CAPES, dentre 285 ocorrências foram refinados seis traba-
lhos. Na BDTD/IBICT, foram selecionados dois dos três resultados
provenientes das buscas. Ao corpus de oito trabalhos, refinamos uma
última vez, segundo o critério de envolver análises de livros didáti-
cos pertinentes ao PNLD, excluindo assim mais duas ocorrências,
trabalhos que situavam seu foco de análise em materiais didáticos
de outras naturezas. Finalizamos, portanto, com seis (6) disserta-
ções selecionadas. Trata-se dos trabalhos de Ângela Ribeiro Ferreira
(UEPG, 2005), Rayssa Andrade Carvalho (UFPB, 2015), Paolla Un-
garetti Monteiro (PUCRS, 2016), Larissa Klosowski de Paula (UFPR,
2017), Fernanda Gomes Françoso (Unesp Presidente Prudente,
2017) e Cristiane da Silva Lima Martins (UEFS, 2018).

218
O corpus total cumpre um recorte temporal de 13 anos de pro-
dução (2005-2018), que revela uma atividade de pesquisa esparsa, já
que consta menos de uma produção acadêmica por ano de recorte e a
ausência de uma década, entre 2005 e 2015, de produção sobre o tema.
Ademais, o recorte caracteriza-se como compreensivo acerca dos livros
didáticos pertencentes às edições do PNLD que selecionamos para este
estudo, já que abarca todos os anos elencados.6
Observando o corpus, pudemos apontar algumas regularida-
des que permitem circunscrever esse interesse de pesquisa: (a) todas
as pesquisas foram produzidas por pesquisadoras do sexo femini-
no – mesmo que aparente obviedade, acreditamos que essa autoria
coesa denota sensibilidade e consciência das pesquisadoras acerca
da temática e do campo de estudo; (b) todas as investigações têm
como objeto a presença ou não da história das mulheres e das re-
lações de gênero nos livros ou materiais didáticos de História, em
diversas articulações, tanto em recortes metodológicos (texto prin-
cipal do livro, palavras, imagens, etc.) quanto temáticos (mulheres
negras, mulheres brasileiras); (c) a presença/ausência da história das
mulheres e das relações de gênero nos livros ou materiais didáticos
de História é perscrutada desde o lugar ou as formas que ocupam
na construção (narrativa e diagramação) dos livros e materiais, por
meio de categorias conceituais como significado, tratamento, leitura,
retrato e representações; (d) todos os trabalhos são dissertações de
mestrado, o que pode significar um interesse ainda pouco explorado
em projetos de pesquisa mais longos ou sistemáticos, no caso, de
teses de doutorado; ou a evidência de um interesse marcadamente
pessoal, da trajetória individual das pesquisadoras, que ainda não
adentra grupos ou projetos de pesquisa de maior porte.
6 A título de ressalva, é preciso dizer que, das seis dissertações do corpus, apenas duas contemplam livros
didáticos pertencentes às edições do PNLD Ensino Médio cotejadas para este estudo. Como nossa proposta
ao construir o corpus está circunscrita sob um critério temático, a história das mulheres e de sua presença
no LDH, de forma geral, considerou-se a pertinência de um estado do conhecimento de maior amplitude.

219
Observando esses dados iniciais, avançamos para conhe-
cer sistematicamente os trabalhos, visualizando-os em suas pro-
blemáticas e objetos, operacionalização de análise de dados e prin-
cipais resultados e discussões.
No que diz respeito à construção de problemática e dos recortes
dos objetos de pesquisa, os trabalhos dividem-se em recortes metodoló-
gicos – os que buscam a história das mulheres, de forma geral, em um
recorte intencional do suporte-livro – e recortes temáticos – os orienta-
dos a procurar um tipo de representação específica do sujeito histórico
mulher. No primeiro grupo, cuja construção objeto-problemática se dá
em parâmetros metodológicos, temos os trabalhos de Ferreira (2005),
Paula (2017) e Martins (2018).
O trabalho de Ferreira (2005), intitulado “Representações das
mulheres no Brasil em livros didáticos de História”, elegeu os capítulos
ou momentos da narrativa dedicados à história do Brasil, nas coleções
selecionadas. O estudo compreende o LDH como objeto-vetor de uma
mediação possível entre o saber histórico da ciência de referência e o sa-
ber escolar que, desde a educação, pode oferecer subsídios para o avan-
ço na percepção de legitimidade e generalização da igualdade social e
civil entre os sexos, na medida em que é o objeto que, dentro da escola,
estabelece de forma normativa (legítima) as relações e mediações entre
as duas dimensões de saberes. Elege como objeto, portanto, as repre-
sentações sociais da mulher da história do Brasil elaborada pelos livros
didáticos do PNLD do Ensino Fundamental. A autora concentrou sua
análise em 7 (sete) das doze coleções aprovadas no PNLD 2002 e reins-
critas e aprovadas no PNLD 2005 para a disciplina de História.
Paula (2017) centra sua análise articulando o aparecimento e a
abordagem da história das mulheres no LDH aos critérios do filósofo da
História Jörn Rüsen para a construção da consciência histórica por meio
da aprendizagem e do que o autor considera o “livro didático ideal”, a sa-

220
ber, experiência, interpretação e orientação. Em sua dissertação intitula-
da “Consciência histórica e temática das mulheres nos livros didáticos de
História”, a autora analisa três coleções de livros didáticos do PNLD 2015
- Ensino Médio, pelo critério de consistirem nas três coleções de maior
distribuição no Brasil, naquela ocasião, segundo os relatórios do FNDE.
A problemática localiza-se, portanto, em averiguar em que medida as
aparições da história da mulher no LDH são capazes de cumprir os crité-
rios de Rüsen e assim contribuir para o desenvolvimento da consciência
histórica dos estudantes acerca da temática em foco.
Martins (2018), na dissertação “Entre textos e imagens: repre-
sentações femininas em livros didáticos de história (2008-2014)”, pro-
blematiza as representações sobre as mulheres nos LDH, dando ênfase
à análise de textos e imagens de três coleções de livros didáticos para
o Ensino Fundamental e procurando perseguir possíveis mudanças de
abordagem da história das mulheres ao longo das diferentes edições do
PNLD. O recorte da autora perfaz três edições do PNLD – 2008, 2011 e
2014 -, focalizando nos livros dos dois últimos anos do Ensino Funda-
mental, portanto, 8º e 9º anos.
O segundo grupo que compõe o corpus orienta seu objeto por
meio de um recorte temático dentro da história das mulheres: são as
dissertações de Carvalho (2015), Monteiro (2016) e Françoso (2017).
Os trabalhos de Carvalho (2015), “Leituras sobre representa-
ções imagéticas femininas negras em livros didáticos de história (1997-
2014)” e Françoso (2017), “Os lugares de mulheres negras em materiais
didáticos de História da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo”
concentram seus esforços de análise na presença da história da mulher
negra nos livros didáticos de História. Carvalho (2015) problematiza as
representações das mulheres negras no LDH, especialmente nas ima-
gens visuais, perscrutando que espaços ocupam e em que contextos es-
tão as imagens. O recorte documental diz respeito a duas coleções para

221
o Ensino Fundamental no âmbito das edições de 1999, 2011 e 2014 do
PNLD. Françoso (2017), por sua vez, operou uma comparação entre
os livros didáticos de maior distribuição no estado de São Paulo pelo
PNLD 2014 (Ensino Fundamental - Anos Finais) com os Cadernos do
Professor e do Aluno, materiais fornecidos pelo estado de São Paulo.
A autora focalizou sua análise das representações raciais e de gênero
associadas às mulheres negras nos contextos históricos de escravidão na
história do Brasil.
Monteiro (2016), em seu trabalho “(In)Visibilidade das mulhe-
res brasileiras nos livros didáticos de História do Ensino Médio (PNLD,
2015)”, direciona o olhar para representações de mulheres brasileiras
nos LDH do PNLD 2015 – Ensino Médio, em um recorte de 5 coleções,
selecionadas entre as de maior distribuição no território nacional. A ên-
fase da abordagem recai nos séculos XX e XXI, observando o posiciona-
mento da temática da história das mulheres na distribuição de conteúdo
e de imagens nos livros.
No que diz respeito à operacionalização de análise de dados,
todos os trabalhos percorrem um caminho metodológico semelhante,
orientando-se pela análise de conteúdo (BARDIN, 2007) e por diferen-
tes conceitos de representação, baseados em Roger Chartier e na Teoria
das Representações Sociais de Serge Moscovici. O único trabalho que
foge a essa articulação é o de Paula (2017) que, como já vimos, utiliza-se
metodologicamente dos conceitos de Jörn Rüsen.
Ao direcionarmos o olhar para os principais resultados e dis-
cussões, consegue-se perceber quatro pontos centrais de consenso
entre os trabalhos:
a) a narrativa dos livros didáticos de História não integra a his-
tória das mulheres em seu curso, relegando-a majoritariamente às mar-
gens – de forma literal, em boxes explicativos ou seções pontuais, fora
da narrativa principal do livro;

222
b) o problema de uso abrangente de imagens de domínio públi-
co (com fins de diminuir custos de produção), que não cumprem a ne-
cessidade de representatividade da história da mulher e são repetitivas;
c) no livro didático, as imagens frequentemente (1) não possuem
ligação com os textos que as acompanham, (2) são utilizadas apenas
como ilustração, (3) não são operadas como fonte histórica e carecem
de problematização;
d) sobre os exercícios e atividades propostos nos livros, não há
oportunidades de desenvolvimento de pensamento histórico acerca da
história das mulheres e das relações de gênero no LDH. O contrário
também é verdadeiro: quando há exercícios construídos envolvendo o
trabalho com fontes e interpretação histórica, não há, no livro, respaldo
de conteúdo para que os estudantes consigam resolver satisfatoriamente
as questões propostas.
Como é possível perceber, os dois primeiros pontos de consenso
surgem da temática central do corpus, a presença da história das mulhe-
res no LDH, já os demais dizem respeito a ausências de diferentes natu-
rezas, que se tornaram aparentes, para as pesquisadoras, no exercício do
olhar para o conteúdo dos livros didáticos. Visualizamos essas ocorrên-
cias em diferentes formatações em todos os seis trabalhos do corpus.
Sobre a integração da história das mulheres no curso da nar-
rativa histórica construída nos LDH, esse dado aparece, nas produ-
ções analisadas, essencialmente na análise de dados e na discussão
dos resultados do processo. Os trabalhos são unânimes: não há in-
tegração da história das mulheres na narrativa dos livros didáticos
de História, majoritariamente. As mulheres aparecem cristalizadas
onde “sempre estiveram” – como membros da sociedade patriarcal
(mães, esposas), no trabalho escravo doméstico, como operárias em
fábricas. Esse cenário de inclusão pontual cria uma dinâmica de re-
presentação das “mulheres” em grupos que parecem figurar sepa-

223
rados dos acontecimentos históricos, em formações arquetípicas: as
mulheres da nobreza, citadas assepticamente ou alegoricamente (as
“loucas”, as santas), as escravas domésticas negras (as cuidadoras de
gerações de crianças brancas), a negra “mulata” e a índia seduzida
(erotização dos corpos femininos negros e indígenas), as mulheres
imigrantes europeias (as virtuosas, as trabalhadeiras).
Os trabalhos de Ferreira (2005), Françoso (2017) e Martins
(2018) sintetizam suas análises finais nesse sentido, avaliando a presen-
ça da história das mulheres no LDH na ótica de como e de que forma o
livro didático acompanha (ou não) as renovações historiográficas:
Nos livros didáticos, a maior parte dos textos continua dan-
do ênfase ao político e ao econômico; embora se reconheça a
existência e importância da discussão historiográfica sobre as
mulheres, esta aparece via de regra em textos complementares,
separadas do corpo principal do texto. A análise dos livros di-
dáticos de História utilizados nas escolas públicas do país, com
base no conhecimento histórico sobre as mulheres e a teoria das
representações sociais, deixa claro que as novas discussões his-
toriográficas não fazem parte da escolha de conteúdos dos livros
(FERREIRA, 2005, p. 120).

Com o estudo da história dos livros didáticos, verificamos que


os seus conteúdos privilegiam acontecimentos consagrados
pela historiografia, utilizando-se como referência a história eu-
ropeia, a qual foi dividida no modelo explicativo quadripartite,
que é tomado como modelo superior, único e universal a ser
compreendido e seguido por todos os outros povos e civiliza-
ções. Nele quem faz a história é o homem branco, da elite, hete-
rossexual e cristão (FRANÇOSO, 2017, p. 160).

Na investigação, constatamos que a história das mulheres


narrada nos livros didáticos ainda ocupa um espaço secun-
dário. Porém, os livros didáticos ainda hierarquizam os con-
teúdos, privilegiando uma sequência tradicional. Para dar
conta das demandas colocadas pelos estudos de gênero e de-

224
mais “novidades” historiográficas, criaram como estratégia
os boxes e textos complementares. O fato nos leva a perceber
a ausência de uma transformação intrínseca ao modo de se-
lecionar conteúdos, o que restringe o papel dos sujeitos na
narrativa [...] (MARTINS, 2018, p. 157)

O trabalho de Paula (2017) busca avaliar a potencialidade


dos conteúdos sobre história das mulheres, nos livros didáticos de
História, para o desenvolvimento das competências de consciência
histórica elencadas por Jörn Rüsen – experiência, interpretação e
orientação. A realização desse objetivo foi, entretanto, dificultada
pelos limites da própria abordagem do tema na narrativa do LDH.
A autora detalha o processo:
Conforme fomos realizando as análises, buscamos identificar
como essas competências se empreendem, de forma mais as-
sídua, nos conteúdos relacionados à temática das mulheres, ou
seja, se essa temática está orientada para a formação da cons-
ciência histórica ou não. No entanto, esse objetivo foi mais di-
ficultoso [...], pois embora os conteúdos inerentes às mulheres
sejam mais restritos, eles estão elencados de uma forma que não
segue a perspectiva dos demais conteúdos abordados nas cole-
ções e nem se elencam de maneira que fomente a construção
da consciência histórica. Isso porque a simplicidade com que
são tratados dificultam a identificação das competências, isso
quando não ocorrem completamente dissociados delas (PAU-
LA, 2017, p. 111).

Quando voltam o olhar à representatividade das mulheres ne-


gras na narrativa histórica, há outra natureza para o silenciamento em
suas aparições: trata-se de especificidades das condições étnico-raciais,
que marcam e inserem a mulher negra no contexto estreitado de escra-
vização, não problematizando as diversas experiências sociais e de resis-
tência das quais participam e participaram. Françoso (2017) direciona
sua análise para essa questão:

225
No caso das mulheres negras, temos a mesma situação de-
marcada por especificidades raciais, étnicas e de gênero. Elas
são minimamente aparentes em relação à presença do homem
negro e ambos em relação às mulheres brancas e aos homens
brancos, seguindo esta ordem no destaque dado. Na maior par-
te das vezes, quando se fizeram presentes, foram representadas,
notadamente, em condições subalternas e/ou como vítimas,
ocultando a história de suas ações e participação na vida social

brasileira. (FRANÇOSO, 2017, p. 160).

O mesmo cenário não ocorre na análise das imagens represen-


tativas da mulher negra nos trabalhos de Françoso (2017) e Carvalho
(2015), que trazem uma interessante perspectiva: a preponderância
das imagens como veículo de representação da figura feminina negra.
Como escreve Carvalho (2015, p. 134),
Se por um lado as mulheres encontram-se quase completa-
mente ausentes dos conteúdos escritos nas coleções didáti-
cas analisadas, por outro, conseguimos encontrar as figuras
femininas negras em várias representações imagéticas, pro-
duzidas em diversas técnicas, como pinturas, gravuras, artes
gráficas, charges, fotografias.

O trabalho de Françoso (2017) demonstra, ainda, como a repre-


sentação imagética das mulheres negras nos livros expandiu-se em ter-
mos da escolha de representação e os espaços em que mulheres negras
aparecem: em ambientes de trabalho que não os contextos de escraviza-
ção e subjugação, em circunstâncias de resistência e de preservação de
sua cultura de origem, fora de situações de passividade.
Constatamos ainda, nas imagens dos livros, sinais de outras
vivências e ações realizadas em seu cotidiano, as quais não se
restringiram aos momentos de opressão pela condição da es-
cravidão. As mulheres negras encontraram formas diversas de
sociabilidade e convívio em seus tempos livres: festaram, na-
moraram, constituíram suas próprias famílias. Organizaram e
lideraram práticas religiosas, tornaram-se comerciantes, tanto

226
em situação de liberdade ou na de escravas, exerceram suas
habilidades manuais na culinária e nas diversas artes do fazer.
Elas estão presentes no processo de luta contra a escravidão e
em demais práticas de subversão das formas de opressão a elas
impingidas. Podemos discutir e inferir, com o apoio nos livros,
que muitas destas personagens não foram passivas e não acei-
taram as injustiças que lhes eram impostas, manifestando suas
condições humanas, dotadas de sentimentos, dores e alegrias,
protegendo e ajudando na reprodução da vida de brancos e ne-
gros, ricos e pobres. (FRANÇOSO, 2017, p. 121).

Embora os trabalhos mostrem uma esfera positiva e de avan-


ço acerca da representação imagética das mulheres no LDH, é preciso
lembrar que essa estratégia não resolve o padrão demonstrado até agora
pelos estudos, ou seja, o silenciamento das mulheres como grupo social
e como integrantes da narrativa histórica apresentada pelos livros didá-
ticos de História. As autoras dos estudos do corpus formularam, pontu-
almente, algumas hipóteses a respeito da permanência de continuidade
narrativa tradicional no LDH. Ferreira (2005), reflete sobre o aspecto co-
mercial da construção do livro didático, que precisa permanecer atraente
ou familiar a uma grande variedade de público, e que isso pode significar
não se afastar dos conteúdos canônicos e não mudar substancialmente a
narrativa. Para esta autora, também existe uma pressão política dos mo-
vimentos sociais a produzir noções de politicamente correto – no caso,
sobre a história das mulheres – que não é bem digerida por quem produz
os livros didáticos, resultando em uma apresentação falha.
a forma pela qual essa apresentação ocorre indicia que a cons-
tituição da sequência canônica de conteúdos, com raízes no sé-
culo XIX, compõe um núcleo pouco permeável de informações/
conhecimentos, sobre a (o) qual as modernizações acabam por
gerar apêndices, e não uma transformação intrínseca ao modo
de selecionar conteúdos e contar a História do Brasil (FERREI-
RA, 2005, p. 123).

227
Carvalho (2015) reflete sobre o aumento de representatividade
da mulher negra nas imagens dos LDH, a localizando em um outro pa-
tamar, que não necessariamente diz respeito à inclusão da história das
mulheres no livro didático, e sim um efeito da preocupação em relação
à educação para as relações étnico-raciais. Embora ancorada em outro
horizonte, ressaltamos que essa inferência não diminui a importância
do aumento da representatividade da mulher negra. Na mesma direção,
Ferreira (2005, p. 135) observa “a inclusão da educação para as relações
étnico-raciais nas normativas educacionais do governo, sejam as leis ou
os parâmetros, que trataram de forma contundente destas questões na
educação brasileira, nas últimas décadas, agindo sobre os currículos e,
conseguinte, sobre a produção didática”.
As autoras evidenciaram o problema do uso abrangente de ima-
gens de domínio público, utilizadas repetitivamente com fins de reduzir
custos de produção, que não necessariamente atendem à representativi-
dade da história das mulheres, e também a má utilização das imagens,
que frequentemente não possuem ligação com os textos que as acom-
panham e não são operadas como fonte histórica, figurando apenas
como ilustração, de forma descontextualizada. Carvalho (2015) observa
duas situações interessantes que fazem refletir sobre as representações
da mulher negra e o uso de imagens clássicas no LDH. Inicialmente, a
autora faz uma crítica à veiculação estereotipada que pode ser associa-
da a imagens “clássicas” de mulheres negras, presentes na coleção mais
antiga analisada, da década de 1990. Não obstante a permanência na re-
produção de algumas imagens clássicas representando mulheres negras,
a autora sinaliza mudanças na análise da coleção da década de 2010:
as fotografias apresentaram algumas mudanças quanto aos es-
paços ocupados pelas mulheres negras no contexto capturado
(Imagens 17 e 21). Além disso, outras iconografias representa-
ram-nas com destaque na composição do livro didático, pois
foram colocadas nas páginas de abertura das unidades. Estas

228
modificações nas representações foram perceptíveis na análise
comparativa das coleções didáticas e consideramos importante,
uma vez que podem produzir leituras que colocam as mulheres
negras em formas, papéis e espaços que desconstroem imagens
tradicionais e arquitetam outras imagens, influindo ou não no
processo de desconstrução e construção das identidades dos lei-
tores. (CARVALHO, 2015, p. 136).

A má utilização das imagens pelos livros didáticos é destacada,


entre outras, por duas observações nos trabalhos de Carvalho (2015)
e Monteiro (2016). Carvalho descreve a seguinte situação, ao analisar
imagens de mulheres negras acompanhando um exercício proposto:
[os elementos textuais] não estabelecem relação consistente
com as imagens, dessa forma, tanto o texto introdutório como
as questões colocadas não provocam a leitura das imagens como
documentos históricos, assim, a explicitação destas como repre-
sentações, com contextos de produção específicos e o tratamen-
to dos seus elementos simbólicos, fica a cargo do interesse e
competência do/a professor/a para fazer tais leituras em sala de
aula. (CARVALHO, 2015, p. 121).

Quanto à problematização e reflexão sobre a história das mu-


lheres nos LDH, identifica-se duas situações: por um lado, não parecem
existir oportunidades de problematização e inclusão da história das mu-
lheres em exercícios que envolvam trabalho com fontes e interpretação
histórica porque não há integração efetiva das mulheres de forma orgâ-
nica à narrativa do LDH. Por outro lado, quando existe algum esforço
de problematização, há dificuldade justamente por essa razão: não há
narrativa histórica, no livro, que sirva de repertório para que os exer-
cícios se sustentem e possam ser respondidos pelos estudantes. Expõe
Monteiro ao analisar semelhante questão:
O box sobre as revistas femininas merece elogios. Há, neste,
uma problematização de estereótipos de gênero que permite
uma reflexão sobre a historicidade da questão. Só se salienta

229
que não há muitos dados anteriores, no LD, para auxiliar na
produção de conhecimentos históricos que possam ajudar nas
questões propostas. Após este box, as mulheres desaparecem em
números. Sendo apenas Ivete Vargas e Dilma Rousseff citadas.
Se evoca as lutas das mulheres, mas não se mostra como esta
luta continuou e quais foram os resultados de suas mudanças
na sociedade brasileira. Como numa mágica, as mulheres che-
garam à presidência. Não há fatos que permitam entender a
continuidade e a formação desta possibilidade. (MONTEIRO,
2016, p. 204)

Ao articularmos as pistas que obtivemos dos primeiros conjun-


tos documentais analisados – os Editais do PNLD e os Guias de Livros
Didáticos – aos consensos elaborados pelas pesquisadoras que se dedi-
caram sistematicamente a problematizar a questão da história das mu-
lheres no LDH, nos deparamos com algumas mensagens conflitantes.
Inicialmente, percebemos que os Editais e os Guias de Livros
Didáticos parecem andar diacronicamente no mesmo passo, au-
mentando a visibilidade para as questões de gênero e da história das
mulheres ao longo das edições no PNLD, culminando em menções
explícitas na edição de 2018.
Mediante sinalização dos Guias, a história das mulheres não fi-
gura como eixo central da maioria dos livros didáticos aprovados, po-
rém, constatou-se a existência de um reduzido conjunto de coleções que
parece ter encarado o desafio de integração das mulheres como propos-
ta, assumindo uma reestruturação da narrativa histórico-historiográfica
também em outros níveis. A evidência de livros didáticos que tenham
feito tentativas concretas nesse sentido, entretanto, não aparece nos tra-
balhos do corpus. Assim, podemos inferir alguns cenários de explicação
para esse descompasso.
Em primeiro lugar, é possível que nenhum trabalho acadêmico
tenha, de fato, analisado documentalmente alguma coleção desse conjun-
to – nenhum dos trabalhos do corpus debruçou-se, por exemplo, sobre os

230
livros didáticos pertencentes ao PNLD 2018. Em segundo lugar, infere-se
que o recorte das coleções que as dissertações do corpus tomaram para
análise não tenha alcançado esse grupo menor de coleções. As coleções
analisadas pela maior parte dos seis estudos que cotejamos foram sele-
cionadas de acordo com o mapa de distribuição do LD no Brasil, sendo
selecionadas as coleções de maior distribuição, um critério justificado, já
que automaticamente são os livros didáticos mais presentes nas salas de
aula brasileiras. É possível, nesse sentido, que as coleções mais compradas
e distribuídas não façam parte do grupo diminuto de coleções que efeti-
vamente integra temáticas de gênero e a história das mulheres.
Vemos, assim, a complexidade da questão: ainda que alcance os
documentos normativos, esteja mencionada nos Guias do Livro Didático
e, de fato, se faça presente em um determinado número de coleções, não
há garantia de presença da história das mulheres e das temáticas de gêne-
ro via livro didático de História nas salas de aula e no ensino de História,
no Brasil. Percebemos um caminho ainda tortuoso, especialmente se con-
siderarmos que o principal avanço observado nas últimas duas décadas
pela produção acadêmica, em torno da inclusão da história das mulheres
no LDH, foi o aumento expressivo de representação imagética e a incor-
poração pontual do tema em boxes e seções especiais dos livros. Nos pare-
ce uma representatividade pouco condizente com a necessidade que está
na base da história das mulheres e de gênero: a de uma nova concepção de
história, afastada de narrativas unívocas, etnocêntricas, sexuadas.

CONSTRUINDO A MELODIA: POSSIBILIDADES


PARA UMA NOVA HISTÓRIA ESCOLAR?

Como muito bem nos ensina Le Goff (1988, p. 72), “a mentalidade


é aquilo que muda mais lentamente”. Nos últimos anos temos nos depara-
do com visões que acreditávamos já terem sido superadas no tecido social

231
brasileiro, quando, por exemplo, a ministra da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos, Damares Alves, diz que “menino veste azul e menina
veste rosa” (CERIONI, 2020); quando o bispo Edir Macedo afirma que não
permitiu que suas filhas cursassem faculdade antes do casamento, pois nes-
te caso ocupariam o lugar do homem, que é a “cabeça do casamento”7 ; ou
quando o médico Ítalo Marsili, cujo nome foi especulado para assumir o
Ministério da Saúde, declara em vídeo que o voto feminino faz mal à demo-
cracia, pois “é muito fácil você convencer uma mulher de votar. É só você
seduzi-la" (CAETANO, 2020). Situações como essas mostram quão impor-
tante é o papel da escola na luta pelo respeito e valorização das mulheres,
o que passa também pela inserção qualificada da história das mulheres nos
programas curriculares e no livro didático de História.
Os silêncios de grande parte das coleções de livros didáticos e da
nova Base Nacional Comum Curricular ao tratar dos temas de gênero
são ocupados, na atualidade, por brados que deturpam décadas de estu-
do e luta, de um lado, da academia e da historiografia, de outro, dos mo-
vimentos sociais, pela legitimidade da história das mulheres, dos estudos
de gênero e dos direitos das mulheres. Nas redes sociais e em determina-
dos setores da sociedade, brotam expressões como “ideologia de gênero”,
que esvaziam de sentido a história construída pelas mãos da diversidade
humana ao denunciarem a suposta “doutrinação ideológica” em exercí-
cio nas escolas que assumem a discussão das temáticas de gênero.
Ao construir um estranhamento – por apatia, exclusão ou com-
bate – à temática de gênero, perfaz-se um cenário temeroso, já que se
nega uma importante estrutura de poder, que constrói e mantém a so-
ciedade. Ao não permitir que tais discussões adentrem a escola de for-
ma legítima, se recusa o reconhecimento da escola como instituição que
produz expectativas, representações, limitações e desigualdades de gê-
7 EM VÍDEO, Edir Macedo diz que proibiu filhas de estudarem antes de casar. Universa Uol, 24 de setembro
de 2019. Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/24/edir-macedo-
diz-que-so-deixou-filhas-fazerem-faculdade-apos-casamento.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 20 mai.
2020.

232
nero. A garantia da presença da história das mulheres, por intermédio
do livro didático de História, faz diferença nesse cenário.
Por fim, assinalamos que livro didático de História é um ins-
trumento que ainda precisa de avanços. Se, por um lado, prosperamos
nos esforços de eliminar os estereótipos de gênero mais evidentes, de
maior visibilidade e impacto, por outro lado, permanece o desafio de
identificar e enfrentar as sutilezas, como o sexismo velado, a misogi-
nia disfarçada, o silêncio, a ausência ou a invisibilidade feminina em
inúmeras conjunturas históricas. O caminho está lentamente sendo
construído, mas carece de fortalecimento, a começar pelo enfrenta-
mento maciço da narrativa feita de conteúdos canônicos, realidade
ainda presente e cuja necessidade de superação há décadas vem sendo
reiterada pelos pesquisadores do campo do Ensino de História. No
entanto, precisa-se também reforçar a luta em permitir que os espaços
políticos de discussão a respeito da temática de gênero permaneçam
vivos, tarefa hoje envolvida por uma bruma cada vez mais difícil de ser
dissipada. O LDH que queremos está em consonância com a socieda-
de que queremos e pela qual lutamos – é nessa direção que devemos
aportar toda e qualquer possibilidade de avanço.

REFERÊNCIAS

BARDIN, L. Análise de conteúdo. 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2007.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei n. 11.340/2006. Lei Maria da Penha. Cria mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: <https://www2.
camara.leg.br/legin/fed/lei/2006/lei-11340-7-agosto-2006-545133-normaatualizada-pl.pdf>.
Acesso em: 30 set. 2021.

BRASIL. IBGE. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Estatísticas de Gênero:


indicadores sociais das mulheres no Brasil. Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e
Socioeconômica, n. 38, Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf. Acesso em dez. 2018>. Acesso em: 20 set. 2021.

233
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação. Edital de convocação para inscrição no processo de avaliação e seleção de obras didáticas
para o Programa Nacional do Livro Didático PNLD 2012 – Ensino Médio. Brasília, DF, 2010.

_____. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Fundo Nacional de


Desenvolvimento da Educação. Edital de convocação 01/2013 – CGPLI - Edital de convocação
para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do
Livro Didático - PNLD 2015. Brasília, DF, 2013.

_____. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Fundo Nacional de


Desenvolvimento da Educação. Edital de convocação 04/2015 – CGPLI - Edital de convocação
para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do
Livro Didático - PNLD 2018. Brasília, DF, 2015.

_____. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Fundo Nacional de


Desenvolvimento da Educação. PNLD 2012 - História. Guia de Livros Didáticos – Ensino
Médio. Brasília, DF, 2011.

_____. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Fundo Nacional de


Desenvolvimento da Educação. PNLD 2015 - História. Guia de Livros Didáticos – Ensino
Médio. Brasília, DF, 2014.

_____. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Fundo Nacional de


Desenvolvimento da Educação. PNLD 2018 – História. Guia de Livros Didáticos – Ensino
Médio. Brasília, DF, 2017.

CARVALHO, Rayssa Andrade. Leituras sobre representações imagéticas femininas negras em


livros didáticos de História. 2015. 160 f. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento
de História, Universidade Federal da Paraíba, 2015.

CAETANO, Guilherme. Saiba quem é Ítalo Marsili, médico sugerido por bolsonaristas para
assumir Ministério da Saúde. In: O Globo, 18 de maio de 2020. Disponível em: <https://oglobo.
globo.com/brasil/saiba-quem-italo-marsili-medico-sugerido-por-bolsonaristas-para-assumir-
ministerio-da-saude-24432986>. Acesso em 20 mai. 2020.

CERIONI, Clara. Menino veste azul e menina veste rosa, diz Damares em vídeo. In: Revista
Exame, 3 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://exame.com/brasil/menino-veste-azul-e-
menina-veste-rosa-diz-damares-em-video/>. Acesso em: 20 mai. 2020.

EM VÍDEO, Edir Macedo diz que proibiu filhas de estudarem antes de casar. Universa
Uol, 24 de setembro de 2019. Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/
redacao/2019/09/24/edir-macedo-diz-que-so-deixou-filhas-fazerem-faculdade-apos-
casamento.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 20 mai. 2020.

234
FERREIRA, Angela Ribeiro. Representações da história das mulheres no Brasil em livros
didáticos de História. 2005. 146 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2005.

FRANÇOSO, Fernanda Gomes. Os lugares de mulheres negras em materiais didáticos de


história da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado em
Educação). 2017. 184 f. Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista,
Presidente Prudente, 2017.

LE GOFF, Jacques. As mentalidades: uma história ambígua. In: LE GOFF, Jacques; NORA,
Pierre (Orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.


16. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

MARTINS, Cristiane da Silva Lima. Entre textos e imagens: representações femininas em


livros didáticos de História (2008-2014). 2018. 175 f. Dissertação (Mestrado em História)
- Departamento de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Estadual de Feira de Santana,
Feira de Santana, 2018.

MONTEIRO, Paolla Ungaretti. (In)Visibilidade das mulheres brasileiras nos livros didáticos
de História. 2016. 228 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação,
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.

PAULA, Larissa Klosowski de. Consciência histórica e temática das mulheres nos livros
didáticos de História. 2017. 247 f. Dissertação (Mestrado em Ensino - Formação Docente
Interdisciplinar). Centro de Ciências Humanas e da Educação, Universidade Estadual do
Paraná, Curitiba, 2017.

PERROT, Michelle. História (sexuação da). In: HIRATA, Helena (Org.). Dicionário Crítico do
Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 111-116.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto
Alegre, vol. 20, n. 2, p.71-99, jul./dez. 1995.

SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: Novas
Perspectivas. São Paulo: Unesp. 1998.

235
Direito à diferença: História
e culturas indígenas

Lígio de Oliveira Maia1

1 Doutorado e Pós-Doutorado em História pela UFF. Professor do Departamento de História da Univer-


sidade Federal do Rio Grande do Norte, do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de
Pós-Graduação Mestrado Profissional em Ensino de História.

236
Portanto, o maior desafio que o historiador dos índios enfrenta
não é a simples tarefa de preencher um vazio da historiografia,
mas, antes, a necessidade de desconstruir as imagens e os pres-
supostos que se tornaram lugar-comum nas representações do
passado brasileiro. John M. Monteiro. Armas e armadilhas, 1999.

Começo essa reflexão fazendo referência a uma das mais lúci-


das narrativas sobre a diferença humana, ou melhor, sobre as diferen-
tes humanidades existentes em nosso planeta. O texto foi escrito por
Davi Kopenawa, líder e xamã Yanomami da aldeia de Watoriki, do
estado do Amazonas. Instigante, seu título é Descobrindo os Brancos
cujos tópicos “Dos espíritos canibais”, “Descobrir o descobrimento”
e “O povo das mercadorias”, já nos dá uma ideia do ponto de vista de
sua narrativa: trata-se da compreensão yanomami do encontro com
os brancos, os não-índios, aqueles que não eram considerados gente.
Dizia ele: “No começo das coisas, aqui só havia habitantes da floresta,
seres humanos”. Isso porque a autodesignação yanomae thëpë, “seres
humanos”, diz respeito apenas a eles e aos outros índios em oposição
aos animais, aos seres sobrenaturais e, em certa medida, aos não-ín-
dios (napëpë) (KOPENAWA, 1999, p. 18, nota 6).
Narrando sua trajetória a partir de suas memórias, desde a infân-
cia, então tomou conhecimento dos brancos: “Eu nunca os vira, não sabia
nada deles. Nem mesmo pensava que eles existissem. Quando os avistei,
chorei de medo. Pensei que eram espíritos canibais e que iam nos devorar
[...]. Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam” (KOPENAWA, 1999,
p. 16). Descobrir o Outro, aquela alteridade radical a partir de si, não foi
nada fácil para aquele tenro garoto. Mas a questão mais premente para ele
era saber, afinal, por que aqueles brancos não cuidavam de suas próprias
terras e por que eles estavam então destruindo a sua:
Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia
muito tempo viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles cha-
mam Eropa [sic]. Era sua floresta, mas eles a desnudaram pouco

237
a pouco cortando suas árvores para construir suas casas [...].
Continuaram a destruir a floresta, dizendo-se: ‘Nós vamos nos
tornar o povo das mercadorias! Vamos fabricar muitas delas e
dinheiro também! Assim, quando fomos realmente muito nu-
merosos, jamais seremos miseráveis!’. Foi com esse pensamento
que eles acabaram com sua floresta e sujaram seus rios. Agora,
só bebem água ‘embrulhada’, que precisam comprar (KOPE-
NAWA, 1999, p. 19-20).

Para além da lógica mercantil dos povos da mercadoria, Davi


Kopenawa segue dando outra explicação:
Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto.
Algumas cidades são belas, mas seu barulho não para nunca.
Eles correm por elas com carros, nas ruas e mesmo com trens
debaixo da terra. Há muito barulho e gente por toda parte. O
espírito se torna obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar
direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de ver-
tigem e eles não compreendem nossas palavras [...]. O pensamen-
to desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam
a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debaixo de
suas casas (KOPENAWA, 1999, p. 19-20, grifos nossos).

Davi Kopenawa, agraciado com o prêmio Global 500 do Progra-


ma das Nações Unidas para o Meio Ambiente, depois de Chico Men-
des, e condecorado pela outorga da Ordem de Rio Branco ao grau de
cavaleiro, concluiu assim sua impressão dos brancos, aqueles que ainda
não eram “seres humanos” (napëpë): “Os brancos nunca pensam nessas
coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm medo. Seu
pensamento está cheio de esquecimento” (KOPENAWA, 1999, p. 21).
Ao apontar que os brancos estão com os pensamentos cheios
de vertigem e de esquecimento é preciso apontar, afinal, qual o lugar
da História para esses povos originários e, nesse processo, atentarmos
para as suas distintas formas de apropriação pela historiografia também
enquanto uso desse conhecimento para fins de uma História a ser en-

238
sinada, tanto no espaço escolar, quanto no mais conhecido e difundido
suporte físico pedagógico, o livro didático. Com isso, espera-se não so-
mente pensar as diferenças humanas, mas o reconhecimento do direito
à diferença, da necessidade mesmo do direito à coexistência.
Não há dúvida que a Educação se transformou ao longo dos
anos numa das prioridades na luta dos povos indígenas no Brasil pelos
seus direitos constitucionais. Em pauta, o reconhecimento estatal de sua
condição diferenciada que lhes garanta uma política educacional tam-
bém diferenciada. Daí resulta uma diversidade de políticas públicas no
âmbito de sua educação escolar e do tratamento das temáticas indígenas
em escolas não indígenas ou convencionais. Entre esses dois aspectos,
de uma educação escolar indígena e de uma educação da diversidade
étnico-racial no Brasil através da obrigatoriedade do ensino da história
e das culturas indígenas nos currículos escolares da Educação Básica no
país (BRASIL, 2008), abre-se um imenso campo de reflexão acerca do
efetivo alcance dessas políticas públicas para e sobre os índios.
A elaboração das leis e normas legais, contudo, não são ga-
rantias de sua efetiva consolidação, pois muito ainda resta por fazer,
especialmente na promoção de políticas educacionais que garantam
a formação continuada de professores, a produção de material di-
dático específico e a luta constante contra o racismo institucional
(SILVA, 2012; BANIWA, 2006).
Com a Lei 11.645/2008 que modificou o Art. 26-A da LDB (Lei
de Diretrizes e Bases da Educação) tornou-se obrigatória o ensino da
História e Cultura Indígena em todos os estabelecimentos públicos e
privados da Educação Básica no Brasil. Com isso, novas políticas fo-
ram e estão sendo formuladas para o cumprimento desse dispositivo
legal, por exemplo, a inclusão desses preceitos nos seguidos editais
de avaliação no Plano Nacional do Livro Didático do Ministério da
Educação (PNLD/MEC). Todas essas conquistas são frutos diretos

239
dos movimentos indígenas, apoiadores indigenistas e intelectuais que,
antes mesmo da Constituição de 1988, estavam engajados numa luta
mais ampla de garantia de direitos.
Hoje, a partir de uma produção acadêmica consolidada em que
os índios não mais são vistos como meros agentes passivos, mas como
protagonistas indispensáveis de sua própria história e tradição (AL-
MEIDA, 2010), há também uma inequívoca produção de diferentes
especialistas que vêm se dedicando as múltiplas facetas dessa relação
entre História indígena e Educação: desde o Ensino (d)e História indí-
gena (WITTMANN, 2015) e a história indígena em espaços educacio-
nais (BERGAMASCHI; ZEN; XAVIER, 2012) até à maneira como os
próprios povos indígenas estão discutindo essas questões (BANIWA,
2006), passando pela cultura escolar e as políticas “culturais” do Estado
brasileiro (CUNHA; CESARINO, 2016).
O objetivo deste texto não é a realização de uma discussão histo-
riográfica dos povos indígenas no Brasil ou mesmo uma revisão biblio-
gráfica do ensino da temática indígena no espaço escolar. Especialistas
reconhecidos já se deram a esse trabalho, aliás, de maneira bastante con-
sistente (SILVA; SOUZA, 2016). O objetivo aqui é fazer uma reflexão
da temática indígena a partir dos enunciados da Lei 11.645/2008 com o
pretexto de apresentar e discutir alguns parâmetros gerais ou perspecti-
vas de abordagens que possam servir como desdobramentos ampliados
de noções e/ou conceitos pertinentes à história dos índios no Brasil em
sua dimensão no ensino nos livros didáticos, sem qualquer pretensão a
exaustão ou apresentação de fórmulas prontas e acabadas. Para tanto,
discutir-se-á de maneira reflexiva e ampliada cinco aspectos imprescin-
díveis: pluralidade cultural, cultura histórica, protagonismo indígena,
tempo presente e saberes indígenas.

240
LEI 11.645/2008: TEMAS, PROBLEMAS
E PERSPECTIVAS NO ENSINO DA HISTÓRIA E
CULTURA INDÍGENA NO BRASIL

Ainda que discutida, poucos são aqueles que se debruçam na lei-


tura completa da Lei 11.645 de 10 de março de 2008. Eis a íntegra da Lei:
Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada
pela Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as Di-
retrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

Art. 1º - O art. 26-A da Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996,


passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 26-A - Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de


ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estu-
do da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1º - O conteúdo programático a que se refere este artigo inclui-


rá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos ét-
nicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a
luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra
e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade
nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, eco-
nômica e políticas pertinentes à história do Brasil.

§ 2º - Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira


e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito
de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação
artística e de literatura e história brasileiras.

Art. 2º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação


(BRASIL, 2008, grifos nossos).

241
Pelas complexas questões referentes à história de África e a ex-
periência colonial e no império de africanos e afro-brasileiros, minha
reflexão ficará restrita a história e a cultura indígena. Pelo texto da lei
é possível levantar duas questões, a meu ver, complementares porque
partem de premissas equivocas ou ao menos insuficientes.

1ª Questão: A lei se refere aos índios e aos negros como “dois grupos étnicos”.

2ª Questão: Os aspectos da história e cultura indígena que interessam


e que devem ser ensinados são aqueles que “caracterizam a forma-
ção da população brasileira” ou a “formação da sociedade nacional”.
Dito de outra maneira, a única História dos índios possível é aquela
submetida à História nacional, ligada ao Estado e a conformação do
povo brasileiro. De maneira subjacente, não haveria Histórias no plu-
ral, mas apenas a História do Brasil e/ou a História do povo brasileiro,
onde a história e a cultura indígenas apareceriam apenas como um
capítulo, um tópico ou talvez um apêndice desse emaranhado de nar-
rativas do passado que se pretende unissonante. Para essa “almejada
omelete nacional” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 42), diz o adágio
popular que não é possível fazê-la sem quebrar os ovos.

PLURALIDADE CULTURAL NA FORMAÇÃO DO BRASIL

Discutamos então a primeira questão. O designativo “índio”


ou “índios” esconde desde o século XV, ainda com Colombo, uma
pluralidade imensa de distintos povos nativos também eles porta-
dores de histórias e culturas diversas. O então velho jesuíta, padre
Fernão Cardim, nos apresentou no início do século XVII, a nome-
ação de nada menos que 70 grupos distintos de tapuias no sertão
colonial (CARDIM, 1939 [1625]). As estimativas demográficas não
são conclusivas: uma das mais aceitas, fala de mais de oito milhões

242
de nativos apenas na América Portuguesa por volta do século XVI
(MONTEIRO, 1994). Tanto quanto a quantidade, o que interessa
mesmo é a diversidade humana: centenas de povos distintos.
No Brasil, vale lembrar que tal designação “índio” também foi ob-
jeto de discussão dentro do movimento indígena antes e durante a Cons-
tituição de 1988. Ainda que reconhecendo que Tabajara não é o mesmo
que Potiguara; e que os Krenak nada tem a ver com os Xucuru, com os
Xikrin ou com os Nambiquara, a nomeação índio foi mantida pelo mo-
vimento indígena enquanto uma ressignificação política dessa categoria
colonial imposta (BANIWA, 2006). Em jogo não estava uma pretensa e
ilusória homogeneidade cultural, mas a reafirmação de povos que pas-
saram por uma experiência histórica comum de difusas violências sob
a égide do colonialismo: desde a imposição sociocultural de matiz cristã
sob o governo de missionários, passando pela dominação e escravização
através de guerras de conquista até a usurpação e esbulho de suas terras
de ocupação tradicional. Apenas para citar alguns desses processos.
Vale lembrar ainda que, de acordo com o último Censo Geral do
IBGE (2010), quase 818 mil (817.963) pessoas se autodeclararam indí-
genas (0,44%), distribuídas em mais de 240 povos distintos – bem mais
que as 234 etnias existentes em todo o continente europeu (BANIWA,
2006, p. 219) - e falantes de mais de 180 línguas (das 230 registradas
no Brasil). Pluriétnico e multilíngue, historicamente o Brasil, nas pala-
vras de Freire, “esqueceu essas línguas, e esqueceu que as esqueceu”, pois
“aquilo que se opõe a memória não é o esquecimento, mas o esqueci-
mento do esquecimento” (FREIRE, 2016, p. 386).
Por outro lado, não deixa de ser paradoxal observar o quanto o
Brasil é valorizado – inclusive, internacionalmente - quanto a sua di-
versidade de fauna e flora e variações ecológicas, com ecossistemas e
biogeografias distintas ou biomas: Floresta Amazônica, Pantanal, Cer-
rado, Caatinga, Pampas etc. Mas e a biodiversidade humana? Por que

243
não se valoriza a riqueza das mais de duas centenas de povos existentes
neste país? Por que não se dá o valor necessário às quase duas centenas
de línguas que, de acordo com os linguistas, cada uma delas decodifica
o Mundo de maneira muito particular, muito específica, por que não
ganha ela a mesma relevância e importância? Será que esquecemos que
esquecemos que esse país é diverso?
De maneira complementar, mas com gradação diferente, passe-
mos a segunda questão no texto da Lei 11.645/08, quanto aos aspectos da
história e cultura indígena que se deveria ensinar porque “caracterizam a
formação da população brasileira” ou a “formação da sociedade nacional”.
O pressuposto aqui é que o Brasil é etnicamente uno e monolín-
gue, todos nós amparados sob o manto da mestiçagem, isso sei lá o quê
que conforma a tudo e a todos. Essa história já nos foi contada e todos nós
conhecemos seu efeito perverso. Na literatura, o indianismo de Alencar, já
nos ensinou Alfredo Bosi no hoje clássico Dialética da colonização (1992),
a virgem dos lábios de mel, Iracema, praticamente inexiste, pelo menos
de maneira plena enquanto índia tabajara, pois abandona os seus da Ser-
ra Grande de Ibiapaba para juntar-se a Martim, cuja união resultara em
Moacir, essa terceira forma acabada posto que nem índio nem europeu!
Enfim, apenas Moacir, essa outra alteridade plena que conseguiu já nascer
pronto, nosso miscigenado cearense. O índio de Alencar só interessa ao
autor até o momento em que gravita em torno do colonizador para logo
em seguida anular-se: o índio então já não é mais índio! Simples assim:
Iracema morre no parto e Moacir é levado pelo pai, Martim, eis o decreto
da extinção indígena frente ao colonizador.
Com clara contribuição da literatura e das artes plásticas, no pla-
no historiográfico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB
(1838) e seus promotores, o discurso sobre o índio serviu a uma “mito-
grafia nacional que colocava os nobres, valentes e, sobretudo, extintos
Tupi no centro do palco” (MONTEIRO, 2001, p. 26); conseguindo con-

244
formar a imagem do Tupi heroico e aliado dos portugueses, mas derro-
tado, em contrapartida aos índios vivos, coetâneos daqueles homens do
século XIX. Projeção de uma imagem relegada ao passado, eis o lugar
dos índios no discurso historiográfico do IHGB, parte dos bastidores do
edifício da História, para usar aqui uma lúcida metáfora ao contraponto
do palco do protagonismo indígena na história (ALMEIDA, 2010). A
eles, os índios vivos, serviu a efetividade da extemporânea declaração de
guerra justa, decretada pelo recém-chegado príncipe regente ao Rio de
Janeiro, D. João, ainda em 1808.
Essa relação dúbia, quase esquizofrênica entre mestiçagem e
identidades vem provocando leituras enviesadas e mesmo equivocadas
acerca da experiência indígena na História do Brasil.2 A mestiçagem
não deve ser tomada apenas em seus mecanismos raciais e racializados,
mas como categoria sociológica e jurídica que tende a reafirmar precon-
ceitos, segregações e estigmas em situações de contato. A condição de
indígena nada tem a ver com raça ou cor, pois engendrada em mecanis-
mos políticos e culturais mais amplos na sociedade, cuja visibilidade só
é possível reconhecer adentrando os processos históricos, apontando as
experiências socioculturais dessas coletividades e, no limite, suas ações
enquanto indivíduos (OLIVEIRA, 2016).
Não se deve esquecer que a mais expressiva e inovadora con-
tribuição legal da Constituição de 1988 está justamente respaldada no
pressuposto do direito à diferença. Assim dispõe seu cap. VIII, art. 231:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicio-
nalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens” (BRASIL, 1988).
2 Não se está aqui negando os processos de mestiçagem, aliás, hoje há uma vertente de discussão historio-
gráfica bastante instigante no Brasil (PAIVA, 2015). Mas enfatizando que quando essa premissa é usada com
pouco rigor heurístico na história dos povos indígenas corre-se sempre o risco de perder a historicidade dos
processos históricos mais amplos (Oliveira, 2016). E, não menos importante, corre-se o risco de despolitizar
o movimento indígena contemporâneo em sua luta pela diferenciação étnica frente ao Estado e a sociedade
brasileira.

245
Por isso, não há mais espaço legal para a tutela, a ideia de que
os povos indígenas deveriam ser conduzidos por um Estado indul-
gente/benevolente, preocupado em defender o interesse desses povos
ainda na infância na evolução humana. Ora, a questão então passa a
ser outra: e quem defenderá os índios do Estado colonial/nacional?
Voltarei a isso um pouco mais à frente, mas gostaria de insistir neste
aspecto inovador da Constituição de 1988.
Ao nos debruçarmos sobre a política indigenista no Brasil –
desde o remoto Regimento de Tome de Souza, de 1548, passando pelas
abrangentes legislações indigenistas, como o Regimento das Missões
(1686) e o Diretório pombalino (1759) - o que se percebe muito clara-
mente é uma longa e perturbadora perspectiva que vai da integração à
assimilação. Talvez, com exceção das chamadas Leis de Liberdade de
1605 e 1680 e com algum grau de dubiedade com a Lei de 1755 – todas
elas quase que imediatamente revogadas e substituídas – a legislação
indigenista colonial apontava para distintos graus de integração atra-
vés de dispositivos positivos que ia desde certo isolamento com algu-
ma lógica de reconhecimento ao outro, como ocorrera, por exemplo,
na maior parte das missões e aldeias jesuíticas. Até no limite, a clara
perspectiva assimilacionista que, a partir de 1759, passava a vigorar
com a aplicação do diretório pombalino, inclusive, com efeitos legais
até muito adentro o século XIX.
De um ao outro contexto histórico, da integração a assimila-
ção, tudo passava pelo crivo ideológico da transição. Se o Regimento
das Missões (1686) garantia certo isolamento dos índios, ainda que
subordinados aos seus missionários: “nas aldeias não poderão assistir,
nem morar outras algumas pessoas, mais que os índios com suas famí-
lias” (§4); no diretório pombalino, a assimilação e a subjacente tran-
sitoriedade são elementos claros como água. Dizia o diretório (§3):
“Não se podendo negar, que os Índios deste Estado se conservaram até

246
agora na mesma barbaridade, como se vivessem nos incultos sertões,
em que nasceram, praticando os péssimos, e abomináveis costumes do
Paganismo”, portanto, “não só privados do verdadeiro conhecimento
dos adoráveis mistérios da nossa Sagrada Religião, mas até das mes-
mas conveniências temporais, que só se podem conseguir pelos meios
da Civilidade, da Cultura e do Comércio”; com isso, era evidente “que
as paternais providências do Nosso Augusto Soberano, se dirigem uni-
camente a cristianizar, e civilizar estes até agora infelizes e miseráveis
Povos”; e arremata: “para que saindo da ignorância, e rusticidade, a
que se acham reduzidos, possam ser úteis a si, aos moradores e ao Es-
tado” (BEOZZO, 1983, grifos nossos).
De pessoas ignorantes e miseráveis para cristãos convertidos, eis
a lógica do Regimento das Missões (1686); depois para felizes povos,
por meio da civilidade, cultura e comércio, dizia o diretório (1759). Mas
vejam: tudo isso sob a tutela da Coroa/Estado colonial. Aliás, vale lem-
brar que Miseráveis povos, era uma condição jurídica semelhante ao dos
órfãos: desprotegidos, a eles cabia o Estado proteger. Daí “as paternais
providências do Nosso Augusto Soberano”.
No império, o Regulamento acerca das Missões de catechese e ci-
vilização dos índios (1845), que em tese protegeria os índios nas aldeias,
rezava no seu primeiro parágrafo que sobre cada uma das aldeias se
informasse ao “governo imperial sobre a conveniência de sua conserva-
ção, ou remoção, ou reunião de duas, ou mais, em uma só” (BEOZZO,
1983). Estava aberto o caminho para o sistemático esbulho das terras
sob o domínio coletivo dos índios.
A Lei de Terras de 1850, regulamentada em 1854, que discipli-
nava os diferentes tipos de posse, usos e apropriações fundiárias, entra
neste contexto como a pá de cal daquele sistema de coisas, pois a úni-
ca terra que interessava era a terra produtiva na lógica de então; mas
aí, tem-se outro empecilho: povoado o litoral e devassado o sertão, as

247
últimas terras produtivas eram aquelas das antigas missões religiosas
que os índios se referiam como “a terra da Santa”, numa clara referên-
cia histórica a antiguidade de sua posse desde os antigos aldeamentos
e missões religiosas. Que fazer então? Esbulhada paulatinamente e ao
arrepio da lei – posto que houvesse salvaguarda do uso coletivo da terra
pelos índios, de acordo com a própria Lei de terras de 1854 -, o expe-
diente usado foi se apropriar de uma categoria social para fazer dela
também uma categoria da miscigenação: o caboclo, aquele outro que
não era mais índio e que nunca fora branco, uma também terceira for-
ma acabada – igualzinha ao nosso Moacir alencarino – enfim, apenas
caboco, para sermos fiel ao uso da oralidade, especialmente pelos povos
indígenas do Nordeste; ideologicamente construída, caboclo é uma cate-
goria sociológica (e jurídica?) intencionalmente elaborada com o fim de
se apossar das terras indígenas. Miscigenado, caboclo, não haveria mais
índio, sendo então as terras ocupadas consideradas devolutas, devendo,
assim, serem revertidas aos “próprios nacionais”, como mencionavam
os Relatórios dos então presidentes das Províncias do Norte: primeiro
do Ceará, em seu pretenso decreto da extinção dos índios, em 1863,
seguido de todos os outros (SILVA, 2011).

CULTURA NO SENTIDO HISTÓRICO

Mais do que uma simples versão da história, o processo por al-


guns denominado de “caboclização” dos povos indígenas do Nordeste
no século XIX, significou pari passu a sua “invisibilidade” historiográfi-
ca e a perda legal da posse e usufruto de suas terras coletivas. Luís da Câ-
mara Cascudo, numa enigmática passagem, assim se referiu aos índios:
Em três séculos toda essa gente desapareceu. Nenhum cen-
tro resistiu, na paz, às tentações daguardente, às moléstias
contagiosas, às brutalidades rapinantes do conquistador. Re-

248
duzidos, foram sumindo, misteriosamente, como sentindo
que a hora passara e eles eram estrangeiros na própria terra
(CASCUDO, 1984, p. 38).

Ainda quanto a esse aspecto, sendo caboclo uma categoria histo-


ricamente construída, não há dúvida que ela foi instrumentalizada por
razões políticas e ideológicas cujos efeitos mais abrangentes continua a
entorpecer o sentido analítico dos historiadores. Caudatária da teoria
da miscigenação – por extensão da aculturação -, os índios contemporâ-
neos nos ajudam a pensar melhor nela para além do sumiço misterioso
de que nos fala Cascudo; hoje, diversos povos indígenas se apropriam
da nomeação de caboclo para fazer o exato oposto, isto é, dar visibilida-
de aos seus sinais diacríticos de indianidade: assim se deu, por exemplo,
com os caboclos da Serra do Ororubá, os índios Xucuru, na cidade de
Pesqueira/PE (SILVA, 2014); com os Caboclos da cidade do Assú (RN),
ou com a comunidade dos Mendonça do Amarelão, na cidade de João
Câmara (RN), cujas lideranças dizem que sempre souberam que eram
cabocos ou tapuias, ainda que não soubessem que caboclo ou tapuia fos-
sem índios (GUERRA, 2011).3
Infelizmente, Câmara Cascudo não está sozinho. O traba-
lho voluntarista por muitos considerado até messiânico de Cândido
Rondon, então à frente do SPI (Serviço de Proteção aos Índios, 1910-
1967), cujo lema era: “Morrer se preciso for matar nunca!”, em seu
sentido histórico ampliado, dá bem o tom do tipo de contado que se
fazia naquele período com as frentes de expansão para o Centro-O-
este e Norte do Brasil. Mesmo com a Seção de Estudos do SPI – que
lhe dará um discurso acadêmico, científico, organizado por Darcy
Ribeiro - o pressuposto da transitoriedade do índio a condição de
não-índio permanecera (FREIRE, 2011).
3 Em diferentes regiões do Brasil, Tapuia, Tapuio e caboclo são, em geral, categorias sociais que tendem
a escamotear a indianidade, com grave repercussão política e cultural ao enfatizar a suspeição das
identidades étnicas dos índios contemporâneos. Conferir os vários autores e estudos específicos, em
Oliveira (2004, 2011).

249
Um dos principais e, talvez, dos últimos intelectuais públicos
do Brasil, Darcy Ribeiro foi figura fundamental na criação do Parque
Nacional do Xingu (1961) e do Museu do Índio (1953) e sua ação no
SPI e na política indigenista brasileira são indiscutíveis. Entretanto,
no seu emblemático livro de 1968, Os índios e a civilização (publi-
cado em 1970), ele fez uso do seguinte subtítulo: “a integração das
populações indígenas no Brasil moderno”. Ao se referir aos povos
indígenas da região Nordeste do Brasil, o autor carregou nas tin-
tas: “magotes de índios desajustados eram vistos nas margens do São
Francisco [...] assim viviam os seus últimos dias os remanescentes
dos índios não litorâneos do Nordeste que alcançaram o século XX”;
sem esconder seu desapontamento, continua o autor: “simples resí-
duos, ilhados num mundo estranho e hostil e tirando dessa hostili-
dade a força de permanecerem índios”. E conclui com desconfiança:
“Pelo menos tão índios quanto seja compatível com sua vida diária
de vaqueiros e lavradores sem-terra” (RIBEIRO, 1970, p. 71).
O autor do conceito de “transfiguração étnica”, em que pese
à importância histórica e antropológica de seu trabalho, não conse-
guiu ir muito além do fatídico destino da descaracterização étnica
e cultural dos povos indígenas (OLIVEIRA, 2002). Tudo era uma
questão de tempo, cabendo aos indigenistas e intelectuais engaja-
dos retardar tal processo.
Há hoje um consenso entre os estudiosos da história indíge-
na quanto a indispensável necessidade de considerar a historicidade
da cultura, primando em suas análises pelos processos de mudança
da cultura ao longo do tempo a partir da experiência dos índios em
diferentes contextos históricos. Tomar isso como um pressuposto, sig-
nifica, entre outras coisas, redimensionar a estreiteza de conceitos e/
ou categorias analíticas estanques e mesmo a-históricas. Conceitos
como etnocídio, etnogênese, genocídio, culturas e identidades devem

250
ser usados em sua dimensão histórica, processualista, sem perder de
vista seus aspectos de transformação ao longo do tempo (MONTEI-
RO, 2001; MINTZ, 2010; THOMPSON, 2001). A aculturação, grosso
modo, compreendida como uma mudança cultural progressiva que
conduziria a perda da cultura indígena e sua consequente assimilação
ao agente dominador e perda da sua identidade étnica, contribui para
a falsa dualidade entre índio puro versus índio aculturado; o mesmo,
quanto à rígida perspectiva teórica da estrutura cultural versus pro-
cesso histórico. Tais dualismos foram “responsáveis por abordagens
redutivistas que conduziram a visões equivocadas sobre a atuação dos
índios nos processos históricos” (ALMEIDA, 2010, p. 16).
Esse entendimento é fruto de uma corrente de estudos históri-
cos e antropológicos ligada aos processos de etnicidade e reelaboração
cultural; história cultural e cultura histórica; identidades e grupos ét-
nicos; memória e história, enfim, processos teóricos e metodológicos
forjados a partir de um diálogo interdisciplinar, especialmente – mas
não apenas - entre as disciplinas da História e Antropologia.4

TEMPO PRESENTE: NOVOS TEMAS, NOVOS DESAFIOS

Os historiadores do tempo presente enfrentam a difícil tare-


fa de estudar os fenômenos históricos quase na sua temporalidade de
atuação. Neste sentido, as memórias e processos de reconstituições de
eventos/acontecimentos são essenciais para a construção desse tipo de
conhecimento histórico. A pluralidade das fontes e seus múltiplos regis-
tros simultâneos são também outro desafio: documentos audiovisuais,
fotografias, relatos orais e escritos, fontes jornalísticas, charges, filmes,
documentários, peças publicitárias, músicas, diferentes suportes da in-
formática etc. Na história do tempo presente, “essa profusão de fontes
4 Não há espaço aqui para apresentar a riqueza dessa discussão. Cf. Monteiro (2001), Almeida (2003) e
Cavalcante (2011).

251
agrega-se a possibilidade que tem o historiador de produzir ele mesmo
fontes para sua pesquisa” (DELGADO; FERREIRA, 2014, p. 9).
No Brasil, em relação à temática indígena, muito recentemente,
a história do presente ou a história no presente foi confrontada com
uma lacuna até então desconsiderada.
No final de 2014, incrédulos, todos nós assistimos as inúmeras
descobertas trazidas a lume pelo relatório final da Comissão Nacional
da Verdade - CNV. Inicialmente organizada para dar conta da persegui-
ção aos ditos elementos “nocivos” e “subversivos”, entre 1946 e 1988, os
membros da comissão tiveram que responder algumas demandas vin-
das de diversas partes do país indagando-os sobre o porquê de não in-
vestigar também a perseguição aos povos indígenas. Vale dizer que nem
mesmo os historiadores especialistas da ditadura civil/militar do Brasil
tinha a menor ideia do que se estava falando.
Na década de 1960, sob um fogo cruzado de denúncias e mal-
versação administrativa, para dizer o mínimo, o SPI foi extinto em
1967, substituído pela FUNAI. Não sem antes, atearem fogo ao prédio
do Ministério da Agricultura, abarrotado de inquéritos com denúncias
não instalados ou não resolvidos. O então procurador da República, Ja-
der de Figueiredo Correia, produziu um relatório, também conhecido
como Relatório Figueiredo com sete mil páginas de evidências de crime
de todo tipo: sevícia; inoculação de varíola em roupas dadas aos índios;
veneno misturado a açúcar; escravidão de mão de obra; usurpação de
terras; e até bombardeio de aviões sobre aldeias inteiras. Há relatos de
genocídio contra várias etnias, entre elas, os Waimiri-Atroari, mortos
mais de dois mil em apenas dois anos de contato com as frentes de atra-
ção para a construção da BR – 174. Só neste caso, quintuplicaria o nú-
mero de mortos e desaparecidos durante o regime autoritário.
Dessa fase nebulosa da história do Brasil, como não mencionar
ainda o Reformatório Agrícola Krenak (Resplendor/MG), eufemismo

252
para uma prisão exclusiva aos índios “indisciplinados”. Quais eram os
crimes praticados? Vadiagem, pois não se podia sair da aldeia sem au-
torização do chefe do posto; por matar um tatu ou um coelho ou por
transportar cachaça ou consumir álcool. Ao todo, fala-se que ao menos
120 índios de vinte e cinco etnias diferentes foram para lá levados, in-
clusive, em aviões da Força Área Brasileira – FAB.
Como não ficar indignado com os poucos minutos do fil-
me mudo intitulado Arara que os funcionários do Museu do índio
achavam se tratar de uma antiga filmografia sobre os índios Ara-
ra ou mesmo ao registro de cenas do exuberante pássaro tropical.
Quase ao acaso, a filmagem foi realizada durante uma parada militar
em que índios fardados levavam um homem amarrado e pendurado
num madeiro, enfim, a arara era mesmo o instrumento de suplício.
Essa força marcial de índios fardados então conhecida como Guarda
Rural Indígena – os GRIN’s – é uma excrescência da violência sem
limites que tomava conta do Estado autoritário e fazia da FUNAI um
repositório de criminosos (BRASIL, 2014).
A relação dos povos indígenas e a ditadura civil-militar é um
campo de pesquisa aberto que deve ser integrada a história contem-
porânea do Brasil. Perscrutar seus arquivos, sistematizar suas fontes
e analisar historicamente seus efeitos nocivos sobre tantas etnias é o
passo inicial para se construir uma história pública, cujo efeito moral
e ético é exigir do Estado brasileiro algum tipo de reparação. Não se
está aqui falando de mera omissão estatal, mas do Estado enquanto
promotor direto da sistemática violação dos direitos humanos dos ín-
dios (BRASIL, 2014). Promover a visibilidade dessa realidade do pas-
sado recente do Brasil envolvendo os povos indígenas é fundamental
a construção de uma consciência histórica mais ampla cuja cidadania
demanda, mais do que nunca, a extensão de seus efeitos a partir de
uma história pública atualizada (BALESTRA, 2016).

253
Para além de um simples período mais aproximado, o concei-
to de tempo presente, “remete em sua acepção extensiva ao que é do
passado e nos é ainda contemporâneo” (DOSSE, 2012, p. 11). Lem-
bra-nos ainda Dosse que, “a própria definição da história do tempo
presente é ser a história de um passado que não está morto, de um
passado que ainda se serve da palavra e da experiência de indivíduos
vivos” (ROUSSO, 1998, apud DOSSE, 2012, p. 16).
Trata-se, pois, no âmbito da história do presente refletir sobre (e
com) os índios vivos, com os índios reais e coetâneos aos historiadores
e suas pesquisas. Nesta perspectiva, mais que em qualquer outra tem-
poralidade, é possível deixar os índios falar, ouvi-los, enfim, promover a
desafiadora interculturalidade para uma consciência histórica plena.
O Guia de Livros Didáticos do PNLD (2017), já apontava que a
partir do tempo presente, a temática indígena “emerge como uma ques-
tão socialmente relevante que evoca a questão dos direitos à terra, à pre-
servação do patrimônio genético e às ações de valorização identitárias”
(BRASIL, 2016, p. 33). Entretanto, os desafios ainda são enormes. Clovis
Brighenti, a partir de sua própria experiência em cursos de formação de
professores/educadores de história e cultura indígena destaca a distân-
cia entre o aparato legal do Estado brasileiro (quanto ao reconhecimen-
to da territorialidade indígena e seu direito à diferença étnico-cultural)
e a compreensão da sociedade brasileira para as demandas atuais dos
povos indígenas. No geral, há aceitação genérica de temas que não im-
pliquem em elementos geradores de mudança; situação adversa quando
os temas são aqueles relacionados ao trabalho, aos direitos fundiários
e a cultura em sua dimensão processual e de mudança, levando a sus-
peição da identidade étnica e, por consequência, a negação dos índios
como portadores de direitos (BRIGHENTI, 2016, p. 243-244).
É necessário integrar a temática da experiência indígena sob a
política indigenista do Estado autoritário durante o regime civil-militar

254
no Brasil às questões já reconhecidas quanto ao respeito às diferenças
culturais, o direito a terra e a manutenção de suas práticas socioculturais
específicas; desde que enfatizando e tornando um problema histórico
relevante para discussão sobre a distância entre a legalidade formal e
a conversão de uma consciência histórica pública. Com isso, espera-se
“favorecer um enfrentamento da temática dos pertencimentos identitá-
rios e uma valorização das lutas por direitos”, promovendo “uma educa-
ção para as relações étnico-raciais, nas quais, especialmente a temática
indígena, seja foco reflexivo e problematizador para sujeitos indígenas e
não indígenas no tempo presente” (BRASIL, 2016, p. 34).

PROTAGONISMO INDÍGENA NA HISTÓRIA



Definitivamente, a história dos índios no Brasil não se re-
sume a crônica de sua extinção (MONTEIRO, 1999). A perspectiva
de Florestan Fernandes, autor de uma obra de referência no âmbito
da etnologia e história indígenas, no Brasil, Organização Social dos
Tupinambá (1963), muito influente na formação de gerações de his-
toriadores da história indígena, carece do elemento da processuali-
dade. Frente ao colonialismo, restaria aos índios, segundo o autor,
apenas três reações possíveis: a resistência armada, seguida da derro-
ta; a assimilação sociocultural aos agentes colonizadores, resultando
na sua descaracterização étnica e cultural; ou a fuga, último recurso
da inexorável conquista.
No bojo das comemorações dos quinhentos anos da viagem de
Cabral, pretenso marco zero da História do Brasil, John Monteiro já
apontava para a necessidade de se reconhecer as perdas irrecuperáveis e
as transformações marcantes que recaíram sobre as diversas populações
indígenas que, apesar disso, são “portadoras de uma herança cultural,
genética e moral que atravessou séculos de riscos e incertezas e estão aí

255
a reclamar os seus direitos históricos e a sua alteridade política” (MON-
TEIRO, 1999, p. 237). No Brasil, no âmbito historiográfico, “é comum
retratar as populações indígenas como meros resquícios de um passado
cada vez mais remoto, como os pobres remanescentes de uma história
contada na forma de uma crônica do desaparecimento e da extinção”.
(MONTEIRO, 1999, p. 247). Relembrando aqui a epígrafe do início des-
te texto, para Monteiro “o maior desafio que o historiador dos índios
enfrenta não é a simples tarefa de preencher um vazio da historiografia,
mas, antes, a necessidade de desconstruir as imagens e os pressupostos
que se tornaram lugar-comum nas representações do passado brasilei-
ro” (MONTEIRO, 1999, p. 239).
Reconhecer o protagonismo indígena na História não significa
como talvez pensem alguns críticos, tomá-lo como um demiurgo de
seu próprio destino. Trata-se antes de algo até mais simples, a capa-
cidade humana desses atores sociais em elaborar respostas possíveis
frente às inúmeras contingências históricas e às múltiplas formas de
dominação. A partir dessa forma consciente de ação (agency) e mesmo
inconsciente que resulta numa “resistência adaptativa” (STERN apud
ALMEIDA, 2010, p. 23) ou de maneira menos direta ou sub-reptícia
através de táticas e estratégias (CERTEAU, 1994), os povos indígenas
se apresentavam (e se apresentam!) no palco da história: negociando,
simulando, inventando, contrafazendo discursos, apropriando-se da
cultura política, reelaborando formas de religiosidade impostas, cons-
truindo suas memórias e exigindo seus direitos, enfim, construindo
sua própria história, ainda que, em geral, sob as diferentes formas de
dominação ao longo da história do Brasil.5

5 Qualquer tipo de levantamento bibliográfico seria contraproducente, pois os exemplos são muitos e di-
versos quanto à temática indígena, inclusive, algumas coletâneas já foram aqui apresentadas. Quanto a este
aspecto, talvez, baste mencionar que o Grupo de Trabalho “Os índios na História” ligado a Associação
Nacional de História (ANPUH), idealizado por John Manuel Monteiro (1956-2013), e criado junto a um
grupo de pesquisadores de diferentes instituições no XXV Simpósio Nacional de História, em Fortaleza, em
julho de 2009, traz como um dos seus objetivos a proposição de simpósios temáticos sobre a participação e
protagonismo dos índios na História do Brasil. Disponível em: <https://anpuh.org.br/index.php/grupos-de-
-trabalho/atividades/item/314-gt-os-indios-na-historia>.Acesso: 15 dez. 2019.

256
Levar o protagonismo indígena em conta significa dá a essa par-
cela da população brasileira o direito à sua própria história, a sua própria
versão do passado e voz as suas demandas no presente e para o futuro.
Neste sentido, ao invés de enfatizar a crônica de sua extinção – sem ne-
gar a dimensão deletéria da experiência colonial e pós-colonial – é fun-
damental enfatizar às suas múltiplas experiências vividas, muito além,
portanto, das três reações propostas por Fernandes. Aliás, os índios não
apenas reagiam, mas agiam frente à história, protagonizando espaços
de atuação, reconstruindo suas identidades, formulando e defendendo
seus direitos, enfim, atuando na sua própria história.

SABERES INDÍGENAS: DECOLONIALIDADE E


INTERCULTURALIDADE DO PODER/SABER

Retomando aqui o conteúdo programático na Lei 11.645/2008,


observa-se que entre os diversos aspectos da “cultura negra e indígena
brasileira” ao ensino na Educação Básica estariam aqueles que disses-
sem respeito “as suas contribuições nas áreas social, econômica e po-
líticas pertinentes à história do Brasil” (BRASIL, 2008, Art. 1º, §1º). O
Estado novamente lança seus tentáculos em sua pretensiosa conforma-
ção unívoca de sentidos; pois a história a ser ensinada deveria ser aquela
atrelada a sua existência e extensão. Nunca é demais lembrar que o dis-
positivo constitucional de “direitos originários” (BRASIL, 1988) funda-
-se na compreensão da existência dos povos indígenas antes mesmo da
própria existência do Estado nacional; um mundo completo e complexo
muito anterior ao Brasil e aos brasileiros (FAUSTO, 2000).
Portadores de um profundo conhecimento do mundo e das coi-
sas no mundo, por muito tempo os índios foram apresentados como
miseráveis povos, órfãos no ideário jurídico colonial, mas assim consi-
derados também no período do Império e nas Repúblicas no Brasil, ao

257
menos até a Constituição de 1988. Observados pelos primeiros cronis-
tas e missionários coloniais como povos sem lei, sem rei e sem fé, con-
cepções de alguma forma reiteradas na invenção dos índios no discurso
historiográfico do IHGB, no século XIX, a eles não foi dada a chance de
demonstrar a sua percepção do outro e do próprio colonialismo. Com
raras exceções, tal estado de coisas permanecera em boa parte do século
XX, ao menos na história oficial escrita.
Entretanto, a memória tem sido um dispositivo indispensável a
dar visibilidade à perspectiva indígena de sua própria história realçando
a força da oralidade na narrativa das memórias do grupo ou indivíduos
em contraposição a uma história escrita e documentada. Não se trata
de uma oposição de “verdades” ou versões do passado, mas de outra
história, ou melhor, de outros tipos de historicidade. Os povos indíge-
nas contemporâneos têm se valido de suas narrativas, inclusive, como
discurso político na salvaguarda de seus direitos territoriais e reconhe-
cimento étnico e os pesquisadores têm feito uso analítico dessa forma de
apropriação do passado em suas etnografias e produções historiográfi-
cas (ARRUTI, 2006; CUNHA, 1992; GRÜNEWALD, 2005; SILVA, 2011;
PALITOT, 2009; OLIVEIRA, 2004, 2011).
Tais esforços podem ser considerados como um diálogo fran-
co, aberto, pois dar voz aos índios deveria significar mais que apenas
ouvi-los, mas construir com eles uma “interculturalidade crítica” (BRI-
GHENTI, 2016). Mais do que reconhecer o outro, faz-se necessário
transformá-lo em um interlocutor pleno. Neste sentido, mitos, tradi-
ções, rituais, cosmologias e religiosidades indígenas são também, atra-
vés da oralidade e memória, artefatos históricos tão importantes como
quaisquer outras vertentes de conhecimento de matriz racional, cientí-
fica e eurocêntrica (LÉVI-STRAUSS, 1989).
A proposta dessa abordagem quanto aos saberes indígenas está
respaldada numa discussão mais ampla relacionada ao reconhecimento

258
das múltiplas perspectivas dos povos subordinados, donde o conheci-
mento autóctone teria sofrido um longo e sistemático processo de “episte-
micídio” (SANTOS; MENESES, 2009). Neste sentido, mais que os efeitos
do colonialismo, a “colonialidade do poder” seria uma absorção conscien-
te ou inconsciente de uma classificação étnico/racional das populações
do mundo em que a Europa ocuparia o centro e o cume e as populações
indígenas (ou autóctones) não seriam nem sujeitos porque não serviriam
nem como interlocutores. Faz-se urgente o combate a colonialidade do
poder/saber e sua dimensão eurocêntrica, pois noutras palavras,
Esse resultado da história do poder colonial teve duas implica-
ções decisivas. A primeira é óbvia: todos aqueles povos foram
despojados de suas próprias e singulares identidades históricas.
A segunda é, talvez, menos óbvia, mas não é menos decisiva: sua
nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o despojo
de seu lugar na história da produção cultural da humanidade. Daí
em diante não seriam nada mais que raças inferiores, capazes so-
mente de produzir culturas inferiores (QUIJANO, 2005, p. 127).

Reaprender a valorizar tais epistemologias do Sul (SANTOS;


MENESES, 2009), especialmente as produzidas pelos povos indígenas,
implica colocar no mesmo patamar epistêmico o conjunto de conheci-
mento elaborado e apropriado por eles. De maneira mais ampla,
A inclusão dos saberes indígenas [em sala de aula] significa mais
do que apresentar sua diversidade cultural. Significa dialogar a
partir da multiplicidade de seus conhecimentos, suas sabedorias
e suas cosmovisões, e estabelecer a interlocução com os conhe-
cimentos ocidentais (BRIGHENTI, 2016, p. 249).

No livro, O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os po-


vos indígenas no Brasil de hoje, Gersem Baniwa o conclui com um ca-
pítulo instigante sobre as contribuições dos povos indígenas ao Brasil
e ao mundo. Nele, começa por apontar as técnicas de sobrevivências
na selva, apropriadas pelos colonizadores ao “lidar com várias situações

259
perigosas nas florestas ou como se orientar nas expedições realizadas”;
na dieta desde então, o uso da mandioca e sua inegável importância na
culinária brasileira, “desde a tradicional tapioquinha ao exótico tucupi e
à indispensável farinha” (BANIWA, 2006, p. 216-220).
Mais do que a miscigenação biológica, continua o autor, a mais
importante contribuição dos povos indígenas na formação do povo
brasileiro está nos aspectos socioculturais. A incorporação de palavras,
conceitos e expressões das línguas indígenas a língua portuguesa é no-
tória. O legado ao Brasil e ao mundo estaria ainda nos milenares conhe-
cimentos da medicina tradicional, inclusive, alguns recentemente reco-
nhecidos pela medicina ocidental e outros tantos ainda em estudos. Do
ponto de vista socioeconômico, as terras indígenas são riquezas incalcu-
láveis, protegidas pelo uso coletivo de suas formas tradicionais de vida
e ocupação. Num momento em que as inúmeras discussões ambientais
são questões nevrálgicas ao Brasil e ao mundo, “a megabiodiversidade
existente em suas terras, que representam quase 13% do território brasi-
leiro”, estão em sua maior parte totalmente preservada. Ilhas de florestas
verdes rodeadas por pastos e cultivos de monocultura, “esta não é ape-
nas uma riqueza dos índios, mas de todos os brasileiros e dos viventes
do planeta, na medida em que são florestas que contribuem para ame-
nizar os graves desequilíbrios ambientais da Terra nos tempos atuais”
(BANIWA, 2006, p. 216-220).
Os saberes indígenas, aqui brevemente apresentados, ligados
as suas diferentes formas de organização social e visões de mundo, os
chamados conhecimentos tradicionais e a preservação de suas terras a
partir dos seus modos de vida devem ser considerados em seu mais alto
grau de importância, como qualquer outra epistemologia ocidental. O
desafio é fugir de qualquer conotação folclorizada desses diferentes ti-
pos de saberes, promovendo a efetiva interculturalidade crítica e rejei-
tando a decolonialidade do poder/saber.

260
Por tudo isso, o Brasil e o mundo precisam olhar com mais cari-
nho para os povos indígenas e vê-los não como vítimas ou coita-
dinhos pedindo socorro, mas como povos que, além de herdei-
ros de histórias e de civilizações milenares, ajudaram a escrever
e a construir a história do Brasil e do planeta com seus modos
de pensar, falar e viver (BANIWA, 2006, p. 219-220).

À GUISA DE CONCLUSÃO:
EM QUE PRECISAMOS AVANÇAR?

O Guia de Livros Didáticos do PNLD (2017), ao discorrer sobre os


cinco eixos centrais de avaliação, a “temática indígena” nos livros de Histó-
ria dos anos finais do Ensino Fundamental traz a seguinte observação:
Embora compreendida comumente como uma dimensão cor-
relata da temática africana e afro-brasileira em termos da es-
trutura legal que a sustenta, o tratamento da temática indígena
ainda se coloca como o componente mais frágil no conjunto das
obras didáticas aprovadas no PNLD, sendo o aspecto que mere-
ce maior grau de investimento por parte de autores, de editoras
e de professores no uso das coleções (BRASIL, 2016, p. 33).

A situação não é melhor no material didático para o Ensino Mé-


dio (BRASIL, 2017). Entre os vários motivos possíveis da fragilidade da
temática indígena nos livros didáticos, dois são apontados de maneira di-
reta: a produção relativamente recente da História indígena no Brasil e a
insipiente consolidação do tema enquanto uma problemática pública na
sociedade brasileira, em tese, trazida a lume a partir da Lei 11.645/2008,
caudatária, segundo os avaliadores, da demanda da temática africana e
afro-brasileira a partir da Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2016, p. 34).
Realmente, não sei se concordaria plenamente com tais argu-
mentos. Primeiro, porque a reconhecida renovação historiográfica da
temática indígena não é tão recente assim e, apesar do risco, diria que

261
no Brasil ela teria ao menos uma geração; segundo, porque as demandas
indígenas não surgiram com o aparato legal do Estado brasileiro (cons-
titucional, infraconstitucional etc.), sendo antes um produto de suas
lutas políticas mais amplas ao longo da história. A omissão do Estado
brasileiro, portanto, seria a causa dessa fragilidade da temática indígena
no âmbito da Educação, entre muitas outras políticas públicas descon-
tinuadas ou mesmo inexistentes, por exemplo, no âmbito da saúde e no
reconhecimento dos territórios originalmente ocupados. Para Baniwa
(2013), “ou o país ainda não definiu seu projeto de nação; ou já definiu
e neste projeto não há lugar para os povos indígenas”.
Quanto ainda à discussão historiográfica, pouco avanço tem se
notado na reflexão histórica das tecnologias, apropriadas pelos povos
indígenas, em suas múltiplas dimensões (website, radiofônica, produção
audiovisual etc.), aspecto relativamente incipiente entre os estudiosos
da temática indígena. Praticamente restrita aos pesquisadores da Arte,
da Mídia e do Cinema, os educadores estão mais atentos à importância
das Tecnologias da Informação e Comunicação – TIC para pensar ele-
mentos e suportes de uso didático-pedagógico.
Neste aspecto, enquanto dispositivo temporal reflexivo é possí-
vel estimular o uso interativo e propositivo de uma ampla produção ci-
nematográfica de base etnográfica ou ficcional, inclusive, com produção
direta dos próprios povos indígenas como acontece, por exemplo, com
iniciativas relevantes da ONG Vídeo nas Aldeias e outras iniciativas
semelhantes do Instituto Socioambiental. Os cineastas indígenas estão
produzindo um cinema indígena desde suas aldeias, elaborando porque
não dizer outros regimes de memória e historicidades, dizendo como
querem ser vistos e contando sua própria história.
Também é preciso avançar nas pesquisas quanto ao tema dos
índios urbanos, fora das aldeias e das terras indígenas da FUNAI. Des-
territorializados, mas ligados pelo sentimento de comunhão étnica, a

262
experiência histórica desses grupos, moradores dos centros urbanos das
cidades brasileiras em muito ajudaria na reflexão dos alunos ao demo-
vê-los de estereótipos que só conseguem vislumbrar os índios nas matas
e florestas, caçando e pescando.
Tais temáticas e/ou campos ainda a explorar estão mais próxi-
mos da realidade cotidiana dos jovens brasileiros e longe de qualquer
imagem de preconceito que tomam os povos indígenas como seres exó-
ticos e incapazes de fazer uso dos conhecimentos e tecnologias ociden-
tais. Dialogar com tais realidades poderá auxiliar no respeito às diferen-
ças socioculturais e estimular à compreensão dos processos de mudança
da cultura, pois se apropriar de tais dispositivos tecnológicos e viver em
centros urbanos não condicionam os povos indígenas a serem menos
índios.
As propostas aqui elencadas e discutidas não devem ser inte-
gradas ao material didático como meras informações/questões comple-
mentares ou suplementares, ou mesmo como “curiosidades” em boxes
ou caixas explicativas que acompanham o texto principal. Trata-se, na
verdade, de integrar efetivamente a temática indígena à história do Bra-
sil, reconhecendo-a não como mero capítulo ou tópico de sua apresen-
tação, mas parte constitutiva da história de homens e mulheres cultural-
mente diversos de nosso país.
Aos povos indígenas do passado e aos povos indígenas do Brasil
atual – das terras baixas da América do Sul, na área cultural amazônica,
no centro-oeste e sul, ou nos rincões espremidos entre áreas urbanas
e dos canaviais, na mais antiga área de ocupação portuguesa no Novo
Mundo, o Nordeste brasileiro - diferentes grupos humanos com distin-
tas perspectivas de Mundo querem tão somente o direito à diferença,
continuar a existir mesmo que tenham se transformado com o tempo.
O retrocesso de direitos que estamos testemunhando nos últimos anos,
no cenário político e na educação, é apenas uma amostra do recrudes-

263
cimento do campo de disputas em que a nossa disciplina está envolvida.
Fazer isso não significa contar uma parte da história até então desco-
nhecida, mas contar a nossa própria história.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Regina C. de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias co-
loniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

_______. de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.

ARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilom-


bola. Bauru, SP: Edusc, 2006.

BALESTRA, Juliana Pirola. História e Ensino de História das ditaduras no Brasil e na Argentina.
Antíteses, Londrina, v. 9, n. 18, p. 249-274, jul-dez, 2016.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2007.

BANIWA, Gersem. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no
Brasil de hoje. Brasília: MEC/Secad; Museu Nacional/UFRJ, 2006.

_______. Atual projeto de nação não tem lugar para povos indígenas, diz indígena e doutor
em antropologia. Portal EBC: cidadania, abr., 2013. Entrevista concedida a Thiago
Pimenta, Portal EBC. Disponível em: <https://www.ebc.com.br/cidadania/2013/04/
indigena-e-doutor-em-antropologia-social-fala-sobre-projeto-indigenista-para-o>.
Acesso em: 15 dez. 2019.

BERGAMASCHI, Maria Aparecida; ZEN, Maria Dalla; XAVIER, Maria Luiza (Orgs.). Povos
indígenas & Educação. 2. ed. Porto Alegre: Mediação, 2012.

BEOZZO, Oscar. Leis e Regimentos das missões: política indigenista no Brasil. São Paulo: Edi-
ções Loyola, 1983, p. 114-120.

BITTENCOURT, Zoraia; SOUZA, Fábio Feltrin (Orgs.). As relações étnico-raciais na sala de


aula: propostas pedagógicas. Tubarão: Erichim: Copiart: UFFS, 2016.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Inclui no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2008/lei-11645-10-marco-
2008-572787-norma-pl.html>. Acesso em: 15 dez. 2019.

264
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Violação de direitos humanos dos povos indígenas. In:
Relatório: textos temáticos. Brasília: CNV, 2014, p. 197-256,

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional


promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitu-
cionais de Revisão nos 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 91/2016 e pelo Decreto
Legislativo no 186/2008. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2016.

BRASIL. IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações com base
no quesito cor ou raça. In: Censo Geral de 2010. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/
indigenas/indigena_censo2010.pdf>. Acesso em: 01 set. 2021.

BRASIL. Ministério da Educação. PNLD 2017: história – guia de livros didáticos - Ensino fun-
damental anos finais/Ministério da Educação - Secretária de Educação Básica - SEB - Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação. Brasília, DF: Ministério da Educação: Secretária de
Educação Básica, 2016.

_______. Ministério da Educação. PNLD 2018: história – guia de livros didáticos – Ensino
Médio/ Ministério da Educação – Secretária de Educação Básica – SEB – Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretária de Educação
Básica, 2017.

BRASIL. Senado Federal. Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854. Regulamentação da Lei


de Terras de 1850. Manda executar a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/historicos/dim/dim1318.htm>. Acesso em: 01
set. 2021.

BRASIL. Senado Federal. Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850. Lei de terras. Dispõe sobre as
terras devolutas do Império. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601-
1850.htm>. Acesso em: 01 set. 2021.

BRIGHENTI, Clovis Antônio. Colonialidade e decolonialidade no ensino da História e cultura


indígena. In: SOUZA, Fábio Feltrin de; WITTMANN, Luisa Tombini (Orgs.). Protagonismo
indígena na história. Tubarão, SC: UFFS, 2016, p. 231-254.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CARDIM, Padre Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Introdução e notas de Baptista
Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1939 [1625].

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Rio de Janeiro:
Fundação José Augusto: Achiamé, 1984.

265
CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. Etno-história e história indígena: questões sobre con-
ceitos, métodos e relevância da pesquisa. História, Franca, v. 30, n. 1, p. 349-371, jun., 2011.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.

CUNHA, Manuela Carneiro da; CESARINO, Pedro de Niemeyer (Orgs.). Políticas culturais e
povos indígenas. São Paulo: Editora Unesp, 2016.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). História do


tempo presente. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.

DOSSE, François. História do tempo presente e historiografia. Tempo e Argumento, Florianó-


polis, v. 4, n. 1, p. 5-22, jan./jun., 2012.

FAUSTO, Carlos. Os índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2000.

FERNANDES, Florestan. Organização social dos Tupinambá. 2. ed. São Paulo: Difusão Euro-
peia do Livro, 1963.

FREIRE, Carlos Augusto (Org.). Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Servi-
ço de Proteção aos Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2011.

FREIRE, José Ribamar Bessa. A demarcação das línguas indígenas no Brasil. In: CUNHA, Ma-
nuela Carneiro da; CESARINO, Pedro de Niemeyer (Orgs.). Políticas culturais e povos indíge-
nas. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 363-389.

GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo (Org.). Toré: regime encantado do índio do Nordeste. Re-
cife: Fundaj: Editora Massangana, 2005.

GUERRA, Jussara Galhardo Aguirres. Identidade indígena no Rio Grande do Norte: cami-
nhos e descaminhos dos Mendonça do Amarelão. Fortaleza: IMEPH, 2011.

KOPENAWA, Davi. Descobrindo os brancos. In: NOVAES, Adauto (Org.). A outra margem do
ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 15-21.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 11. ed. Campinas: Papirus, 1989.

MINTZ, Sidney W. Cultura: uma visão antropológica. Tempo, Niterói, v. 14, n. 28, p. 223-237,
jun. 2010 [1982];

MONTEIRO, John M. A dança dos números: a população indígena do Brasil desde 1500. Tem-
po e Presença, Rio de Janeiro, n. 271, p. 17-18, 1994.

266
_______. Tupis, Tapuias e historiadores. Estudos de História indígena e do indigenismo. 2001.
235 f. Tese (Livre Docência) - Departamento de Antropologia, Universidade Estadual de Cam-
pinas, Campinas, 2001.

_______. Unidade, diversidade e a invenção dos índios: entre Gabriel Soares de Sousa e Fran-
cisco Adolfo de Varnhagen. Revista de História, São Paulo, v. 149, n. 2, p. 109-137, dez. 2003.

OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territo-


rialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011.

_______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de


alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Darcy Ribeiro: os índios e a civilização. In: MOTA, Lourenço
Dantas (Orgs.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 2. ed. São Paulo: Editora SE-
NAC, 2002, p. 403-422.

PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América, entre os
séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). 1. ed. Belo Horizon-
te: Autêntica, 2015.

PALITOT, Estêvão Martins (Org.). Na mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena
no Ceará. Fortaleza: Secult: Museu do Ceará: IMOPEC, 2009.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,


Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-
-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 117-142.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil


moderno. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

ROUSSO, Henry. La hantise du passé. Entretien avec Philippe Petit, les Editions. Textuel, 1998.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria de Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul.


Coimbra: Edições Almedina AS, 2009.

SILVA, Edson. O ensino de História Indígena: possibilidades, exigências e desafios com base
na Lei 11.645/2008. Revista História Hoje. Dossiê Ensino de História Indígena. São Paulo:
ANPUH, v. 1, n. 2, p. 213-223, 2012.

_______. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-
1988. Recife: UFPE, 2014.

SILVA, Edson; SOUZA, Neimar Machado de. Revisão bibliográfica sobre o ensino da temática
indígena. In: SOUZA, Fábio Feltrin de; WITTMANN, Luisa Tombini (Orgs.). Protagonismo

267
indígena na história. Tubarão, SC: UFFS, 2016, p. 255-285.

SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. O relatório provincial de 1863 e a expropriação das terras indí-
genas. In: OLIVEIRA, João Pacheco de. (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de
territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contracapa,
2011, p. 327-345.

THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. NEGRO, Antônio Luigi;


SILVA, Sérgio (Orgs.). Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. In: Po-
vos indígenas no Brasil (2001-2005). RICADOR, Beto; RICARDO, Fany. São Paulo: Instituto
Socioambiental, 2006, p. 41-49.

WITTMANN, Luisa (Org.). Ensino (d)e História indígena. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.

WITTMANN, Luisa; SOUZA, Fábio Feltrin (Orgs.). Protagonismo indígena na história. Tu-

barão: Erichim: Copiart: UFFS, 2016.

268
Por outras narrativas históricas
escolares: povos indígenas e narrativa
histórica em livros didáticos1

Mauro Cezar Coelho2

1 Este texto é profundamente devedor da minha experiência como professor da disciplina Didática Especí-
fica da História, desde há cinco anos, e como coordenador do PIBID-História/2018-2019, Núcleo Belém.
Sou profundamente grato aos alunos do Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do
Pará, que compartilharam as reflexões que sistematizo a seguir. Agradeço, também, a Wilma de Nazaré Baía
Coelho e a Helenice Aparecida Bastos Rocha pelas críticas e sugestões.
2 Doutor em História Social pela USP. Professor Associado da Universidade Federal do Pará

269
O Livro Didático é um elemento importantíssimo no sistema
educacional brasileiro. Ele é presença constante nas salas de aula,
seja pelo uso que fazem dele os estudantes da Educação Básica, seja
pelo suporte que oferece aos professores das mais diversas discipli-
nas. No Brasil, o livro didático atende a docentes e discentes – ser-
vindo como referência, material de consulta, suporte de formação
continuada e auxílio no planejamento de aulas para os primeiros e
base curricular para os segundos.
Se ele é fundamental para a Escola, ele não é menos importante
fora dela. Pelas razões apontadas acima e pelos contornos assumidos
pelo Direito à Educação no Brasil, o livro didático tornou-se um dos
mais relevantes produtos do mercado editorial. Desde a Constituinte de
1988, a Educação vem se conformando como um direito fundamental
subjetivo. Ora, para que esse direito se concretize, o acesso dos alunos
aos materiais didáticos deve ser garantido pelo Estado. Daí, então, de-
correm as políticas de distribuição de livros didáticos no país, as quais
demandam aquisição de livros em larga escala e resultam no lugar ocu-
pado por esse produto no mercado editorial. Dentre tais políticas, o
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e os processos de avalia-
ção que lhe são subjacentes impactam a elaboração dos livros didáticos
a partir da década de 1990.
Não por outra razão, os livros didáticos têm se tornado fontes
para um sem-número de pesquisas, desde aquelas que sopesam a sua
condição de artigo da pauta de comércio de um setor econômico quanto
as que o analisam como fator relevante do sistema educacional. Em rela-
ção a estas últimas, a indicação das fragilidades e lacunas é um dos filões
mais antigos. (NOSELLA, 1979; MOLINA, 1987) Tais pesquisas ocu-
pam papel essencial na reflexão sobre o livro didático; elas não avançam,
porém, na proposição de encaminhamentos ou propostas que superem
as limitações percebidas.

270
O presente texto tem por objetivo refletir sobre os caminhos
possíveis para que o livro didático, esse elemento basilar da vida escolar
brasileira, cumpra seu potencial. Para tanto, nos deteremos no lugar que
os povos indígenas ocupam na narrativa didática e com as possibilida-
des de subversão de uma trama engendrada com o objetivo claro de
reproduzir exclusão e, por conseguinte, alimentar preconceitos, práti-
cas discriminatórias e tornar mais forte o racismo que estrutura a nossa
cultura. Tomaremos, então, como ponto de partida, os objetivos da Lei
nº 11.645/2008, para pensar os caminhos que podem engendrar outras
histórias sobre a formação do Brasil.
Antecipamos não ser nosso objetivo estabelecer uma norma,
mas, discutir possibilidades. Assim, sistematizamos aqui uma premis-
sa adotada em nossa experiência: a oferta de uma educação pautada
pelo princípio da inclusão, demanda uma narrativa histórica escolar
que reconhece, valoriza e expressa as perspectivas de diferentes sujeitos.
A partir dela, refletimos sobre as possibilidades do Livro Didático de
História (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2014) como recurso no combate ao
racismo e à discriminação.

EDUCAÇÃO: ACESSO, DIREITO E LIVRO DIDÁTICO

Por razões diversas, o livro didático tornou-se, no Brasil (além


de um recurso didático a ser utilizado pelos professores em sua prática
pedagógica), um suporte de “(in)formação” do professor (SILVA, 2012,
p. 805-807). A expansão das matrículas na fase fundamental da Edu-
cação Básica (Primeiro Grau/Ensino Fundamental), desde a década de
1970, e a consequente necessidade de professores qualificados empre-
endeu uma forte pressão sobre os processos de formação de professores
(NASCIMENTO, 2013, p. 281-286; CACETE, 2014, p. 1070-1074) e a
produção de materiais didáticos (FILGUEIRAS, 2015). Foi, porém, a

271
reformulação da concepção de direito à Educação, proposta pela Carta
Magna de 1988, e as contribuições subsequentes que, desde onde perce-
bo, alteraram o lugar do livro didático no Brasil.
Se, por um lado, a expansão das matrículas escolares pode ser
vinculada às demandas de políticas que associam a melhoria na qua-
lidade da educação ofertada ao desenvolvimento econômico (CHIRI-
NEA; BRANDÃO, 2015) o acesso ao livro didático resulta, também, da
conformação da Educação como um direito fundamental subjetivo. Se-
gundo a nossa Constituição, o ensino obrigatório conforma direito pú-
blico subjetivo, de modo que torna o Estado suscetível de acionamentos
jurídicos com vistas à promoção de políticas que garantam a concretiza-
ção do direito expresso na legislação (DUARTE, 2004, p. 116). E o direi-
to à Educação não se resume ao acesso, mas à efetividade da Educação
ofertada, ou seja, às condições oferecidas para o desenvolvimento das
capacidades individuais e para a formação de cidadãos comprometidos
com os direitos humanos, a tolerância e a participação na vida pública
(DUARTE, 2004, 115).
Não por outra razão, em 2009, a Emenda Constitucional nº 59
reconhece o fornecimento de material didático, transporte, alimentação
e assistência à saúde como obrigação do Estado (BRASIL, 1988, Art.
208, § VII). A alteração da Carta de 1988 culmina um processo inicia-
do na década de 1980, com a instituição do PNLD. Se, num primeiro
momento, o programa se restringia à compra e à distribuição de livros,
a partir de 1995 ele inicia uma rotina de avaliação com o objetivo de ga-
rantir que as obras distribuídas às escolas estivessem em acordo com os
princípios legais e de qualidade estabelecidos para a Educação Nacional
(MIRANDA; LUCA, 2004; BEZERRA, 2013, 2017).
A avaliação pode ser entendida, então, como uma forma de bus-
car concretizar o Direito à Educação, nos termos constitucionais, pois,
por meio dela, busca-se garantir a efetivação do direito. Não é obra do

272
acaso o fato de os editais do PNLD estabelecerem que os livros didáticos
devem participar do esforço pela concretização dos objetivos estabeleci-
dos para a educação nacional: preparação para o exercício da cidadania
e qualificação para o trabalho (BRASIL, 1996, Art. 3). Nesse sentido, em
2002, o edital expressava como princípio abalizador do processo de ava-
liação que “o livro didático deve contribuir para a construção da ética
necessária ao convívio social democrático, o que o obriga ao ‘respeito à
liberdade’ e ao ‘apego à tolerância’” (FNDE, 1999, p. 24). Ao tratar dos cri-
térios de eliminação, o mesmo edital interdita a obra didática de “veicular
preconceitos de origem, cor, condição econômico-social, etnia, gênero,
linguagem e qualquer outra forma de discriminação; fazer doutrinação
religiosa, desrespeitando o caráter leigo do ensino público” (FNDE, 1999,
p. 26). Os editais seguintes o acompanham (FNDE, 1999, p. 29-32).
A avaliação dos livros didáticos, no âmbito do PNLD, eviden-
cia a importância do livro didático. Ele expressa uma preocupação que
ultrapassa a criação de condições de acesso ao livro, em função da am-
pliação das matrículas escolares. Ele dá conta, também, de um com-
promisso com a efetividade do direito à Educação. Ao voltar-se para
a verificação da qualidade das obras, por meio de critérios objetivos,
o PNLD busca tornar o livro didático compatível com as expectativas
para a Educação, em acordo com o que estabelecem nossos princípios
constitucionais e a legislação deles derivada.

LIVRO DIDÁTICO & CURRÍCULO DE FATO

Desde o século XIX, com a estruturação das primeiras escolas


e dos rudimentos do que viria a se tornar o nosso sistema de ensino,
os manuais didáticos assumiram papel de destaque na vida escolar
(GASPARELLO, 2009, p. 265-279.) Conhecer o livro, decorar as lições
e memorizar os pontos, entre outros procedimentos relacionados aos

273
manuais escolares, são práticas que compuseram a vida de estudantes
brasileiros por décadas (SILVA, 2019). O livro didático participa, en-
tão, da cultura escolar.3 De um lado, ele expressa o conhecimento a ser
operado, oferecendo uma seleção de conteúdos; de outro, ele propõe a
ordem na qual eles devem ser abordados.
Na cultura escolar, se pode dizer que os livros didáticos estabele-
cem uma base curricular a partir da qual o professor planeja e concreti-
za sua prática. Ciente dessa propriedade dos livros didáticos, o processo
de avaliação estabelecido pelo PNLD busca intervir em uma das suas
dimensões – a atualização dos conteúdos.
O livro didático não pode conter informações erradas ou desa-
tualizadas. Seus conteúdos devem incorporar os conhecimen-
tos produzidos e aceitos pela comunidade de historiadores,
tendo em vista as pesquisas históricas que alcançaram um
patamar consolidado de quantidade e de qualidade. Além de
não veicular erros de informação, os livros didáticos de Histó-
ria, devem acompanhar os avanços das pesquisas e incorpo-
rar a produção historiográfica atual, naqueles aspectos que
passaram a fazer parte do acervo de conhecimentos já consa-
grados. (FNDE, 1999, p. 55)

O edital do programa, do ano de 2002, deixa claro que o pro-


cesso de avaliação incide sobre a atualização dos conteúdos, diante dos
avanços das pesquisas na área de História. Esse princípio é acompanha-
do pelos editais de 2005 (FNDE, 2005, p. 54-55), 2008 (FNDE, 2008, p.
46-48), 2011 (FNDE, 2011, p. 48), 2014 (EDITAL, 2011, p. 65) e 2017
(EDITAL, 2015, p. 58). O edital de 2020 também interfere nos conteú-
dos, mas de modo distinto:
a. Consistência e coerência entre os conteúdos e as atividades
propostas e os objetos de conhecimento e habilidades constan-
tes na BNCC;

3 Sobre o conceito de cultura escolar, ver FORQUIN, 1993.

274
b. Contemplação de todos os objetos de conhecimento e habili-
dades constantes na BNCC. (EDITAL, 2018, p. 42)

O que se verifica, ao confrontar-se os editais anteriores ao de


2020 é o paradigma de verificação da atualização dos conteúdos – nos
primeiros é o conhecimento científico, produzido pela comunidade dos
historiadores, no último é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
De todo modo, essa interferência é relativa. A narrativa didá-
tica se constituiu, entre nós, a partir de uma série de processos (ora
convergentes, ora dissonantes) que acabaram por conformar uma nar-
rativa histórica escolar – aquela divulgada pelos livros didáticos. Se, de
um lado, foram determinantes as contribuições do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB) para a conformação de uma perspec-
tiva na abordagem da nossa trajetória histórica, calcada no eurocen-
trismo e na exclusão sistemática de índios, negros e pobres das tramas
que nos constituíram (MATTOS, 1990, p. 9-18; GUIMARÃES, 2011;
CHALOUB, 2009; LESSA, 2008), de outro lado, participaram de for-
ma igualmente importante os autores de manuais didáticos espalha-
dos por todo o território.
A construção dos manuais didáticos, desde o século XIX, respeita
as formulações daquele instituto, mas, leva em consideração outros ele-
mentos. Em análise sobre a trajetória dos manuais didáticos no Pará, Le-
onardo Castro Novo afirma que as demandas dos sistemas de ensino e da
memória (naquilo que ela comunica da cultura histórica4) participam da
formulação dos livros didáticos. Nesse sentido, os conteúdos se perpetu-
am em função dos programas curriculares estabelecidos pelos estados, do
compromisso com a memória histórica, da convergência de concepções
de História e de Educação e da cultura escolar (NOVO, 2020).
A narrativa histórica escolar, presente nos livros didáticos,
agrega e expressa, pois, e de modo desigual, tanto o conhecimento
4 Sobre cultura histórica, ver LE GOFF, 1996, p. 47-76.

275
histórico acumulado quanto a memória sobre a nossa trajetória como
país e como nação. Ela se relaciona com os objetivos que a cultura
escolar estabelece para o conhecimento histórico. Por mais de um sé-
culo, a História Escolar esteve comprometida com a inculcação de va-
lores vinculados às elites.5 Desde a década de 1980, à História, como
componente curricular da Educação Básica, tem se atribuído a res-
ponsabilidade pela formação do cidadão (crítico, participativo, cons-
ciente etc.).6 Para além da cultura escolar, o início deste século assistiu
a uma inflexão na compreensão do que consistia tornar-se cidadão –
compromisso com a defesa e a manutenção dos valores democráticos,
respeito à diversidade e ao convívio com a diferença. (CNE, 2004, Art.
2; CNE, 2010a, Arts. 3-6; CNE, 2010b, 6-7; CNE, 2015, p. 2-4)
Ocorre que a tradição não foi abandonada. Como deixaram
evidentes os debates sobre a BNCC, a compreensão da História como
uma disciplina que nos identifica, que nos apresenta à [dada] heran-
ça compartilhada, aos valores e aos princípios que nos definem, per-
manece presente.7 Para muitos, dentro e fora da escola (na academia,
inclusive), a função da História Escolar é apresentar uma narrativa
edificante sobre o nosso passado, a qual valorize alguns agentes em
detrimento de outros e reitere nossos vínculos com certos valores e
tradições (em oposição aos que lhe são contrários).
O livro didático expressa todas essas tensões. Conforme já
apontado, em outro trabalho, a narrativa didática mantém um com-
promisso com a tradição eurocêntrica, perpetuando a visão da Eu-
ropa como a matriz de nossa trajetória (COELHO, 2017). Como,
então, ele satisfaz os pressupostos estabelecidos pelo PNLD de atua-
lização de conteúdos, considerando a produção científica? As caixas

5 Sobre este ponto, ver, especialmente BITTENCOURT, 1990, 2018.


6 Sobre os debates acerca da História Ensinada nesse período, ver, especialmente GUIMARÃES, 2012.
7 Para uma análise das polêmicas envolvendo a BNCC, ver CALIL, 2015; PINTO JÚNIOR, 2016; FERNAN-
DES DA SILVA JÚNIOR, 2016; PEREIRA, 2018.

276
de texto, os boxes, em que são apresentados excertos da produção
historiográfica conformam a estratégia mais comum. Por meio delas,
os livros didáticos se mantêm atualizados, sem, todavia, alterarem a
narrativa consagrada sobre a nossa formação.
Os livros didáticos trazem, então, várias narrativas (COE-
LHO, 2017). Uma delas está expressa no texto básico. Nele, a narrati-
va tradicional, aquela mais comprometida com a memória, tem pri-
mazia. Essa narrativa reproduz àquela originada das contribuições
do IHGB e dos manuais didáticos produzidos na segunda metade
do século XIX e na primeira metade do século XX. Nela, a perspec-
tiva europeia e os seus desdobramentos vigoram soberanos. Outra
narrativa está expressa nas caixas de texto que trazem excertos da
produção historiográfica, nos quais são encaminhadas diferentes
perspectivas sobre os processos históricos.
Assim, os autores e editoras de livros didáticos buscam cumprir
com as exigências dos editais do PNLD, por meio de um encaminha-
mento que é, acima de tudo, uma estratégia de acomodação de compro-
missos diversos. Dessa forma, os avanços da pesquisa histórica, incor-
porados aos livros didáticos, não põem em risco a narrativa consolidada
sobre a nossa formação e nem afetam a visão cristalizada sobre qual
História deve ser contada aos alunos. Tal procedimento, ainda, faculta
aos professores interessados outras abordagens além daquela consagra-
da pela nossa memória histórica.
Essa estratégia de acomodação de compromissos tem suscita-
do uma crítica aos livros didáticos, especialmente no que diz respeito
à incorporação de outras narrativas e da satisfação do que determina a
legislação voltada para a inclusão da História da África, da cultura Afro-
-Brasileira e da História dos Povos Indígenas. Segundo ela, o processo
de avaliação dos livros didáticos fez expandir os espaços destinados aos
agentes tradicionalmente excluídos ou subdimensionados na narrativa

277
sobre a nossa formação. Todavia, isto não tem sido suficiente para alte-
rar o lugar a partir do qual indígenas e negros têm sido percebidos.

POVOS INDÍGENAS NA NARRATIVA DIDÁTICA

As análises voltadas para as abordagens das temáticas re-


lativas aos povos indígenas antecedem a promulgação da Lei n.
11.645/2008. Elas acompanham os movimentos sociais, marcada-
mente indígenas, em favor de uma revisão do modo pelo qual os po-
vos indígenas eram [e são] retratados nas narrativas sobre a História
do Brasil. Nos anos 1970, os povos indígenas articularam-se com o
objetivo de estabelecer pautas e estratégias de luta em defesa de seus
territórios e da manutenção de seus modos de vida (BANIWA, 2007;
BICALHO, 2010; LOPES, 2011). No que tange ao ponto com que nos
ocupamos, duas questões devem ser destacadas.
Em primeiro lugar, os povos indígenas estabeleceram uma
crítica aos projetos educacionais que lhes eram destinados. Estes,
no mais das vezes, eram formulados com o objetivo claro de trans-
formar indígenas em não-índios. Educar assumia o evidente senti-
do de supressão dos caracteres que os identificavam e de inculcação
de valores e costumes civilizados. Os povos indígenas postulavam,
em oposição, uma escola indígena – um projeto educacional que
garantisse suas integridades étnicas e os capacitasse para os confli-
tos em que estavam inseridos.
Em segundo lugar e desde então, os povos indígenas formula-
ram uma crítica ao modo pelo qual eram percebidos pela sociedade
não-índia. Além da recusa dos estereótipos que lhes são atribuídos,
condenam a supressão de sua visão sobre os processos históricos
desencadeados desde a chegada dos europeus aos seus territórios.
Argumentam que as histórias contadas não destacam a atuação que

278
tiveram nos diversos processos de que tomaram parte e tampouco
incorporam as perspectivas indígenas sobre eles.8
Dentre as primeiras reflexões a considerarem as ponderações
dos povos indígenas articulados em movimento estão A Questão Indíge-
na na Sala de Aula e a A Temática Indígena na Escola. Publicados entre
1987 e 1995, apresentam estudos sobre os povos indígenas ressaltando
sua diversidade e o trato que lhes era dispensado nos livros didáticos.
No primeiro livro, os textos de Mauro W. B. de Almeida e de Norma
Telles apontavam o modo inadequado pelo qual a questão étnico-racial
era tratada nos livros didáticos e como os povos indígenas eram abor-
dados (ALMEIDA, 1987; TELLES, p. 73-99). No segundo, Antonio C.
de S. Lima e Luís D. B. Grupioni analisavam como as narrativas sobre
a nossa formação situavam os povos indígenas, considerando, no caso
de Grupioni, os livros didáticos: ambos concordaram que a exclusão e o
subdimensionamento da atuação dos povos indígenas era uma constan-
te (LIMA, 1995, p. 407-424; GRUPIONI, 1995, p. 481-526).
Desde então, a discussão expandiu-se. Por um lado, ela aprofun-
dou a crítica acerca da abordagem dispensada aos povos indígenas. Nesse
aspecto, os estudos têm se voltado para a análise das representações pre-
sentes nos textos e imagens dos livros didáticos, sem descuidar do lugar
que lhes vem sendo reservado na narrativa didática. De outro, como parte
das discussões relativas à oferta de uma educação para as relações étnico-
-raciais, aponta os limites dos avanços na construção dos livros didáticos,
argumentando que falar de africanos, índios e negros não acarreta, por si
só, uma mudança no ordenamento da narrativa escolar e não promove,
necessariamente, uma educação antirracista (SANTOS, 2013).
No que concerne à temática indígena, as análises apontam um
aumento do espaço. Os livros didáticos editados desde o final da década
passada passaram a dispensar unidades e capítulos voltados para o trato

8 Sobre este ponto, ver, especialmente MUNDUKURU, 2009, 2012.

279
das questões relativas aos povos indígenas. Não obstante, isso não sig-
nificou mudança na abordagem. O aumento no volume de páginas ocu-
padas com a História dos indígenas significou, em muitos casos, maior
atenção aos povos que habitavam os Andes e a América Central, desde
há milênios. Maias, Astecas e Incas tiveram o seu espaço ampliado nas
narrativas didáticas. Não se estabelecem relações, todavia, entre os des-
cendentes daqueles povos e as nações americanas que emergiram nos
territórios antes ocupados por eles (COELHO, 2009, 2013).
Quanto aos povos indígenas que habitam o Brasil, verifica-se,
também, um aumento no espaço que lhes é dispensado nas narrativas.
Isso não quer dizer, porém, uma alteração na forma pela qual são perce-
bidos. Houve um alargamento da narrativa no que concerne ao período
anterior à chegada dos europeus. Os livros didáticos buscam dar conta
das diferenças entre os vários povos que habitavam as terras que hoje
conhecemos como brasileiras. Via de regra, as abordagens não reconhe-
cem a História desses povos: eles são descritos como se tivessem vivido
em um tempo sem mudanças, sem conflitos, sem alterações de qualquer
ordem. As narrativas sugerem que a mudança, o movimento, a evolução
dos eventos são atributos europeus. Os indígenas estão fora do tempo
(COELHO; ROCHA, 2018).
Da mesma forma, as inflexões havidas desde a promulgação da
Lei n. 11.645/2008 não foram suficientes para superar um limite: os po-
vos indígenas permanecem relegados ao passado colonial. Nele, cum-
prem uma função didática: permitir a formulação de uma crítica moral
à exploração a que os povos indígenas foram submetidos, sem, com isso,
reconhecer nos indígenas agentes históricos plenos, cujos interesses, in-
tenções, projetos e práticas tem desdobramentos no curso dos eventos
(COELHO; BICHARA, 2017). Os povos indígenas aparecem em tais
narrativas como vítimas do processo colonial e não como atores rele-
vantes nos eventos que demarcaram a nossa trajetória.

280
Ora, nada mais distante do que preveem as leis de natureza
afirmativa, relacionadas à Educação Nacional. As leis 10.639/2003 e
11.645/2008 alteram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de
ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estu-
do da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo inclui-


rá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africa-
nos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura
negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áre-
as social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
(BRASIL, 1996, Art. 26-a)

O Conselho Nacional de Educação encaminha o sentido da legis-


lação, ao regular as diretrizes educacionais para a sua implementação:
Combater o racismo, trabalhar pelo fim da desigualdade social
e racial, empreender reeducação das relações étnico-raciais não
são tarefas exclusivas da escola. As formas de discriminação de
qualquer natureza não têm o seu nascedouro na escola, porém
o racismo, as desigualdades e discriminações correntes na so-
ciedade perpassam por ali. Para que as instituições de ensino
desempenhem a contento o papel de educar, é necessário que
se constituam em espaço democrático de produção e divulga-
ção de conhecimentos e de posturas que visam a uma sociedade
justa. A escola tem papel preponderante para eliminação das
discriminações e para emancipação dos grupos discriminados,
ao proporcionar acesso aos conhecimentos científicos, a regis-
tros culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que
rege as relações sociais e raciais, a conhecimentos avançados,
indispensáveis para consolidação e concerto das nações como
espaços democráticos e igualitários.

281
Para obter êxito, a escola e seus professores não podem impro-
visar. Têm que desfazer mentalidade racista e discriminadora
secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando
relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos peda-
gógicos. (CNE, 2004, p. 6)

Ora, como se vê, a legislação elege a Escola como espaço de


combate ao racismo, por meio da oferta de uma educação que promova
a superação desse vício e de seus desdobramentos.9 Isso significa uma
reorientação do modo pelo qual a nossa memória histórica é percebida
e encaminhada pela narrativa escolar. Ou, por outra, os conteúdos re-
lativos à História da África, à Cultura Afro-brasileira e à História dos
Povos Indígenas não esgotam nem cumprem a legislação de per si.
A legislação demanda a reorientação do paradigma que in-
forma a narrativa escolar – o abandono da matriz eurocêntrica e a
inclusão de outras perspectivas que permitam a crítica aos princípios
que ordenam os traços racistas de nossa sociedade. Os conteúdos
referidos pela legislação supracitada constituem meios para alcance
dos seus objetivos. Logo, não basta fazer referência aos povos indí-
genas (ou aos africanos, ou aos negros, ou aos pardos). É necessário
que a inclusão de questões relativas à temática indígena (mas, não
só) promovam uma educação antirracista e fomente a crítica às ba-
ses e expressões do racismo, entre nós: o eurocentrismo, o mito da
democracia racial, a ideologia do branqueamento etc.

9 Utilizamos a categoria Vício em oposição à Virtude (HERMANN, 2013). Nesse sentido, ela não é acionada
como doença (SAWAYA; FILGUEIRAS, 2013), mas como desvio ético e moral. O recurso à ambas as cate-
gorias fazem remissão, ainda, ao papel da Educação como espaço de formação para o desenvolvimento e
aprimoramento das virtudes republicanas e democráticas, como o apreço pelo contraditório, a valorização
da Diferença e o convívio pacífico e respeitoso na Diversidade e o combate aos vícios que se lhes opõem,
as defesas de quebra da ordem democrática, o uso da violência física ou simbólica e da desqualificação do
outro no debate público.

282
POSSIBILIDADES DE SUBVERSÃO

Desde antes da promulgação da Lei n. 10.639/2003, há estudos


sobre a implementação das políticas de combate ao racismo na Escola.
Eles apontam iniciativas variadas, com desdobramentos de toda ordem.
Em muitos casos, porém, o que se percebe é a perpetuação dos princí-
pios da exclusão. Via de regra, o trato dispensado aos indígenas e negros
não compreende a sua incorporação nas tramas da narrativa histórica
escolar sobre a formação do Brasil, como país e como nação (CANEN,
2002; OLIVA, 2009; COELHO; COELHO, 2013).
A BNCC, aprovada em 2018, é um exemplo de proposição
curricular que faz referência aos povos indígenas, mantendo sua
condição de coadjuvantes nos processos históricos que demarcaram
a trajetória brasileira. Construída a partir das demandas da legisla-
ção e com o objetivo de mitigar as disparidades de acesso ao con-
teúdo objetivo, nos diversos sistemas educacionais e nas diferentes
regiões do país, ela acaba por reiterar vícios antigos dos currículos
nacionais. Em relação ao tema que nos ocupamos, a BNCC incorre
no equívoco de considerar que falar de povos indígenas (e africanos
e negros e pardos) satisfaz os objetivos da legislação.10
Consideremos o que a BNCC prevê para os anos finais do Ensino
Fundamental. Nela, os componentes curriculares são apresentados por
meio de três categorias: Unidades Temáticas, Objetos de Conhecimen-
to e Habilidades. Estas últimas “expressam as aprendizagens essenciais
que devem ser asseguradas aos alunos”. Os Objetos de Conhecimentos
conformam os conteúdos, conceitos e processos a serem abordados. As
unidades temáticas “definem um arranjo dos objetos de conhecimento”
(BRASIL, 2018, p. 28-29).
10Não é o objetivo deste texto encaminhar uma análise da BNCC. O que se pretende é dimensionar o modo
pelo qual a base curricular nacional situa as temáticas relativas aos povos indígenas, para, depois, situar uma
alternativa de subversão.

283
Contamos 16 unidades temáticas. Uma delas se volta para a epis-
temologia da disciplina. As demais dão conta de períodos, seguindo o
modelo quadripartite: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade
Contemporânea. Se considerarmos os espaços nos quais se desenrolam
os processos referidos nas unidades, a Europa é o palco em onze delas.
Apenas em quatro unidades as Américas ou o Brasil conformam o recorte
espacial dos processos selecionados [“Os processos de independência nas
Américas”, “O Brasil no século XIX”, “O nascimento da República no Bra-
sil e os processos históricos até a metade do século XX”, “Modernização,
ditadura civil-militar e redemocratização: o Brasil após 1945”].
Em relação aos objetos de conhecimento, a proporção é a mesma.
Mais da metade dos objetos tem a Europa como espaço no qual se desdo-
bram os processos ou os conceitos são discutidos. A perspectiva eurocên-
trica é o que organiza a narrativa histórica escolar proposta pela BNCC.
Nesse sentido, quando nos deparamos com as habilidades, aquelas que
“expressam as aprendizagens essenciais”, verificamos que a tradição se-
gundo a qual os povos indígenas não conformam agentes históricos rele-
vantes de nossa trajetória como país e como nação se mantém inalterada.
A BNCC arrola 99 habilidades a serem desenvolvidas.
Pois bem, três delas fazem referência aos povos americanos (e
africanos) que habitavam a América (e África) desde tempos imemoriais
– abordando o povoamento da América e a organização das sociedades
americanas e africanas: duas habilidades situadas no trato da Antigui-
dade e uma no trato da Idade Moderna. Outras duas habilidades reme-
tem-se aos povos indígenas no processo da Conquista e Colonização
da América – situam os povos americanos no momento da Conquista
e a resistência que impuseram às investidas europeias. Quatro habili-
dades adicionais dão conta do trato dos europeus/conquistadores para
com os povos indígenas – voltam-se para visão europeia sobre o Novo
Mundo e, também, para os discursos civilizatórios e as políticas indige-

284
nistas e seus desdobramentos. Duas outras habilidades ocupam-se com
os povos indígenas no período contemporâneo, em meio à trajetória
da República no Brasil – ambas abordam as pautas políticas indígenas
(em um caso, associada às pautas dos Quilombolas). Em contrapartida,
os processos europeus são referidos em 36 habilidades, dando conta da
Antiguidade Clássica, do mundo medieval, do Renascimento, da Refor-
ma, da Revolução Gloriosa, da Revolução Francesa, do Imperialismo
europeu etc. (BRASIL, 2018, p. 420-431).
Como se pode perceber, a narrativa histórica escolar proposta
pela BNCC subdimensiona a participação dos povos indígenas nos pro-
cessos que nos constituíram. De noventa e nove habilidades, eles estão
referidos em apenas onze delas. Destas, em quatro habilidades são per-
cebidos como objeto das formulações europeias, seja por meio da visão
que os conquistadores construíram sobre eles, seja por meio das políticas
formuladas para submetê-los. As sete restantes também não se voltam,
integralmente, para ação indígena, pois em todas elas, eles são percebidos
como reagentes às ações de não-índios – resistindo ou morrendo.
Esse, pois, é o vício a ser subvertido pela narrativa histórica es-
colar. Na narrativa consagrada (e reproduzida pela BNCC), os povos
indígenas têm sido vistos como atores secundários, com atuação cir-
cunscrita a determinados períodos. Neles, ocupam funções distintas.
Quando os livros didáticos abordam os povos indígenas no período
anterior à Conquista, a narrativa é desidratada de atributos históricos –
não há referência a mudanças ou às diferenças entre os povos, além das
relativas aos troncos linguísticos. As sociedades indígenas e o espaço em
que vivem são descritos como livres da ação humana. É a chegada dos
europeus que imprime ritmo e alterações nas paisagens e nos modos de
vida. Ou seja, conforme a narrativa consagrada, a História é um atributo
europeu que alcança a América e seus povos junto com os primeiros
navegantes (COELHO; ROCHA, 2018).

285
Nada mais distante do que preveem as leis que alteram a abor-
dagem da História do Brasil na Educação Básica. Por meio delas, con-
forme já apontamos, os movimentos sociais pretenderam a revisão do
paradigma da exclusão que demarca a narrativa histórica escolar, a par-
tir do reconhecimento da importância da África como uma das nossas
matrizes culturais e econômicas e da ação de indígenas e negros nos
processos que nos constituíram. Para tanto, indígenas e negros devem
ser considerados como atores relevantes dos processos que constituem
a narrativa histórica escolar.
Além de contrariar a legislação, a perspectiva apresentada
pela BNCC se opõe à boa História – àquela que se volta contra os
preconceitos, posto reconhecer a integridade dos agentes históri-
cos, respeitando e dando visibilidade as suas perspectivas e suas
ações na análise dos processos históricos. Diante disso, defende-
mos que para a efetivação do proposto pela legislação e para que
a narrativa didática cumpra sua finalidade política, menos que in-
cluir temas, ela deve incluir agentes. Para tanto, propomos o que te-
mos denominado de «triangulação». Expliquemo-nos. A legislação
tem por objetivo o reconhecimento da contribuição de indígenas e
negros nos processos que conformaram [e conformam] a sociedade
brasileira. Um passo importante na delimitação do que defende-
mos, então, é a consideração de como o saber histórico reconhece
o papel dos agentes, quando constrói conhecimento.
Em História, independentemente da perspectiva teórica da qual
se parte, o devir, o desenrolar das tramas nas quais os agentes estão in-
seridos, é percebido como resultado de suas ações. São suas escolhas,
seus projetos, suas intenções, suas percepções, sua atuação, enfim, que
concorrem para o desdobramento dos processos históricos. As narrati-
vas históricas escolares devem considerar, então, os projetos, intenções,
percepções, a atuação dos diferentes agentes, com vistas a destacar sua

286
contribuição no desenrolar dos processos. Desde nossa perspectiva, as-
sim se pode reconhecer a importância da diversidade dos agentes e do
valor da diferença no desenrolar das tramas históricas.
Mas, não só. O processo de ensino/aprendizagem em Histó-
ria, independentemente da matriz adotada, pressupõe que um dos ín-
dices da aprendizagem é a capacidade de contextualizar. Isto significa
que aprende História quem é capaz de relacionar as ações de diferentes
agentes, com vistas a compreender como os processos históricos são
expressões de tensões sociais que envolvem agentes com perspectivas,
projetos, intenções e pautas distintas. Aprender História, neste sentido,
é algo muito diverso de ter notícia de eventos e memorizá-los. Menos
ainda, é aprender lições, a partir da experiência pregressa.
O aprendizado da História, na perspectiva adotada aqui, com-
preende o reconhecimento da complexidade das relações sociais. En-
tender que os eventos resultam das ações dos agentes exige o estudo dos
agentes em relação uns com os outros e das tensões que os envolvem.
Demanda, então, o reconhecimento da importância de todos os agentes
e de suas visões de mundo, dos fatores que informam e pautam suas
ações e do abandono de visões unilaterais. «Triangular», então, significa
considerar as perspectivas de mais um agente na elaboração de proce-
dimentos didáticos, com vistas ao ensino/aprendizagem de História.11
Essa prática busca contrapor-se aos encaminhamentos normalmente
adotados nas narrativas históricas escolares. Vejamos um exemplo.
Muitos de nós (senão todos) fomos educados por meio de uma
narrativa que concebe a História do Brasil a partir da teoria dos ciclos
econômicos. O primeiro deles é o ciclo da extração do pau-brasil. Nos
familiarizamos com a ideia de que os europeus perceberam as possi-
11Essa prática vem sendo adotada na orientação dos alunos da disciplina Didática Específica da História, a
qual ministramos desde o ano de 2015 e na condução do PIBID-História/UFPA, Núcleo Belém, vigente no
biênio 2018-2019, também coordenado por nós. Assim, os alunos sob nossa responsabilidade foram insta-
dos a produzirem planejamentos e simulações de aulas que considerassem a perspectiva de agentes diversos
e de espaços diversos, com variações de gênero, condições socioeconômicas e etnia/raça.

287
bilidades econômicas da madeira de cor avermelhada e submeteram
os índios ao extenuante trabalho de extração madeireira em troca de
bugigangas – contas, espelhos e facas. Essa foi [e ainda é, em muitos
casos] a narrativa consagrada sobre os primeiros passos da coloniza-
ção portuguesa nas terras americanas.
Estamos, aqui, diante de uma forma rudimentar de narrati-
va histórica, posto que ela concebe o devir como resultado da ação
de um único agente – o colonizador europeu. Os povos indígenas
são assumidos como ingênuos que não dimensionam a importân-
cia comercial do Pau Brasil, porque suas perspectivas, interesses e
percepções não são objeto de consideração. Poder-se-ia argumen-
tar que tal narrativa assim se conforma, em função da ausência de
fontes indígenas. Ora, mesmo diante da escassez de documentos
produzidos pelos povos indígenas, a imaginação histórica 12 é ca-
paz de dimensionar a importância de espelhos, contas e facas tanto
para as suas relações de trocas quanto para a sua economia ritual.13
Sem desconsiderar a violência e a assimetria nas relações estabele-
cidas entre europeus e povos indígenas, é possível contextualizar os
interesses destes últimos envolvidos naquele processo.
Considerar as intenções, os projetos, as pautas políticas, as
agendas dos diferentes agentes é reconhecer a condição de agentes his-
tóricos de todos os envolvidos em uma dada trama. É também assumir
que ensinar História é municiar os/as estudantes com as ferramentas
necessárias para analisar contextos, confrontar perspectivas, formular
juízos. Ora, isto só é possível quando reconhecemos as intenções, pro-
jetos e agendas por trás das ações dos envolvidos em dado processo. E
o campo da História Indígena tem ampliado suas pesquisas, de modo
a considerar as perspectivas de povos indígenas, em diferentes mo-
mentos de nossa trajetória histórica.
12 Sobre o sentido atribuído aqui à imaginação histórica. Cf. CERTEAU, 1988; AZEVEDO; TEIXEIRA, 2008.
13 O uso da literatura antropológica pode ser muito útil nesse sentido. Cf. GORDON, 2006.

288
O caso do Diretório dos Índios pode nos ajudar a elucidar como
a consideração de outras perspectivas torna não somente mais comple-
xas as tramas históricas, mas concorre para a recusa de estereotipias.
O Diretório dos Índios configura um aparato legislativo voltado para a
regulação da liberdade dos índios, garantida pela Lei de Liberdades de
1755. Por meio dele, os povos indígenas agregados à sociedade colonial
deveriam ser reunidos em povoações específicas e submetidos ao traba-
lho compulsório, meio pelo qual adquiririam os caracteres da civilização.
A documentação coeva é pródiga no registro de fugas de ín-
dios das povoações coloniais. Diante dela, durante muitos anos, a
produção historiográfica assumiu as fugas como expressão da resis-
tência indígena ao projeto colonial português. Uma análise mais de-
tida, no entanto, sugere que algumas fugas expressam a perspectiva
dos índios aldeados do que significava a liberdade anunciada na le-
gislação. Ao considerar o destino das fugas, verificou-se que muitos
indígenas fugiam de uma povoação colonial para outra, por razões
diversas – afetivas, econômicas, políticas etc.
Em vários dos casos estudados, as fugas não compreendiam, ab-
solutamente, a recusa da vida colonial. Elas expressavam uma compre-
ensão particular da legislação e do modo com compreendiam sua liber-
dade. Se eram livres, muitos entendiam como lícito o direito de transitar
de uma povoação a outra, de recusar determinado tipo de trabalho, de
optar pelo que lhes parecia mais vantajoso. As fugas, nesses casos, não
representavam uma recusa da vida colonial, mas uma tentativa de inter-
ferência naquela vida. Como agentes históricos de seu tempo, os povos
indígenas aldeados nas povoações do Diretório dos Índios entenderam
o momento em que viviam, sopesaram o que estava em jogo e agiram,
impuseram sua perspectiva, afetaram o curso dos projetos coloniais e
redimensionaram as políticas formuladas com o objetivo único de sub-
metê-los (COELHO, 2016).

289
Além disso, o Diretório dos Índios, inicialmente aplicado no Grão
Pará, foi estendido para outras áreas do que denominamos de América
Portuguesa. Pois, em cada espaço em que foi aplicado aquela legislação
conheceu uma configuração própria. Assim, não é possível falar do Dire-
tório dos Índios como se tratássemos de um evento que assumiu a mesma
conformação onde quer que a mesma lei tenha sido introduzida.
«Triangular», então, implica em considerar, na abordagem de
qualquer processo histórico relativo à História do Brasil, a ação de agen-
tes brancos14, indígenas e negros15, tendo em vistas seus projetos, suas
intenções, suas agendas e como elas informam suas ações. Por meio des-
se procedimento, não se advoga a ampliação dos conteúdos/objetos de
conhecimento16, mas a ampliação dos agentes abordados nas narrativas
e uma mudança na perspectiva segundo a qual são apreendidos por elas.
Nesse sentido, as narrativas históricas didáticas, expressas nos livros di-
dáticos não são instadas a aumentar o número de páginas destinadas à
abordagem dos povos indígenas habitantes da América, antes da che-
gada dos europeus. Mas, a ampliar a presença de agentes indígenas [e
negros] no trato dos conteúdos relativos à História do Brasil.
A produção historiográfica atenta às perspectivas indígenas tem
suscitado novos estudos sobre a expansão da sociedade colonial (RE-
SENDE; LANGFUR, 2007; CANCELA, 2014; ALMEIDA, 2017), sobre
a Revolta dos Farrapos (NEUMANN, 2014), sobre a expansão da so-
ciedade nacional no século XIX (MOTA, 2017; DANTAS, 2018; DOR-
NELLES, 2018; BERGAMASCHI; ANTUNES, 2020), sobre a Ditadura
14 Assumimos a categoria em seu significado social. Cf. PIZZA, 2000, p. 97-127.
15E outros agentes! A referência à trindade referida pela legislação não esgota o potencial da proposta de-
fendida aqui.
16 Muito pelo contrário. O currículo proposto pela BNCC desconhece um dado elementar na formulação de
qualquer base curricular – a relação tempo/conteúdo. Ao insistir na manutenção de uma narrativa compro-
metida com a tradição memorialística e com os objetivos relacionados à História, ainda no século XIX, os
formuladores da base desconsideraram o tempo que alunos/alunas e professores/professoras dispõem para
lidar com a história escolar. Não é objetivo deste texto discutir a questão. Mas, desde já nos posicionamos
em favor de um redimensionamento do currículo, de forma a permitir que a História seja objeto de apren-
dizagem e não de transmissão.

290
Civil-Militar (VALENTE, 2017), sobre o processo de redemocratização
(FERNANDES, 2018) e sobre os Grandes Projetos de desenvolvimento
(GUIMARÃES, 2017), por exemplo. Tal produção (da qual fizemos uso
de um mero extrato) faculta a escrita de narrativas didáticas, informa-
das pelo avanço da pesquisa científica, que considerem as intenções de
diferentes agentes, especialmente dos atores sociais indígenas, levando
em conta suas intenções, agendas, pautas, políticas e visões de mundo.
Ampliar o espaço dos agentes na narrativa histórica escolar tem um
outro desdobramento: a superação da dicotomia texto base/caixas de texto, re-
corrente nos livros didáticos. Essa postura acaba por reiterar a compreensão de
que existe uma narrativa – a correta, a qual deve ser apreendida, memorizada
e a partir da qual se pode conhecer lições – e outras dissonantes. «Triangular»
permite assumir, na feitura do texto didático, a complexidade das tramas his-
tóricas, ao trazer para o mesmo plano narrativo as diversas perspectivas dos
diferentes sujeitos que compõem os processos que demarcam a nossa trajetória.
Ao restaurar a condição de agente histórico que participa dos
processos de significação do tempo, por meio de sua atuação positiva
(e não somente aquela, segundo a qual, certos agentes apenas reagem à
ação de outrem), a narrativa histórica didática potencializa as chances
de subversão do racismo e do preconceito de que são objeto os povos
indígenas (e negros). Ao reconhecer suas intenções e ações e, conse-
quentemente, suas interferências no curso dos eventos, a narrativa his-
tórica didática concorre para a desconstrução da ideia segundo a qual
os povos indígenas são, tão somente, vítimas do processo histórico, que
são desprovidos de racionalidade e que não dialogam com o tempo em
que vivem. Ao destacar a ação indígena nas tramas recentes de nossa
trajetória como país e como nação, se pode contribuir para a alteração
da premissa segundo a qual os povos indígenas são naturais do passado
remoto e não participam da sociedade brasileira hodierna.17
17A formulação que apresentamos não encaminha um modelo, mas uma premissa comprometida com uma
educação inclusiva. Ela levanta uma série de questões. Uma das mais importantes diz respeito à concreti-

291
POR OUTRAS NARRATIVAS...

Os livros didáticos conformam um instrumento importante e


poderoso do sistema educacional. Em que pese a ampliação do acesso
à informação, facultada pela rede mundial de computadores, a Escola
e o Livro Didático não foram substituídos como espaços de educação
formal – em que se ensina e se aprende a pensar tendo a Ciência e os
princípios republicanos como parâmetros. Por isso, os processos de ava-
liação e de distribuição de livros didáticos constituem compromisso e
obrigação do Estado (e não de governos).
A formação para a cidadania, aquela que concorre para a valo-
rização da Democracia e para o convívio pacífico e respeitoso em uma
sociedade demarcada pela Diversidade e pela Diferença, depende, tam-
bém, de um livro didático que reconheça a Diversidade como um valor.
O saber histórico profissional, uma das bases do saber histórico escolar,
é demarcado pelo compromisso com a diversidade e a diferença. Fazer
História exige o reconhecimento dos diversos agentes e de suas inten-
ções, a consideração das ações de todos no desenrolar dos eventos e a
crítica de documentos nos quais as ações e intenções se manifestam.
Incorporar as ações, intenções, pautas, agendas e políticas dos po-
vos indígenas (e da miríade de agentes que compõem as conformações so-
ciais em diferentes tempos e espaços) é tanto nossa obrigação profissional
quanto nosso compromisso político com a construção de uma sociedade
democrática, inclusiva e combativa, diante de injustiças, desigualdades e,
sobretudo, do racismo e de seus desdobramentos danosos.
Desde há alguns anos, a discussão sobre a História Ensinada
vem apontando a distância havida entre o saber operado em sala de aula
e a realidade dos alunos e alunas da Educação Básica. Pois bem, ao se
zação de narrativas didáticas, assim conformadas, diante de um rol de conteúdos que abrange largamente a
experiência ocidental, nos últimos 2000 anos, como propõe a BNCC. Os limites deste texto não nos permi-
tem enfrentar a discussão, mas acreditamos que nossa reflexão deixa pistas sobre como nos situamos diante
do tema.

292
dar vez e voz a outros agentes, damos um passo em sua direção. A maior
parte deles e delas, lamentavelmente, não tem vez, nem voz. Ao incor-
porarmos as vozes de indígenas, negros, pobres, mulheres e daqueles
que não se confundem com (grandes) vultos, podemos tornar a Histó-
ria Ensinada um espaço de discussão de possibilidades. Por meio dela,
abordaríamos agentes que, a despeito das tentativas de silenciamento,
fizeram ouvir suas vozes, interferindo no curso dos eventos.
Sem utopia, não há educação e, menos ainda, História!

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões
historiográficas. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 37, n. 75, p. 17-38, mai. 2017.

ALMEIDA, Mauro Willian Barbosa de. O racismo nos livros didáticos. In: SILVA, Aracy Lopes
de (Org.). A questão indígena na sala de aula: subsídios para professores de 1º e 2º graus. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 13-71;

AZEVEDO, Danrlei de Freitas; TEIXEIRA, Felipe Charbel. Escrita da história e representação:


sobre o papel da imaginação do sujeito na operação historiográfica. Topoi, Rio de Janeiro, v. 9,
n. 16, p. 68-90, jun. 2008.

BANIWA, Gersem Luciano. Movimentos e políticas indígenas no Movimentos e políticas


indígenas no Brasil contemporâneo Brasil contemporâneo. Tellus, Campo Grande, ano 7, n. 12,
p. 127-146, abr. 2007.

BERGAMASCHI, Maria Aparecida; ANTUNES, Cláudia Pereira; MEDEIROS, Juliana


Schneider. Escolarização kaingang no Rio Grande do Sul de meados do século XIX ao limiar
do século XXI: das iniciativas missionárias à escola indígena específica e diferenciada. Revista
Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 20, n. 103, 2020.

BEZERRA, Holien Gonçalves. Entrevista – Holien Gonçalves Bezerra. Revista História Hoje,
São Paulo, v. 2, n. 4, p. 177-203, 2013. Entrevista concedida a Ângela Maria de Castro Gomes,
Tania Regina de Luca.

BEZERRA, Holien Gonçalves. O PNLD de história: momentos iniciais. In: ROCHA, Helenice;
REZNIK, Luis; MAGALHÃES, Marcelo de Souza (Orgs.). Livros didáticos de história: entre
políticas e narrativas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 67-82.

293
BICALHO, Poliene Soares dos Santos. As assembleias indígenas – o advento do movimento
indígena no Brasil. OPSIS, Catalão, v. 10, n. 1, p. 91-114, 2010.

BITTENCOURT, Circe Maria F. Pátria, civilização e trabalho: o ensino de história nas escolas
paulistas (1917-1939). São Paulo: Edições Loyola, 1990.

_______. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2018.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília: Ministério da


Educação, s.d [2018].

_______. Câmara dos Deputados. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Inclui no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2008/lei-11645-10-marco-
2008-572787-norma-pl.html>. Acesso em: 29 set. 2021.

_______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Artigo 208, Inciso VII. Disponível:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 13 mai. 2020.

_______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação.


Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 25 maio 2020.

CACETE, Núria Hanglei. Breve história do ensino superior brasileiro e da formação de professores
para a escola secundária. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 40, n. 4, p. 1061-1076, dez. 2014.

CALIL, Gilberto. Uma história para o conformismo e a exaltação patriótica: crítica à proposta
de BNCC/História. Giramundo, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 39-46, jul./dez. 2015.

CANCELA, Francisco. O trabalho dos índios numa "terra muito destituída de escravos":
políticas indigenistas e políticas indígenas na antiga Capitania de Porto Seguro (1763-1808).
História, Franca, v. 33, n. 2, p. 514-539, dez. 2014.

CANEN, Ana. Sentidos e dilemas do multiculturalismo: desafios curriculares para o novo


milênio. In: LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth (Orgs.). Currículo: debates
contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2002. p. 174-195;

CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.).
História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988;

CHALOUB, Sidney; SILVA, Fernando T. da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos


e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos Arquivo Edgar
Leuenroth, Campinas, v, 14, n. 26, 2009.

CHIRINEA, Andréia M.; BRANDÃO, Carlos F. O IDEB como política de regulação do Estado e legitimação
da qualidade: em busca de significados. Ensaio, Rio de Janeiro, v. 23, n. 87, p. 461-484, jun. 2015.

294
COELHO, Mauro Cezar. A história, o índio e o livro didático: apontamentos para uma reflexão
sobre o saber histórico escolar. In: ROCHA, Helenice Aparecida Bastos; REZNIK, Luiz;
MAGALHÃES, Marcelo de Souza (Orgs.). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de
Janeiro: FGV, 2009. p. 263-280.

_______. Moral da história: a representação do índio em livros didáticos. In: SILVA, Marcos
(Org.). História: que ensino é esse? Campinas: Papirus, 2013. p. 65-82.

_______. Do Sertão para o Mar - um estudo sobre a experiência portuguesa na América: o


caso do Diretório dos Índios (1750-1798). 1. ed. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016.

_______. Que enredo tem essa história? A colonização portuguesa na América nos livros didáticos
de história. In: ROCHA, Helenice; REZNIK, Luis; MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Livros
didáticos de história: entre políticas e narrativas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 185-202.

COELHO, Mauro Cezar; BICHARA, Taissa Cordeiro. A história de um passado “injusto”: povos indígenas,
livro didático e formação para cidadania. História Unicap, Recife, v. 4, n. 7, p. 75-89, jan./jun. 2017.

COELHO, Mauro Cezar; ROCHA, Helenice Aparecida Bastos. Paradoxos do protagonismo


indígena na escrita escolar da História do Brasil. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n.
25, p. 464-488, jul./set. 2018.

COELHO, Wilma de Nazaré Baía; COELHO, Mauro Cezar. Os conteúdos étnico-raciais na


educação brasileira: práticas em curso. Educar em Revista, Curitiba, n. 47, p. 67-84, mar. 2013.

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO/CNE. Parecer CNE/CP nº 03/2004, aprovado em


10 de março de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Disponível: <http://
portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2020.

_______. Resolução CNE/CEB nº 2, de 7 de abril de 1998. Institui as Diretrizes Curriculares


Nacionais para o Ensino Fundamental, artigo 3º. Disponível: <http://portal.mec.gov.br/cne/
arquivos/pdf/rceb02_98.pdf>. Acesso em: 21 mai. 2020.

DANTAS, Mariana Albuquerque. Do aldeamento do Riacho do Mato à Colônia Socorro: defesa


de terras e aprendizado político dos indígenas de Pernambuco (1860-1880). Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 38, n. 77, p. 81-102, abr. 2018.

DORNELLES, Soraia Sales. Trabalho compulsório e escravidão indígena no Brasil imperial:


reflexões a partir da província paulista. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 38, n. 79,
p. 87-108, dez. 2018.

DUARTE, Clarice Seixas. Direito público subjetivo e políticas educacionais. São Paulo em
Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 113-118, jun. 2004.

295
FERNANDES DA SILVA JÚNIOR, Astrogildo. BNCC, componentes curriculares de história:
perspectivas de superação do eurocentrismo. EccoS Revista Científica, São Paulo, n. 41, p. 91-
106, set.-dez. 2016.

FERNANDES, Fernando Roque. Cidadanização e Etnogêneses no Brasil: apontamentos


a uma reflexão sobre as emergências políticas e sociais dos povos indígenas na segunda
metade do século XX. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 31, n.
63, p. 71-88, abr. 2018.

FILGUEIRAS, Juliana Miranda. As políticas para o livro didático durante a ditadura militar: a
Colted e a Fename. História da Educação, Santa Maria, v. 19, n. 45, p. 85-102, abr. 2015.

FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento


escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO/FNDE. Resolução


CNE/CEB nº 4, de 13 de julho de 2010a. Define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais
para a Educação Básica, artigos 3º, 4º, 5º e 6º. Disponível: <http://portal.mec.gov.br/index.
php?option=com_content&view=article&id=12992>. Acesso em: 21 mai. 2020

_______. Resolução CNE/CP nº 1, de 17 de junho de 2004. Institui Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana, artigo 2º. Disponível: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/
res012004.pdf>. Acesso em: 21 mai. 2020.

_______. Edital de Convocação 06/2011 – CGPLI. Disponível em: <http://portal.mec.


gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9345-link-08112011-
editalpnld2014&Itemid=30192>. Acesso em: 01 out. 2021.

_______. Edital de Convocação 02/2015 – CGPLI. Disponível em: <https://cchla.ufrn.br/pnld/


wp-content/uploads/2017_pnld_edital_consolidado.pdf>. Acesso em: 01 out. 2021.

_______. Edital de Convocação 01/2018 – CGPLI. Disponível em: <https://www.in.gov.br/


materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/8245845/do3-2018-03-28-edital-de-
convocacao-n-1-2018-cgpli-pnld-2020-8245841>. Acesso em: 01 out. 2021.

_______. Parecer CNE/CEB nº: 14/2015. Diretrizes Operacionais para a


implementação da história e das culturas dos povos indígenas na Educação Básica, em
decorrência da Lei nº 11.645/2008, p. 2-4. Disponível: <http://portal.mec.gov.br/index.
php?option=com_docman&view=download&alias=27591-pareceres-da-camara-de-
educacao-basica-14-2015pdf&category_slug=novembro-2015-pdf&Itemid=30192>.
Acesso em: 21 mai. 2020.

296
_______. Programa Nacional Do Livro Didático para o ano de 2002 (PNLD/2002): Edital de
convocação para inscrição no Processo de Avaliação e Seleção de Livros Didáticos a serem incluídos no
“Guia de Livros Didáticos de 5ª A 8ª Séries” do PNLD/2002. Brasília: FNDE, 1999. (cópia digitalizada)

_______. Programa Nacional Do Livro Didático para o ano de 2005 (PNLD/2005): Edital de
convocação para inscrição no Processo de Avaliação e Seleção de Livros Didáticos a serem incluídos no
“Guia de Livros Didáticos de 5ª A 8ª Séries” do PNLD/2005. Brasília: FNDE, 2004. (cópia digitalizada)

_______. Programa Nacional Do Livro Didático – PNLD 2008: Edital de convocação para
inscrição no Processo de Avaliação e Seleção de Livros Didáticos a serem incluídos no “Guia de
Livros Didáticos de 5ª A 8ª Séries” do PNLD/2008. Brasília: FNDE, 2007. (cópia digitalizada)

_______. Programa Nacional Do Livro Didático – PNLD 2011. Edital de convocação para
inscrição no Processo de Avaliação e Seleção de Livros Didáticos a serem incluídos no “Guia de
Livros Didáticos de 5ª A 8ª Séries” do PNLD/2011. Brasília: FNDE, 2010. (cópia digitalizada)

_______. Resolução CNE/CEB nº 7, de 14 de dezembro de 2010b. Fixa Diretrizes Curriculares


Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos, artigos 6º e 7º. Disponível: <http://
portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=7246-rceb007-
10&category_slug=dezembro-2010-pdf&Itemid=30192>. Acesso: 21 mai. 2020.

GASPARELLO, Arlette Medeiros. O livro didático como referência de cultura histórica. In:
ROCHA, Helenice; MAGALHÃES, Marcelo; GONTIJO, Rebeca (Orgs.). A escrita da história
escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. p. 265-279.

GORDON, Cesar. Economia Selvagem: ritual e mercadoria entre os Xikrin-Mebêngôkre. São


Paulo: Editora UNESP/ISA/NuTI, 2006.

GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Livros didáticos e fontes de informações sobre as sociedades indígenas.
In: SILVA, Aracy Lopez da Silva; GRUPIONI, Luis Donisete Benzi (Orgs.). A temática indígena na sala
de aula: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC, 1995. p. 481-526.

GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e nação no Brasil: 1838-1857. Rio de


Janeiro: EdUERJ, 2011.

GUIMARAES, Mariana Teixeira. A saga de Payaré Akrãtikatêjê frente ao Estado brasileiro no


contexto da construção da hidrelétrica de Tucuruí. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi,
Belém, v. 12, n. 3, p. 953-965, dez. 2017.

GUIMARÃES, Selva. Didática e prática de ensino de História: experiências, reflexões e


aprendizados. Campinas: Papirus, 2012.

HERMANN, Nadja. Virtude e amor em Rousseau. História da Educação, Santa Maria, v. 17, n.
41, p. 29-42, dez./2013.

297
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.

LESSA, Carlos. Nação e nacionalismo a partir da experiência brasileira. Estudos Avançados,


São Paulo, v. 22, n. 62, p. 237-256, 2008.

LIMA, Antonio Carlos de Souza. Um olhar sobre a presença das populações nativas na invenção
do Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org..). A temática
indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/
UNESCO, 1995. p. 407-424;

LOPES, Danielle Bastos. O Movimento Indígena na Assembleia Nacional Constituinte


(1984-1988). 2011. 184 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História
Social, Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, São Gonçalo, 2011.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. São Paulo:
HUCITEC, 1990.

MIRANDA, Sonia Regina; LUCA, Tania Regina de. O Livro Didático de História Hoje: um
panorama a partir do PNLD. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 29, n. 48, p. 23-144, 2004.

MOLINA, Olga. Quem engana quem: professor X livro didático. Campinas; Papirus, 1987.

MOTA, Lúcio Tadeu. Passo Ruim 1868: as estratégias dos Xokleng nas fronteiras de seus territórios
do alto rio Itajaí. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 37, n. 75, p. 169-193, mai. 2017.

MUNDUKURU, Daniel. O banquete dos deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira.
São Paulo: Global, 2009.

_______. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo:


Edições Paulinas, 2012.

NASCIMENTO, Thiago Rodrigues. A formação do professor de História no Brasil: percurso


histórico e periodização. Revista História Hoje, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 265-304, 2013, p. 281-286.

NEUMANN, Eduardo Santos. “Um só não escapa de pegar em armas”: as populações indígenas
na Guerra dos Farrapos (1835-1845). Revista História, São Paulo, n. 171, p. 83-109, dez. 2014.

NOSELLA, Maria de Lourdes Chagas Deiro. As belas mentiras: a ideologia subjacente aos
textos didáticos. São Paulo; Cortez & Moraes, 1979;

NOVO, Leonardo Castro. Os índios no ensino escolar de História do Brasil: seus lugares, suas
representações (séculos XIX-XXI). 2020. 261 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação
em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2020.

298
OLIVA, Anderson Ribeiro. A história africana nas escolas brasileiras: entre o prescrito e o
vivido, da legislação educacional aos olhares dos especialistas (1995-2006). História, Franca, v.
28, n. 2, p. 143-172, 2009.

OLIVEIRA, Itamar Freitas; OLVEIRA, Margarida Dias de. Cultura história e livro didático
ideal: algumas contribuições de categorias rüsenianas para um ensino de História à brasileira.
Espaço Pedagógico, Passo Fundo, v. 21. n. 2, p. 223-234, jul./dez. 2014.

PEREIRA, Nilton Mullet; RODRIGUES, Mara Cristina de Matos. BNCC e o Passado Prático:
Temporalidades e Produção de Identidades no Ensino de História. Arquivos Analíticos de
Políticas Educativas, v. 26, n. 107, p. 1-22, set. 2018.

PINTO JÚNIOR, Arnaldo; BUENO, João Batista Gonçalves; GUIMARÃES, Maria de Fátima.
A BNCC em pauta: quando nós vamos estudar nossa história? In: MOLINA, Ana Heloisa;
FERREIRA, Carlos Augusto Lima (Orgs.). Entre textos e contextos: caminhos do ensino de
história. Curitiba: Editora CRV, 2016. p. 61-82.

PIZZA, Edith. Branco no Brasil? Ninguém sabe, ninguém viu. In: GUIMARÃES, Antônio Sérgio
Alfredo; HUNTLEY, Lynn (Orgs.). Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. 1. ed.
São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. p. 97-127.

RESENDE, Maria Leônia Chaves de; LANGFUR, Hal. Minas Gerais indígena: a resistência dos
índios nos sertões e nas vilas de El-Rei. Tempo, Niterói, v. 12, n. 23, p. 5-22, 2007.

SANTOS, Wellington Oliveira dos. A inclusão do personagem negro em livros didáticos de Geografia:
quando a diferença é banalizada? GEOGRAFIA, Londrina, v. 22, n.1, p. 39-58, jan./abr. 2013.

SAWAYA, Ana Lydia; FILGUEIRAS, Andrea. "Abra a felicidade"? Implicações para o vício
alimentar. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 78, p. 53-70, 2013.

SILVA, Cristiani Bereta da. Vestígios de leituras e escritas nas rotinas cotidianas do Ensino de
História no Brasil (décadas de 1930-1960). In: MONTEIRO, Ana Maria; RALEJO, Adriana
(Orgs.). Cartografias da pesquisa em ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019. p. 163-186.

SILVA, Marco Antônio. A fetichização do livro didático no Brasil. Educação & Realidade, Porto
Alegre, vol. 37, n. 3, p. 803-821, set./dez. 2012.

TELLES, Norma. A imagem do índio no livro didático: equivocada, enganadora. In: SILVA,
Aracy Lopes de (Org.). A questão indígena na sala de aula: subsídios para professores de 1º e 2º
graus. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 73-99.

VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura.


São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

299
O desafio da renovação do que se ensina
e do que se aprende em História

Magno Francisco de Jesus Santos1

1 Doutorado pela UFF. Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional
em Ensino de História.

300
A temática deste livro, em si, traz o peso de usos e abusos no
pensamento educacional brasileiro. A renovação tem sido a tônica nor-
teadora dos discursos produzidos acerca do espaço escolar. A trajetória
da Educação Básica brasileira, no âmbito das políticas públicas educacio-
nais, da reflexão teórica e da propositura metodológica, tem sido tingida
pela força motriz de busca da novidade, da renovação, de modismos.
Retórica similar também perpassou a constituição da iden-
tidade historiográfica no país ao longo do século XX. A apologia à
renovação dos fazeres historiográficos no Brasil, em grande medida,
inspirou-se na ideia do novo: a nova história, nova história cultural, a
nova história política; assim como bebeu em diferentes fontes: a his-
tória cultural francesa, a história social britânica, a metodologia da
micro-história italiana, a didática da história alemã, a global history
norte-americana ou os estudos subalternos indianos.
No campo discursivo, tanto o ensino, quanto a pesquisa, (as
duas faces dialeticamente opostas e complementares de Clio), encon-
tram-se ancoradas na renovação, no refazer-se, no reinventar-se e no
deslocamento espacial de modelos interpretativos. Contudo, em nossos
fazeres, em ambos os campos, é recorrente o lamento de profissionais
da História acerca das longas permanências, a priori, dos velhos e con-
denados modelos historiográficos: do currículo quadripartite, centrado
no protagonismo de homens brancos e com dificuldade em articular os
binômios teoria e prática, pesquisa e ensino, fonte histórica e recurso
didático. No âmbito da história ensinada, nos seus diferentes espaços
institucionais, também eclodem as reclamações acerca das dificuldades
em superar o amorfo fantasma do “método tradicional”.
Os antagonismos entre falares e fazeres expressam uma realida-
de quase esquizofrênica e que, de alguma forma, encobre os problemas
que perpassam o ensino de história em suas múltiplas dimensões: uni-
versidades, ensino médio e fundamental, séries iniciais do ensino fun-

301
damental ou na educação de jovens e adultos. Um problema de difícil
solução, porque exige, de imediato, a reflexão sobre o que ensinamos
nas aulas de história, ou seja, perpassa pelo debate da atuação do profis-
sional da história como professor de História.
Isso não parece ser tarefa simples. Primeiramente, temos a re-
lutância de alguns professores de história em debaterem a questão do
ensino como um elemento norteador dos cursos de graduação em licen-
ciatura em História. Como nós pensamos as nossas disciplinas? Real-
mente levamos em consideração as dimensões fundamentais de teoria,
metodologia, historiografia e ensino? Suspeito que o ensino raramente
é enfrentamento como um problema nos componentes curriculares es-
pecíficos, pois os cursos de formação inicial de professores de história
ainda reverberam o modelo no qual o ensino deve ser pensado nas dis-
ciplinas tidas como pedagógicas e nos estágios.
O resultado dessa prática são currículos de graduação nos quais
percebe-se uma elevada carga horária de disciplinas da área de teoria
e metodologia da história e as gigantescas dificuldades dos professores
egressos destes cursos em lecionarem os referidos conteúdos no sexto
ano do ensino fundamental. Lembrando que de acordo com os dados
do Censo Escolar de 2015 e 2018 (INEP, 2018), as maiores taxas de re-
provação dos alunos da educação básica ocorrem no 6º ano ensino fun-
damental e 1º ano do ensino médio.
O segundo ponto que torna difícil a operacionalidade da refor-
mulação das propostas de ensino é o próprio modelo de problematizar
os processos de reformulação dos currículos, muitas vezes centrados na
inserção ou exclusão dos componentes curriculares, com pouco dimen-
sionamento acerca da metodologia do ensino de história nos cursos de
graduação. Afinal, quais problemas de ensino e aprendizagem enfren-
tamos nas salas de aula dos cursos de história nas universidades? Se,
na Educação Básica, muitas vezes, o peso da responsabilidade sobre o

302
fracasso de rendimento escolar do aluno recai sobre a metodologia ado-
tada pelo professor; na universidade ocorre uma inversão, culpabilizan-
do os alunos pela falta de interesse ou, o pior, pela ausência de preparo
deste, como se os alunos fossem os responsáveis pela suposta falta de
preparo para a inteligibilidade das complexas formas de ensinar gesta-
das nos cursos de graduação em História.
Suspeito que o mal provocado pela pandemia pode ter reper-
cutido nesse campo, considerando que a necessidade de implementar
o ensino remoto mobilizou professores a realizarem cursos de aperfei-
çoamento, principalmente, no tocante às metodologias ativas. Se bem
que considero o método histórico sempre instigante e desafiador para
jovens. O método histórico mobilizado para o ensino implica em uma
metodologia ativa. Muitas vezes o problema encontra-se exatamente
na renúncia do método histórico quando se pensa o ensino, como tem
demonstrado as exitosas experiências das professoras Juliana Souza e
Margarida Dias na coordenação de projetos de ensino e do Programa de
Iniciação à Docência (PIBID).
De qualquer forma, o problema da renovação do aprender e en-
sinar história foi proposto e enfrentado por professoras e professores
competentes que integram esta coletânea. Trilhando caminhos distin-
tos, condizentes com os respectivos campos de atuação, foram produ-
zidas avaliações que não apontam para as famigeradas ausências, da
combatida historiografia da falta que já foi predominante nos estudos
sobre os livros didáticos de história. São leituras que discorrem sobre a
presença, a força do discurso de renovação e de continuidade vigentes
nas historiografias acadêmicas e escolares. Enfrenta-se o que temos. Di-
mensiona-se as possibilidades e tendências.
A escrita da história foi lida como um movimento. Movimento
que revela sutilezas, como pequenos avanços que sinalizam para o po-
tencial renovador das políticas públicas como uma conquista dos mo-

303
vimentos sociais. São esses indícios ínfimos, que expressam uma am-
plificação da presença de novos sujeitos nas narrativas escolares. Esse
é o caso da leitura construída pelas professoras Flávia Caimi e Letícia
Mistura. Providas de uma apreciação perspicaz sobre um conjunto do-
cumental constituído pelos editais do PNLD, guias do livro didático do
PNLD e de dissertações sobre livros didáticos de história, as professoras
tencionam o tratamento dado à história das mulheres e das relações de
gênero nos livros didáticos brasileiros. Temática provocante e altamen-
te desafiadora, em nosso contexto marcado por violência, feminicídio,
caça às bruxas no tocante à famigerada ideologia de gênero e pelo ma-
chismo como elo identitário de uma política de governo.
Apesar do contexto hostil, as professoras elencaram alguns
avanços tímidos, mas significativos, nos últimos processos de avaliação
dos livros didáticos de história, como a ampliação dos conteúdos sobre
mulheres, aumento da presença das mulheres nas capas do LD e, até
mesmo, algumas mudanças substanciais no modelo de construção das
narrativas históricas em duas coleções. Conquistas que denotam o for-
talecimento das políticas públicas educacionais que passam a exigir não
somente a presença das mulheres, mas uma construção do protagonis-
mo significativo dessas mulheres nos enredos históricos, em detrimen-
tos de antigos modelos exóticos e estereotipados.
Neste sentido, Flávia Caimi e Letícia Mistura também ponderam
as limitações dessas conquistas, como a ampliação dos conteúdos sobre
mulheres, mas ainda sem ocupar a centralidade dos textos, por meio de
inserções que buscam apenas contemplar as demandas dos editais, sem
dimensionar a possibilidade de reformular a estruturação da narrativa.
Trata-se, portanto de uma inserção tímida, na qual as mulheres são alo-
cadas tangencialmente para a história. Com isso, as autoras sinalizam
para a necessidade de se reivindicar a construção de uma visibilidade
plural das mulheres, no tocante à classe, etnia e região.

304
PELO DIREITO À DIFERENÇA E OUTRAS
NARRATIVAS DOS POVOS INDÍGENAS: COMENTÁRIO

Nossa tradição historiográfica, tida como brasileira, una e de-


tentora de um enredo nacional, tem por base a escolha de protagonis-
mos e o silenciamento de narrativas que “destoam” da ideia de unidade.
O problema historiográfico é velho2: como forjar uma nação pautada
em uma narrativa única? Como costurar um emaranhado de fios para
tecer uma peça que revele unidade, amarrando passados e reforçando a
perspectiva de continuidade?
No oitocentos, esse problema foi enfrentado por uma legião de
homens letrados: cientistas, historiadores, romancistas, poetas e pin-
tores, que produziram narrativas escritas e imagéticas acerca da histó-
ria do Brasil. Letrados que atuaram em diferentes espaços institucio-
nais, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia
Imperial de Belas Artes, o Conservatório Dramático e o Colégio Pedro
II. Inventava-se a nação, empurrando para o passado os sujeitos que
reverberavam a diversidade.
Com isso, começo esse breve comentário com uma conhecida
pintura histórica, produzida por um pintor negro do Brasil oitocentista:
Horácio Hora (1853-1890), formado pela Academia Baiana de Belas de
Artes e que ganhou bolsa para continuar os seus estudos em Paris.3 Nos
idos de 1882, ele pintou o que se tornaria a sua obra-prima: Peri e Ceci,
com a retomada da temática indígena de O Guarany, de José de Alencar.
Uma pintura romântica, na qual a narrativa literária galgava ou-
tra visibilidade. Peri emerge como o herói. Um herói almejado, ideal,

2 Algumas tentativas de responder a essa questão podem ser encontradas no concurso do IHGB com a
provocante questão “Como escrever a história do Brasil”, realizado na década de 40 do oitocentos, ou com as
recomendações de Manoel de Araújo Porto Alegre aos seus alunos para a elaboração de pinturas históricas
na Academia Imperial de Belas Artes.
3 Os principais elementos biográficos de Horácio Hora podem ser consultados em “Um século de pintura”,
de Laudelino Freire (1916).

305
pois trazia em si os traços do mito fundador da nação: amigo dos bran-
cos, fiel, capaz de se sacrificar pela salvação do europeu. Além disso, um
indígena transportado para o passado remoto e superado. O índio in-
ventado na literatura e pincelado por Horário Hora forjava uma nação,
que no âmbito das políticas públicas, de forma antagônica, apagava a
existência e excluía as comunidades indígenas de suas propriedades por
meio da legislação, como a famigerada lei de terras de 1850.

Figura 1 - Horácio Hora. Pery e Cecy (1882).

Fonte: Acervo do Museu Histórico de Sergipe. São Cristóvão/SE

306
Neste sentido, o silêncio sobre os povos indígenas que viveram e
vivem neste chão foi e ainda é construído a partir da fala. Cumpre-se a lei
11.645/2008, dedicando algumas páginas de livros didáticos e, principalmen-
te, boxes, para tratar da presença indígena. Mas esse tratamento continua
a seguir um velho modelo historiográfico, no qual, a diversidade de povos
muitas vezes foi e é apresentada como elemento opaco que contribuiu para a
formação do país. Fragmentos de uma existência, alegórica, quase a-histórica.
Embates atinentes ao que devemos ensinar para nossas crianças e
jovens, como um perverso espelho, revelam o quanto nós estamos próxi-
mos das premissas defendidas por Carl von Martius, nos idos de 1842, ao
elaborar o plano de “Como deve ser escrita à história do Brasil” (1845).
Naquele tempo, ele metaforizou a contribuição indígena como a de um
afluente que escorre para o grande rio. Foi isso que voltou a ocorrer nos
idos de 2016, quando celebrados nomes da historiografia questionavam a
redução do nosso eurocentrismo como uma ameaça “aos nossos princí-
pios basilares de formação clássica” e entendiam à amplificação das nar-
rativas sobre indígenas e africanos como uma nova face do autoritarismo.
Afinal, se questionava por que deveríamos reduzir o espaço de antigos
gregos e romanos para ampliar o espaço para indígenas?
O instigante dessa postura de defensores da incondicional ne-
cessidade de termos um ensino de história na educação básica pauta-
do em narrativas sobre os povos antigos do velho mundo é que eles se
aproximam de um velho projeto de nação, gestado nos tempos do im-
pério, centrado na ideia de civilização. Para edificar uma nação e forjar
a sua identidade, é preciso investir nos pilares da civilização mundial,
nas chamadas sociedades clássicas e tangenciar o passado deste chão,
pisados por homens e mulheres negros e indígenas.
Supostamente preocupados em uma formação sólida, letrados
de ontem e de hoje, suspeitam de narrativas históricas que tenham
povos originários e negros exercendo o protagonismo. Enxergam

307
nisso uma ameaça à identidade nacional. Ironicamente, é importante
salientarmos que essa proposta de construção de um passado nacio-
nal atrelado à experiência europeia desde os primeiros momentos foi
questionada, por historiadores que pensavam a história em diferen-
tes espaços, principalmente o espaço escolar. Professores de História
como Francisco Ignácio Homem de Mello, docente de história antiga
e medieval do Colégio Pedro II que propôs a redução de sua discipli-
na de quatro anos para apenas dois. Docentes de História do Brasil,
como Raphael Galante, no Colégio Anchieta, e Américo Braziliense,
no Colégio São João, defendiam que deveríamos nortear o ensino
na experiência do país e questionavam, em pleno oitocentos, como
brasileiros poderiam saber detalhes das dinastias europeias e igno-
rar o passado de sua terra. Questionamentos que, de alguma forma,
atravessam o tempo, por meio de outras vozes.
Essas tensões atinentes ao currículo de História expressam o
quanto estamos distantes de uma ruptura epistemológica nos fazeres
historiográficos. Revela o quanto ainda somos levados a hierarquizar os
povos, a não enxergar os povos indígenas como sujeitos que fazem his-
tória. Histórias que devem ser contadas e ouvidas. Histórias que, a cada
dia, passam a ocupar espaço nas universidades e escolas.
De certa forma, esse peso historiográfico herdado e ainda van-
gloriado por alguns, explicita a permanência do que Chimamanda Adi-
chie (2018) discute sobre os perigos de uma história única. Um país que
possui a maior população negra fora da África e uma ampla diversidade
de povos indígenas, mas que continua a centrar as suas narrativas de
História no solo europeu e na elite branca. Uma história na qual negros
e indígenas não são tratados como sujeitos, mas como objetos, que não
agem, mas por vezes reagem. Negros e indígenas emergem como os ou-
tros que vivem no próprio país, como tão bem elucida Grada Kilomba
(2019) no seminal Memórias da Plantação. E ainda ouvimos profissio-

308
nais da História se questionarem por que “a história ensinada não des-
perta a atenção dos alunos”. Em alguns casos, isso pode ser visto como
um ato de resistência, pois o exercício do protagonismo também pode
ser realizado no desdém ao que não lhe é significativo.
Lígio Maia e Mauro Coelho, trilhando caminhos distintos, nos
brindam com instigantes provocações acerca da produção do lugar dos
povos indígenas nos livros didáticos de história no Brasil. Lígio Maia
enfatiza a longa experiência indígena na história, com a elucidação das
ambivalências da legislação, do protagonismo pelos indígenas e das de-
mandas por história dos povos no tempo presente. Mauro Coelho centra
nas políticas públicas educacionais no processo de redemocratização do
Brasil, com a elucidação de um processo de mudança dos livros escolares
marcado pela ampliação quantitativa e da permanência dos parâmetros
qualitativos da interpretação acerca dos indígenas nos livros didáticos.
Ambos os autores sinalizam para a renovação historiográfica
didática reduzida aos boxes, com a continuidade de narrativas con-
servadoras no corpo central dos livros. Além disso, os autores comun-
garam do potencial de renovação e das limitações conceituais da Lei
11.645/2008 e da ampliação dos sujeitos da história como um exercício
democrático que reconhece e ecoa as vozes da diversidade étnica.
Neste sentido, as apreciações de Lígio e Mauro referenda uma
provocação de reinvenção epistemológica da historiografia, em seus
múltiplos espaços. O reconhecimento da diversidade de experiências
históricas na feitura de um país exige o rompimento do velho modelo
de história única. Exige um duro questionamento de quanto nós conti-
nuamos a beber do modelo historiográfico de outrora em instituições
como o IHGB, a Academia Imperial de Belas Artes ou o Colégio Pedro
II. Em um contexto marcado pela queda dos monumentos, é oportuno
pensarmos na demolição de nosso monumento epistemológico e nos
abrirmos para novas possibilidades.

309
Talvez, um dos caminhos para que as histórias indígenas
saiam das margens dos livros didáticos e assumam a centralidade,
como o grande rio, esteja no repensar da história pública, na inser-
ção de narrativas históricas produzidas pelos indígenas, em livros
didáticos, em pinturas, em museus.

PALAVRAS FINAIS

Os autores dos textos aqui presentados nos convocam para a


subversão, para repensar o ensino e a produção de narrativas. Desse
modo, é possível construir um espaço de aprendizagem democrático,
no qual os indígenas não aparecerão como passado superado, frag-
mentos que sobreviveram ao tempo e à civilização, fagulhas incômo-
das no tempo presente. Ao contrário, implica no emergir de sujeitos
que fazem e contam a história. O protagonismo indígena na escrita da
história, no confronto de narrativas, na construção do conhecimento
pela alteridade. Se vivemos um momento de crise institucional da his-
toriografia e da própria universidade, é o momento oportuno de criar
uma fissura nos saberes institucionalizados, de amplificar a democra-
cia de narrativas e reinventar a pluralidade de histórias que enfaixam
o que denominamos de histórias do Brasil.
Neste sentido, abre-se espaço para repensar os fazeres históricos.
Clio, no espaço universitário, assume a sua postura de professora, sem
constrangimento. A partir do chão da escola, dos problemas enfrenta-
dos no ensino e na aprendizagem de História, professores e professoras
constroem narrativas pautadas no método histórico, tencionam a práti-
ca, invertem a ordem, subvertem as hierarquias. Se hoje no campo his-
toriográfico e educacional é tendência buscar modelos interpretativos
decoloniais, a nossa resposta encontra-se ancorada nos fazeres que per-
passam a articulação da formação continuada e inicial de professores de

310
história com o espaço escolar, por meio do ProfHistória e de programas
como o exitoso PIBID e, o ainda difuso, Residência Pedagógica. Fazeres
que geram impacto e podem criar as necessárias fissuras para o conhe-
cimento histórico escolar e, por que não, universitário.
Portanto, a nossa renovação perpassa por um reencontro da uni-
versidade com a escola. O olhar volta-se para a sala de aula da educação
básica. Afinal, o que nossos professores de pensam sobre o seu ofício,
sobre a história? Como os professores de história pensam e fazem a his-
tória? Ao responder essas questões, estaremos subvertendo os centros,
demolindo hierarquias e democratizando o debate. Ao questionarmos a
artificialidade das hierarquias tecidas e buscarmos a construção de uma
reflexão teórica a partir das experiências docentes, teremos a oportuni-
dade de criar fissuras em discursos hegemônicos. Neste sentido, a sub-
versão da ordem vigente não ocorrerá somente a partir da apropriação
de novas leituras oriundas de países que outrora foram ignorados por
nossa historiografia. O processo de decolonizão do conhecimento histó-
rico brasileiro perpassa pelo olhar interno, de intensificação do diálogo
escola/universidade, comunidade acadêmica/comunidades tradicionais
ou grandes centros/espaços regionais. Implica na busca de respostas que
nem sempre serão novas, mas muitas vezes estiveram sob névoa do po-
der que impediu de olharmos para os múltiplos sujeitos que pensam e
fazem a história no Brasil. É o nosso desafio decolonial.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Inclui no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2008/lei-11645-10-marco-
2008-572787-norma-pl.html>. Acesso em: 29 set. 2021.

311
BRASIL. Ministério da Educação. Pesquisas estatísticas e indicadores educacionais: Censo
escolar. INEP, nov. 2011. Disponível em: <https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/
pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados>. Acesso em: 20 mar. 2020.

FREIRE, Laudelino. Um século de pintura. Rio de Janeiro: Röhe, 1916.

HORA, Horácio. Pery e Cecy. 1882. Acervo do Museu Histórico de Sergipe. São Cristóvão/SE.
Disponível em: <http://museuhsergipe.blogspot.com/2014/05/>. Acesso em: 01 out. 2021.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess


Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “Aos que tivessem avidez de saber das cousas pátrias”:
Américo Braziliense, a escrita da história escolar e a invenção do espaço paulista (1873-1879).
In: GAMA, João Paulo de Oliveira; MANKE, Lisiane; SANTOS, Magno Francisco de Jesus
(Orgs). Histórias do Ensino de História: Projetos de nação, materiais didáticos e trajetórias
docentes. Recife: EdUFPE, 2020, p. 45-72.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “Um operoso e erudito estudioso da história de nossa
pátria”: Raphael Galanti e o ensino de História do Brasil (1896-1917). IHS: Antiguos jesuítas en
Iberoamérica. v. 7, n. 2, p. 42-62, 2020.

VON MARTIUS, Carl Friedich Philip. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 6, n. 24, p. 381-403,1845.

312
[2022]
EDITORA CABANA
Trav. WE 11, N º 41 (Conj. Cidade Nova I)
67130-130 — Ananindeua — PA
Telefone: (91) 99998-2193
[email protected]
www.editoracabana.com
314

Você também pode gostar