Charlotte Lamb - Louca Paixão (Julia 158)

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LOUCA PAIXÃO

"CALL BACK YESTERDAY"

Charlote Lamb

Quando Devil a beijou, Oriel fechou os olhos e, sem querer, entreabriu os lábios.
Sem querer, também, suas mãos deslizaram pelo peito musculoso, subindo mais, até
acariciá-lo na nuca. Desejava Devil de um jeito que a apavorava. Queria se entregar,
abandonar o bom senso, ceder finalmente àquela louca paixão. Mas isso era impossível!
Precisava lembrar que Devil era um homem casado, e que a escolha tinha sido dele
mesmo quando, doze anos atrás, preferiu outra mulher. Depois de viver todo esse tempo
na África, Oriel voltou disposta a comprar a mansão que Devil tanto queria. Saiu-se
vitoriosa. Agora precisava apenas vencer suas emoções, que a faziam tão indefesa
diante dele!

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Copyright: CHARLOTTE LAMB
Título original: "CALL BACK YESTERDAY"
Publicado originalmente em 1978 pela Mills & Boon Ltda. Londres, Inglaterra.
Tradução: K. SCHEÈL
Copyright para a língua portuguesa: 1982
ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL
Caixa Postal 2372 — São Paulo
Composto e impresso em oficinas próprias
Foto da capa: ZEFA

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CAPÍTULO I

O carro brilhante, cinza, entrou em alta velocidade na propriedade antiga.


Reduziu a marcha ao passar pelo pomar imenso e parou, finalmente, em frente à
mansão. O motorista deu a volta pela frente do carro e abriu a porta. Alan Kennet
desceu primeiro, depois se virou e estendeu gentilmente a mão para ajudar a mulher a
descer também.
As pessoas que entravam e saíam da mansão paravam para observar, curiosas,
a mulher elegantemente vestida num conjunto preto e justo, com amplo decote em "V",
as pernas longas protegidas por meias de náilon, calçando sapatos de verniz. A sombra
de um chapéu branco e preto, de abas largas, projetava-se em seu rosto.
Ela parou durante alguns minutos olhando a velha mansão. Emocionou-se ao
rever aquela construção, maltratada pelos anos, mas ainda guardando traços de beleza.
As janelas, portas e linhas arquitetônicas da casa indicavam que tinha sido construída
no apogeu do período gregoriano. Nos últimos dez anos a propriedade de Chantries
tinha sido completamente negligenciada e agora havia goteiras no telhado, janelas
quebradas e portas rachadas. Mas, para a mulher elegante, esses detalhes não
importavam. Ela apenas admirava a beleza, a harmonia e a solidez do conjunto.
— Nada mal — disse Alan Kennet.
— Você gostou? — ela perguntou, observando atentamente a expressão do
rosto dele.
— Muito.
— O leilão vai começar daqui a meia hora. Só temos tempo para dar uma
olhada. Vamos?
Ele concordou, atento às vozes excitadas do grupo de curiosos. Todos olhavam
agora na direção do caminho que serpenteava pelo pomar e terminava no pátio em
frente à mansão.
A mulher também se virou e ficou observando.
Um cavaleiro montando um lindo cavalo negro se aproximava pelo caminho
banhado de sol. Observando-se à distância, homem e animal pareciam um só! Ele
cavalgava como se tivesse nascido naquela sela e dava a impressão de ser tão forte
quanto o cavalo. Seus ombros eram largos, e os cabelos, negros como os pêlos do
garanhão, emolduravam um rosto enérgico, marcado por traços arrogantes.
Ele usava uma camisa branca, aberta no peito, e calça de montaria limpa e de
cor clara. Parecia um fazendeiro, mas a arrogância do rosto lhe dava um ar diferente.
Alan Kennet, parado ao lado da mulher que observava, imóvel, o cavaleiro, pensou que
muitos homens da cidade teriam invejado o físico perfeito do desconhecido.
O garanhão negro parou ao lado da mulher e o cavaleiro a olhou detidamente.
Alan não conseguiu decifrar a expressão do rosto dela, oculto pela sombra do chapéu de
abas largas. Tentou adivinhar, inutilmente, por que aquele desconhecido a olhava, de
um jeito tão insolente!
Depois de instantes, que mais pareceram uma eternidade, o cavaleiro seguiu
seu caminho e desapareceu ao atravessar um portão em forma de arco nos fundos da
casa.
O grupo de curiosos, que tinha ficado na expectativa durante toda a cena, voltou
a murmurar, observando ainda o comportamento da mulher. Ela caminhou em direção à
porta, com Alan ao lado.

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— Quem era aquele homem? Você o conhecia? — Alan não conseguiu conter a
curiosidade.
Sem responder, ela continuou andando, passou pelo grupo e entrou na casa. Só
parou no salão, atraída pelo teto decorado com quadrados azuis e brancos e coroas
douradas. A luz que entrava pela janela ampla iluminava seu rosto esguio, delicado e
misterioso, deixando à mostra seus olhos verdes, a testa larga, a boca de lábios finos e
os cabelos loiros, muito claros, amarrados num rabo-de-cavalo.
— Este teto é mais velho que a própria casa — ela comentou, lendo o catálogo
do leilão. — Pertenceu a uma outra mansão que existia neste mesmo lugar no século
XVI. Ainda está bem conservado.
— Oriel, por que você quer comprar esta casa? Para que comprar uma casa em
Yorkshire, tão longe de Londres? Não entendo. Tudo aqui é tão grande. Sei que você
deseja uma casa de campo, para passar o fim de semana... Mas aqui? Você já tem a de
Egon, em Hampshire, não precisa de uma mansão deste tamanho. A não ser que esteja
com a intenção de vender a outra casa.
— Não — ela retrucou, sacudindo a cabeça. — Anatole pode querer morar na
casa de Hampshire... Egon adorava aquela casa. Acho que Anatole tem o direito de
decidir o que fará com a casa do pai dele. Por enquanto, vou deixá-la como está. A
fundação criada por Egon, nos Estados Unidos, quer usar a casa como centro para
coordenar suas atividades na Inglaterra. Sempre é útil ter uma casa no campo para
realizar conferências e hospedar os diretores da fundação.
Alan tirou os óculos e começou a limpar as lentes com um pedaço de flanela,
olhando para o chão.
— Quando você resolveu isso? Eu não sabia de nada, Oriel.
— Sei que é meu assessor financeiro, Alan. Mas também sou capaz de tomar
decisões sem os seus conselhos. Acredite, tomarei o maior cuidado. Beltson fez um
contrato rigoroso. Todos os meus direitos sobre a casa estão especificados e o contrato
de aluguel é apenas por cinco anos. Além disso, estou cobrando um preço alto, que
evidentemente será depositado todo mês na poupança de Anatole.
— Então já está tudo resolvido?
— Não se aborreça — ela disse, sorrindo.
— Não tenho o costume de me aborrecer com negócios. — A expressão de seu
rosto contradizia as palavras.
Oriel notou e riu.
— Ah, se você pudesse se ver no espelho agora, Alan! Sabe que dou o maior
valor a seus conselhos, mas algumas coisas preciso fazer sozinha. Decidir onde vou
morar é uma delas.
— Mas por que aqui? A mansão precisa de muitas reformas, fica longe demais e
é muito grande para você. Além disso, vai precisar de uma porção de empregados para
cuidar dela. — Ele hesitou e depois acrescentou: — Pensei que você escolheria uma
casa em Londres, num lugar como Mayfair, por exemplo. Ou um apartamento recém-
construído e com poucos quartos.
— Detesto Londres e não gosto de apartamentos. Quero morar numa casa.
— Mas por que esta? — Seu tom de voz já traía irritação. — Esta casa tem
quartos úmidos, e provavelmente às vigas no telhado estão cheias de cupim. — Para
reforçar seus argumentos, ele mostrou o papel de parede descascando num dos quartos
onde tinham acabado de entrar.
— Pode ser. Mas acontece que nasci aqui e para mim esta casa é a mais
encantadora do mundo,
Ele se voltou incrédulo, e a viu passar a mão carinhosamente sobre as pedras

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da lareira.
— Você nasceu aqui, Oriel? Nesta casa?
Ela repetiu que sim. Tinha uma voz linda, com um timbre doce e amável. Os
conhecidos e amigos sempre - se impressionavam com isso.
— Fui criada aqui, em Chantries. Vivi aqui durante dezessete anos.
— Esta mansão pertencia à sua família? — Alan parecia surpreso, consultando
o catálogo. — Aqui dizem que a mansão pertenceu à família Haggard durante duzentos
anos. Pensei que seu nome de solteira fosse Malving. . , Oriel Malving.
— O último dono da mansão, Jeremias Haggard, era primo da minha mãe.
Quando ela morreu, meu pai resolveu ir para a África, plantar seringueira. Por isso fui
criada por tio Jeremias; eu era pequena demais para acompanhar meu pai. Além disso,
naquela época as condições de vida na África eram muito duras. Tio Jeremias contratou
uma babá, depois uma governanta, para tomar conta de mim, e fiquei morando aqui.
— Até os dezessete anos? E depois você foi morar com seu pai?
— Isso mesmo. E com dezoito me casei com Egon, na África. Alan olhou ao
redor, crítico. Havia teias de aranha nas janelas, e o chão estava cheio de poeira. Nem
ao menos haviam feito uma limpeza para o dia do leilão.
— Vai custar uma fortuna reformar esta mansão. Já pensou nisto?
— Não me importo. Comprarei a casa de qualquer jeito.
— Ainda assim...
Alan desistiu de argumentar. Sabia que a viúva de Egon Mellstock não precisava
se preocupar com o preço de uma reforma. Ela tinha herdado minas de diamantes e de
cobre, plantações e indústrias, além de inúmeras ações de uma empresa multinacional
com sede na África. Egon e Oriel tinham só um filho, Anatole, que havia herdado parte
dos bens. Atualmente Anatole estava em Londres, com a avó, Renée Mellstock.
Egon Mellstock tinha casado com Oriel, aos cinqüenta anos de idade, depois de
três outros casamentos que não lhe deram nenhum filho. Foi graças a este filho,
Anatole, que Oriel pôde controlar a fortuna dos Mellstock depois da morte do marido.
O casamento entre aquele cinqüentão e a moça de dezoito anos tinha sido feliz,
apesar da grande diferença de idade. Egon adorava a mulher que lhe dera o filho
desejado durante tanto tempo.
Alan sabia que antes do casamento com Oriel, Egon tinha sido um patrão
exigente e irritante, e um marido pouco atencioso. Todos os seus amigos acharam
engraçado quando ele se casou com uma mulher tão jovem. Por muito tempo a
apelidaram de "menininha". Egon ouvia os comentários e não gostava. Por causa disso,
chegou a quebrar a máquina de um fotógrafo da imprensa local. Ele não admitia a
publicação de qualquer foto que revelasse o contraste quase chocante: a jovem loira,
linda, alta e magra, ao lado do milionário baixo e gorducho, com idade para ser seu pai.
Quando Anatole nasceu, Egon chegou a pensar em exame de sangue para ter
certeza da paternidade. Três anos depois, o filho mostrou a todos que era legítimo,
porque seus traços foram se tomando espontaneamente parecidas com os do pai.
Tinham olhos azuis idênticos, a mesma testa estreita, o rosto redondo, o queixo
pequeno e o nariz aquilino. Então ninguém ousou mais duvidar da paternidade de Egon.
Ele adorava Anatole. Teria mimado demais o filho, se Oriel não tivesse
assumido uma posição serena e firme para evitar isso. Ainda assim. Egon costumava
sair com ele para exibi-lo e se vangloriar.
Egon morreu pouco depois de o menino completar nove anos, e Anatole ficou
profundamente deprimido. Nos dois primeiros anos depois da morte do marido, Oriel
dedicou-se, de corpo e alma, à missão de curar a depressão do filho. Ficaram morando
em Hampshire, rodeados por coisas que lembravam Egon. Aos poucos, Anatole foi se

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recuperando e, por fim, aceitou a morte do pai, conseguindo encarar o futuro com alegria
e tranqüilidade.
Perdido em suas lembranças, Alan quase não se deu conta de que o leilão
estava começando. Ele e Oriel voltaram para o salão, que já estava cheio de gente. Para
Alan, a maioria era apenas de espectadores, curiosos, e pessoas das redondezas
interessadas em ver quem compraria a casa. Grande parte das pessoas observava
Oriel. Ela se distinguia no salão como um cisne numa lagoa cheia de patos.
As roupas caras, as jóias, sua elegância e sofisticação atraiam
instantaneamente as atenções.
De repente, Alan notou a presença do homem que tinha chegado momentos
antes, montado no garanhão negro. Estava nos fundos do salão, encostado na parede,
com os braços cruzados sobre o peito e olhando o teto.
— Se você se criou aqui, quase que como filha de seu tio, por que Jeremias não
lhe deu a casa? — Alan queria saber mais.
— Meu tio Jeremias morreu sem fazer testamento e a casa se tornou
propriedade do meu primo Jack, que mora no Canadá. Sem perda de tempo, ele
mandou vender Chantries. Jack não quer voltar para a Inglaterra e precisa do dinheiro.
— Por que ele não ofereceu a casa a você?
— Jack jamais gostou de mim. Apesar de saber que eu estava interessada em
comprar Chantries, achou que eu não pagaria o preço justo... Talvez ele quisesse
dificultar a compra para mim, por isso resolveu fazer o leilão. Pode ser que receba mais
dinheiro desse jeito. — Oriel parecia hesitante. — Sei que Jack recebeu uma outra oferta
boa, além da minha. Provavelmente achou que o preço subiria mais no leilão público.
— Você conhece o outro interessado?
— Sim. — Oriel sorriu, enigmática.
— Quem é?
— Não importa agora. Você verá.
O murmúrio das pessoas cresceu quando dois homens entraram no salão e
foram para o estrado onde havia uma mesa. De lá eles podiam ver todos os presentes.
— Sei que você conhece muitas das pessoas que estão aqui — continuou Alan,
falando baixinho. — A gente não esquece, mesmo depois de doze anos, não é?
— Sem dúvida, Alan.
— E eles se lembram de você?
— Alguns.
— Você deve ter mudado muito. — Alan observou-a, pensativo.
— Como era com dezessete anos?
— Acho que eu era uma adolescente magrinha, de pernas compridas e com
rabo-de-cavalo — Oriel respondeu, olhando ao redor. De vez em quando seus olhos
verdes paravam, ao reconhecer um velho conhecido. — Era um pouco exagerada,
efusiva, com tendência a dramatizar a realidade.
— Não consigo imaginar você desta maneira. Só a conheço como uma mulher
reservada e educada.
— Obrigada.
O leiloeiro bateu com o martelo. O ruído chamou a atenção de todos. Ele fez
uma pequena mesura e começou:
— Boa tarde, meus senhores e minhas senhoras. Estou satisfeito de ver que
tantas pessoas se reuniram aqui no dia de hoje. Como sabem, viemos para oferecer
uma propriedade invejável, chamada Chantries, construída em 1800. Em parte sobre os
alicerces de outra construção mais antiga, dos meados do século XVI, destruída
parcialmente por um incêndio em 1793... — A voz forte do leiloeiro continuou citando o

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texto do catálogo que segurava na mão. Depois de ler o texto inteiro, ele acrescentou: —
Devo avisar aos presentes que o meu cliente não venderá a propriedade por um preço
inferior a cinqüenta mil libras. Portanto, tendo em vista isto, inicio o leilão.
O silêncio que se fez então era interrompido apenas por alguém tossindo baixo
ou pelo grito de uma criança no colo da mãe. Todos esperavam. De repente, um homem
baixo e forte, do lado esquerdo do salão, ergueu seu catálogo. O leiloeiro assentiu.
— Senhoras e senhores, recebi uma oferta de cinqüenta mil libras.
Oriel olhou para Alan e mandou: — Faça as ofertas.
Alan piscou, encolheu os ombros, depois levantou a mão. O leiloeiro se voltou e
ele disse:
— Cinqüenta e uma mil libras.
— Cinqüenta e uma mil libras, recebi a oferta de cinqüenta e uma... — O
leiloeiro sorriu com desdém.
— Cinqüenta e cinco mil — disse o homem atarracado.
— Sessenta — gritou Alan.
Oriel continuava tranqüila. Escreveu algo sobre o catálogo e mostrou a Alan. Ele
sentiu um tremor no corpo inteiro ao ler: "O céu é o limite". Lançou um olhar indignado
para Oriel, mas ela pareceu nem notar. Seu rosto continuava sereno, sem indicar
qualquer emoção.
O preço foi subindo. Quando chegou a oitenta mil libras, as pessoas começaram
a ficar excitadas. Por fim, o homem atarracado sacudiu a cabeça e saiu do salão. Alan
sorriu vitorioso.
— Oitenta mil. . , dou-lhe uma... Oitenta mil... Dou-lhe duas... — 0 leiloeiro erguia
o martelo.
— Noventa mil — disse alguém com sotaque de Yorkshire. Alan virou-se. O
homem de cabelos pretos no fundo do salão ainda estava olhando para o teto. No
entanto, a oferta tinha partido dele. Alan achou que o homem estava blefando. Seria
possível? Aquele fazendeiro caipira teria tanto dinheiro assim? Será que ele daria aquela
fortuna para comprar uma casa velha? Enquanto Alan hesitava, a voz de Oriel soou
nítida a seu lado:
— Cem mil libras.
— Cento e dez mil — o outro retrucou.
— Cento e vinte — respondeu Oriel.
As pessoas presentes estavam com os nervos tensos como a corda de um arco
pronto para atirar. Inclinavam-se para frente, quase levantando das cadeiras, os olhos
brilhando, contendo a respiração. Apenas os dois antagonistas não demonstravam suas
emoções. Ambos faziam as ofertas, frios e calculistas.
O leiloeiro ouvia radiante. O preço continuava subindo, enquanto Alan sentia
fortes dores de cabeça e uma profunda depressão. Será que Oriel tinha enlouquecido?
A reforma daquela mansão custaria tanto quanto o preço da compra, talvez mais. Desse
modo, o seu preço real passaria a ser dobrado: um preço altíssimo, completamente fora
do mercado.
Repentinamente, o homem de cabelos negros descruzou os braços e saiu do
salão. Oriel nem se virou para vê-lo. O leiloeiro esperou alguns momentos e depois
bateu com o martelo. A partir daquele sinal, Chantries pertencia a ela.
— Cento e setenta mil libras! — disse Alan, consternado. — Cento e setenta
mil... Você está louca? Meu Deus, esta mansão valia apenas o limite mínimo de
cinqüenta mil, nada mais... Cento e setenta...
— Fique quieto, Alan — disse Oriel, com frieza. — Você está me cansando.
— A propriedade não vale tanto — ele insistiu. — Você não entende o que fez?

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Aquele fazendeiro nunca teria pagado o valor que ofereceu pela mansão. Não pode ter
tanto dinheiro assim. Com certeza estava participando do leilão em combinação com seu
primo Jack. Os dois juntos conseguiram fazer você pagar cem mil libras a mais.
— É você quem não está entendendo, Alan — ela retrucou muito séria.
— Escute, eu poderia ter feito um acordo com aquele sujeito.
— Ninguém faz acordo com Devil Haggard. — Com quem?
— O nome verdadeiro dele é Dervil. Mas as pessoas daqui da região têm um
humor estranho. Passaram a chamá-lo de Devil, como se ele fosse um demônio.
— Mas... Haggard? Então ele pertence à família? É outro primo? Oriel não
respondeu logo. Continuava com o olhar fixo no catálogo do leilão.
— Ele não é exatamente meu primo...
— O que quer dizer com isso? Como não é "exatamente"... Alan estava bastante
nervoso. Será que Oriel e aquele fazendeiro tinham alguma rivalidade que ele
desconhecia? Por que o público estivera tão interessado e tenso? Todos, no leilão,
pareciam conhecer algum segredo que ele desconhecia.
— Afinal, quem é esse Devil Haggard?
— Sou o bastardo — respondeu uma voz às suas costas.
Ele se virou perplexo, um pouco corado até. Atrás dele estava o fazendeiro de
cabelos negros, com as mãos na cintura, numa atitude de hostilidade indisfarçada. Seus
olhos azuis pareciam fuzilar Alan, irradiando chispas, centelhas, iluminados pelo fogo do
inferno. Alan tossiu, atemorizado.
— Eu... Sou Alan Kennet, assessor financeiro da Sra. Mellstock. — Estendeu a
mão, com unhas polidas e bem tratadas.
Devil ignorou a mão de Alan. Continuava agressivo, examinando-o dos pés à
cabeça.
— Como assessor financeiro você é um fracasso. Ela pagou três vezes mais do
que a casa valia.
Alan não soube o que responder. Olhou para Oriel em busca de apoio. Mas ela
nem se importou com o bate-boca entre aqueles homens que conhecia tão bem.
Ignorando a agressividade de Devil e desprezando a fraqueza de Alan virou-se e saiu.
Devil Haggard riu cínico.
Pouco depois Alan alcançou Oriel no jardim, passeando entre roseiras antigas,
mas ainda cheias de flores. Eram as últimas rosas do verão. Uma porção de pétalas
secas estavam caídas no caminho, e uma lufada de vento varreu algumas delas. Havia
uma beleza selvagem naquele lugar, tão selvagem como a beleza decadente da própria
mansão.
— Um bastardo — Alan repetiu com voz rouca. — Bastardo de quem?
Oriel colheu uma rosa branca, grande. As pétalas foram caindo e deslizando
entre seus dedos.
— De tio Jeremias.
— Meu Deus! — Alan estava chocado. — Sem testamento, ele não herdou
nada.
— Eles se odiavam — explicou Oriel. — Devil não podia ver tio Jeremias porque
ele nunca o reconheceu como filho legítimo. È tio Jeremias, por sua vez, detestava ouvir
falar de Devil. Mesmo que tivesse feito um testamento, Devil não teria herdado nada.
— Mas seu tio não se chamava Jeremias Haggard? Então Devil usa o nome da
família, não é?
— Ele faz isso por iniciativa própria. Foi batizado com o sobrenome de solteira
da mãe... Seu nome verdadeiro é James Dervil. Mas ele eliminou o James e passou a
usar o nome Devil e o sobrenome Haggard aos dez anos, quando soube da verdade

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sobre seus pais. Costumava vir até aqui para ficar olhando a mansão. Tio Jeremias
mandava os empregados o expulsarem.
— Coitado do garoto — disse Alan, comovido. — Agora entendo por que queria
a casa. Seria uma vitória tardia se tivesse conseguido comprá-la.
— Ele nunca será o dono desta casa enquanto eu puder impedir — Oriel disse,
com frieza.
Alan ficou chocado. As palavras de Oriel estavam cheias de uma emoção que
ele não conseguia entender, Ainda assim, disse: — Entendo.
— Você não entende nada, querido Alan. Você não viveu aqui e não conhece o
passado desta gente. Mas não se preocupe mais com isto. — Ela parou entre as rosas e
lançou um olhar possessivo para a mansão. — Agora Chantries me pertence. E, depois
da minha morte, será a casa do meu filho.
— Anatole terá uma porção de casas. Duvido que esta mansão signifique tanto
assim para ele.
— Ele dará muito valor à casa da mãe, Alan.
— Não sei. Se você casar de novo, Oriel, e tiver mais filhos, então os filhos
nascidos aqui poderão herdar a mansão. Você está comprando Chantries com o
dinheiro de sua fortuna pessoal, não é? Porque como um dos diretores da administração
das Empresas Mellstock, não posso autorizar um investimento tão grande numa casa
que não vale isso.
— Sem dúvida. Estou comprando Chantries com meu próprio dinheiro Alan.
Você fez bem em me lembrar das diretrizes da empresa.
Alan ficou alarmado. Será que tinha ofendido Oriel?
— Eu não tive a intenção de...
— Você está certo, Alan, não se preocupe. — Seu tom de voz tornou-se duro e
profissional. — Quero a melhor equipe de construtores e decoradores para a reforma.
Evidentemente pretendo modernizar grande parte da casa. Terei aquecimento central,
vidros duplos nas janelas, uma cozinha com todo o luxo e conforto... centenas de
modificações. Redecorar será trabalhoso. Você organizará essa reforma, Alan. Depois
que resolver quais empresas contratar para o serviço, quero que faça uma reunião geral
com os responsáveis, para eu conhecer todos os planos de trabalho. Pretendo
acompanhar as obras. Os decoradores, principalmente, precisam trabalhar com o maior
cuidado. Quero, restabelecer a antiga beleza desta mansão, não destruí-la.
— Tomarei todas as providências. Vamos voltar para Londres imediatamente?
— Você vai voltar — ela disse, com um sorriso tranqüilo e um pouco irônico.
— E você?.
— Vou ficar aqui. Pretendo morar aqui,
— Aqui? — Alan encarou-a, horrorizado. — Você não pode fazer isso. Em
primeiro lugar, Chantries ainda não oferece condições de moradia. Em segundo, a
mansão ainda não lhe pertence legalmente.
— Vou me hospedar na pensão da vila. — Ela sorriu, saudosa. — Lembro até do
nome: Woolpack.
Alan lembrou também de ter visto aquele lugar. Tinha chamado sua atenção
quando o carro passou pela pequena vila de Moorland. A Pensão Woolpack era um
casarão de pedras no fim da rua principal.
— Você não pode se hospedar lá! — Alan a olhou, incrédulo. Aquela mulher
sofisticada ficaria bem no Hotel Hilton ou no Ritz, não ali, numa pensão de Yorkshire!
— Posso, sim. Posso fazer o que quiser, não é?
— Mas, Oriel, esse não é o seu ambiente. Você não vai se sentir bem. Pra que
tentar?

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— Você está se esquecendo que nasci aqui. Quase todas as pessoas na vila me
conhecem e conheço quase todas elas.
— Apesar de ter passado doze anos fora?
— Os anos não importam — ela disse, cheia de confiança. — As pessoas nessa
região costumam viver a vida inteira no mesmo lugar. Nascem e morrem aqui. Quase
todos trabalham em fazendas pequenas e auto-suficientes, criando carneiros. Já
brinquei com barquinhos de papel nos riachos com a maioria dos jovens desta região...
Já escalei morros de pedra até o alto... Cavalguei em pêlo... Tenho tantas lembranças
boas da vida no campo e nas montanhas! Você, como homem educado na cidade, nem
pode imaginar como a vida rústica, simples e em contato com a natureza é boa.
— Bem, não posso impedir que você fique. Mas não estou gostando e acho que
a avó de Anatole também não vai gostar.
— Renée? Ela cuidará de Anatole. Ele precisa se dedicar aos estudos. Irá para
o internato como Egon sempre desejou. Anatole está bem na escola e com saúde, e isto
é o principal. Além do mais, é muito ligado à avó. Ela também o adora... Cuidar dele é
tudo o que tem para fazer na vida; Renée não se interessa por mais nada, já está muito
cansada.
— Quanto tempo você pretende ficar aqui, Oriel?
— Ainda não sei. Preciso fazer algumas coisas.
— Que tipo de coisas? Posso ajudar?
— Não. São assuntos particulares — ela disse seca.
Alan hesitou. Alimentava o sonho secreto de casar com Oriel. Tinha se
apaixonado por ela quando a viu pela primeira vez. Agora, depois da morte de Egon,
esperava convencê-la a casar de novo. Ingênuo, acreditava que ela não sabia disso. E,
como Egon já havia falecido há dois anos, achava que era hora de confessar suas
intenções.
— Você tomará cuidado, não é? Vou ficar preocupado com você, sozinha aqui
no interior, Oriel... — Alan estava um pouco emocionado.
Os olhos verdes de Oriel brilharam, comovidos. Mas, além da emoção, eles
irradiavam também alegria selvagem.
— Vou tomar cuidado, sim. Alan — prometeu.
Continuaram o passeio pelo jardim até chegarem novamente em frente à casa.
A maioria dos carros já tinha partido; só algumas poucas pessoas continuavam por ali.
No meio delas, Devil Haggard.
Ele estava parado, olhando para a mansão com o rosto contraído, Alan
observou-o com curiosidade. Aquele fazendeiro tinha uma personalidade marcante. O
nariz comprido e reto, a boca firme e o queixo quadrado davam a seu rosto uma
expressão forte que se harmonizava com a energia física do corpo.
— A fazenda dele fica aqui na região? — Alan perguntou a Oriel.
Ela também estava observando Devil. De novo a sombra do chapéu de abas
largas ocultava a expressão de seu rosto quando ela respondeu, em voz baixa:
— Sim. Fica em Devil's Leap... — E indicou os morros. — É lá em cima: uma
terra alta, pedregosa e proibida. A casa-grande da fazenda integra-se à paisagem. Até
parece que foi esculpida nas rochas e não construída com pedras. A família da mãe dele
viveu lá durante várias gerações. Eles têm suas raízes lá, assim como os Haggard têm
raízes aqui em Chantries.
— Devil's Leap — Alan murmurou. — Acredito que antigamente se chamava
Dervil's Leap, tenho razão?
— Isso mesmo. — Ela sorriu. — Há muito tempo um dos homens da família
atirou-se do alto do penhasco, depois de ter matado sua mulher num acidente. Todos os

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Dervil são pessoas violentas e de temperamento selvagem.
— O que aconteceu com a mãe dele? — Alan olhou para Devil.
— A mãe de Devil? Mora com ele na fazenda. Ela não tinha irmãos e, com a
morte do avô, a fazenda passou a ser propriedade de Devil.
— Quer dizer que, mesmo bastardo, ele acabou recebendo uma herança?
A pergunta de Alan estava cheia de ironia. Oriel lhe lançou um olhar misterioso.
— Oh, sim, ele recebeu uma herança. No entanto, além de herdar terras, herdou
também a fúria dos Devil e toda a astúcia dos Haggard. Durante os últimos dez anos ele
comprou pequenas propriedades nas montanhas. Hoje é um dos maiores fazendeiros do
município.
— Por isso ele tinha dinheiro suficiente para tentar comprar Chantries no leilão.
— Exatamente.
— E você já sabia que ele ia participar do leilão? Sabia que era o principal
interessado, além de você?
— Fiz algumas perguntas. Eu já tinha minhas informações.
— Foi ele quem fez a outra oferta para seu primo Jack?
— Foi sim. Mas Jack não quis vender a casa diretamente a Devil, como não quis
vendê-la para mim. Fazendo esse leilão, ele conseguiu um preço bom pela casa e, ao
mesmo tempo, alcançou outro objetivo: vingou-se de nós dois. Jamais gostamos do
Jack, Devil e eu. Nunca deixamos que ele participasse das nossas brincadeiras. Por isso
Jack criou essa situação. Usou a tradicional astúcia dos Haggard para se vingar de nós.
Só agora Alan começava a entender a força que o passado exercia sobre as
famílias daquela região. Além disso, estava espantado com a amizade que tinha unido,
na adolescência, Oriel e Devil. Teria sido apenas uma amizade? Estremeceu só em
pensar nisso.
— Você brincava muito com Devil Haggard quando era pequena, Oriel?
Ela hesitou, antes de responder em voz baixa e um pouco sonhadora:
— Eu brincava com todas as crianças da região. Já lhe disse que Devil
costumava descer o morro para ficar olhando a mansão. Claro que eu tinha muita
curiosidade de conhecer aquele menino estranho. Acabei conhecendo. Mas tive de
guardar segredo para o tio Jeremias não descobrir, caso contrário teria proibido nossas
brincadeiras. Acontece que nasci uma Haggard e também sei ser astuciosa. Minha
astúcia é tão grande como a dos outros membros da família.
Devil Haggard montou no garanhão negro que se agitava, impaciente. Guiou o
cavalo até onde Alan e Oriel estavam conversando. Sem desmontar, deixando as rédeas
soltas, disse a ela:
— Você pagou um preço caro por Chantries. Mas não pense que é o fim. Você
só começou a pagar.
Oriel tinha o rosto protegido pelo chapéu e não ergueu o olhar para encontrar os
olhos azuis de Devil. Continuou imóvel, fazendo de conta que ele nem falava com ela.
Devil Haggard ignorou a presença de Alan e continuou fitando-a atentamente. Por fim,
deu uma gargalhada arrogante, exibindo dentes fortes e perfeitos. Segurando a rédea
firmemente na mão, afastou-se a galope.

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CAPÍTULO II

A Pensão Woolpack era sólida, pequena e aconchegante, construída com


pedras da região. Quando Alan e Oriel entraram na recepção, não havia ninguém. Sem
hesitar, ela foi até o balcão e tocou uma campainha antiga. Pouco depois aparecia um
homem velho enrugado.
— Meu Deus! É você, Oriel?
— Sou eu sim, Hezekiah.
— Você não veio ao enterro. Fizemos um enterro bonito. Todo mundo apareceu.
— Eu estava na África. Recebi o telegrama tarde demais. Se desse tempo,
também teria vindo.
— Foi o que eu disse. Sabia que só podia ter acontecido isso.
— Ele olhou para Alan, franzindo a testa.
— Alan é um amigo que cuida dos meus negócios — ela explicou.
— Alan, apresento-lhe Hezekiah Williams. Ele é dono desta pensão há quarenta
anos ou mais.
— Estou aqui há quarenta e três anos e dois meses — corrigiu Hezekiah. —
Como vai?
— Vou bem. — Alan sorriu. — E o senhor?
— Vou vivendo. — Hezekiah virou-se para Oriel. — Como foi o leilão?
— Comprei Chantries.
— Ah, é? Graças a Deus! Pelo menos assim aquele demônio não fica com a
propriedade.
Oriel estranhou o comentário e observou Hezekiah, interessada.
— Ninguém gosta dele por aqui?
— Devil é um osso duro de roer. Além disso é esperto, como todos os Haggard.
Para mim, parece um corvo preto, voando em voltas, esperando que a ovelha morra
para descer e comer seus olhos.
Ele já comprou muitas terras por aqui. Comprou a fazenda dos Tark e dos
Weeler. Comprou Tor Pointe quando a velha Annie Lucas morreu, e Lower Champneys
quando o louco do Eddie foi à falência, depois de tentar criar gado onde não tinha pasto.
Quer saber mesmo se as pessoas gostam de Devil? Ora, acho que é o homem mais
odiado de Yorkshire.
— E como vai Clare?
— Não a vejo há muitos meses. Um dia desses um dos meninos da vila foi até a
fazenda de Devil e a viu. Parece que Clare anda mal. Está doente faz tempo. Agora ela
tem uma enfermeira.
— Hezekiah lançou um olhar malicioso. — Dizem que a enfermeira é bonitinha.
Os Haggard sempre gostaram de jovens bonitinhas...
Oriel preferiu ignorar o comentário e perguntou:
— Você tem um quarto para eu me hospedar durante algum tempo, Hezekiah?
— Tenho dois — ele respondeu, encarando Alan.
— Só quero um. — Hezekiah ergueu uma sobrancelha e ela acrescentou: — O
Sr. Kennet volta para Londres hoje à noite.
— Ah, é? Bem, então é melhor você subir para escolher o melhor. Preciso cuidar
dos meus fregueses no bar.
Alan e Oriel subiram ao segundo andar. Alan arregalou os olhos, horrorizado,
assim que viu o pequeno e bem iluminado quarto, com vista para o campo. Os móveis
combinavam com o ambiente rústico dà pensão.
— Você não pode dormir aqui! Veja só, esta cama está nesse mesmo lugar há

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séculos!
Era uma cama de bronze, e o metal limpo e polido brilhava com reflexos
dourados. Estava coberta por uma colcha de retalhos coloridos. Oriel sentou-se nela.
— Tem colchão de penas de ganso! — exclamou, encantada.
— Dormirei como um anjo. Sempre gostei de dormir em camas de penas
quando era pequena. É tão macia, tão confortável e tão quentinha...
— Quem é Clare? — Alan não conseguia mais conter sua curiosidade.
— A minha prima, esposa de Devil.
— Mais uma Haggard?
— Clare é uma Haggard legítima; o pai dela era o irmão mais moço de tio
Jeremias. Ele morreu faz muito tempo. Jack recebeu a casa de herança, e não Clare.
Chantries tinha de ficar com o herdeiro masculino mais velho.
— Quer dizer que Devil Haggard casou com ela só para herdar Chantries?
— Sim.
— Mas o plano não deu certo, não é?
— É — Oriel sorriu friamente.
— Pelo que ouvi o velho Hezekiah contar, parece que você viverá ameaçada por
esse sujeito.
— Devil não vai me machucar. Não fisicamente, pelo menos.
A confiança de Oriel não tranqüilizou Alan. Apesar disso, ele ia levar o carro.
Tinha oferecido o carro para Oriel, mas ela recusou.
— Se precisar de um, alugo. Pretendo arranjar um cavalo. Nessa região os
cavalos vão a todos os lugares. Conheço uma cavalariça boa, pertinho da vila.
Alan examinou o corpo esguio e elegante de Oriel e não conseguiu imaginá-la
escalando morros montada num cavalo. — Você não está se excedendo?
— Sei montar muito bem. Aprendi quando era pequena. Não se preocupe
comigo, eu me sinto em casa aqui.
— Bem, Oriel, fiz o que pude. Agora preciso viajar.
— Boa viagem, Alan.
Na manhã seguinte, Oriel foi à cavalariça. A dona era uma mulher enérgica, de
pernas em forma de arco, com cabelos vermelhos e um vozeirão. Cumprimentou-a com
alegria e foi logo perguntando:
— Ouvi dizer que você comprou Chantries!
— É verdade... Você tem um cavalo para me alugar por uma semana? Quero
um bom de marcha.
— Claro que tenho. Que tal esta égua baía? É mansinha e muito boa.
Oriel rodeou a égua, admirando seu magnífico porte, Ela tinha o pêlo lustroso e
parecia bem alimentada.
— Para mim está bem.
Enquanto a dona colocava a sela no animal, ela preencheu um cheque.
— O nome da égua é Roz — disse a dona do animal. — Se quiser comprar
algum cavalo, posso ajudá-la nisso. Os estábulos de Chantries ficaram vazios muito
tempo.
— Obrigada.
Oriel saiu cavalgando por um caminho estreito que subia o morro perto da vila. A
égua andava devagar e ela sentia prazer em rever aquela terra tão amada. Meia hora
depois, notou que nuvens negras se formavam no horizonte. Será que ia chover?
O caminho subia pela encosta, depois começava a descer, oferecendo uma
vista maravilhosa para, em seguida, subir em pequenas curvas íngremes. Carneiros
pastavam tranqüilos, indiferentes à égua que passava trotando.

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O ar era limpo e Oriel respirava com prazer. Tinha passado por poucas casas,
mas por muitos pastos e plantações. O povo da região era trabalhador, ela sabia disso
desde a infância.
Puxou a rédea e a égua parou, no alto de um morro. Devil's Leap ficava no vale
que ela avistava agora. A fazenda formava uma faixa longa para as terras férteis. A
casa-grande tinha sido construída perto do morro, abrigada do vento forte da região.
Oriel guiou Roz nessa direção.
Quando ela se aproximou, os cães começaram a latir. Pelos latidos ferozes,
Oriel percebeu que as visitas não eram bem-vindas naquele lugar. Um longo muro de
tijolos cercava a casa-grande. Oriel amarrou Roz no portão de madeira pintado de
branco. Quando se preparava para entrar na casa, Devil Haggard saiu e ficou parado do
outro lado do portão, observando-a, sério.
Ela calçava botas de salto baixo e estava vestida com calça de montaria, um
suéter branco e um xale de seda azul.
— Estamos em Yorkshire e aqui não é lugar para desfiles de moda — Devil
comentou com ironia, olhando para as roupas caras de Oriel.
— Vim visitar Clare — ela respondeu friamente.
— Pois fez seu passeio à toa, porque não poderá vê-la.
— Por que não? Sou prima dela. Ouvi dizer que está doente. Tenho direito de...
— Não pense que tem direitos aqui, Sra. Mellstock.
— Ouvi boatos desagradáveis.
— Boatos?
— Sim. Na vila dizem...
— Dizem o quê?
— Dizem que Clare está morrendo porque é maltratada.
— Eu não ligo para boatos. Por mim as pessoas da vila podem dizer o que
quiserem. Qualquer coisa que faço sempre é comentada. Não me importo.
— Faço questão de ver minha prima!
— Você faz questão? — Seus olhos azuis faiscavam. — E quem é você para
fazer questão aqui na minha fazenda? Sou o proprietário desta terra, Sra. Mellstock.
Aqui quem manda sou eu. Mando em tudo, entendeu?
Ela tremeu, com raiva daquele homem insolente, orgulhoso e arrogante.
— Posso voltar acompanhada por um advogado.
— Não tente me ameaçar. — Ele encarou-a com frieza. — Você era uma
menina magrinha de pernas compridas... Mudou muito... Oriel não respondeu.
— Acho que eu preferia você como era antes — ele continuou provocante.
— Claro que preferia — ela disse, perdendo a calma. — Eu era presa fácil para
um bastardo oportunista como você. Não é, Devil?
Ele pareceu enlouquecer. De repente, estendeu a mão e agarrou os cabelos
loiros de Oriel que estavam presos na nuca. Com um puxão, arrancou um grampo
fazendo os fios caírem sobre os ombros.
— Maldito!
— Acho que agora você se parece mais com a menina que conheci. — Ele riu
maldoso.
Indignada, Oriel se virou, soltou a égua e montou de novo, enquanto Devil,
encostado no portão, divertia-se em observá-la.
— Vou voltar — avisou furiosa.
— Claro que vai — ele provocou sarcástico.
Nesse instante o orgulho dos Haggard, adormecido por muitos anos, despertou
em Oriel. Ela inclinou o corpo para frente, ergueu o chicote e bateu com força no rosto

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de Devil. Sem perda de tempo, girou a égua e saiu trotando em direção à vila. Ouviu um
grito de Devil, mas não se voltou. Quando estava descendo um dos morros, viu que ele
se aproximava montado no garanhão.
Oriel teve medo de apressar o passo da égua, pois Roz podia tropeçar e quebrar
uma perna, naquele caminho íngreme. Quando chegou à estrada, o garanhão já estava
perto. Agora ela fazia Roz galopar, mas o cavalo negro galopava com velocidade maior.
Chantries ficava por ali. Guiada pelo instinto, Oriel tinha escolhido o caminho que
passava por lá. Alcançou a casa quando Devil chegava ao portão. Desmontou, correu
até a porta e usou a chave que o leiloeiro havia lhe dado no dia anterior.
Agora a casa vazia a rodeava silenciosa e impregnada pelo passado. Aqueles
alicerces tinham suportado séculos de brigas da família!
Depois de subir a escada correndo, ela entrou no quarto que tinha sido seu
quando menina. Fechou a porta e jogou-se, exausta e nervosa, sobre a cama. Um
cheiro de mofo vinha do colchão velho. O papel de parede estava manchado e rasgado.
Uma aranha tecia sua teia num canto do teto.
— Oriel! Onde é que você se escondeu?
Ela foi até a janela. Viu Devil parado na frente da casa, olhando para cima.
Recuou assustada com as batidas aceleradas de seu coração, quando ele a viu na
janela. Ele não poderia entrar na casa, é claro. Não tinha chave e não conseguiria
arrombar a porta grossa de carvalho!
Oriel esperou, ouvindo atentamente. Que ruído era aquele? Seria uma pedra
contra a janela? Ouviu o vento zumbindo no telhado e ruídos estranhos fora da casa.
Uma veneziana bateu. Onde estava Devil? Teria ido embora?
Com um grito de pavor, Oriel recuou ao ver o vulto escuro surgindo na janela.
Como Devil tinha subido até ali? Escalando as saliências na parede de pedra? Podia ter
morrido caindo no chão! Encostada na parede, trêmula, ela o viu espatifando a janela
com um pontapé. Os estilhaços de vidro espalharam-se pelo chão e ele entrou, com um
pulo.
— Não se aproxime! — ela gritou rouca, com o chicote erguido, pronta para
bater de novo.
Devil avançou e segurou-a pelos ombros. Sacudiu o corpo frágil de Oriel,
mostrando o desejo da vingança cintilada em seus olhos azuis.
— Vou ensinar você a não bater em mim de novo — disse, cheio de ódio,
agarrando o chicote.
Ela tentou se voltar e correr até a porta, mas Devil a agarrou. Sua mão, grande e
forte, a prendeu com firmeza pelo braço. Ele a puxou, até sentar-se numa cadeira e
forçá-la, com violência, a deitar de braços sobre seus joelhos. Entendendo qual era sua
intenção, Oriel começou a gritar:
— Maldito! Não faça isso! Não! Maldito... Ai! Não... Ai! Ai! Ai!
O chicote subia e descia, enquanto as nádegas de Oriel ardiam. Depois que se
deu por satisfeito, Devil empurrou-a, fazendo-a cair no chão. Ela ficou lá deitada, com o
cabelo espalhado sobre o tapete velho, chorando baixinho e odiando-o com todas as
forças.
Depois de um tempo, Devil abaixou-se e ergueu-a com facilidade para apertá-la
contra si. Agarrada desse jeito, Oriel sentiu a força dos músculos que pouco antes a
tinham machucado. Continuava trêmula de raiva e sua revolta parecia dar prazer a Devil.
— Você passou muito tempo longe daqui. Doze anos... Parece que esqueceu
que sempre me vingo — ele disse, com voz firme e calma.
— Está bem, você se vingou! Agora saia da minha casa, bastardo!
Os olhos azuis dele lutaram contra os verdes, quando Oriel pronunciou a última

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palavra. Ele se ofendia com isso, ela sabia. A mão forte de Devil tornou a agarrá-la pelo
cabelo e puxou sua cabeça para trás.
— Fizemos muitas brincadeiras loucas juntos — ele lembrou amargo. — Mas
não somos mais crianças. Este é o último aviso que vou dar: nunca mais me chame
assim...
— Como? Bastardo? — ela provocou, com o corpo inteiro vibrando excitado,
possuído pela alegria selvagem do desafio.
— Você merece ser jogada do penhasco de Devil's Leap para nunca mais me
desafiar dessa maneira. Gostou de apanhar? Quer mais? Será que seu maridinho era
tão impotente que você veio buscar mais prazeres aqui nas montanhas? Cansou de
contar dinheiro em Londres?
— Me larga! Maldito! Quero sair. .
— Ainda não — ele murmurou. — Ainda não terminamos...
— O quê? — Ela encarou os olhos azuis, que tinham uma expressão
desafiadora.
Uma das mãos de Devil segurava Oriel pelos cabelos, e a outra a abraçava pela
cintura. Ele puxou o corpo dela com força e encostou sua boca contra os lábios rubros
entreabertos, sufocando um gemido de ânsia e dor.
Durante alguns instantes, ela parou de lutar. Seu corpo tremia e ardia, o coração
disparava mais louco do que nas brincadeiras de adolescentes. Os lábios dele pareciam
queimar os seus, com o jogo da paixão.
Por fim, voltando a si, ela se libertou com um empurrão, passou a mão pela boca
e recuou.
—Saia daqui! Saia agora! — Encostou-se na parede, muito pálida e chocada.
— Não gostou?
—Tio Jeremias sabia o que fazia quando o proibiu de pisar nesta casa Você é
um demônio Casou com Clare só para pôr suas mãos em Chantries, não foi? Quando
viu que não receberia nada, que o casamento tinha sido em vão desprezou e
enlouqueceu Clare, não é? Quais são seus planos agora Devil? Tem alguma outra
herança em vista? Ou está ocupado demais seduzindo a enfermeira da sua esposa?
Ele ouviu tudo friamente, com as mãos na cintura.
— Parece que você acreditou em todos os boatos, Oriel. Meus parabéns Estou
até espantado Por você ainda não ter me acusado de querer matar Linnete também.
— Linnete? — Oriel arregalou os olhos. — Mais uma mulher na sua vida?
— Linnete é minha filha — ele respondeu sério. — Tem cinco anos.
— Eu não sabia. Mas preciso conhecê-la! A filha de Clare!
— Minha filha—ele disse. — E não pretendo deixá-la ser criada por outra
pessoa.
— A claro que você é um homem ótimo, um pai carinhoso e dedicado, perfeito
para educar uma filha, não é?
A ironia de Oriel não atingiu Devil. Ele atravessou o quarto até a porta e
destrancou-a. Voltando o rosto para ela, disse com malícia:
— Acho uma pena perder esta oportunidade. Sozinho com você num quarto e
numa casa vazia . Mas acontece que tenho coisas mais importantes para fazer agora -
Até outro dia, Ariel!
Ela jogou um vaso de porcelana, mirando a cabeça dele, Devil se agachou e o
vaso se espatifou contra a parede.
A sua pontaria piorou — ele disse, rindo. — Você costumava acertar seis vezes
em dez tentativas. Mas não se preocupe, agora terá muito tempo para praticar.
— Você está me confundindo com suas amigas inexperientes da vila — ela

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reagiu.
— Elas pelo menos tem uma grande vantagem: são jovens. E você tem vinte e
nove anos, Oriel. Ah, sei que parece mais jovem, reconheço isso O seu dinheiro a
conservou bem; boa dieta, boa comida, bons banhos, cremes, roupas, mas há algumas
ruguinhas nos olhos e na boca que você não consegue disfarçar, Além disso,a sua pele
não é e nunca mais será tão lisa e apetitosa como antes.
Ela não se mexeu, chocada. Aquelas palavras eram cruéis, mas verdadeiras.
Devil sorriu impiedoso.
— O que é? Não vai dizer mais nada? Tem outro vaso de porcelana na estante,
atrás de você.
— Saia!
— Seja bem-vinda ao antigo lar, querida Oriel — ele caçoou dela, despedindo-
se. — Acho que vou gostar dos próximos meses. Tenho certeza de que vou me divertir
muito. — Com uma gargalhada, abandonou a casa.
Oriel ouviu o ruído dos cascos do garanhão sobre as pedras do caminho, que
mostrava que Devil se afastava a galope. Aos poucos o som foi diminuindo até
desaparecer por completo. Só então ela cobriu o rosto com as mãos, deixando as
lágrimas rolarem e molharem as palmas. Seu corpo inteiro estremecia com os soluços,
apesar dos esforços que fazia para conter as emoções.
Com dezessete anos ela tinha sido uma jovem selvagem, independente e
ardente: uma verdadeira Haggard, manhosa como um potro das montanhas e teimosa
como as mulas.
Numa bela manhã de primavera, a amizade de infância que a unia a Devil tinha
passado por uma mudança. Eles brincavam nos campos juntos, quando Oriel tropeçou e
caiu. Ele chegou correndo, ajudou-a a se levantar e segurou-a nos braços. Ela sorriu os
cabelos soltos emoldurando-lhe o rosto.
A expressão do rosto de Devil se tornou mais séria. Ela também sentiu um
tremor estranho, como se o estivesse vendo pela primeira vez. Ficaram olhando um para
o outro, em silêncio. Depois ele a beijou com paixão e ela retribuiu encantada. Nesse
momento, Oriel descobriu que amava Devil.
Mas ela não tinha coragem de revelar esse segredo. Sabia que seu tio jamais
permitiria que eles continuassem se encontrando. E assim o tempo foi passando...
Só Clare sabia do namoro de Devil e Oriel. Numa manhã fria e chuvosa, Oriel
encontrou-a chorando, desesperada. Quis saber o que estava acontecendo e ela
confessou que tinha sido seduzida por Devil na noite anterior. Oriel ficou tão chocada
que não soube o que pensar.
— Há semanas que ele me persegue — Clare desabafou finalmente. — Eu não
tinha coragem de dizer isso para você, pois sei que gosta dele. Ele me assusta, fico com
medo quando está perto. Mas ele é tão forte... Não pude me defender. E agora? O que
vou fazer?
Incrédula e revoltada, Oriel procurou Devil na casa dele. Não estava e ela, como
sempre, subiu até seu quarto. Sobre a escrivaninha viu um bilhete inacabado que dizia:
"Clare, depois do que aconteceu a noite passada, acho que precisamos...”.
Aquele papel era a prova de que Clare dizia a verdade. Oriel leu as palavras
várias vezes, com os olhos cheios de lágrimas.
Ela não deixou recado. Saiu da casa em estado de choque e voltou para
Chantries. Nessa época seu pai estava de férias na Inglaterra e Oriel implorou que ele a
levasse para a África. Depois de insistir muito, ele concordou e, uma semana depois, os
dois partiram de avião para a África.
Seis meses mais tarde, ela recebeu uma carta, da Inglaterra, avisando que Devil

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tinha se casado com Clare. Alguns meses depois, Egon a pediu em casamento. Oriel o
tinha conhecido assim que chegara um homem muito gentil. Se fosse a outra época, ela
nunca teria aceitado o pedido, devido à idade de Egon. Mas a dor causada pela traição
de Devil, além das preocupações que enfrentava por causa das dificuldades financeiras
do pai, contribuiu para Oriel se decidir.
Casou com Egon depois de um mês de noivado. O casal viveu em paz e
harmonia. Oriel esforçava-se para fazer do marido um homem realizado, e foi
recompensada pelos seus esforços.
Deixando de lado o passado, Oriel enxugou as lágrimas com as costas da mão.
Levantou-se, saiu do quarto e desceu a escada.
Quando montou em Roz para voltar à pensão da vila, estava decidida a vingar-
se de Devil. Suas nádegas ainda doíam por causa das pancadas de chicote. Isso ainda
conseguia desculpar; afinal, tinha sido a primeira a bater e Devil ficaria com a marca da
chicotada que lhe dera durante algum tempo.
No entanto, Oriel não o perdoava por tê-la obrigado a beijá-lo. As pancadas do
chicote eram insignificantes diante da violência daquele beijo. Ele a havia usado apenas
para satisfazer seu egoísmo, e isso ela não podia perdoar!
Roz partiu a galope e Oriel olhou mais uma vez para a montanha onde ficava
Devil's Leap.
— Você vai me pagar! — ela ameaçou, erguendo o chicote. — Você vai me
pagar, Devil!

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CAPÍTULO III

O mês seguinte foi de muito trabalho. Oriel passou um dia inteiro em reunião
com os construtores, decoradores e arquitetos que Alan tinha escolhido para os projetos
iniciais de Chantries. Eles chegaram com planos e desenhos. Ela examinou tudo,
discutiu os detalhes com cuidado e deixou todos espantados com sua inteligência e
dinamismo. Por fim, escolheu aqueles que fariam a obra e não mudou mais de opinião.
O comportamento de Oriel havia impressionado a todos. No início queriam
conhecê-la porque já tinham visto diversas fotografias dela nos jornais. Mas ficaram
ainda mais deslumbrados quando a encontraram pessoalmente.
Para os arquitetos, o plano de restaurar Chantries era estimulante. A
propriedade tinha uma fama que ultrapassava os limites do município e alcançava
Londres. Por isso, a idéia de trabalhar naquela mansão, ganhando um ótimo salário e
lidando com material de primeira, entusiasmava os homens.
Quando as obras começaram, os caminhões acabaram com a paz da pequena
vila de Torby. Como era hábito em Yorkshire, as pessoas do povoado foram falar
diretamente com Oriel, apresentando francamente suas reclamações.
— Esses caminhões são um perigo, Sra. Mellstock. Um dia desses vão acabar
atropelando uma criança. — Ana Stevens, segurando sua bolsa, com firmeza, queimava
Oriel com o olhar. — Esta situação não pode continuar.
Todo mundo concordou e, um de cada vez, foram apresentando suas
reclamações.
— Entendo o problema de vocês — Oriel disse, chateada. — Será que vocês
não entendem o meu? Esses caminhões precisam chegar a Chantries. Vocês querem
ver a mansão reformada, não querem? A mansão pertence a vocês também, É um
orgulho da região. Em minha opinião, não existe em Yorkshire mansão mais bonita do
que Chantries.
Tod Barmarsh pigarreou.
— Ora, também acho aquela casa bonita. Mas casas são apenas casas, e vidas
são vidas. Não existe casa nesse mundo que tenha o valor da vida de uma criança.
— E a estrada de Coxley? — perguntou Charlie Bennett, de repente. — Os
caminhões não podem passar por ali?
Oriel olhou para Charlie e sorriu.
— Acho sua sugestão ótima. Claro que os caminhões podem passar por lá! Por
que não avisaram antes?
A saída encontrada encantou a todos. Depois disso, os caminhões nunca mais
passaram pela vila, que voltou à sua paz milenar. Apenas os latidos dos cães e os
cantos dos gatos rompiam seu silêncio tão precioso.
— Arranjei uma solução para o problema — Oriel disse a Alan, contando a
sugestão dos moradores da vila.
— Os custos da construção vão aumentar. Por essa estrada, andam-se mais
dois quilômetros. Cada caminhão está fazendo o percurso quatro vezes por dia. Isso
quer dizer que...
— Alan! Alan! — ela interrompeu. — Não pense em contas, meu querido tolinho.
Não entende? Você não reclama do preço quando encomendo os tijolos mais caros para
a construção. Da mesma maneira, é uma questão de bom senso não contrariar meus
vizinhos. Entendi o ponto de vista deles e encontrei um jeito de tranqüilizá-los. Neste
caso, o custo não importa.
Alan olhou para ela e sacudiu a cabeça.
— Apresente a conta. — Ela riu. — Eu pagarei...

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No fim de semana, Oriel foi a Londres para ver o filho. Mal ela apareceu na porta
do apartamento onde Anatole e a avó moravam, ele atirou-se em seus braços, radiante.
— Que saudades, mamãe!
— Tudo bem com você, queridinho? — Ela o abraçou e o beijou na ponta do
nariz. Olhando para ele, achou mais uma vez que Anatole estava ficando cada dia mais
parecido com Egon.
— Como está Chantries? — perguntou Anatole. — Quando posso visitá-la?
— Quando você quiser. — Queria que o filho aprendesse desde já a amar
Chantries. — Mas a casa ainda não está pronta para morar, queridinho. Está em obras.
A avó de Anatole esperava sentada no quarto. Ela sempre deixava a mãe e o
filho sozinhos durante algum tempo, depois de uma separação mais longa. Esse
comportamento, educado e cheio de delicadeza, era um dos motivos pelos quais
gostava tanto de Renée.
Ela estava com oitenta anos de idade. Era uma mulher baixinha, magra, com
cabelo cor de prata e olhos azuis bem claros. O rosto tinha a pele envelhecida e os
dedos das mãos moviam-se com dificuldade, por causa do reumatismo.
Estava vestida de preto, como sempre, com um colar de pérolas dando três
voltas ao redor do pescoço. O marido lhe dera essas pérolas pouco antes de morrer. Ela
não usava outras jóias, a não ser as alianças de ouro e um anel com um diamante
grande, que o marido comprou quando enriqueceu com as minas.
Renée tinha dado todas as outras jóias para Oriel, logo depois do nascimento de
Anatole. Quando ela protestou, espantada, Renée insistira, com lágrimas nos olhos:
— O que estou lhe dando agora não é nada em comparação com o que você me
deu... Um neto... Eu já estava perdendo as esperanças...
Antes do nascimento de Anatole, Egon chegou a acreditar que era estéril. Suas
esposas anteriores o acusavam disso. Um médico explicou a Oriel, depois que ela
engravidou que provavelmente o desejo intenso de Egon, a vontade imensa que ele
tinha de ser pai impediram que isso acontecesse antes.
— A mente é estranha — comentou o médico. — Ainda não entendemos quase
nada dela. Quanto mais ansiosos estamos para fazer alguma coisa, tanto mais difícil se
torna a realização.
Depois de se convencer de que Anatole era seu filho, Egon quis ter outros. Oriel
também desejaria uma filha para fazer companhia a Anatole. No entanto, as esperanças
do casal não chegaram a se concretizar.
Agora, Renée cumprimentava Oriel, dizendo:
— Estou contente de ver você, minha querida. Sentimos a sua falta.
— Por que não avisou que precisava de mim? Eu teria voltado logo.
— Você estava se divertindo. Pude perceber isso pelas suas cartas. Há muitos
anos que você não tira umas férias sozinha.
— Anatole deu muito trabalho? — Oriel achou que Renée já estava muito velha
para cuidar de um menino de onze anos. — Foi cansativo tomar conta dele?
— Claro que não, Oriel. Ele é a alegria da minha vida. Você sabe que a Sra.
Weedon e íris cuidam de tudo. Quando me canso e tiro minha soneca de tarde, elas
ficam com Anatole.
A Sra. Weedon e sua filha íris eram as empregadas do apartamento e faziam
todo o trabalho de limpeza e cozinha. Já estavam com a família há anos e pareciam
mais amigas do que empregadas.
— A única coisa que me preocupa é pensar que Anatole irá para o internato. —
Renée suspirou. — Vou sentir tanta falta dele!
— Egon queria que ele freqüentasse essa escola. Lembra-se?

20
— Eu sei, eu sei. O menino precisa ir mesmo. Mas vou me sentir sozinha em
casa.
— Então... — Oriel hesitou. — Talvez queira morar em Chantries comigo. Sei
que adora Londres, por isso não sugeri isso antes. Chantries é um lugar isolado e
solitário. Lá, você não terá os mesmos divertimentos que tem aqui. Mas talvez goste de
uma mudança durante algum tempo...
— Querida Oriel, você comprou essa casa porque estava cansada da vida
londrina. Mas eu, infelizmente, sei que os ares do campo não me agradam. Era diferente
em Hampshire, quando Egon estava vivo... — Ela suspirou. — Bem, eu gosto da vida na
cidade. Você sabe disso.
— Então vou ficar em Londres.
— Não. Eu não quero sacrifícios!
— Não será sacrifício nenhum. Adoro você! E Chantries ainda não está em boas
condições. Vai demorar meses até a reforma ficar pronta. Ficarei contente aqui.
— Veremos — disse Renée,
Oriel ficou em Londres. Levou Anatole ao zoológico, cinema, teatro e bale. Os
dias foram passando cheios de programas. Ela ajudou o filho a comprar o uniforme para
o colégio interno e Renée chorou, emocionada, ao ver o menino vestindo a roupa pela
primeira vez. Estava tão parecido com o pai!
Anatole ficou encabulado, pois estranhava as demonstrações de carinho e
emoção da avó. Ela não se comportava secamente como a maioria dos ingleses. E
Anatole ficava embaraçado com aquelas lágrimas.
Apesar de gostar da avó e da mãe, ele estava ansioso pelo início das aulas.
Sabia que se sentiria bem passando seu tempo novamente entre meninos de sua idade.
Quando o pai era vivo, Anatole sempre tinha estado na companhia dele, e sentia falta de
uma figura masculina a seu lado.
Em setembro, as aulas no internato começaram. Anatole não conseguiu evitar
que a mãe e a avó o acompanhassem até a escola no Rolls-Royce cinza, dirigido pelo
motorista.
— Todos os meninos vão acompanhados pelos pais no primeiro dia — Renée
insistiu.
— Mas você não vai me beijar no rosto, não é vovó? Nem vai chorar quando se
despedir?
— Não faremos isso, prometo. — Oriel riu. — Vamos nos comportar como duas
velhas inglesas, muito sérias e carrancudas.
Anatole sorriu, aliviado. Vestido com o uniforme novo, ele parecia mais adulto.
Ao mesmo tempo o uniforme realçava a beleza de seu rosto infantil. Oriel sabia que ele
estava prestes a começar uma vida nova num mundo novo, onde ela não poderia mais
acompanhá-lo e protegê-lo. Seu coração de mãe doía, amedrontado.
Quando o carro se afastou, atravessando o parque que rodeava o internato onde
Anatole tinha ficado Oriel chorava e Renée estava com as mãos tremendo no colo e o
rosto transtornado pela dor.
— Perdemos Anatole — murmurou Renée.
Ficaram em silêncio por muito tempo, enquanto o Rolls-Royce rodava no meio
do trânsito londrino. Subitamente, Renée abriu a bolsa e tirou alguns folhetos de
agências de viagens.
— Minha querida Oriel, resolvi viajar em busca do sol. Os invernos ingleses são
longos e frios demais para mim. Vou fechar o apartamento e levar a Sra. Weedon e íris.
Preciso da ajuda delas e elas merecem umas férias.
— Acho uma ótima idéia. Quer que eu viaje com você também?

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— Não, minha querida. Não vou precisar de você. Os últimos dois anos você
dedicou a Anatole e a mim. Agora é tempo de cuidar da sim própria vida. Volte para os
morros frios de Yorkshire e arrume sua casa. Se precisar de mim, mande me chamar.
Caso contrário continuarei viajando, acompanhando o sol e conhecendo o mundo.
Uma semana depois, Oriel se despediu de Renée e das duas empregadas no
Porto de Southampton. O navio estava partindo para a índia, mas Renée tinha a
intenção de continuar a viagem, talvez até o Japão e os Estados Unidos.
Ela estava contente e nervosa, com o rosto corado, quando beijou Oriel na
despedida. A Sra. Weedon e íris também pareciam radiantes. Nunca tinham saído da
Inglaterra e não viam à hora de partir.
Depois de acenar, parada no cais, Oriel voltou para o carro. O motorista, Sr.
Weedon, estava triste com a partida da esposa.
— Não vou precisar de seus serviços — ela avisou. — Fale com o Sr. Kennet.
Ele continuará pagando o seu salário normalmente, mas acho que você também precisa
de umas férias. Fique um mês descansando, se quiser. Quando o Sr. Kennet precisar de
você, avisará. Você pode trabalhar para a companhia enquanto a Sra. Mellstock viaja.
— E o Rolls-Royce, onde devo deixá-lo?
— Vou ficar com ele — Oriel disse, imaginando o interesse que despertaria em
toda a vila de Torby quando chegasse dirigindo o carro.
Poucos dias depois, Oriel guiava o Rolls-Royce com o maior cuidado, sem
acelerar muito, enquanto seguia no rumo norte pela estrada ainda cheia de trânsito.
Apesar de dirigir sem pressa, a viagem não demorou muito.
Pouco antes de chegar a Torby, ela passou por uma jovem que empurrava uma
bicicleta. Pelo jeito, o pneu estava furado. Oriel brecou.
— Você vai longe? Quer uma carona?
A jovem olhou espantada para aquele carro grande e brilhante.
— Estou indo para a Fazenda Devil's Leap.
Pela resposta, Oriel percebeu que aquela só podia ser a enfermeira tão
comentada na vila.
— Podemos colocar a bicicleta no porta-malas. — Ela saiu do carro para abri-lo.
Muito nervosa, a jovem ajeitou a bicicleta e depois se sentou ao lado de Oriel. O
carro continuou rodando, macio.
— Isto é um Rolls-Royce, não é?
— É sim. — Oriel sorriu.
— Nunca tinha visto um antes. — A jovem passou a mão sobre o couro macio
do assento. — É bonito, não acha?
— É uma obra de arte.
A jovem conteve a respiração e olhou com curiosidade para Oriel.
— Foi a senhora que comprou Chantries? Ouvi dizer que foi uma Sra. Mellstock.
— Sou eu mesma. E você é a senhorita...
— Jéssica Morby. Sou a enfermeira da Sra. Haggard.
Aquelas palavras pareciam ocultar muita coisa. A jovem, evidentemente, sabia
bastante sobre a rivalidade entre Devil's Leap e Chantries.
— Como está a Sra. Haggard?
— Muito doente.
— Ela vai... melhorar?
— Não sei. — Jéssica encolheu os ombros. — Acho melhor a senhora perguntar
isso ao médico. As enfermeiras não têm permissão para fazer previsões.
— Talvez não tenha permissão, mas em geral as enfermeiras sabem muito bem
como está o estado do paciente.

22
— Não me pagam para fazer comentários.
O comportamento dela tinha se tornado frio e quase hostil depois que
compreendeu quem era Oriel.
— Sou prima da Sra. Haggard —• Oriel insistiu.
— Se eu falar qualquer coisa para a senhora, o Dr. Warne pode ficar sabendo.
Posso até perder o emprego — explicou a jovem, irritada.
Oriel diminuiu a marcha e parou quando chegaram nó desvio que seguia para
Devil's Leap.
— Só posso levar você até aqui.
A enfermeira saiu do carro e tirou a bicicleta do porta-malas.
— Obrigada pela carona.
Ela começou a subir pelo caminho estreito, empurrando a bicicleta, sem nem
virar para trás. Oriel acompanhou-a com o olhar até vê-la desaparecer numa curva do
caminho. Depois, tornou a dar partida no Rolls-Royce e seguiu em direção a Chantries,
pensando num jeito de descobrir a verdade sobre o estado de saúde de Clare.
Oriel não queria que Clare morresse sem antes tentar fazer as pazes. O
desentendimento entre elas tinha sido criado por culpa de Devil, por causa de sua
ambição de possuir Chantries. Clare era apenas uma vítima inocente dele.
Em Chantries, Oriel viu que as obras estavam bem encaminhadas. Ela
cumprimentou o responsável e depois deu um passeio pelo parque, que também tinha
sofrido muito por ficar abandonado. O tronco de uma árvore, atingida por um raio,
apodrecia no chão. As árvores frutíferas não eram podadas há muito tempo. Grande
parte do terreno havia sido invadida pelo mato.
Durante o passeio, Oriel lembrou-se da velha casa de troncos que tinha sido
construída para servir de residência a um caseiro e sua família. A casa de troncos ainda
estava lá, velha, mas pálida, no fim do parque. Uma das janelas parecia quebrada.
Oriel ficou olhando, pensativa, para aquela casa. Aproximou-se, quebrou um
vidro, abriu a janela e entrou. Ainda havia alguns móveis na sala e nos quartos. Tudo
cheirava a mofo e poeira. Ela decidiu que moraria ali até a reforma de Chantries ficar
pronta.
Voltou para a vila e foi falar com Ana Stevens, cujo marido era o motorista do
caminhão de leite. A Sra. Stevens ouviu o que Oriel disse e se prontificou a ajudá-la.
— Claro, posso encontrar alguém para fazer a limpeza naquela casa. Para ser
franca, eu mesma quero fazer isso. Sei que Chantries também vai precisar de uma boa
limpeza quando a senhora se mudar. Eu estava querendo pedir esse emprego.
— Ótimo. — Oriel se alegrou. — Quando pode começar?
— Acho melhor começar logo. — A Sra. Stevens arregaçou as mangas. — Bem,
vamos combinar o salário...
Depois de pouco tempo elas entraram num acordo. Oriel sabia que seria bem
servida. Bastava olhar para o aspecto impecável da casa onde a Sra. Stevens morava.
Ana Stevens hesitou, quando acompanhou Oriel até a porta.
— A casa de troncos... — ela murmurou. — Quando a senhora se mudar para
Chantries, quem vai morar lá?
— Não sei. Por quê?
Ana Stevens mordeu os lábios e criou coragem para pedir:
— Estou pensando no meu irmão, Sra. Mellstock. Ele está querendo casar, mas
anda sem dinheiro...
— Onde ele trabalha?
— É motorista dos caminhões de carvão.
— Mande falar comigo.

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— Vou avisá-lo. — Seus ombros relaxaram e Ana sorriu, agra decida.
Ao voltar de carro para Chantries, Oriel se deu conta de que ainda precisaria se
integrar com o pessoal da região. Nos seus doze anos de ausência, tudo havia mudado,
as pessoas estavam diferentes. Até parecia que ela tinha vivido em outro planeta.
Ela deixou Ana Stevens com os utensílios domésticos de limpeza na casa de
troncos e foi para a vila almoçar. Hezekiah resmungou um pouco, mas acabou fazendo o
almoço com boa vontade, ela agradeceu.
— Não precisa agradecer — ele disse. — Nós é que queremos dizer obrigado
por ter tirado aqueles caminhões das ruas da vila.
— Para mim foi um prazer poder ajeitar tudo. Se surgir qualquer outra
reclamação, basta falar comigo. Não quero criar problemas para a vila. — Ela terminou
de comer o doce de pêssego e perguntou: — Sabe onde posso encontrar o Dr. Warne?
Hezekiah coçou a cabeça.
— Quer perguntar como está passando sua prima?
— Isso mesmo.
— Ele mora na esquina do lado esquerdo, na rua da praça da igreja.
Oriel desceu a rua até a praça. Na esquina havia uma casa de tijolos. Quando
tocou a campainha, uma mulher bonita atendeu.
— Sim? — Seus olhos castanhos fitaram atentamente Oriel.
— O Dr. Warne está? Quero falar com ele.
— É uma consulta? Ele está acabando de almoçar... As horas de consulta são...
— Não é uma consulta. Estou falando com a Sra. Warne?
— Sim.
— Sou a Sra. Mellstock.
— Oh... — A Sra. Warne ficou espantada. Engoliu em seco e estendeu a mão.
— Como vai?
— Bem. Lamento perturbar seu marido assim na hora do almoço, mas...
— Entre, por favor.
Um carrinho de brinquedo estava no hall de entrada. Uma boneca de pano tinha
sido jogada num canto, embaixo da escada. A Sra. Warne olhou para a bagunça e ficou
vermelha.
— Meus filhos... deixam tudo fora do lugar.
— Eu sei como é. — Oriel sorriu. — Tenho um filho. Ele tem onze anos agora e
está estudando. Mas também passei pela fase dos carros de brinquedo.
— A senhora deve estar sentindo falta dele, Sra. Mellstock.
— Por favor, me chame de Oriel.
— Oriel... que nome bonito. É raro. O meu é Joan. Muito mais simples que o
seu. ,
— Muitas vezes quis ter um nome mais simples, Joan. As crianças são cruéis
quando a gente é diferente...
— É verdade. Acho que as crianças são muito mais espertas do que as pessoas
pensam. Chegam a ser muito duras.
Joan guiou Oriel até uma sala clara. Os raios de sol entravam pela janela, que
dava para um jardim cheio de flores. A sala era bem decorada e tinha alguns quadros
bonitos nas paredes.
— Por favor, sente-se. Vou chamar meu marido.
Joan voltou pouco depois, acompanhada por um homem jovem e alto, de barba
e com um sorriso cativante.
— Olá! Ê um prazer conhecê-la. Já ouvi falar tanto a seu respeito que cheguei a
pensar que era apenas um personagem de uma história de fadas.

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— Não sou tão extraordinária. — Oriel riu. — Como vai, Dr. Warne?
— Ele se chama Philip — interveio Joan.
— Ela quis dizer Phil. — O médico sorriu. — Ela só me chama de Philip quando
quer impressionar alguém.
Ficaram sentados na sala, conversando sobre Chantries e sobre o povo da vila
de Torby. Por fim, Oriel tocou no assunto que a tinha trazido até ali.
— Na verdade, vim para perguntar sobre o estado de saúde da minha prima, a
Sra. Haggard.
— Ah, sim... — O médico ficou sério. — Vocês são primas...
Já fez uma visita a ela?
— Devil não permitiu que eu a visitasse.
Os Warne trocaram um olhar cheio de significados.
— Aquele homem! — exclamou Joan, indignada. — Por favor, Joan... —
preveniu o marido.
— Ele é um monstro — Joan insistiu, com raiva. — Quando penso na coitada da
mulher, morando sozinha lá naquele morro...
— Mas ela tem uma enfermeira, não tem?
— Quem? Jéssica? — Joan riu com desprezo. — Aquela enfermeira está mais
interessada no marido do que na esposa doente.
— Pelo amor de Deus, Joan! — retrucou o médico. — Não fale bobagens. — Ele
encarou Oriel. — Minha mulher gosta de fazer fofocas. Ela nem sabe o que se passa na
fazenda. Tudo isso são apenas boatos que correm na vila. — Ele chamou a atenção de
Joan com um olhar severo: — Você quer ser processada por calúnia?
— Não se preocupe comigo — prometeu Oriel. — Não vou repetir nada do que
ouvi aqui dentro. Estou preocupada com Clare. Apesar de não nos vermos a doze anos,
continuamos parentes e fomos amigas na infância. Quero saber exatamente o que se
passa...
— Se o marido não permitiu que a visitasse, talvez não goste que eu diga
alguma coisa.
— Oh, Phil! — protestou Joan. — Como é que pode ser tão insensível?
— Profissionalmente não tenho interesse em interferir nesse assunto — ele
declarou com frieza.
— Mas com certeza pode me dizer se ela vai sarar, não é?
— Confidencialmente posso dizer que duvido que ela sobreviva no inverno.
— Oh! — Oriel estava chocada. — Coitada de Clare. O que ela tem?
— O fígado — disse o médico. Hesitou por um momento, e acrescentou: —
Escute, por que não pergunta isso ao marido dela? Não acho que...
— Por que não diz a verdade? Todos aqui na vila sabem o que está
acontecendo — Joan interveio, olhando para Oriel. — A sua prima bebe... Este é o
problema. Ela bebe muito. Está se matando de tanto beber.
— Clare? Clare está bebendo? Meu Deus, mas com certeza...
— Joan, assim não é possível! — Phil suspirou. — Escute Oriel, não diga a
Haggard que contei isso. Ele pode tentar até me matar.
— 0 marido de sua prima é um homem muito violento.
— Prometo ser discreta.
— É uma pena que nem todos sejam assim — ele comentou, olhando para a
esposa.
— Acho que Oriel tem o direito de saber a verdade. Não é de se estranhar que
Clare começou a beber tanto. Ele vive maltratando. .
— Chega! — ordenou Phil. — Não quero ouvir nem mais uma palavra sobre

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esse assunto.
Oriel sorriu para Joan.
— Ana Stevens está arrumando a casa de troncos que fica no parque de
Chantries. Vou morar lá enquanto não acabam as reformas. Venha tomar chá comigo,
Joan, assim poderemos conversar à vontade,
— Meu Deus — disse Phil, horrorizado. — Nunca ouvi um convite tão claro para
fazer fofocas.
— Aceito o convite com prazer, Oriel — respondeu Joan. As duas mulheres
começaram a rir.
— Bem, preciso ir andando. Acho que vou visitar Devil's Leap de novo...

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CAPÍTULO IV

Numa tarde ensolarada, um vento frio açoitava o morro por onde serpenteava o
caminho íngreme que ia dar em Devil's Leap. O vento embaraçava os cabelos de Oriel,
que cavalgava decidida, pensando no passado.
Muitas vezes ela já tinha subido por ali, sempre ao lado de Devil, para sentarem
juntos sobre o rochedo de Devils Leap, de onde podiam avistar as casas de Torby. De
lá, o caminho parecia um fio de linha amarelo, estendendo-se em curvas entre os
campos verdes.
Naquele tempo, eles viviam como pôneis selvagens, rindo juntos das
brincadeiras que faziam com tio Jeremias ou com o pessoal do povoado. Uma vez
chegaram a costurar as botas de Hezekiah que, quando levantou de noite para ir ao
banheiro, tropeçou e caiu numa poça de lama. Outra vez tocaram o sino da igreja, às
três horas da manhã, fazendo o velho padre subir nervoso para a torre, só para
encontrá-la vazia e trancada, mas com a corda do sino balançando sozinha,
misteriosamente. O povo da vila tinha passado meses discutindo "o fantasma da torre".
Oriel tinha se divertido muito enquanto todos pensavam que ela dormia.
Costumava se encontrar com Devil no fim do parque. De lá eles corriam para a vila ou
pelos campos, em busca de novas aventuras. Devil sempre tinha ótimas idéias.
Agora Oriel achava graça, lembrando-se do "fantasma da torre". Chegaram a
pensar em repetir a brincadeira, mas Devil achou que podiam ser pegos e isso acabaria
com o prazer de ouvir as pessoas supersticiosas contando o caso.
Quando já eram adolescentes e estavam apaixonados, as aventuras noturnas
assumiram uma nova forma. Mas Oriel não queria desenterrar essas lembranças. Elas
machucavam seu coração.
Aproximou-se da casa, cautelosamente. Dessa vez os cães não latiram, nem
Devil apareceu. Subiu o caminho estreito, atravessou o jardim florido e, diante da porta
aberta, criou coragem para entrar, devagar.
Tudo estava em silêncio. Chamou baixinho, mas ninguém respondeu. Chamou
de novo, um pouco mais alto, e então ouviu um grito rouco vindo do segundo andar.
— Quem é?
Ela reconheceu a voz imediatamente. Era Clare.
Subiu a escada e foi ao quarto do casal, mas encontrou-o vazio. Quando abriu a
porta de outro quarto, no começo do corredor, deu de cara com Clare.
Ela estava sentada numa cadeira de balanço, com as pernas envoltas num
lençol vermelho, desbotado. Parecia mais magra, menor, mais frágil do que a Clare que
Oriel guardava na lembrança. Os cabelos estavam amarrados na nuca, com uma fita
azul. Antes tinham sido castanhos, agora eram cinzentos. Seus olhos eram o que mais
chocavam: ainda tinham a cor azul-clara, mas o branco estava inteiramente amarelo.
Clare começou a rir, histérica.
— Você! Meu Deus! Você!
Oriel chegou perto dela, impressionada com sua risada louca e sua aparência.
— Você entrou escondida, não foi? Ele saiu e não viu você, não é? — Clare
falava e ria, desconsoladamente. — Ele vai ficar louco de raiva. Você sabe disso, não
sabe?
— Por que ele não me deixou visitar você? Somos primas...
— Sou sua prima? — Clare parecia pensar no que Oriel tinha dito. Oriel sentou-
se ao lado dela e segurou-lhe as mãos.
— Como você está magra...
— Você voltou para ver a minha morte? Não vai esperar muito tempo. Aquele

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médico imbecil não fala a verdade, mas eu sei o que ele pensa. Está escrito na cara
dele. Não viverei para ver a próxima primavera. — Por um momento ela pareceu sentir
pena de si mesma. De repente, tornou-se furiosa. — Por que você está tão jovem, Oriel?
Você não tem o direito! Estou morrendo!
— Clare, não diga isso...
— Como estão os campos lá fora? Você se lembra como a gente andava,
colhendo flores silvestres? Lembro como cheguei a casa.
Antes da Páscoa, com os braços cheios de flores. Parecia que carregava um
mar de cores e perfumes. Eram tão lindas! Tão lindas! Faz anos que não desço até
Torby. Ele não me deixa ir. Diz que tem medo de eu procurar alguma coisa para beber.
— Ela agarrou a mão de Oriel, com força. — Sou prisioneira aqui. Devil não me deixa ir
embora. Ah, o povo sabia o que estava fazendo quando lhe deu esse nome. Ele é
mesmo um demônio. Odeio-o! Odeio!
— Clare, por que você bebe? A bebida vai acabar matando você.
— Por que você voltou para cá? O que está procurando? É ele que você quer?
Veio por causa dele? — Ela largou a mão de Oriel. — Você e ele... Sempre você... Ele
só queria você... Sempre foi assim. — Clare mordeu o lábio inferior e continuou hostil: —
Já é tarde demais agora. Devil está de olho em outra mulher. Ele quer Jess, aquela
danada. E ela também o quer. Tome cuidado com Jess, Oriel. Quando eu morrer ela vai
tomar o meu lugar.
— Não me importo mais com ele. Vim para ver se posso ajudar você. Estou
reformando Chantries. A casa ficará bonita de novo, como nos velhos tempos. Quero
que você venha morar comigo lá, Clare. Longe de Devil's Leap você vai poder se curar.
Chantries ainda pode ser sua casa, se você quiser.
— Chantries... — Seus olhos se encheram de lágrimas. Depois de um longo
silêncio, ela as enxugou com a ponta do lençol e respondeu: — Não posso ir, Oriel. Aqui
é minha casa agora. Moro onde Devil mora... Ele me odeia, eu sei. Mas eu ainda, o amo.
Sempre o amei e sempre amarei. Se ele me estrangulasse com suas próprias mãos, eu
continuaria amando ele. Amo e odeio ao mesmo tempo! Amo e odeio! Dá para você
entender?
— Entendo — Oriel mentiu.
Clare parou de falar durante alguns minutos. Parecia exausta. Começou a
examinar Oriel, dos pés à cabeça, observando as roupas, os sapatos...
— Você está tão diferente, Oriel. Tem roupas tão bonitas. Como é a vida dos
ricos? — Sua voz traía inveja. — Você se deu bem, não é? Foi embora para casar com
um milionário. Não tive vergonha de roubar Devil depois que soube disso. E você nunca
iria amar Devil como eu amei. Eu não trocaria Devil por nenhum milionário.
— Quando casei com Egon eu já sabia que Devil ia casar com você, Clare.
— Sim. Sabia sim, claro.
De repente, ouviram passos de alguém que subia a escada correndo. Devil
apareceu no vão da porta. Estava de peito nu e com uma camisa suja nas mãos. Ficou
parado, olhando para Oriel. Seu rosto tinha uma expressão sombria e tensa.
— O que está fazendo aqui?
— Ela entrou escondida enquanto você estava lá fora — disse Clare. — Eu não
podia impedir isso, não é? Eu...
— Cale a boca, Clare! — ele gritou.
— Não fale com ela desse jeito — interveio Oriel.
— O que ela andou inventando para você, Clare? — Devil estava lívido.
— Ela me pediu para abandonar você, Devil. — As lágrimas rolavam pela face
de Clare, que estendia as frágeis mãos na direção do marido. — Devil, ela tentou nos

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separar...
Devil sorriu com ironia.
— Pelo que vejo você não conhece minha querida esposa, Oriel. Foi muita falta
de sensibilidade pedir a ela para fazer isso. Você não sabe que nem uma barra de aço
conseguiria separá-la de mim? — Ele encarou Clare, irônico. — Não é verdade, minha
querida Clare?
— Amo você... — ela gemeu. — Não me atormente, Devil. Amo você mais do
que a mim mesma!
— Está vendo? — Devil lançou um olhar vitorioso para Oriel.
— Estou — ela respondeu. — Mas vou achar um jeito de fazer você pagar por
tudo isso, Devil Haggard. Você é um homem desprezível!
— Agora chega! Vá embora, Oriel! — ele gritou.
— Só vou quando Clare pedir — Oriel desafiou. Ele jogou a camisa suja no chão
e avançou sobre ela. Oriel recuou, horrorizada.
— Não ponha as mãos em mim! Não faça isso! Vou chamar a polícia!
Sem se importar com as ameaças, ele a agarrou pelo braço.
— Vamos. Você não foi convidada, foi?
— Me largue! Você está louco! Vou mandar internar você!
— Você não vai internar ninguém, Oriel. Pensa que sou seu parente? Vá
embora, ande,
— Isso mesmo, Devil! É assim que gosto de ver você. Mande ela embora.
Também não a convidei... — Clare soluçava.
Devil foi arrastando Oriel, empurrou-a para fora do quarto e obrigou-a a descer a
escada.
Ela desceu tropeçando e atravessou a sala em direção à rua. Ia sair quando
Devil passou à sua frente e fechou a porta. Ela encarou-o, estremecendo. Ele a segurou
pelos ombros e empurrou-a contra a parede.
— Você... Você é um bárbaro!
— Mandei que ficasse longe desta casa, não mandei?
Devil estava tão perto que Oriel sentia as coxas dele apertando-a de encontro à
parede. Seu peito nu quase roçava nos seios dela. Oriel sentiu as pernas bambas e um
calor estranho invadindo-lhe o corpo. Mesmo sem querer, admirava a rigidez dos
músculos de Devil...
— Por que você veio Oriel? Para ver Clare... Ou me ver?
— Você é a última pessoa desse mundo que quero ver Devil Haggard — ela
disse rouca, passando a língua pelos lábios. — Se botar as mãos em mim vai se
arrepender.
Ele passou a mão pela cintura dela e puxou-a ainda mais para perto.
— É assim que não devo botar a mão?
— Me largue — ela sussurrou, olhando magnetizada para a boca dele, sentindo
um calor e um arrepio em todo o corpo, sem conseguir conter o coração que disparava
louco.
Quando ele a beijou, ela fechou os olhos e abriu a boca sem querer. Sem querer
também, suas mãos subiram pelo peito musculoso, as unhas embaraçando nos pêlos,
subindo mais, até acariciá-lo na nuca.
Seu casamento com Egon tinha sido sempre um relacionamento muito frio,
apesar de gentil. Oriel nunca chegou a sentir o que ela sentia agora. Egon nunca
chegara a despertar nela aquela vontade louca de abraçar e de beijar como sentia nesse
instante. Mas por quê? Por que estava tão entregue nos braços daquele homem
arrogante e cruel? Por que logo ele, se ela podia possuir tudo, ter tudo que o dinheiro

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fosse capaz de comprar? Desejava Devil de um jeito que a apavorava. Seu corpo inteiro
tremia, desejando ser possuída. Queria se entregar, abandonar todo o bom senso, ceder
finalmente àquela louca paixão.
Enfim, ele a largou trêmula e com lágrimas nos olhos. Sem dizer uma única
palavra, Devil foi embora. Ela ouviu apenas uma porta batendo nos fundos da casa.
Oriel saiu quase cega de dor e vergonha. Passou pelo jardim sem ver as flores;
tampouco viu o espetáculo deslumbrante do pôr-do-sol que coloria as nuvens no
horizonte. Foi descendo pelo caminho que cortava os campos, indiferente à pureza do ar
cristalino, à paisagem das casinhas coloridas de Torby e ao som do sino da igreja que
chamava os fiéis.
Como Devil devia estar se divertindo agora! Maldito! Depois de todas as boas
ações dela, de toda sua vontade de fazer o bem, de ajudar a coitada da prima... Oriel
sentia-se traída pelo próprio corpo. Devil com certeza também sentira o mesmo desejo,
a mesma vontade incrível de fazer amor. Agora ele sabia, tinha certeza que ela o
desejava. Oriel continuava o caminho, desorientada, condenando-se por ter cedido tão
facilmente.
Quando chegou à casa de troncos, encontrou Ana Stevens que acabava de
fazer a limpeza. Elas haviam combinado que, no primeiro dia, Ana faria uma boa limpeza
em apenas dois quartos. Ela já tinha varrido a casa, limpado o chão, as paredes e o teto.
Tinha lavado as janelas e também as cortinas, que secaram com o sol e o vento forte da
tarde. Agora pendurava as cortinas de novo, nos dois quartos escolhidos por não terem
vidros quebrados. O chão estava encerado e brilhava.
— Acho que assim está bom por enquanto. Você avisou Hezekiah que vai
mudar?
— Avisei, sim. Ele ficou aliviado. Parece que não gosta de cozinhar. Ana achou
graça. De repente reparou na roupa de Oriel.
— Eh, veja só a sua saia. . Está suja. O que aconteceu?
— Sujei no caminho...
— Esteve em Devil's Leap? — Seus olhos brilharam curiosos.
— Estive.
— Como está passando a Sra. Haggard? Chegou a vê-la?
— Ela está muito doente.
— Todo mundo sabe disso. O marido está a fazendo ficar louca. Parece que
Clare já era meio desequilibrada antes de casar...
— Quando foi que você a viu pela última vez, Ana?
— Faz anos. Ela não vem mais à vila. Dizem que ela bebe demais.
— Ouvi dizer isso também.
— Então é verdade?
— Não sei.
— Pois é. Se Clare não se cuidar, ninguém vai cuidar dela.
— Obrigada pelo trabalho, Ana. Por enquanto está ótimo assim.
— Vai morar aqui sozinha? — Parecia não acreditar. — Vai fazer todo o serviço?
Quero dizer, vai cozinhar é lavar louça também?
— Vou tentar.
— Só para variar, não é? Tinha muitos empregados em Londres?
— Tinha, sim. Não estou acostumada a cozinhar, mas tenho duas mãos e uma
cabeça como qualquer pessoa. Tenho certeza que vou conseguir viver bem sozinha
durante algum tempo.
— Claro que vai. Isto vai lhe fazer bem. Não há nada melhor do que um pouco
de trabalho manual para afastar os problemas da gente.

30
Depois de Ana se despedir, Oriel ficou pensando sobre seu último comentário.
Será que ela sabia dos problemas que a atormentavam? Ou será que tinha apenas
falado por falar?
Na manhã seguinte, Oriel passou por Chantries para ver como iam as obras.
Depois foi de carro até o mercado, fazer algumas compras. Comprou um fogão a gás
pequeno e um bujão, algumas panelas, pratos, talheres e copos, além de outros
utensílios para casa e cozinha. Com estas coisas, ela pretendia viver na casa de troncos
durante algumas semanas.
À noite, telefonou para Londres e falou com Alan. Depois de contar sobre a
mudança, acrescentou:
— Vou viver comendo cereais, grãos e frutas... Mas será divertido. Sinto-me
como se estivesse acampando.
— Meu Deus, você deve estar louca! Oriel, por favor, volte para Londres. Sinto
muito sua falta...
— Não posso voltar agora, Alan. Ainda tenho muitas coisas para fazer aqui. Não
se preocupe, se eu precisar de você aviso sem falta.
De volta para Chantries, ela dirigia o Rolls-Royce, impressionada com a
escuridão. Só agora percebia como teria de viver isolada e solitária. Depois de trancar o
carro, Oriel entrou na casa de troncos. Quando acendeu a luz, alguma coisa atravessou
o quarto correndo.
Oriel gritou e largou os embrulhos. Tinha sido um rato, um rato grande e preto,
que a fizera tremer horrorizada.
Logo em seguida, ela ouviu passos de alguém se aproximando pela porta da
frente, e virou-se, pálida e nervosa, para tentar enfrentar o intruso.
Devil entrou no quarto, com uma espingarda na mão. Os cabelos pretos
estavam em desalinho, Ele olhou ao redor, atento, depois encarou Oriel, perplexo.
— Ouvi você gritar. O que aconteceu?
Oriel teve dificuldade em responder. Os lábios tremiam. Devagar, ela sussurrou:
— Um rato.
— Um rato? — Ele deu uma gargalhada. — Meu Deus, mulher, você perdeu a
fibra com a boa vida da cidade grande. Não tem vergonha de estar com medo de um
rato?
— Saia da minha casa, Devil! Vamos, saia!
— Mandei você embora de manhã e você me manda embora de noite. Parece
justo, não é? — Devil ironizava. — Mas será que você quer mesmo que eu vá embora,
Oriel? — Seus olhos azuis faiscavam sarcásticos. — Não prefere que eu fique mais um
pouco? Não se sente sozinha? É solitário e frio aqui. Posso ser uma boa companhia. Sei
aquecer e dar segurança...
— Primeiro encontrei um rato de quatro patas, agora encontro outro de duas —
ela disse, com desdém. — Prefiro ficar só a mal acompanhada. Você pode deixar essa
espingarda aqui. Preciso mesmo me proteger contra os animais selvagens da região.
— Você sabe usar um chicote, Oriel. Mas será que sabe usar a espingarda?
Oriel estendeu a mão. Ele foi para trás dela e abraçou-a por trás, com a
espingarda numa das mãos.
— Mostre — ele sussurrou, no ouvido dela.
— Fique na minha frente que vou mostrar como se atira — ela ameaçou.
— Ora, não vê que estou atrás de você de propósito? — Ele riu baixinho. — Não
confio em você.
Ele ajudou Oriel a erguer a espingarda, observando-a como segurava a arma.
— Que tal, Devil?

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— Vamos lá fora. Você pode tentar atirar numa coruja.
— Gosto das corujas! — ela protestou.
— Vamos — ele insistiu.
Os dois saíram da casa. Ela perguntou friamente:
— O que está fazendo aqui, Devil? Roubando caça?
— Claro que não.
— Não quero estranhos no meu parque.
— Você não vai notar minha presença de noite.
— Bem, isso pelo menos é um alívio.
Uma coruja voou. Oriel viu a ave e ergueu a espingarda, para apertar o gatilho.
A coruja deu um grito e uma pena flutuou ao vento, sob o luar, até desaparecer na
escuridão.
— Nada mal — disse Devil, admirado. — Mas é melhor não deixar a espingarda
por aqui. Você pode manter a promessa e me dar um tiro da próxima vez.
— Acho melhor você não aparecer mais — ela respondeu séria. Ele parou,
olhando para ela de frente, com o luar prateando seus.
Cabelos e cintilando nos olhos azuis. Sua voz soou terna e emocionada:
— Você voltou muito bonita, Oriel. Como era seu marido?
— Era gentil, educado e atencioso...
— Coitado — comentou Devil, amargo.
— Por que diz isso?
— Um homem velho com uma mulher jovem e tão bonita... Ele só podia mesmo
ser atencioso, educado e gentil.
— Eu amava Egon!
— Amava o dinheiro dele.
— Amava ele.
Devil tentou abraçá-la. Mas Oriel levantou a espingarda e encostou-se à barriga
dele.
— Não chegue mais perto, Devil.
— Pode atirar não me importo — ele disse rouco. — Você não entende que o
que existe entre nós é tão primitivo que sempre envolve uma dose de violência? Cada
vez que vejo você me dá vontade de morrer. '
Ela ficou espantada com a confissão. Olhando para o rosto dele iluminado pelo
luar, sentiu o coração bombeando o sangue, como uma máquina, fazendo-o circular no
corpo, pulsando acelerado.
— Você casou com Clare — ela disse de repente.
Aquelas palavras de Oriel continham uma acusação tão forte que ela mesma se
espantou com isso.
— Você casou com seu milionário primeiro — ele respondeu.
— Não. Casei com Egon alguns meses depois.
— Mas você estava noiva dele antes de eu casar com Clare. Ela me mostrou
uma carta de seu pai. Ele estava contente...
— Egon não tinha me pedido em casamento ainda. — Ela enfrentou o olhar
acusador de Devil. — Na verdade, meu pai espalhou esse boato. Ele tinha certeza que
eu casaria com Egon. Eu casei só porque meu pai pediu. Ele estava falido e tive de
aceitar Egon para salvá-lo.
Por alguns instantes eles não disseram nada. Ficaram se encarando, tentando
ler a mensagem oculta das emoções.
— Quer dizer que não era verdade o que ele dizia na carta? Quer dizer que
quando casei com Clare você ainda não tinha um compromisso?

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— É verdade.
— Aquela mentirosa! — Devil rugiu. — Ela me enganou! Eu nunca teria casado
com ela se soubesse disso. Mas pensei... Que você não existia mais. Nunca mais
poderia tê-la de volta. Depois disso, nada mais me importava.
Oriel lembrava o rosto de Clare naquela noite em que ela contara que tinha sido
violentada por Devil. Por isso, não acreditou na confissão dele.
— Por que está mentindo agora, Devil? Você perseguiu Clare muito antes de eu
viajar para a África.
— Clare é que me perseguia.
— Pelo amor de Deus, Devil. Não difame Clare agora. Será que você não a
machucou o suficiente nesses anos todos? Para que mentir ainda mais?
— Não estou mentindo — ele respondeu, parecendo sincero. — Foi como eu
disse. Clare gostava de mim. Ela já gostava quando você e eu saíamos juntos. Quando
você foi embora, ela tentou tomar seu lugar. Eu estava triste e sozinho e Clare percebeu
isso. Quando ela me mostrou a carta dizendo que você ia casar com um milionário, eu
perdi as esperanças. Meu orgulho me forçou a dar uma prova de que eu não me
importava com aquilo. Então, casei com ela, mas me arrependi logo. Clare só tem sido
uma carga pesada e triste. Ela sabe que nunca a amei, e essa certeza a destruiu.
— Como pode caluniar Clare desse jeito? Clare ama você. Ela não tem motivos
para amar, mas ama. E foi você, Devil, quem começou com tudo. Foi você quem
seduziu Clare naquela noite.
— Fiz o quê? — ele perguntou, quase gritando.
— Não grite comigo, demônio. Clare me contou tudo. Ela estava em prantos,
histérica. Você a violentou! Por que fez isso, Devil? Foi desumano! Você queria
Chantries, não é? Só pode ter sido por causa isso. Você nunca a amou, tenho certeza.
Era Chantries que você tinha em vista e foi por Chantries que sacrificou nosso amor!
Ele não se moveu e não gritou. Parecia um bloco de gelo, lívido sob o luar. Um
longo silêncio pairou no ar, entre os dois.
— Aquela noite em que encontrei Clare no campo? — Devil quebrou o silêncio,
falando baixo e devagar.
— Sim. — Oriel sentia uma mágoa imensa só de lembrar. — Aquela noite, Devil
Haggard.
— Ela foi para casa e contou isso para você? Ela disse que eu seduzi?
— Sim.
— E uma semana depois você viajou para a África... Oriel não respondeu.
Devil continuou, como se contasse uma história:
— Depois que seu pai escreveu que você ia casar com um dos homens mais
ricos do mundo, e Clare me mostrou essa carta, e eu. . ,
— Você casou com ela.
— Meu Deus do céu! — ele gritou, dando um soco contra um tronco. — Oh, meu
Deus do céu, casei com ela...
Oriel só ficou olhando, incrédula e emocionada. O luar iluminava o rosto
transtornado de Devil, mostrando seus olhos azuis cheios de lágrimas. Ele cobriu o rosto
com a mão, para esconder a emoção que sentia, e nesse instante ela viu o sangue
correndo na mão machucada.
— Você está ferido!
Ele deu um murro de dor e sumiu, cambaleando, na escuridão. Oriel ainda o
ouviu correndo. Depois só o sussurro do vento, acariciando as folhas na dança do
outono, restou na noite enluarada.

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34
CAPÍTULO V

Uma semana depois, Joan Warne, a mulher do médico, visitou Oriel na casa de
troncos. Sentadas em duas cadeiras velhas e desconfortáveis, elas tomaram o chá na
sala, em xícaras de cerâmica.
— Desculpe a desarrumação — disse Oriel. — Estou acampada aqui até
Chantries ficar pronta.
— Quando acaba a reforma?
— Daqui a seis meses, se a obra continuar no mesmo passo.
— Estão trabalhando bem?
— Muito. Mas vão muito devagar, a reconstrução está demorando muito mais do
que eu imaginava. Eles continuam encontrando problemas. Todas as tábuas do
assoalho do segundo andar tiveram de ser trocadas porque estavam podres.
— Os pedreiros não param nunca, é o que Phil diz.
— Phil tem razão. Estou começando a achar que nunca mais vou me libertar
deles.
Joan tomou mais um gole de chá.
— Phil esteve em Devil's Leap hoje de manhã.
— Sim? — Oriel perguntou tensa.
— A sua prima está pior. Teve uma forte crise na noite passada. Phil quis levá-la
para o hospital, mas ela não quis ir. E o marido também não quis levá-la.
— Não entendo por que ele é tão cruel. Coitada de Clare!
— Phil diz que ela está amarela. O fígado vai mal. Ela não pode continuar
vivendo desse jeito.
— Uma operação poderia salvá-la? Joan suspirou e sacudiu a cabeça.
— Não adianta mais. Mas a doença pode ser menos dolorosa num hospital
especializado. Ela precisa sair daquela casa. Ali ela vai beber até morrer.
Depois de Joan se despedir, Oriel continuou sentada perto da janela, olhando
para as folhas secas que o vento varria no parque. Lembrou-se da época em que Clare
era criança. Nunca tinham sido muito amigas. A prima sempre foi uma menina fechada e
possessiva. Como a vida de Clare tinha sido trágica! Que diferença enorme da de Oriel.
O destino, às vezes, é tão cruel com algumas pessoas!
Alguém precisava forçar Devil a mandá-la para o hospital. Ira o dever dele como
ser humano e como marido.
Joan tinha chegado a insinuar que Devil desejava a morte de Claire, Insinuou
também que ele dava bebida para a esposa Será que era verdade? Devil era um homem
selvagem, contraditório e violento, mas nunca tão perverso assim. Joan devia estar
enganada.
Ao entardecer, Oriel saiu para dar um passeio no parque. O sol já se aproximava
do horizonte e começava a esfriar. Ela admirou as folhas que caíam, em todas as
tonalidades.
Ouviu o som de passos sobre o cascalho do caminho. Viu que Devil vinha
chegando, vestindo calça preta e um suéter também preto.
Ela parou e esperou até ele chegar perto. Os dois ficaram olhando um para o
outro, serenos, como dois velhos adversários antes do começo de mais um duelo.
— Devil, Clare precisa ir para o hospital — ela começou, com rispidez.
— Ela não quer,
— Você pode convencê-la.
— Eu?
— Ela fará qualquer coisa por você.

35
— Qualquer coisa menos me largar — ele respondeu frio.
— Acho que ela fará até isso se você prometer visitá-la sempre.
— Você acha que já não tentei?
— Tente de novo, Devil. .
— Entendo. Você está pensando que quero vê-la morta. Talvez seja verdade,
mas eu nunca a mataria.
— Nem deixaria que ela morresse por descuido?
— Quanta ironia! — O quê?
— Ver você me criticando por odiar Clare! Meu Deus, às vezes a vida é muito
irônica conosco.
— Você vai falar com Clare? Vai convencê-la?
— Acho que sim. — Ele olhou na direção da casa de troncos. — Você não me
convida para uma xícara de café?
Ela sacudiu a. cabeça, negando, e olhou para ele em silêncio.
— Está com medo de ser violentada, querida? — ele reagiu com sarcasmo.
— Boa noite, Devil. — Oriel se virou para entrar. — Volte para perto de sua
esposa.
Ele estendeu a mão e tocou nos cabelos loiros que esvoaçavam soltos, cobrindo
os ombros como uma cortina sedosa. Oriel abriu a porta. Nesse instante, ele a agarrou e
beijou.
— Boa noite, Oriel.
Rapidamente, ela entrou na casa e bateu a porta. Pouco depois ouviu Devil se
afastando. Fechou os olhos, desanimada.
Era difícil tentar dormir sabendo que Devil continuava lá, andando pelo parque
como uma fera! Ela trancou a porta da frente e a de trás. Depois se despiu e deitou na
cama. Mas não conseguia adormecer. Estava nervosa, com os sentidos atentos, ligados
nos ruídos de fora! Imaginou ouvir barulho de passos e de alguém batendo de leve na
vidraça.
O que ele queria? O quê? Por que vivia rodeando a casa como uma onça em
busca da vítima? Por que continuava lá fora, com os olhos fitando a luz da janela de seu
quarto?
Oriel nem se atreveu a apagar a luz. Por fim, adormeceu com a luz acesa e
acordou ouvindo os passarinhos cantando nas árvores do parque. Sua cabeça doía.
Levantou-se trêmula e desanimada, depois da noite mal dormida.
De repente, achou graça tentando imaginar a expressão de Alan ao vê-la
morando naquela casa rústica. Ele ia achar que ela estava louca. Se tinha dinheiro para
morar onde quisesse fazer o que quisesse, por que ficava ali, naquelas condições? Seria
quase impossível explicar a Alan que era isso mesmo que ela desejava que só queria
ficar em Chantries, pertinho da casa antiga e adorada, esperando o fim das obras.
Depois do café, Oriel foi até a vila fazer compras. Lá, quando seu carro parou
em frente à quitanda, Joan veio em sua direção, muito impressionada.
— Oriel, sabe o que, aconteceu? — Seu sorriso indicava que a notícia era boa.
— O que foi?
— Devil Haggard trouxe a esposa aqui para a vila ontem à noite e Phil já a
encaminhou para o hospital! O que é que você acha? Parece que me enganei a respeito
dele.
— Estou contente com isso. — Oriel se sentia orgulhosa. Devil tinha atendido
seu pedido.
— Você vai visitá-la? — Joan perguntou. — Ele não pode impedir visitas
enquanto ela estiver no hospital.

36
— Vou tentar.
— Leve alguns livros para ela. Parece que ficará internada por muito tempo.
— Acha que vai sarar?
— A doença não tem cura, mas pelo menos ela não vai mais sentir tanta dor.
— Por que será que as pessoas bebem tanto? É uma loucura se matar bebendo
álcool.
— Qualquer mulher casada com um homem daqueles beberia.
— Escute Joan, diga a verdade: você conhece bem Devil Haggard?
— Olha, eu já o vi de longe. Sei que é um homem grandão, grosseiro, de
cabelos pretos e olhos assustadores. Também o vi montando aquele garanhão, no dia
do leilão de Chantries. Até parecia que ia estrangular qualquer pessoa que estivesse no
caminho dele!
Pelo jeito, Joan vivia dando opiniões sobre gente que nem conhecia
pessoalmente. Ela se baseava apenas na aparência. Conversando com ela, Oriel teve
uma idéia.
— Joan, quem é que está tomando conta da filha deles?
— Linnette? Acho que é a avó.
— A garota freqüenta a escola da vila?
— Ela ainda não começou a estudar. Só tem cinco anos e não havia vagas
neste semestre. Acho que ela só começa depois do natal.
— Eu gostaria de vê-la.
— Por que não vai até lá e faz uma visita? Você é prima da Sra. Haggard. Acha
que não vão deixá-la ver a menina?
— Não sei o que Devil vai fazer. Ele é muito imprevisível.
— Você acha que ele está louco? — Joan abaixou a voz. — O comportamento
dele é tão estranho.
Oriel se lembrou de Devil, andando pelo parque na noite anterior, e estremeceu.
Logo que acabou as compras, ela voltou para a casa de troncos e trocou de
roupa. Vestiu um conjunto de jeans, porque não pretendia sujar suas lindas saias,
criadas pelos costureiros parisienses. Pouco depois, saiu para fazer um longo passeio.
Quando chegou ao alto do morro, Oriel ouviu risadas. Alguém apareceu entre os
arbustos, correndo.
Era uma menina de cabelos pretos, bonita, corada e alegre, vestida com uma
roupa azul. Ela se assustou quando viu Oriel. As duas ficaram paradas, olhando uma
para a outra. A menina tinha olhos azuis parecidos com os de Devil. Só podia ser
Linnette.
Uma outra pessoa apareceu entre os arbustos, carregando unia bola vermelha
de plástico.
— Olá, Oriel.
Ela sorriu hesitante. A mãe de Devil nunca tinha ido com a sua cara. Agora,
depois de tanto tempo, Oriel não sabia o que podia esperar dela.
Ann Dervil era uma mulher magra, alta, com cabelos lisos, compridos e
prateados, e com os mesmos olhos azuis do filho. Falava com o sotaque de Yorkshire e
tinha uma expressão franca, de uma pessoa prática e trabalhadora.
Sem perda de tempo, disse para a menina:
— Linnette, querida, volte para casa agora. Eu já vou, daqui a pouco.
Linnette encarou Oriel com curiosidade, enquanto respondia:
— Está bem, vovó.
— O que você quer Oriel? — Ann Dervil perguntou, quando a menina entrou na
casa.

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— Vim ver Linnette — respondeu, sem rodeios.
— Entendo que você esteja interessada em ver se a menina é bem tratada.
Bem, já viu. Ela é forte, tem muita saúde e vive bem. Só acho que é mimada demais
pelo pai. Mas não vejo motivos para você se preocupar.
— Ela não sofreu com a doença da mãe? Isto tudo não deve ter feito muito bem
a Linnette. •
— Devil manteve a menina afastada, na medida do possível. Ele não quer
magoar Linnette. Já disse que a mima demais. — Ann encarou Oriel com franqueza. —
A filha é muito diferente da mãe.
Clare não é nenhum anjo, e sei que meu filho também não é, mas ele tem mais
energia no dedinho da mão do que ela tem no corpo inteiro. Nunca entendi por que
casou com ela. Fez um péssimo negócio.
— Acho que Clare também não foi feliz casando.
— Isso é fácil de entender. Clare nunca foi uma boa dona-de-casa. Ela queria
ser servida. Era uma pessoa egoísta, preguiçosa e não sabia fazer nada. Não vou fingir
que gostava dela. Ela sempre falava mal de mim e me tratava como se eu fosse lixo.
Muitas vezes me amaldiçoou por ser mãe de Devil. Vou ser muito franca, Oriel: ela não
prestava.
— Você fala como se ela já estivesse morta.
— Bem que gostaria que ela estivesse. Digo isso para quem quiser ouvir. Clare
é um veneno para o meu filho e até para a própria filha. Seria muito melhor se Devil
tivesse casado com você, Oriel. Você sabe disso...
— Eu não teria lhe dado Chantries — rebateu Oriel friamente. — Acho que ele
casou com Clare pensando em Chantries.
Ann encarou Oriel em silêncio, depois encolheu os ombros.
— Ele nunca conversou comigo sobre isso. Não posso dar minha opinião. Devil
é uma pessoa muito fechada. — Ela olhou para a casa. — Preciso entrar agora. É
melhor ir embora. Devil não vai gostar de encontrá-la aqui.
— Fale com ele, por favor. Diga que quero visitar Linnette. Quero conhecê-la
melhor.
— Vou falar, mas não alimente muitas esperanças. Devil é teimoso e não gosta
de visitas. — Seu rosto se contraiu. — Oriel, temos uma enfermeira aqui. Pensei que ia
embora, agora que Clare está no hospital, mas Devil acha que ela deve ficar para me
ajudar a cuidar de Linnette. Diz que já tenho muito serviço em casa. Ele tem um pouco
de razão, embora eu não goste dessa mulherzinha.
Oriel não respondeu, apenas sorriu e começou a se virar para ir embora. Mas
Ann ainda há deteve um pouco.
— Quando é que Chantries fica pronta? Dizem que você está gastando uma
fortuna nas obras.
— Venha me visitar quando tudo estiver no lugar.
— Eu? — Ann Dervil riu. — Isso faria o velho Jeremias virar na sepultura. Para
ele eu era boa para a cama, mas não para casar.
Oriel ficou um pouco chocada com a franqueza rude de Ann.
— Bem, o convite continua de pé. Venha me visitar quando quiser. Quando Oriel
chegou a Chantries, encontrou Alan a sua espera.
Ele viera visitá-la sem avisar. Alan cumprimentou Oriel com um sorriso,
erguendo a sobrancelha ao reparar cm suas roupas, — Você está tão diferente.
— O que veio fazer aqui, Alan?
— Uma pequena visita de cortesia.
— Ótimo. Venha até a casa de troncos para tomar uni chá. Lá a gente conversa

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à vontade.
— Casa de troncos? Ah, sei, é o lugar onde você está acampada. Os homens
daqui já me falaram dessa casa, e me parece chocante. Oriel, por que não volta para
Londres? Não está se aborrecendo por aqui? Nunca vi um lugar mais parado do que
aquela vila. Não consigo imaginar você vivendo como uma camponesa.
— Não fale tanta bobagem, Alan — ela respondeu tranqüila. — O que achou das
obras? Os homens estão trabalhando bem, não?
— É, mas são muito lentos. Vai demorar meses até tudo terminar.
Quando chegaram à casa de troncos, Alan ficou ainda mais chocado. Ele não
conseguia acreditar que uma mulher milionária pudesse se sentir bem em uma casa tão
modesta.
— Meu Deus, Oriel, você mora aqui? Esta casa está boa para ser demolida!
— A casa é quente e confortável. Precisa de alguns consertos, ainda está com
uma janela quebrada, mas quando eu mudar para Chantries vou fazer uma reforma
nela. Já tenho até uma pessoa interessada em morar aqui.
— Essa pessoa deve estar desesperada!
— Sim, acho que está. Por isso fico contente de poder ajudar.
— Você agora faz obras de caridade, Oriel? — Por que está tão sarcástico
Alan? Ele pegou a pasta que havia trazido, abriu e explicou:
— Eu trouxe estes papéis para serem assinados por você. Se tivesse voltado
para Londres poderia fazer isso lá mesmo.
— Tenho certeza de que as rodas das Empresas Mellstock vão continuar
girando, esteja eu onde estiver.
— Claro que vão. Mas seria muito mais fácil para mim se você morasse mais
perto.
Ela começou a preparar o chá, sentindo-se à vontade na cozinha.
Ao se virar, Oriel o viu sorrindo e perguntou o que achava de tão engraçado.
— Nunca imaginei você como uma dona-de-casa — ele disse. — Pensei que
não soubesse cozinhar.
— Não acha que posso ser uma boa dona-de-casa?
— Pode sim. Mas não é a Oriel que conheço.
— Todos nós mudamos Alan.
— Mas não quero ver você mudar assim, Oriel.
— Lamento Alan, a gente não pode impedir as mudanças. Já se passaram dois
anos da morte de Egon. Tive tempo para me adaptar, para entender o que quero fazer
na vida.
Quando Oriel passou pela cadeira de Alan, ele a segurou pelo pulso. Puxou-a, e
a fez sentar-se em seu colo.
— Oriel, amo você... Esperei dois anos para dizer isso. — Alan, por favor...
Ele tentou beijá-la na boca, mas ela virou a cabeça.
— Alan, não faça isso.
— Por que não? — Ele estava com o orgulho ferido. — Você não gosta de mim?
Sempre foi tão gentil e atenciosa comigo. Eu só estava esperando até você esquecer
Egon. Esperando que me desse um sinal...
— Gosto muito de você, mas não posso amá-lo. Lamento se você espera mais
do que isso. Eu nunca poderia lhe dar o que você quer.
— Você sabia dos meus sentimentos, Oriel.
— Eu suspeitava, mas não tinha certeza. Você nunca falou nada, por isso não
pensei nisso.
— Existe outro homem na sua vida, é isso? — Ele a segurou pelos ombros. —

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Alguém que mora por aqui? Isso explicaria essa sua vontade estranha de morar no meio
do mato. Quem você encontrou, Oriel? Algum fazendeiro grosso, forte como um touro?
Um homem completamente diferente de Egon?
— Me largue Alan! De repente, Oriel ficou com raiva, por causa das perguntas e
da descrição sarcástica do homem que lembrava Devil.
— Não vou desistir — ele reagiu, transtornado pelo ciúme.
Ela tentou se libertar, mas ele era forte demais. Abraçou-a brutalmente,
imobilizou seus braços e a beijou no pescoço e queixo. Depois subiu os lábios até beijá-
la na boca, com uma violência espantosa. Oriel nunca tinha imaginado que ele era
capaz de querê-la tanto.
Quando por fim ele a largou, Oriel levantou-se de seu colo, indignada, afastando
os cabelos do rosto com as mãos trêmulas.
De repente, ela parou. Através da janela, Devil estava observando a cena. Ele
trazia a espingarda presa no ombro, e o rosto refletia toda a sua raiva.
Sem saber que estava sendo observado, Alan também se levantou, segurou a
mão de Oriel e começou a beijá-la.
— Desculpe querida... Perdi a cabeça. Mas pelo menos agora você sabe como
me sinto e... O que você está vendo? — Ele se virou quando notou que ela olhava
fixamente para a janela. Mas Devil já tinha se afastado e Alan só viu o pessegueiro
agitado pelo vento, — O que foi? — ele insistiu com Oriel.
Ela recuou, olhando para o chão.
— Não foi nada, Alan. Desculpe. Não quero que você tenha esperanças, por
isso vou ser cruelmente honesta: não amo e não posso amar você. De certa maneira, eu
gostaria de amá-lo. Mas sei que é impossível.
Ele ficou muito tempo em silêncio, abatido.
— Bem, agradeço pela honestidade. Mas não vou desistir. Um dia desses você
pode mudar de idéia. Eu espero.
— Não espere Alan. Por favor, não desperdice sua vida assim.
— A vida é minha e farei dela o que quiser — ele respondeu bravo com ela.
— Vamos tomar o chá? — ela sugeriu cabisbaixa, — Depois você pode me
explicar o que são esses documentos que trouxe, está bem?
— Está bem, Oriel.
— Onde vai dormir esta noite?
— Naquela hospedaria pavorosa da vila.
— Vai jantar lá?
— Pedi um jantar para duas pessoas. Pensei que você gostaria de jantar fora,
só para variar. Hezekiah disse que fará filés.
— Foi uma idéia ótima, Alan. Obrigada.
— Espere até provar a comida. Duvido que aquele homem saiba preparar um
filé. Provavelmente a carne estará dura como uma sola de sapato.
Enquanto Alan explicava os negócios que o trouxeram até ali, mostrando os
papéis e esclarecendo as dúvidas de Oriel, eles tomaram o chá e comeram biscoitos
com manteiga. Depois Oriel assinou os papéis e ele guardou tudo na pasta.
Mais tarde foram para a vila, deixaram o carro de Alan na porta da hospedaria e
deram um passeio. Oriel ia mostrando tudo para Alan.
— Nunca vi um lugar tão morto como este. Como é que você agüenta?
— Nasci e fui criada aqui, não se esqueça. Gosto deste lugar. Além disso,
morando aqui mesmo acompanho melhor as obras em Chantries. Estou comprando
alguns cavalos. Vou andar muito a cavalo por aqui e quero um pônei bom para Anatole.
— Ele está gostando do internato?

40
— Parece que sim. Ele me escreve quase toda semana. São cartas curtas, mas
pelo jeito ele está passando bem. Em geral, fala de esportes. Anatole gosta muito de
jogar futebol. Vou passar alguns dias com ele nas férias deste semestre.
— Eu gostaria de ver o menino de novo. Se você permitir, posso levá-lo para
assistir alguns jogos de futebol em Twickenham.
— É muita gentileza sua, Alan. Ele vai adorar.
— O prazer será meu, Oriel. — Alan já estava mais tranqüilo, mas ainda parecia
magoado.
— Você tem idéia de como vai Renée? — ele quis saber.
— Ela me mandou um cartão postal da Jamaica. Está gostando muito da
viagem.
A comida estava saborosa, mas Alan achou que o serviço de Hezekiah deixava
a desejar.
— Ele não tem necessidade de jogar as coisas sobre a mesa com tanta força.
— Coitado. Tente desculpá-lo, Alan — disse, sorrindo.
— Não ria de mim, Oriel.
— Eu não estava rindo de você.
— Estava sim. Conheço você bem demais.
Mais tarde, Alan levou-a de carro para a casa de troncos, mas não quis ficar
para uma última xícara de chá. Ela despediu-s§ e entrou, aliviada. Tinha vontade de não
ver Alan por muito tempo. A noite havia sido tensa e cansativa. Ele era um visitante que
chegava de um outro mundo, um mundo que ela tinha esquecido e do qual não desejava
se lembrar.
Foi até a janela para fechar as cortinas e parou assustada, ao ver o rosto de
Devil. Bateu na vidraça e fez um sinal, indicando que s queria entrar. Ela sacudiu a
cabeça.
— Vá embora.
Ele virou-se e desapareceu. Instantes depois, ela ouviu um barulho de vidro
quebrado no quarto que estava com a janela estragada. Ana já tinha combinado que
viria consertar aquele vidro, mas ainda não fizera isso. Devil entrou na casa por ali!
Oriel fechou a porta de seu quarto e travou-a.
— Me deixe entrar — Devil gritou.
— Vá embora, por favor, Devil.
— Abra esta porta, senão vou arrombá-la.
— Se for tão estúpido, eu chamo a polícia!
— Não me importo com a polícia. Abra esta porta, Oriel.
— Não!
Ela o ouviu colocar a espingarda no chão e ficou apavorada. Se ele se tornasse
violento, não teria como defender-se.
— Está bem — gritou. — Vou abrir.
Ele entrou furioso e seus olhares se cruzaram, faiscando.
— Pensei que aquele homem bonitinho ia passar a noite aqui — Devil disse
malicioso.
— Esta noite, não.
— Talvez ele venha outras?
— Talvez.
— Se ele estivesse aqui, eu teria o prazer de arrebentar a cara dele.
— Não seja tão estúpido, Devil. Não é da sua conta quem dorme comigo.
Dando um passo para frente, ele segurou-a pelos braços, apertando-a com
força.

41
— Meu Deus, você está me enlouquecendo, Oriel...
— Quantas mulheres você quer, Devil? Já tem uma esposa e uma amante.
Quem come demais acaba ficando com dor de barriga.
Ele deu uma gargalhada.
— Você é venenosa como uma cobra, Oriel.
— Como ousa entrar aqui para me ameaçar? Não tenho medo de você. Tome
cuidado. Se eu o surpreender perto desta casa de novo, vou dar um tiro!
— Gatinha selvagem — ele ironizou. — Diga a verdade sobre aquele jovem
executivo de terno e gravata. Você o conhece há tempo?
— Ele quer casar comigo. — Ela ficou contente por ter dito isso, pois o sorriso
sarcástico sumiu do rosto de Devil.
— Com você ou com a fortuna Mellstock?
— O que você acha? Sem dúvida meu dinheiro aumenta minha atração. Mas
tenho outras qualidades.
— Já notei isso. — Seus olhos azuis saboreavam o corpo dela devagarzinho,
subindo dos pés à cabeça. — Você é um prato feito.
Ela não conseguiu deixar de rir e Devil sorriu também. Eles duelavam em
palavras, mas, ao mesmo tempo, sentiam um estranho prazer nesse desafio.
— O que você respondeu a seu pretendente ardente, Oriel?
Ela não respondeu. Devil puxou-a para perto, tentando beijá-la. Oriel desviou a
cabeça e ele mordeu sua orelha.
— Ai! Você é um bruto!
— Não vai me agradecer por ter levado Clare para o hospital?
— Você devia ter feito isso há meses. Estava deixando Clare morrer!
— Pelo amor de Deus! Eu tentei juro. Mas ela sempre se recusou. Por isso, na
noite passada, coloquei alguns comprimidos em seu chá. Quando ela dormiu, levei-a
para o Dr. Warne. Ele não suspeitou de nada... Clare muitas vezes bebia até ficar quase
desmaiada. Eles a internaram no hospital e agora estão cuidando dela, do jeito que você
queria.
Oriel ouvia atenta e séria.
— Você não devia ter casado com ela se pretendia tratá-la com tanta crueldade.
— Eu nunca quis tratá-la com crueldade. Casei com ela sem amá-la; este foi o
meu crime e paguei caro por isso. Clare sabia que eu não a amava, por isso começou a
beber. Mas, Oriel, ela sabia disso quando casou comigo! Juro por Deus! Ela me pediu
para casar, implorou... Disse que não se importava se eu a amava ou não. Disse isso
antes de casar, mas depois de casada foi diferente.
— Você precisa ir embora, Devil. — Oriel suspirou. — Já é tarde...
— Preciso? Por quê?
— Oh, Devil. — Ela se mexeu, inquieta, sentindo o calor já invadir seu corpo.
Não queria que ele fosse embora. Queria que ficasse ali, que dormisse ali. Seu
corpo inteiro dizia isso, seu coração disparava pedindo isso. Queria jogar-se nos braços
de Devil, esquecer tudo, esquecer o mundo cruel, os problemas mesquinhos do dia-a-
dia, a vida e a morte. Mas não. Oriel pensou em Clare, depois em Linnette e
estremeceu. Não podia ceder. As barreiras entre os dois eram grandes demais.
— Você precisa ir embora — ela repetiu rouca e trêmula.
— Quero você — ele disse, de repente. — Quero você como nunca desejei
outra coisa na vida, nem mesmo Chantries... Não me mande embora esta noite. Deixe-
me ficar aqui... Estou quase louco de tanto desejo por você. Se voltar para Devil's Leap,
não sei o que vou fazer da vida. Diga sim, senão nunca mais vou pedir isso de novo...
— Devil, não posso... Você é casado...

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— Esqueça Clare. Esqueça tudo. Diga sim, agora.
— Não, Devil.
— Meu Deus, você... Você me recusou. — Seus olhos azuis brilharam com ódio.
— Perdeu sua última chance. Não vou perdoar isso. Da próxima vez, vai implorar de
joelhos. Nunca mais vou esquecer meu orgulho por sua causa, Oriel.
Ele saiu louco, batendo a porta. Ela continuou imóvel, olhando para a porta
fechada, tremendo como se tivesse frio. Nunca mais esqueceria aquele olhar de Devil. E
o brilho de seus olhos azuis a perseguiria para sempre.

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CAPÍTULO VI

Na manhã seguinte, Oriel passou na casa de Ana e deixou a chave da casa de


troncos. Combinou com ela que a janela seria consertada e que seria feita uma limpeza
geral na casa. Depois disso, foi de carro para Londres, sentindo-se como uma criminosa
que foge da prisão. Em Londres, tomou um avião para a Califórnia, com a intenção de
encontrar-se com Renée em Los Angeles, onde pretendia passar algumas semanas de
férias.
O dia estava quente quando ela chegou à Califórnia. As ruas estavam cheias de
carros. Depois do tempo que havia passado no campo, Oriel tinha a impressão de que o
trânsito era obra de algum espírito maligno, criado só para atormentar as almas dos
homens. O rádio do táxi que ela tomou até o hotel onde Renée estava hospedada
tocava uma música alegre e o motorista conversava, animado: — Está em Los Angeles
pela primeira vez? A senhora é inglesa, não é? Sei que é. Sou capaz de reconhecer os
ingleses na hora...
O motorista falava como se ela viesse de outro planeta. N'a verdade, Oriel
também se sentia assim, depois da temporada de retiro em Yorkshire. Tinha viajado
milhares de quilômetros em pouco tempo, passando de um tipo de vida para outro.
Sentia-se tonta com a mudança repentina.
O hotel onde Renée, estava era imenso, impessoal, luxuoso e limpo. Tapetes
macios levavam a elevadores com ar condicionado e som estereofônico. Os quartos
eram decorados com bom gosto. Havia funcionários atenciosos por toda a parte. Oriel
viu gente sorrindo, dando e recebendo gorjetas. Tudo funcionava perfeitamente.
Renée esperava Oriel na porta de sua suíte. Estava curiosa e Oriel tinha medo
de que ela quisesse saber por que decidira viajar tão de repente.
— Que bom rever você, querida — ela disse simplesmente. — Estou encantada
com sua visita. Agora podemos explorar a Califórnia juntas. Como vai Anatole? Como
está o tempo na Inglaterra? Muito frio?
Oriel respondeu às perguntas, aliviada, Não se sentiria à vontade comentando
sua vida afetiva com a sogra.
A Sra. Weedon e íris serviam drinques do tipo que Renée às vezes bebericava
antes do almoço, e responderam entusiasmadas a todas as perguntas de Oriel. Sem
dúvida, elas nunca tinham se divertido tanto e estavam ansiosas pelo passeio de ônibus
que fariam no dia seguinte a Hollywood, para ver as casas dos artistas de cinema.
— Tem certeza de que vai ficar bem sem nós, Sra. Mellstock? — as duas
perguntaram a Renée, preocupadas.
— Com Oriel aqui não ficarei sozinha.
— Acho que você já está pegando o sotaque americano — Oriel brincou com a
sogra. — O que Anatole vai pensar quando sua avó voltar falando assim?
— Que bobagem, querida — Renée estava encabulada. — Mas confesso que
acho o inglês que falam aqui muito fácil de imitar. Aprendi até algumas palavras novas.
— Qual será o nosso programa amanhã, Renée?
— Quero fazer compras e almoçar em Los Angeles.
— Mas você não pode voltar para a Inglaterra sem ver Hollywood!
— Oriel caçoou.
— Reconheço que... — seus olhos brilharam ansiosos.
— Eu sabia. Admita Renée. Nós somos turistas mesmo. Por isso, vamos fazer o
que os outros turistas fazem,
— Senti tanto a sua falta, Oriel. — Renée sorriu. — Eu não sabia como gostava
de tê-la por perto. Só entendi isso durante esta viagem. A Sra. Weedon e Íris são muito

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gentis comigo, mas não são parentes.
— Claro que não são. Bem, agora cheguei e vamos nos divertir.
Os dias seguintes foram cheios de atividades e de novidades. Elas alugaram um
carro com motorista, já que Oriel não queria se aventurar no trânsito americano, e
viajaram pela Califórnia. Passaram um dia inteiro em San Francisco, admirando as
casas coloniais brancas, construídas nas encostas dos morros, e as alamedas cheias de
árvores frondosas. Visitaram Nob Hill, onde os novos ricos de San Francisco viviam no
maior luxo. Quando atravessaram a ponte Golden Gate, admirando a água e o céu,
Renée suspirou. .
— Que lindo!
— Romântico, não é? — Oriel sorriu.
Comeram lagosta num restaurante pertinho do mar, sentadas sob um guarda-sol
colorido, ouvindo o barulhento som de um violão tocado por um jovem barbudo. Renée
chamou o rapaz com um aceno e ele veio até onde elas almoçavam. Elas repararam
que era um homem bonito, com olhos castanhos e cabelos encaracolados.
— Sabe tocar música espanhola? — perguntou Renée.
— Talvez. — Ele passou a mão pela barba.
Renée lhe passou alguns dólares e o jovem sorriu, agradecendo.
— Quero ouvir música espanhola — ela insistiu.
O rapaz começou a tocar música clássica espanhola no violão. O som
melancólico agradou Renée que se lembrou, saudosa, dos flocos de neve varridos pelo
vento nas florestas inglesas.
— Ele toca bem — ela comentou com Oriel. — Melhor do que eu esperava. Se
toca tão bem, por que perde tempo com essas músicas horríveis?
— Acho que as outras músicas estão nas paradas de sucessos — arriscou Oriel.
Quando acabou de tocar, o músico puxou a cadeira mais para perto da mesa.
Ele parecia contente e com muita vontade de conversar.
— Faz anos que não me pagam para tocar boa música — comentou. Seus olhos
castanhos admiraram Oriel. — Você não trabalha no cinema, não é? Parece que eu a
conheço, não sei de onde...
Oriel sorriu, pensando que ele devia ter visto a fotografia dela em algum jornal
ou revista.
— Não, não trabalho no cinema.
— Eu trabalho — ele anunciou. Vendo que elas não acreditavam, gritou: — Ei,
Manuel, quem sou eu? Diga para estas senhoras quem sou eu, vamos!
O garçom do restaurante, um mexicano magro chamado Manuel, sorriu,
incrédulo.
— Elas não sabem? — Olhando para Oriel, explicou: — Ele se chama Lee
Tyrwit, é ator e músico. Vocês não assistiram ao filme As Águas da Babilônia! Ele fez
parte do elenco.
Oriel se lembrou vagamente de ter ouvido falar desse filme. Tinha passado nos
cinemas de Londres, mas ela não foi ver. Sorriu para Lee Tyrwit, se desculpando. —
Realmente, eu não vi...
— Não se desculpe. Sei que nunca ouviu falar do filme, ou de mim.
— Do filme já ouvi — ela reconheceu.
— Mas de mim não? Bem, não faz mal... Não estou me vangloriando, fique
sabendo. Só disse quem era. Agora você já sabe. E você, quem é?
— Nós não somos americanas...
— Prefere continuar anônima? Tenho certeza de que já a vi em algum lugar.
Você é uma mulher famosa por causa de alguma coisa. Minha intuição é infalível e

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minha memória fantástica. Agora, olhando para você assim...
— Precisamos ir andando — disse Renée, levantando-se rapidamente.
Oriel chamou o carro com um aceno e o motorista encostou-o na frente do
restaurante. Lee Tyrwit se levantou também e colocou as mãos na cintura. Oriel sorriu.
— Prazer em conhecê-lo. Até logo...
— Até a vista. — Ele riu. No carro, Renée comentou:
— Não gosto de ser abordada por desconhecidos desse jeito.
— Oh, Renée! — Oriel riu.
— Não vejo graça nenhuma nisso. Só o garçom garantiu que aquele rapaz é
ator e músico. Os dois podem ser cúmplices.
— Bem, não importa. Nunca mais o veremos.
Mas estava enganada. Duas noites depois, elas o encontraram jantando num
restaurante luxuoso. Ele parecia muito diferente, de terno escuro, camisa branca
impecável e gravata borboleta. A barba bem aparada e os sapatos de verniz brilhavam.
Oriel quase não o reconheceu.
— Estou com a vista fraca — queixou-se Renée. — Tem certeza de que é o
mesmo homem?
— Certeza absoluta.
Nesse instante, ele se virou e as viu. Um sorriso iluminou seu rosto. Levantou-se
e foi até a mesa delas, deixando sua linda acompanhante sozinha.
— Prazer em revê-la. — Ele fez uma pequena mesura diante de Oriel. — Eu
disse até a vista, não foi?
— O mundo é pequeno...
— Posso ter a ousadia de convidá-la para dançar? — Ele indicou a pista de
dança onde alguns casais acompanhavam o som romântico do conjunto.
— Obrigada, mas eu...
— Oh, venha.
— Você se importa? — Oriel olhou para Renée.
— Você é quem sabe, querida.
— Pense na minha reputação —ele disse — Vou ficar envergonhado se for
rejeitado assim...
— Muito bem. Vamos. Seguiram juntos até a pista e começaram a dançar. A
música do conjunto era suave e harmoniosa. Ele abaixou o olhar, admirando o rosto de
Oriel.
— Já está pronta para me dizer quem é?
— Sou uma mulher misteriosa. —: E a sua mãe?
— Minha sogra...
— Oh, eu não sabia. É mesmo uma pena. Parece que dei uma gafe. Ela vai
contar a seu marido?
— Ele está morto.
— Nossa! Eu só dou fora. Faz tempo?
— Dois anos.
— E você ainda está livre? Ou seu marido era um homem fanático eu você é
muito exigente.
— Acho que as duas são verdadeiras.
— Sem dúvida. Você é uma das mulheres mais bonitas que já vi. Sabia?
— Obrigada.
— Adoro esse seu jeitinho inglês, essa frieza estranha... O seu cabelo e a sua
pele são divinos. Quero namorar com você.
Oriel começou a rir, encarando Lee.

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— Você não perde tempo, não é?
Nesse instante, a luz de um flash iluminou a pista. Oriel e Lee pararam de
dançar. Ela viu, chocada, que um fotógrafo tinha tirado uma fotografia dos dois juntos.
— Oh, não! — exclamou, contrariada.
— Não se preocupe — ele disse, tentando acalmá-la. — Eles só estão
interessados em mim. Garanto.
— Isso é o que você pensa Sr. Tyrwit. Acho que está na hora de ir embora.
Obrigada pela dança, e boa noite.
Ele acompanhou-a até a mesa.
— Escute não se aborreça... Não quer ficar mais um pouco? Posso pagar um
drinque?
Renée já estava de pé, nervosa e fria. — Boa noite — disse também irritada.
Pouco depois as duas saíam do restaurante, nervosas e de cabeça erguida, sem
olhar para trás. O motorista esperava ali perto.
— Foi uma pena — disse Renée, já sentada no carro. — Detesto aparecer
nesses jornais sensacionalistas.
— Eu também.
Egon sempre tinha procurado isolar a família de qualquer publicidade. Oriel
sempre se sentira bem sob essa proteção. Agora, ela desejava que o fotógrafo não a
tivesse reconhecido.
Mas, no dia seguinte, viu a fotografia no jornal. Ficou irritada com a matéria, que
chegava a sugerir até que eles tinham a intenção de casar.
Os aborrecimentos, porém, não terminaram aí. O telefone tocou a manhã inteira.
Queriam que Oriel desse entrevistas para revistas femininas, e de cinema. Para se livrar
dessa agitação, ela avisou à telefonista do hotel que não atenderia mais ninguém.
— Aquele jovem só nos trouxe complicações — disse Renée, indignada.
— Também estou zangada com ele — concordou Oriel. Depois da morte de
Egon, ela não tinha sido mais incomodada pela imprensa e, por isso, ficou com raiva por
ter de enfrentar esse problema de novo. Achou que nunca devia ter dançado com Lee
Tyrwit.
Elas almoçaram no quarto do hotel. Renée comeu pouco e depois foi se deitar
para descansar, dizendo que estava exausta de tantas visitas turísticas. Tentando
remediar a situação, Oriel sugeriu que descansassem num lugar bem tranqüilo.
— Que tal um hotel isolado nas montanhas, perto de um lago?
— Acho uma boa idéia! — Renée suspirou, retirando-se.
Uma hora depois, Lee Tyrwit tocou a campainha da suíte com um enorme cesto
de flores na mão. Quando Oriel abriu a porta, ele sorriu um pouco constrangido.
— Vim fazer as pazes. Por favor, não bata a porta na minha cara.
— Espero que ninguém tenha visto você com essas flores monstruosas — ela
respondeu, olhando irritada para o cesto.
— Um rapaz da floricultura trouxe as flores até aqui. Mas acho que já me viram
subindo. A rapaziada da imprensa não pára de me perseguir.
— Minha sogra está descansando. Não posso conversar muito tempo.
— Escute Sra. Mellstock, eu só vim aqui para me desculpar. Devia ter dito quem
era, e eu teria tomado mais cuidado. Pensei que fosse alguma atriz inglesa querendo
vencer por aqui. Nunca imaginei que fosse uma gata tão rica.
Oriel não conseguiu deixar de rir ao ouvir essa expressão.
— Não foi culpa sua, Lee. Por favor, esqueça tudo isso. Vou voltar para a
Inglaterra.
— É uma pena — ele disse, com sinceridade. —• Foi um prazer conhecê-la.

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— Obrigada. — Ela já sorria. — Gostei de conhecê-lo, também. Depois que Lee
foi embora, ela ficou na janela, olhando a cidade.
Sentia uma saudade imensa de Yorkshire. Tinha viajado para fugir de Devil e
agora só queria voltar.
Quando será que vou me encontrar? Pensou. Vivo indo de um lugar para o
outro, sem descanso. Quero sempre estar em movimento. O que está errado? Ela olhou
para as flores que Lee deixara na suíte. Eram lindas, mas ela sabia que uma flor
silvestre, dos campos de Chantries, lhe daria mais prazer.
Não era uma mulher sofisticada da cidade. Durante vários anos tinha vivido com
um milionário, vestindo-se e comportando-se como uma grande dama. Mas, em seu
íntimo, ainda era a adolescente de rabo-de-cavalo que Devil adorava. Uma parte de
Oriel nunca abandonara Chantries.
Lembrou-se da natureza encantadora da região de Torby; os morros verdes, as
flores, as pedras, árvores e todos os pássaros e animais. Pensou nas pessoas de sua
infância. Sentia-se perseguida pelo passado, sempre querendo voltar a ele, revivê-lo...
Renée sentia-se melhor depois da soneca. Quando saiu do quarto, viu o cesto
de flores.
— Acho que sei quem esteve aqui...
— Ele veio se desculpar, Renée.
— Fez bem! E agora? O que vamos fazer?
— Acho melhor eu voltar para a Inglaterra — Oriel disse hesitante.
— Minha querida, você acabou de chegar. Parece uma gata sobre um teto de
zinco quente. Sabe de uma coisa? Você sugeriu que passássemos uns dias num hotel
das montanhas. Pois vamos fazer isso.
Alguns dias depois elas estavam tranqüilamente instaladas em
espreguiçadeiras, diante de um lago azul nas montanhas, observando o vôo dos patos
selvagens. — Assim está muito melhor! — René suspirou. — Está feliz, querida?
— Muito. A vista não é linda? Parece um trecho dos Alpes austríacos.
— Tem razão. Ainda bem que os patos selvagens ainda não foram extintos,
nesta região, não acha?
— Claro.
— Vamos ficar aqui mais algumas semanas, depois pegamos o avião para casa.
Chegaremos para as férias de Anatole. — Renée fazia planos, satisfeita. Depois,
recostou-se na espreguiçadeira e fechou os olhos.
Com tristeza, Oriel reparou em seu rosto. Parecia que ela não tinha mais muito
tempo de vida. Precisava ser protegida e não podia gastar suas últimas forças dando a
volta ao mundo sozinha.
O pai de Oriel tinha morrido há alguns anos e ela quase não tinha parentes da
família Haggard. Restava o primo Jack, que não gostava dela, e Clare, que estava muito
doente. Oriel sentiu-se muito sozinha no mundo.
Preciso cuidar de Renée, ela pensou angustiada. Renée e Anatole são a minha
família.
Os dias passaram tranqüilos, Sempre ensolarados, com um vento fraco que
embalava as árvores frondosas. Oriel e Renée descansaram bastante. Renée passou
quase todo o tempo comendo e dormindo, e Oriel dedicou-se a fazer a sogra feliz. Para
ela, cada dia longe de Chantries era um dia perdido, mas ainda assim cuidava com
prazer de Renée.
Por fim chegou a hora de voltar para a Inglaterra. A Sra. Weedon e Íris fizeram
as malas e compraram inúmeras lembranças turísticas. Para elas a viagem tinha sido
um êxito total; estavam felicíssimas.

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O vôo foi cansativo e Oriel ficou preocupada com Renée, que estava um pouco
tensa. Mesmo assim, conversando sobre as férias, não sentiram o tempo passar.
Ficaram espantadas quando viram que o avião já sobrevoava o aeroporto de Londres.
Decidiram passar a noite no apartamento de Renée antes de ir ao internato
pegar Anatole. Oriel colocou a mão sobre o ombro de Renée e disse:
— Acho melhor eu buscar Anatole sozinha. Você está tão cansada, querida.
— Concordo Oriel. — Renée suspirou-
Anatole estava mais adulto e parecia ter crescido. Sua conversa também estava
diferente. Falava muito sobre futebol, sobre regras técnicas do jogo e chamava os
amigos pelo sobrenome, como era hábito no internato.
— Você é muito jovem para ser mãe — ele comentou um pouco contrariado. —
A maioria dos rapazes da minha turma tem mães gordas e velhas.
— Não posso mudar minha aparência, meu filho! — ela brincou.
— Você parece até que é minha irmã. Posso dizer a meus colegas que você é
minha irmã? Fico encabulado de ter uma mãe tão jovem. — Ele franziu a testa. — E por
que você está saindo com aquele artista de cinema? Vi sua foto numa revista. Não
gostei da cara dele.
— Oh, Anatole! — Oriel corou. — Só encontrei aquele homem duas vezes. A
reportagem foi toda inventada pelos jornalistas.
— Ainda bem... — ele murmurou. -— Como vai a vovó? — Está bastante
cansada da viagem.
Renée recebeu Anatole de braços abertos no apartamento. Ela contou diversas
histórias da viagem, divertindo o neto com as descrições dos costumes dos países que
ele não conhecia.
As férias do meio do semestre eram curtas. Os poucos dias passaram logo;
foram suficientes apenas para matar as saudades de Oriel e Renée. Enfim, equipado
com chuteiras novas e uma bola de futebol, Anatole se aprontou para voltar ao internato.
Enquanto Oriel o levava de carro, ele comentou:
— Gosto do Sr. Kennet, mas ele parece um professor, não acha mamãe?
— Tem razão — ela concordou, com um sorriso, pensando na aparência e no
comportamento formal de Alan.
— Você... Você não vai casar com ele, vai?
— Não, não vou. Tenho certeza. Anatole pareceu aliviado.
Oriel despediu-se emocionada dele e voltou para o apartamento. Sentia cada
vez mais que Anatole se tornava adulto e menos dependente dela. Isso a entristecia,
mas, ao mesmo tempo, ficava satisfeita de admirar sua independência.
Ficou alguns dias com a sogra em Londres. Renée já tinha retomado sua rotina:
ia ao cabeleireiro, comprava livros, ia ao cinema de vez em quando e jogava bridge com
as amigas. Estava refeita do cansaço da viagem.
Certa manhã, inesperadamente, Oriel recebeu um telegrama de Devil. Ela leu o
telegrama, mas não acreditou nele. Sentiu-se tonta e apoiou a mão na mesa para não
cair. Sentando-se no sofá, releu a mensagem. Seu corpo começou a tremer, como se
ela estivesse com febre. Renée observava Oriel, preocupada.
— O que aconteceu? Alguma notícia ruim?
— Minha prima Clare morreu.
— Sua prima Clare? — Renée não conhecia os parentes de Oriel, por isso a
morte de Clare nada significava para ela.
— Preciso voltar para Torby.
— Para o enterro?
—Sim. Vou ao enterro.

49
Algumas horas depois, ela guiava rumo ao norte, ainda pensando no telegrama.
Devil tinha escrito apenas três palavras: "Clare está morta",

50
CAPÍTULO VII

— Querida, aconteceu tão de repente — disse Joan Warne, com pena de Oriel.
— Estou tão triste! — Oriel suspirou. Ela estava emocionalmente exausta. O
enterro tinha sido cansativo e tenso. Devil se manteve cabisbaixo, aceitando os
pêsames com apertos de mão. Tudo foi feito de acordo com as formalidades habituais
da região. Até o tempo em Yorkshire colaborou, fazendo um daqueles dias úmidos,
cinzentos e frios.
O Dr. Warne levantou o queixo de Oriel e observou seu rosto.
— Parece que você está precisando de férias.
— Acabei de ter férias, Phil.
— Se você é igual à minha esposa, provavelmente trabalha mais nas férias do
que em casa. Descanse alguns dias.
— Ora, Phil, que exagero. Você não sabe que nunca trabalho demais? Na
verdade estou precisando de trabalho, não de férias.
— Você é quem sabe. — Ele encolheu os ombros. — Gostaria de ver esses
olhos verdes brilhando de novo.
— Yorkshire vai realizar esse milagre. Já ouvi dizer que Hezekiah quer que eu
coma na pensão. Ele acha que emagreci.
— Tome cuidado. — Phil riu. — Hezekiah acredita que uma refeição nutritiva é
um prato cheio de mingau, com gosto de cola.
— Ele me faz pensar no passado. Me lembro de quando era menina. Uma vez
entramos na despensa da pensão, durante a noite, e penduramos um rato morto entre
os coelhos e as perdizes. Ele costumava deixar a caça pendurada dias na despensa,
antes de cozinhá-la.
— O que ele achou do rato? — Phil morria de rir com a história.
— Ele sabia quem tinha feito aquilo. Por isso colocou o rato como recheio de
uma empada. Quando aparecemos, ele nos ofereceu a empada.
— Que horror! Vocês não comeram, não é? Que brincadeira horrível, isso não
se faz com crianças, não acha?
— Não é tão fácil enganar Devil Haggard. — Oriel riu. — Devil logo desconfiou
quando viu a empada. Ele olhou para Hezekiah e disse: "Obrigado, vamos dar a empada
ao padre".
Joan e Phil Warnes riam sem parar.
— E o que disse Hezekiah? — perguntou Joan, curiosa.
— Ele empalideceu, tirou a empada das mãos de Devil e começou a xingar.
Pegamos um pedaço de bolo que estava em cima da mesa e saímos correndo. — Oriel
suspirou. — Nós nos divertíamos muito, nessa época.
— Agora entendo por que Devil ganhou esse apelido — comentou Phil.
— A mãe dele parece ser uma boa mulher. É difícil imaginá-la sendo uma... —
Joan não terminou a sentença, ao ver a careta de Phil.
— Joan! Não faça fofoca! — Phil reprimiu.
— Sei o que Joan quis dizer. — Oriel sorriu. — É difícil entender Ann Dervil. Mas
todos nós fazemos coisas loucas quando somos jovens. Os Dervil sempre tiveram um
comportamento fora do comum. São selvagens e imprevisíveis. .
Mais tarde, quando voltava para Chantries, Oriel ergueu o olhar na direção da
Devils Leap e pensou no mistério da vida de Ann Dervil. Por que seu tio tinha se
recusado a casar com Ann quando ela estava grávida? Por que ele nunca reconheceu
Devil como filho? Por que o expulsava? Tudo isso era muito estranho. Tio Jeremias tinha
sido um homem duro, mas ele não costumava agir sem bons motivos.

51
Em Chantries, Oriel admirou encantada, o progresso da reforma. As obras na
estrutura já estavam prontas e os decoradores davam os toques finais no trabalho.
Ela deu uma volta pela casa, examinando os quartos com satisfação. Agora
Chantries tinha renascido.
Oriel planejava fazer uma festa, para todas as pessoas de Torby, comemorando
o fim das obras. Já tinha conversado sobre isso com os Warne. Joan até sugeriu que a
ocasião seria ótima para reunir fundos para a escola da vila.
— A falta de verbas está prejudicando a escola — Joan tinha comentado. —
Precisamos de um pequeno ônibus, por exemplo, par o transporte das crianças.
— Vou dar uma piscina para elas —: Oriel havia dito.
— Quanta generosidade! A piscina é um luxo, ainda acho que o ônibus é mais
necessário.
— Doarei o ônibus também. Organizarei a Festa do Dia Aberto de Chantries e o
dinheiro arrecadado será doado para as despesas de manutenção da escola.
— Está falando sério? — Joan mal acreditava no que ouvia.
— Claro. Quero fazer alguma coisa pelas crianças. Acha que o pessoal da vila
vai concordar?
— Se vão concordar? Claro que vão! Ficarão encantados. Mas acho que
precisamos organizar isso direitinho. As pessoas da vila com certeza gostarão de
participar do projeto.
Oriel esperou, sorrindo. Ela já tinha entendido que Joan gostava de organizar as
coisas.
— Já sei! — Joan tinha exclamado. — Se você quer fazer um Dia Aberto de
Chantries, escolha um que combine com uma festa tradicional da vila. Armaremos
barracas para comidas, bebidas, artesanatos e brincadeiras. Assim todos colaborarão.
As mulheres farão as comidas.
Agora, olhando para as portas e janelas recém-pintadas de Chantries, Oriel
sorriu pensando na festa de inauguração. Chantries se transformaria num orgulho para a
região inteira. E ela queria se integrar com o povo da região. Os Haggard sempre tinham
sido pessoas destacadas, importantes; nasciam, viviam e eram enterrados em Torby.
Todos os conheciam, eles conheciam todos. Os boatos sobre a vida dos Haggard
sempre divertiam a vila. Amados ou odiados, eles eram os líderes da região.
No dia seguinte, Oriel subiu o caminho estreito até Devil's Leap com a intenção
de visitar Ann Dervil e Linnette. O vento do outono já castigava os morros, e as chuvas
tinham enchido os riachos e as cachoeiras. Folhas secas voavam pelo caminho, na
longa e tortuosa subida.
Uma fumaça cinza azulada saía da chaminé da casa. Quando Oriel bateu na
porta da frente, Ann apareceu, enxugando as mãos molhadas no avental.
— Imaginei que você viria — ela disse simplesmente.
— Posso ver Linnete? Não acha que tenho o direito de visitá-la?
— O que eu acho não tem importância. É melhor você falar com o pai dela.
— Onde é que ele está?
— Cuidando dos carneiros.
Oriel olhou para o morro íngreme, cheio de pedras e com um pasto para
carneiros e ovelhas.
— Lá em cima?
— É. — Ann olhou as roupas de Oriel. — Você vai sujar sua calça.
— Vou subir e falar com ele — disse Oriel, erguendo o queixo, com um olhar de
desafio.
— Pois é. Achei que você iria.

52
Elas ficaram olhando uma para a outra. Oriel corou e seus olhos verdes
interrogaram a mãe de Devil. Ann conhecia o passado. Ela sabia de tudo que tinha
acontecido entre Devil e Oriel. Mas será que conhecia o presente também? Guiada pelo
instinto, Oriel perguntou de repente:
— Por que a senhora teve um filho do meu tio? Vocês se amavam?
— Isso e da sua conta? — Ann reagiu fria.
— Não. Não é, desculpe.
Ela se virou, mas a voz de Ann, tranqüila e sem emoção, soou, como se
estivesse falando sozinha.
— Quando eu tinha dezoito anos, era noiva de um pastor. Ele era um homem
bom, cuidadoso e prevenido. Eu quase não o via. As ovelhas viviam mais perto dele do
que eu. Um dia, encontrei Jeremias embaixo, no parque, cavalgando um garanhão
preto, parecido com esse que Devil tem agora. Jeremias olhou para mim e eu olhei para
ele. E tudo aconteceu assim, de repente. Pouco depois percebi que estava grávida...
Fiquei desesperada. Jeremias estava em Londres, a negócios. Contei para meu noivo
tudo o que tinha acontecido e desmanchei o noivado. Ele ficou com muita raiva, mas não
disse nada. Quando Jeremias voltou, fui procurá-lo. Ele não quis falar comigo e me
xingou. Parece que meu noivo tinha ido atrás 'dele e dito que eu dormia com ele também
e que eu dizia que o filho era de Jeremias só porque ele era mais rico. Infelizmente, ele
acreditou no pastor. E eu perdi os dois homens da minha vida.
— Mas por que não contou a verdade? — Oriel estava chocada.
— Se Jeremias não tinha confiança em mim e se acreditava naquelas mentiras,
eu não podia ficar com ele. Por isso nunca casei e ele também não casou.
— Talvez ele continuasse amando você.
— Pode ser. — Sua voz não traía emoção.
— Mas... Isso é um absurdo... Não se pode deixar o orgulho impedir a felicidade
desse jeito.
— Jeremias e eu não teríamos combinado. Nunca fui feita para ser a dona de
uma mansão daquele tamanho. Ele viveria envergonhado, ficaria triste porque não
poderia me apresentar a todos. A separação não foi por orgulho, foi obra do destino.
Ann se virou e entrou em casa, fechando a porta. Oriel atravessou o jardim,
impressionada. Ela tinha reconhecido em Ann o mesmo orgulho que já vira em Devil. Até
quando os Dervil desafiariam o destino? Continuariam sempre dispostos a sacrificar
suas vidas para não ferir o orgulho?
Oriel começou a escalar o morro, procurando Devil no pasto, com um vento forte
embaraçando seus cabelos soltos sobre os ombros. As nuvens voavam velozes no céu
azul. Ela se sentia perto do céu, naquela montanha.
Pouco depois, viu Devil andando entre os carneiros e as ovelhas, cuidando dos
animais. Ele usava uma camisa branca, limpa, e calças remendadas. Os cabelos pretos
esvoaçavam, embelezando o rosto másculo.
De repente, ele a viu e parou. Ela chegou mais perto, um pouco amedrontada
diante daquele olhar enigmático.
— Bem? — ele começou.
— Quero conhecer Linnete. Devil, ela é filha da minha prima. Tenho o direito...
— Já falei que você não tem direitos aqui na minha terra, não entendeu?
— Devil, por favor.
— Está pedindo, Sra. Mellstock? — Pelo amor de Deus!
— Está pedindo?
— Sim — ela cedeu. — Já que é preciso, estou pedindo, por favor.
— Você precisa pedir sempre — ele continuou severo e impassível. — Já avisei

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que você e eu só faremos acordos nesses termos.
— Então, por favor, me deixe vê-la.
— Muito bem. — Seus olhos azuis faiscaram vitoriosos. — Você pode visitá-la
uma vez por semana,
— Posso levá-la para Chantries de vez em quando?
— Não. Pode visitá-la, mas ela não vai descer.
Oriel viu que não adiantaria discutir. Por enquanto já tinha autorização de visitar
Linnete, e isso bastava. Pensou no orgulho de Ann Dervil e nos sacrifícios que aquela
mulher havia feito por causa disso. Oriel não tinha a intenção de agir igual a ela. Se
Devil fazia questão que ela subisse para visitar a sobrinha, faria isso. Achava que
Linnete precisava de mais amor e carinho do que aquele homem rude seria capaz de
dar.
Oriel continuou parada, indecisa.
— Mais alguma coisa? — Devil perguntou.
— Vou fazer uma festa em Chantries quando a reforma acabar. Quero convidar
você, sua mãe e Linnete.
— Ouvi dizer que você convidou a vila inteira.
— Sim. Achei uma boa idéia mostrar como ficou a mansão.
— Você está querendo exibir o que o seu dinheiro comprou — ele disse
sarcástica.
— Não! Eu quero partilhar Chantries com todos.
— Você quer ver todos admirando a força do seu dinheiro. Não esqueça que seu
dinheiro foi o adubo que fez aquela mansão monstruosa renascer.
— Ora, já que não gostou do convite, não precisa ir.
— Eu não ia mesmo. Não gosto de obras de caridade e nunca adorei o dinheiro.
— Dizem que os Haggard são orgulhosos — Oriel retrucou ofendida. — Mas os
Dervil são muito mais orgulhosos do que os Haggard!
— Somos orgulhosos, sim, com muita honra! — ele disse sorrindo e, olhando
para ela com desdém, continuou: — Pensou que minha mãe e eu iríamos à terra dos
Haggard, como os outros, para prestar nossas homenagens ao dinheiro? Que idéia Oriel
Mellstock!
— Você já veio muitas vezes na terra dos Haggard — ela provocou.
— E vou continuar indo.
— Tome cuidado para não levar um tiro.
— Já disse uma vez, Oriel: não tenho medo do seu tiro. Quer que eu fique
assobiando para você não errar o alvo?
— Não entendo você.
— Então comece a aprender...
— Não quero!
— Faça como quiser. Você pode errar à vontade. Não me importo. Ela sentiu
vontade de esbofeteá-lo. As pontas de seus dedos ardiam.
Ele notou as mãos de Oriel contraindo-se, nervosas, e sorriu.
— Não tente me bater, Sra. Mellstock. Não tente porque terei o maior prazer em
revidar. Lembre-se disso!
Ela lembrou-se e corou, com raiva.
— Você. . Você é um machão!
Enquanto Devil dava uma gargalhada, Oriel desceu correndo a encosta íngreme.
Quando ela escorregou no capim úmido, sujando a calça, ele riu ainda mais. Ela
levantou logo, não olhou para cima e continuou correndo até sumir de vista.
Naquela noite, quando Oriel já estava deitada na cama, ouviu Devil assobiando

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lá fora. Irritada, saiu da cama, vestiu o roupão de lã e pegou a espingarda.
Era uma noite clara. A lua prateava o parque, velejando entre as nuvens.
Quando ela abriu a porta da frente, Devil se escondeu entre as árvores. Oriel
olhou na direção do eco do último assobio, depois virou de costas porque o ruído agora
vinha de outro lado. Com raiva, atirou naquela direção contra a escuridão. O tiro a
assustou e, durante alguns instantes, deixou-a surda. Depois ela ouviu o assobio
irritante de novo, agora do lado direito.
— Vá para o inferno, Devil Haggard! — gritou e voltou para dentro de casa.
Uma gargalhada zombeteira respondeu a seu grito e ecoou nas árvores,
enquanto ela batia a porta.
Louca da vida, Oriel tirou o roupão e voltou para a cama. Ele podia continuar
assobiando a noite inteira, se quisesse. Ela não pretendia mais participar daquela
brincadeira.
O último pensamento de Oriel, antes de dormir, foi que ele acabaria pegando
uma pneumonia, se continuasse passando as noites no parque.
Na manhã seguinte, Oriel recebeu um convite de Joan Warne para almoçarem
juntas. Phil demorou a chegar do trabalho, pois às vezes precisava visitar pacientes no
campo, a muitos quilômetros de Torby.
— Acho melhor começarmos a comer. Parece que Phil não vem — disse Joan.
— Provavelmente vai comer na casa de algum paciente.
— Onde estão as crianças?
— Na escola. Elas almoçam lá. É claro que poderiam vir almoçar em casa, mas
os amigos almoçam na escola e elas detestam ser diferentes.
Pensando no comportamento de Anatole, Oriel concordou.
— Eu sei como é, Joan. Outro dia, meu filho me disse que nem pareço ser mãe
dele,
— Não parece ser mãe? E por quê?
— Anatole acha que as mães não podem ser magras e jovens. Na escola dele a
maioria delas são velhas e gordas. Parece que ele tem vergonha de ser visto comigo.
— Eu não disse que as crianças são absurdas? Nem entendo por que temos
filhos. — Joan serviu a comida. — Tome cuidado, a sopa está quente. Mas é muito
nutritiva.
— Meu Deus! Você é uma ótima cozinheira — exclamou Oriel, depois de provar
a sopa.
— Obrigada. Não se esqueça de dizer isso a Phil.
— Com certeza ele já sabe.
— Nunca é demais chamar a atenção do marido para as qualidades que temos.
— Joan riu. Depois de uma pausa, encarou Oriel: — Eu tinha um outro motivo para
convidar você para almoçar hoje.
— Qual é?
— Bem, você tem se mostrado tão interessada nos problemas de Torby... Por
isso achei que talvez queira ser ainda mais útil à nossa comunidade.
— Atualmente, estou bastante ocupada com o trabalho da mansão... Mas se
você está mesmo precisando de ajuda, posso tentar ser útil.
— Que maravilha! Em seu lugar eu pensaria em participar da política local.
Precisamos de novos vereadores. Depois que tiver reconstruído Chantries, você será
muito bem-vinda na política.
— Não, isso realmente não me interessa... Acho que o trabalho de caridade
— É claro que isso também é muito importante. — Ela tirou os pratos de sopa e
serviu carne, batatas e legumes cozidos. — Você se lembra do velho Joe Murgatroyd,

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que mora na Mansão Burwash?
— Vagamente.
— Ele estava contando dos bailes maravilhosos que faziam antigamente em
Chantries. Disse que usavam o salão maior. Os bailes eram com candelabros, cortinas
de damasco, música romântica... Ele parecia estar com saudade daquela época.
— Já ouvi falar desses bailes. — Oriel sorriu. — Posso fazer um também.
— É mesmo? Oh, Oriel, isso seria ótimo para a gente arranjar dinheiro para os
nossos pobres.
— Não, não para arranjar dinheiro, Joan. Só para fazer amizade com as
pessoas da região.
— Não consigo imaginar Hezekiah ou Ana dançando em Chantries...
— Acho que eles sentiriam vergonha. Eu estava pensando em gente como o
Sr. Murgatroyd e suas netas. Elas devem ter a minha idade, não é?
— Posso ajudar a fazer a relação dos convidados... — Joan disse.
— Então faça. Será divertido, não acha?
— Muito! Conheço um conjunto da região que pode tocar no baile.
— Prefiro trazer um de músicos profissionais de Londres. O Natal é uma boa
época para um baile, não acha?
— É Natal ou Ano-Novo...
— Claro, no Ano-Novo! Perfeito. Teremos um baile de Ano-Novo em Chantries.
Joan até esqueceu de servir o resto da comida. Ela só pensava na festa
programada.
— Não teremos muito tempo para organizar tudo, Oriel.
— Será que não vai dar?
— Nada é impossível! — filosofou Joan.
Enquanto saboreavam a sobremesa, elas conversaram animadamente sobre os
preparativos necessários. Estavam tão compenetradas que nem notaram a chegada de
Phil.
— Pelo jeito, vocês estão planejando alguma travessura —> Phil brincou,
entrando.
As duas tentaram responder ao mesmo tempo e acabaram rindo juntas.
— Vamos, Joan, conte para ele — disse Oriel.
Joan contou tudo o que elas tinham planejado e Phil sorriu.
— Acho que você vai ser muito bajulada nos próximos meses, meu amor.
— Por quê?
— Já pensou em quanta gente vai querer se divertir em Chantries? Cada convite
será disputadíssimo. E como é você quem vai escolher os felizardos...
— Vou dar um jeito de contentar a todos, Phil.
— Joan tem ambições políticas, Oriel. Acho que ela vai acabar se candidatando
a um cargo de vereador do município. — Phil sorriu.
— Ora, Phil, não brinque assim comigo. — Joan corou e fitou Oriel. — Não ligue
para ele, Oriel. Quando falo de política ele sempre começa a brincar.
Voltando de Rolls-Royce para Chantries, Oriel invejava a relação calorosa do
casal. Joan e Phil eram pessoas simpáticas, e tinham um casamento feliz e sem brigas.
Quando saiu da casa deles e começou a dirigir o carro em direção a Chantries, Oriel
sentiu insegurança e medo. A casa do médico representava segurança e tranqüilidade.
Enquanto a sua... Estremeceu só em lembrar de Devil rondando o parque.

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CAPÍTULO VIII

A primeira vez que foi passar o dia com Linnete em Devil's Leap, Oriel encontrou
a menina sentada na grama, esperando que Jéssica a levasse para passear. Linnete
estava bem agasalhada, usando calça vermelha e um suéter cinza com capuz. Viu Oriel
chegando e pareceu espantada e curiosa. Ela aproximou-se, devagar.
— Lembra-se de mim?
— Vi você um dia.
— Sou sua tia Oriel.
— Eu sei. — Linnete a olhava desconfiada.
— O seu pai lhe contou que virei vê-la uma vez por semana?
— Não — disse uma voz hostil, atrás de Oriel. — Eu contei a Linnete.
Oriel voltou-se e deu de cara com Jéssica. A enfermeira parecia nervosa e
irritada. As faces coradas e seu tom de voz provavam isso.
— Olá — cumprimentou Oriel, com frieza, voltando a olhar para Linnete.
Jéssica sentiu-se ofendida com esse comportamento e começou a agredir Oriel:
— Sim, avisei Linnete que a prima da mãe dela tentará roubá-la da casa onde
mora e de perto do pai. Só falei a verdade. Ela é suficientemente grande para entender
que foi por culpa dos parentes ricos que a mãe dela ficou doente e morreu. As crianças
não têm medo da verdade. Elas só não suportam mentiras e hipocrisia.
— Clare morreu porque estava doente — Oriel respondeu calma, encarando
Linnete. — Eu gostava da sua mãe e gosto de você, Linnete...
— Você gosta mais do pai dela. — Jéssica parecia louca de ódio.
Oriel empalideceu e apertou os lábios. Esforçando-se para não perder o
controle, disse em voz baixa a Linnete.
— Vá avisar sua avó que cheguei. Diga que quero falar com ela. Jéssica tentou
segurar a menina, mas Linnete foi mais ágil e escapou, desaparecendo dentro da casa.
— Você é mesmo esperta, não é? — Jéssica não sabia mais o que fazer.
- Você não devia falar essas coisas para a menina — retrucou Oriel, tensa.
— É claro que você não quer que ela saiba a verdade — Jéssica disse
agressiva. — Você e o pai dela! Um dia Linnete vai descobrir que Devil é o maior
mulherengo da região. Todas as mulheres se apaixonam por aquele demônio.
Oriel não respondeu.
— Ele só quer a sua casa — Jéssica continuou impiedosa. — Só pensa nisso.
Casou com Clare por causa da casa e agora quer casar com você. Se eu fosse a dona
de Chantries, ele casaria comigo, tenho certeza. — Seu rosto estava transformado pelo
ciúme e pela inveja. — Você nem sabe como Devil olha para mim... Ele me deseja, ele
me quer, ele não está interessado em você.
— O que está acontecendo aqui? — Ann Dervil interrompeu bruscamente a
enfermeira.
— Você sabe! — Jéssica gritou histérica. — Conte a verdade. Você viu como ele
me beijou! Na semana passada ele me beijou. Fale a verdade!
Ann deu um tapa no rosto de Jéssica.
— Você está falando besteira. Cale a boca! Jéssica começou a chorar.
— Você defende seu filho... Dá para entender. Você também tentou ficar com
Chantries, não foi? Mas aquele velho sabido não quis saber disso... E só para se vingar,
você convenceu seu filho de que aquela casa devia ser dele...
— Vou ensinar você a calar a boca. Como ousa falar comigo desse jeito? Saia
daqui, fofoqueira danada.

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Jéssica olhou para Ann, sentindo-se ameaçada. Depois fez um ar de desafio.
— Só vou embora quando ele mandar. Devil me pediu para ficar depois que
Clare morreu. É ele quem paga meu salário, não você.
— Quando eu contar a ele que você andou inventando mentiras para Linnete,
você vai ver... Terá sorte se conseguir sair daqui sem apanhar — Ann Dervil avisou.
Jéssica fugiu, chorando. Oriel sentiu-se mal com a cena. Queria ir embora
daquele lugar.
— Linnete está esperando você lá dentro — disse Ann, em voz baixa. — Está no
quartinho dela. Avisei que você ia subir.
— Como será que ela está? Eu me lembro como detestava ver as brigas dos
adultos quando era pequena. Me faziam ficar tão triste!
— Com Linnete é a mesma coisa. Mas já que você resolveu conhecê-la melhor,
é bom começar agora. Ela está esperando.
Oriel entrou na casa e foi até o quarto pequeno, que antes tinha sido de Devil. A
vista da janela dava para o lado do penhasco e para o morro cheio de pedras. Parecia
uma paisagem desoladora nos dias de inverno, mas no verão a natureza brilhava era
todas as cores.
Linnete estava sentada no chão do quarto, abraçando uma boneca de pano.
Oriel perguntou:
— Posso entrar?
Ela não ergueu o olhar, apenas fez que sim com a cabeça.
— Você gosta de dormir neste quarto? — Oriel sentou na beirada da cama.
Linnete olhou para a janela, com expressão pensativa. Oriel sorriu, vendo os
olhos da menina brilharem como os de Devil.
— O seu pai dormiu aqui. Ele gostava de acordar de manhã bem cedo, quando
os passarinhos começavam a cantar. Adorava continuar deitado, olhando para o céu,
vendo os passarinhos voarem de um lado para o outro.
— Faço isso também — disse Linnete, baixinho. — Papai nunca me contou.
— Talvez ele tenha esquecido. As pessoas grandes às vezes esquecem de
contar as coisas importantes.
— Você morou aqui?
— Não. Eu morava em Chantries.
A tristeza invadiu o rosto de Linnete como uma sombra. Oriel ficou com raiva por
Jéssica ter inventado tantas mentiras para a menina. Achou que seria melhor falar do
passado com toda a franqueza.
— Sua mãe e eu moramos juntas em Chantries, durante algum tempo. Éramos
primas e amigas. . Depois ela casou.
— Por que você não continuou morando lá?
— Viajei para a África. É uma terra que fica muito longe da Inglaterra.
— Por quê?
— Meu pai morava lá e eu queria morar com ele.
— Onde está seu pai agora?
— Ele morreu...
— Minha mãe também morreu.
— Eu sei. Também fiquei triste.
— Jéssica disse que você queria ver minha mãe morta.
— Isso não é verdade. Eu não queria vê-la morrer. Tentei ajudar, mas ela estava
muito doente.
— Ela sempre estava doente. Será que ela estava doente por minha causa?
Oriel olhou para o rostinho da menina, que refletia uma profunda angústia.

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— Por sua causa, queridinha? Claro que não. Jéssica disse isso?
— Mamãe disse. Uma vez quando ela estava... Muito doente. Ela disse que
ficou doente quando eu nasci que vivia doente por culpa minha.
Oriel agachou-se e abraçou Linnete, puxando-a contra si.
— Oh, Linnete... Sua mãe estava doente demais e não sabia o que dizia. Ela
amava você, tenho certeza. Amava muito. Ela não quis magoar você. A doença dela não
tinha nada a ver com você, eu juro.
Linnete ajeitou-se no colo de Oriel. Tentando se consolar, enfiou o polegar na
boca e começou a chupar o dedo. Oriel ergueu-a nos braços e, sem tirá-la do colo,
sentou na cama.
— Quer que eu conte uma história?
Linnete fez que sim. Continuava chupando o dedo com força.
Com voz suave, Oriel contou uma história sobre uma fada, uma menina e um
chapéu mágico. Linnete ficou tão fascinada que parou de chupar o dedo. Quando ela
terminou, a menina quis ouvir outra. Oriel improvisou uma engraçada, sobre um padeiro
gordo e um ganso.
— Está na hora do chá — avisou de repente Ann Dervil, parada na porta.
Linnete desceu do colo de Oriel e correu para a avó.
— Oriel me contou uma história engraçada.
— Você pode me contar enquanto tomamos chá. — Ann sorriu. — Gosto de
boas histórias.
As três tomaram chá juntas na cozinha, aquecida e aconchegante por causa do
fogão de lenha. Oriel observava Linnete, divertindo-se com a descontração da menina,
que comia sanduíches e bolo, tomando chá e conversando com a avó sem parar.
— Linnete não costuma falar tanto assim — disse Ann. — Sua visita fez bem a
ela.
Linnete e Ann acompanharam Oriel até o portão, para se despedirem. Oriel
beijou Linnete.
— Prometo que virei visitá-la uma vez por semana.
— Não pode vir todos os dias?
— Eu gostaria de fazer isso, Linnete.
— Vou pedir isso para o meu pai. Ele atende a todos os meus pedidos —
vangloriou-se a menina.
— Isso é verdade — confirmou Ann.
Oriel sorriu e se despediu. Quando alcançou o caminho no pasto, parou e olhou
para trás. Nesse instante viu Devil saindo de casa. Será que ele estava lá o tempo todo?
Ou será que tinha acabado de chegar do campo?
Na semana seguinte, Oriel voltou. Linnete a aguardava impaciente, no jardim.
Passearam um pouco juntas, colhendo flores e vendo os passarinhos comendo as frutas
do outono.
— Jéssica foi embora e não vai voltar mais. — Linnete estava contente. — Papai
gritou com ela. Ele ficou com raiva.
Oriel mudou de assunto:
— Chegou um parque de diversões na vila. Vi os caminhões descarregando o
material. Você vai lá?
— Um parque de diversões? — Linnete ficou entusiasmada. — Eu quero ir!
— Talvez seu pai deixe a gente ir juntas.
— Você me leva? Posso andar nos cavalinhos? Posso comer algodão-doce e
cachorro-quente?
Quando voltaram para casa, Linnete estava encantada com a idéia. Ela não

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falou de outra coisa enquanto tomavam chá.
— Garanto que Devil vai se aborrecer com essa idéia do parque de diversões —
comentou Ann.
— Ele gostava de parques quando era pequeno...
— Isso faz muito tempo. Tudo mudou muito...
Oriel voltou para Chantries na mesma hora de sempre. No começo do caminho,
olhou para trás e viu Devil parado no jardim da casa, olhando para ela. Oriel afastou-se,
sorrindo. Será que ele estava brincando com ela? Ou será que a vigiava?
Na semana seguinte, o parque de diversões já estava montado em Torby. Oriel
subiu o morro até Devil's Leap para ver se podia levar Linnete. Quando chegou, Ann
Dervil estava hesitante.
— Devil não disse não, mas também não disse sim...
— Linnete pediu?
— Ela pedia todas as vezes que via o pai. Mas ele não respondia. Não sei o que
fazer.
— Ele está aí?
— Não, saiu. -
— Então vou levá-la. Se ele quiser, pode brigar comigo depois.
— Se você se responsabilizar pela menina, eu concordo. Mas tome cuidado.
Devil é um osso duro de roer.
Linnete ficou tão alegre que Oriel esqueceu o risco que corria com Devil. As
duas desceram juntas até o parque. Assim que chegaram, Linnete quis fazer de tudo.
Andou de cavalinho, comeu pipoca, tomou refrigerantes... Tentou ganhar prêmios na
barraca de tiro ao alvo, jogou bolas em cocos e pescou peixinhos de plástico numa bacia
cheia de água.
Carregando uma porção de bugigangas, as duas já se preparavam para voltar
para casa quando encontraram Devil. O coração de Oriel disparou. Linnete correu ao
encontro do pai, feliz.
— Olhe papai. Olhe!
Ele ouviu tudo o que a menina tinha para dizer, observando o rostinho radiante.
— Ah, estou vendo que você se divertiu Linnete. Agora vá dar mais uma volta no
trenzinho...
Encantada, Linnete entregou as bugigangas para Oriel e foi passear.
Oriel e Devil ficaram olhando enquanto a menina subia no brinquedo. O trem
começou a dar voltas e Linnete acenou. Devil acenou em resposta e depois encarou
Oriel.
— Você trouxe minha filha sem minha permissão!
— Ela ia ficar desapontada se não tivesse vindo aqui.
— Não pensou que talvez eu tivesse planejado trazê-la pessoalmente?
— Oh! — Oriel ficou chateada. — Desculpe Devil.
— Você vai se arrepender. Não vou mais admitir essas suas visitas à minha
casa. Não poderá ver minha filha de novo.
— Você não está falando sério!
— Estou sim.
— Mas, Devil. Gosto tanto dela e ela de mim! Nesse momento, Linnete voltou
correndo.
— Você me viu papai? Viu como o trem anda direitinho? — Ela olhou para Oriel,
felicíssima. — Oh, tia Oriel, adoro você! — Abraçou-a carinhosamente.
Oriel correspondeu, reparando que Devil estava transtornado de raiva.
— Você não gosta dela também, papai? Ela não é a pessoa mais boazinha que

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você já conheceu?
— A mais boazinha... — ele repetiu irônico.
— Estou com o carro aqui perto — Oriel interrompeu. — Quer uma carona?
— Não, obrigado. Eu vim na minha Rural. E Linnete vai voltar de carro comigo.
Pouco depois, eles se despediram, cada um indo para o seu carro. Oriel afastou-
se do parque ouvindo o som alegre dos alto-falantes. Ela já não partilhava aquela
alegria. Será que Devil não a deixaria mais visitar Linnete? Ou será que ele cederia?
Quando Oriel subiu para Devil's Leap na semana seguinte, não sabia o que
esperar. Mas Linnete a recebeu, como sempre, e Ann fez o chá sem comentários.
Evidentemente, Devil tinha cedido. Aliviada, Oriel passou o resto da semana contente.
Com o início do inverno, o tempo piorou em Yorkshire. A neve começou a cair
no começo de novembro e Oriel teve de decidir se o Dia Aberto de Chantries seria ainda
naquele ano ou na primavera seguinte, quando o tempo estaria melhor. Agora ela já
morava em Chantries, e ela esperava Renée e Anatole para passarem o Natal juntos.
Antes, o motorista da família levaria Anatole para Londres. Oriel sabia que Renée
adoraria passar algum tempo sozinha com o menino.
Joan concordou que não teria sentido fazer uma festa em Chantries com um
tempo tão frio e úmido.
— De qualquer maneira, a construção da piscina da escola ainda vai demorar
muito — Joan se conformou.
Oriel tinha doado um cheque vultoso para a escola. Com esse dinheiro, o diretor
e professores começaram a tomar providências para fazerem as obras da piscina e para
comprarem um ônibus.
Enquanto isso, Joan ajudava Oriel a organizar tudo para a festa de Ano-Novo
em Chantries. Passaram horas juntas discutindo a relação dos convidados, escolhendo
as músicas e decidindo outros detalhes.
Por causa de Renée, Oriel tinha decidido convidar alguns amigos de Londres.
Eles eram mais amigos da sogra do que dela mesma, mas com certeza viriam. Os
boatos sobre a festa já tinham chegado a Londres.
Oriel ficaria com a casa cheia no fim de semana da festa, pois os convidados
londrinos pernoitariam ali. Precisaria de muitos empregados. Por isso, já tinha
contratado um casal de espanhóis bem-humorados para trabalharem de caseiros.
O neto de Hezekiah, Zeke, tinha concordado em cuidar dos jardins e da
conservação do pomar e do parque. Seus dois irmãos menores o ajudariam nos fins de
semana. Eles ainda iam à escola, mas passavam o tempo livre em Chantries. Gostavam
de andar nos cavalos. Oriel havia comprado uma égua cinzenta para ela e um pônei
bem treinado para Anatole. Ela deixava que os meninos passeassem neles porque os
animais precisavam de exercício.
O tempo piorava e tornava cada vez mais difícil a visita semanal a Devils Leap.
Mas como Devil não permitia que Linnete descesse até Chantries, Oriel era obrigada a
subir até lá porque não queria magoar a menina faltando ao compromisso.
Duas semanas antes do Natal, Oriel subiu para Devil's Leap como costumava
fazer toda semana. Era uma tarde fria, com um céu cinzento e nuvens escuras. O ar
estava parado e os passarinhos não cantavam. Parecia que a natureza estava
esperando a hora da neve cair.
Oriel entrou na cozinha, tremendo de frio. Ann a recebeu com uma xícara de chá
quente.
— Meu Deus! Você parece congelada! No inverno essas visitas serão
impossíveis.
— Não quero deixar de ver Linnete — disse Oriel, segurando a xícara quente

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com as duas mãos. O calor invadiu seu corpo e ela sentou-se, rindo. — Sinto-me como
uma chaleira que vai ferver.
Depois do frio que passara no caminho, o calor da cozinha a fazia corar, criando
duas manchas vermelhas brilhantes em seu rosto. Ela tirou o casaco e o suéter grosso,
enquanto tomava goles de chá. Linnete chegou e sentou-se em seu colo.
— Como é que você vai fazer se nevar muito? — A menina estava preocupada.
— Não dá para subir com o caminho cheio de neve.
— Eu dou um jeito. Ann estava na janela e avisou:
— Está começando a nevar! Atraídas pelo espetáculo da neve caindo, elas
ficaram na janela, admirando os flocos cristalinos caírem cada vez mais intensamente.
Os flocos rodopiavam, impelidos pelo vento.
— Você precisa descer — preveniu Ann.
— Oh, não, tia Oriel, ainda não — pediu Linnete.
— Vou contar a história da Rainha da Neve, depois desço — prometeu Oriel.
Enquanto ela contava a história, Ann saiu para cobrir as caixas dos coelhos e
ver se os cachorros estavam abrigados. Pouco tempo depois, ouviram um grito vindo de
fora.
Linnete e Oriel saíram da casa correndo. Encontraram Ann deitada na neve,
segurando a perna e gemendo de dor. Quando tentaram levantá-la, Oriel percebeu que
a perna estava quebrada.
— Vou chamar um médico — disse ela.
Enquanto vestia o casaco, Devil chegou e ela contou o que tinha acontecido.
— Vou levar minha mãe para o hospital — ele resolveu. — Você fica aqui com
Linnete. Eu telefono para Chantries e aviso onde você está.
Oriel concordou e Devil carregou Ann; ela parecia sofrer, mas não protestou.
— Está agüentando, mãe?
— Ande logo. Não converse tanto — disse Ann.
Com cuidado, ele levou-a até a Rural. Pouco depois estavam descendo. A
viagem até o hospital seria dolorosa para Ann, e Linnete estava preocupada com ela.
— Minha avó vai morrer? Como a mãe de Linnete tinha morrido no hospital,
Oriel explicou logo que Ann não corria perigo de vida. Assim que conseguiu tranqüilizar
a sobrinha, Oriel quis colocá-la para dormir. Mas a menina recusou-se a subir antes do
pai voltar com notícias.
Ele chegou duas horas mais tarde. Estranhou quando viu Linnete acordada,
sentada perto do fogão de lenha, vestida de camisola e roupão. Devil garantiu que tudo
estava bem e Linnete resolveu dormir.
Oriel cantou uma canção de ninar e Linnete adormeceu sorrindo.
— Sonhe com os anjos, queridinha — murmurou Oriel, antes de sair do quarto.
Quando desceu, encontrou Devil confortavelmente instalado numa poltrona da
sala, lendo um jornal, na frente da lareira acesa. Ela parou na porta, indecisa, sem saber
o que fazer. Será que deveria dormir ali naquela noite? O que diria Devil? Será que ele
era capaz de cuidar da casa e de Linnete sozinho?
Sem desviar os olhos do jornal, ele disse rudemente:
— Ora, mulher, onde está o meu jantar?
Ela levou um susto. Ele ergueu o olhar e fitou-a, repetindo:
— Vamos. Faça o jantar, estou esperando. Passei o dia inteiro no campo e
estou faminto.
Sem responder, Oriel foi para a cozinha ver o que podia fazer. Encontrou um
pão feito na fazenda, tomates, ervilhas e um empadão. Cozinhou os tomates e as
ervilhas, esquentou o empadão e depois avisou Devil que o jantar estava pronto.

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— Traga a comida para cá, mulher! — ele gritou, sem se mexer. Indignada, Oriel
colocou a comida numa bandeja e levou-a para Devil. Quando ela colocava a bandeja
no colo dele, ele a encarou e sorriu. Aquele sorriso bastou para reconciliar Oriel com o
mundo. Seu coração bateu com força, mas ela se conteve.
Você é um demônio! Acha que vai me dominar desse jeito? Não tenho mais
dezessete anos. Não pretendo ser sua escrava - ela pensou.
— Bem, vou para casa agora — ela disse.
— Você não pode descer com essa neve.
— Já desci na neve antes...
— De noite?
Ela olhou pela janela. A noite era sem lua e uma coruja piava melancólica numa
das árvores.
— A neve iluminará o caminho.
— Que bobagem, mulher! — Devil deu uma gargalhada. — Coma e fique quieta.
— Quer parar de dar ordens como se eu fosse uma empregada? Ele terminou
de jantar antes de responder.
— Agora me sinto melhor. Quero tomar café.
— Oh! — ela exclamou, indignada com a ousadia dele. Ainda assim, voltou para
a cozinha.
Quando acabou de fazer o café, levou para ele. Encontrou-o recostado na
poltrona, de olhos fechados, aquecendo os pés perto do fogo. A luz iluminava seu rosto
másculo, criando sombras estranhas, realçando a forma dos lábios e a força do queixo.
— Minha mãe não poderá trabalhar por algum tempo — ele disse.
— Vou precisar de ajuda. Não posso cuidar dos animais e da casa ao mesmo
tempo.
— Posso contratar alguém na vila... — Oriel sugeriu.
— Você mesma fará o serviço — ele falou como se desse uma ordem.
— Quem você pensa que é? — ela reagiu. — Como ousa mandar em mim...
— Linnete vai estranhar outra pessoa — ele interrompeu, com rispidez. — Você
sabe disso.
Oriel ficou parada, olhando para o fogo. O que Devil dizia era verdade, sem
dúvida. Ele espichou as pernas e suspirou, satisfeito.
— Você sabe fazer um bom café. — Ergueu o olhar para Oriel.
— Se quiser culpar alguém culpe a si mesma. Você se tornou amiga de Linnete.
Agora ela não quer saber de outra pessoa.
Oriel corou, sentindo-se contente com o que ouvia. Devil prosseguiu ríspido:
— Você é uma trepadeira. Vai subindo, prendendo-se nas outras plantas. Esse é
um jeito esperto de viver, mas às vezes você também tem que pagar pela sua
esperteza. Agora volte para a cozinha e lave a louça antes de dormir. Levantamos cedo
nesta casa. Acordamos com os passarinhos e vamos deitar quando a noite chega.
— Você podia ter pedido para eu ficar com um pouco de educação — ela
protestou. — Não precisava mandar desse jeito.
— Parece que você esqueceu o que falei antes. — Ele sorriu irônico. — Já pedi
uma vez, mulher, nunca mais vou pedir. De agora em diante se alguém pedir, será você.
Pode ficar aqui ou ir embora, como quiser. Você é uma mulher livre. Linnete precisa de
você. A escolha é sua.
— Maldito! — ela xingou trêmula.
Ele sorriu e mais uma vez o encanto do seu sorriso a cativou.
— Há muito tempo aprendi que alguns animais precisam ser domados com
violência. Eles não obedecem e não respeitam se forem tratados com gentileza. Você é

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um animal assim, Oriel. Você despreza a fraqueza de um homem, não é? Só reage
diante da violência.
— Eu devia ter dado um tiro em você, lá no parque — ela esbravejou, com
amargura.
Rindo alto, ele saiu da sala. Ela ouviu o som dos passos subindo a escada.
Cansada, arrumou a cozinha antes de apagar a luz e subir também. Devil apareceu no
corredor.
— Você vai dormir no quarto de Clare. Pode usar esta camisola dela.
— Não quero. — Oriel estremeceu. - Não posso usar o quarto do sótão?
— Deve estar muito frio lá em cima.
— Prefiro dormir lá.
— Vai congelar lá em cima. Bem, você é quem sabe. Parece que também não
quer a camisola de Clare, não é? Espere um pouco... — Ele entrou num quarto e voltou,
trazendo uma camisola de náilon vermelha, com rendas. Sorriu malicioso. — Jéssica
deixou esta camisola aqui. Encantadora, não é? Ela ficava muito bonita vestida com
isto...
— Imagino — retrucou gélida, sentindo um ciúme doentio. — Boa noite.
Ele desceu novamente e ela entrou no banheiro para se lavar e escovar os
dentes. Depois, subiu para o sótão e trocou de roupa, vestindo a camisola vermelha. A
neve cobria o telhado e estava frio demais lá em cima. O vento zunia na janela.
Oriel apagou a luz e entrou na cama gelada. Não tinha como se aquecer,
parecia que estava dormindo no meio da neve. De repente, alguém bateu na porta e a
abriu. Devil apareceu na escuridão.
— O que você quer? — ela perguntou assustada.
— Eu trouxe o saco de água quente — ele respondeu tranqüilo, entregando o
saco de borracha cheio de água quase fervendo.
Ela aceitou o presente agradecida e colocou-o nos pés da cama. Sentiu
vergonha de ter pensado que ele queria outra coisa.
— Obrigada.
Ele continuou imóvel, olhando para ela na escuridão. Oriel sentiu o calor
invadindo seu corpo, apesar do frio e da neve.
— Meu Deus — ele disse rouco. — Não sei se vou conseguir sair deste quarto.
— Devil... — ela murmurou rouca também.
— Ah, durma bem! — Ele saiu, batendo a porta.

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CAPÍTULO IX

Na manhã seguinte, quando o dia estava clareando, Devil trouxe uma xícara de
chá quente. Oriel ainda dormia, com o corpo encolhido como uma criança embaixo dos
cobertores. Os cabelos cobriam o travesseiro como uma fronha loura. Devil colocou a
xícara ao lado da cama, agachou-se e passou o dedo devagarzinho pela boca de Oriel.
— Acorde branca de neve!
Oriel não se mexeu. Depois os cílios piscaram, ela abriu os olhos e viu Devil.
Ficou tensa, mas ele tranqüilizou-a com um sorriso.
— Estou de saída. Preciso pagar os empregados das minhas outras fazendas.
Volto à noite. Tem bastante carne na geladeira, mas acho que Linnete vai preferir arroz
e legumes. — Seus olhos azuis brilharam, zombando. — Você sabe fazer arroz e
legumes, não sabe?
— Farei tudo aquilo que for necessário — ela respondeu tranqüilamente.
— Pois é. Sempre somos capazes de fazer o necessário. Beba o chá antes que
esfrie. Deixei o fogo aceso no fogão. A neve está funda lá fora, acho que não vai dar
para passar pela estrada.
— E sua mãe? Vai visitá-la hoje?
— Vou tentar, mas não sei se conseguirei chegar lá. Vamos ver se pára de
nevar.
Oriel continuou deitada, esperando que ele saísse do quarto.
— Bem, vou andando...
Depois que ele saiu, Oriel tomou um gole do chá quente. Admirou a luz branca
que iluminava o quarto, espantando-se com o silêncio que a rodeava. Lá fora, a neve
cobria tudo, envolvendo arbustos e árvores em mantos brancos, brilhando intensamente,
como se fosse um dia de festa. Pedacinhos de gelo cintilavam como diamantes. O céu
continuava cor de chumbo, parecendo que ainda ia nevar mais durante o dia. Oriel se
levantou, vestiu a calça, a blusa e o suéter grosso.
Divertiu-se preparando o café da manhã de Linnete na cozinha. Fez um suco de
laranja, cozinhou ovos e preparou chá. Quando acabava, Linnete entrou, com o rosto
descansado e radiante.
— Olá, tia! Estou tão contente por estar aqui. Fiquei com medo de Jéssica
voltar...
— Sente-se e tome o suco de laranja — disse Oriel, sem responder ao
comentário da sobrinha.
Sentia um carinho imenso por Linnete. Ela era muito parecida com o pai; os
cabelos, principalmente, eram iguaizinhos. Talvez por isso fosse tão fácil amá-la.
Anatole já tinha deixado de ser um menino dependente, de repente libertara-se no novo
ambiente do internato. Isso acabou deixando Oriel quase sem função. Ela havia
procurado compensar isso reformando Chantries, mas a mansão não tinha tirado sua
vontade de se dedicar a alguém. Linnete preenchia esta lacuna.
Depois da refeição, Linnete brincou entretida com um caderno de desenho e
lápis coloridos, enquanto Oriel arrumava a casa. Quando a cozinha estava em ordem e o
almoço preparado, ela subiu para ajeitar as camas. Depois de hesitar, resolveu entrar no
quarto de Devil, Mas ele já tinha feito a cama e o quarto estava limpo e em ordem.
Sentindo-se fascinada por estar sozinha naquele quarto, ela foi até a cama e
colocou a mão sobre o travesseiro. Com o coração batendo descompassado, imaginou a
cabeça de cabelos negros descansando ali. Depois, atravessou o quarto e examinou
sua imagem refletida no espelho. Estava envergonhada. Será que tinha perdido todo
amor próprio? Ela sentia prazer em ficar ali no quarto de Dervil, sozinha, imaginando

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como seria a vida se fosse sua esposa, partilhasse com ele o mesmo quarto, a mesma
cama, e visse Linnete brincando perto do fogo...
Oriel saiu e fechou a porta rapidamente, tentando com isso fechar a mente e
impedir a entrada de pensamentos tão perigosos.
Parou na frente do quarto de Clare, com medo. A presença dela ainda marcava
aquele lugar. Oriel não queria viver com a impressão de ser perseguida pelo fantasma
daquela mulher. Na verdade, ela se sentia culpada por causa de Clare. Sentia culpa
porque amava o marido dela. E culpa porque Devil nunca tinha amado Clare.
Devagar, abriu a porta e olhou ao redor. Tudo estava muito limpo, frio e vazio. A
tristeza de Clare parecia pairar no ar. Quantas horas infelizes a prima teria passado ali?
Abriu o guarda-roupa. Todas as roupas de Clare continuavam lá. O cheiro
desagradável de mofo incomodou-a. Já ia fechar a porta de novo quando reconheceu
uma caixinha sobre a prateleira. A caixa era de marfim esculpido, muito rara e bonita.
Tinha pertencido à mãe de tio Jeremias. Diziam que ela havia ganhado esse presente de
um príncipe indiano, durante sua lua-de-mel na Índia. Oriel lembrou-se de como gostava
de brincar com aquela caixinha quando era criança, passando o dedo pelos elefantes e
tigres esculpidos no marfim.
Pegou a caixa, recordando os momentos felizes da infância. A tampa estava um
pouco torta e a dobradiça parecia quebrada. Oriel a abriu, sem pensar, e encontrou um
pequeno diário no interior. Com certeza era de Clare.
Pelas datas marcadas, Oriel descobriu espantada, que as anotações
correspondiam ao mesmo ano em que tinha casado com Egon, o ano em que Clare
casara com Devil. Por que Clare o havia guardado ali na caixa?
Curiosa e hesitante, Oriel abriu o diário. Clare estava morta; não ficaria magoada
com ela. Aquelas páginas poderiam contar o que tinha acontecido realmente entre Clare
e Devil. Oriel precisava descobrir se Clare tinha dito a verdade, ou se Devil estava com a
razão. Precisava saber isso!
Sentou na cama e começou a ler. Seu rosto empalidecia e os olhos se
arregalavam enquanto ela tomava conhecimento do passado. Assim ela ficou
conhecendo a verdadeira história daquela época decisiva.
Depois de ler tudo, Oriel guardou o diário na caixa e levou-a para o quarto de
Devil, colocando-a na mesinha-de-cabeceira, onde ele a encontraria facilmente. Então
ele deduziria que ela havia lido o texto.
Não se atrevia a falar diretamente com ele sobre esse assunto. Agora ela sabia
por que Clare tinha guardado o diário na caixinha de marfim, num lugar onde Devil um
dia o encontraria. Dessa maneira estranha Clare havia tentado revelar a verdade sobre o
passado.
O dia passou tranqüilo. Linnete já estava dormindo quando Devil voltou para
casa. Oriel tinha feito um assado de carneiro e serviu-o na cozinha. Ele comeu com
gosto, sentado à mesa com as mangas arregaçadas, o rosto lavado e limpo, irradiando
saúde depois de um dia no campo. Ela ficou na frente dele, servindo o chá, as batatas e
os legumes.
— Está tentando me impressionar? —: Ele sorriu dando uma mordida numa
grossa fatia de pão que ela mesma tinha feito no forno do fogão de lenha.
— Aprendi a fazer pão quando era menina. Clare e eu tínhamos aulas com a
velha Sra. Block, na cozinha de Chantries. Ela era uma ótima cozinheira e fazia questão
que a gente aprendesse direito.
— Está ótimo. — Ele deu outra mordida na fatia. — O assado também está uma
delícia. Visitei minha mãe. Ela vai bem, só se queixa do peso da perna engessada. O
médico disse que ela poderá voltar para casa logo. Ele acha que ela já deve começar a

66
andar.
— Hoje em dia dizem que os pacientes com fratura não devem ficar na cama por
muito tempo. Depois de colocar o gesso, já podem andar.
— Encontrei Joan Warne em Torby — prosseguiu Devil. — Mandou lembranças.
Ela me criticou por manter você aqui nesta época. Disse que em Chantries você tem
muito trabalho, precisa preparar a festa do Ano Novo.
— Posso dar um jeito.
— Falei isso para ela, mas, pensando melhor, talvez seja bom você voltar para
casa.
— Estou espantada com você, Devil!
— Joan Warne disse que sou bruto e egoísta.
— Bem, isso é verdade. Mas Linnete precisa de mim, você tinha razão. .
— Você pode levá-la para Chantries.
— Está falando sério?
— Estou. — Ele se levantou. — Vamos lavar essa louça e dormir.
— Devil... — Ela o segurou pelo braço. — Por que você está me deixando levar
Linnete?
— Pelo amor de Deus, não me toque! — ele exclamou com voz rouca,
afastando-se e saindo da cozinha.
Oriel ficou parada, com as pernas trêmulas. Sentou-se e ficou olhando para a
porta. Por que ele tinha dito aquilo? Será que já tinha lido o diário? Ou estaria apenas
desabafando por causa das críticas de Joan Warne?
Ela lavou a louça sozinha. Depois guardou as coisas no armário e limpou a
mesa. Quando viu a cozinha arrumada e limpa, foi para a sala. Devil estava lá, sentado
na frente da lareira acesa, olhando as chamas com o rosto transtornado.
— Vou me deitar — ela murmurou hesitante.
— Está bem — ele disse, sem se virar.
— Boa noite, Devil.
Ela já tinha colocado a bolsa com água quente na cama e um aquecedor velho,
que estava no quarto de Clare, esquentava o sótão. Oriel trocou de roupa e se deitou.
O que aconteceu com Devil? Ela pensou já deitada. Por que se comportava de
um jeito tão estranho?
Exausta por causa do trabalho cansativo, Oriel adormeceu logo.
A manhã seguinte foi igual à outra. Devil trouxe uma xícara de chá e depois saiu.
Oriel acordou Linnete, enquanto tomavam o café juntas avisou que iriam para Chantries.
— E papai? — Linnete estava excitada com a novidade, mas um pouco
preocupada também. — Ele vem?
— Não. Seu pai precisa trabalhar aqui na fazenda. Mas ele virá visitar você,
tenho certeza. E sua avó já vai sair do hospital.
Enquanto Linnete brincava na sala, Oriel subiu para guardar as roupas da
menina na mala. Quando passou pela porta aberta do quarto de Devil, deu uma olhada e
parou espantada. A caixa de marfim estava no chão. Dentro da lareira, sobre as pedras
limpas, havia apenas um monte pequeno de cinzas. Ela não precisava abrir a caixa de
marfim para saber o que tinha acontecido com as anotações de Clare. Devil tinha
destruído o diário.
A reação de Devil era quase incompreensível para Oriel. Ele não havia revelado
seus sentimentos. Era impossível que a confissão de Clare não tivesse mexido corri ele!
Oriel fechou os olhos por um momento, pensando na prima morta e sentindo
pena dela. Entendia o comportamento de Clare. Sabia que o amor age de maneira
estranha sobre as pessoas...

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Clare tinha se apaixonado perdidamente por Devil e sabia que ele só pensava
em Oriel. Por isso, armou um plano para separar os dois namorados: mentiu para Oriel
que tinha sido seduzida por Devil. Clare inventou essa mentira jogando com o destino, e
o jogo deu certo: Oriel foi embora e Devil ficou sozinho. Assim, ele acabou se casando
com ela.
Mas nem todas às vitórias são duradouras e felizes. A vitória de
Clare foi uma tristeza. Ela destruiu o amor entre Devil e Oriel, mas, ao mesmo
tempo, destruiu a si mesma, porque acabou não suportando viver ao lado de um homem
que não a amava. Ela precisava desesperadamente do amor de Devil. Como não podia
obtê-lo, começou a beber. E a bebida acabou com todas as suas esperanças de
conquistá-lo.
Devil voltou uma hora depois, para levar Oriel e Linnete a Chantries. Linnete
esperava, vestida com um casaco, botas e calças, com o cabelo preto escondido pela
boina, um xale de lã em volta do pescoço. Devil ergueu-a nos braços e beijou-a na ponta
do nariz.
— Divirta-se na casa de Oriel, bonequinha. E comporte-se direitinho, está bem?
— Está bem, papai. Por que você não vem também? A tia quer que você venha.
Não é, tia?
Devil lançou um olhar sarcástico para Oriel.
— A tia me quer? Fico contente com isso. Oriel corou.
— Você sabe que seu pai precisa cuidar das ovelhas, Linnete. Vamos andando?
O carro deslizou na estrada estreita e cheia de curvas. Devil era bom motorista e
estava acostumado com as dificuldades criadas pelo inverno. Sem qualquer acidente
eles chegaram a Chantries e Devil estacionou em frente à mansão.
Linnete abraçou e beijou o pai.
— Papai, paizinho, você vem me visitar, não vem? — ela convidou contente. —
Você virá todos os dias, não é? Vai sentir falta de mim? Quem vai cozinhar seu jantar?
— Venho visitar você —: ele prometeu. — Também vou sentir sua falta. Eu
mesmo vou fazer o meu jantar, entendeu? Mais alguma pergunta?
Ela riu, beijou-o de novo e depois disse com malícia:
— Não vai dar um beijo de despedida na tia Oriel, papai? Oriel saiu da Rural
sem perda de tempo e Devil deu uma gargalhada.
— Você está fazendo perguntas demais, Linnete. Divirta-se.
Ele deixou a mala da filha sobre a neve, entrou na Rural de novo e, pouco
depois, o carro sumia na curva do caminho de pedras.
Linnete correu pela mansão inteira, excitadíssima. Segurando Oriel pela mão,
escolheu o quarto onde queria dormir. Juntas penduraram suas roupas no guarda-roupa.
Linnete sentou na cama e suspirou, admirada.
— Oh, titia, adoro sua casa! Nunca vi uma casa tão grande.
No dia seguinte, Joan Warne veio fazer uma visita e ficou para o almoço. Estava
muito curiosa para conhecer Linnete. Brincou com a menina e depois foi conversar com
Oriel na sala.
— Mesmo com o passado difícil que essa menina teve, ela parece feliz —
comentou Joan.
— Graças ao pai dela — respondeu Oriel.
— Você não fala sério!
— Falo, sim. O pai a adora. Você ainda não viu os dois juntos. Foi o amor de
Devil que protegeu Linnete dos problemas da mãe, que bebeu até morrer. Linnete quase
não conhecia Clare. A mãe passava a maior parte do tempo trancada no quarto. Ann
Dervil me contou como foi a vida lá na fazenda durante os últimos cinco anos depois do

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nascimento de Linnete, Clare afastou-se completamente de tudo, só vivia no quarto.
— Isso deve ter começado com a depressão após o parto — diagnosticou Joan.
— Depois a bebida alcoólica aumentou a depressão.
— Você tem razão. A reação de Linnete também foi previsível. A menina ficou
com a impressão de que a mãe a odiava. Pensou que a mãe a culpava por causa da
doença. Acho que Clare tinha medo de amar a filha.
— Medo de amá-la? Mas por quê?
— O amor torna as pessoas vulneráveis, Joan. E Clare não queria mais mágoas.
Ela tentou fugir do mundo e dos problemas com a bebida. O álcool a matou.
— Eu sempre disse que ela era neurótica.
— Acho que ela só era uma pessoa muito infeliz. Mas criou sua própria prisão,
cavou sua própria sepultura. Não existe nada mais trágico do que a desgraça criada de
propósito.
— Bem, pelo menos Devil Haggard deixou você ficar com a menina. Até que
isso foi uma boa idéia dele.
— Vou ficar com Linnete até Ann Dervil voltar para casa.
— Mas você poderia cuidar tão bem de Linnete!
— Ele é o pai dela. — Oriel encarou Joan com seriedade. — Ela o ama.
Depois de tomarem chá juntas, Oriel acompanhou Joan até a porta. Ela
despediu-se com um pouco de pressa, dizendo que ainda precisava aprontar o jantar de
Phil. Depois de beijar Linnete, afastou-se pelo caminho do pomar.
— Estou feliz de ficar sozinha de novo com você — disse Linnete, abraçando
Oriel pela cintura. — Gosto de brincar só com você.
— Ora, vamos receber mais visitas, Linnete. Meu filho e minha sogra vêm...
— Anatole — disse a menina, séria.
Oriel já tinha contado tudo sobre seu filho e Linnete estava louca para conhecê-
lo. No começo, ela teve medo de que a menina sentisse ciúme, mas, como Anatole
morava no internato, sua presença não representaria uma ameaça. Além do mais,
Linnete vivia tão sozinha em Devil's Leap, que morria de vontade de conhecer outras
crianças.
— Só quero que Anatole trate Linnete com gentileza — Oriel tinha dito para
Renée, ao telefone, enquanto combinavam os preparativos para as férias de Natal.
— Vou conversar com ele. Anatole é uma criança razoável. Nunca foi agressivo.
Além disso, os dois têm algo em comum, não acha?
— É Anatole perdeu o pai e Linnete a mãe.
— Eu estava pensando em você. As duas crianças a amam. Isso é um laço que
as une.
— Espero que sim!
Devil foi visitar a filha todos os dias, mas recusou-se a entrar na mansão. Sem
deixar Linnete perceber isso, ele a levava para passear de Rural, despedindo-se dela na
porta da casa e partindo em seguida. Oriel ficava aborrecida com ele, mas Devil parecia
não se importar com isso. Ele era teimoso como uma mula.
Oriel achou que Devil continuava estranho. Ele falava pouco, sem
espontaneidade e sem calor. Seria isso uma conseqüência das revelações do diário de
Clare? Será que ele também se sentia culpado? Ou simplesmente tinha ficado zangado
com as confissões da paixão e do ciúme da mulher, a confissão das mentiras que ela
tinha contado para ambos?
Numa fria tarde de inverno, Anatole e Renée chegaram para passar os feriados
de Natal em Chantries. Renée veio acompanhada pelo
Sr. e Sra. Weedon e por Íris. Todos chegaram muito curiosos para conhecer a

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mansão reformada.
— Pensei que não conseguiríamos chegar aqui — disse Renée, tremendo de
frio, quando saiu do carro. — As estradas estão intransitáveis!
— Vamos entrando — convidou Oriel, beijando Renée e o filho.
— Anatole, você cresceu ainda mais. Desse jeito vai ficar maior do que eu. O
que você come naquela escola?
Linnete espiava as visitas chegando, meio escondida atrás da porta. Ela estava
com o rosto corado pela timidez. Anatole logo a viu.
— Ela é Linnete? — ele sussurrou, consultando a mãe.
— Sim. Cuide bem dela, Anatole.
Ele não respondeu, mas olhou para a menina com compreensão e interesse.
Pouco depois, Linnete criou coragem e chegou mais perto, segurando a mão de Oriel
para se tranqüilizar.
Demorou apenas vinte e quatro horas para Anatole fazer amizade com Linnete.
Na tarde do dia seguinte, eles já pareciam velhos amigos. Anatole era um pouco protetor
e dominador, mas permitia que ela o acompanhasse em todas as brincadeiras. Juntos,
eles exploraram o parque coberto pela neve, construíram barcos de brinquedo, jogaram
bola no terraço e dominó na sala. Linnete contava os pontos brancos nas pedras do
dominó enquanto Anatole bocejava condescendente.
O relacionamento entre eles fez Oriel pensar no passado, nos dias distantes da
infância em que brincava com Devil. Mas, em geral, as brincadeiras com ele tinham sido
muito mais selvagens.
Na noite de Natal nevou muito, com ventos cortantes e céu cinzento. Oriel tinha
montado uma árvore de Natal bem grande no salão. As luzes coloridas cintilavam,
refletidas pelas janelas e pela neve lá fora. As crianças iam receber uma porção de
presentes que ficavam expostos embaixo da árvore. Antes de abrir os presentes, eles
tentavam adivinhar o que havia dentro dos embrulhos.
— Eu gostaria de saber o que é esse pacote estranho e comprido — disse Oriel,
segurando um embrulho com um cartão escrito com a letra de Anatole. — Será que é
uma espingarda?
— Não! — gritou Linnete, corada e excitada. — É uma... — Não terminou de
falar porque Anatole tapou sua boca com a mão.
— Não diga nada, bobinha! — ele mandou, puxando a menina para o lado,
Na noite anterior, Anatole tinha perguntado inesperadamente:
— Linnete será minha irmã para sempre?
— Ela só está passando alguns dias conosco. Gostaria que fosse sua irmã,
Anatole?
— Não me importo. Ela não é ruim... É uma menina legal...
O tom de voz sério e a resposta cautelosa não disfarçaram os verdadeiros
sentimentos de Anatole. Oriel ficou encantada e comovida com a afeição que o filho
demonstrou pela menina. Tinha tido tanto medo que ele se comportasse como um rapaz
ciumento ou ficasse ressentido...
Na véspera do Natal, Devil chegou com os braços cheios de presentes e
embrulhos coloridos. Anatole, que apenas o tinha visto uma ou duas vezes, ficou
observando-o em silêncio. Oriel estava com muita vontade de saber o que o filho achava
do pai de Linnete, mas tinha medo de perguntar. Devil também manteve uma atitude
reservada e misteriosa. Ele e Anatole comportavam-se como dois cães estranhos que se
encontravam pela primeira vez.
Quando os presentes foram colocados embaixo da árvore, as crianças foram
brincar no segundo andar.

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— Como vai sua mãe? — Oriel perguntou a Devil.
— A febre sumiu e a perna continua engessada. Hoje à tarde vou passar no
hospital para levá-la para casa.
Oriel ficou desolada com essa notícia. Evidentemente, estava contente por saber
que Ann já passava bem, mas não conseguia se conformar com a possibilidade de
separar-se de Linnete na véspera do Natal. Ela confessou isso e Devil revelou:
— Eu já imaginava que você ia querer que ela ficasse aqui. Mas é claro que
minha mãe tem preferência... O Natal dela seria muito triste sem Linnete.
— Vocês dois poderiam vir passar o Natal aqui, Devil. O que você acha?
— Você já sabe minha resposta.
— Por que você é tão teimoso? Ann virá para Chantries se você vier também.
— Mas eu não quero.
— Oh, Devil... — As lágrimas apareceram em seus olhos. Ela virou-se e mordeu
o lábio tentando conter a emoção.
— Vou fazer um trato — disse Devil. — Linnete passa a noite de Natal aqui. Mas
depois eu a pego e levo para casa. Assim ela pode ficar parte do dia com minha mãe. .
— Oh, obrigada, Devil. Obrigada. — Oriel sorriu, ainda com lágrimas nos olhos.
Ele afastou-se sem responder e foi embora pouco depois.
A manhã do dia de Natal amanheceu tão fria quanto as anteriores. Mas em
Chantries o ar estava iluminado pela alegria das crianças, que abriam seus presentes.
Elas mostravam o que ganhavam para todos e riam felizes.
— Este é o nosso melhor Natal desde a morte de Egon — disse Renée,
observando Anatole e Linnete. — Aquela menina realmente nos deu uma vida nova. Ela
é tão alegre! E essa mansão, minha querida, foi uma ótima idéia. Você fez muito bem
em comprá-la e reformá-la. Sinto-me muito mais em casa do que naquela mansão
horrível que Egon comprou em Hampshire, gastando tanto dinheiro acho Yorkshire um
pouco fora de mão e frio, mas começo a gostar da região.
Oriel também ficou observando as crianças e suspirou. Ainda não tinha contado
para Linnete que o pai viria buscá-la, e temia que ela ficasse muito triste.
Mas quando Devil chegou, foi recebido com alegria por Linnete. Ele contou para
a filha que a avó já estava bem e em casa, e essa notícia deixou-a ansiosa por ver Ann.
Linnete despediu-se de Anatole, toda feliz.
— Até logo! — ela gritou.
Anatole passou o resto da tarde e há noite um pouco emburrado, folheando seus
livros novos e brincando com os quebra-cabeças.
— Não entendo por que ela foi embora — ele reclamou, na hora de deitar. —
Podia ter ficado com a gente. Aposto que não se divertiu tanto lá com a avó.
— Você também gosta de ver sua avó, não é? — disse Oriel.
— É. Gosto. — Ele se escondeu embaixo do cobertor.
Oriel deu-lhe um beijo de boa noite, afagou seus cabelos e desceu. Os
presentes de Oriel estavam em cima da mesa do salão. Ela ficou examinando a
sombrinha vermelha que Anatole tinha lhe dado. ,
Lembrou-se da hora em que Linnete quase revelou o segredo de Anatole,
quando a sombrinha ainda estava embrulhada. A menina havia lhe dado um peso de
papéis de vidro, com espirais e manchas coloridas no interior. Sabendo que esse
presente tinha sido escolhido por Devil, Oriel observou-o com atenção, admirando a
beleza daquele artesanato.
Ela também tinha dado um presente para Devil, por intermédio de Linnete. A
menina até escrevera seu nome no embrulho. O presente de Devil era um antigo
binóculo de Jeremias Haggard. As lentes continuavam limpas e perfeitas, apesar do

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binóculo ter sido feito no século XIX. Numa chapa de bronze, ao lado, estava gravado o
nome Haggard e a data da compra. Oriel sabia que Devil gostava de observar o vôo das
aves, enquanto cuidava dos carneiros e das ovelhas. Só tinha receio de que ele ficasse
chateado por receber um presente através da filha. Mas ele, aparentemente, aceitou a
lembrança com prazer.
Oriel ficou até tarde acordada, vendo os presentes e depois olhando a neve pela
janela do salão.
Melancólica, ela observava o parque iluminado pela lua que prateava as árvores.
Oriel pensava que tudo tinha corrido muito bem no primeiro Natal em Chantries. O que
aconteceria no Ano Novo?

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CAPÍTULO X

Na manhã da véspera do Ano Novo, uma caravana de carros novos chegou a


Chantries, parando em frente à mansão. Enquanto os elegantes amigos de Oriel subiam
a escada de mármore para entrar na casa, os motoristas estacionavam os carros no
pátio dos fundos. O pessoal que vinha de Londres era mais pálido, com gestos mais
sofisticados e roupas mais caras do que os convidados de Yorkshire.
Oriel e Renée recebiam os amigos, conversavam um pouco e depois pediam
que a Sra. Weedon lhes mostrasse os quartos onde poderiam descansar da viagem.
Muita gente chegou durante o dia. A mansão vibrava ao som das vozes desconhecidas.
Portas se abriam e fechavam. Os empregados andavam apressados pelos corredores,
com expressões compenetradas.
Renée subiu para descansar por duas horas antes do jantar. Oriel verificou mais
uma vez se tudo estava em ordem. Depois do jantar, os empregados só teriam uma hora
para limpar a mesa e preparar o ambiente para receber o segundo grupo de amigos de
Oriel que viriam apenas para participar do baile.
Oriel mandou buscar em Londres a maior parte da comida que seria servida
naquela noite; tinha decidido fazer um buffet frio. Esperava que os convidados
apreciassem os pratos e saíssem da mansão satisfeitos com o serviço e a comida.
Cestas de flores enfeitavam as mesas, colorindo e espalhando aromas exóticos
de flores cultivadas em climas mais amenos. O salão brilhava com a luminosidade dos
candelabros de cristal. O conjunto de músicos londrinos descansava numa sala
conjugada ao salão, fumando e bebendo café. Oriel foi até lá fazer umas últimas
recomendações ao violinista.
O jantar foi um sucesso. Anatole tinha recebido permissão para participar dele e
os amigos de sua avó fizeram questão de conversar bastante com o futuro herdeiro da
enorme fortuna Mellstock. Anatole estava encantador. Oriel achou que Egon tinha feito
bem em recomendar que ele fosse educado no internato, onde era tratado sem mimos
excessivos, com firmeza e imparcialidade, como um rapaz igual aos outros.
Depois do jantar, Anatole disse boa noite para a avó, beijou-a e subiu a escada,
um pouco relutante.
— Não vou conseguir dormir — ele avisou. — Vai ser difícil pegar no sono com o
barulho da festa.
— Leia um pouco na cama — Oriel sugeriu. — Mas tente dormir, querido,
Uma hora depois, algumas pessoas da vila começaram a chegar para a
segunda parte dos festejos. Joan e Phil Warne foram os primeiros. Ela usava um vestido
longo decotado, azul-claro, extremamente elegante. Ele estava vestido a rigor.
— Você está tão bonita, Oriel! — disse Joan, com sinceridade.
— Obrigada — Oriel respondeu, sorrindo. — Você também está muito
elegante...
— Estou até comovido com essa troca de elogios — disse Phil, bem-humorado.
— Daqui a pouco vou atravessar essa salão até aquele bar. Acho que um drinque vai
me animar e me deixar mais descontraído no meio de tanta gente importante. Nunca vi
tantos diamantes juntos na minha vida. Quem você convidou para esta festa, Oriel? A
metade da nobreza britânica?
— São poucos os nobres aqui. Meus convidados não fazem parte da família
real, mas muitos são mais importantes do que grande parte da nobreza.
— São os privilegiados da alta sociedade?
— Alguns... .
— Meu Deus! — Joan estava extasiada. — Nunca imaginei que freqüentaria o

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mesmo salão dos milionários.
— Não se entusiasme demais — Oriel preveniu. — Muitos são cansativos e
esnobes,
— Parece que estou em outro planeta. Sinto-me como se estivesse no meio de
um grupo de marcianos — ironizou Phil.
— Psiu. , comporte-se. Vá buscar o seu drinque, Phil — brincou Oriel.
Deixando os amigos mais chegados de lado, ela foi cumprimentar os outros
convidados, assumindo novamente uma atitude formal, atenciosa e educada, cultivada
nos anos de casamento com Egon. Parada de pé perto da porta da entrada,
impecavelmente vestida, ela recebia a todos sorrindo sem parar, até sentir os músculos
tia face doendo.
A noite prosseguia animada. O conjunto de música alegrava a festa com
canções populares. Os convidados dançavam sob os candelabros, com as jóias
reluzindo nas cores do arco-íris e os olhos atentos, observando as outras pessoas da
festa.
Oriel dançou uma vez com Phil Warne. Depois dançou com Alan, que tinha
chegado durante a tarde e estava hospedado na pensão em Torby. Na pensão estavam
também outros convidados, entre eles um coronel, especialista em pôquer, que se
comunicava rugindo frases curtas e quase incompreensíveis.
— Você está muito bonita hoje — elogiou Alan.
— Você também parece estar bem — ela respondeu, sem muita convicção.
Mais tarde, Alan tirou-a novamente para dançar. Oriel não sabia se ele já tinha
perdido as esperanças de casar com ela, mas pelo menos nessa noite não queria se
preocupar com isso. O conjunto tocava uma valsa e Alan dançava compenetrado.
Quando os dois passaram girando perto da porta, ela viu Devil parado ali, observando-
os com expressão misteriosa.
O coração de Oriel disparou quando seus olhos encontraram o olhar azul de
Devil. Ele estava usando um smoking, e era a primeira vez que ela o via vestido assim.
Oriel achou que ele estava lindíssimo, com o cabelo brilhando, bem aparado e penteado,
o físico perfeito realçado pela roupa, o corpo inteiro irradiando saúde, força e
masculinidade.
Ela não pensou que Devil viria. Na verdade, ele havia ficado tão bravo quando
Oriel falou na festa que, mais tarde, nem tinha sido convidado. Agora ela se sentia nas
nuvens com a presença dele. Sua alegria era tanta que Oriel conteve a respiração e
quase parou de dançar. Alan notou a mudança no comportamento dela. Logo depois,
também viu Devil.
— Esse homem era o que estava lá, no dia do leilão — Alan murmurou, com
frieza. — O que está fazendo aqui? Pensei que a sua família e a dele não se dessem.
Oriel não respondeu, mas parou de dançar para ir falar com Devil.
Alan seguiu-a, como um homem ciumento e possessivo. Devil encarou-o com
sarcasmo, depois cumprimentou Oriel com uma mesura.
— Ser penetra é um passatempo dos Haggard — disse, com os olhos brilhando,
maliciosos. — Posso convidá-la para o resto dessa dança?
Sem esperar pela resposta, ele tomou Oriel nos braços, indiferente à irritação
evidente de Alan. Oriel não deixou de censurá-lo.
— Que absurdo Devil! Você ofendeu Alan de propósito.
— Quem? O seu amigo executivo? Acha que devo me importar com isso? — ele
perguntou arrogante.
— Por que você veio Devil? Fiquei espantada em vê-lo. Há semanas que você
se recusa a entrar na minha casa, com exceção da noite de Natal, e agora aparece aqui

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sem ao menos ser convidado.
— Pode me mandar embora, se quiser.
Os olhos azuis desafiavam os verdes. A mão de Oriel tremia e suava. Ela girava
com prazer, no meio do salão.
— Mande-me embora — ele insistiu, em voz baixa. — Não seria a primeira vez,
não é?
— Não fale bobagens, Devil. Continuaram dançando em silêncio.
— Você parece uma fada nesse vestido branco. Parece ser uma mulher fria e
imaculada. É verdade, Oriel?
— O quê?
— É verdade que você é fria e imaculada?
O coração de Oriel não se acalmava. Ela não respondeu. Girando nos braços
dele daquele jeito, não conseguia nem respirar nem pensar direito. Só estava consciente
do contato físico, da força daquelas mãos, do sorriso daqueles lábios sensuais. O salão
cintilante parecia girar. Ela estava ficando tonta com a valsa.
A música parou de repente, os corpos se separaram, mas os olhos continuaram
se fitando, transmitindo mensagens sem palavras. Devil inclinou o corpo.
— Obrigado, Sra. Mellstock.
No minuto seguinte, Renée apareceu ao lado deles, observando Devil com
curiosidade.
— Ah! O pai de Linnete. É um prazer revê-lo!
Devil sorriu de um jeito capaz de seduzir qualquer donzela.
— A senhora está encantadora.
— Se eu fosse mais jovem, seria capaz de me apaixonar á primei vista, Sr.
Haggard — Renée brincou.
— Tenho certeza de que muitos homens já se apaixonaram pela senhora, Sra.
Mellstock.
— É, quando eu era jovem cativei muitos corações...
Um corretor da bolsa de valores de Londres aproximou-se de Oriel e convidou-a
para a dança seguinte. A mãe dele era uma das melhores amigas de Renée. Oriel
achou-se na obrigação de aceitar, mas ficou triste por deixar Devil que, logo depois, já
estava cercado de mulheres, atraídas pela sua sensualidade e seu magnetismo.
Algum tempo depois, Oriel viu Devil dançando também. Nos braços dele girava
uma jovem que sorria cativante. Aparentemente Devil ouvia o que ela dizia, fascinado.
Oriel ficou louca de ciúme!
Depois daquela dança, ela perdeu Devil de vista. Por mais que o procurasse,
ansiosa, não conseguia encontrá-lo. E não podia andar atrás dele porque tinha de
cumprir com os seus deveres de anfitriã.
Começou a desejar que a festa acabasse de uma vez. Seu rosto estava se
transformando numa máscara de tanto sorrir, os pés doíam nos sapatos novos de
verniz. Ela só queria descanso, silêncio, o repouso merecido na própria cama, a cabeça
sossegando no travesseiro de penas de ganso. Queria dormir em paz, sem sonhar com
Devil.
Onde estaria ele agora? Andava pelo parque, acompanhado por algumas
daquelas garotas avançadas de Londres? O ciúme não deixava o coração de Oriel
sossegado. A incerteza destruía a harmonia daquela festa deslumbrante. Com quem
estaria agora? Será que ele estava com outra mulher? Ele se divertia? Sentia prazer?
Para Oriel, a festa começou a se transformar numa tortura.
Por fim, os convidados começaram a se despedir. Os músicos, exaustos,
continuavam tocando, mas cada vez menos dançarinos rodavam no meio do salão.

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Renée, muito cansada, despediu-se dos amigos mais íntimos e subiu para se deitar.
Pouco depois a maioria dos hóspedes de Chantries seguia o exemplo dela.
— Estamos de saída — disse Phil para Oriel, que apertava mãos e sorria perto
da porta. — Foi uma festa maravilhosa. Obrigado. Joan convidou seu amigo Alan para ir
almoçar conosco. Parece que fizemos mais um amigo.
Oriel não entendia a ausência de Devil. Será que ele tinha saído sem se
despedir? Pensando nisso, ela sentiu um misto de frustração e raiva.
O final da festa foi melancólico. Os últimos convidados se despediram. Alguns
chamavam seus motoristas com vozes roucas e ébrias, cambaleando tristemente na
noite fria. Os empregados não conseguiam mais conter os bocejos e começavam a
trabalhar na limpeza e na arrumação com má vontade.
— Vamos deixar essa limpeza para amanhã — disse Oriel. — Vocês podem ir
dormir agora.
Uma hora depois, ela estava sentada na frente da penteadeira, aliviada com o
silêncio que reinava na mansão inteira. As luzes tinham se apagado. Os empregados e
os hóspedes já estavam todos dormindo. Só o vento murmurava e cantava entre as
telhas de Chantries.
Oriel sentia um pouco de dor de cabeça. Olhando-se no espelho, viu seu rosto
abatido pelo cansaço e pela excitação da noite. Já tinha tirado o vestido branco e,
cuidadosamente, o guardara. Estava sentada seminua, com os cabelos loiros cobrindo
os ombros, exausta, mas sem vontade de dormir, incapaz também de ler ou pensar.
Sabia que precisava fazer alguma coisa, alguma coisa diferente, misteriosa e romântica.
Sua cabeça estava exausta, mas o corpo não conseguia se acalmar, inquieto.
De repente, ela se levantou e foi até o guarda-roupa. De uma gaveta tirou um
suéter branco. Do cabide, pegou a calça de montaria, também branca. Vestiu-se
rapidamente, levada por um impulso estranho e irresistível. Depois de calçar as botas,
saiu do quarto sem fazer barulho, apagando a luz antes de fechar a porta.
A égua pareceu se espantar quando Oriel entrou no estábulo. Ela passou a mão
na crina do animal, estremecendo com o frio que fazia fora da mansão. Com habilidade,
Oriel selou a égua e colocou o freio com a rédea.
Cinco minutos depois ela galopava no parque sobre a grama coberta de neve.
A lua brilhava no céu estrelado, uma coruja piava agourenta, uma raposa corria
na direção da toca. A neve parecia um mar branco, com ondas mansas na noite de
pouco vento.
Oriel sentia a emoção de estar flutuando, galopando sozinha na escuridão,
observada apenas por estrelas distantes e indiferentes. Os cabelos esvoaçavam
revoltos, a boca sorria, agora sem fingimento, mas por puro prazer, O corpo inteiro
sentia-se livre, numa liberdade fantástica e extasiante, a uma velocidade que beirava os
limites tio perigo:
No salão iluminado e requintado, ela tinha sentido cansaço e frustração. Agora o
corpo vibrava desperto, integrado na natureza, como se tivesse renascido. Onde ficavam
os limites de Chantries? Oriel não sabia mais, não tinha mais noção de tempo e de
espaço.
De repente, ouviu o som de cascos de outro animal. Por entre as árvores, ela
identificou o garanhão negro, antes de identificar o cavaleiro.
Oriel sentiu um nó na garganta, o rosto ardeu. Um instinto selvagem e primitivo a
fez esporear a égua, aumentando ainda mais a velocidade em que galopava. Sentindo-
se perseguida, varava a noite deixando atrás de si um risco branco.
Ela queria ir cada vez mais rápido, mais rápido. E inclinava o corpo para frente,
quase encostando a cabeça na crina, estimulando a égua com sussurros, gritos e com

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os calcanhares. A velocidade aumentava em vão. O garanhão era maior, mais forte e
mais veloz. Alcançou-a, passou por ela e a mão de Devil agarrou o freio. A égua parou,
resfolegando, tremendo, inquieta, fitando o garanhão.
Devil estava todo de preto. Usava um suéter, calça e botas, e um casaco de
couro. Só seus dentes perfeitos brilhavam brancos.
— Ora, ora, quem diria... A Sra. Mellstock!
— Quem você pensou que fosse?
— A Sra. Mellstock, claro!
— Largue o freio! — ela mandou.
— Ainda não aprendeu a falar comigo, Sra. Mellstock?
— Falar como?
— Você sabe o que quero dizer Sra. Mellstock.
— Pare de me chamar desse jeito.
— Claro. Mas só quando você mudar de sobrenome.
— Estou com frio. Por favor, solte o freio. •
— Por que você saiu para galopar à noite?
— Eu não conseguia dormir.
Aos poucos, o garanhão e a égua foram se acalmando. Também Devil e Oriel
recuperaram a calma, admirando a noite e o encanto das estrelas.
— A casa de troncos ainda está vazia — disse Devil. — Podemos tomar café lá.
Vamos?
A casa de troncos estava sendo reformada para ser usada pelo irmão de Ana.
Oriel olhou para lá, indecisa. Sentia-se tentada a entrar ali com Devil, mas, ao mesmo
tempo, tinha medo. A noite inteira tinha desejado estar nos braços daquele homem.
Agora, tremia assustada. Era fácil querer dançar uma valsa naqueles braços, sob os
candelabros de cristal. Mas era difícil criar coragem para entrar sozinha com ele numa
casa escura, rodeada pelo silêncio do parque vazio. Ela sabia que lá estaria longe de
qualquer outra pessoa que pudesse ouvir um grito, exposta à violência das emoções.
Parecia que Devil lia seus pensamentos.
— Não seja covarde — ele disse.
— Está bem. Vamos.
Guiaram os cavalos até a casa de troncos. Desmontaram, prenderam os animais
e entraram. Oriel acendeu o fogo enquanto ele ficava em silêncio, observando-a atento.
A cozinha já estava reformada e sentaram ali para tomar o café.
— Você precisa levantar cedo para trabalhar amanhã. Não pode passar as
noites desse jeito. Precisa descansar.
Devil acabou de tomar o café e afastou a xícara.
— Não consigo dormir.
Oriel se levantou assustada com a emoção da voz rouca de Devil.
— Acho melhor eu ir embora agora — sussurrou.
Ele segurou Oriel pelos ombros, sentou-a no colo e ficou encarando-a, com os
olhos azuis sedentos de amor.
— Fale Oriel. . Não me enlouqueça mais... Não consigo dormir, nem comer, nem
pensar... Fale, confesse...
O pulso dela acelerou, o corpo enrijeceu os pés não obedeceram mais. Por um
momento interminável, ela o olhou sem falar, como se estivesse muda, querendo deixar
de lado o amor próprio, mas sem coragem de se entregar aos sentimentos. Sentia-se
totalmente trêmula e louca de desejo por ele, mas o orgulho ainda não cedia. As mãos
de Devil apertaram mais o corpo de Oriel contra seu próprio corpo, como se a
convidasse para se entregar a ele.

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— Fale... Vamos. . Crie coragem...
As palavras jorraram, finalmente, liberando as emoções:
— Amo você!
— Fale... De novo... — Amo você! Seu demônio! Que mais você quer? Quer me
ver vencida a seus pés? Já errei demais no passado. Nós erramos... Para que continuar
com isso? Chega! Eu não agüento mais viver sem você. Por que não me beija, Devil?
Por que você não... Simplesmente...
— Simplesmente...
— Me beije! — Sua voz implorava, vibrando na casa como uma brasa no fogão
de lenha. — Por favor, Devil... Faça amor comigo. . Quero você... Preciso...
Ele a calou com um beijo ardente. Oriel abraçou-o, gemendo baixinho. Suas
mãos foram subindo até os cabelos negros, agarrando, puxando, sentindo a nuca dele,
as mãos em seu pescoço, nos cabelos. Os corpos se calaram, aquecendo-se, saciando
desejos, prometendo-se...
De repente Devil parou e recuou.
— Preciso ir...
— Não — ela protestou, implorando. — Fique comigo, Devil, Não vá...
— Você quer casar comigo, Oriel?
— Sim, meu amor.
— Então...
— Fique comigo, meu amor, não vá embora. Você disse que não consegue
dormir. Eu também não. Foi por isso que saí cavalgando como louca pela noite. Tentei
cansar meu corpo, aplacar o desejo, apagar o fogo que ardia em meu peito...
— Então case comigo o quanto antes — ele insistiu, quase cedendo ao desejo
dela.
— Me beije mais, querido.
— Não quero você assim, Oriel. Devíamos ter casado quando você tinha
dezessete anos. Já esperei tanto... Posso esperar mais um pouco.
— Como é que você pode dizer isso? Aqui mesmo, nessa casa, você me
pediu...
— E você recusou — ele recordou.
— Você era casado!
— Sim. Clare... Agora você sabe de tudo. Leu aquele diário.
— Li. Ah, Devil, eu sofri tanto naquela época. Não acreditei em Clare quando ela
me disse que tinha sido violentada. Fui falar com você, mas você tinha saído e achei
uma carta sua para ela... Aí não pude mais duvidar de Clare.
— Que carta?
Ela citou a primeira sentença da carta. Aquelas palavras continuavam gravadas
a ferro e fogo em sua memória... Devil interrompeu-a com um gesto.
— Agora me lembro. Um dia antes daquilo, Clare quis fazer amor comigo.
Escrevi para dizer que ela não me provocasse de novo, senão avisaria o tio dela.
Expliquei que amava você e que nunca poderia amá-la.
— Oh, Devil! — ela gemeu, encostando a cabeça no peito dele. — Fui tão
boba...
— Sim — ele confirmou com rudeza. — Você foi boba, sim. Mas eu também fui
quando casei com Clare. Devia ter me mantido fiel a você. Casei porque fiquei com o
orgulho ferido.
— E foi meu orgulho que me fez viajar para a África — ela murmurou.
— Por isso não quero mais errar agora. Vamos fazer tudo direitinho. Também
quero ser inteiramente seu, dormir com você aqui e agora. Mas vou esperar e você

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também vai ter um pouco mais de paciência.
— Tem certeza? — Ela abraçou-o, provocante, depois puxou a cabeça dele para
baixo, beijando-o com violência.
— Sedutora! — ele murmurou, beijando-a até quase perderem o fôlego.
Fazendo um esforço enorme, ele se conteve. — Vamos parar meu amor. Será que você
não entende?
—• Está bem! — Ela suspirou. — Você tem razão. Por você sou capaz de fazer
qualquer coisa.
— Você abandonaria Chantries?
— Sim. Mas não será preciso. Você será o dono de Chantries agora. Finalmente
vai realizar seu desejo.
— Meu único desejo é possuir esse seu corpo divino... — ele disse rouco.
Ela riu.
— Vamos morar em Chantries depois do casamento? Você quer viver comigo,
Linnete e sua mãe? — Ela acariciou a mão dele, sonhadora. — A sua mãe também será
dona de Chantries. Acho justo. Tenho pensado que tio Jeremias ficaria contente com
isso. Estou certa de que ele amou Ann a vida inteira. Uma vez ela me contou algumas
coisas do passado. Fiquei com a impressão de que nossa história foi parecida com a
dela. Só que a nossa terá um final feliz!
— Como você é romântica, querida — disse Devil. — Seu tio Jeremias era um
velho bruto, insensível, arrogante e egoísta; não servia para ser herói de uma história de
amor.
— Ele foi cruel com você, eu sei. Mas acho que só agiu assim porque era um
homem muito infeliz. Seja como for, Chantries será sua casa agora, Devil.
— Não quero essa mansão maldita! O povo inteiro de Yorkshire vai dizer que
casei com você só por causa dela.
— Então vamos deixá-la para nossos filhos!
— Nossos filhos... — ele repetiu, emocionado. — Fiquei tão contente de ver que
Linnete gosta tanto de você. Isso será muito bom para nós.
— Eu também gosto muito dela. Felizmente Linnete e Anatole já são amigos.
Rezei tanto para que isso acontecesse...
Conversando, abraçados, eles saíram para o frio parque prateado e silencioso.
De mãos dadas olharam a lua, brilhando entre as nuvens. Flocos de neve caíam do céu,
como uma cortina branca.
Devil admirou a neve cobrindo os cabelos loiros de Oriel como um véu cristalino.
— Você é uma fada.
— E você é um demônio. Adoro você!
O garanhão relinchou e a égua agitou a cabeça ao longe, meio perdidos entre as
árvores de Chantries.
Envoltos na magia que emanava da natureza, Devil e Oriel foram andando
abraçados, trocando beijos e juras de amor. Eles tinham pressa de reviver o passado e
recuperar, o mais rápido possível, todo o tempo perdido.

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